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Isolad@s: reflexões artísticas e teórico-críticas sobre o

isolamento social no contexto da pandemia

Orgs.
Emerson Campos Gonçalves
Robson Loureiro
Mariana Passos Ramalhete
Copyright © 2020 Nepefil/Ufes. Este e-book é de distribuição gratuita. O conteúdo de
cada capítulo é de responsabilidade exclusiva de seus autores. A reprodução total
ou parcial é proibida sem a expressa autorização dos autores e/ou organizadores.

Diagramação, arte de capa, revisão e edição final dos organizadores.

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Prof. Dr. Edson Maciel Jr. (Ufes) Prof. Dr. Rafael Nogueira Costa (UFRJ)
Prof. Dr. Filicio Mulinari e Silva (Ifes) Prof. Dr. Rodrigo Sarruge Molina (Ufes)
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Prof. Dr. João de Assis Rodrigues (Ufes) Prof. Dr. Vicente A. Parreiras (Cefet-MG)
Profa. Dra. Luciana Azevedo Rodrigues (Ufla) Prof. Dr. Vitor Cei (Ufes)
Profa. Dra. Luciana Molina Queiroz (Ufes) Prof. Dr. Wecio Pinheiro Araújo (UFPB)
Prof. Dr. Márcio Norberto Faria (Ufla) Prof. Dr. Wilberth Clayton F. Salgueiro (Ufes)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).


I85
Isolad@s: reflexões artísticas e teórico-críticas sobre o isolamento social
no contexto da pandemia [recurso eletrônico] / Gonçalves, Emerson Campos;
Loureiro, Robson; Ramalhete, Mariana Passos (orgs.). – Vitória, ES: Nepefil/Ufes,
2020.

434 p.: [PDF].

Inclui bibliografia e ilustrações.


ISBN 978-65-00-10534-6

1. Educação. 2. Teoria Crítica. 3. Literatura. 4. Comunicação. I. Gonçalves,


Emerson Campos. II. Loureiro, Robson. III Ramalhete, Mariana Passos.
CDU: 37
CDD. 370.115
Em memória às mais de 150 mil vidas brasileiras que, até
outubro de 2020, foram precocemente interrompidas pela
pandemia do SARS-CoV-2. Nossa impossibilidade de
mencioná-las nome a nome atesta a vitória (ao menos parcial)
do necroestado, onde a barbárie surge como política frente a
qualquer sopro de solidariedade ou democracia.
SUMÁRIO

Apresentação (ou pré-vírus). O que veio 8


primeiro: a pandemia ou o pandemônio?

1_ Negacionismo científico na pandemia da Covid- 12


19: elogio ao conhecimento e à escola
Robson Loureiro

2_ Soneto contra o vírus e os viris 93


Wilberth Salgueiro

3_ Ética e justiça em tempos de pandemia 95


Filicio Mulinari e Silva

4_ Vicissitudes da plutocracia semidemocrática 115


brasileira: a cena fascista no cenário Bolsonaro-
pandemia
Adolfo Miranda Oleare; Hudson Ribeiro; Leidijane
Rolim da Silva; Márcio Vaccari; Stelio Machado
Broseghini; Vitor Cei

5_ Ensino remoto emergencial ou avaliativo 184


(ERE⇌ERA): expropriação capitalista e
universidade pública em tempos de pandemia
Luciana Azevedo Rodrigues; Márcio Norberto
Farias

6_ Não estamos “OK” 200


Fernando Soares
7_ Congresso virtual da UFBA 2020: implicações 205
sócio-digitais em tempos de pandemia mundial de
Covid-19
Samira da Costa Sten

8_ Os sapos verde-oliva 213


Mariana Passos Ramalhete

9_ Lista de desfazeres 229


Ana Elisa Ribeiro

10_ Tempos de covídeos e o imaginário da guerra 231


Rafael Nogueira Costa

11_ Estado de Direito ou de Miséria? Eis a questão. 253


Os movimentos sociais, a democracia e uma nova
sociabilidade
Alline Garcia

12_ Imaginando o fim do capitalismo 276


Luciana Molina Queiroz

13_ Será possível amar? 291


Emerson Campos Gonçalves

14_ A União Europeia irá sobreviver ao 294


coronavírus?
David Gonçalves Borges

15_ Desconfinados 302


Thiago Verissimo
16_ Covid-19: uma guerra de todos ou uma guerra 304
contra todos?
Monnique Greice Malta Cardoso

17_ Error 404 President Not Found

18_ Pandemia e pandemônio neofascista: o 320


microfascismo brasileiro em tempos de Covid-19
Wécio Pinheiro Araújo

19_ O ressurgimento da irracionalidade e o 344


silenciamento de vidas na pandemia pela Covid-19
no Brasil
Kênia Faria Brant; Juliana Sampaio da Silva

20_ Pandemia e isolamento: [r]evoluções no limite 362


do caos
Vicente Aguimar Parreiras; Mateus Esteves de
Oliveira

21_ Covid-19 e "pós-verdade": o escárnio da 381


racionalidade técnico-instrumental
Emerson Campos Gonçalves

22_ “Canção da desesperança”, de Mara Coradello 397


Wilberth Salgueiro

23_ A querela do coronavírus: sobre a falta de 405


economia política no debate a respeito da
sociedade pós-pandemia
David Gonçalves Borges

Sobre @s organizador@s 432


APRESENTAÇÃO (OU PRÉ-VÍRUS)
O que veio primeiro: a pandemia ou o pandemônio?
Isolad@s

rincar com as palavras pode ser perigoso. Ainda assim, ao


B invés de um prefácio, ousamos arriscar um texto pré-vírus.
Porém, como uma coisa leva a outra, ao invés de focar num
texto pré-vírus-pré-livro, fixamos pensamento no período pré-
isolamento (até porque nosso livro não é um vírus do mal, tampouco
uma gripezinha). Daí, nas trilhas ardilosas da mente, pegamo-nos
indagando já aqui sobre o que veio primeiro: a pandemia ou o
pandemônio?

É certo que a pergunta não tem lá muitos mistérios e, nos idos deste
interminável 2020, qualquer um que ainda prefira livros que correntes
do tio do Zap conseguirá responder que é claro que foi...

O ovo.

Da serpente.

Do fascismo.

A questão é quem chocou o ovo e o que saiu lá de dentro primeiro.

Por isso larguemos a questão ontológica para os textos reunidos na


sequência deste aglomerado de bilhões de zeros-e-uns – ou de
centenas de papéis (dependendo de qual versão você tem em mãos).

De forma intencional ou não, são trabalhos que buscam cumprir aquilo


que é a essência do pensamento estético e ético que permeia a Teoria
Crítica da Sociedade: identificar a contradição e tensioná-la

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Isolad@s

dialeticamente (seja enfrentando o conceito, seja apostando na arte), de


forma que o próprio pensamento crítico e a abordagem sensível da
realidade permitam elencar novas questões para um outro mundo.

Assim, folgamos adiantar que esta não é uma coletânea “convencional”,


com um emaranhado de artigos que visitam uma base teórica única (ou
muito próxima), escolhem um tema de interesse e recortam a realidade
como se tudo começasse e terminasse ali. Ela tenta ser a contramão
disso! Trata-se de uma organização ensaística. Aqui a tentativa é de,
partindo da valorização das partes e das singularidades, discutir e
elaborar o todo, aproximando práxis e teoria sem receitas de bolo ou de
remédio – principalmente se for a indicação de um coquetel de
cloroquina com ivermectina, cruzes!

Não se espante ao transitar de forma dura entre artigos e ensaios,


poesias e prosas, textos verbais e não verbais. A intenção com a
organização que não respeita limites de gêneros e formatos foi
justamente de provocar o incômodo e, para isso, reiteramos: nada
melhor que apostar na diversidade.

O conjunto de autor@s que aqui se apresenta é composto por


colaborador@s muito querid@s do nosso Núcleo de Estudos e Pesquisa
e Educação, Filosofia e Linguagens, o Nepefil. Isolad@s, mas não
solitári@s (como prima o momento), esse coletivo reuniu forças para
discutir com rigor científico, ética, profundidade e sensibilidade estética
o contexto de isolamento social que a pandemia de SARS-CoV-2 impôs

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Isolad@s

(mesmo que o isolamento já tenha se encerrado há muito ou nem tenha


começado para alguns).

No caso particular do Brasil – que na data de publicação deste original


supera os 150 mil mortos – esta obra surge também como denúncia
sobre as políticas de morte e fascismo responsáveis por promover um
verdadeiro genocídio entre os nossos.

Ao fim, mais do que um respiro, esperamos que os textos aqui reunidos


permitam aquela melancolia proposta por Walter Benjamin: um
sentimento que incomoda, torcendo nosso estômago e fôlego, mas que
não nos paralisa. Ao contrário: coloca-nos em movimento em busca de
um mundo mais justo do que aquele que corre diante de nossos olhos.

Navegue como desejar pelas poesias, prosas, ensaios, artigos e


ilustrações e siga sua própria trilha. Seja ela qual for, desejamos que
esta leitura seja uma boa companhia para enfrentar o isolamento social
e, sobretudo, para mirar o devir.

@s organizador@s

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Isolad@s

NEGACIONISMO CIENTÍFICO NA
PANDEMIA DA COVID-19: ELOGIO
AO CONHECIMENTO E À ESCOLA

Robson Loureiro
Pós-Doutor em Filosofia pela University College
Dublin (2013-2014) e pela Universität Leipzig (2018).
Doutor em Educação pelo PPGE/UFSC com estágio
sanduíche na University of Nottingham. Coordenador
do Nepefil/Ufes e professor na Universidade Federal
do Espírito Santo.
robbsonn@uol.com.br

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Isolad@s

INTRODUÇÃO
e pudéssemos caracterizar o contexto cultural
S contemporâneo, dos últimos vinte anos deste início de século
XXI, pode-se facilmente considerar que se trata de uma época
na qual o obscurantismo se fortalece e parece mimetizar o também
paradoxal contexto relativo ao Renascimento europeu, quando
cosmovisões (misticismos, filosofia natural, teologias etc.) díspares
disputavam um lugar de poder, em face do domínio da poderosa
estrutura da Igreja Católica e, a partir do século XVI, das Igrejas
Protestantes. A fé dogmática, a opinião fundamentada na dimensão
tácita de uma experiência ancorada na crença oriunda do pensamento
ordinário e de senso comum, naquele contexto renascentista, começou
a ser abalada pela dúvida, pela crítica, pelo debate público que pôs em
xeque o dogmatismo fundamentalista que orientava movimentos
místicos, religiosos e a coletividade na sua quase totalidade. A disputa
apenas começava e por isso era fundamental distinguir magia, feitiçaria,
ocultismo, misticismo daquilo que começava a se constituir como um
novo tipo de conhecimento, que veio a ser conhecido como ciência
moderna. Desde então, mesmo com a consolidação da ciência, o conflito
não deixou de existir. Evento ilustrativo é o movimento negacionista (da
ciência, do conhecimento científico), que é anterior à pandemia do
Covid-19 e, como alerta Michiko Kakutami (2018), é bem possível que
inicialmente ele tenha surgido no interior da própria academia. A partir

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Isolad@s

do negacionismo científico, em especial da negação à ciência e à razão


modernas (muito enfatizado por intelectuais vinculados à agenda pós),
é que teve início o atual movimento antivacina, que hoje é uma realidade
em inúmeros países.

Esse negacionismo presentifica-se nos discursos de grupos que


consideram ser exagero dos cientistas que afirmam que o Planeta Terra
tem sofrido um aquecimento considerável, em função, principalmente,
da emissão de gazes poluentes “produtores” do efeito estufa. O que, de
fato, parece não fazer liga com a materialidade objetiva, haja vista como
nossos corpos têm sido os principais termômetros a denunciar a falácia
dos negacionistas climáticos. É o que atesta a pesquisa desenvolvida
pelo geólogo estadunidense James Powell, cujos resultados foram
publicados em 2019. De acordo com Powell, “[....] dentre os mais de 11 mil
artigos científicos publicados sobre mudança climática entre janeiro e
julho de 2019, não havia um único sequer que contestasse que o planeta
está ficando mais quente por causa dos gases de efeito estufa lançados
na atmosfera por atividades humanas” (ROQUE, 2020, s/p.).

O negacionismo não é só climático. Ele está em diversos nichos


da sociedade. É antigo, mas se reatualizou e virou moda entre aqueles
que se dizem céticos com relação à ciência. Em A sociedade de risco
midiatizado: o movimento antivacinação e o risco do autismo
(VASCONCELLOS-SILVA; CASTIEL; GRIEP, 2018), os autores observam,
que nos Estados Unidos da América, por exemplo, “[...] entre as 17.000

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Isolad@s

crianças não vacinadas anualmente, uma significativa maioria reside em


estados americanos que não obrigam os pais à vacinação desde que
estes aleguem ‘motivos filosóficos’”. Contudo, quase sempre as
motivações são pautadas por argumentos calcados em pressupostos
morais religiosos, em geral teologias fundamentalistas, que nada têm a
ver com Filosofia. Apesar de ser antigo, tanto o relativismo absoluto
como o negacionismo (científico, climático, histórico etc.) são
perspectivas cuja gênese é anterior ao atual contexto contemporâneo.
No caso específico do movimento antivacina, no Brasil, por exemplo, em
11 de novembro de 1904 houve uma manifestação popular que gerou o
caos e cujas depredações ocuparam, por uma semana, as ruas da cidade
do Rio de Janeiro. As forças de segurança pública disparavam contra a
multidão na tentativa de controlar a situação. Esse primeiro movimento
ficou conhecido por “Revolta da Vacina” e “[...] deixou um saldo negativo
de 23 morto s, 67 feridos, além de 945 pessoas presas, transferidas para
o estado do Acre e submetidas a trabalhos forçados. O movimento se
justificou não só pela obrigatoriedade da vacinação, mas também pela
falta de informação sobre os efeitos que a vacina causaria”. Além de
antigo, não se trata de um fenômeno tipicamente tupiniquim, original e
único do Brasil, pois tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra,
também no século XIX, houve movimentos antivacina. De tal sorte, que o
sentimento e a prática negativista, relativos à administração vacinal,
têm sustentado uma lenda popular de acordo com a qual as vacinas são
pouco seguras e/ou seriam armas biológicas criadas pelo governo para

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Isolad@s

controle populacional. Tais disparates, sobre a real função das vacinas,


têm motivado, ao longo de dois séculos, conflitos religiosos, políticos e
judiciais.

Atualmente, na era da velocidade da emissão de informações,


proporcionada pelas novas tecnologias de comunicação, em particular
a rede internacional de computadores (Internet) e toda gama de
aparelhos que é suporte para a transmissão rápida de todos os tipos de
dados, é paradoxal, no caso específico do movimento antivacina, o fato
de que ao invés de os conglomerados dos media – meios de comunicação
de massa – arrefecerem a lógica de funcionamento da engrenagem
produtora e reprodutora de notícias falsas, é justamente o contrário que
tem ocorrido: o recrudescimento da propagação de fakenews. Em outros
termos, a própria engrenagem do sistema que alimenta e retroalimenta
a indústria cultural 4.0 (sustentada pela inteligência artificial
algorítmica) tem sido responsável pela disseminação das teses
negacionistas, como é o caso do movimento antivacina.

De acordo com Tatiana Roque (2020), pesquisas recentes têm


confirmado uma certa “crise de confiança” tanto na ciência como na
política. De acordo com essa autora, o fenômeno da pós-verdade implica
justamente a recusa em tudo que diz respeito à materialidade objetiva
do mundo, que é subsumida em função das crenças pessoais. Tais
negacionismos, em particular o movimento anticiência, é dominado por
grupos fundamentalistas que orientam suas práticas a partir de teorias

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Isolad@s

da conspiração. Consoante a Roque (2000), a pós-verdade sinaliza um


ceticismo com relação aos benefícios das verdades, cujo discurso é
sensocomunizado.

No presente ensaio, o escopo é apontar alguns dos possíveis


elementos que determinam a existência do negacionismo antivacina,
consequência do negacionismo científico que tende a sustentar a ideia
segundo a qual ciência e magia; ciência e feitiçaria se equiparam. Apesar
de não estar isolado, pois vincula-se ao revisionismo histórico que com
o discurso de revisar a história acaba por se assimilar aos negacionistas
em inúmeros aspectos bem como fortalecer e enaltecer o conhecimento
tácito, a sabedoria de vida oriunda da observação imediata dos
fenômenos etc.. De um lado, a negação total do saber sistematizado,
historicamente elaborado e expresso na forma de ciência, filosofia e do
campo das humanidades e artes, em geral; de outro, a ideia
fundamentada em uma percepção tópica da realidade que equipara o
conhecimento científico à feitiçaria/magia. Nesse sentido, apresento a
seguinte pergunta-problema: de onde vem essa mística, essa aura que
envolve o fazer científico e a figura do cientista em nossa sociedade?
Qual seria a razão para o procedimento ambíguo, no qual, ora o cientista
é considerado como se fosse um mágico ou feiticeiro, ora é adorado
como se fosse um Deus?

Ouso lançar duas hipóteses provisórias, aqui apresentadas


como uma experiência crítico-reflexiva do pensamento: 1) a relação

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Isolad@s

entre o fazer ciência e os milagres divinos, pode ter a ver com a famosa
frase de Galileu: a matemática é o alfabeto que Deus usou para escrever
o universo? (ROSSI, 2001; JAPIASSÚ, 1996; CHAUI, 1996; SAGAN, 1996;
RONAN, 1987) e, ainda que no discurso, as academias surgidas no período
da Renascença europeia sustentassem a ideia de que eram espaços
autônomos, de livre criação, circulação e debate de ideias desvinculadas
das diretrizes religiosas das universidades (ROSSI, 2001), parte
considerável do solo intelectual que alimentou a constituição da ciência
moderna foi fertilizado por teses oriundas da crença no mistério divino;
2) boa parte dos principais personagens responsáveis pela origem da
ciência moderna, tinha um vínculo tanto com a Igreja, como é o caso do
polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), que apesar de ser formado em
direito, matemática e medicina, era cônego da Igreja Católica; Johannes
Kepler (1571-1630), que além de matemático, teria incorporado
argumentos teológicos às suas teses astronômicas, motivado pela
convicção de que Deus havia criado o mundo conforme um programa
inteligível, acessível à razão. Esse é o caso da obra Mysterium
Cosmographicum (1596). Na ocasião, ele considerou que havia revelado
o plano geométrico de Deus para o Universo, pois este era uma imagem
daquele, sendo que o Sol corresponderia ao Pai, a esfera estelar o Filho
e o espaço intermediário entre eles o Espírito Santo.

No caso de Galileu Galilei (2009), este filósofo da natureza “nada


mais fez” (e já foi o suficiente) do que seguir a tradição intelectual típica
do contexto renascentista que propunha um retorno aos clássicos da

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Isolad@s

Antiguidade Greco-Romana, mas quase sempre em diálogo com o


misticismo, a teologia cristã hegemônica e a astrologia. A ideia de
Galileu, de que a matemática é o alfabeto que deus usou para escrever
o livro do universo, e que, portanto, para ser cientista é preciso conhecer
e dominar a linguagem matemática, já estava (a ideia) presente na
Antiguidade Grega, com Pitágoras e Platão, por exemplo. Estes já se
utilizavam dessa tese. Pitágoras (±560 a.C. – ±500 a.C.), por exemplo, é
considerado o criador do termo Filosofia e fundador de uma Escola que
levou seu nome. A Escola Pitagórica era esotérica e seus membros
defendiam que a alma pode deixar o corpo, temporária ou
permanentemente e dirigir-se para o corpo de outra pessoa. É certo que
essa tese advém da sua experiência, quando jovem, de ter visitado o
Egito e a Babilônia e, portanto, ter tido contato com a milenar cultura
egípcia e babilônica. Também foi a partir dessa viagem que Pitágoras
iniciou-se nos estudos de matemática e passou a declarar que todas as
coisas são números (RONAN, 1987).

É difícil precisar o que é tese de Pitágoras e o que é dos seus


seguidores. O certo é que ele notou haver uma relação matemática entre
as notas da escala musical e os comprimentos de uma corda vibrante
ou de uma coluna de ar em vibração, como em uma flauta. Da sua visita
ao Egito e à Babilônia chegou a conclusões relativas à geometria dos
triângulos, bem como a perceber relações numéricas definidas entre os
tempos utilizados pelos corpos celestes em sua órbita ao redor da terra
(RONAN, 1987, p. 75-76).

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Isolad@s

Para os pitagóricos, o número (trata-se do número figurado) é


a substância de todas as coisas e por isso reina o universo. Também
consideravam que a geometria é o conhecimento do que é eterno, e
eterno é deus. Sustentavam que a matemática é real, imutável,
onipresente. Para os pitagóricos, deus não era um matemático. A
matemática era deus! (RONAN, 1987). Depois de Pitágoras, Platão (± 427
a.C.± 348 a.C), discípulo de Sócrates, afirmou que a matemática
direciona a alma para a verdade e cria o espírito da filosofia. Aristocrata,
Platão (apelido, seu nome mesmo teria sido Aristocles) viveu em uma
Atenas que havia sido derrotada por Esparta na guerra do Peloponeso
(± 431 a.C.± 404 a. C), mas, já em 403 a.C. retomou a forma de
democracia autogovernada. Quando fez trinta anos de idade Platão teria
viajado para o Egito e depois para a Itália, onde visitou os pitagóricos.
Quando retornou à Atenas (± 388 a. C. ), ele comprou um terreno que
havia sido originalmente utilizado para prestar homenagens ao lendário
herói Academus, que segundo consta teria ajudado Castor e Pólux no
resgate de Helena de Esparta de volta para casa. Esse sítio ficou
conhecido pelo nome de Academia.

Havia, provavelmente, alguns edifícios; talvez um


museum (um templo das Musas), sala de reuniões,
refeitório e, possivelmente, outras salas; havia
também um bosque de oliveiras, onde
provavelmente eram dadas as aulas, ou à sombra
do alpendre de um dos edifícios. A existência de
tal escola não constituía nenhuma novidade; havia
outras similares na Grécia, no Egito e na
Mesopotâmia, mas a singularidade da Academia

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Isolad@s

estava no tipo de ensino de pós-graduação que


fornecia, não apenas na época de Platão, mas
também até muito tempo depois deles. De fato, a
Academia propriamente dita resistiu cerca de
novecentos anos, só tendo sido fechada em 529
d.C., por ordem de Justiniano, o imperador
bizantino (RONAN, 1987, p. 101).

Para Platão, a igualdade geométrica é fundamental tanto para


os deuses como para os mortais. O idealismo platônico considera que as
únicas coisas que realmente existem são as formas abstratas, as ideias
matemáticas. Só pela mediação da matemática é possível chegar a um
conhecimento absolutamente certo e objetivo. Nessa perspectiva
platônica, a matemática está diretamente associada com o divino. No
Timeu, livro que trata do conhecimento sobre a ordem natural, Platão
(2011) afirma que o bem funda o demiurgo e este é o artesão criador que
cria o mundo pela mediação da matemática. Também no Timeu lê-se que
o demiurgo usou o dodecaedro, para tudo. Com ele o Demiurgo teceu
seus projetos. O dodecaedro representa o universo como um todo e, com
suas doze superfícies pentagonais tem a proporção áurea escrita toda
sobre ele. Tanto o volume e sua área podem ser expressos como funções
simples da proporção áurea.

No livro A república, o conhecimento matemático é considerado


como um passo crucial no caminho de conhecer as formas divinas. Para
Platão (2011), o caráter matemático do mundo é decorrência do fato de
que o demiurgo sempre geometriza. No entanto, consta (LOPES, 2011)
que nas primeiras traduções desse livro – Timeu –, do grego para o

EM CASA lendo a p. 21
Isolad@s

português, demiurgo é traduzido por deus, e não artífice. Sem contar que
a leitura que se tem de Platão, no mundo ocidental, em geral é aquela
desenvolvida pelo Apóstolo São Paulo e pela Patrística, ou seja, pelos
primeiros padres doutores da Igreja, dentre eles Santo Agostinho. Mais
uma vez, fica posto, então, o vínculo entre matemática, filosofia e
teologia/religião – cristã. Com efeito, é preciso atentar para o fato de
que, tal como observa Ronan (1987),

A teoria das ideias de Platão [...] teve um efeito


muito mais profundo na história da ciência, a
longo prazo, do que qualquer de suas teorias
científicas mais específicas. Seu argumento de
que o mundo natural não proporciona um guia
adequado para o aprendizado da verdadeira ou
perfeita realidade, a qual só pode ser descoberta
através da contemplação ou da revelação,
tornou-se, pelos ensinamentos de São Paulo, a
pedra fundamental do pensamento cristão
(RONAN, 1987, p. 102).

Mas, teria havido algum elemento, um ponto no qual se poderia


afirmar que foi o limite entre aquela matemática Pitagórica e Platônica,
e a matemática que se desenvolveu no Renascimento, por volta dos
séculos XV e XVI, em especial na Europa?

A matemática grega foi um brilhante passo à


frente. Por outro lado, a ciência grega – os seus
primeiros passos rudimentares e frequentemente
desassistidos pela experimentação – estava
crivada de erros. Apesar de não podermos ver na
escuridão total, eles acreditavam que a visão
depende de uma espécie de radar que emana do
olho, ricocheteia no que estamos vendo e retorna
ao globo ocular. (Ainda assim, fizeram um

EM CASA lendo a p. 22
Isolad@s

progresso substancial na área ótica). Apesar da


semelhança óbvia dos filhos com a mãe, eles
acreditavam que a hereditariedade fosse
transmitida apenas pelo sêmen, sendo a mulher
um receptáculo passivo. Julgavam que o
movimento horizontal de uma pedra atirada tem
de alguma forma o efeito de levantá-la, de modo
que ela leva mais tempo para voltar ao chão do
que uma pedra que se deixa cair da mesma altura
no mesmo momento (SAGAN, 1996, p. 303).

No século XVI, as ideias de René Descartes (1536-1650) abriram


a porta para um equacionamento sistemático de quase tudo: o fato de
que deus é um matemático. Para Descartes, deus criou todas as
verdades eternas e dependem inteiramente dele. O deus cartesiano é
mais do que um matemático, no sentido de ser o criador da matemática
e um mundo físico que é totalmente baseado em matemática.

Não obstante, a crítica, a meu ver, não deve ser direcionada ao


conhecimento matemático, mas à apropriação que dele se fez e se faz,
em particular para manter interesses da classe social e politicamente
hegemônica. A matemática, em si mesma, não tem o poder de
concentrar, tampouco distribuir riqueza. Os números, em si mesmos,
nada dizem e nada significam.

A maioria das principais universidades europeias, fundadas a


partir do século XI, eram instituições religiosas dominadas pela Igreja
Católica. Esta, por sua vez, controlou e administrou a produção e
socialização do conhecimento erudito (filosofia, teologia, retórica,
matemática etc.) até o século XVIII. As principais bibliotecas, centros de

EM CASA lendo a p. 23
Isolad@s

ensino estiveram, durante séculos, sob o comando do clero, que além de


deter o poder político-ideológico, também era proprietário de terras. As
primeiras cátedras (de Catedral, local onde tem acento o Bispo),
inauguradas nas universidades europeias, eram formadas por teólogos,
médicos, advogados, todos vinculados à fé cristã, tementes ao deus
cristão, à Igreja e à sua autoridade máxima: o santo Papa. Ou seja, a
maioria dos professores era formada por religiosos cristãos. Portanto,
as cátedras universitárias já pertenceram, desde a origem, ao clero.
Ciência, religião e misticismo conviviam lado a lado. Eis, portanto, alguns
elementos históricos que, a meu ver, compõem esse cenário que circula
no senso comum relacionado ao vínculo que se costuma realizar entre
a imagem do cientista como dotado de poderes divinos, pois, como é
possível perceber, em geral sempre houve, na história do ocidente, uma
grande aproximação entre esses dois campos. Sem contar que na
sociedade parece existir um arquétipo, uma imagem de acordo com a
qual o mago, o feiticeiro e o cientista se equiparam. Não obstante,
também é possível afirmar que há casos nos quais o próprio campo
(científico) reproduz essa imagem do cientista como uma figura que se
quer e que se sente deus. É bem provável que na comunidade científica
haja alguns desses espécimes que se fazem (acreditam) passar por
deus.

Essa relação histórica, o vínculo estreito com a magia, alquimia,


matemática, misticismo e religião está na origem da constituição da
ciência, desde seus primeiros passos, na Grécia Antiga, até sua gênese,

EM CASA lendo a p. 24
Isolad@s

no Renascimento. Contudo, isso não justifica absolutamente nada. Pois,


a rigor, o espaço da ciência eliminou, pouco a pouco, qualquer
possibilidade de se fundamentar na crença subjetiva em detrimento da
objetividade, quer seja ela calcada em um discurso de suposta
neutralidade, quer seja o sentido de objetividade fincado em uma
perspectiva crítico-dialética. De qualquer forma, o que dizer de
personagens da história, homens e mulheres religiosos que também se
dizem representantes (ou mesmo o próprio) de deus etc.? Como bem
assinala Sagan (1996):

[...] é inegável que figuras centrais na transição da


superstição medieval para a ciência moderna
foram profundamente influenciadas pela ideia de
um Deus Supremo que criou o Universo e
estabeleceu não só os mandamentos que devem
reger a vida dos homens, mas também as leis a
que a própria Natureza deve se sujeitar. O
astrônomo alemão do século XVIII, Johannes
Kepler, sem o qual a física newtoniana talvez não
existisse, descreveu a sua busca da ciência como
um desejo de conhecer a mente de Deus [...]
(SAGAN, 1996, p. 307).

MERCADO: O DEUS
lém de tantos outros elementos, tais como formação familiar,

A estrutura de personalidade etc., há uma situação, bastante


emblemática, que compõe o cenário para uma possível
compreensão um pouco mais fundamentada do fenômeno ou da simples
ideia, bastante sensocomunizada, de que o cientista, em muitos casos,

EM CASA lendo a p. 25
Isolad@s

ou é concebido ou se autoconsidera deus. Trata-se da importância da


ciência para a promoção do desenvolvimento, do crescimento
econômico do capitalismo. Efetivamente, só há um deus para o
capitalismo: o mercado. E, o que faz o deus mercado? Como se fosse uma
entidade supranatural, “ele” parece desejar ser adorado, venerado,
celebrado. E, justamente aqueles que produzem os totens (as
mercadorias) serão os adoradores. Não tendo vida própria, pois
necessita da vida de outrem, o mercado carece do sacrifício dos seus
fiéis. Estes são os que menos se reconhecem (são alienados) nos
produtos produzidos. São aqueles que menos conseguem acessar a
riqueza por eles mesmos produzida. Os devotos (consumidores) vão
para seus templos adorar suas mercadorias e, tal como em qualquer
religião, sacrificam-se, juram fidelidade às empresas a fim de
receberem às bênçãos do mercado. O cientista não está na linha de
montagem da fábrica, da indústria, mas o totem, em certa medida,
depende dele. Indiretamente, ele é vinculado a essa lógica. Isso pode ser
muitíssimo bem visualizado em Blade Runner, de Ridley Scott (1982).
Eldon Tyrell é um cientista que criou um lote de androides replicantes,
os Nexus6. Estes têm memória, conseguem expressar sentimentos, têm
força e agilidade superiores à do ser humano, mas só têm quatro anos
de vida. Um grupo de quatro Nexus6 consegue fugir de um planeta
distante e retorna à Terra para encontrar Tyerell, seu criador, na
esperança de que ele aumente o tempo de vida deles. O líder do grupo,
Roy Batty (Rutger Hauer), ao encontrar-se com Tyrell, protagoniza um

EM CASA lendo a p. 26
Isolad@s

dos mais instigantes diálogos da história do cinema (assistir é melhor


do que narrar o que acontece).

Também se pode relacionar essa imagem com o Dr.


Frankenstein, o médico que dá vida a um morto, no enredo do romance
Frankenstein ou o Prometeu moderno, publicado em 1818, de autoria da
escritora inglesa Mary Shelley. Médicas e médicos, em geral, lidam com
a vida e com a morte todos os dias. Químicas e químicos, em geral,
alteram, misturam, produzem novas substâncias e lidam com a vida e
com a morte, todos os dias. Há substâncias químicas que são
manipuladas e tornam-se nocivas ao ecossistema. As biólogas e os
biológos ajudam a melhorar plantas, replicam seres extintos, mas
também conseguem produzir formas de vida que ajudam a deletar
outras vidas. As físicas e os físicos são capazes de produzir
conhecimento que, revertido em tecnologia, nos ajudam em tarefas e
atividades as mais diversas em nosso mundo cotidiano: telefone celular,
aparelho micro-ondas, televisão, computadores etc. Mas, também
conseguem produzir o conhecimento para a fabricação de bombas de
alto poder de destruição. Em última instância, eram apenas os bruxos,
os magos, os feiticeiros que detinham o poder de dar ordens e
transformar a natureza, pois tinham “conexão”, “linha direta” com deus
ou com os deuses. No Renascimento, o imaginário já havia sido
formatado a partir desses arquétipos. O cientista, uma espécie de servo
do capital, é transformado em técnico. E o que mais se propaga, no
discurso de senso comum, é que a ciência é um conhecimento neutro,

EM CASA lendo a p. 27
Isolad@s

imparcial. O que, de fato, não procede. De qualquer forma, isso acaba


por fortalecer uma perspectiva bem recorrente, de acordo com a qual a
formação do cientista não necessita dialogar com o campo das
humanidades, pois o discurso hegemônico tende a considerar o
desenvolvimento da ciência a partir de uma história concebida como
uma sucessão linear, mecânica e limitada à providência natural da
razão que, em última análise, determinaria e controlaria os fenômenos
naturais e os eventos sociais.

A não ser por essas construções imagéticas, a ciência está


longe de ser uma mimese da magia. Rossi (2001) observa o quão
fundamental foi o trabalho experimental mediado por instrumentos que
possibilitaram a resposta para muitas hipóteses inconclusas,
formuladas na Antiguidade no início do Renascimento. Por mais que na
Antiguidade Greco-Romana houvesse instrumentos de investigação, a
ideia de experiência não fazia parte do ambiente das Academias, dos
Liceus, dos espaços destinados ao debate, à apropriação do saber e
divulgação do conhecimento.

Libertar-se da superstição não basta para o


crescimento da ciência. Deve-se também ter a
ideia de investigar a Natureza, fazer
experimentos. Houve alguns exemplos brilhantes
– a medição do diâmetro da Terra feita por
Erastóstenes, ou o experimento da clepsidra de
Empédocles, que demonstrou a natureza material
do ar. Mas em uma sociedade em que o trabalho
manual é humilhado e tido como apropriado
apenas para o escravo, como acontecia no mundo

EM CASA lendo a p. 28
Isolad@s

clássico greco-romano, o método experimental


não prospera. A ciência requer que nos
libertemos tanto da superstição crassa como da
injustiça crassa. Muitas vezes, a superstição e a
injustiça são impostas pelas mesmas autoridades
eclesiásticas e seculares que operam em comum
acordo. Não constitui surpresa que as revoluções
políticas, o ceticismo em relação à religião e o
nascimento da ciência andem juntos. Libertar-se
da superstição é uma condição necessária, mas
não suficiente, para a ciência (SAGAN, 1996, p.
303).

O MUNDO ASSOMBRADO PELOS DEMÔNIOS


m O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como
E uma vela no escuro (1996), Carl Sagan (1934-1996), talvez o
cientista que mais tenha divulgado a ciência no século XX, dá
continuidade ao seu trabalho de incansável humanista preocupado com
a cultura universal. Por mais que se discorde de algumas de suas teses,
principalmente quando se trata de história e filosofia da ciência, ele é
um cientista de vanguarda e estamos de acordo com parte considerável
do seu pensamento. Físico de formação multidisciplinar, Sagan estudou
em uma das mais qualificadas e conceituadas universidades
estadunidenses. Como ele mesmo atesta, a escola superior foi a
realização de seus sonhos. Na Universidade de Chicago ele teve a sorte
de participar de um programa de educação geral planejado por Robert
M. Hutchins. Nesse programa, Sagan (1997) relata que a ciência era
apresentada como parte integrante da magnífica tapeçaria do

EM CASA lendo a p. 29
Isolad@s

conhecimento humano. Destaca que naquela época era impensável que


alguém desejasse ser físico sem conhecer Platão, Aristóteles, Bach,
Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud – entre muitos outros. Em uma
aula de introdução à ciência, escreve Sagan (1996, p. 15): “[...] a visão de
Ptolomeu de que o Sol gira ao redor da Terra era apresentada de forma
tão convincente que alguns estudantes se flagravam reavaliando seu
compromisso com a teoria de Copérnico”. Sagan também observa que
os professores desta universidade, quando lá estudou, eram avaliados
pela capacidade de formar e inspirar as novas gerações.

Qual seria a razão de tanta ojeriza com relação à ciência? Por


que, nas últimas décadas, tem havido tanta má vontade, não apenas por
parte de grupos e movimentos negacionistas, mas também de
pesquisadores e pesquisadoras, de professores e professoras, que
orientados por uma insana fúria academicídia, acaba por fragilizar
ações estratégicas no setor das políticas públicas de Estado, para o
campo da educação, ciência e cultura? Em princípio, as teses contrárias
à ciência, ao conhecimento científico e aos cientistas, que circulam no
ambiente acadêmico, foram e continuam sendo produzidas pela
intelligentsia que defende os interesses da agenda pós-moderna (W00D,
1999).

Por que razão, parte considerável dos cursos de formação de


professores tem nivelado, para aquém da média, o processo formativo
dos alunos? Como explicar que parte da intelligentsia, do campo

EM CASA lendo a p. 30
Isolad@s

educacional, tem feito uma defesa dogmática em favor da filosofia


miúda, do saber tácito, da vida ordinária limitada ao cotidiano,
elementos que, a rigor, além de serem enaltecidos como formas
elevadas e qualificadas do tornar-se professor, também devem (de
acordo com o discurso hegemônico) fazer parte constante da sua
formação básica e continuada? Ora, para que, então, escola? A filosofia
miúda, o conhecimento tácito, o senso comum e a vida cotidiana existem
independentes da escola. Será que precisamos da escola para
reproduzir todo um universo que já se tem acesso à sua revelia? Será
que quando se valoriza e se limita o processo formativo a escutar as
várias vozes, saberes e desejos que os sujeitos levam para o âmbito da
escola, do seu processo formativo, tem-se uma conduta efetivamente
democrática, ou isso não passa de um álibi perfeito para um crime de
lesa humanidade?

Quem afirma que a ciência, que o conhecimento científico é


prepotente, totalitário porque se coloca como superior, infalível etc.,
talvez não tenha compreendido o sentido da atividade científica. O
conhecimento científico também pode se tornar senso comum quando
dogmatizado pela semiformação (administrada pela indústria da
cultura) e pelo cientificismo de plantão. Acontece que, em geral,
prepotente é o senso comum, pois este se cristaliza em preconceitos e
reforça comportamentos sociais espúrios que discrimina a mulher, as
pessoas LGBTQI+, a diferença corporal, religiosa, étnica etc. Por
conseguinte, quem ou aquele que defender a ciência como se ela fosse

EM CASA lendo a p. 31
Isolad@s

um conhecimento perfeito, está longe de ter entendido o que é o


conhecimento científico.

A ciência está longe de ser um instrumento


perfeito de conhecimento. [...] por si mesma ela
não pode defender linhas de ação humana, mas
certamente pode iluminar as possíveis
consequências de linhas alternativas de ação [...]
O modo científico de pensar é ao mesmo tempo
imaginativo e disciplinado. [...] A ciência nos ajuda
a acolher os fatos, mesmo quando eles não se
ajustam às nossas preconcepções. [...] Uma das
razões para o seu sucesso é que a ciência tem um
mecanismo de correção de erros embutido em
seu próprio âmago. [...] Toda vez que um artigo
científico apresenta alguns dados, eles vêm
acompanhados por uma margem de erro – um
lembrete silencioso, mas insistente, de que
nenhum conhecimento é completo ou perfeito. É
uma calibração de nosso grau de confiança
naquilo que pensamos conhecer. [...] Exceto na
matemática pura (e, na verdade, nem mesmo
nesse caso), não há certezas no conhecimento
(SAGAN, 1996, p. 41).

Na contramão, está o senso comum. Este sim, em grande


medida prepotente e arrogante porque, apesar de aparentemente
defender uma única verdade, um pensamento monolítico, a rigor
fundamenta-se em uma crença polimorfa, multifacetada (heterogênea
/ sincrética), cujo critério de verdade é a própria subjetividade. A
depender da situação e do contexto, seu pensamento é o único possível
e a sua verdade é absoluta. Em outro (contexto) defende múltiplas
verdades, vários pensamentos. Consegue agregar sincretismos de toda
ordem sem que isso seja um problema, mesmo que se lhe apresente as

EM CASA lendo a p. 32
Isolad@s

contradições. Não obstante, é claro que é difícil negar o fato de que, em


linhas gerais, as pessoas anseiam e aspiram alcançar a certeza
(absolutizada). Contudo, elas também [...] podem fingir, como fazem os
partidários de certas religiões, que a atingiram [a certeza] (SAGAN, 1996,
p. 42). O mesmo não acontece com a ciência, pois sua história tem nos
ensinado que o máximo que se pode esperar,

[...] é um aperfeiçoamento sucessivo de nosso


entendimento, um aprendizado por meio de
nossos erros, uma abordagem assintótica do
Universo, mas com a condição de que a certeza
(absoluta) sempre nos escapará. [...] Por isso, um
dos grandes mandamentos da ciência é:
desconfie dos argumentos de autoridade. [...] as
autoridades devem provar suas afirmações como
todo mundo. Essa independência da ciência, sua
relutância ocasional em aceitar o conhecimento
convencional, a torna perigosa para doutrinas
menos autocríticas ou com pretensões a ter
certezas (SAGAN, 1996, p. 42).

A ciência nos propõe a compreender como o mundo é. O desejo


de que o mundo seja de outra forma pode até ser objeto de investigação
da ciência, mas não é o desejo, a ordem subjetiva do cientista que cria o
mundo e a realidade. Tampouco é tarefa simples reestruturar a
subjetividade já pré-formatada. Daí o nível de complexidade da função
da escola e a responsabilidade dos operadores (professores e
professoras) que lidam com o conhecimento elaborado. Não é fácil para
eles mesmos, pois são sujeitos atravessados por visões de mundo,
concepções de ser humano, cosmovisões que em muitos casos

EM CASA lendo a p. 33
Isolad@s

dificultam uma relação mais visceral com a ciência, com a filosofia e o


conhecimento artístico sistematizado que em tese deveria estar
disponível e objeto de apropriação dos sujeitos escolares. O trabalho
educativo é trabalhoso. Mas, pode-se afirmar que

[...] a ciência é muito simples, pois quando se torna


complicada, em geral é porque o mundo é
complicado – ou porque nós é que somos
complicados. Quando nos afastamos assustados
da ciência, porque ela parece difícil demais (ou
porque não fomos bem ensinados), renunciamos à
capacidade de cuidar de nosso futuro (SAGAN,
1996, p. 41).

Pode parecer uma visão romântica, mas trata-se muito mais de


considerar que o conhecimento científico merece (deve) ser conhecido,
acessado, assimilado, incorporado pelas gerações de sujeitos escolares.
Esse é um direito inalienável. A ciência é um patrimônio da humanidade
assim como o é qualquer manifestação cultural, religiosa, artística. Não
se trata de impor, mas criar as condições de possibilidades para que
todos e todas, indistintamente, possam (caso desejem) ser um cientista,
um filósofo, um artista. Na maioria das vezes, a escola é o único lócus
capaz de permitir o acesso ao conhecimento elaborado (as ciências, a
filosofia, as artes, a tecnologia). Isso se agrava em contextos de extrema
exclusão social, nos quais as crianças, os jovens e adultos só terão
oportunidade de acessarem essa faceta do patrimônio cultural, os
elementos da vida não cotidiana, no ambiente escolar.

EM CASA lendo a p. 34
Isolad@s

É por isso que Sagan (1996, p. 41-42) considera que quando o


indivíduo é privado do conhecimento científico (e eu ampliaria, também
da filosofia e das artes), ele fica alienado dos direitos civis e sua
autoestima se deteriora. Contudo, quando uma criança, um jovem
adolescente consegue ultrapassar essa primeira barreira, quando ele
consegue acessar e assimilar as descobertas e os métodos da ciência,
tudo tende a parecer muito mais repleto de sentido. Há uma espécie de
desencantamento encantado do mundo. Em outras palavras, no mundo
encantado por forças estranhas, obscuras, o indivíduo projeta sua
coragem, mas também seus temores, em seres sobrenaturais. Aquilo
que não se conhece, é temido. O mundo encantado é o mundo do mistério
que, em tese, é conhecido apenas pela revelação subjetiva de cada um.
Com o desencantamento do mundo o mistério cede lugar para o enigma
e o desejo de conhecer e divulgar, a todos, o conhecimento. Quando se
compreende, ou mesmo se conhece o caminho para se chegar e
empregar determinado conhecimento, em especial o científico, se é
tomado por um sentimento de profunda satisfação. Daí a metáfora:
desencantamento encantado do mundo. É uma satisfação que toma os
sentidos de quem consegue romper com os grilhões que aprisionam a
subjetividade a poderes alienígenas. Isso vale para qualquer um, em
particular para as crianças, ávidas, desejosas de conhecimento e que
carregam a centelha de uma intuição de que o mundo está repleto de
maravilhas a serem conhecidas. Mas, grande parcela das crianças
frequentemente é convencida, principalmente quando chegam à

EM CASA lendo a p. 35
Isolad@s

adolescência, de que a ciência não é para elas. Isso acontece em


particular com os filhos dos seguimentos mais pauperizados da classe
trabalhadora.

Concordo com Sagan (1996), mas ouso acrescentar mais um


elemento no seu argumento. A meu ver, o conhecimento nos acomete de
um sentimento de reverência, respeito, admiração e encantamento não
apenas porque nos liga às gerações que deram parte de suas vidas, se
dedicaram diretamente para produzir, criar a ciência, a filosofia e as
artes. Isso significa também consideração àquelas pessoas que
indiretamente estiveram e sempre estão presentes no labor científico,
filosófico, artístico e tecnológico. Sem contar que a ciência também nos
leva a um sentimento de reverência e admiração do quão sublime e bela
é a natureza e toda a sua biodiversidade. Isso é facilmente observável
com os alunos do curso de Biologia. O amor que a maioria deles tem
pelos animais, pelas plantas, pela natureza de forma geral. Mas, isso
também é compartilhado pelos alunos dos cursos de física, química,
oceanografia, veterinária, geografia. Não é exagero afirmar, assim como
o faz Sagan (1996), que quando se compreende algo se é acometido de
uma espécie de celebração de união, da incorporação, mesmo que de
forma um tanto modesta, com a exuberância, a magnificência do
Cosmos. Eis a ideia de encantamento.

Com efeito, há outro sentimento, muito divulgado e celebrado


em ambientes frequentados por pessoas espiritualistas, místicas em

EM CASA lendo a p. 36
Isolad@s

geral, que diz respeito (o sentimento) a uma espécie de êxtase com


relação ao contato com a Natureza. Não obstante, isso não é um atributo
restrito ao universo dos místicos e espiritualistas em geral.

O mesmo acontece com a palavra espírito: do latim, respirar. A


conotação, em geral, vincula-se à religião. Contudo, não há, na palavra
espiritual, por exemplo, qualquer alusão imperiosa de que se trata de
algo que não seja a matéria, pois o que se respira é ar: e ar é matéria
(SAGAN, 1996). O fato de ter sido apropriada pela linguagem religiosa não
significa que diga respeito a apenas fenômenos sobrenaturais. Pois a
ciência não só é comparável à espiritualidade, como também é uma
profunda fonte de espiritualidade, pois no momento em que
reconhecemos nosso lugar na imensidão do Cosmos e no transcorrer
das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza
da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é
certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções
diante da grande arte, música, literatura. [...] A noção de que a ciência e
a espiritualidade são [...] mutuamente exclusivas, presta um desserviço
a ambas (SAGAN, 1996, p. 41-42).

Mas, é talvez importante não confundir espiritualidade com


sobrenaturalidade. Em princípio, cientistas e filósofos não veem
problema com a crença, a opinião que emana do mundo cotidiano, pois
é do senso comum, da filosofia pequena que se parte para o não
cotidiano, para a atitude filosófica, para o pensamento complexo. Mas o

EM CASA lendo a p. 37
Isolad@s

senso comum é raivoso, é resistente, tem aversão à ciência e à filosofia1.


Mais uma vez, é preciso saber distinguir. Para a filosofia tudo é passível
de averiguação, de crítica, inclusive ela própria. Se a razão é a base para
se produzir conhecimento (científico, filosófico), ela também é objeto de
investigação (da filosofia). Esta tem por hábito colocar-se no banco dos
réus, pois uma de suas principais atividades, que se poderia chamar de
prática, é o pensar o pensamento.

O conhecimento elaborado (filosofia e ciência, por exemplo)


parte do senso comum, parte da sabedoria ancestral, do legado deixado
pelas gerações que só detinham essa forma de se relacionar com o
mundo. Ambas as formas de conhecimento se pautam pela negação. Por

1
Em certa medida isso é compreensível, em particular em uma sociedade como a
brasileira. Durante séculos a escola, os estudos e o conhecimento erudito estiveram nas
mãos dos religiosos, das elites econômicas e políticas, de pequenos grupos, da classe
social dirigente. Qualquer pessoa que estudasse para além do nível fundamental e médio
já era considerada especial, com direitos especiais. Nas primeiras décadas do século
XXI, com o processo de massificação (que não significa democratização socialmente
qualificada) da educação, tem-se início a um processo de ruptura com as estruturas
congeladas do tecido social que impediam de as pessoas terem acesso à educação
formal. Sociedades com baixos índices de analfabetismo e com alto nível de inclusão da
população jovem na universidade tendem a diminuir formas conservadoras e
reacionárias de condutas no âmbito público. A famosa frase sabe com quem você está
falando, que é muitíssimo bem conhecida no Brasil e em vários países da América Latina,
é um bom exemplo de como, em uma sociedade com estruturas arcaicas, com alto nível
de exclusão social, lida com o patrimônio cultural (público) da humanidade. Sabe com
quem você está falando indica a soberba do indivíduo semiformado, pois o
esclarecimento (a ciência, o conhecimento erudito) lhe serve para ofuscar sua
capacidade de discernimento, de autorreflexão crítica e dessa forma se sentir um ser
completo e superior aos demais. Quando essa conduta é cristalizada, quando se
sensocomuniza as práticas abusivas, estas tornam-se hábitos, tabus, medidas certas,
normas, padrão, modelos que quase nunca são questionados, incomodados e
reproduzidos por todos, indistintamente.

EM CASA lendo a p. 38
Isolad@s

exemplo: para que a canoa exista é fundamental que ela (quem a produz)
negue a forma árvore. Contudo, a árvore continuará contida na forma
canoa. O reconhecimento de Fábia implica na negação de Júnia, de
Maria, ou seja, a rigor essa negação implica na afirmação de que Fábia
é não Júnia, não Maria. A negação, nesse caso, significa o
reconhecimento do outro como o não eu que forma aquilo que, em tese
se é ou se pensa que é. Essa é uma negação por assimilação,
incorporação.

O conhecimento corriqueiro, a crença popular/o senso comum


tendem a negar tudo que não faz parte do seu entorno, e dessa forma
funda preconceitos, prenoções e hábitos discriminatórios diversos. Isso
pode acontecer ou por falta de oportunidade, por uma espécie de
ressentimento, ou mesmo por cristalização dos conceitos pré-
estabelecidos que dificultam dar um salto para outro nível de
compreensão e relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo. A
negação, nesse caso, é por eliminação. Elimina-se, apaga-se o outro, o
não eu. A tendência dessa manifestação, típica do senso comum, da
crença fundamentada em hábitos e opiniões não questionadas, é negar
a ciência, a cultura erudita, as artes e a filosofia. Negar simplesmente
por negar. Alguns professores também agem assim e tendem a
reproduzir e estimular esse comportamento de aversão ao
conhecimento sistematizado não cotidiano.

EM CASA lendo a p. 39
Isolad@s

É possível que se vá ao feiticeiro-curandeiro (como o fez o


cientista capixaba Augusto Ruschi, quando estava com a saúde
debilitada, por ter sido envenenado por uma espécie de sapo). Para o
pajé, Ruschi fora enfeitiçado. Esta teria sido a razão da doença que
acometeu o fígado do cientista. Mas, Augusto Ruschi não abandonou o
tratamento alopático, disponível pela “medicina” não indígena. Para
salvar uma criança de contaminação da poliomielite, pode-se rezar ou
vaciná-la. Em países como a Índia, Brasil, Quênia, Moçambique, Nigéria,
países onde milhares de pessoas continuam sem ter acesso à educação
formal, onde a saúde pública (quando existe) não atende ao conjunto da
sociedade e a miséria social (a fome e o desespero) assola um conjunto
considerável da população, o tratamento para problemas de saúde
muitas vezes recai sobre os curandeiros locais, por pastores de igrejas
evangélicas pentecostais e neopentecostais. Muitos destes, em uma
sociedade com menos injustiça social, poderiam ser grandes
enfermeiros, médicos, paramédicos, farmacêuticos, químicos, botânicos,
biólogos. Eles detêm um conhecimento ancestral das ervas, das raízes.
Contudo, falta-lhes a oportunidade de acessarem o conhecimento do
princípio ativo, dos elementos químicos presentes nesse conjunto de
plantas e, dessa forma, libertarem-se da tutela dos executivos das
grandes empresas farmacêuticas travestidos de missionários religiosos.

Em um diálogo com uma liderança indígena da Aldeia Guarani,


do município de Aracruz (ES), o cacique comentou que havia estado, por
seis meses, em visita a comunidades indígenas dos Estados Unidos e

EM CASA lendo a p. 40
Isolad@s

Canadá e que lá havia tido a oportunidade de fazer um curso de medicina


indígena, com foco em ervas medicinais. O curso fora ministrado por
lideranças indígenas que têm combatido a forma como os não índios, em
especial representantes de empresas farmacêuticas multinacionais, se
apropriam do conhecimento farmacêutico-medicinal que é patrimônio
milenar daquelas comunidades autóctones. Muitas dessas lideranças
são formadas em química, em farmácia e passam a dominar o
conhecimento científico que antes era utilizado contra eles. A partir
desse conhecimento se veem na possibilidade de se libertarem dos
grilhões impostos por parte da sociedade não indígena, mormente os
grupos empresariais que privatizam parcela considerável do
conhecimento científico para benefício de um conjunto limitado de
indivíduos: os cidadãos clientes da sociedade mundializada pelo capital.

Contudo, ainda assim, para ser um curandeiro é preciso ter


recebido uma revelação (de deus ou dos espíritos) ou ter sido escolhido
por outrem. Esse não é o caso da ciência. Não há questões proibidas na
ciência, assuntos delicados demais para não serem examinados,
verdades sagradas (SAGAN, 1996). A abertura para novas ideias,
combinada a um rigoroso exame cético distingue a ciência do saber
esotérico. Por que em ciência não basta ter crença, quer seja na razão,
no próprio conhecimento, na humanidade? Porque em geral não importa
o quanto alguém é inteligente, amado, respeitado ou venerado pela
comunidade. Há uma exigência, no âmbito da comunidade científica. O
senso comum, guiado pela crença, não necessita provar suas teses em

EM CASA lendo a p. 41
Isolad@s

face de uma crítica determinada e especializada. Como visto, com Rossi


(2001), e agora com Sagan (1996), a diversidade e o debate são
valorizados pelo ambiente responsável pela produção/elaboração do
conhecimento científico/da ciência. A academia, e a comunidade
científica, só existem porque estimulam, prezam e permitem o debate, a
discussão para além da superficialidade de ideias (SAGAN, 1996, p. 45).

É compreensível, o fato de as pessoas sentirem a necessidade


de experimentarem um sistema de crença que lhes deem algum
conforto para o desamparo, para o sentimento de falta e a angústia
existencial que acomete a todo bicho humano. As carências emocionais
poderosas que a ciência frequentemente não satisfaz nutrem as
fantasias sobre poderes sobrenaturais atribuídos a líderes religiosos.
Muitos desses afirmam oferecer a satisfação para a fome espiritual, a
cura de doenças, promessas para além-morte. No caso da atividade
científica, além do rigor exigido com o método que conduz as
experiências, bem como a apropriação da linguagem matemática, a
cientista e o cientista não podem prescindir de uma elevada dose de
fantasia e criatividade para elaborar suas hipóteses, criar e testar suas
teorias. Contudo, para o pensamento de senso comum, esse processo ou
é incompreensível ou de difícil assimilação e, por isso, seria insuficiente,
pois o mais importante seria a revelação, a intuição, a fé que cada
indivíduo singular dispõe. Mas, não é a partir desses "sentimentos" que
se fundamentam o pensamento e a prática científicas.

EM CASA lendo a p. 42
Isolad@s

No Capítulo 10, O dragão na minha garagem, Sagan (1996, p. 171-


189) propõe a seguinte “cena”:

- Um dragão que cospe fogo pelas ventas vive na minha garagem.


Suponhamos (estou seguindo uma abordagem de terapia de grupo
proposta pelo psicólogo Richard Franklin) que lhe faça seriamente essa
afirmação. Com certeza você iria querer verificá-la, ver por si mesmo.
São inumeráveis as histórias de dragões no decorrer dos séculos, mas
não há evidências reais de sua existência. Que oportunidade!

- Mostre-me – você diz. Eu o levo até a minha garagem. Você olha para
dentro e vê uma escada de mão, latas de tinta vazias, um velho triciclo,
mas nada de dragão.

- Onde está o dragão? – você pergunta.

- Oh, está ali – respondo, acenando vagamente. – Esqueci de dizer que


é um dragão invisível.

Você propõe espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis


as pegadas do dragão.

- Boa ideia – digo eu –, mas esse dragão flutua no ar.

Então você quer usar um sensor infravermelho para detectar o fogo


invisível.

- Boa ideia, mas o fogo invisível é também desprovido de calor.

Você quer borrifar o dragão com tinta para torná-lo visível.


EM CASA lendo a p. 43
Isolad@s

- Boa ideia, só que é um dragão incorpóreo e a tinta não vai aderir.

E assim por diante. Eu me oponho a todo teste físico que você propõe
com uma explicação especial do porquê não vai funcionar.

Ora, qual é a diferença entre um dragão invisível,


incorpóreo, flutuante, que cospe fogo atérmico, e
um dragão inexistente? Se não há como refutar a
minha afirmação, se nenhum experimento
concebível vale contra ela, o que significa dizer
que o meu dragão existe? A sua incapacidade de
invalidar a minha hipótese é absolutamente a
mesma coisa que provar a veracidade dela.
Alegações que não podem ser testadas,
afirmações imunes a refutações não possuem
caráter verídico, seja qual for o valor que possam
ter por nos inspirar ou estimular nosso
sentimento de admiração. O que peço a você é
tão-somente que, em face da ausência de
evidências (de que o dragão existe e está na
minha garagem), que acredite na minha palavra.

A única coisa que você realmente descobriu com


a minha insistência de que há um dragão na
minha garagem é que algo estranho se passa na
minha mente. Você se perguntaria, já que nenhum
teste físico se aplica, o que me fez acreditar nisso.
A possibilidade de que foi sonho ou alucinação
passaria certamente pela sua cabeça. Mas, nesse
caso, por que eu levo a história tão à sério? Talvez
eu precise de ajuda. Pelo menos, talvez eu tenha
subestimado seriamente a falibilidade humana.

Apesar de nenhum dos testes ter funcionado,


imagine que você queira ser escrupulosamente
liberal. Você não rejeita de imediato a noção de
que há um dragão que cospe fogo na minha
garagem. Apenas deixa a ideia em banho-maria.
As evidências presentes são fortemente

EM CASA lendo a p. 44
Isolad@s

contrárias a ela, mas, se surgirem novos dados,


você está pronto a examiná-los para ver se são
convincentes. Decerto não é correto de minha
parte ficar ofendido por não acreditarem em mim;
ou criticá-lo por ser chato e sem imaginação – só
porque você apresentou o veredicto escocês de
não comprovado.

Imagine que as coisas tivessem acontecido de


outra maneira. O dragão é invisível, certo, mas
aparecem pegadas na farinha enquanto você
observa. O seu detector infravermelho lê dados
fora da escala. A tinta borrifada revela um
espinhaço denteado oscilando à sua frente. Por
mais cético que você pudesse ser a respeito da
existência dos dragões – ainda mais dragões
invisíveis –, teria de reconhecer que existe
alguma coisa no ar, e que de forma preliminar ela
é compatível com um dragão invisível que cospe
fogo pelas ventas.

Agora outro roteiro: vamos supor que não seja


apenas eu. Vamos supor que vários conhecidos
seus, inclusive pessoas que você tem certeza de
que não se conhecem, lhe dizem que há dragões
nas suas garagens – mas, em todos os casos a
evidência é enlouquecedouramente impalpável.
Todos nós admitimos nossa perturbação quando
ficamos tomados por uma convicção tão estranha
e tão mal sustentada pela evidência física.
Nenhum de nós é lunático. Especulamos sobre o
que isso significaria, caso dragões invisíveis
estivessem realmente se escondendo nas
garagens em todo o mundo, e nós, humanos, só
agora estivéssemos percebendo. Eu gostaria que
não fosse verdade, acredite. Mas talvez todos
aqueles antigos mitos europeus e chineses sobre
dragões não fossem mitos afinal...

Motivo de satisfação, algumas pegadas


compatíveis com o tamanho de um dragão são

EM CASA lendo a p. 45
Isolad@s

agora noticiadas. Mas elas nunca surgem quando


um cético observa. Outra explicação se
apresenta: sob exame cuidadoso, parece claro
que podem ter sido simuladas. Outro crente nos
dragões aparece com um dedo queimado e atribui
a queimadura a uma rara manifestação física do
sopro ardente do animal. Porém, mais uma vez,
existem outras possibilidades. Sabemos que há
várias maneiras de queimar os dedos além do
sopro de dragões invisíveis. Essa evidência – por
mais importante que seja para os defensores da
existência do dragão – está longe de ser
convincente. De novo, a única abordagem sensata
é rejeitar, em princípio, a hipótese do dragão,
manter-se receptivo a futuros dados físicos e
perguntar-se qual poderia ser a razão para
tantas pessoas aparentemente normais e
sensatas partilharem a mesma ilusão estranha.

A mágica requer cooperação tácita entre o


público e o mágico – um abandono do ceticismo,
ou o que é às vezes descrito como a suspensão
voluntária da descrença. Segue-se
imediatamente que, para compreender a mágica,
para expor o truque, devemos parar de colaborar
(SAGAN, 1996, p. 171-179).

AS ESTRELAS DESCEM À TERRA


o lado “oposto” ao de Sagan, ainda que com tênues
N aproximações (vínculo de ambos com as humanidades, com
as artes e a cultura em geral; defesa por um pensamento
autônomo; formação multidisciplinar) está Theodor Adorno (1903-1969).
Um dos mais eminentes filósofos do século XX, Adorno fora responsável

EM CASA lendo a p. 46
Isolad@s

por uma experiência intelectual ímpar travada pela confrontação


incessante da filosofia com o campo da empiria, em especial a teoria
social, a crítica literária, a estética musical, a psicologia e a psicanálise.
Antes mesmo do modismo com relação ao rompimento das fronteiras
intelectuais, ele já se exercitava nesse campo. Assim, em consideração
a essa lógica, Adorno propôs um conceito renovado de reflexão
filosófica cujo objetivo era livrar a filosofia da condição de discurso
restrito à tematização insular de seus próprios textos (ALMEIDA et al.,
2008). Para Adorno,

[...] plenitude material e concreção dos problemas


é algo que a filosofia só pode alcançar a partir do
estado contemporâneo das ciências particulares
para tomar delas os resultados como algo pronto
a meditar sobre eles a uma distância mais segura.
Os problemas filosóficos encontram-se, em certo
sentido, indissoluvelmente presentes nas
questões mais determinadas das ciências
particulares (ADORNO citado por DUARTE, 2008, p.
80).

Filiado e um dos mais consagrados integrantes do Instituto para


Pesquisa Social (Frankfurt, Alemanha), Adorno e seus pares foram
críticos do cientificismo promovido pela filosofia positivista que fora
renovada pelo neopositivismo do Círculo de Viena. A própria lógica da
cultura industrial, que descobriu na indústria cultural uma forma de
reproduzir e fortalecer os processos de alienação coletiva iniciados no
mundo do trabalho, em muito tem contribuído (aquela lógica) para que
o público, de forma geral, em especial os consumidores dos produtos

EM CASA lendo a p. 47
Isolad@s

lançados sob o rótulo de culturais, permaneça no limiar da


semiformação. Assim como em pesquisas anteriores, tais como Estudo
sobre autoridade e família (Theodor Adorno; Erich Fromm; Herbert
Marcuse, década de 1930) e A personalidade autoritária (ADORNO, 2019),
publicado em 1950, em As estrelas descem à terra (ADORNO, 2008),
Adorno nos brinda com o que há de mais potente na experiência de
pesquisa realizada pelo Instituto para Pesquisa Social. Trata-se de uma
análise que ele realizou da coluna astrológica, publicada no Los Angeles
Times, assinada pelo astrólogo Caroll Righter, que à época era consultor
de vários atores e atrizes (“estrelas”) de Hollywood – daí o sugestivo
título do livro – As estrelas descem à terra. O período investigado foi
novembro de 1952 a fevereiro de 1953.

Na apresentação à edição brasileira, Rodrigo Duarte (2008, p.


19) considera que “[...] um dos elementos que mais chamam a atenção de
Adorno, na análise da coluna astrológica de Caroll Righter, é a
intencional exploração da fraqueza de ego de seus leitores. A ela
corresponde uma situação de fragilidade social e econômica real, que
se tornou a segunda natureza das camadas mais amplas das sociedades
capitalistas”. Na leitura de Adorno, Righter tinha ciência, conhecimento
da debilidade psicológica dos seus leitores, contudo agia de tal forma a
mantê-los prisioneiros, sob sua tutela espiritual. Infantilizava os
leitores, assim como o faz a indústria cultural, de tal forma que esperem
pelo aconselhamento do guru, do líder que guia as suas vidas.

EM CASA lendo a p. 48
Isolad@s

O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900), ao seu jeito, já


reclamava, na segunda metade do século XIX, dessa característica da
cultura ocidental, em particular na Alemanha, que promovia uma
espécie de rebaixamento da formação erudita, que era esvaziada pelos
novos formadores de opinião: os jornalistas e homens de imprensa em
geral. Tivesse vivido até 1930, Nietzsche teria se assustado com o nível
ainda mais elevado de danificação da cultura.

Uma das formas mais eficazes que os ideólogos da burguesia


encontram para esvaziar a potência da ciência é divulgá-la nos folhetins
semanais, nas revistas populares, no cinema, na televisão. No lugar de
torná-la (a ciência) acessível no ambiente escolar, os meios de
comunicação de massa fazem a sua parte e cumprem a função de
formar sem formação: semiformar2. O público passa a ser um mero
reprodutor da opinião pública engendrada nos escritórios das agências
jornalísticas, nas agências publicitárias, nos estúdios de cinema e
televisão. Grosso modo, com raras exceções, os gerentes operadores da
indústria cultural de tudo fazem para colonizar a capacidade intelectual
e sensível do público, para torná-lo um simples consumidor. Na lógica
dos agressivos publicitários da indústria cultural (os engenheiros de
produção), para se tornar um verdadeiro cidadão (cliente) é fundamental

2
Sobre o conceito de semiformação conferir em: ADORNO, Theodor W. Teoria da
semiformação. In: PUCCI, B.; LASTÓRIA, L. A. C. N.; ZUIN, A. A. S. (Orgs.). Teoria crítica e
inconformismo: novas perspectivas de pesquisa. Campinas: Autores Associados, 2010, p.
7-40.

EM CASA lendo a p. 49
Isolad@s

ter a fantasia, a criatividade e a imaginação ocupadas por esquemas


prévios formulados nas linhas de montagem das instituições
responsáveis pela manutenção e reprodução da alienação iniciada na
lida direta do mundo do trabalho.

A indústria cultural, a rigor, é formada por um por um complexo


de empresas que formam um conglomerado vinculado ao denominado
setor terciário da economia, mas sustentado pelo setor primário. Ela
produz bens simbólicos, denominados produtos culturais, e agrega um
amplo rol de atividades, dentre elas os programas de rádio, televisão,
cinema (mercado audiovisual); os jornais impressos, revistas, livros
(mercado editorial); a música (indústria fonográfica); jogos eletrônicos
etc.

Parte da indústria cultural (mercado editorial, mercado


audiovisual), divulga, de forma fragmentada e quase sempre bastante
estereotipada, informações sobre “descobertas” científicas, sobre
tecnologia etc. Não é preciso muito para levar o público a se deixar iludir
ao acessarem os produtos veiculados pelos meios de comunicação de
massa. A rigor, há uma tendência a se sentir mais bem formado e com
nível cultural supostamente elevado. No entanto, com raras exceções, o
que se consome é um subproduto, um fragmento manométrico que
sequer consegue emular aspectos da atividade filosófica, científica. Isso
porque, em última análise, o imperativo categórico da indústria cultural
é: deves se divertir. A espetacularização/banalização do conhecimento
institui a lógica semiformativa. Em linhas gerais, a atividade científica

EM CASA lendo a p. 50
Isolad@s

exige um rigoroso confronto com a realidade; padrões de argumentação


fundamentados em evidências que são questionadas a todo momento.
Talvez por isso seja mais fácil divulgar seus subprodutos por meio de
um jornalismo falastrão, de programas de entretenimento, do cinema
enlatado e até mesmo reproduzir esse modelo alegre e divertido,
mimetizá-lo no âmbito da escola.

Não se pode esperar dos agentes, gerentes, operadores e


empresários da indústria cultural que se dediquem à formação das
gerações, no sentido de formá-las para serem produtoras de
conhecimento científico e não meras consumidoras dos resultados ou
das notícias que se divulgam sobre e da ciência. Eles não têm esse
compromisso. Esta, ao menos em tese, deveria ser uma
responsabilidade da escola. Se as gerações têm acesso apenas ao
subproduto do que é produzido no campo científico e não se apropriam
de forma crítica do conhecimento sobre o método científico, como
exigir-lhes que façam a distinção entre o que é e o que não é ciência
(SAGAN, 1996)?

A ciência sempre foi importante para a burguesia. Muito do que


essa classe é deve-se ao investimento que realizou no campo da
investigação científica3. Houve um momento, antes da Revolução

3
A burguesia tornou-se a classe hegemônica porque soube concretizar o sonho do
esclarecimento contido no mito: dominar a natureza e a si próprio. A astúcia do homem
burguês, já presente em Ulisses, foi capaz de reintroduzir formas antigas de produção
social da existência. Afinal, por que a escravidão ressurgiu mais de mil anos após o seu
fim no mundo antigo? A ciência só foi possível avançar porque dela milhões sempre

EM CASA lendo a p. 51
Isolad@s

Francesa, que ela defendia a bandeira da universalização da educação.


Contudo, após ter conquistado sua hegemonia política abandonou suas
principais teses e rompeu com antigas bandeiras de luta. O
conhecimento científico continua importante para a conquista de seus
interesses, mas ela agora não pode mais sustentar que a ciência é
distinta de outras formas de conhecimento tampouco defender a tese de
tornar todos os cidadãos aptos a serem filósofos, cientistas, artistas
capazes de compreenderem aspectos fundamentais da realidade
natural e social.

A primeira Revolução Industrial (1750) impulsionou o


desenvolvimento da ciência e desde então o capital necessita do
conhecimento científico para transformar e controlar a natureza, sua
principal mercadoria, além dos homens e mulheres que ele (o capital)
põe a seu serviço. O capitalismo não sobrevive, um único segundo
sequer, sem a exploração, expropriação e exclusão daqueles que
produzem a riqueza social e permitem que haja o avanço proporcionado
pelo conhecimento científico. Há um movimento contraditório e
paradoxal no procedimento utilizado por parte de alguns seguimentos

estiveram alienados (excluídos). A escravidão negra permitiu que alguns poucos se


dedicassem à ciência, à cultura letrada, ao conhecimento e ao mundo não cotidiano. A
riqueza que permitiu a Revolução Industrial advém, parte dela, dos saques realizados
nas Américas, da tentativa e quase sucesso total de extermínio das culturas autóctones
para implantar o pensamento único da religião oficial de Portugal e Espanha, de um lado,
e da Inglaterra, França e Alemanha de outro; também em certa medida a Revolução
Industrial só foi possível devido à acumulação primitiva do capital sintetizada na
expulsão dos camponeses das terras públicas que passaram a servir à criação de
ovelhas que sustentavam as primeiras fábricas têxteis.

EM CASA lendo a p. 52
Isolad@s

da intelligentsia orgânica vinculada ao capital. Como enfatizei,


parágrafos acima, de um lado há um grupo que tende a enaltecer o
conhecimento científico de forma quase que místico-religiosa. Esse
seguimento acaba por despolitizar e estetizar a ciência ao defender que
ela é apolítica, neutra. Isso sintetiza, a rigor, o ideal cientificista que
também equipara o conhecimento científico à magia, à feitiçaria etc. E,
o grupo mais perigoso é aquele que se serve da ciência, do
conhecimento científico no cotidiano4, mas confunde cientificismo com
ciência e entoa ladainhas contrailuministas, contra a razão e à ciência
em si mesmas. A rigor, as teses desses grupos se aproximam e formam
uma espécie de quadrilha da fumaça que obscurece a visão sobre o que
efetivamente deve ser criticado com relação à ciência.

Há muita confusão nesse campo minado. Mas, há também


exemplos que potencializam e nos animam a pensar e fazer a ciência de
outra forma. Em Tecnologias sociais (BARRETO; PIAZZALUNGA, 2012, p.

4
Difícil imaginar uma pessoa que hoje consiga viver nesse mundo sem ser afetada pelos
resultados da apropriação privada do conhecimento científico, mesmo que seja a
contragosto. São poucas as comunidades humanas que atualmente produzem seus
próprios alimentos, sua vestimenta, seus utensílios, locais de moradia, por exemplo.
Quem vive em um meio urbano pode desejar não sofrer o impacto dos resultados da
ciência, mas, se tem onde morar, a residência provavelmente tem água encanada,
energia elétrica, fogão, geladeira, televisão, paredes, ferro que sustenta, vigas e colunas
etc. Todo vestuário, os alimentos, o ônibus, o automóvel, a motocicleta ou a bicicleta que
utiliza para se locomover, a água potável que se bebe. Tudo ao nosso redor está repleto
dessa objetivação humana, ou seja, contém o resultado do conhecimento científico. E,
tudo isso é um conhecimento que se desenvolveu na Era Moderna, mas que na Era
Contemporânea (Pós Revolução Francesa) recebeu novas contribuições. Contudo, a
rigor, os princípios básicos ainda continuam sendo aqueles produzidos pela Física
Clássica, por exemplo.

EM CASA lendo a p. 53
Isolad@s

4-5), os autores, ele engenheiro, ela arquiteta, contribuem para que se


possa continuar a defender o quão importante deve ser o papel do/a
educador/a com relação ao conhecimento, da sua responsabilidade, da
sua capacidade de discernimento e do bom senso que deve ter no âmbito
da crítica acadêmica.

Prestam um desserviço à humanidade e ao nosso ecossistema


como um todo, aqueles que, de forma irresponsável condenam, atacam,
detratam o conhecimento científico e o conhecimento não cotidiano (a
filosofia, as artes, a tecnologia) na sua totalidade. Limitam a existência
e a possibilidade de ampliação da vida cotidiana da grande maioria das
pessoas que, excluídas das possibilidades de acesso ao conhecimento
não tácito, tendem a conceber a ciência e a tecnologia da mesma forma
que uma criança dá vida aos objetos inanimados com os quais costuma
brincar.

Mais do que tecer loas à ciência, ao conhecimento científico ou


à tecnologia, o objetivo é tê-los como elementos constitutivos do
patrimônio da cultura universal e por isso mesmo devem ser divulgados,
socializados para que possam ser acessados e assimilados,
incorporados pelo conjunto dos sujeitos escolares. Nesse sentido, a
pergunta de Sagan (1996, p. 300) faz sentido: “Por que tantas pessoas
acham difícil aprender e ensinar ciência?”. Ele mesmo diz que tentou
sugerir algumas razões: a ciência busca certa precisão, os aspectos
inquietantes e contrários à intuição (pura), sua independência (que a
meu ver é relativa) com relação à autoridade (o proprietário da empresa

EM CASA lendo a p. 54
Isolad@s

que patrocina a pesquisa?). Mas, ele próprio concorda que essas razões
ficam muito atrás de outra, apresentada por Alan Cromer, professor de
física da Universidade de Boston. Cromer surpreendeu-se com a
quantidade de alunos que, em seu curso de física, eram incapazes de
compreender os conceitos mais elementares da área. Sua tese, para que
isso aconteça, é que a ciência é difícil porque ela representa um
conhecimento novo. A espécie humana tem em torno de 100 mil anos de
idade e o método científico ainda adotado teve início apenas há alguns
séculos e, mesmo assim, a grande totalidade das pessoas não teve
tampouco terá acesso ao método, ao conhecimento científico nos
próximos cem anos. Isso pode ser comparado à escrita, que tem mais de
cinco mil anos, e ainda hoje existem milhões de analfabetos no mundo
(SAGAN, 1996, p. 300-301).

Sagan recorre a uma série de conquistas realizadas pelos


chineses: pólvora, a bússola magnética, o sismógrafo, observações
sistemáticas do céu; também pelos indianos, cujos matemáticos
inventaram o zero, a chave para a aritmética confortável; os astecas
tinham mais capacidade de predizer onde estavam os planetas e por
períodos mais longos no futuro e desenvolveram um calendário muito
melhor do que o da civilização europeia que a invadiu a destruiu.
Contudo, nenhuma dessas civilizações desenvolveu o método da ciência
cético, investigador e experimental. Apesar de a origem estar na
Antiguidade Grega, só foi possível de acontecer nos séculos XV e XVI, em

EM CASA lendo a p. 55
Isolad@s

um contexto bastante peculiar que foi o Renascimento na Europa. Com


efeito, não custa lembrar, como propõe Cromer:

O desenvolvimento do pensamento objetivo pelos


gregos parece ter exigido certo número de
fatores culturais específicos. O primeiro foi a
assembleia, onde os homens aprenderam pela
primeira vez a persuadir uns aos outros por meio
do debate racional. O segundo foi uma economia
marítima que impedia o isolamento e o
provincianismo. O terceiro foi a existência de um
mundo bem amplo de língua grega em que os
viajantes e os eruditos podiam perambular. O
quarto foi a existência de uma classe mercantil
independente que podia contratar os seus
próprios professores. O quinto foi a Ilíada e a
Odisseia, obras-primas da literatura que foi uma
religião literária que não era dominada por
padres. E o sétimo foi a persistência desses
fatores durante mil anos (CROMER citado por
SAGAN, 1996, p. 301).

Retoma-se, aqui, a tese defendida: por mais que a escola possa


ser considerada um espaço de troca de saberes, de escuta das vozes
excluídas, de interação social, de compartilhar experiências, em última
instância, sua essência está em ser o espaço privilegiado de socialização
do conhecimento elaborado, do saber erudito acumulado ao longo da
história. A escola ainda é o único espaço onde os filhos dos diversos
seguimentos da classe trabalhadora (em particular aqueles que têm
sido mais explorados, expropriados e pauperizados) terão a
oportunidade de ter acesso, de se apropriarem, de assimilarem
conteúdos fundamentais do patrimônio cultural da humanidade, do não
cotidiano: as ciências, as artes, a filosofia, a tecnologia. Com efeito,

EM CASA lendo a p. 56
Isolad@s

parece ser sempre mais interessante que esse conhecimento elaborado


(ciência, arte, filosofia e tecnologia) seja apresentado aos alunos de tal
forma que eles possam, a partir do seu saber cotidiano, do saber local,
das crenças que levam para a escola, enfim, que eles se apropriem de
forma crítica desse conhecimento. Isso significa informá-los que o
conhecimento tem uma história, que para se chegar aonde chegou foi
necessário o esforço de muitas gerações. Significa desencantar a
imagem fantasmagórica que se tem da ciência, das artes e da
tecnologia. Desmistificar a ideia de que para ser cientista ou artista
deve-se ser um gênio, alguém com superdotação intelectual e a
tecnologia seria apenas uma atividade produzida por máquinas que se
auto(re)produzem. Isso é fetiche. Mas pode e deve ser desfetichizado. Na
contramão dessa lógica, a partir de uma teoria crítica pautada em uma
dinâmica materialista e dialética, é possível desvendar os enigmas
relacionados aos fenômenos sociais, do cosmo, da própria relação que
se tem consigo mesmo e com a natureza.

Isso exige critérios fundados no compromisso, na


responsabilidade pautada no bom senso para não confundir, ainda mais,
as crianças, os adolescentes e, em muitos casos, os próprios pares (os
formadores dos formadores) com teses desqualificadas. O objetivo é
elevar e qualificar, por meio de uma perspectiva histórico-dialética, o
potencial questionador e investigativo dos sujeitos educandos por meio
de uma consistente articulação do conhecimento científico com as
humanidades e as artes em geral.

EM CASA lendo a p. 57
Isolad@s

Por isso, aqui se retorna ao tema que em vários momentos


parece ser o pomo da discórdia: a relação entre ciência e religião. O que
se defende é que não foram os renascentistas, os iluministas, os
positivistas, os marxistas, os existencialistas sartreanos, os
nietzschianos, os comunistas, os socialistas etc. que iniciaram o
movimento contra qualquer tipo de autoridade religiosa:

Os antigos jônicos foram os primeiros pensadores


de que temos conhecimento a afirmar
sistematicamente que são as leis e as forças da
Natureza, e não os deuses, os responsáveis pela
ordem e até pela existência do mundo. Lucrécio
resumiu as suas ideias da seguinte maneira: A
natureza livre e desembaraçada de seus
senhores arrogantes é vista agindo
espontaneamente por si mesma, sem a
interferência dos deuses (SAGAN, 1996, p. 301-
302).

Não se trata de eliminar a fé, a crença religiosa de quem quer


que seja. Em uma sociedade democrática parte-se do pressuposto de
que todo indivíduo, que a pessoa humana tem o direito de acreditar em
seres sobrenaturais, fantasmas, fadas, bruxas, duendes, deuses ou em
deus. A pessoa pode professar sua fé, sua crença, ter uma superstição
ou orientar-se por uma religião institucionalizada. Contudo, em uma
sociedade democrática a pessoa humana também tem o direito de
professar sua fé apenas na humanidade5. Nada, no ambiente acadêmico-

5
Ainda que também a ideia de humanidade seja uma espécie de metafísica, pois, a rigor,
o que é, efetivamente isso que denominamos de humanidade? Aonde ela está? É uma
ficção, uma utopia?

EM CASA lendo a p. 58
Isolad@s

científico, impede que um cientista seja religioso, supersticioso ou que


também seja descrente, ou fundamente supostos fenômenos
sobrenaturais a partir do rigor da investigação científica.

O intelectual é irresponsável e comete crime de lesa


humanidade ao defender a tese de que nossas crianças e jovens não
precisam ter acesso ao conhecimento científico porque a ciência é
eurocêntrica, falocêntrica, etnocêntrica. Ou mesmo quando, no interior
do próprio metiê, as cientistas e os cientistas incorporam argumentos
do nonsense oriundos de ambientes exógenos à academia, que em geral
concebem seus pares como se fossem pessoas frias e insensíveis, isso
porque não professam a fé, a crença em um deus ou em seres
sobrenaturais. Sem contar que consideram a razão moderna
responsável pelos males sociais e não respeita outros pontos de vista
etc. Isso é álibi para quem pretende tornar a educação e a escola em
um parque temático. Mas, nada disso é suficiente para se deletar o
desejo de conhecer, pois

[...] a inclinação para a ciência está


profundamente entranhada em nós, em todas as
épocas, lugares e culturas. Tem sido o meio de
nossa sobrevivência. É nosso direito hereditário.
Quando por indiferença, desatenção,
incompetência ou medo do ceticismo,
dissuadimos as crianças de estudar ciência, nós
as privamos de um direito seu, roubando-lhes as
ferramentas necessárias para administrar o seu
futuro (SAGAN, 1996, p. 309).

EM CASA lendo a p. 59
Isolad@s

Assim como a fé, o dogma e a crença no sobrenatural levam


algumas religiões a cometerem absurdos em nome de um ser superior,
sobrenatural, a instituição científica também pode ser acometida desse
mesmo comportamento. A igreja católica e protestante queimou,
perseguiu, assassinou muitos que eram considerados hereges.
Condenou centenas de milhares à morte pelo simples fato de pensarem
diferente do dogma estabelecido. Também a instituição científica corre
esse mesmo perigo.

O conhecimento científico foi utilizado por Estados totalitários


com fins de eliminar, de deletar o não idêntico classificado como seres
indesejáveis, párias sociais. O mesmo acontece nas democracias
capitalistas. Os donos (capitalistas) do mundo, por exemplo, preferem
aguardar os bons ventos do mercado, essa entidade supostamente
supranatural, da bolsa de valores, para lançarem no mercado
farmacêutico medicamentos, vacinas que podem curar doenças de todos
os tipos. Parte considerável dos africanos, asiáticos e latino-
americanos, que são vítimas da anarquia da produção capitalista, pode
estar a morrer de fome, mas as três principais empresas produtoras de
alimentos do mundo preferem queimar seus estoques a vendê-los ou
dá-los abaixo do preço de mercado.

Culpar a ciência (como se ela existisse em si mesma) pela


destruição de Hiroshima e Nagasaki (1945), pelos horrores do Holocausto
(1939-1945), do Vietnã (1972); pela catástrofe em Chernobyl (1986) e

EM CASA lendo a p. 60
Isolad@s

Fukushima (2011), Mariana (2015), Brumadinho (2019) é reduzir nossa


capacidade de análise e compreensão crítica da história. A apropriação
do conhecimento científico tem sido, desde meados do século XIX, cada
vez mais privada nas mãos dos principais proprietários dos meios de
produção social da existência. O capital necessita do conhecimento
científico e o nazifascismo (o Estado Nazista fundado em 1933 e
parcialmente derrotado em 1945) foi (é) a expressão máxima desse
modo de produção.

Há maravilhas no mundo da ciência que não podem ficar


privadas nas mãos de poucas pessoas. Em uma sociedade, cuja
democracia atende as necessidades básicas e supérfluas da totalidade
dos produtores da riqueza social; em uma sociedade onde a criança não
é vista apenas como um potencial artista plástico, músico, esportista,
filósofo, cientista, professor, herdeiro do patrimônio cultural, mas que
possa efetivamente acessar, apropriar-se de cada um dos elementos
que constituem essas atividades; em uma sociedade onde a fome e a
miséria façam parte da pré-história da humanidade; em uma sociedade
onde a ciência e a tecnologia estão de fato a serviço do bem-estar geral
e da felicidade de cada indivíduo singular e não mais atrelada aos
interesses de pequenos grupos que detêm o poder político e econômico;
portanto, em uma sociedade não capitalista, dificilmente alguém dirá
que o conhecimento científico e tecnológico representam um mal para
a humanidade e para o ecossistema, a natureza como um todo. Nessa
sociedade, homens e mulheres terão acesso às bases do conhecimento

EM CASA lendo a p. 61
Isolad@s

do qual hoje apenas contribuem e vez ou outra têm acesso de forma


fragmentada. Ao invés de consumidores e produtores parciais, envoltos
em um conhecimento tácito, todos e todas, se assim desejarem, poderão
ser cientistas, pois não será privilégio dos filhos e filhas “superdotados”
da burguesia ou de qualquer outra classe de “bens nascidos”. Por mais
que se tenha uma intuição de como será, ainda assim não é possível
saber como a sociedade não capitalista se constituirá, de fato. Contudo,
parece que uma certeza é possível: a atual sociedade capitalista, e seu
modelo de democracia representativa, fundam-se no sacrossanto
direito à propriedade. Isso contribui para a exclusão social de milhões
de pessoas do acesso aos bens materiais e culturais; a sociedade atual,
fundamentada no fetiche que fortalece o capitalismo que a tudo, todas e
todos transforma em mercadoria; essa sociedade tem se utilizado do
conhecimento (científico e não científico) para danificar a própria
espécie e o conjunto do ecossistema, da Natureza em sua totalidade. O
modo de produção capitalista está livre, leve e solto para continuar sua
sanha de transformar o mundo em um grande playground de shopping
centre.

Mas, e os professores e professoras, reproduzirão nas escolas


esse modelo que emula os disparatados comentários do nonsense
elaborados pela intelligentsia da agenda pós? Será que é preciso negar
aos filhos e às filhas da classe trabalhadora, não apenas o acesso mas
o efetivo domínio das “ferramentas” que podem criar as reais condições
de possibilidades capazes de produzir a autonomia,

EM CASA lendo a p. 62
Isolad@s

libertação/emancipação, não só das mulheres, das pessoas


afrodescendentes, das pessoas LGBTQI+, das pessoas com algum tipo de
deficiência, das populações autóctones, originárias (aqui e alhures), mas
do gênero humano?

Ora, não é a ciência que pode ser tanto um instrumento de


libertação como um poderoso meio de opressão, mas, sim, a quem ela e
a tecnologia têm servido. O foco da crítica pode até ser a ciência
moderna. Mas, em nada ou quase nada contribui, pois a crítica deve ser
direcionada ao modo de produção capitalista, à mundialização do capital
e suas (per)versas formas de danificação do humano e destruição da
Natureza, como um todo. Tampouco se deve gastar energia com falsas
bandeiras de luta. O “problema” não está na Europa, tampouco no
conhecimento que lá fora produzido. Sem contar o paradoxo, pois se
critica uma possível dominação do pensamento europeu
(eurocentrismo), mas boa parte dos autores da intelligentsia que
fundamenta a agenda pós (pós-críticos, pós-estruturalistas,
multiculturalistas etc.), ou são franceses, ou, no caso específico do
campo educacional brasileiro, portugueses (Cf. Boa Ventura de Souza
Santos) adeptos da produção intelectual francesa que fomentou os
pressupostos das denominações pós: moderno, crítica etc., mas que
atualmente, muitos deles resolveram abandonar o barco
epistemológico, trocar de óculos, e agora, como em um passo de mágica
recorrem ao vocábulo contemporaneidade, ao invés de pós.

EM CASA lendo a p. 63
Isolad@s

Com efeito, a gênese do conhecimento, que desembocou na


constituição da ciência moderna é bem anterior à Europa do Iluminismo
e tem muito a ver com a Ásia, com a África e, em alguma medida, depois
do encobrimento das culturas pré-colombianas, também bebeu na fonte
da sabedoria dos Maias, Astecas, Toltecas, Incas. A ciência moderna
nasceu europeia, sim, mas hoje ela não tem pátria, pois é uma cidadã do
mundo. Ela pode ser apropriada para outras finalidades, além daquelas
impostas pelos gerentes dos Estados Nacionais e pelos conglomerados
empresariais capitalistas que, 1) para fazerem reproduzir o modo de
produção e o sistema dominado pelo capital, lá na sua gênese, para
restaurarem a escravidão, lançaram mão do discurso religioso também
para justificar a opressão das nações e comunidades autóctones nas
Américas, na Oceania, na África e parte da Ásia; 2) no século XIX,
“cientificizaram” a ciência para os mesmos fins e 3) até meados do
século XX fundamentou parte do discurso xenofóbico e eugenista.

A gênese do conhecimento científico, tal qual se consolidou nos


séculos XVI e XVII, está aquém da cultura europeia e a ciência atual pode
ser apropriada para outros fins que não aqueles difundidos pelo
cientificismo de Estado ou apenas para elevar os lucros dos capitalistas.
Portanto, tudo indica que o foco da crítica deve deslocar-se da tecla
eurocentrista. Esta tese tende a dificultar a capacidade de crítica e
combate ao que é essencial: a forma como atualmente é produzida a
existência coletiva e a apropriação da riqueza em nível mundial e as
consequências desse modo de produção para a humanidade e o planeta:

EM CASA lendo a p. 64
Isolad@s

o ecossistema, a Natureza como um todo. O capital também não tem


pátria. Ele nasceu europeu, mas hoje o deus mercado é mundialmente
universalizado e acomete a todos, indistintamente.

Concomitante, é fundamental que os explorados, excluídos e


expropriados tenham condições de acessar, de se apropriarem, de
assimilarem o conhecimento não cotidiano (a ciência, a filosofia, as
artes, as tecnologias de informação e comunicação), para, assim,
ampliar o nível de compreensão do mundo no seu entorno e para além
dele.

O pomo da discórdia não é ciência x senso comum, tampouco


ciência x religião, ou mesmo ciência x crenças populares. Para o
professor/a-cientista, fundamentado em uma perspectiva crítica de
educação e sociedade, há uma luta ideológica que tem sido travada no
interior e fora dos muros da escola e da qual, conforme seu
compromisso ético-político, não pode virar as costas, como se o
problema não fosse com ele/a.

Em outros termos, esse embate exige uma tomada de posição


em face dos ataques daqueles que, vestidos com o manto sagrado do
discurso de uma democracia polifônica que escuta os múltiplos saberes
cotidianos levados à escola, a rigor nada mais faz do que afundar os
diversos seguimentos da classe trabalhadora no lamaçal da ideologia
fascista do capital. Os filhos dessa classe social clamam por
reconhecimento e pelo acesso ao conhecimento não cotidiano. Eles não

EM CASA lendo a p. 65
Isolad@s

apenas necessitam, mas desejam acessar as ciências, as artes, a


filosofia, o saber elaborado: patrimônio cultural da humanidade e,
portanto, um direito universal.

O método científico, adotado pelas ciências da natureza, em


certa medida perdeu suas características iniciais, naquele momento em
que a ciência ainda era conhecida por filosofia da natureza. Por isso, o
diálogo entre as ciências físico-naturais e as humanidades, em
particular a filosofia e a história, nesse sentido, deve ser uma atividade
constante, não apenas dos anos iniciais da formação do futuro
professor-cientista.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que o método científico


hegemônico se ajustou à lógica e aos interesses do capital. Nesse
sentido, a crítica deve ser endereçada à estrutura social que produz essa
lógica que não se impõe apenas à ciência, mas à totalidade da existência
em todos os âmbitos do mundo da vida, pois não se presta a fazer as
perguntas básicas da experiência ou atitude filosófica (CHAUÍ, 2000): Por
que se pensa o que se pensa, diz o que se diz e se faz o que se faz? Isto
é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que
pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?; 2) O que
se quer pensar quando pensamos, o que se quer dizer quando falamos,
o que se quer fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido
do que pensamos, dizemos ou fazemos?; 3) Para que pensamos o que
pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual

EM CASA lendo a p. 66
Isolad@s

é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos? Para


que e a quem tem servido a ciência e a tecnologia?

O “simples” ato de problematizar a realidade e os fenômenos


sociais e naturais, já é um bom indício de que se começa a sair do âmbito
do meramente cotidiano, hegemônico no mundo da vida. No momento
em que a maioria das pessoas está imersa na ordinária tarefa de
reprodução da própria existência, é praticamente impossível que
consiga romper com o nível de conhecimento mais elementar, tópico e
de sendo comum. Importante, mas insuficiente para se romper com as
barreiras que instauram práticas sociais como o movimento antivacina
e todo tipo de preconceito, por exemplo.

CONHECIMENTO: COTIDIANO X NÃO COTIDIANO


final, o que aqui se entende por conhecimento? O Dicionário
A básico de filosofia (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996) informa que
1) é a função ou ato da vida psíquica que tem por efeito tornar
um objeto presente aos sentidos ou à inteligência; 2) ele diz respeito à
apropriação intelectual de determinado campo empírico ou ideal de
dados, tendo em vista dominá-los e utilizá-los. O temo designa tanto a
coisa conhecida quanto o ato de conhecer (subjetivo) e o fato de
conhecer.

No Dicionário de filosofia (ABBAGNANO, 1998), de Nicolas


Abbagnano, conhecimento refere-se a uma técnica para aferição de um

EM CASA lendo a p. 67
Isolad@s

objeto qualquer, ou disponibilidade ou posse de uma técnica semelhante.


A técnica de aferição refere-se a qualquer procedimento que possibilite
a descrição, o cálculo ou a previsão verificável de um objeto; e por objeto
deve-se entender qualquer entidade, fato, coisa, realidade ou
propriedade. Técnica, nesse sentido, é o uso normal de um órgão do
sentido tanto quanto a operação com instrumentos complicados de
cálculo: ambos os procedimentos permitem aferições verificáveis.

Os gregos antigos consideravam a existência de várias fontes e


tipos de conhecimento, que poderia vir das sensações, da percepção, da
imaginação, da memória, do raciocínio. Também distinguiam o
conhecimento sensível e o intelectual; indagavam sobre o papel da
linguagem no conhecimento; questionavam sobre a diferença entre
opinião e saber; entre aparência e essência (CHAUÍ, 2000).

O filósofo grego Aristóteles (385-323 a.C.) classificou o


conhecimento em três ramos: teorético – referente aos seres que
apenas podemos contemplar ou observar, sem agir sobre eles ou neles
interferir; prático – relativo às ações humanas: ética, política e economia
– e técnico –, que diz respeito à fabricação e ao trabalho humano, que
pode interferir no curso da natureza, criar instrumentos ou artefatos:
medicina, artesanato, arquitetura, poesia, retórica etc. (CHAUÍ, 2000).

A partir dessa classificação aristotélica, ainda que não a


sigamos ipsis literis, pode-se inferir que o conhecimento pode se
manifestar na forma de senso comum, mitologia, arte, filosofia, ciência,

EM CASA lendo a p. 68
Isolad@s

sabedoria etc. Todas essas modalidades, com níveis distintos de


saturação, apropriação e socialização, fazem parte da vida cotidiana.
Contudo, no mundo cotidiano da vida impera as objetivações genéricas
em si: a linguagem, os valores, os costumes que nos leva a fazer o que
fazemos de forma automática, sem reflexão e questionamento. No dia a
dia, na vida cotidiana, as pessoas estão muito mais preocupadas com a
reprodução da existência biofísica (HELLER, 1992).

O historiador Peter Burke faz uma distinção entre conhecimento


e informação; saber como e saber o quê. O que é explícito e o que é tido
como certo. Para ele, informação refere-se ao que é relativamente cru,
específico e prático. Conhecimento, ao contrário, denota o que foi cozido,
processado ou sistematizado pelo pensamento (BURKE, 2003, p. 19).
Nesse sentido, ao contrário do conhecimento que acontece de forma
tácita, no dia a dia do mundo da vida, as objetivações genéricas para si
seriam aquelas atividades e conhecimentos vinculados à vida não
cotidiana, voltados para a reprodução do ser social genérico (HELLER,
1992).

Entretanto, em sociedades marcadamente desiguais, pautadas


no processo de exploração de uma classe sobre a outra, parte
considerável das pessoas é alienada do processo de apropriação das
objetivações genéricas para si. Elas (quase sempre) nada mais fazem do
que assimilar e reproduzir o limitado mundo da vida cotidiana. Em seu
Testamento político, o cardeal Richelieu afirmou “[...] que o

EM CASA lendo a p. 69
Isolad@s

conhecimento não devia ser transmitido às pessoas do povo para evitar


que ficassem descontentes com sua posição na vida” (BURKE, 2003, p.
21), ou seja, para ele, a pessoa deve permanecer alienada da sua própria
condição social. Mas, o que significa afirmar que um indivíduo é
alienado? É quando ele se torna incapaz de romper com as formações
psíquicas típicas do cotidiano, mesmo em situações nas quais esses
padrões cotidianos de pensar, sentir e agir precisam ser superados.
Quando a estrutura da vida cotidiana se hipertrofia, tornando-se a única
forma de vida, resumida em um conjunto de atividades voltadas básica
e essencialmente para a reprodução de sua particularidade. A pessoa
alienada apresenta um modo de funcionamento psíquico (intelectual e
afetivo) cristalizado. Trata-se de uma estrutura social, de um cotidiano
e, consequentemente, de um psiquismo alienados (HELLER, 1992).

O homem e a mulher alienados são apartados da possibilidade


de usufruírem das inúmeras expressões e facetas inerentes às esferas
não cotidianas: em tese, potencializadoras da existência. A grande
maioria, circunscrita ao âmbito cotidiano, da vida particular, fica
alienada da universalidade do gênero humano. A tendência, nessa
situação, é de o conhecimento ficar restrito ao que é produzido no nível
do senso comum, tendo em vista que o pensamento e a práxis que
vigoram no cotidiano fundamenta-se sobretudo em opiniões subjetivas
baseadas em sentimentos individuais ou de grupos, que pode variar de
pessoa para pessoa, a depender das condições materiais de vida e quase

EM CASA lendo a p. 70
Isolad@s

sempre relativos ao lugar que se ocupa na produção social da


existência.

Agnes Heller observa que os saberes compartilhados pelo


pensamento de senso comum são generalizadores. Eles tendem a
reunir, em uma só opinião ou ideia, coisas e fatos julgados como se
semelhantes fossem entre si; estabelecem relações de causa e efeito
entre coisas ou fatos. De tal sorte que a alienação, própria da vida
cotidiana, é produtora e reprodutora do senso comum, de forma que
ambos se retroalimentam.

Quem fundamenta a vida no pensamento e na ação do senso


comum, pode até fazer por incompetência, preguiça ou inaptidão
biológica, mas tal conduta tem muito mais a ver com uma determinação
histórica da própria constituição da desigualdade que fomenta a
injustiça social. O mais comum, nesses casos, é que o sujeito dificilmente
consegue compreender, tampouco valorizar o conhecimento elaborado.

Para o senso comum, a tendência é identificar a ciência com a


magia, pois o pensamento ordinário considera que ambos os saberes
lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível. É próprio do senso
comum projetar o universo privado e íntimo da sua vida nas coisas ou
no mundo. Por essa razão,

[...] por serem subjetivos, generalizadores,


expressões de sentimentos de medo e angústia, e
de incompreensão quanto ao trabalho científico,
nossas certezas cotidianas e o senso comum de

EM CASA lendo a p. 71
Isolad@s

nossa sociedade ou de nosso grupo social


cristalizam-se em preconceitos com os quais
passamos a interpretar toda a realidade que nos
cerca e todos os acontecimentos (CHAUÍ, 2000, p.
316).

Em seu livro O cotidiano e a história, em especial no capítulo


Sobre os preconceitos, Heller afirma que os traços da vida cotidiana
seriam o caráter momentâneo dos efeitos, a natureza efêmera das
motivações, a fixação repetitiva do ritmo e a rigidez do modo de vida.

De acordo com Heller, o conjunto das atividades que possibilita


a reprodução do indivíduo denomina-se características da vida
cotidiana, dentre elas: a heterogeneidade, hierarquia, repetição,
economicismo, espontaneísmo, probabilística, entonação, precedente,
imitação, pragmatismo, analogia, juízos provisórios (preconceito e
ultrageneralização). Para a reflexão aqui proposta, interessa tratar do
pragmatismo e dos juízos provisórios. O pragmatismo é uma ação
fundamentada em um pensamento prático, na empiria seca, fria, que
dispensa qualquer teoria explicativa. E, se por acaso a prática for bem-
sucedida é porque, no pensar pragmático, ela é correta e deve ser
reproduzida.

Em analogia, o pensamento cotidiano fixa-se na experiência


empírica, naquilo que o conhecimento tácito é ultrageneralizador. De tal
forma que na esfera da vida cotidiana, o ser social fundamenta sua ação
na estereotipia. Isso porque, o tempo administrado pela lógica do capital
quase nunca é um aliado e dificilmente se consegue momentos para um

EM CASA lendo a p. 72
Isolad@s

pensar menos superficial sobre os conceitos com os quais lidamos no


dia a dia, tampouco para que se possa fundamentar e guiar a ação em
uma fundamentação mais bem elaborada da realidade (HELLER, 1992).

Na vida cotidiana (dominada pelo pensamento de senso


comum), a ultrageneralização é um juízo provisório, uma regra de
comportamento de curta duração. De tal forma que todo julgamento
transitório, de acordo com Heller, é contrário à ciência. No caso do
preconceito, trata-se de um tipo específico de ultrageneralização. Por
isso, mesmo diante de evidências contrárias, a pessoa ou grupo
preconceituoso tende a permanecer no âmbito da crença.

Na avaliação de Heller, os preconceitos são “[...] juízos


provisórios refutados pela ciência e por uma experiência
cuidadosamente analisada, mas que se conservam inabalados contra
todos os argumentos da razão” (HELLER, 1992, p. 47). Apelar para a fé,
para a crença em verdades sedimentadas, dá a sensação de que a vida
tem algum sentido de plenitude, haja vista que isso coincide com o que
é coletivamente compartilhado no âmbito do mais imediato na
comunidade.

Consoante a Heller, na fé, a pessoa é também marcada pela


polaridade amor e ódio. Este é dirigido tanto para o objeto da crença
como para aquele que não acredita na mesma coisa e destoa daquilo
que crê a maioria. Por isso, para Heller, a intolerância emocional seria
uma “consequência necessária da fé”. O preconceito é um sentimento

EM CASA lendo a p. 73
Isolad@s

assimilado, incorporado pelo indivíduo. Ele é mediado pelo


imediatamente social, no dia a dia. É quase sempre um sentimento
concretizado de forma irracional, que faz gerar sistemas de
preconceitos, consequência de comportamentos preconceituosos.

Tais sistemas, enfatiza Heller, vinculam-se à ideologia


concebida como falsa consciência. Em geral, as pessoas, no dia a dia,
fica difícil de as pessoas perceberem que determinadas ideologias são
de todo erradas. Nesse sentido, a impossibilidade de perceber o
equívoco da maioria das ideologias, faz com que sejam aceitas de boa-
fé. E, o maior produtor de preconceito, na avaliação de Agnes Heller, são
as classes dominantes, que de tudo fazem para que a desigualdade e a
injustiça social se perpetuem.

Nesse sentido, na vida cotidiana, todo preconceito é um falso


juízo de valor, dado o caráter pragmático do pensamento dominante,
orientado a partir de juízos previamente elaborados. Por isso, mais uma
vez, a fé, na perspectiva de Heller, é o amálgama que mantém o
preconceito inabalado diante de qualquer argumento fundamentado na
razão. Ainda que sejam motivações de ordem particular,
paradoxalmente os objetos e os conteúdos do preconceito são moral e
religiosamente universais. Por sua vez, a falsa consciência que sustenta
o preconceito é também um falso sentimento de satisfação de
motivações particulares que gera uma sensação de proteção em face de
conflitos inerentes à existência. Isso tende a produzir conformismo, e a

EM CASA lendo a p. 74
Isolad@s

pessoa preconceituosa quase sempre se orienta por pensamentos pré-


estabelecidos, destituidores da individualidade e autonomia da ação.

Contudo, Heller considera que nem todo sistema ideológico


acarretará ações preconceituosas. Isso só acontece quando o caráter
intencional discriminatório da ideologia expressa ideias que criam ou
mantém relações desiguais, assimétricas, injustas. Essa transmutação,
cuja gênese é a falsa consciência, ao ser convertida em um sistema de
preconceitos, ofusca a capacidade de ver as múltiplas determinações da
realidade e isso fortalece a manutenção da desigual e injusta ordem
social estabelecida.

Em face dessas considerações, é possível afirmar que o escopo


de uma educação progressista é lutar para que tanto a experiência
menos alienada como os conteúdos da ciência e todos os conhecimentos
elaborados, constitutivos e inerentes à atividade escolar façam parte da
vida social na sua totalidade. A depender da perspectiva filosófica, da
cosmovisão (da concepção que se tem sobre o ordenamento do mundo
da vida, bem como da forma como são socializados), esses
conhecimentos podem promover a superação das formas objetivas e
subjetivas da alienação coletiva.

Isso significa considerar que a instituição escolar é muito mais


do que um espaço de reprodução da vida cotidiana. Ainda que no mundo
cotidiano seja possível encontrar potencialidades não exploradas,
minúcias, fragmentos de histórias de vidas decompostas, afetos e

EM CASA lendo a p. 75
Isolad@s

saberes reprimidos, invisibilizados; ainda que o ponto de partida seja o


imediato do mundo da vida, a dimensão mais automatizada e não
refletida do existir corriqueiro, do pensamento que é mais superficial,
apesar de tudo isso, como enfatizado, o objetivo, no entanto, é
possibilitar que os sujeitos escolares se apropriem, incorporem a
dimensão não cotidiana da existência.

É excludente e alienadora a escola que limita seus objetivos a


reproduzir o mundo cotidiano e reduzir a vida àquilo que é mais
comezinho. Quando assim procede, a instituição educacional nega aos
alunos e alunas o acesso e a apropriação das objetivações genéricas
para si, que não são patrimônio privado de uma única classe social (a
que detém o poder econômico), mas diz respeito à totalidade do gênero
e da espécie humana.

O conhecimento, por si só, não exclui, não divide, não produz


preconceitos. Quando apropriado pelo grupo ou classe detentora dos
meios de produção social da vida, quase sempre seus integrantes criam
barreiras, tabus, demarcações fictícias, mas com consequências
efetivas na realidade do mundo da vida, que são internalizadas por uma
parcela considerável da sociedade.

A arte de todas as épocas, a ciência, a matemática, a literatura,


a tecnologia só se tornam opressoras quando concentradas nas mãos
de poucas pessoas. Estas, pôr deterem a propriedade privada dos meios
de produção (materiais e simbólicos), tornam o conhecimento um

EM CASA lendo a p. 76
Isolad@s

elemento fundamental para que possam conservar e reproduzir seus


próprios privilégios de classe.

Ainda assim, mesmo quando a escola transcende às imposições


dessa práxis limitadora, e consegue fazer com que as crianças e os
adolescentes acessem e se apropriem do conhecimento elaborado,
mister lembrar que o processo é sempre contraditório.

O conhecimento, por si só, nada garante, em termos da


formação de um indivíduo mais próximo daquele projeto cujo (começo,
meio e) “fim” é a aquisição da humanidade. As ciências, as artes, a
filosofia, a ética, a estética, o conhecimento tecnológico etc., são
fagulhas que podem tanto acender as luzes da razão e da sensibilidade,
no sentido de despertar a existência, como também podem ofuscar a
capacidade racional, sensível/afetiva das pessoas.

O despertar da razão não pode ser confundido com a lógica que


orienta a racionalidade técnico-instrumental da danificada sociedade
administrada (pela ganância do capital). Esta que concebe a natureza
(externa e interna) como mera mercadoria que deve ser explorada para
a satisfação dos interesses econômicos de poucos (capitalistas). A
mundialização desse procedimento determina o funcionamento da
estrutura do sistema econômico cujo resultado do trabalho vivo da
classe explorada fica concentrado única e exclusivamente nas mãos da
classe que vive da exploração, do controle e da administração dos
corpos produtores de riqueza.

EM CASA lendo a p. 77
Isolad@s

Em cada conteúdo e atividade solicitada na escola, cabe ao


professor ou à professora, mediados por uma expertise fundamentada
em uma qualificada formação teórico-científica, socializar e incentivar
os escolares a manterem uma relação sempre atenta e predisposta à
compreensão dos fenômenos naturais e sociais que dizem respeito à sua
existência particular e genérica, tendo em vista que o conhecimento,
para o sapiens, não é facultativo, mas imprescindível. Sem ele é
impossível pensar a existência do gênero humano: o único que sabe e
tem ciência da sua finitude; que sabe que ignora e tem ciência de que
não sabe tudo; que sabe que não sabe e que deseja romper com a
ignorância do não saber que em muitas situações é uma das principais
causas que o mantém na pura heteronomia reforçada pela alienação
produzida e reproduzida pela dinâmica da vida cotidiana, cuja
característica, por inúmeras razões, já enfrentadas nos parágrafos
acima, tende a desvalorizar o pensamento crítico que se fundamenta em
perguntas como: o que é; como é; por que é.

Quando na vida cotidiana inúmeros aparatos e dispositivos


tendem a impossibilitar as pessoas de elas fazerem perguntas, de
problematizar sua existência, a dinâmica individual e social da vida,
como visivelmente acontece na sociedade contemporânea, torna-se
difícil considerar a viabilidade de ruptura com os processos de
alienação. Isto porque, sua superação não depende apenas de uma
tomada de consciência (que é um importante ponto de partida), tendo
em vista que a engrenagem do moto perpetuum dessa realidade está

EM CASA lendo a p. 78
Isolad@s

tanto na materialidade da forma como tem sido produzidas as ideias,


como na dimensão inconsciente que perfaz a existência. Pois não é a
ideia, o discurso ou a linguagem que produz o mundo, mas é a
materialidade deste, as formas por meio das quais são produzidas a
existência que, em última instância, condiciona a linguagem, o discurso
e a consciência que o ser social tem sobre si mesmo e a realidade.

Isso tampouco significa que se deve aguardar as


transformações das formas e das relações de produção existentes para,
só assim, dar início à transformação no nível da subjetividade. Pelo
contrário, é justamente por sermos capazes de nos projetar para além
do hic et nunc (do aqui e agora), é que se pode dar início a esse processo,
antes mesmo das necessárias transformações na materialidade da
produção social da existência.

Parece haver uma relação entre o conhecimento mais


comezinho, típico do pensamento cotidiano (HELLER, 1992) e a condição
existencial de quem lida com o mundo da vida, “guiado” por um nível de
consciência ingênua6, a partir do qual estruturam-se os múltiplos
saberes da vida cotidiana que, em fluxo contínuo são espontânea e
socialmente compartilhados no processo de semiformação (ADORNO,

6
“[...] a consciência ingênua é, por essência, aquela que não tem consciência dos fatores
e condições que a determinam. A consciência crítica é, por essência, aquela que tem
clara consciência dos fatores e condições que a determinam” (PINTO, 1960, p. 83).

EM CASA lendo a p. 79
Isolad@s

2010). Apesar de terem sentidos e significados distintos, em última


instância esses conceitos aludem à mesma questão: a vida alienada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
ponto de partida da reflexão aqui proposta foi a
O problematização do movimento negacionista da ciência, em
especial o movimento antivacina. O ano de 2020, desde o
anúncio da pandemia do vírus SARS-CoV-2 (Covid-19), feito pela
Organização Mundial da Saúde (OMS), vai ser um marco na história do
pensamento e das práticas sociais. Ainda que no pós-pandemia 2020
nada se transforme, não resta dúvidas de que inúmeras
problematizações, boa parte delas constitutivas de respeitadas
tradições teóricas que desde o início do século XX têm refletido e
contribuído para se ampliar o pensamento relativo à relação entre
ciência, tecnologia e sociedade, enfim, tudo sugere que à fortuna crítica
até então realizada serão acrescentados ainda mais contribuições que
podem criar as condições de possibilidades para dar início à tão
necessária transformação nos modelos hegemônicos de produção social
da existência. Nesse sentido, ao longo deste artigo, apresentei o
argumento segundo o qual na construção das principais teses que dão
origem à ciência moderna, os autores do Renascimento ainda estavam
vinculados tanto à tradição da metafísica, operada pela filosofia clássica
grega, quanto ao conhecimento místico-teológico. Por conseguinte, essa
relação é que contribuiu para, em certo sentido, no imaginário social o

EM CASA lendo a p. 80
Isolad@s

cientista ser concebido ora como um feiticeiro, ora como deus. Isso é
agravado com o fato de que o conhecimento científico tem sido
apropriado pelos grandes conglomerados empresariais capitalistas, que
dele necessitam para dar vazão à criação/produção ilimitada da
tecnologia responsável pela ampliação do lucro – lê-se exploração da
classe que vive do trabalho. Em outros termos, aquele antigo imaginário,
do cientista concebido com feiticeiro, ou mesmo deus, agora está
implícito na ideia de que a ciência, base da tecnologia (e vice-versa), é
fundamental para ampliar a vida do deus mercado.

Fundamental, aqui, não perder de vista que o problema não é


nem da ciência, tampouco da tecnologia, ou mesmo do conhecimento
historicamente elaborado e sistematizado na forma de saber escolar. O
que se propõe é justamente romper com todo e qualquer tipo de
formação científica baseada na ideia de neutralidade/assepsia política.
O escopo, pelo contrário, é considerar a importância da objetividade, da
pesquisa baseada em evidências e na hermenêutica crítico-objetiva
capaz de estabelecer relações entre as múltiplas e possíveis
determinações que compõe um determinado fenômeno. Para tanto,
recorre-se ao conceito de crítica social.

Com relação à matematização (das ciências físico-naturais e


das humanidades), penso que este tampouco configura-se como o
problema central, pois é bem possível operar com o conhecimento
matemático e ao mesmo tempo retomar a necessária autorreflexão

EM CASA lendo a p. 81
Isolad@s

crítica. O positivismo/cientificismo e o capital sabem muito bem tirar


proveito do conhecimento matemático. Mas ele, em si mesmo, não se
constitui problema algum. Pelo contrário, enquanto um patrimônio
cultural deve ser apropriado, acessado, assimilado, incorporado por
todos, indistintamente, mas, a partir de uma perspectiva que coloque em
xeque a mera funcionalidade, adaptabilidade e positivização da
realidade. Uma matemática, ou melhor, um ensino de matemática
fundamentado em uma perspectiva histórica e teórico crítica, por
exemplo, pode servir para criar as condições de possibilidades para se
romper com aquilo que dela foi e tem sido feito até então.

As disciplinas acadêmicas, que compõem as humanidades,


como o próprio título anuncia, dizem respeito a nós mesmos: humanos,
sujeitos, indivíduos. Todo indivíduo é um ser social e histórico que
carrega a irrefutável capacidade de não apenas pensar, mas
elevar/ampliar o pensamento a níveis cada vez mais complexos de
elaboração e capaz de estabelecer relações. Pensar e sentir de forma
mais complexa. Pensar o desenvolvimento da/a ciência. Refletir esse
desenvolvimento de forma sistematizada, elaborada, a partir não de
todo, mas de algum conhecimento já fundamentado com esse propósito.

Por fim, mas não por último, três questões que a meu ver são
de suma relevância na composição dos elementos essenciais do ato de
refletir sobre o fenômeno relativo ao movimento negacionista da ciência
e suas consequências: a contribuição da intelligentsia da agenda pós-

EM CASA lendo a p. 82
Isolad@s

moderna e o recuo/aversão à teoria crítica, bem como o potencial que


tem a indústria cultural 4.0 (orientada pela nanotecnologia e pelos
algoritmos) de dar continuidade ao projeto de danificação do ser social,
em especial com a propagação de fakenews.

No caso da agenda pós, no artigo (Semi)formação no contexto


das fake news e da pós-verdade na sociedade excitada – de Adorno a
Türcke (LOUREIRO; GONÇALVES, 2020) os autores consideram que de
forma mais agressiva, nas últimas décadas do século XX e, com menos
vigor, nos últimos vinte anos desse início do XXI, tem sido recorrente a
crítica de autores vinculados às teorias pós que insistem em considerar
ultrapassada qualquer tipo de proposição teórica gestada no contexto
do Iluminismo. Apesar de não se configurar como um sistema filosófico
com unidade teórica, pode-se considerar que as teses dos autores “do
pós-moderno” fazem parte de uma agenda (MORAES, 1996; 2004; WOOD,
1999) da qual inserem-se pensadores pós-estruturalistas, pós-críticos
bem como aqueles vinculados ao multiculturalismo, neopragmatismo,
pós-colonialismo, construcionismo social cujas ideias centrais podem
ser assim resumidas e que têm muito a ver com as teses de inúmeros
movimentos negacionistas: negação da existência de uma realidade
objetiva independente da percepção humana – o mundo objetivo não
passa de uma construção linguística; afirmação de que o conhecimento
é filtrado por prismas de gênero, raça, etnia e outras variáveis, mas
dificilmente pela classe social; rejeição da ideia de verdade, que é
substituída por noções de perspectiva e posicionamento; defesa de que

EM CASA lendo a p. 83
Isolad@s

a linguagem é instável/não confiável e que a ideia de racionalidade,


autonomia e a própria ciência moderna são narrativas (ou
metanarrativas) da modernidade; ataque à ideia da possibilidade do
consenso que resulta na impossibilidade da ética como caminho para o
diálogo consensual – incomensurabilidade dos valores morais; desprezo
a categorias como totalidade, universalidade, contradição, dialética,
ideologia – guerra contra a tradição marxista e à teoria crítica em geral;
ruptura com as fronteiras do conhecimento – a ciência e a história são
tão narrativas quanto a literatura e a mitologia; estetização da vida e
hipervalorização da cotidianidade fundada nas diferenças anárquicas,
desconectadas e inexplicáveis; ênfase na instabilidade da linguagem –
desconstrucionismo como forma de análise textual cuja aplicação vale
tanto para a literatura como para a história, arquitetura e as ciências
humanas, em geral; relativismo extremo – impossibilidade de discernir
a objetividade e intenção do autor, pois tudo é tudo e nada é nada e
qualquer coisa pode significar qualquer coisa; crítica à ideia de que haja
uma leitura óbvia ou de senso comum – tudo tem uma infinidade de
significados. Em outros termos: não há verdade (KAKUTANI, 2018; GRENZ,
2008; ANDERSON, 1999; WOOD, 1999; EAGLETON, 1999; 1993; NANDA, 1997).

Outra possibilidade de leitura, para se compreender o avanço


das teses negacionistas, bem como das denominadas fakenews, diz
respeito à polêmica relativa ao embate entre o discurso filosófico da
modernidade e a defesa da agenda pós-moderna. Loureiro e Gonçalves
(2020) também enfatizam que ainda que repleta de contradições,

EM CASA lendo a p. 84
Isolad@s

paradoxos e disparates, pode-se encontrar um fio de Ariadne a unir os


pensadores da agenda pós, cujo imperativo categórico desemboca na
ideia de pós-verdade, a fazer par e coro com as fakenews. Isso porque,
tanto a pós-verdade como as fakenews revelam problemas éticos e
políticos no mesmo nível e sentido daqueles endógenos à agenda pós-
moderna, cujos autores ou negam ou relativizam a verdade. Isso tem
implicações até no campo da justiça: afinal, como é possível
compreender que qualquer opinião é errada ou qualquer prática injusta,
a partir de um dado ponto de vista, sem nenhum padrão exógeno de
verdade (NANDA, 1997)?

Poder-se-ia então questionar, observam Loureiro e Gonçalves


(2020), se por acaso o movimento intelectual fundamentado nas teses
da agenda pós desempenhou algum papel no surgimento da pós-
verdade e das fake news. Há fortes evidências teóricas que apontam
para uma resposta positiva a essa questão. Não por acaso, a crítica
literária Michiko Kakutani (2018) afirma que o argumento pós-moderno
– todas as verdades são parciais, pois dependem da perspectiva de cada
um –, contribui para a ideia de que existem diversas maneiras legítimas
de entender ou representar um acontecimento. Isso foi tanto o estopim
para a defesa de um discurso mais igualitário, como de igual forma
possibilitou escutar a voz dos excluídos, mas também tem sido
explorado por haters (odiadores) que equipararam o não equiparável:
criacionistas que reivindicam o direito de o design inteligente ser
ensinado nas escolas, no mesmo nível que a teoria da evolução das

EM CASA lendo a p. 85
Isolad@s

espécies; supremacistas brancos neonazistas reivindicam igualdade de


direitos para se manifestarem; negacionistas climáticos, adeptos do
movimento antivacina e outros grupos, para quem a ciência para nada
serve e disseminam expressões levianas que pouca diferença faz em
uma aula sobre a filosofia da desconstrução (Jacques Derrida), pois
existem muitos lados, perspectivas diferentes, incertezas e múltiplas
formas de conhecimento. Tudo isso contribuiu para que o grande público
consumidor (e produtor) das fake news, até certo ponto, não as
considerassem uma ameaça (KAKUTANI citada por LOUREIRO;
GONÇALVES, 2020).

O pensamento, a atividade reflexivo-filosófica aqui proposta,


pauta-se pela ideia de crítica. Com efeito, há inúmeras possibilidades de
se compreender o conceito de crítica. O sujeito crítico, em tese, não
assume ingenuamente as posições apenas por força da autoridade, ou
da tradição, ou porque alguém disse que assim deve ser. O que se
espera, de alguém que se orienta por uma perspectiva crítica, é que se
possa compreender, por meio de justificativas racionais, aspectos da
realidade natural e social. A perspectiva crítica é uma orientação. Um
modo de pensar. Quem por ela se orienta é capaz de remeter os
principais tópicos e doutrinas da sua área de atuação, as fontes de
legitimação: por que é e como foi que isso que se tornou o que é?
(ontologia). Entende a origem dos conceitos e categorias, dos
argumentos. A pessoa, com algum esforço técnico, consegue avaliar se
tal ou qual conceito ou discurso é razoável, se apresenta algum

EM CASA lendo a p. 86
Isolad@s

argumento forte etc. Aqui jaz a ideia de que o sujeito crítico não aceita,
passiva e ingenuamente, nem o evidente do fenômeno, nem as
enunciações teóricas que sobre esse se formulam. Na medida do
possível, e em condições reais, por meio do pensamento crítico tem-se
condições de explicitar a coerência interna e a montagem lógica do que
se nos apresenta. Com isso pode-se considerar que a autonomia
intelectual refere-se a alguém que é capaz de avaliar, de modo racional,
as variantes teóricas da sua área de atuação e com isso escolher, diante
de situações diversas, qual esquema teórico é mais apropriado; porque
e como montar um argumento mais qualificado e assim apresentar uma
objeção sobre determinada questão. O sujeito crítico assimila certos
parâmetros argumentativos de pensamento. Ele pode agir
autonomamente a partir deles.

Em latim, crítica é criticus e em grego, Kritokos. Ambos aludem


à ideia de alguém que é capaz de julgar. Como enfatizado, há várias
definições para se compreender o pensamento crítico. Há séculos o
conceito tem sido objeto de pesquisa. O pensamento crítico pode ser
concebido com um pensamento reflexivo razoável que visa a decidir o
que acreditar ou o que fazer (HUNTER, 2009). Existem alguns elementos-
chave dessa definição que vale a pena revisar: pensar correto na busca
de conhecimento relevante e confiável sobre o mundo; pensamento
razoável, reflexivo, responsável e hábil que é focado em decidir no que
acreditar ou fazer; fazer perguntas apropriadas, coletar informações
relevantes, classificá-las de maneira eficiente/criativa, raciocinar

EM CASA lendo a p. 87
Isolad@s

logicamente a partir das evidências e chegar a conclusões confiáveis


que permitem viver e agir de forma menos alienada. O verdadeiro
pensamento crítico põe em xeque tanto a empiria quanto a teoria
(ENNIS, 1991; HUNTER, 2009).

A crítica tem a ver com recordação, ou seja, mobilizar nos


fenômenos aquilo em virtude do qual eles se tornaram o que são e,
assim apreender a possibilidade de se terem podido, e poderem se
tornar outra coisa (ADORNO, 2004). Portanto, talvez seja possível pensar
sobre determinados chavões, proposições academicamente
sensocomunizadas, discursos de mudança/transformação que circulam
apenas no âmbito do texto, como se o texto construísse a realidade.

No mais, será que ainda há espaço para se pensar a imagem do


e da professora vinculada à ideia de intelectual (crítico), porque
organicamente engajada nos processos de luta coletiva em busca de
justiça social? Será, efetivamente, que estamos em uma nova era; uma
era uma era pós-moderna? Será que os valores, os ideais de justiça
social, que implicam a liberdade e a igualdade (não apenas de direito e
abstrata, mas de fato), ainda podem fazer parte de um projeto que tem
por base um programa de educação pautado nos objetivos de
universalização de valores como autonomia e emancipação?

Vinculada à essas questões tem-se o fato de que a própria ideia


de crítica, assim como tantos e tantos conceitos que se
sensocomunizam, tendem a cair no âmbito do uso cotidiano e com isso

EM CASA lendo a p. 88
Isolad@s

esvazia-se o potencial crítico do próprio conceito. A experiência ou


atitude crítica do pensamento e da práxis requer, antes de tudo, a
autorreflexão. O pensar e pôr em xeque o próprio pensamento. A
autonomia não significa “ser autossuficiente”. O sujeito/indivíduo
autônomo é aquele que se apropriou de uma determinada techne (a arte
do bem pensar e agir) que não nasce com ele, mas se adquire pela
mediação de outrem. A escola, em tese, seria justamente o espaço
capaz de reunir um grupo de pessoas capazes de frear a sedução
imagética da sociedade que tende a nos apartar e alienar de toda forma
não cotidiana de conhecimento.

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EM CASA lendo a p. 91
Isolad@s

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EM CASA lendo a p. 92
Isolad@s

SONETO CONTRA O VÍRUS E OS


VIRIS

Wilberth Salgueiro
Professor Titular de Literatura Brasileira na
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
Mestre e Doutor em Letras pela UFRJ, realizou pós-
doutoramento em Literatura Comparada
(UFRJ/2006) e em Literatura Brasileira (USP/2014).
Neste livro também colabora com “’Canção da
desesperança’, de Mara Coradello”.
wilberthcfs@gmail.com

EM CASA lendo a p. 93
Isolad@s

SONETO CONTRA O VÍRUS E OS VIRIS

Language is a virus. (Laurie Anderson)

Que vem a ser um vírus? Todo o mundo


(quase) já sabe que se trata – ou não –
dum inimigo que, de dentro, mas
vindo de fora, mata qualquer um

– indiferentemente. Sendo invi-


sível, o vírus vem e entra em nós.
Sem graça alguma, tira (quase) a vida
de todo o mundo. Tal vírus – corona

é seu nome de guerra – está causando


imenso caos: pandemia e pan-
demônio, catastróficas metáforas

da maneira viril de ser, seu dis-


curso de morte – feio, macho, triste.
Pós-vírus, haverá novos devires?

(Wilberth Salgueiro, abril de 2020)

EM CASA lendo a p. 94
Isolad@s

ÉTICA E JUSTIÇA SOCIAL EM


TEMPOS DE PANDEMIA

Filicio Mulinari e Silva


Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de
São Paulo (Unifesp) e professor do Instituto Federal
do Espírito Santo (Ifes).
filicio.silva@ifes.edu.br

EM CASA lendo a p. 95
Isolad@s

INTRODUÇÃO
os últimos meses vimos o novo coronavírus se espalhar por
N todos os continentes povoados da Terra. O que se pensou ser
uma epidemia de baixa letalidade e que rapidamente se
extinguiria, como o SARS e a gripe aviária ocorrida no começo deste
milênio, rapidamente alcançou proporções globais de uma pandemia
altamente funesta.

A velocidade com que o coronavírus se espalhou pelo mundo


surpreendeu várias nações, sobrecarregando diferentes ramos da
sociedade e lançando desafios inéditos para as mais diversas áreas.
Além de, obviamente, trazer questões relacionadas às ciências
biomédicas (como estudos sobre vacinas contra o vírus, métodos de
tratamento, etc.), a COVID-19 também ocasionou uma série de reflexões
políticas, jurídicas e filosóficas, trazendo à tona muitos debates a
respeito do que devemos considerar eticamente viável.

Em face de uma possibilidade real de calamidade na saúde


pública, juntamente com uma presumível crise econômica posterior,
várias reflexões de fundo ético sobre políticas públicas surgem:
devemos estabelecer limites econômicos flexíveis para combater uma
pandemia altamente letal? Até que ponto podemos restringir a liberdade
de agrupamento? É eticamente aceitável aumentar o risco do grupo
mais vulnerável (idosos, asmáticos, etc.) em prol de um melhor

EM CASA lendo a p. 96
Isolad@s

equilíbrio da economia? A resposta a tais questões envolve a noções


éticas e políticas muitas vezes antagônicas. Tomando por base as teorias
de filósofos modernos e contemporâneos consagrados, como Rawls,
Sandel, Mill e Adorno, propomos na sequência uma reflexão sobre o
conceito de justiça social a fim de pensar sobre a seguinte questão:
afinal, o que devemos considerar como justo em tempos de pandemia?

RAWLS E O FUNDAMENTO LIBERAL PARA


JUSTIÇA SOCIAL
erca de cinquenta anos atrás, John Rawls lançava seu
C clássico A Theory of Justice (1971). Na obra, o filósofo
americano aborda o problema da justiça distributiva (a
distribuição socialmente justa de bens em uma sociedade) tendo como
base tanto uma revisão da filosofia kantiana, como uma variante da
teoria convencional dos contratos sociais. Podemos encontrar no livro
uma resposta bastante razoável às questões apresentadas no início e
que envolvem a noção de justiça social.

Inicialmente, é necessário ter em vista que Rawls propõe que


sejamos capazes de pensar uma noção de justiça pública afastados de
dogmas filosóficos, morais ou religiosos. Esta forma de pensar a justiça
só seria possível por meio daquilo que o filósofo americano chamou de
“consenso sobreposto”. O conceito indica exatamente o que o próprio

EM CASA lendo a p. 97
Isolad@s

nome aponta: um consenso que se sobrepõe às divergências individuais,


sejam filosóficas, morais ou religiosas.

Um dos exemplos que melhor esboça a noção de é a prática da


tolerância religiosa, pela qual indivíduos que possuem visões religiosas
conflitantes percebem que o mais vantajoso para todos é que essa
divergência não atrapalhe a produção de consensos sobre temas mais
simples ou urgentes, como o pagamento de multas sobre pequenos
delitos, ou a necessidade de estabelecer um tribunal para punir crimes
contra a humanidade.7

Em um contexto pandêmico, pensar em consensos sobrepostos


pode ser de grande valia para a efetivação de medidas públicas para
justiça social. Afinal, diante do pluralismo cultural existente nos países
afetados, tem se mostrado cada vez mais necessária a tomada de
medidas regulatórias uníssonas e sistemáticas. No entanto, o problema
aqui parece ser: como fazer com que pessoas com culturas e
pensamentos tão distintos – e com interesses pessoais muitas vezes

7
Levando em consideração a limitação da aplicação do conceito de justiça como
equidade, a efetivação de tal consenso não se dá sob todas e quaisquer condições, mas
apenas diante daquilo que Rawls chama de ‘pluralismo razoável’. Em seu livro O
liberalismo político, Rawls escreve: “O fato do pluralismo razoável não é uma condição
desafortunada da vida humana, como poderíamos dizer do pluralismo como tal, que
admite doutrinas que não são apenas irracionais, mas absurdas e agressivas. Ao
articular uma concepção política de tal maneira que ela possa conquistar um consenso
sobreposto, não a adaptamos à irracionalidade existente, mas ao fato do pluralismo
razoável, que resulta do exercício livre da razão humana em condições de liberdade”
(RAWLS, O liberalismo político, p. 190)

EM CASA lendo a p. 98
Isolad@s

díspares – ajam de forma coordenada? Como evitar conflitos internos


que envolvem, por exemplo, a aceitação (ou não aceitação) das medidas
de isolamento social?

Para fornecer respostas a esses dilemas, Rawls propõe um


experimento mental que consiste em partir de uma “posição originária”
a respeito da sociedade e, após isso, se perguntar como as pessoas
construiriam a sociedade se a escolha fosse feita por trás do que
chamou de “véu da ignorância” [veil of Ignorance].8 O experimento
mental diz respeito à seguinte questão: o que esperaríamos da
sociedade no que diz respeito à justiça social caso não soubéssemos
como nasceríamos (nossa classe social, gênero, etnia, etc.)?

O véu da ignorância impõe uma série de restrições de


conhecimento às pessoas. Uma vez que as pessoas não soubessem nada
a respeito de si mesmas (ou de suas condições sociais), Rawls acredita
que a escolha do que seria considerado “mais justo” seria feita sob a
ótica do benefício mais geral.9 Ou seja, para evitar possíveis prejuízos e

8
A ideia de “véu da ignorância” é apresentada no Capítulo III da Teoria. A restrição prática
pode ser melhor representada por um modelo abstrato que o próprio Rawls oferece: “O
objetivo é usar a noção de justiça procedimental pura como fundamento da teoria. De
modo algum, devemos anular os efeitos das contingências especificas que colocam os
homens em posição de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e
sociais em seu próprio benefício. Com esse propósito, assumo que as partes se situam
atrás de um véu de ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar
o seu caso particular, e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas
considerações gerais” (RAWLS, 2008, p. 147).
9
É importante ressaltar que tanto a posição originária quanto o véu da ignorância são
artifícios de representação e devem ser considerados como meros experimentos

EM CASA lendo a p. 99
Isolad@s

injustiças contra si mesmas, as pessoas fariam propostas que impactem


no sucesso geral da sociedade e que teriam como consequência bons
níveis efetivos de equidade, justiça e liberdade.

Aproximando dos dilemas que vivemos hoje, e à luz teoria


proposta por Rawls, poderíamos questionar: que políticas sociais para a
COVID-19 defenderíamos (ou rejeitaríamos) caso não soubéssemos a
qual classe social pertenceríamos ao nascer? Qual seria nossa posição
a respeito das políticas de isolamento caso não soubéssemos, por
exemplo, se fazemos parte ou não do grupo de risco, ou se somos
miseráveis, empregados ou grandes empresários? Para Rawls, a
garantia das necessidades básicas formaria a base da justiça social, já
que não teríamos conhecimento sobre como nossas condições de vida.10

mentais, ou seja, “guias para a intuição”, e não situações reais (RAWLS, 2008, p. 149). O
sucesso na consolidação da ideia de posição original e véu da ignorância para a
estrutura básica da sociedade teria como consequência a elaboração de princípios de
justiça equitativa amplamente aceitos, a despeito das diversas concepções de justiça
proveniente das doutrinas filosóficas, morais e religiosas, isto é, uma concepção política
de justiça social.
10
Apesar de sua relevância para a discussão contemporânea sobre política e justiça
social, o núcleo ético do pensamento de Rawls é oriundo de uma tradição mais antiga.
Embora o filósofo não fosse religioso, nota-se que sua filosofia está essencialmente
ligada à “regra de ouro” da tradição judaico-cristã, sintetizada na máxima “não faça com
os outros o que não quer que seja feito com você” (vide Tobias 4:16; Matheus 7:12).
Todavia, apesar das raízes morais da teoria de Rawls, é provável que a presença oculta
da “regra de ouro” em sua proposta não seja derivada de nenhum aspecto religioso, mas
da ética dos deveres de Kant, sobretudo de seu imperativo categórico, tendo em vista a
influência do filósofo alemão sobre o americano. Para mais sobre a influência de Kant
em Rawls, veja Taylor (2011).

EM CASA lendo a p. 100


Isolad@s

De fato, o livro de Rawls é considerado uma das mais claras


justificativas filosóficas para os arranjos institucionais das democracias
liberais. Vários líderes políticos e religiosos no mundo têm abordado os
dilemas apresentados pelo novo coronavírus sob um ponto de vista
muito próximo ao que foi proposto pelo filósofo americano, tendo a
equidade como critério de justiça social para as ações governamentais
relacionadas à pandemia.

Com exceção de raros líderes de Estado, percebemos que as


sociedades ocidentais têm se mobilizado e os governos assumido a
responsabilidade na exigência de medidas de confinamento e
quarentena, em uma tentativa de minimizar a morte e o sofrimento dos
mais vulneráveis. Contudo, algumas situações práticas têm colocado em
xeque o posicionamento ralwsiano. A escassez de respiradores e UTIs
para o tratamento de todos os pacientes, por exemplo, é um desses
casos: afinal, o que fazer diante das limitações de recursos e da
necessidade de ter que escolher entre quem vai receber ou não o
tratamento necessário? Por quem devemos optar?11 Os preceitos liberais
ralwsianos parecem não dar conta de uma possível situação de “escolha
de Sofia” em um contexto pandêmico – e essa parece ser hoje sua maior

11
A possibilidade de agravamento da crise que venha a levar os médicos a terem que
decidir a quem será disponibilizado tratamento adequado parece já ter chegado no
horizonte italiano, conforme indica matéria do jornal O Globo de 13 de março deste ano
(BARIFOUSE, Coronavírus: médicos podem ter de fazer escolha de Sofia por quem vai
viver na Itália, 2020).

EM CASA lendo a p. 101


Isolad@s

limitação –, o que tem feito com que muitos optem por outros olhares
filosóficos quanto às questões que envolvem a relação entre justiça
social e coronavírus.

UMA CONTRAPROPOSTA: A FORÇA DA


COMUNIDADE
olhar rawlsiano para as questões que envolvem justiça social
O não é carente de críticas. Algumas limitações práticas e falta
por vezes sua falta de efetividade – como situações
mencionadas anteriormente – fez com que, desde meados do século
passado, muitos pensadores têm apelado à ideia de “bem-comum” para
apontar uma resposta distinta à teoria de Rawls.12 Um clássico exemplo

12
Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, Michael Walzer são alguns exemplos de
pensadores que abordam a noção de justiça social sob essa ótica. Ainda que a definição
não seja de todo exata, é comum encontrarmos a classificação de tais pensadores como
sendo “comunitaristas”. Will Kylmlicka (2007), um filósofo canadense conhecido por suas
pesquisas sobre multiculturalismo, distingue importantes diferenças entre os autores
ditos comunitaristas, dividindo-os em nostálgicos/conservadores e
saudosistas/progressistas. Os primeiros lamentam o declínio da comunidade como
resultado da crescente ênfase na escolha individual e nos diversos modos de vida, e
tentam resgatar a concepção de bem comum. Possuem, assim, algum ponto de contato
com os conservadores tradicionalistas e podem também ser classificados como
republicanos (ou cívico-republicanismo, nos termos de Michael Sandel). Já os
comunitaristas progressistas tendem a aceitar a liberdade individual e a diversidade,
tomando os laços comunitários como bases para emergência de grupos sociais e novas
subjetividades.

EM CASA lendo a p. 102


Isolad@s

é a visão cívico-republicana de Michael Sandel, apresentada no livro


Liberalism and the limits of Justice (1982).13

Contrário a Rawls, Sandel afirma que a ideia de justiça social não deve
partir de um “vácuo hipotético” – como pressuposto pela “posição
originária” e pelo “véu de ignorância” –, mas estar enraizada em valores
prévios presentes na comunidade. De acordo com Sandel, não é possível
estabelecer uma teoria da justiça tendo como pressuposto a existência
de indivíduos desenraizados, abstratos, sem vínculos com o mundo real
ou livres de qualquer influência histórico-cultural.14 As reflexões sobre
justiça devem levar em conta o papel dos valores e tradições culturais
de cada comunidade e esta, para Sandel, é a maneira mais eficiente de
abordar os problemas práticos relacionados aos desafios de justiça
social.

13
No referido livro, Michael Sandel critica os pressupostos liberais de Rawls e expõe uma
teoria da justiça baseada no “bem comum”, isto é, na noção de que todos derivam sua
identidade da comunidade em geral. Os direitos individuais contam, mas não mais do que
as normas e valores comunitários. A crítica baseada em um “lugar comum” recebeu, à
época, a alcunha de comunitarismo. Todavia, anos depois, em seu livro Democracy
Discontent – America in Search of a Public Philosophy (1996), Sandel modifica algumas
terminologias e, no lugar de se classificar como um comunitarista, prefere o uso do
termo “cívico-republicano”.
14
Um dos elementos centrais da crítica de Sandel à teoria liberal é a compreensão de
um ‘Self desencarnado’. Sandel utiliza essa expressão para se referir à ausência de uma
abordagem da contingência das emoções, valores e traços distintivos de cada indivíduo
e comunidade dentro de uma sociedade democrática justa. Em The Procedural Republic
and the Unencumbered Self (1984), ao descrever a posição original, Sandel sugere que
a autocompreensão do sujeito na teoria liberal pressupõe determinada imagem. “Esta é
a imagem do sujeito desencarnado, um sujeito entendido como anterior e independente
de propósitos e finalidades”. (SANDEL, 1984, p. 87).

EM CASA lendo a p. 103


Isolad@s

Se pensarmos no atual contexto da COVID-19, a proposta de


Sandel levanta importante tópicos a serem pensados, uma vez que a
pandemia atinge em cheio a noção de “comunidade” que normalmente
temos. Somos privados de ir a certos lugares, de frequentar
determinados espaços, de fazer encontros e reuniões grupais. Os
churrascos de fim de semana estão suspensos, as partidas de futebol
não acontecem (e permaneceram um bom tempo ser torcida, mesmo
após o retorno), eventos, shows de música e peças de teatro cancelados.
Mesmo diante disso tudo, privados de nosso contato regular com aquilo
que normalmente chamaríamos de “comunidade”, encontramos fortes
ecos de uma “unidade comum” em nossas ações.

Acompanhando a tendência originada na Europa pelas redes


sociais, brasileiros em quarentena têm combinado de ir às suas janelas
e varandas para saudar e prestar homenagem aos profissionais da linha
de frente de combate ao COVID-19 (profissionais da saúde, limpeza
pública, entregadores, etc.), uma demonstração que pode ser vista como
um reflexo dos alicerces comunitários da noção de justiça social.
Também não foram raras as ações comunitárias para o combate ao
coronavírus, como a produção de máscaras e a ampliação do trabalho
voluntário. Tais manifestações aparentemente corroboram a noção
defendida por Sandel de que há algo mais profundo em nosso conceito

EM CASA lendo a p. 104


Isolad@s

de justiça do que a ideia de um “sujeito atomizado e egoísta” pressuposto


pelas teorias liberais convencionais.15

Todavia, não é somente nas demonstrações públicas de afeto e


cooperação que a ideia de um apelo à comunidade está presente.
Podemos também encontrar traços de uma recorrência à comunidade
em vários discursos políticos durante a pandemia, sobretudo no
pensamento conservador típico da direita americana, na qual a ideia de
comunidade sempre encontrou grande ressonância.16

Para exemplificar esse apelo à comunidade na política


americana, tomemos o discurso do conservador Dan Patrick, vice-
governador republicano do Texas, que afirmou que o resto do país não
deveria se sacrificar pelos idosos. Afinal, conclui Patrick, a ideia de
patriotismo faria com que várias pessoas – como ele próprio, um senhor
de 63 anos de idade – assumissem o risco para que seus filhos e netos
pudessem ter um país melhor para viver. 17

15
Para os liberais tradicionais, a ideia de uma comunidade é normalmente vista como
sendo apenas uma manifestação de uma interseção das teias de interesses que definem
os indivíduos. Por outro lado, tanto a visão cívico-republicana de Sandel quanto à
tradição comunitarista do liberalismo – aos moldes de Walzer e Nancy Frazer – tendem
a afirmar que tais laços são manifestações próprias da comunidade, isto é, um evento
de primazia comunitária.
16
Para exemplificação mais nítida e explicação mais detalhada dessa influência, ver o
livro The Lost Soul of American Politics, de John Patrick Diggins (1984).
17
“Ninguém me procurou e disse: 'Como cidadão sênior, você está disposto a arriscar sua
sobrevivência em troca de manter a América que toda América ama para seus filhos e

EM CASA lendo a p. 105


Isolad@s

Sob a ótica conservadora, “nação”, “patriotismo” e “sacrifício”


seriam valores essenciais compartilhados pela comunidade americana;
logo, serviriam como base de uma noção de justiça social para o
enfrentamento do coronavírus. Um cenário bastante diferente da visão
liberal ralwsiana, como se nota. Todavia, o “auto sacrifício” e a visão
comunitária, observados no discurso de Patrick e em parte da direita
(não só estadunidense, mas em todo globo), possuem no utilitarismo um
forte concorrente filosófico, como veremos na sequência.

A RAZÃO INSTRUMENTAL CAMUFLADA DE


UTILITARISMO
pesar de serem justificativas válidas e bem fundamentadas
A para as ações governamentais de combate à pandemia, o
pensamento universalista de Rawls e o republicano de Sandel
não são os únicos a darem o tom nos discursos políticos.

Em nosso contexto, não é raro encontrarmos defesas explícitas


de um utilitarismo raso, supostamente em prol daquilo que chamam de
“bem comum”, usando um cálculo utilitário superficial para apontar o
que seria uma ação socialmente justa.18 Em partes e de maneira bem

netos? Se essa é a troca, estou dentro” (KNODEL, Jamie. Texas Lt. Gov. Dan Patrick
suggests he, other seniors willing to die to get economy going again. NBC News, 2020).
18
O cálculo utilitário [felicific calculus] idealizado por Bentham em sua obra An
Introduction to the Principles of Morals and Legislation (1789) é aprimorado por John
Stuart Mill em seus escritos. Mill passa a considerar a influência dos sentimentos para

EM CASA lendo a p. 106


Isolad@s

simplista, é em uma suposta premissa utilitária que se baseiam as


afirmações de alguns líderes e governos no combate ao coronavírus.
Notamos isso, por exemplo, nos discursos do presidente Jair Bolsonaro,
quando este afirma que “a economia não pode parar” e que “o remédio
em excesso se torna um veneno”.19 Também notamos fundamento
similar nas afirmações de Donald Trump, quando este diz que “não
podemos ter um remédio pior que a doença".20 Para os simpatizantes do
discurso de ambos os presidentes, seria benéfico que a sociedade
aceitasse algumas mortes com a finalidade de minimizar problemas
maiores, como o enfraquecimento rigoroso da economia e o aumento

realização do cálculo, tais como senso de dever, simpatia, desejo de boa reputação e
mesmo filantropia. Desse modo, Mill reitera que "sentimentos de sociabilidade, o desejo
de estar em união com as demais criaturas" (MILL, 1971, p. 34) são tomados como
princípios de nossa natureza, tão determinantes quanto nossos impulsos antissociais.
Esse aperfeiçoamento em relação às ideias de Bentham e dos utilitaristas predecessores
é o que permite a Mill elaborar a ideia de que a pluralidade de interesses individuais
deixa de constituir um problema à medida que os sujeitos são esclarecidos quanto ao
fato de seus interesses particulares estarem, na verdade, entrelaçados e vinculados aos
interesses da humanidade como um todo. Logo, Mill desenvolve seu argumento em
direção a um determinado "senso de unidade", que poderia ser cultivado não só como
sentimento, mas também como parâmetro para a ação individual e do qual poderiam ser
derivados princípios de força persuasiva e eficácia equivalentes a uma moral religiosa
(Idem, p. 35). O ideal sugerido consiste, portanto, em um indivíduo capaz de agir
orientado não por seus interesses rasos, imediatos, mas por certo "interesse bem
compreendido", irrevogavelmente vinculado ao interesse coletivo
19
EXAME. Bolsonaro diz que colapso não deve acontecer e chama Dória de lunático.
Março de 2020.
20
THE NEW YORK TIMES. Trump Says Coronavirus Cure Cannot ‘Be Worse Than the
Problem Itself’. 23 de março de 2020.

EM CASA lendo a p. 107


Isolad@s

considerável do desemprego.21 Afinal, como diz Bolsonaro, “infelizmente,


algumas mortes terão, paciência”.22

É provável que as propostas de Trump e Bolsonaro talvez não


encontrassem sequer respaldo entre os próprios idealizadores do
utilitarismo filosófico. Tanto Bentham quanto Mill, consagrados como
sendo os pioneiros da teoria utilitarista, rejeitariam a posição de colocar
o dinheiro à frente da vida das pessoas, ou a ideia de opor economia à
saúde pública. Afinal, um cálculo utilitário não se trata de equilibrar
dinheiro e vida, mas de buscar um maior bem-estar e justiça social.
Desse modo, as posições de Bolsonaro e Trump talvez estejam mais
próximas daquilo que os teóricos de Frankfurt chamaram de “razão
instrumental” do que da noção de “cálculo utilitário” proposto pela
corrente utilitarista.

Enxergando a situação sob o prisma de uma razão instrumental


bastante enraizada, Trump e Bolsonaro servem de exemplo claro àquilo
que Adorno e Horkheimer, membros clássicos da Escola de Frankfurt,
apontaram na obra Dialética do Esclarecimento. Para os filósofos,
haveria uma contradição intrínseca ao projeto Iluminista: a
racionalidade, outrora vista como uma possibilidade emancipatória do

21
LINDNER; TURTELI. “Infelizmente algumas mortes terão. Paciência.” diz Bolsonaro ao
pedir o fim do isolamento. 27 de março de 2020.
22
ibidem.

EM CASA lendo a p. 108


Isolad@s

homem, também poderia ser utilizada para fins de alienação do homem


e de toda a natureza.23

Para os teóricos frankfurtianos, a ciência e a filosofia modernas,


em seu esforço de criar um novo paradigma que fosse capaz de dar
conta dos fenômenos naturais, acabaram por reduzir o caráter da
racionalidade a um aspecto puramente instrumental. Logo, todo e
qualquer objeto de conhecimento passa a ser visto de forma
“coisificada”. Dessa forma, quando encontramos discursos utilitaristas
(ainda que superficiais) como os de Trump e Bolsonaro, estamos vendo
o reflexo do pensamento meramente instrumental dimensões humanas
(como a ética e a justiça social, por exemplo) de forma manipulável.
Noutros termos, quando reduzimos o ser humano a um suposto cálculo
utilitário, estamos tomando o ser humano como mero objeto calculável.
Logo, a emancipação humana pelo uso da razão, a grande esperança e
mote do projeto Iluminista, se converte em submissão na medida em que

23
A partir disso, os autores atingem uma aporia que indica precisamente a
indissociabilidade entre o pensamento esclarecido e a possibilidade de regressão: “A
aporia com que nos defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro
objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos dúvida
nenhuma - e nisto consiste nossa petitio principii - de que a liberdade na sociedade é
inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a
mesma clareza que o próprio conceito deste pensamento, tanto quanto as formas
históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém
o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não
acolhe dentro de si a reflexão sobre este elemento regressivo, está selando seu próprio
destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do
progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por
isto, também sua relação com a verdade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1986, p. 13).

EM CASA lendo a p. 109


Isolad@s

o progresso da razão instrumental coincide com a regressão do humano


à categoria de coisa.

Apesar de filosoficamente interessante, parece ser pouco


provável que a sociedade, no atual contexto pandêmico, faça uma
revisão ontológica da racionalidade moderna e de suas mazelas. Isso faz
com que voltemos, mais uma vez, a centralizar nosso debate entre as
teorias éticas que mencionamos no início, a saber, as propostas aos
moldes de Rawls, as contrapropostas republicanas de Sandel e o viés
utilitarista (de forma distorcida) adotado pelos líderes de extrema
direita. Afinal, ao que tudo indica, este parece ser o cenário da discussão
sobre ética e justiça social que enfrentamos desde o início do período
pandêmico.24

24
Cabe mencionar que as abordagens teóricas sobre justiça social mencionadas
aqui não são as únicas correntes econômico-filosóficas que foram colocadas sobre a
mesa durante o período pandemia. A ideia de renda básica universal (ou de cidadania),
por exemplo, vem sendo bastante discutida e suas raízes remontam a Marquês de
Condorcet, Thomas Paine, Charles Fourier, e no próprio Mill, tendo encontrado adeptos
entre Bertrand Russell Milton Friedman, dentre outros. Além da renda básica universal,
a taxação das grandes fortunas também vem sendo amplamente debatida, sendo uma
ideia enraizada no marxismo pós-1950 e no keynesianismo (este último alimenta a ideia
de ampliação do investimento público face à pandemia). O marxismo "tradicional" (ou
ortodoxo) também vem ganhando alguma força, ainda que pequena, no discurso a
respeito das condições de trabalho dos empregados em serviços essenciais e na rejeição
ao consumismo. As ideias de auto-organização tiradas de teóricos anarquistas como
Bakunin, Kropotkin e Murray Bookchin têm inspirado os movimentos sociais, ONGs e
organizações supranacionais (como algumas agências da ONU, em especial a OIT e a
FAO). Obviamente, todas as questões mencionadas acima possuem relevada importância
para pensamos no cenário atual e merecem uma análise qualificada. Todavia, tendo em
vista o espaço disponível para tratamento das questões, optou-se aqui por manter o foco

EM CASA lendo a p. 110


Isolad@s

O QUE ESPERAR?
comum vermos os problemas morais por uma lente utilitária
É e, em seguida, ao encontrar a necessidade de decisões éticas
questionáveis (como a morte de inocentes, por exemplo),
rejeitá-la porque tal lente simplesmente conflita com a regra de ouro
do “não faça com os outros o que não quer que seja feito com você”. Esse
“passo atrás” para com a visão utilitária, contudo, não é postura adotada
por todos, sobretudo em situações de calamidade.

Se tivéssemos certeza que uma recessão econômica futura


provocada pela quarentena da COVID-19 fosse desencadear um estado
de miséria generalizado, é provável que muitos entre nós tentariam
justificar o aliviamento das medidas de proteção adotadas hoje a fim de
promover uma maior “felicidade geral” futura (ou uma “menor
infelicidade”). Seja pelo avanço da transmissão do coronavírus, que
provoca, por exemplo, a difícil escolha entre qual paciente irá viver
mediante a falta de leitos, seja pela necessidade de reabertura do
mercado para equilíbrio econômico, mesmo com o risco de aumento do
número de mortes, o olhar utilitário se apresenta como forte candidato
à justificação filosófica no atual cenário

na discussão a respeito dos fundamentos da justiça social e na análise sobreposta dos


limites do liberalismo rawlsiano, em especial em um contexto pandêmico.

EM CASA lendo a p. 111


Isolad@s

Se os bloqueios comerciais e restrições ao movimento de


pessoas se prolongarem por muito tempo, a razão instrumental
travestida de ideal utilitário, tal como exposto anteriormente,
certamente encontrará campo fértil para se propagar nos discursos
políticos, fundamentando até mesmo medidas antidemocráticas (como
as já tomadas hoje por Orbán na Hungria, por exemplo).

Por enquanto, o que se observa é que os chefes de Estado, em


sua maioria, têm trabalhado no pressuposto de que é dever do governo
proteger a todos. Além disso, seja por um ideal rawlsiano de equidade,
seja pelos valores comunitários latentes, boa parte das pessoas tem
aplicado a regra de ouro ao decidir pelo isolamento social, ajudando na
proteção do grupo de risco da doença. Por ora, a via utilitária oriunda de
um olhar instrumental não tem sido a regra. Resta saber se isso se
efetivará até o final do período de pandemia.

Por fim, podemos ainda nos perguntar: com as medidas de


combate à propagação do COVID-19, os chefes de Estado têm adotado
uma posição de justiça social e solidariedade, ou uma simples e única
posição de proteção econômica de longo prazo? Em outras palavras, ao
adotarem rígidas medidas restritivas, a China e os países europeus o
fazem levando em conta a perda de vidas, ou unicamente levam em
conta estrago econômico que porventura aconteceria em um cenário
posterior? Se a resposta a estas questões não for puramente econômica
e tiver mínimo fundo ético, nada nos impede esticar o cordão e

EM CASA lendo a p. 112


Isolad@s

questionar: se paramos a economia por causa do coronavírus, por que


não deveríamos diminuir a poluição atmosférica (visto que também
representa uma ameaça à vida comum)? Por que não produzimos e
distribuímos alimentos de forma mais equitativa visando ao extermínio
da fome? Se os líderes de Estado estão defendendo medidas de restrição
para proteger vidas, mesmo sob risco de perdas econômicas, o que os
impede de defender medidas menos restritivas para salvar vidas em
outros casos teoricamente mais simples?

Se a COVID-19 e a possível necessidade de uma “escolha de


Sofia” representam triste dilema para a reflexão ética em termos
práticos em meio a pandemia, a revisão da noção de justiça social e sua
extensão para outros casos se apresenta como uma faceta bem mais
otimista para um cenário futuro pós-pandêmico.

REFERÊNCIAS
ADORNO, T.W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Trad. Guido Antonio de Almeida. 2.ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1986.

BARIFOUSE, Rafael. Coronavírus: médicos podem ter de fazer escolha de Sofia por
quem vai viver na Itália. G1. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/13/coronavirus-medicos-
podem-ter-de-fazer-escolha-de-sofia-por-quem-vai-viver-na-italia.ghtml . Acesso
em 30 de abril de 2020.
BENTHAM, Jeremy. "An introduction to the principles of morals and
legislation", in BENTHAM, Jeremy. The principles of morals and legislation, New York,
Hafner Press. 1948.

DIGGINS, John Patrick. The Lost Soul of American Politics. Nova Iorque. Basic Books, Inc.
Publisers, 1984. 366p

EM CASA lendo a p. 113


Isolad@s

EXAME. Bolsonaro diz que colapso não deve acontecer e chama Dória de lunático. 22 de
março de 2020. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-diz-que-
colapso-nao-deve-acontecer-e-chama-doria-de-lunatico/ . Acesso em 30 de abril de
2020.

KNODEL, Jamie. Texas Lt. Gov. Dan Patrick suggests he, other seniors willing to die to
get economy going again. NBC News, 2020. Disponível em:
https://www.nbcnews.com/news/us-news/texas-lt-gov-dan-patrick-suggests-he-
other-seniors-willing-n1167341 . Acesso em 30 de abril de 2020.

KYMLICKA, Will. Community and Multiculturalism. In Goodin, Robert E., Pettit, Philip and
Pogge, Thomas. A Companion to contemporary political philosophy. Vol. II. 2a ed. Cap. 20.
Oxford: Blackwell, 2007.

LINDNER, Julia; TURTELLI, Camila. “Infelizmente algumas mortes terão. Paciência.” diz
Bolsonaro ao pedir o fim do isolamento. Estadão. 27 mar.de 2020. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,infelizmente-algumas-mortes-terao-
paciencia-diz-bolsonaro-ao-pedir-o-fim-do-isolamento,70003250982 . Acesso em 30
de abril de 2020.

MILL, James. Essay on government. In: LIVELY, R.; REES, J. (eds.), Utilitarian logic and
politics, Oxford, Clarendon Press. 1971.

RAWLS, John. O Liberalismo Político. São Paulo. Editora Ática, 2000. 430p.

RAWLS, J. Uma Teoria da Justiça. 3. ed. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins
Fontes, 2008. 764p.

SANDEL, Michael. Liberalism and the limits of justice. 1982.

SANDEL, Michael. Democracy’s Discontent: America's search for a new public philosophy.
Belknap Press. Massachusetts. 1996a

SANDEL, Michael. America's search for a new public philosophy. in The Atlantic Monthly.
Massachusetts. 1996b. pag. 57 – 74

TAYLOR, Robert. Reconstructing Rawls: The Kantian Foundations of Justice as Fairness,


Pennsylvania State University Press, 2011

THE NEW YORK TIMES. Trump Says Coronavirus Cure Cannot ‘Be Worse Than the Problem
Itself’. 23 de março de 2020. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2020/03/23/us/politics/trump-coronavirus-restrictions.html .
Acesso em 30 de abril de 2020.

EM CASA lendo a p. 114


Isolad@s

As próximas 69 páginas são uma produção


coletiva que contempla a concepção estética
dos autores, preservada das garras da
diagramação desta obra como importante
hiato, afinal, contra a farsa da farsa, nada
melhor que a resistência da resistência.
Isolad@s

VICISSITUDES DA PLUTOCRACIA
SEMIDEMOCRÁTICA BRASILEIRA
a cena fascista no cenário Bolsonaro-pandemia

Adolfo Miranda Oleare


Doutorando em Educação pelo PPGE/Ufes,
professor do IFES, pesquisador do Nepefil/Ufes e
organizador do Instituto Diferença Ontológica.
pestrats666@yahoo.com

Hudson Ribeiro
Doutorando em Educação pelo PPGE/Ufes,
professor da SEDU-ES e escritor do Instituto
Diferença Ontológica.
hudsribeiro@hotmail.com

Leidijane Rolim da Silva


Mestranda em Estudos Literários e graduada em
Artes Visuais pela UNIR.
leidijaners@gmail.com

Márcio Vaccari
Professor de História da Escola Monteiro e
chargista.
marciovaccari@yahoo.com.br

Stelio Machado Broseghini


Historiador, músico e pesquisador do Nepefil/Ufes.
steliomb@gmail.com

Vitor Cei
Doutor em Estudos Literários pela UFMG, professor
do DLL/PPGL/Ufes e pesquisador do Instituto
Diferença Ontológica.
vitorcei@gmail.com

EM CASA lendo a p. 116


Isolad@s

Muito já se escreveu a respeito da epidemia do coronavírus – o


que mais eu poderia acrescentar na condição de observador não
especialista munido de um acesso muito limitado a dados?
(ŽIŽEK, 2020).

Existem uns que ao discordar da medicina/ desprezam tudo que


a ciência nos ensina/ trocar ministro da saúde é rotina/ e a cada
dia mais o vírus contamina/ e o gado curva-se à prática
assassina/ do presidente que faz rima tão cretina/ é um
irresponsável que não sabe, mas opina/ a cloroquina não é
vacina nem na China. (KRIEGER, 2020).

EM CASA lendo a p. 117


Isolad@s

1.
O capital dorme no Norte e acorda no Sul.

2.
___________________________________________________________
___________________________________________________________
___________________________________________________________
___________________________________________________________
___________________________________________________________
___________________________________________________________
___________________________________________________________
___________________________________________________________

3.
brasil dois mil e treze
as jornadas desvirtuam
lutas populares

4.
vem dois mil e quatorze
horrores eleitorais
garras da elite

EM CASA lendo a p. 118


Isolad@s

5.
dois mil e dezesseis
golpe rápido a galope
direita farsante

6.
eis dois mil e dezoito
bote da naja fascista
desrazão brutal

7.
dois mil e dezenove
besta fera líder vil
rebanho insano

8.
dois mil e vinte chega
patíbulo pandemia
capital desnudo

9.
O capital? Dorme no Norte e acorda no Sul.
O capital dorme no Norte e acorda no Sul.

EM CASA lendo a p. 119


Isolad@s

O capital? Dorme no Norte e acorda no Sul.


O capital dorme no Norte e acorda no Sul.
O capital? Dorme no Norte e acorda no Sul.
O capital dorme no Norte e acorda no Sul.
O capital? Dorme no Norte e acorda no Sul.
O capital dorme no Norte e acorda no Sul.
O capital dorme no Norte e acorda no Sul.
O capital? Dorme no Norte e acorda no Sul.

10.

EM CASA lendo a p. 120


Isolad@s

11.
Em terras brasileiras, Jair Messias Bolsonaro, eleito
presidente da República em novembro de 2018, faz as
vezes de despertador. Considerado pela crítica política
mundial como um fascista a serviço dos interesses
econômicos estadunidenses, o experimentado político
representa um fenômeno admirável de prestidigitação
psicossocial. Manejando habilmente um estilo chulo de se
comunicar, Bolsonaro destila sem trégua uma pauta moral
eivada de ódio, baseada em justificativas as mais
simplórias possíveis, alheias a qualquer parâmetro
reconhecido pelas comunidades científica e filosófica, e,
pasmemo-nos, capaz de arrebanhar cerca de 30% da
população, incluindo-se aí aquelas parcelas impactadas
material e simbolicamente por suas ações:
desempregados, trabalhadores informais, trabalhadores
uberizados, pobres, mulheres, negros, indígenas,
nordestinos, comunidade LGBTQI – atualmente, doentes de
COVID-19 – entre outros grupos ostensivamente
discriminados.

EM CASA lendo a p. 121


Isolad@s

12.

EM CASA lendo a p. 122


Isolad@s

13.

14.
A tentativa de compreensão do caso tornou comum entre
revolucionários e reformistas de esquerda a pergunta
pelos motivos do sucesso alcançado pelo líder, batizado
pelo conjunto de adoradores como “Mito”. Como explicar a
adesão apaixonada de quase um terço das brasileiras e
dos brasileiros a um político que se mostrou
absolutamente inoperante em 30 anos de mandatos no

EM CASA lendo a p. 123


Isolad@s

poder legislativo (municipal e federal), alguém que se


comporta de modo autoritário, truculento, grosseiro,
arrogante, cínico, violento, moralmente irresponsável, que
demonstra performance intelectual e capacidade
administrativa indiscutivelmente deploráveis, que se
declara antagônico à ciência, aos intelectuais, à agenda
dos direitos humanos e ostensivamente faz apologia à
tortura, ao racismo, à homofobia, ao machismo, ao
abandono social das camadas subalternizadas etc?

15.

16.
Jamais deixou de haver no Brasil escravocrato-
latifundiarista pós-“redemocratização” (1985), cidadãos e
cidadãs saudosos da ditadura militar (1964-1985) – de

EM CASA lendo a p. 124


Isolad@s

modo geral, pessoas extremamente autoritárias ou sem


nenhum senso histórico, teórico, conceitual, logo, sem a
mínima capacidade de interpretar as relações de poder
inerentes ao domínio capitalista.

10+6+1.
Também baratas comemoram vitórias de inseticidas.
Tontas!

18.
Antecedentes - Em 2013, a exemplo das manifestações
populares que vinham ocorrendo desde 2008 em mais de
100 países ao redor do mundo, o acirramento das
contradições inerentes às relações entre Capital e
Trabalho/ Mercadoria e Direitos Sociais ganha expressão
nas ruas de milhares de cidades brasileiras. A partir dos
levantes, intitulados Jornadas de Junho ou Revoltas de
Junho, desloca-se o valor da política nas relações
cotidianas da população. Vem à tona uma polarização
explícita. Surgem nomenclaturas como coxinhas e
mortadelas, designando, respectivamente, manifestantes
de direita e militantes de esquerda. As Jornadas, iniciadas
pelo Movimento Passe Livre, em São Paulo, sob a pauta do

EM CASA lendo a p. 125


Isolad@s

direito à cidade (ênfase na gestão do transporte público),


encenaram as agruras da coadjuvação de conservadores
e progressistas, vigente nos governos do Partido dos
Trabalhadores, desde 2003. “No campo imediato da política,
o sismo introduziu fissuras na perversa aliança entre o que
há de mais atrasado/excludente/prepotente no Brasil e os
impulsos de mudança que conduziram o país na luta contra
a ditadura e o processo de redemocratização; uma aliança
que tem bloqueado o desenvolvimento de um país não
apenas próspero, mas cidadão.” (ROLNIK, 2013, p. 8)

19.
Em 2018, 57,8 milhões de eleitores, influenciados por
notícias falsas e motivados por afetos como ódio e
ressentimento, elegeram um presidente da República que
personifica o machismo, o racismo, o autoritarismo, a
tortura... Em junho de 2020, cerca de 32% da população
considera o desgoverno da barbárie bom ou ótimo. As
mesmas pesquisas mostram que cerca de 46% dos
brasileiros confiam em Bolsonaro. Como esse fenômeno
começou? Poderíamos fazer uma extensa retrospectiva e
dizer que o bolsonarismo surgiu em 1988, quando Jair
Messias Bolsonaro foi eleito vereador no Rio de Janeiro. No

EM CASA lendo a p. 126


Isolad@s

entanto, 2013 foi o ano da virada política deste século. Em


junho de 2013, milhares de pessoas foram às ruas “contra-
tudo-isso-que-está-aí”, bordão que virou uma popular
hashtag entre os ativistas de sofá. Suspostamente contra
a direita e a esquerda, aquela multidão não tinha uma
concepção ética subjacente, tampouco referências
valorativas. Em um raro momento da história do país, as
manifestações de rua foram lotadas por essas pessoas que
repudiavam os movimentos políticos e populares
consolidados e protagonizados pela esquerda. Assim, as
ruas, as redes de ações coletivas e o ativismo digital
passaram a ser liderados por movimentos reacionários,
imperialistas e neofascistas, contraditoriamente “liberais
na economia e conservadores nos costumes”. Em 2018,
uma façanha da equipe de comunicação de Bolsonaro
conseguiu convencer os coxinhas niilistas de 2013 que um
deputado federal com 30 anos de carreira era o candidato
contra isso que está aí, contra tudo e contra todos. Ele
personificou um avatar ou meme antissistema que fez
muito sucesso nas redes sociais. Outros eleitores
passaram a adotar o princípio do mal menor. Para evitar o
mal considerado maior, isto é, a reeleição do PT, aceitaram
discursos antidemocráticos e atitudes neofascistas.

EM CASA lendo a p. 127


Isolad@s

20.

21.
As estratégias e táticas dos bolsonaristas assemelham-se
àquelas dos agitadores fascistas norte-americanos
descritas por Theodor Adorno no ensaio “Teoria freudiana
e o padrão da propaganda fascista”. Eles usam técnicas
manipuladoras e se aproveitam do descontentamento, dos
medos e dos ressentimentos de parcelas da população,
criando inimigos que corporificam a “força do mal” que

EM CASA lendo a p. 128


Isolad@s

deve ser erradicada pelo movimento. No caso dos


antissemitas, o alvo eram os judeus. No caso bolsonarista,
o alvo é o PT ou o comunismo. Em ambos os casos, os
agitadores da turba são financiados por um público cativo,
que inclui Igrejas, grandes corporações, pequenas
empresas, jornais, rádios, canais de televisão, ativistas de
redes e especialistas em produção e viralização de
conteúdos por meio da utilização de bots. Os agitadores
incitam a multidão a acreditar que é organizada como um
Exército ou uma Igreja. Daí a tendência para o uso de
símbolos comuns, como gritos de guerra ou hashtags e
uniformes como a camisa da seleção brasileira de futebol
ou camisetas com o rosto de Bolsonaro. As duas
estratégias centrais, que conjugam as outras, são a
estratégia nostálgica e a estratégia moralista. Seja agindo
de modo complementar ou autonomamente, essas
estratégias têm em comum a intenção de mudar o Brasil –
supostamente livrando-o da corrupção – não somente a
partir de princípios vinculadores arcaicos, como Deus,
Pátria e Família, mas também a partir da tentativa de
reinstauração de princípios mais recentes, mas
igualmente falidos: militarismo e neoliberalismo. Ambas
têm como objetivo salvar o povo brasileiro dos diversos

EM CASA lendo a p. 129


Isolad@s

males supostamente causados pelo comunismo – a


corrupção, o marxismo cultural, o feminismo, a “ditadura
gay” e o bolivarianismo – através da restauração dos
valores morais e religiosos sustentadores da sociedade
brasileira em tempos pregressos, além das instituições às
quais estes mesmos valores estiveram vinculados.

EM CASA lendo a p. 130


Isolad@s

22.
Enquanto o guru Olavo de Carvalho atua na Internet,
usando a retórica do ódio para fomentar a “guerra cultural
bolsonarista” (ROCHA, 2020), a Frente Parlamentar
Evangélica atua no Congresso Nacional, desempenhando
uma função policial, pois o seu principal objetivo é garantir
o acompanhamento e a avaliação de todos os projetos de
lei em tramitação na Câmara Federal a fim de evitar a
aprovação daqueles contrários à moralidade cristã mais
conservadora. Assim, se opõe a temas como Direitos
Humanos, Multiculturalismo, educação sexual,
igualdade racial e de gênero, direito ao aborto, eutanásia,
descriminalização do uso de drogas e casamento civil
entre pessoas do mesmo sexo. E os militares ocupam cada
vez mais cargos no governo. As Forças Armadas servem
ao bolsonarismo, como tropas fiéis, ou servem-se do
bolsonarismo, manipulando-o para alcançar objetivos
próprios? Eis a questão.

EM CASA lendo a p. 131


Isolad@s

23.

24.
Enquanto as entidades científicas de todo o mundo
recomendavam o afastamento social, o bolsonarista
Aloísio Falqueto, infectologista e professor do Centro
Biomédico da Universidade Federal do Espírito Santo, em
manifestação de rua pró-Bolsonaro, ocorrida em Vila Velha
(ES) no dia 3 de maio de 2020, afirmou: “Não existe no
mundo nenhuma prova científica de que esse isolamento
total barra a transmissão de vírus de alta infectividade.
Essa é a verdade, e ponto final.” Após a fala, um dos

EM CASA lendo a p. 132


Isolad@s

animadores do carro de som emendou: “Aqui em Vila Velha


nós temos visto, de hora em hora, ambulância com a sirene
ligada, de fora a fora. Pessoas com coronavírus precisam
tanto assim de ambulância?” Eis a resposta: “de forma
alguma, isso é encenação, isso aí é um desfile político. Não
tem o menor sentido pensar que tem um monte de gente
aí precisando de UTI, de forma alguma.” Jornais
repercutiram, a Associação dos Docentes da Ufes repudiou,
a Reitoria e o CRM rebateram, afirmando ser o afastamento
social necessário para a contenção do contágio.

EM CASA lendo a p. 133


Isolad@s

25.

EM CASA lendo a p. 134


Isolad@s

26. PANDEMÔNIO PANDEMIA I


Pagode do Messias – Eu sou Messias/ Mas não sou o
salvador/ Muito pelo contrário/ Eu promovo muita dor/
Vocês querem/ Que eu conserte o país/ Este navio infeliz/
Tanto tempo à deriva/ Por muitos séculos/ A elite fez o que
bem quis/ Saber onde meto o nariz/ É a minha grande
proeza/ Todos os dias/ O meu guru me ensina/ O mapa da
minha sina/ E de como transformar/ O país em uma latrina/
Os tubarões do alto-mar/ Esfomeados/ Das riquezas da
nação/ Não dão mole pra capitão/ De navio derivado/ Por
isso eu digo a vocês/ com meu errático português: Eu sou
Messias/ Mas não sou o salvador/ Muito pelo contrário/ Eu
promovo muita dor.

27.
Estudo preliminar para a tela Bolsonarismo, luta de
classes e pandemia.

EM CASA lendo a p. 135


Isolad@s

28.

29.
Fazendo as vezes de massa órfã de amor paterno, a horda
bolsonarista vive em estado de desesperada indigência
frente ao risco de perda do líder – cuja inconsequência e
imaturidade psíquica geraram nos últimos meses em torno
de 30 pedidos de impeachment. Trata-se de ininterrupta
antecipação do pânico, conjugada com uma perseverante
resistência a ele. A proteção ao líder representa

EM CASA lendo a p. 136


Isolad@s

autoproteção, justificando uma luta cega pela garantia de


bússola e direção. Segundo a horda paranoica, o mundo
inteiro conspira o tempo todo contra Bolsonaro. É o
comunismo imaginário, desenhado simbolicamente como
inimigo ideal, a criar dificuldades para a defesa de um
pseudo-direito à liberdade – de alguns se colocarem em
rota de colisão com a liberdade de todos, os alheios ao
slogan fundamentalista “Família, Pátria, Deus”.

30.
O bolsonarismo se vale da ideologização tácita de todo e
qualquer discurso alheio à extrema direita como tática de
negação do diálogo, do contraditório, da argumentação e
como justificativa para a trolagem ostensiva. Questão do
gozo no idêntico, eliminando-se a diferença.

31. PANDEMÔNIO PANDEMIA II


Inominável – O que dizer deste momento/ Em que o verbo
tornado carne/ Apodrece sob as atrocidades/ Defecadas
pelas políticas governamentais/ E o silêncio obsequioso e
cúmplice/ Perpetua a barbárie/ Nas novas e empolgadas
gerações/ O que dizer deste momento/ Em que o bom é
aniquilado/ Sumamente pelo mau/ Dos mais diversos

EM CASA lendo a p. 137


Isolad@s

modos/ Cada uma das autoridades/É carrasca tão zelosa/


Que afia suas adagas/ Nas carnes fragilizadas dos
pauperizados/ O que dizer deste momento/ Em que
nenhum sino se dobra/ Para denunciar o genocídio/ Ares
de paisagens e sorrisos cínicos/ Emolduram o quadro
surreal/ O mar que se abre/ Não garante a travessia/
Apenas solidifica o atalho/ Para o desvão abissal.

32. ENTREVISTA I
Professor Emerson Campos, a partir de seus estudos sobre
a Escala F, elaborada por Theodor Adorno e colaboradores
em Estudos sobre a personalidade autoritária, que
avaliação o senhor faz sobre a corrente consideração de
que o bolsonarismo é eivado de características fascistas?
Trata-se de afirmação cientificamente abalizada ou, ao
contrário, não se aplica ao movimento de extrema direita
em curso no Brasil?

Emerson Campos – Partindo de uma análise totalmente


centrada nos estudos de Theodor W. Adorno e seus
colaboradores do Grupo de Berkeley, gostaria de dividir
essa mesma resposta/pergunta em três momentos
históricos muito próximos: a ascensão, a consolidação e o

EM CASA lendo a p. 138


Isolad@s

recrudescimento do bolsonarismo no poder, retomando,


respectivamente, os anos de 2018 e 2019, além deste
sombrio 2020.

No primeiro momento, marcado pela ascensão do


bolsonarismo ao comando do Executivo com as eleições de
2018, qualquer pesquisador que, partindo das categorias da
Escala de Fascismo de Theodor W. Adorno se propusesse a
analisar o discurso anunciado como projeto para o Brasil
pelos bolsonaristas (Bolsonaro, seus filhos e aliados),
diagnosticaria, sem muita dificuldade, que no campo das
ideias se tratava de uma possibilidade potencialmente
fascista – e aqui digo “possibilidade” e “potencialmente”
porque, naquele momento, como não havia ações
coordenadas por esse grupo pelas vias oficiais do Estado
(ainda que houvesse por vias extraoficiais e/ou milicianas),
o projeto fascista era algo apenas latente, que buscava – e
conseguiu – corroboração nas urnas e nas fake news para
se tornar elemento objetivo da prática política.

Chegamos, então, ao segundo momento. Em 2019, com a


posse de Bolsonaro na presidência e de aliados da
extrema-direita em cargos políticos em diferentes

EM CASA lendo a p. 139


Isolad@s

estados, ocupando parte considerável do Executivo e


Legislativo, o projeto fascista passa a figurar no campo das
ações oficiais do Estado – como supramencionado,
legitimado pelas urnas. Porém, paradoxalmente, num
primeiro momento de consolidação, as articulações desse
projeto se tornam menos evidentes, devido a um certo grau
de normalidade – ainda que mínima – que as instituições
públicas trazem às ações dos atores alçados à posição de
“governantes”. Ainda assim, pelas vias das categorias da
Escala F, a análise segue a mesma. No campo discursivo
se trata de um projeto fascista. No campo objetivo, surgem
os primeiros desdobramentos que apontam nessa direção.

Neste terceiro e presente momento, passamos a lidar com


o fator pandemia: um contexto que exige uma postura
democrática mínima para conseguir responder com
alguma qualidade à ameaça do vírus. E é justamente este
contexto que escancara o projeto fascista e a total
indisposição do bolsonarismo ao jogo democrático.
Mirando nosso próprio quintal pela janela, no correr deste
interminável semestre testemunhamos o endurecimento
da “necropolítica” fascista de Jair Bolsonaro, que torna o
Brasil o grande epicentro da Covid-19 no mundo.

EM CASA lendo a p. 140


Isolad@s

Assim, tomando emprestados os estudos sobre a


personalidade autoritária conduzidos por Theodor W.
Adorno e seus colaboradores do Grupo de Berkeley,
sobretudo as nove características principais que compõem
a Escala de Fascismo (convencionalismo; submissão
autoritária; agressividade autoritária; antissubjetividade;
superstição e estereotipia; poder e dureza/rigidez;
destruição e cinismo; projeção; obsessão com sexo e
sexualidade), podemos, cientificamente, numa análise
hermenêutica, comprovar: no campo discursivo, os
posicionamentos de Jair Bolsonaro e de parte considerável
de seus apoiadores demonstram, efetivamente, que
estamos lidando com personalidades antidemocráticas e
fascistas. Repito, pois a análise científica não permite
titubear: estamos lidando com personalidades
antidemocráticas e fascistas.

Conforme Adorno reitera em diferentes momentos de sua


extensa produção bibliográfica, a pressão do mundo
administrado continua a se impor e multiplicar em uma
escala insuportável, impelindo-nos rumo a um sentimento
claustrofóbico que, preservados naquilo que têm de mais
básico os pressupostos objetivos que condicionaram

EM CASA lendo a p. 141


Isolad@s

Auschwitz, tende a se converter novamente em uma


pulsão generalizada de raiva contra a civilização,
culminando em práticas e comportamentos que, a
depender do descompasso histórico (como o que,
lamentavelmente, experimentamos na América Latina
nesta virada de década), podem se alinhar com uma
concepção fascista de mundo. Isso é: justamente em meio
à pandemia do SARS-CoV-2, o perigo do fascismo nunca
nos rondou (nós, latino-americanos) tão proximamente.

33. ENTREVISTA II
Professor Robson Loureiro, como as pesquisas sobre
indústria cultural, desenvolvidas pelo senhor ao longo dos
últimos 25 anos, se colocam no movimento de
interpretação da posição da mídia corporativa brasileira
na construção do bolsonarismo?

Robson Loureiro – Penso que tanto os tradicionais


(impressa escrita, rádio, televisão) quanto os atuais (a
convergência dos tradicionais com a internet) meios de
comunicação de massa, realmente têm tido uma nítida
participação na esfera pública burguesa, desde o século
XVIII (no caso da impressa escrita) e com o surgimento de

EM CASA lendo a p. 142


Isolad@s

uma cultura industrial, no final do XIX e início do XX, a


esfera pública (tudo que circula em termos de informação,
debate, contraposição de ideias, formação de opinião das
massas) passou a ser dominada por uma indústria cultural
que pudesse formar uma massa de indivíduos capazes de
dar conta de minimante compreender, sempre de forma
parcial, a dinâmica da vida social urbana. O Brasil, que é
um país capitalista tardio e periférico, desde sempre
participa desse processo e pode-se mesmo considerar que
da década de 1960 até o final do século passado, a Televisão
foi o principal aparato mediador da esfera pública
burguesa. Por meio dela foi possível eleger Fernando
Collor e Fernando Henrique Cardoso (este por duas vezes).
Sua força integradora é inegável. A dimensão ideológica
dela é fato irrefutável. A Televisão brasileira é uma
formatadora de fantasias, de experiências simbólicas, de
memória histórica. É certo que, à sua revelia – dos meios
de comunicação hegemônicos corporativos – conseguiu-
se fazer com que um projeto de sociedade diferente
(daquele formulado pelas elites retrógradas, reacionárias
e conservadoras de uma ordem social estabelecida, cujo
escopo é manter privilégios e excluir a grande massa da
classe social que vive do trabalho das conquistas sociais)

EM CASA lendo a p. 143


Isolad@s

chegasse ao poder. Mas esse projeto progressista teve que


se adequar à linguagem publicitária desse veículo. Lula I e
Lula II, Dilma I e Dilma II elegeram-se, também, e
principalmente, por conta da estratégia publicitária que
tem a ver com a linguagem que conformava a esfera
pública burguesa televisiva daquele contexto. Nas últimas
eleições, sequer houve um debate entre os dois principais
candidatos. Ainda que o candidato da extrema-direita
tenha se aproveitado, em quase 30 anos como
parlamentar, dessa esfera pública burguesa – pois ele
participava ativamente de programas televisivos – é difícil
afirmar que, de fato, ele recebeu apoio do setor
hegemônico dos media. O que não significa dizer que não
tenha sido favorecido por uma determinada pauta que
desde 2014 começou a fazer parte das principais
manchetes e circular na esfera pública burguesa. Em
especial o combate à militância de esquerda, encabeçado
pelos principais canais de comunicação. Isso de certa
forma fortaleceu e com certeza pode mesmo ter sido um
dos principais fatores que levou à construção da
alternativa à direita. Contudo, as corporações mais
representativas do jornalismo impresso e “midiático”
virtual, não contava com a astúcia dos setores mais

EM CASA lendo a p. 144


Isolad@s

extremistas – representantes do conservadorismo das


denominações evangélicas pentecostais, neopentecostais,
forças armadas (principalmente exército), maçonaria
dentre outros – que, ressentidos com o fato de que havia
uma grande chance de ficarem de fora mais uma vez da
condução do “destino” do país, aproveitaram o vácuo criado
– que tem a ver com o Golpe midiático-parlamentar de 2016
– e apresentaram essa alternativa pela via da extrema
direita, que é o bolsonarismo. A indústria cultural 4.0 lida
com fragmentos ainda menores, pois diz respeito à
nanotecnologia. Em uma sociedade não capitalista, a
indústria cultural, como todo o progresso relativo à
tecnologia, será efetivamente um meio para promover
bem-estar, felicidade, igualdade, justiça social. No atual
contexto, temos que tentar resgatar a fortuna crítica
historicamente acumulada que tratou deste debate no
âmbito das forças progressistas. O bolsonarismo não é
fruto de Bolsonaro. Ele mesmo é uma consequência do
fenômeno. A indústria cultural é um meio de produção
social da dimensão simbólica. Ela nunca vai deixar de
formatar a fantasia, o desejo, a memória histórica, mas, em
uma sociedade não capitalista, é possível que ela sirva
para a libertação e não para a produção e reprodução de

EM CASA lendo a p. 145


Isolad@s

formas alienadas de existência. Por fim, um dos caminhos


possíveis é, por meio da indústria cultural, ampliar as
forças progressistas capazes de não apenas formular, mas
incrementar a esfera pública contra-hegemônica, uma
esfera pública crítico-libertadora. E há inúmeros exemplos
nessa direção: Mídia Ninja, Intercept Brasil etc.
Infelizmente, a indústria cultural 4.0 corporativa detém a
hegemonia do capital e historicamente tem a seu favor
décadas de formatação da dimensão sensível (estética,
dos sentidos). Mas, em algum momento da história recente
do país foi possível romper, por quatro vezes, essa
hegemonia. Nem tudo está perdido: pessimismo da razão.
Otimismo da vontade.

34. CRIMES DE CLASSE I


Crimes de classe – Enquanto o presente trabalho ia se
compondo, duas crianças pretas e pobres foram
assassinadas no Brasil. João Pedro, 14 anos, foi atingido
dentro de sua casa, durante uma operação conjunta das
polícias Civil e Federal, no Complexo do Salgueiro, em São
Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RJ).
Miguel Otávio, 5 anos na cidade do Recife (PE), quando foi
vítima de homicídio culposo de autoria de Sarí Côrte Leal,

EM CASA lendo a p. 146


Isolad@s

primeira-dama de Tamandaré (PE) e patroa de sua mãe.


Miguel foi deixado sozinho por ela no elevador do edifício.
Desorientado, parou no 9º andar, caminhou até um local
destinado a condensadoras de condicionadores de ar e
caiu.

35. CRIMES DE CLASSE II

36. CRIMES DE CLASSE III


Jenifer Gomes chegou bem a fevereiro/ Era vinte
dezenove/ E o mês de zero dois/ Jenifer Gomes tinha só as

EM CASA lendo a p. 147


Isolad@s

onze vezes/ Trezentos e sessenta e cinco/ Kauan Peixoto


conseguiu ir até março/ Era vinte dezenove/ e o mês de
zero três/ Kauan Peixoto tinha apenas duas vezes seis/
Trezentos e sessenta e cinco/ Kauã Rozário não pôde
passar de maio/ Também vinte dezenove/ Era mês de zero
cinco/ Kauã Rozário tinha parcas onze vezes/ Trezentos e
sessenta e cinco/ Marcos Vinícius foi ao meio só dos doze/
Era vinte dezenove/ Pleno mês de zero seis/ Marcos
Vinícius e as quatorze primaveras/ De trezentos e meia e
cinco/ Kauê dos Santos pôs os seus pés em setembro/ Era
vinte dezenove/ Bem no mês de zero nove/ Kauê dos
Santos tinha rélis doze vezes/ Trezentos e sessenta e
cinco/ Ágata Félix vazou logo em setembro/ Era vinte
dezenove/ Também mês de zero nove/ Ágata Félix só tinha
as oito vezes/ Trezentos e sessenta e cinco/ Ketellen
Gomes em novembro foi riscada/ Era vinte dezenove/ O
mês era zero onze/ Ketellen Gomes tinha apenas cinco
vezes/ Trezentos e sessenta e cinco/ João Pedro conseguiu
chegar a maio/ Era um vinte e outro vinte/ Mês exato zero
cinco/ João Pedro tinha só quatorze vezes/ Trezentos e
sessenta e cinco/ Todos eles mortos em crimes de classe/
Praticados pelo Estado/ Baleados por agentes federais e
da civil/ Organismo Oficial de Assassinato Infantil/ Que tem

EM CASA lendo a p. 148


Isolad@s

bala na agulha/ Para agir, zero censura/ Na gestão dos


corpos pobres pretos/ Desse Brasil varonil/ Miguel Otávio/
abandonado do elevador do prédio chique/ pela patroa da
mãe/ primeira dama de Tamandaré (PE)/ Sarí Côrte Real/
saltou do nono andar/ chegou à área aberta das
condensadoras de condicionadores de ar/ e caiu/ pra
nunca mais voltar.

37.

38. PANDEMÔNIO PANDEMIA III


Até agora/ Às 11 horas/ Desse sábado/ Que coloca/ As
manifestações/ De amanhã/ Domingo/ Na berlinda/ O
brazil/ Não me moeu/ Ainda/ Costuma/ Acontecer/ Antes/
Da tarde/ Começar/ O brazil/ Chega/ Potente/ Com força/
Inclemente/ Enfia faca/ Rasga/ Porrada/ Mete rente/ Tira

EM CASA lendo a p. 149


Isolad@s

sangue/ Do nariz/ E de quebra/ Quebra dente/ Pra assim/


O tudo isso/ Se instaurar/ Basta que/ Ao acordar/ Eu abra
já/ No celular/ Uns grupos/ De whatsdown/ A barbárie/
Bazileira/ Do piso/ À cumieira/ Invade/ A casa/ Inteira/ O
seu/ Soco/ É sufoco/ De direita/ A paulada/ É certeira/
Torna cinza/ Toda luz/ Faz chorar/ Alma festeira/ Angústia/
É pra todo/ Lado/ Ansiedade/ No cabra marcado/ Faz leito/
Sem piedade/ O brazilbarbárie/ Barbaridades/ Se desfaz/
A cada ato/ Numa farsa/ De covardes/ Que empurram/
Povo/ E solo/ Pra morte/ Pras enfermidades/ Em troca/ De
privilégios/ Para/ Pequenos colégios/ Promovem-se/
Atrocidades/ Vozes/ De enfrentamento/ Lutam para/
Grafar com s/ O Brasil/ Que o Brasil/ Merece.

39.

EM CASA lendo a p. 150


Isolad@s

40.

41. PANDEMÔNIO PANDEMIA IV


Menino Brasil – O menino Brasil/ sofre atormentado/ por
duas enfermidades brutais/ sem direito a cuidados/ uma é
a insidiosa pandemia/ que transformou nossos dias/ em
noites trágicas e frias/ a outra é mais que doença/ trata-
se da presidência ocupada/ por essezinho tão incapaz/ de
cometer atos nobres/ e se esmera em espezinhar os
pobres/ vomitando incoerências/ e tudo que a soberba
traz/ em seu ventre prepotente/ o povo não é gente/ e

EM CASA lendo a p. 151


Isolad@s

ladra ameaçador/ e morde raivoso a carne da nossa gente/


se é preto na cor/ a mordida é mais raivosa/ a herança
histórica é poderosa/ na graduação do valor/ nem precisa
de prova para atirar/ tempestades de ódios/ que se
espalham fakeados/ e engravidam mentes fragilizadas/
pelos chicletes nos olhos/ cotidianamente aplicados/ com
precisão cirúrgica/tanto que muitos ouvidos já não
escutam/ fascinados pelos prodígios da internet/ todos se
pronunciam barbaridade/ até naquilo que não lhes
compete/ os quinze minutos de fama/ estenderam o seu
espaço/ por tempo indeterminado/ com violenta
selvageria/ o que é jamais seria/ se por um momento o
menino Brasil/ tivesse sido atendido/ na hora de maior
precisão/ quando a vida acenou cordata/ vários caminhos
de respostas/ mas os poderosos fecharam as portas/ com
decretos e resoluções/ para aplacar a saudade/ dos
tempos da escravidão/ os ônibus são como navios
negreiros/ transportando o dia inteiro/ trabalhadores das
senzalas/ rebatizadas de bairros periféricos/ para a casa
grande/ disfarçada de delírios da cidade/ a polícia como
capitães do mato/ caçam os pretos e brancos pobres /
como escravizados fugitivos/ a pandemia revelou o
pandemônio/ que é o país governado por um insano/ alçado

EM CASA lendo a p. 152


Isolad@s

ao poder pela vontade do querer/ dos que defendem o livre


mercado/ o direito de alguns/ ser mais iguais que os
outros/ se é preto na cor/ a mordida é mais raivosa/ nem
precisa de prova para atirar tempestades de ódios/ que se
espalham fakeados/ e engravidam as mentes fragilizadas/
pelos chicletes nos olhos/ cotidianamente aplicados/ com
precisão cirúrgica/ os pouco gordos lá de cima/ chicoteiam
e pisoteiam/ os que vivem cá embaixo/ e a mídia capciosa/
legitima em versos e trovas/ tão escancarado desatino/
pois o destino do Brasil menino/ como navio mal
capitaneado/ deriva atormentado/ por duas enfermidades
brutais/ uma é a pandemia/ que se alastra como fogo em
pradaria/ vitimando avós, pais, mães e filhas/ se é preto na
cor/ a mordida é mais raivosa/ nem precisa de prova para
atirar/ tempestades de ódios/ que se espalham fakeados/
e engravidam as mentes fragilizadas/ pelos chicletes nos
olhos/ cotidianamente aplicados/ com precisão cirúrgica/
e a outra mais que doença/ desafia os que pensam em uma
solução para o país/ e nessa guerra de foice no escuro/
apodrecem o já maduro/ sem que possamos degustar/
terras tão ricas de recursos naturais/ e tão miserável em
riquezas sociais/ vitimadas pela fome dos tubarões/ e pela
tendenciosa indecisão/ dos que vivem sobre o muro.

EM CASA lendo a p. 153


Isolad@s

42.

43. NIETZSCHE I: as colmeias de nosso conhecimento


Nietzsche inicia seu livro Genealogia da moral tratando do
desconhecimento profundo que marca cada um de nós, os
que procuramos conhecer, em relação a nós mesmos. Uma
metáfora lhe serve de paisagem interpretativa: “Nosso
tesouro está onde estão as colmeias do nosso

EM CASA lendo a p. 154


Isolad@s

conhecimento. Estamos sempre a caminho delas, sendo


por natureza criaturas aladas e coletoras do mel do
espírito, tendo no coração apenas um propósito – levar
algo ‘para casa’”.

O período tresloucado que estamos vivendo nos impõe


enigmas com força de esfinge e nos coloca ainda mais
freneticamente à procura das colmeias de nosso
conhecimento. Somos hoje a objetivação do que diz um
personagem de Godard, em Alphaville: “a gente nunca
entende nada e um dia ainda morre por isso”. O que nos é
possível saber sobre o momento? São possíveis análises
de conjuntura e prognósticos não pretensiosos e alheios à
desaconselhável precipitação? Em que medida? Estamos
na virada do século XX para o XXI? 2020 pode ser
considerado um marco histórico? Algo está em mudança?
Tudo permanecerá como antes? A única saída para
entendermos o momento é procurarmos pacientemente
pelas colmeias de nossa verdade histórica, material,
concreta.

EM CASA lendo a p. 155


Isolad@s

44. NOTA MARXISTA


De um ponto de vista marxista, Marina Machado Gouveia
traz à tona as mudanças geopolíticas que vêm impactando
o capitalismo global, as formas de extração de mais-valia
e a luta de classes, demonstrando o equívoco da versão
segundo a qual a economia mundial estava em plena
recuperação e defendendo que a crise não é sanitária, mas
econômico-política. Segundo a economista, o pandemônio
que abateu o mundo a partir de fevereiro de 2020 tem suas
raízes na crise de 2007-2008 e reverbera tanto a guerra
comercial entre EUA e China como a disputa armamentista
entre EUA e Rússia.

Por trás destes traços mais aparentes, está a disputa pela forma
produtiva no mundo: a reconfiguração das relações de produção
com o emprego de inteligência artificial na automatização das
linhas produtivas, que vem sendo liderada pela China. Esta nova
forma produtiva é compatível com a uberização (trabalho
intermitente) como relação de trabalho imposta às parcelas da
classe trabalhador expulsas do emprego estável, seja ele formal
ou informal. Estão por trás dos traços mais visíveis da crise,
portanto, os diferenciais de produtividade entre EUA e China; a
deslocalização das unidades produtivas estadunidenses em
direção à Ásia; a impossibilidade de retomada das taxas de lucro
nos EUA desde a generalização da crise em 2008; a não detenção
pelos EUA de tecnologias fundamentais para a transformação
das relações de trabalho e automatização das linhas de
produção, como o 5g; a centralização de capital. (GOUVÊA, 2020,
p. 20)

EM CASA lendo a p. 156


Isolad@s

A acumulação capitalista move a crise, tendo esta


proporções muito mais amplas do que a simples questão
sanitária, uma vez que estão em xeque os valores que
sustentam o capitalismo contemporâneo. Em sua
complexidade, a crise é civilizatória e abrange as
dimensões econômica, financeira, política, geopolítica,
ambiental e hegemônica.

45. NIETZSCHE II: a degeneração do rebanho bolsonarista


Uma passagem de Nietzsche, encontrada no capítulo
dedicado a Aurora, no Ecce homo, pode sugerir que
Bolsonaro represente o tipo sacerdotal: pela via da
compaixão, investe na degeneração do rebanho,
garantindo assim a própria dominação sobre ele. Em O
anticristo, § 17, Nietzsche constata que os fracos –
justamente aqueles que se reúnem em massas
pasteurizadas e carentes de consistência moral,
intelectual, estética – não se dizem fracos, mas bons. Os
tipos espirituais do sacerdote e do rebanho parecem
compreender o líder e a horda bolsonarista, sobretudo em
seu traço primordial, a saber, o ressentimento. Assim, à luz
de Nietzsche, as motivações do bolsonarismo

EM CASA lendo a p. 157


Isolad@s

anticomunista (e antipetista) corresponderiam ao terreno


da moral escrava, a qual conquista seu germe quando

o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o


ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira
reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária
obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um
triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não
a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato
criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este
necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é
algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer,
para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em
absoluto – sua ação é no fundo reação. (NIETZSCHE, 1998, p. 28)

Nesse sentido, o bolsonarismo pode ser lido como uma


secularização da ficção dualista que desenha na realidade
um deus bom – o dos ressentidos – e um deus mau – o de
seus dominadores. Numa analogia, a demonização do
assim chamado marxismo cultural, pelo bolsonarismo,
reivindicaria para a valoração totalitária na qual se
sustenta o status de bem em si, incondicionado, infinito. A
disposição irreflexiva bolsonarista compara-se, então, à
inconsciência dos metafísicos de toda ordem (religiosos,
cientistas, filósofos, moralistas em geral) em relação aos
próprios ressentimento e ódio à finitude, o que vem

EM CASA lendo a p. 158


Isolad@s

sustentar seus impulsos proto-fascistas de autoritarismo


e totalitarismo.

46. NIETZSCHE III: a esclerose do espírito brasileiro

Em Genealogia da moral, terceira dissertação, seção 26,


Nietzsche faz uma crítica à sociedade de sua época, em
que podemos traçar um paralelo talvez com os
movimentos autoritários e a onda de intolerância que
vemos emergir na atualidade, tanto nos países Europeus
como em especial no Brasil.

Nesse fragmento de sua obra publicada em 1887, Nietzsche


aponta para o esclerosamento do espírito humano,
repudiando a cultura e o espírito decadentes na Europa e
na Alemanha de seu tempo. Nietzsche crítica o
nacionalismo exacerbado como um dos sintomas de uma
sociedade doente. Um dos pressupostos dessa má
alimentação do espírito seria o nacionalismo, a vaidade
nacional do lema “Alemanha, Alemanha acima de tudo”,
primeiro verso de “A canção dos alemães”, de August
Heinrich Hoffmann von Fallersleben. Composta em 1841, se

EM CASA lendo a p. 159


Isolad@s

tornou o hino oficial alemão em 1922, na República de


Weimar e depois foi apropriado como lema pelos nazistas.

Em 2018, patriotas brasileiros que ansiavam por uma


autoridade absoluta, um líder que se afirme como
possuidor de valores supremos e ufanistas, ganharam de
Jair Bolsonaro uma paráfrase do slogan nazista: “Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos”.

Em segundo lugar, Nietzsche aponta outro sintoma desse


mal social, uma paralisia agitante das ideias modernas. Ele
cita uma monstruosa falsificação de ideais que serviam
como álcool para o espírito, algo que torna o ser humano
agitado, com a percepção ofuscada e movido por paixões.
Em um tempo de fake news, pós-verdade, manifestações
antidemocráticas e tentativas de deturpar o sentido da
liberdade de expressão no Brasil, a comparação nos
parece pertinente.

Nietzsche também aponta a Europa como repleta de


agitadores, estimulantes, fantasias heroicas, e “Grandes
Palavras”, pessoas alegando “nobre indignação” em nome

EM CASA lendo a p. 160


Isolad@s

de uma moral, uma “religião do sofrimento”. Em um Brasil


com heróis nacionais, um mito como Presidente da
República e um juiz como “paladino da justiça”; a
necessidade de discursos inflamados de “grandes
palavras” e frases de efeito como “E daí? Eu sou Messias,
mas não faço milagre” e “Acabou, porra!”, para ferver
corações de admiradores; grupos de fanáticos e
terroristas pedindo o fechamento do congresso e o fim das
instituições republicanas, em nome de seus desgostos, em
nome de uma indignação que se traveste de uma carapaça
de causa nobre; e em nome da moral envernizada de
virtudes e valores hipócritas, “bons costumes” e de uma
religião de ódio e ressentimento, não conseguimos deixar
de pensar no quanto atual é essa passagem e talvez toda
a obra de Nietzsche para pensar e refletir o nosso mundo
ainda hoje.

47. FREUD I
Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud investiga
o fato de que o indivíduo, ao participar de um agrupamento
coletivo, isto é, de uma “massa psicológica”, “pensa, sente
e age de modo completamente distinto do esperado”
(FREUD, 2011, p. 17). A definição de massa, a compreensão

EM CASA lendo a p. 161


Isolad@s

sobre seu poder de influenciar a vida psíquica individual e


sobre o estatuto dessa influência são questões
fundamentais para o empreendimento científico do autor.

Uma vez apresentado o problema sobre o qual se


debruçará, Freud delimita o método: buscará, inicialmente,
circunscrever os efeitos das massas sobre os indivíduos,
isto é, as alterações observáveis, pois “toda tentativa de
explicação deve ser precedida pela descrição daquilo a ser
explicado.” (FREUD, 2011, p. 17).

Partimos do fato fundamental de que o indivíduo no interior de


uma massa experimenta, por influência dela, uma mudança
frequentemente profunda de sua atividade anímica. Sua
afetividade é extraordinariamente intensificada, sua capacidade
intelectual claramente diminuída, ambos os processos
apontando, não há dúvida, para um nivelamento com os outros
indivíduos da massa; resultado que só pode ser atingido pela
supressão das inibições instintivas próprias de cada indivíduo e
pela renúncia às peculiares configurações de suas tendências.”
(FREUD, 2011, p. 39).

48. FREUD II
Psicologia das massas e análise do eu desperta analogias.
Afinada ao processo de deslegitimação do bolsonarismo, a
leitura faz Jair Messias Bolsonaro aparecer como o pai
amoroso que une a massa carente de afeto. Na massa, o

EM CASA lendo a p. 162


Isolad@s

indivíduo tem sua afetividade exacerbada e sua atividade


racional arrefecida, além de nivelar-se aos demais
componentes do grupo. Freud procura estabelecer as
razões desse fenômeno, no qual se constitui o fato
fundamental da psicologia social, cuja relevância não se vê
abalada pelo relativo abrandamento que os processos
organizativos das coletividades podem gerar quanto a tais
características. Assumindo perspectiva teórica distinta
daquela adotada pelos psicólogos sociais que
repetidamente cita no livro – como Le Bom e McDougall –,
investe numa posição pela qual alega ter pago um preço
alto: os laços estabelecidos no interior das massas têm o
amor (libido), como fundamento e não a sugestão (ou
sugestionabilidade), como estava estabelecido, ainda que
se carecesse de justificativa conceitual suficiente:

O que constitui o âmago do que chamamos amor é, naturalmente,


o que em geral se designa como amor e é cantado pelos poetas,
o amor entre os sexos para fins de união sexual. Mas não
separamos disso o que partilha igualmente o nome de amor, de
um lado o amor a si mesmo, do outro o amor aos pais e aos filhos,
a amizade e o amor aos seres humanos em geral, e também a
dedicação a objetos concretos e a ideias abstratas. Nossa
justificativa é que a investigação psicanalítica nos ensinou que
todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos
instintuais que nas relações entre os sexos impelem à união
sexual, e que em outras circunstâncias são afastados dessa

EM CASA lendo a p. 163


Isolad@s

meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre


conservam bastante da sua natureza original, o suficiente para
manter sua identidade reconhecível (abnegação, busca de
aproximação). (FREUD, 2011, p. 43).

49. FREUD III


Massa apaixonada, carente de amor paterno, a horda
bolsonarista, então, vive em estado de desespero frente ao
risco de perda do líder. Trata-se de ininterrupta
antecipação do pânico, conjugada com uma perseverante
resistência a ele. A proteção ao líder representa
autoproteção, justificando uma luta cega pela garantia de
bússola e direção. Para a horda, o mundo inteiro conspira
o tempo todo contra Bolsonaro. Nesse sentido, ela luta
contra um comunismo imaginário, desenhado
obsessivamente como inimigo ideal interno e impedimento
à defesa de um suposto direito à liberdade, a partir do qual
se põem ininterruptamente em rota de colisão com a
liberdade de todos. Isolamento social, nessa clave, é
ditadura e coronavírus é criação comunista chinesa para
desestabilizar o governo federal brasileiro.

Freud cita Le Bon, referindo-se a três fatores que fazem


surgir certas características novas naqueles indivíduos

EM CASA lendo a p. 164


Isolad@s

que participam das massas e, consequentemente, passam


a não reprimir os próprios impulsos inconscientes:

O primeiro é que o indivíduo na massa adquire, pelo simples fato


do número, um sentimento de poder invencível que lhe permite
ceder a instintos que, estando só, ele manteria sob controle. E
cederá com tanto mais facilidade a eles, porque, sendo a massa
anônima, e por conseguinte irresponsável, desaparece por
completo o sentimento de responsabilidade que sempre retém
os indivíduos. (FREUD, 2011, p. 17).

Irresponsabilidade moral, anti-intelectualismo e apego


dogmático à bandeira “Deus, Pátria e Família”
caracterizam a ideologização tácita, para pronta entrega,
exercida pelo bolsonarismo em resposta a todo e qualquer
discurso alheio aos marcos culturais da extrema direita,
como tática de negação do diálogo, do contraditório, da
argumentação e como justificativa para a trolagem
ostensiva.

EM CASA lendo a p. 165


Isolad@s

50. E SE BOLSONARO MORRESSE DE CORONAVÍRUS?

Tuítes póstumos de um herói nacional, lançado no dia 31 de


março de 2020, foi o primeiro livro de ficção publicado no
Brasil a mencionar a pandemia do coronavírus SARS-CoV-
2. O defunto autor Messias Botnaro, protagonista, narrador
e pseudônimo de escritor não identificado, foi o primeiro
personagem ficcional da história da literatura brasileira a
morrer por causa do COVID-19: “Agradeço ao COVID-19 por
estar morto e a vocês que oraram por mim nos momentos
mais difíceis” (BOTNARO, 2020, p. 8).

EM CASA lendo a p. 166


Isolad@s

O livro de 72 páginas, publicado pela fictícia editora


Alliance for Brazil Press, compõe-se de três capítulos com
38 tuítes de 280 caracteres cada. Além do conteúdo
textual carregado de ironia, o e-book Tuítes póstumos de
um herói nacional traz uma carga de forte apelo visual
somada ao texto.

A começar pela capa, logo avista-se o reconhecido


símbolo nacional brasileiro ultimamente tão em voga fora
dos contextos de torcida da seleção brasileira de futebol,
a bandeira, ou melhor, uma releitura dela – não temos a
imagem de uma bandeira inteira, mas um recorte da
mesma, sendo mantida suas formas e cores. Visual
semelhante ao da Constituição da República Federativa
do Brasil, de 1988.

Enquanto a fórmula triangular da Constituição aponta


para cima, no livro de Botnaro a forma piramidal aponta
para baixo, numa inversão significativa de configuração e
contexto.

EM CASA lendo a p. 167


Isolad@s

Levando em conta a conjuntura, pode-se arriscar uma


leitura a partir da mudança de orientação desse
triângulo. Sendo a Constituição uma legislação que visa a

EM CASA lendo a p. 168


Isolad@s

reger o bem estar mútuo de uma população, o seu


triângulo ao apontar para cima sugere um sentido
positivo, de elevação, enquanto o contrário desloca os
signos para o seu extremo oposto, que pode ser lido num
sentido negativo, voltado para baixo, ou seja, temos um
país em decadência. A forma que sempre representou a
riqueza chafurda numa pobreza em doses diárias.

Onde deveria estar a esfera do infinito azul celestial, jaz


a forma viral que assola o país. Neste momento, o país
sofre simultaneamente com a pandemia e com um
desgoverno que torna o cenário ainda mais doentio e
fúnebre. O verde pesado e as partículas circulares
instigam a refletir no fenômeno ufanista tão virulento e
oriundo das frases de efeito disseminadas nas redes
sociais e nas demais mídias que contribuíram para a
eleição do senhor que atualmente ocupa a presidência. E
seu efeito se assemelha a um processo de infecção que
alastra formas de “pensar” acompanhado de um
engajamento destrutivo, imbuído de violência e posturas
agressivas que outrora seriam criticadas.

EM CASA lendo a p. 169


Isolad@s

Diferentemente da maioria dos livros, que seguem o


modelo tradicional do alinhamento justificado, os tuítes
estão todos alinhados à esquerda, de acordo com o layout
da rede social.

Em sites, o alinhamento justificado não ocorre por


questões estéticas, pois o justificado deixa buracos no
texto, e o uso do hífen não faria sentido quando utilizada
a justificação à esquerda, considerando que a margem
direita não se restringe rigidamente a uma limitação
retilínea. O uso comum na web é o do alinhamento à
esquerda, e Tuítes também assimila esses detalhes.

Ao adentrarmos o livro, encontramos páginas


preenchidas com elementos próximos da visualidade da
rede social Twitter: a tipografia é semelhante à da rede,
imitando os pesos e cores. Os marcadores de capítulo, por
sua vez, estourando o fundo em azul, insistem na
lembrança da cor adotada pela rede social. Os títulos dos
marcadores em tamanho exagerado, a ponto de caberem
nas margens da página, perseguem a intenção do
fragmento. E podemos pensar no modo de defender uma
ideia exageradamente ou num tom de voz alterado para

EM CASA lendo a p. 170


Isolad@s

defendê-la. Faz sentido se lembrarmos como se expressa


o atual presidente.

Ao prosseguir a leitura logo se percebe a incompatibilidade


com os gêneros literários conhecidos: não é conto,
romance ou ensaio. Os tuítes não têm um enredo
sequencial com início, meio e fim. Cada capítulo se mostra
desligado um do outro, além de deterem estilos distintos
em cada tuíte – descritivos, oníricos, especulativos,
narrativos, chulos, eruditos, pornográficos, agressivos. A
obra contempla, ao mesmo tempo, várias e nenhuma
narrativa. De acordo com Joseíta Pítia, psicógrafa (fictícia)
e prefaciadora do livro:

Na fragmentação formal de um ziguezague de três capítulos com


38 tuítes de 280 caracteres cada, que impossibilitam uma
linguagem plena e um sentido totalizante, a potência do narrador
afirma-se pela concentração da obra em sua própria pessoa.
Contando a sua história, sem começo nem fim, Messias Botnaro
absorve-a em si mesmo, renunciando ao distanciamento e
interiorizando intensamente o heroísmo sobre o qual discorre.
Nesse movimento, sua memória individual aponta elementos
referentes a uma coletividade (PÍTIA, 2020, p. 5).

Como reconhece a psicógrafa de Botnaro, a narrativa não


tem um fio condutor ou um pivô em torno do qual se

EM CASA lendo a p. 171


Isolad@s

estendem as ramificações provenientes de um núcleo


centralizador. Há uma sensação de aparente falta de
sentido entre as partes, como se não estivessem
relacionadas. Uma parte não continua o enredo da anterior
(quando há enredo).

Messias Botnaro se apropria seletivamente do discurso


bolsonarista, satirizando a retórica do ódio defendida por
Jair Messias Bolsonaro e seus asseclas. Recusando o valor
romântico da originalidade, mas assumindo uma posição
narrativa que pode ser considerada arrogante, Botnaro
afirmou em seu perfil no Twitter, no dia 04 de abril de 2020,
que a poética da emulação de João Cezar de Castro Rocha
(2013) é sua inspiração teórica. Ao recorrer à estratégia
clássica da aemulatio, ele pratica anacronismo e plágio
deliberados:

Aqui no reino escuro eu encontrei Orvalho de Farfalho, o filósofo


dos filósofos, um dos mais originais e audaciosos pensadores de
todos os tempos, que já estava cá. Ele me apresentou a Homero,
Platão, Michel de Montaigne, Friedrich Schlegel, Friedrich
Schiller, Arthur Schopenhauer, Adam Mickiewicz, Casimiro de
Abreu, Charles Baudelaire, Machado de Assis, Sigmund Freud,
João Guimarães Rosa, Murilo Mendes e Gilles Deleuze, inclusive
aos comunistas Jorge Amado, Félix Guattari e José Saramago.
Todos eles me ajudaram a escrever, pois aqui não há sujeito,
apenas agenciamentos coletivos de enunciação. Neste eterno

EM CASA lendo a p. 172


Isolad@s

país misterioso nós não somos prisioneiros de relações


ideológicas ou de preocupações mesquinhas com direitos
autorais. Ideologia não, ideias sim. Todos nós falamos a mesma
língua, somos máquinas coletivas de expressão. Se pôde lê-los,
vê a intertextualidade. Se os conhece, repara na emulação.
Senão, larga de frescura nessa questão. Vamos parar com essa
história, essa bobeira. Leia o livro. (BOTNARO, 2020, p. 11).

Botnaro não admite, mas ele também emula o Pierre


Menard de Jorge Luis Borges, que copiou palavra por
palavra o Dom Quixote de Cervantes. Essa técnica do
anacronismo deliberado, de acordo com Castro Rocha
(2013), remonta às obras de Luciano de Samósata e
Machado de Assis, que exigem do leitor o reconhecimento
das referências e dos autores imitados ou parodiados, sob
pena de ser incapaz de apreciar e compreender suas obras
em toda sua completude. Longe da genialidade de seus
modelos, Messias Botnaro se coloca como leitor das
tradições literária e filosófica, não para copiá-las
mecanicamente, nem para reverenciá-las servilmente,
mas para costurá-las em citações de falas e tuítes de Jair
Bolsonaro, de seus filhos, ministros, secretários e
seguidores:

EM CASA lendo a p. 173


Isolad@s

Os livros hoje em dia, como regra, é um montão, um amontoado


de coisa escrita... Muita coisa escrita, tem que suavizar. Textos
compridos quadram melhor a leitores pesadões, doutrinados por
Paulo Freire. Este livro é feito por nós, com um mínimo de
literatura para um máximo de honestidade. Curto e grosso, no
bom sentido: pouco texto, larga margem e layout moderno. Em
anexo, o hino nacional. O país vibrará com nossa literatura
heroica e patriota, dotada de uma grande capacidade de
envolvimento emocional e igualmente imperativa, pois está
profundamente ligada às nossas aspirações mais urgentes.
(BOTNARO, 2020, p. 12).

EM CASA lendo a p. 174


Isolad@s

Se Machado de Assis fez um tratamento paródico da


tradição, tornando-se “copista original” (ROCHA, 2013, p.
330), o autor de Tuítes póstumos de um herói nacional
incorpora a retórica do ódio bolsonarista-olavista em
chave paródica e busca superá-la.

A opinião do narrador em relação a si mesmo é traiçoeira,


por emular o engenho retórico apresentado por Machado
de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas: a
formulação de uma perspectiva deve municiar a que lhe é
contrária, com desculpas que culpam e atenuantes que
agravam, “elogios que incriminam e justificações que
condenam” (SCHWARZ, 2000, p. 115).

Se o leitor for um esclarecido defensor dos Direitos


Humanos, o texto de Botnaro poderá reafirmar seu repúdio
à barbárie neofascista e, talvez, estimular a reflexão do
contraditório pela criação estética. Em alguns casos, o
leitor crítico poderá rejeitar o texto de antemão, ou por
asco ou por achar que se trata de adesão ao bolsonarismo.
E o discurso de Botnaro realmente pode ser mal lido como
uma apologia do bolsonarismo – o que ocorre com

EM CASA lendo a p. 175


Isolad@s

frequência, como comprovam as dezenas de seguidores


bolsonaristas de @MBotnaro no Twitter.

No atual contexto de pandemia agravada pela “guerra


cultural bolsonarista” (ROCHA, 2020), o Presidente Jair
Bolsonaro e o escritor Olavo de Carvalho negam a
gravidade da crise e se mostram preocupados com as
medidas de restrição à circulação e militarização do
espaço público adotadas pelos governos estaduais, ainda
que contraditoriamente o primeiro seja um defensor do
autoritarismo militar e o segundo seja o guru do primeiro.

Messias Botnaro e seu parceiro Orvalho de Farfalho, ao


personificarem vivências dos indivíduos que protagonizam
a barbárie atual, reelaboram o absurdo que eles
representam para fazer sátira. Essa atitude humorística
tem a capacidade de criar e adotar novas e inesperadas
perspectivas a partir do qual a ameaçadora guerra cultural
bolsonarista pode ser combatida: “se der certo,
@MBotnaro será venerado!”, afirmou João Cezar de Castro
Rocha em seu perfil no Twitter, no dia 01 de junho de 2020.
.

EM CASA lendo a p. 176


Isolad@s

Ao concluir a leitura, lembramos que desde Mallarmé os


escritores não são apenas autores de textos, mas do livro
inteiro. Outrora o corpo do livro servia apenas para
carregar o conteúdo. Hoje sabemos que o design do livro
também faz parte do conteúdo, pois comunica com suas
partes pré-textuais, pós-textuais, capa, formato e
orientação das páginas. Ou seja, podemos ler todo o
objeto como texto, pois suas partes todas são signos.
Sendo assim, os paratextos de Tuítes parecem estar

EM CASA lendo a p. 177


Isolad@s

dentro desse novo conceito de livros/e-books. O sumário


está desmembrado pela página e a seção de créditos cria
uma textura tipográfica com os pseudônimos dos
participantes da elaboração de Tuítes separados pelo
símbolo comum na linguagem web, o underline, este
presente em vários momentos do livro, mas seu uso
também poderia insinuar junto ao azul algo que está
sendo digitado, editado, em seleção algo em devir.

EM CASA lendo a p. 178


Isolad@s

51. UMA BOA IDEIA: DISGRASSA


(Adolfo Oleare/ Isadora Machado/ Jorge Nascimento)

fio fino de nada


sem asa sem vaga
é o cerco fechando
na hora bastarda
pobreza dureza
desaventurada
estrela encolhida
desiluminada

É o bicho que pega


o vírus que entrega
que esfrega na cara
ou com ou sem capa
a máscara masca
nas faces do limbo
o peso empaca
nos lombos de sempre

vapor de presente
mal resiliente

EM CASA lendo a p. 179


Isolad@s

facada no tempo
do será da gente
na tinta da pele
a grimpa da febre
assopra catrinas
na vela da lebre

calafrio mórbido
pútrido estripo
expele o que insiste
agônico em riste

corpo febril
corpo fabril
corpo covil
corpo nihil

EM CASA lendo a p. 180


Isolad@s

REFERÊNCIAS

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Virginia Costa, Francisco Corrêa e Carlos Pissardo. São Paulo: Editora
Unesp, 2019.

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Verlaine Freitas. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

ALPHAVILLE. Direção: Jean-Luc Godard. França: Athos Films, 1965.

BORGES, Jorge. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 2001.

BOTNARO, Messias. Tuítes póstumos de um herói nacional. Washington,


D.C.: Alliance for Brazil Press, 2020.

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Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

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David G. (orgs). O que resta das jornadas de junho. Porto Alegre: Editora
Fi, 2017.

FLECK, Isabel. A irresponsabilidade no limite: Bolsonaro orienta que


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12 jun. 2020. Disponível em:
<https://www.huffpostbrasil.com/entry/bolsonaropopulacao-invadir-
hospitais_br_5ee380c7c5b6f2cb034fd7b4>. Acesso em: 03 jul. 2020.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos


(1920-1923). Trad. Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

GOUVÊA, Marina Machado. A culpa da crise não é do vírus. In: GOUVÊA,


Rachel; MOREIRA, Eliane. Em tempos de pandemia. Rio de Janeiro: UFRJ,
Escola de Serviço Social, 2020.

EM CASA lendo a p. 181


Isolad@s

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ROCHA, João Cezar de Castro. Introdução a ‘Guerra Cultural Bolsonarista


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ROCHA, João Cezar de Castro. A Guerra Cultural Bolsonarista (em 7


partes). YouTube, 23 abr. 2020. Disponível em:

<https://www.youtube.com/vitorcei>. Acesso em: 08 jul. 2020.

EM CASA lendo a p. 182


Isolad@s

ROLNIK, Raquel. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas


interpretações. In: VAINER, Carlos et al. Cidades Rebeldes: Passe livre e
as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo,
2013.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de


Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

UOL. Ministro interino da Saúde chama Porto Velho de estado. Rondo


Notícias, Porto Velho, 13 jun. 2020. Disponível em:
<http://www.rondonoticias.com.br/noticia/politica/40538/ministro-
interino-da-saude-chama-porto-velho-de-estado>. Acesso em: 07 jul.
2020.

ŽIŽEK, Slavoj. Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo.


Tradução: Artur Renzo. São Paulo: Boitempo, 2020.

EM CASA lendo a p. 183


Isolad@s

ENSINO REMOTO EMERGENCIAL


OU AVALIATIVO (ERE⇌ERA):
EXPROPRIAÇÃO CAPITALISTA E
UNIVERSIDADE PÚBLICA EM
TEMPOS DE PANDEMIA
Luciana Azevedo Rodrigues
Realizou pós-doutorado em Filosofia da Educação na
Universidade de Leipzig. É doutora em Educação pela
Universidade Federal de São Carlos. Professora na
Universidade Federal de Lavras.
luazevedo@ufla.br

Márcio Norberto Farias


Realizou pós-doutorado em Filosofia da Educação na
Universidade de Leipzig. Doutor em Sociologia pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho/Campus Araraquara. Professor da
Universidade Federal de Lavras.
marxio@gmail.com

EM CASA lendo a p. 184


Isolad@s

untamente com a pandemia de Covid-19, outra ameaça tem


J rondado a universidade pública. Embora não seja nova,
tornou-se mais destrutiva com a necessidade de
distanciamento social, espalhando-se com mais tenacidade nos últimos
meses. Trata-se da velha e violenta expropriação capitalista que
penetra ainda mais fortemente na relação professor/a-estudante, no
processo de ensino-aprendizagem, desencantando-os e marcando-os
ainda mais com a impessoalidade, o cálculo e a burocratização dentro
de um determinado modelo de retomada do calendário letivo de ensino
em meio a pandemia de Covid-19, chamado de Estudos Remotos
Emergenciais (ERE).

Considera-se neste ensaio que a conversão dos trabalhadores


da terra em massas destinadas às chamadas manufaturas inglesas dos
séculos XVII e XVIII, descrita por Marx (1983), ecoa na atual fase do
capitalismo, onde foram colocados em funcionamento mecanismos de
homogeneização do trabalho pedagógico, e de distanciamento entre
professores, professoras, estudantes e um tempo comum para
interação, diálogo, interlocução entre si, um tempo que pode levar ao
pensar e imaginar juntos possibilidades de outras formas de existência.

Não se trata apenas da aula e, por isso, não se trata de um


assunto apenas da graduação, mas também da pesquisa e da extensão
com seus estudos, leituras e experimentações, ensaios diversos em
grupo.

EM CASA lendo a p. 185


Isolad@s

Portanto, é urgente se interrogar se o esvaziamento necessário


do espaço físico da sala de aula que historicamente foi palco de
interlocuções entre pessoas diversas precisa ser acompanhado do
esvanecimento do tempo comum que também aquele espaço.

Pois, sem este tempo comum, social, singular para a


interlocução, a imaginação coletiva e a promoção das diferenças,
professores, professoras e estudantes correm o risco de se perderem
no sucedâneo da produção e consumo em massa de lives, podcast, e-
mails, e nas mais diversas formas de interações chamadas assíncronas,
ou seja, que permitem acesso isolado, sem fim à qualquer tempo.

É neste sentido que o desenraizamento dos trabalhadores das


terras, descrito por Marx, é lembrado aqui como eco de um processo
multifacetado que tem progressivamente retirado de professores e
estudantes o domínio do ritmo de seus trabalhos e estudos.
Compreende-se que o Estudo Remoto Emergencial aqui abordado não
passa de um dos vários instrumentos que servem a tal processo. Com o
intuito de desenvolver este argumento, é evidenciada a sanha avaliativa
que configura o referido estudo por meio da abordagem de três dos seus
componentes, a saber:

 O Roteiro elaborado pelo/a docente, mais conhecido por REO –


Roteiro de Estudos Orientados;

EM CASA lendo a p. 186


Isolad@s

 O pré-estabelecimento de prazos pelas instâncias


administrativas da instituição para as produções realizadas no
processo de ensino aprendizagem;
 E a entrega regular de "produtos".

O monitoramento constante de equipes técnicas e


administrativas destes componentes – roteiro, prazo e produto – é um
dos indícios que leva este ensaio a apontar que o Ensino Remoto
Emergencial chamado de ERE possui muito mais um papel de Ensino
Remoto Avaliativo – ERA. Isto é, com a justificativa de socorrer o
processo de ensino-aprendizagem, o referido modelo de ensino tende a
isolar professores de estudantes, tornando-os presas ainda mais fáceis
dos conglomerados educacionais dos diferentes campos do
conhecimento.

Para desvelar o ERE como ERA, além de ressaltar os


componentes já referidos, se assenta no vivido pelos autores como
professores dentro dos encontros realizados durante Ensino Remoto
Emergencial, refletindo-o à luz do pensamento de Marx, Adorno e C.
Türcke.

ERA UMA VEZ O ERE

os últimos dois meses, o modelo de Estudo Remoto


N Emergencial discutido neste ensaio foi colocado em prática em

EM CASA lendo a p. 187


Isolad@s

uma universidade pública como estratégia de retomar o calendário


letivo no primeiro semestre de 2020. Tal modelo se propôs estabelecer
a rotina de trabalho e de estudos de docentes e discentes, por meio da
elaboração semanal ou quinzenal de Roteiros de Estudos Orientados por
parte de docentes e o cumprimento dos mesmos por parte dos/as
discentes com a entrega de produtos inseridos nas plataformas de aulas
virtuais passíveis de monitoramento por parte de setores técnicos
administrativos institucionais.

Nas linhas que se seguem, pode-se acompanhar tanto o que foi


vivido como o que foi pensado pelos próprios autores-professores sobre
os encontros virtuais, realizados e gravados entre estudantes e
professores dentro do modelo de Ensino Remoto Emergencial.

ENCONTROS DE ESTUDOS ENTRE ESTUDANTES E


PROFESSORES

s encontros realizados com os/as estudantes via a plataforma


O Google Meet, foram considerados dentro do modelo de ERE
uma das possibilidades de "interação" entre professores e
estudantes para abordar os Roteiros de Estudos Orientados previstos
para execução semanal ou quinzenal.

EM CASA lendo a p. 188


Isolad@s

No início, até houve uma disposição dos discente para


interagirem com os docentes que abriam suas câmeras e microfones
para falar sobre os conteúdos a serem estudados e os produtos a serem
produzidos dentro dos referidos roteiros. Com o apelo docente pela
partilha de telas, os primeiros encontros acenaram que era possível
"interagir" quando alguns poucos ousavam nesta direção. Mas com o
passar das semanas, a atmosfera social e a sensação de estar dividindo
um tempo de vida sobre algo com outras pessoas foi diminuindo
paulatinamente.

A quantidade de participantes nos encontros virtuais também


se tornou bem inferior à de matriculados/as na disciplina, e mesmo
aqueles que se faziam presentes insistiam em manter fechadas suas
câmeras e microfones, preferindo apresentar raramente questões ou
observações apenas via chat de bate-papo.

Mesmo diante de inúmeras dúvidas, os encontros prosseguiram


interrogando cada vez mais o/a docente sobre a participação destituída
de corpos e de vozes em diálogo, no contexto em que a tecnologia
disponível para ver e ser visto pelas telas eletrônicas tem sido possível
com a captura de imagem e som ao vivo.

Neste processo, a carência das imagens dos estudantes na tela


que se transformou no espaço da sala de aula dava mostras de impactar

EM CASA lendo a p. 189


Isolad@s

também na carência de imagens de pensamento e na abordagem


coletiva dos conteúdos. Professores sentiram e continuam sentindo a
ausência de estudantes e alguns testemunhos discentes apontam sentir
a ausência dos/as professores. Mas o maior abalo talvez apareça
quando este reconhecimento já tiver sido minado e quando a vinculação
entre eles já estiver sido desfeita.

Marx (1983), que de acordo com Dardot e Laval (2016), conseguiu


como nenhum outro pensador mostrar o capitalismo como destruidor de
vínculos sociais, pode ser, sem dúvida alguma, mais uma vez lembrado
neste contexto. Especialmente em seu escrito "A chamada acumulação
primitiva", pode-se ler:

O sistema capitalista pressupõe a dissociação


entre os trabalhadores e a propriedade dos meios
pelos quais realizam o trabalho. Quando a
produção capitalista se torna independente, não
se limita a manter essa dissociação, mas a
reproduzir em escala cada vez maior (MARX, 1994,
p. 830).

Se se considera que professores e professoras têm atuado


separadamente dos estudantes e praticado preferentemente formas de
ensino assíncrono, em que a presença de um dispensa a do outro, pode-
se dizer que o processo em curso corresponde a um tipo hodierno
daquela dissociação reproduzida com o capitalismo. E isso ocorre depois
que o Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

EM CASA lendo a p. 190


Isolad@s

(Reuni) ampliou suas vagas e expandiu cursos de formação docente em


associação com a pesquisa e a extensão.

Face a tal processo, muitas vagas que passaram a ser ocupadas


por estudantes universitários provenientes de condições
economicamente desfavorecidas, especialmente a partir de 2010, se
tornam ociosas, pois eles encontram obstáculos para continuar seus
estudos sem os equipamentos e recursos/bolsas antes disponibilizados
no espaço da universidade. No lugar dos meios, espaços de estudo, salas,
espaços laboratoriais diversos e computadores conectados em rede, o
que tais estudantes passam a dispor é da "opção" de cancelamento das
matrículas nas disciplinas ou, então, o trancamento dos cursos
regulares, o que coloca sobre seus ombros a tomada de decisão,
penalizando-os ainda mais.

ENCONTROS GRAVADOS

s gravações produzidas nos encontros entre professores e


A estudantes para serem disponibilizadas na própria
plataforma Google Meet merecem aqui atenção. Pois
aqueles/as estudantes que não tivessem como acessar a plataforma
digital durante os encontros para cumprir com as atividades propostas
no Roteiro de Estudos Orientados, poderiam fazê-lo, sem prejuízos,
noutro momento. O que se suspeita é que as gravações exerceram e

EM CASA lendo a p. 191


Isolad@s

exercem um efeito retroativo sobre a relação entre professores e


estudantes, sobre a atenção que os/as estudantes e docentes dedicam
aos que fazem e estudam, no contexto de intensificação do produtivismo
e consumismo acadêmico, que acompanha o modelo de produção
capitalista, mesmo em tempos de pandemia.

Ao apresentar esta suposição, este ensaio se fundamenta no


pensamento do filósofo contemporâneo C. Türcke (2016) sobre a
dessedimentação da atenção tipicamente humana, especialmente sua
compreensão de que a prática da multitarefa requerida com a cultura
high-tech tem feito com que as pessoas pratiquem uma atenção
negligente, ao passo que alteram cada vez mais rápido o foco de sua
atenção de um objeto para outro e apresentam dificuldades de se
prender a algo por muito tempo para descobrir muito mais e,
especialmente, formar memórias.

Um processo que faz progredir a substituição da experiência por


um estado informativo pontual desconectado que pode ser substituído
facilmente, assim como tornar aqueles que o vivenciam facilmente
substituíveis, o que, infelizmente, demonstra a atualidade do
pensamento de Adorno em sua "Teoria da Semiformação" (2010), pois faz
progredir condições que tornam professores e professoras sem
experiências, que se distinguem cada vez menos, e que ao serem
homogeneizados/as podem ser muito mais facilmente substituídos/as.

EM CASA lendo a p. 192


Isolad@s

Em meio a tais reflexões é que se considera importante


observar o REO; as gravações de áudio, de encontros, de palestras,
entrevistas etc.; o estabelecimento de prazos estranhos ao processo de
ensino aprendizagem e voltados para realização de produtos. Enfim, isso
tudo mais parece convergir para um modelo de ensino aprendizagem
alinhado ainda mais com a semiformação e cultura high-tech referidas
por Adorno e C. Türcke, respectivamente.

Além deste processo de dissociação em curso, é fundamental


lembrar aqueles que já são os desaparecidos de agora, os estudantes
referidos nas orientações sobre o ERE como os que se consideram sem
condições para acompanhar o REO, as gravações, os prazos e realizar
os produtos. Junto a estes que receberam o "direito" de pedir
cancelamento, talvez se possa ver os vultos dos muitos trabalhadores
do passado, expropriados dos meios necessários para realização dos
seus estudos. Ou seja, a assim chamada acumulação primitiva se
reproduz, tal como escreveu Marx, e hoje pode ser vista como uma
espécie de anátema que impregna o progresso do modelo de produção
capitalista.

Ou seja, o modelo de produção capitalista dentro da


universidade pública progride como uma maldição e para seguir seu
curso ele exige o "sacrifício" das vidas de professores, professoras e
estudantes, exige a retirada do apoio histórico que encontravam uns nos

EM CASA lendo a p. 193


Isolad@s

outros, o qual já vinha sendo fortemente abalado com o produtivismo e


a concorrência exacerbada dentro do espaço público de formação, mas
que agora se agudizou com a pandemia, anunciando expropriações mais
violentas e que corresponde ao desemprego em massa de professores
e professoras com a expansão do uso de inteligência artificial no campo
educacional. Um despojamento que recorda também tantas outras que
marcaram e continuam marcando a história do Brasil, mesmo que ainda
sejam pouco narradas, a saber: a expropriação das terras vivida pelos
camponeses brasileiros, pelas comunidades, povos e nações indígenas,
as violentas desocupações que atingem a vida de homens e mulheres
sem-terra e sem-teto, e a sangrenta retirada e comercialização dos
povos africanos escravizados.

Nesse sentido, torna-se importante lembrar os desaparecidos


de ontem, aqueles que morreram, que nunca chegaram a universidade
naqueles que tiveram de cancelar suas disciplinas e seus cursos por
falta de equipamentos e condições econômicas objetivas e subjetivas; e,
ainda, naqueles/as que acuados/as cumprem com os prazos e estão
sendo absorvidas pela tela escura sem voz e imagens de estudantes.

Reconhecer o esgotamento da vida produzido nesse processo é


indispensável se pretendemos refletir e construir uma educação que se
oponha a indiferença, que promova formas de resistência aos REOs, a
seus prazos instituídos desde cima e externamente ao processo de

EM CASA lendo a p. 194


Isolad@s

ensino aprendizagem, ao estudo atomizado dos vários materiais para


realização das atividades programadas, com metas de produtos a serem
atingidos, por vezes isoladamente e sem estudos em grupo para
dialogar, mas com notas a receber.

Se tirarmos consequências da ideia de Walter Benjamin de


"escovar a história a contrapelo", provavelmente neste momento e em
relação a este contexto, será preciso lembrar as vozes daqueles que
foram deixados para trás face a instituição desse modelo de ERE, e
considerar seriamente o tempo comum de estudos para professores,
professoras, filhos e filhas de trabalhadores que estão sendo alijados do
processo educacional.

Como já foi mencionado antes, este tempo de estudos já vinha


sendo expropriado de professores e professoras pela pressão de
produtivismo que foi e continua inviabilizando os encontros de grupos
de estudos e estimulando as produções textuais isoladas imediatamente
voltadas para publicação e ascensão nos rankings avaliativos.

Além disso, é importante apontar que o conteúdo e a forma do


referido modelo de ERE tem sido problematizado desde seu início por
parte da comunidade da universidade pública que o instituiu, devido à
forma antidemocrática que impôs esse modo de trabalho estranhado, de
estudo indiferente, de tempo alienado, de produtos decorrentes dos

EM CASA lendo a p. 195


Isolad@s

esforços de docentes e discentes e, ainda, que subjaz a ideia de que


ambos além de improdutivos não são confiáveis, porque necessitam de
controle direto e avaliações constantes.

Uma educação marcada por excesso de controles, prazos e


avaliações, que como bem mostrou Adorno tende a inibir o envolvimento
com o trabalho social. Em suas próprias palavras, lê-se no texto Teoria
da semiformação:

O momento de espontaneidade, tal como


glorificado nas teorias de Bergson e nos
romances de Proust, e tal como caracteriza a
formação como algo distinto dos mecanismos de
domínio social da natureza, decompõe-se na
agressiva luz das avaliações.

No contexto da cultura high-tech, o modelo de retomada de


calendário na forma do ERE aqui observado criticamente reproduz as
metas de produtivismo cerceando o encantamento com o estudo e a
afirmação de cada pessoa dentro dele como forma de resistência face
ao consumo desenfreado de mercadorias sem sentido, sejam elas reais
ou virtuais.

Nestes termos, não se trata aqui de se contrapor ao Estudo


Remoto Emergencial em tempos de pandemia de Covid-19, mas apontar
que sob a denominação de um Estudo Remoto Emergencial, o que tem
sido promovido é um Estudo Remoto Avaliativo (ERA) com efeitos

EM CASA lendo a p. 196


Isolad@s

destrutivos incomensuráveis para as formas diversas de existência


docente e discente.

Isso porque não se garante as condições necessárias para que


professores e estudantes disponham de um tempo comum, construam e
mantenham os vínculos necessários ao processo de ensino
aprendizagem, para limitarem os trabalhos isolados, para se oporem ao
produtivismo, à concorrência exacerbada e se recusarem a obedecer
cegamente às ordens, colocando nos ombros uns dos outros toda a culpa
por não conseguirem prosseguir com seus estudos ou atender aos
índices de produtivismo em tempos de pandemia, enquanto a lógica
empresarial global invade cada vez mais o campo educacional.

Contudo, se existe algo de verdadeiro no Ensino Remoto


Emergencial (ERE), este parece estar na preservação da ideia de
emergencial contida em seu nome, pois ela remete a postura de
socorrer, de dar atenção prioritária à vida e ao estudo experimentados
junto com outras pessoas, especialmente dos mais necessitados, que
sofrem com a desigualdade econômica, com a desconfiança que pesa
sobre suas capacidades.

Para conservar este sentido de emergência, de modo que


professores e estudantes possam continuar buscando o diálogo
amoroso entre si defendido por Paulo Freire, e se inspirando uns aos

EM CASA lendo a p. 197


Isolad@s

outros na busca pelo conhecimento e pela ação ética, comprometida


com a vida justa para todos, o elemento fundamental parece ser o
reconhecimento e a valorização dos atores no processo de ensino
aprendizagem, protegendo e garantindo um tempo físico comum,
limitando os estudos assíncronos para que não sobressaiam e sufoquem
a preparação necessária para os estudos síncronos.

Importante mais uma vez ressaltar que o Ensino Remoto


Avaliativo (ERA) não possui forças suficientes para realizar a
dissociação entre professores e estudantes até aqui mencionada. Um
sintoma disso é que, além do ERE(⇌)ERA, professores e estudantes têm,
simultaneamente, vivenciado mudanças na própria estrutura
administrativa da universidade. Ou seja, num convívio social
profundamente prejudicado pela pandemia de Covid-19, a organização
institucional é submetida a reformulação de estatutos, regimentos, que
retiram mais uma vez dos professores e estudantes um tempo comum
fundamental para a construção democrática do vivido, a saber: de uma
hora para outra foi destituído o poder deliberativo das Assembleias
Departamentais que formavam a base para o funcionamento dos cursos.

Tendo tais ocorrências em vista, este ensaio problematiza o


modelo de Estudos Remotos Emergencial que tende a se expandir
especialmente por promover a ruptura do tempo comum de estudos
entre professores e estudantes e acena para a valorização do tempo

EM CASA lendo a p. 198


Isolad@s

comum, com câmeras e áudios abertos, como um caminho alternativo


para professores e estudantes reafirmarem a percepção uns dos outros,
suas presenças físicas e, com elas, suas disposições intelectuais e
afetivas para o encontro daquilo que tem se perdido da aula como
acontecimento, como experiência social, quando professores e
estudantes juntos podem ser afetados por algo em comum.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Teoria da semiformação. In: PUCCI, B.; ZUIN, A.A.S.; LASTÓRIA,
L.A.C.B. (Orgs.). Teoria crítica e inconformismo: novas perspectivas de pesquisa.
Campinas: Autores Associados, 2010.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas 1: magia e técnica, arte e política. Tradução de


Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

TÜRCKE, Christoph. Sociedade Excitada: filosofia da sensação. (Trad. A. Zuin, F. Durão, F.


Fontanella & M. Frungillo). Campinas: Editora da UNICAMP, 2010a.

______. Hyperraktiv ! Kritik der Aufmerksamkeitsdefizitkultur. München: Verlag C.H. Beck.


2012.

______. Hiperativos: abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2016.

EM CASA lendo a p. 199


Isolad@s

NÃO ESTAMOS “OK”

Fernando Soares
Poeta. Autor do livro de poesia "Alguns Versos"
(Editora Cartonera).
fernando-soares02@hotmail.com

EM CASA lendo a p. 200


Isolad@s

NÃO ESTAMOS “OK”

Máscara; álcool em gel; sabonete líquido;

Água, água, água...

“Lava uma (mão), lava a outra (mão), lava uma...”

Mas o que é isso que aí está?

Isso que aí está não pode durar!

Eu, que não sou da raça dos descobridores,

que não sou da raça dos navegadores,

ainda assim afirmo que não pode durar!

Ele não

pode durar...

Ele não

COVID-19, Coronavírus, vírus, vírus...

Sem beijo e sem abraço.

Isolamento social; distanciamento corporal.

EM CASA lendo a p. 201


Isolad@s

Viram, não viram?

Ministros da Saúde: são, não são; são, não são.

Ministros da Educação: estão, não estão; serão, não serão.

Para onde os números iriam? Para onde irão?

Pandemia; afrouxamento; contaminação;

Ironia; paradoxo; gráficos em alta; circulação!

Indiferença; “e daí”; proliferação...

Laranja; morte; milícia; notícia; polícia...

Dez; vinte; trinta; quarenta; cinquenta mil...

Cento e dez; cento e vinte; cento e trinta;

cento e quarenta; cento e cinquenta mil mortes;

mortos, mortas... até o presente momento.

Passeios; festas; motocicleta; jet ski;

Palavrão; demissão...

A cavalo na multidão; espirro; tosse;

Aperto de mão e desprezo...

Distração; cinismo e desgraça!

“Passar a boiada”,

Aumento da área desmatada;

EM CASA lendo a p. 202


Isolad@s

Um povo; uma terra; uma dor...

Valei-me, meu São Francisco...

Se há Deus que nos ampara,

Há de ser o mesmo que freia a boiada

e ele, e eles e toda a reunião.

Auxílio emergencial... emergência;

Orçamento de guerra; governo em trincheiras:

Briga, recusa, nega, dissimula; chantageia e compra.

Na indefinição, perdem; mentem e mentem e mentem.

Tudo é falso e disseminado; Uma tragédia e uma farsa!

Crise econômica; fome; choro; desespero e morte.

Festa no Alvorada; churrasco e escárnio.

Morrem de frio em situação de rua, aos montes;

Lucram os banqueiros, aos poucos...

Hospitais de campanha e hospitais sem socorro.

Emergência, médicos, enfermeiros agitam-se.

Lotam e entubam, medicam e morrem. Choram, os que ficam.

Não há vacina e não há vagas. Não há vacina...

EM CASA lendo a p. 203


Isolad@s

E ele, que não pode durar,

Eleito pela propaganda do tiro,

Faz propaganda do remédio que não pode curar.

E assim, indiretamente, mata, mata, mata...

Testes, fases, vacinas, nada por aqui...

Corte de recursos e aumento dos números,

de pessoas, e de mortes; mortos e mortas...

Respiradores e EPIs, tudo é escasso e descaso.

E não é tudo isso mau?

E todo suspiro é em vão?

E todo soluço é apagão?

E toda luta é na ação?

Vencem os brutos ou os precavidos?

Equino autoritário atravancando a república;

Projeto de nada com pretensões a tudo.

Caminho torto; visão turva; notícia falsa;

Isso que aí está não pode durar!

Fernando Soares (outubro de 2020)

EM CASA lendo a p. 204


Isolad@s

CONGRESSO VIRTUAL DA UFBA


2020: IMPLICAÇÕES SÓCIO-
DIGITAIS EM TEMPOS DE
PANDEMIA MUNDIAL DA
COVID-19

Samira da Costa Sten


Doutora em Educação (PPGE/Ufes) e professora da
Faculdade de Educação da Universidade Federal da
Bahia (UFBA). Pesquisadora do Nepefil/Ufes.
samira.sten@hotmail.com

EM CASA lendo a p. 205


Isolad@s

ste texto discute, a partir da experiência do Congresso Virtual


E da UFBA, as implicações sócio-digitais que podem antecipar
mudanças estruturais no modo de difusão, produção e
recepção do conhecimento desenvolvido pela universidade. A pioneira
iniciativa de organização de um congresso virtual, no ano de 2020,
promovido pela Universidade Federal da Bahia, em reflexo à pandemia
mundial da Covid-19, suscita questões de inserção da universidade em
espaços-tempos digitais que permitem alta penetração social.

Com o acirramento da crise sanitária no Brasil, provocado pelo


novo corona vírus, medidas foram tomadas para o enfrentamento desta
doença. O isolamento social tornou-se a alternativa mais recomendada
pelas autoridades médicas. No entanto, esse distanciamento social, ao
alterar a rotina de grande parte da sociedade, acelerou ainda mais a
necessidade de acesso a meios virtuais e digitais como forma de se
estabelecer o contato social.

Sem desconsiderar todo o acumulado de discussões que atenta


para as desigualdades sociais que impedem, no Brasil, o acesso
universal aos meios digitais e, ainda, o recente debate promovido por
professores e pesquisadores da educação que apontam a precariedade
de métodos de ensino, que aliados a oportunismos de toda ordem,
surgem a defender a educação à distância como panaceia destes tempos
de isolamento social, lançamos um olhar sobre os dados estatísticos do

EM CASA lendo a p. 206


Isolad@s

primeiro “Congresso Virtual da UFBA – Universidade em movimento25”,


com vistas a analisar as possíveis implicações sócio-digitais de um
congresso em formato virtual.

Os números de inscrição revelam um expressivo alcance social


do evento, que atingiu um quantitativo de mais de trinta e oito mil
inscritos. O evento, com duração de dez dias, contou com um total de
nove salas virtuais que aconteceram em cinco sessões diárias. Foram
realizadas, durante o evento, sessões ao vivo e gravadas distribuídas em
palestras, em apresentações de pôsteres e em intervenções artísticas.

Vale ressaltar que, no início do congresso, a TV UFBA26 possuía


aproximadamente 10 mil inscritos em seu canal no YouTube e que, um
dia antes do término do congresso virtual, já alcançava a marca de mais
de 30 mil inscritos. Esse crescimento acentuado, em tão pouco tempo,
impressiona e indica o alcance deste evento em formato virtual.

Não é possível mensurar o conjunto de todas as participações


nos chats das salas virtuais do congresso, tampouco as visualizações do
conteúdo gravado e disponível que acontecem diariamente na
plataforma digital da TV UFBA. Mas, a exemplo deste impacto, destaco a

25
Disponível em: http://congresso2020.ufba.br/#schedule. Acesso em 28 de maio de
2020.
26
Disponível em: https://www.youtube.com/user/webtvufba. Acesso em 28 de maio de
2020.

EM CASA lendo a p. 207


Isolad@s

mesa intitulada Educação: desafios do nosso tempo27, realizada na sala


virtual E, no dia 18 de maio. Essa transmissão contou com a participação
dos professores Dermeval Saviani (Unicamp), Daniel Cara (USP) e
Roberto Leher (UFRJ) e, com o moderador da mesa, professor Cláudio
Lira (UFBA). Neste momento, de escrita do texto, esse vídeo já possui
mais de 18 mil visualizações. Participei desta sala virtual com outras
duas mil pessoas e acompanhei simultaneamente as interações via chat.

Quanto às interações, entre os participantes no chat, são


recorrentes as saudações, os comentários pessoais e a apresentação
das instituições a que estão vinculados. Essa interação virtual e
simultânea entre participantes e debatedores permite verificar o
alcance territorial do congresso e conhecer o perfil dos participantes.
Destaco a participação de professores da educação básica de várias
regiões do país. Esse engajamento dos professores da educação básica
nos debates promovidos pela universidade é um índice que desfaz a
percepção social de afastamento deste profissional dos espaços de
reflexão produzidos no âmbito da academia.

Certamente, a formação continuada dos professores não se


resume a participações em salas virtuais, está muito além de um
registro de participação virtual em plataformas digitais, exige políticas
de Estado comprometidas com a valorização do magistério e com sólida

27
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6w0vELx0EvE. Acesso em 29 de
maio de 2020.

EM CASA lendo a p. 208


Isolad@s

formação teórico-prática, com vistas à práxis educacional. Entretanto,


minorar os efeitos dos debates produzidos nestes espaços-tempos
digitais e, ainda, negligenciar a difusão desses meios é desconsiderar
tanto o impacto social que vibra entre a simultaneidade de relações
entre milhares de pessoas quanto à complexidade dessas relações e
suas implicações na capacidade de percepção de indivíduos envolvidos
em uma experiência digital. Notavelmente, reconhece-se que há uma
tensão entre métodos, conteúdos e objetivos quando se pensa em
plataformas digitais, do que surge a constante preocupação com a
qualidade dos métodos e a preservação do conteúdo e, ainda, considerar
os objetivos de cada proposição em ambientes virtuais.

Nesse sentido, o Congresso Virtual da UFBA, em tempos de


pandemia mundial, mostrou-se, por um lado, uma reação da
universidade à construção de um espaço promotor de debates de
qualidade que não se restringiu apenas à comunidade acadêmica; por
outro, uma alternativa à abertura de um canal de comunicação digital
com alta penetração social, com vistas à difusão do conhecimento
desenvolvido pela universidade.

A iniciativa da universidade em propor, nestes tempos de


isolamento social, um espaço-tempo dialógico reservado ao debate com
temas de interesse da sociedade não é uma motivação isolada,
tampouco uma afoita inquietação que prevê romper com a ideia do senso
comum que insiste em propagar a universidade como lócus isolado dos

EM CASA lendo a p. 209


Isolad@s

acontecimentos da vida ordinária. Longe disso, a proposição de


organizar um evento que discute temas relevantes e primordiais para o
enfrentamento das questões de nosso tempo e, ao mesmo tempo,
difunde o conhecimento desenvolvido pela universidade é uma ação
organizada e planejada que se não previa, em seus objetivos iniciais,
uma transformação na difusão do conhecimento produzido pela
universidade, deve ter agora, em seu horizonte, a necessidade de
assumir o espaço virtual e os meios digitais como essenciais à
propagação deste conhecimento.

Guardadas as devidas distâncias, penso que é possível fazer


uma analogia com a prensa de Gutemberg. Nesse sentido, as
plataformas digitais são uma espécie de prensa que permitem a
propagação das ideias de modo rápido e na urgência que tempos
obscuros sempre exigem. Certamente, a difusão de conhecimento em
massa sempre provoca tensões entre “os apocalípticos e os integrados”.
Portanto, perder de vista, as contradições inseridas no cenário
capitalista, em que plataformas digitais pertencem aos mestres do
capital que defendem os interesses privados e que, por isso, estão de
costas para uma educação crítico-progressista não estão fora de nosso
horizonte de compreensão e de debate. Tampouco, é possível prescrever
uma integração passiva nos usos e funções de ferramentas digitais, bem
como na participação em espaços-tempos virtuais.

EM CASA lendo a p. 210


Isolad@s

No entanto, é nas recomendações apocalípticas de um mundo


administrado que é possível deduzir que não há solidez em ilusões
criadas e, portanto, é válida a máxima benjaminiana de que as massas,
retrógradas diante de Picasso, podem ser revolucionárias diante do
cinema. Ou seja, é possível o diálogo progressista com as novas
tecnologias, quem sabe não foi esse o legado do primeiro Congresso
Virtual da UFBA de 2020.

Walter Benjamin (2015) esteve atento às alterações que a


técnica provocou nos indivíduos do seu tempo. Percebeu, com olhar
dialético, os excessos de manipulação e de controle provocados pela
técnica e os demonstrou no acúmulo de ruínas advindas do progresso.
Discutiu sobre as mudanças na percepção dos sujeitos, agora,
estimulados pelos choques da modernidade responsáveis por grande
parte da constituição das subjetividades dos indivíduos. Benjamin
também sugeriu o imperativo de politização da estética em protesto à
estetização da política pelos nazifascistas.

Sintomaticamente, os ambientes virtuais e os meios digitais


possuem uma natureza dual que oscila entre seu estado de mercadoria
e sua capacidade latente de operar a transformação social. Nessa
medida, é responsabilidade das universidades, como espaços de amplo
saber e de debate, conhecer esses meios, compreender seus usos e
funções, difundi-los entre sua comunidade e se apropriar dessas
tecnologias sem perder de vista a dimensão crítica e reflexiva inerente

EM CASA lendo a p. 211


Isolad@s

à universidade pública, laica, inclusiva e de qualidade socialmente


referenciada.

Isso posto, o Congresso Virtual da UFBA de 2020 mostrou-se ser


uma resposta tanto a compreender o tempo vivido quanto a discutir os
novos fenômenos sociais que comprimem as fronteiras do existir e
impõem reestruturações nos modos de convívio social. Contudo, sem
flexibilizar seu compromisso com a qualidade, indispensável a uma
instituição colegiada como a universidade, cujo dever com o
conhecimento não pode ser refém de conduta negligente com o
conhecimento, seja qual for o formato: virtual ou presencial.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. Minima Moralia. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2017.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas 1: magia e técnica, arte e política. Tradução de


Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

______. Rua de mão única: infância berlinense: 1900. Tradução de João Barrento. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013b.

______. O capitalismo como religião. Tradução de Nélio Schneider e Renato Ribeiro


Pompeu. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013d.

______. Baudelaire e a modernidade. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte:


Autêntica, 2015.

BENJAMIN, Walter et al. Benjamin e a obra de arte: técnica, imagem, percepção.


Tradução de Marijane Lisboa e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo:


Perspectiva, 2015.

EM CASA lendo a p. 212


OS SAPOS VERDE-OLIVA28

Mariana Passos Ramalhete


Doutora em Educação (PPGE/Ufes) e professora
do Instituto Federal de Educação do Espírito
Santo. Pesquisadora do Nepefil/Ufes e do Grupo
de Pesquisa Literatura e Educação/Ufes.
marianaramalhete@yahoo.com.br

28
Parte das reflexões deste ensaio foi apresentada
em maio de 2018, na V Semana de Letras - Língua
e Literatura: resistências na Educação, no Instituto
Federal de Educação Ciência e Tecnologia (Ifes),
campus Vitória.

EM CASA lendo a p. 213


Isolad@s

PALAVRAS INICIAIS
alter Benjamin, ao ponderar Sobre o conceito de História, em
W Magia e Técnica, Arte e Política, obra cuja publicação original
se deu em 1936, assegura que “A tradição dos oprimidos nos
ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é, na verdade, a regra
geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a
essa verdade.” Márcia Tiburi, no livro Como conversar com um fascista,
assevera que “[...] Juros sociais e políticos não cessam de ser cobrados
historicamente. O autoritarismo finge não existir o tempo histórico e
prega em nome de interesses imediatos”. A filósofa traz à baila uma
constatação embaraçosa e incômoda: discursos de ódio, simplórios,
rasteiros, violentos e imediatos custam. No contexto em que vivemos,
alguém paga. E caro.

Existir no Brasil não tem sido fácil. Essa assertiva comprova,


quase cem anos depois, a atualidade da tese de Walter Benjamin. Hoje,
em meio à histórica desigualdade social escancarada pela Covid-19 e
pelas políticas ultraneoliberais, em meio ao triplo desprezo pela ciência,
pelo saber elaborado e pelas universidades públicas; em meio ao
recrudescimento de movimentos racistas e nazifascistas, aos ataques à
democracia, à agressão feroz ao meio ambiente, à violação dos direitos
humanos, ao fomento a mais um genocídio indígena, aos afagos a um
passado violentado por coturnos e patentes; aqui, em meio tantos
sonhos enterrados e (re)inventados, à pilha de corpos, às covas

EM CASA lendo a p. 214


Isolad@s

comunitárias abertas, a necrotérios feitos de containers, ao luto, à dor,


à revolta e à aflição por um sistema de saúde à beira do colapso, temos
que lidar com uma série de discursos putrefatos e atitudes perversas
que atropelam a necessidade mais básica de qualquer ser humano: a
proteção à vida.

Como se não bastasse, a necessidade de isolamento fomentou,


em determinada parcela da sociedade brasileira vestida com a camisa
da CBF, a abertura dos porões entreabertos dos anos de chumbo. Com
faixas, passeatas, carreatas, ameaça e gritaria, tem sido reincidente a
defesa ao retorno do Ato Institucional número 5 (AI-5), que implantou a
fase mais sangrenta do Regime Militar, tornando a violência
institucionalizada e acalentada em âmbito estatal.

Edson Teles e Vladimir Safatle, na apresentação da obra O que


resta da Ditadura: a exceção brasileira alertam que esse período “[...]
não se mede por meio da contagem de mortos deixados para trás, mas
através das marcas que ela deixa no presente, ou seja, através daquilo
que ela deixará para frente.” Atentando-se ao pensamento de Tzvetan
Todorov, de que a literatura auxilia em nosso processo de compreensão
da complexidade humana, proponho, então, um breve diálogo com o livro
O Reizinho Mandão, de autoria de Ruth Rocha, destacando seis, dessas
inúmeras marcas no presente. Trata-se de uma obra literária que conta
uma história iniciada com a morte de um rei sábio e a respectiva

EM CASA lendo a p. 215


Isolad@s

sucessão ao trono por seu filho mimado e mandão, este que, por criar
leis absurdamente autoritárias, impôs a mudez coletiva ao povo.

O ENREDO

D
e 1964 a 1985, o Brasil vivenciou um dos períodos mais
tenebrosos e arrogantes de sua história: a Ditadura Militar.
Instaurado sob golpe, esse período foi caracterizado pela repressão,
cerceamento de liberdades individuais, tortura e morte (inclusive de
crianças), entrega de empresas ao capital estrangeiro, aumento da
dívida externa, perseguição, violência e censura. No ensaio Cultura e
Política, 1964-1969, Roberto Schwarcz chama a atenção para as práticas
de aniquilamento da cultura viva do momento, sobretudo para que esta
não chegue à “massa operária e camponesa”. Isso significa, por exemplo,
a amiúde perserguição ao setor cultural, vislumbrada na troca e censura
de professores, escritores, músicos, livros, editores, dentre outros.

Contraditoriamente, esse período registrou uma efervescência


das produções literárias destinadas ao público infantil e juvenil. Regina
Zilberman assegura que, uma vez que a literatura infantil ficou, durante
muitos anos, reduzida às finalidades didatizantes e moralizantes, essa
manifestação artística foi obscurecida pela crítica literária e, ao mesmo
tempo, relegada ao limbo aos olhos da censura. Escritores como Lygia
Bojunga, Ziraldo, Lucia Machado de Almeida, Odette de Barros Mott,

EM CASA lendo a p. 216


Isolad@s

Bartolomeu Campos de Queiroz, Joel Rufino, Ana Maria Machado e Ruth


Rocha, em um viés desconexo aos cerceamentos pedagogizantes até
então comuns à literatura infantil, tiveram suas obras publicadas
mesmo em um contexto de extrema hostilidade.

A escritora Ana Maria Machado descreve que chamado “boom”


da literatura infantil e juvenil) tem início no pior momento da ditadura
militar. Ela destaca três motivos que justificam que uma produção tão
marcadamente rebelde, subversiva e antiautoritária tenha nascido e
crescido sob circunstâncias tão nefastas: “explosão criativa”, devido a
uma tradição herdada de Monteiro Lobato; a ausência de uma leitura
literária, pelos militares, a seus/suas filhos/as e netos/as, o que
evidencia um total desconhecimento e desinteresse pelas produções da
área, e, por fim, cogita-se que os mandatários de farda não davam
importância nenhuma às crianças. A autora ainda pondera que, embora
alguns/mas desses/as escritores/as tivessem sido perseguidos/as,
presos/as e exilados/as, tais motivos se davam pelas suas respectivas
atuações profissionais enquanto jornalistas, professores, advogados,
por exemplo, e não por causa de suas produções literárias infantis e
juvenis.

É nesse conjuntura que é gestada a obra literária O reizinho


mandão. Mais especificamente, o livro foi publicado no ano de 1978, um
pouco antes da extinção do AI-5. Relata que o reizinho era um “sujeitinho

EM CASA lendo a p. 217


Isolad@s

muito mal-educado, mimado, destes que as mães deles fazem todas as


vontades e eles ficam pensando que são os donos do mundo” e que sua
diversão era fazer um amontoado de leis. A narrativa salienta que os
conselheiros do rei tentavam, sem sucesso, dar-lhe conselhos, ao que o
pequeno monarca respondia com maus modos: “-Cala a boca! Eu é que
sou o rei. Eu é que mando! Podia ser ministro, embaixador, professor”. O
reizinho mandão acostumou-se tanto a insultos e a mandar que os
outros se calarem que seu papagaio acabou aprendendo a dizer “Cala
Boca” também. Tais atitudes culminaram na reclusão das pessoas, que
passaram a ficar cada vez mais quietas e caladas. E de tanto ficarem
mudas, esqueceram-se que era possível falar.

A narrativa mostra, no entanto, um leve incômodo do reizinho.


Afinal, ele se tornou a única voz do reino. Assim, resolveu tentar
solucionar o mal causado. Após ser repreendido por um velho sábio,
soube que o problema da mudez das pessoas só poderia ser solucionado
quando o reizinho encontrasse uma criança que soubesse falar. O
reizinho, então, saiu em busca dessa criança. [...] “E o silêncio era cada
vez maior. Todo mundo quieto esperando que alguma coisa
acontecesse... Até que um dia... História é bom por causa disso! Tem
sempre uma hora em que quem está contando a história diz: ‘Até que um
dia…’”

EM CASA lendo a p. 218


Isolad@s

Em sua busca por uma criança, o reizinho, mesmo sem convite


e a empurrões, entrou abruptamente em uma residência, que, em seu
interior, havia uma menina. O rei a interpelou várias vezes para que
falasse alguma coisa, contudo, a menina recusou-se a obedecê-lo. O
reizinho, cansado de fingir paciência e cordialidade, usa uma tática do
mandonismo e informa que ele era a autoridade suprema. O papagaio,
acostumado com a rispidez e com os berros, reproduziu, por três vezes,
a fala tão corriqueira do rei: “Cala a boca! Cala a boca! Cala a boca!”
Diante de tamanha grosseria, a menina responde: “Cala a boca já
morreu, quem manda na minha boca sou eu”.

A narrativa encerra com a volta das pessoas às ruas, falando,


cantando e brincando. Tal comportamento causou um incômodo tão
grande que o reizinho não aguentou e, apavorado, saiu correndo pela
estrada. Mas o narrador alerta para a necessidade perene de vigilância:
“Por isso, se você é uma princesa, vê lá, hein! Não vá beijar nenhum sapo
por aí... Porque os reizinhos mandões podem aparecer em qualquer
lugar”.

AS MARCAS DO BRASIL 2020... OU A VOLTA DO


REIZINHO MANDÃO?

Um. 42 anos depois da publicação original da obra literária, no artigo


intitulado O Brasil sofre de fetiche da farda, a escritora e jornalista

EM CASA lendo a p. 219


Isolad@s

Eliane Brum considera que o atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro,


não é uma anomalia, mas um fiel produto das forças armadas, pois,
ambos, possuem o mesmo projeto de poder. Para a autora, os militares
não só ambicionam uma volta de destaque do governo, mas, de igual
modo, visam a limpar a mancha de sangue em suas insígnias e
distintivos. Nessa perspectiva, é possível afirmar que o presidente
tornou-se uma figura pública justamente por suas vontades terem sido
satisfeitas. Para a autora e também para Luiz Maklouf Carvalho, escritor
do livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel, o
presidente só existe politicamente porque sua figura está cravada na
impunidade, uma vez que certa cúpula militar absolveu um membro da
corporação que trabalhava arduamente no cumprimento de um plano
terrorista, com o fito de chamar a atenção para uma reivindicação
salarial.

Dois. No momento em que escrevo, são mais de 150.000 brasileiros e


brasileiras mortas pela COVID-19. No mundo, os números beiram a
1.100.000 vidas interrompidas. Desse modo, é ao menos curioso
resgistrar a tentativa do presidente de, por meio de decreto, mudar a
bula do remédio cloroquina, a fim de incluir, mesmo sem evidências
científicas robustas, o tratamento de COVID-1929. E, de igual modo, a

29
UOL. Mandetta afirma que Bolsonaro tentou alterar a bula da cloroquina por decreto.
UOL. 2020. Disponível em: <https://atarde.uol.com.br/politica/noticias/2128105-
mandetta-afirma-que-bolsonaro-tentou-alterar-a-bula-da-cloroquina-por-decreto>.
Acesso: 22 maio 2020.

EM CASA lendo a p. 220


Isolad@s

tentativa, por meio de Medida Provisória, de conceder ao segundo ex-


ministro da Educação, Abraham Weintraub, investigado em inquérito
sobre “fake news”, o poder de nomeação de reitores de universidades e
institutos federais, durante a pandemia do coronavírus, sem qualquer
consulta à comunidade acadêmica30. Trata-se, por conseguinte, de mais
uma postura autoritária, antidemocrática e avessa à autonomia dessas
instituições. Ainda está em trâmite o decreto que, a uma só vez, institui
a redução de área protegida da Mata Atlântica31 e facilita a liberação de
licenças ambientais para a construção de empreendimentos turísticos e
imobiliários, no bioma mais des(matado) do país.

Também é relevante lembrar que, no meio da pandemia,


decretos avolumam-se. Apenas para exemplificação, em meio a tantos,
cito três32 : o Decreto nº 10.354, de 20 de maio de 2020, que dispõe sobre
a qualificação da Empresa Brasil de Comunicação no âmbito do

30
OLIVEIRA, Elida. MP que permite a Weintraub escolher reitores temporários durante a
pandemia pode atingir 19 universidades e institutos federais em 2020. G1. 2020.
Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2020/06/10/mp-que-permite-a-
weintraub-escolher-reitores-temporarios-durante-a-pandemia-pode-atingir-19-
universidades-e-institutos-federais-em-2020.ghtml>. Acesso: 10 jun. 2020.
31
CAMARGOS, DANIEL. Decreto que reduz proteção da Mata Atlântica espera assinatura
de Bolsonaro. UOL. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/meio-
ambiente/ultimas-noticias/reporter-brasil/2020/06/12/decreto-que-reduz-protecao-
da-mata-atlantica-espera-assinatura-de-bolsonaro.htm>. Acesso: 12 jun. 2020.
32
Todos os decretos do governo federal publicados no ano de 2020 podem ser
consultados em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-
1/decretos1/2020-decretos>.

EM CASA lendo a p. 221


Isolad@s

Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República.


Na prática, esse decreto visa a facilitar ações de privatização dos
Correios, por exemplo. Já o Decreto nº 10.347 de 13 de maio de 2020
dispõe sobre as competências para a concessão de florestas públicas,
em âmbito federal. Em outras palavras, trata-se de um óbice às ações
de proteção ambientais que prestam um enorme serviço aos interesses
privados. Por fim, Decreto nº 10.402, de 17 de junho de 2020, que dispõe
sobre a adaptação do instrumento de concessão para autorização de
serviço de telecomunicações e sobre a prorrogação e a transferência de
autorização de radiofrequências, de outorgas de serviços de
telecomunicações e de direitos de exploração de satélite. O decreto,
além de conceder vantagens a grandes clubes de futebol e pôr em
desvantagens os pequenos, parece criar dificuldades à rede Globo,
empresa que participou ativamente do golpe contra a presidenta
legitimamente eleita Dilma Rousseff, mas, que, nesse momento, tem
aparentado assumir uma postura relativamente destoante do chefe
maior do executivo brasileiro, especificamente no assunto “pandemia”.
Tal postura revela que o governo está de costas para as mais de 150.000
mil famílias enlutadas e segue no cumprimento de uma agenda que
acirra a desigualdade e a miséria.

Três. Um torturador tem prazer no sofrimento alheio: têm sido


igualmente corriqueiras atitudes “dúbias” ou que enaltecem as

EM CASA lendo a p. 222


Isolad@s

instituições militares como “mediadoras” de conflitos33. Nessa toada, os


maus modos durante a pandemia não concedem tréguas, quer sejam em
ataques a jornalistas34, quer sejam em nomeações ou exonerações
ministeriais35, quer sejam no fomento à invasão de hospitais36 e
concessão de armas à população37. Com tanto exemplo, os defensores e
signatários de uma agenda antidemocrática têm repetido “os maus
modos”. Considerando que não, ainda, há remédio e vacinas
devidamente recomendáveis no enfrentamento à pandemia, o
distanciamento social é a alternativa mais eficaz contra o crescimento

33
GAZETA DO POVO. Bolsonaro compartilha vídeo sobre artigo 142 com defesa de
intervenção militar. Gazeta do Povo. 2020. Disponível em:
<https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/bolsonaro-video-artigo-142-
defesa-de-intervencao-militar/>. Acesso: 29 maio 2020.
34
CBN. Bolsonaro se desentende com ex-apoiadora, ataca OMS e critica quem acredita
na imprensa. CBN. 2020. Disponível em:
<https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/304468/bolsonaro-se-desentende-
com-ex-apoiadora-ataca-oms.htm>. Acesso: 11 jun. 2020.
35
URIBE, Gustavo; DELLA COLETTA, Ricardo; TEIXEIRA, Mateus. 'Quem manda sou eu', diz
Bolsonaro ao anunciar recurso contra decisão do STF que barrou Ramagem na PF. UOL.
2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/04/bolsonaro-
desautoriza-agu-e-diz-que-recorrera-ao-supremo-de-decisao-que-barrou-
ramagem-na-pf.shtml>. Acesso: 30 abr. 2020.
36
UOL. Bolsonaro incentiva invasão a hospitais para checar ocupação. UOL. 2020.
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/ansa/2020/06/12/bolsonaro-incentiva-invasao-a-hospitais-para-checar-
ocupacao.htm>. Acesso: 12 jun. 2020.
37
TEÓFILO, Sarah. Em vídeo, Bolsonaro diz querer população toda armada contra
'ditadura'. Correio Braziliense. 2020. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/05/22/interna_politic
a,857515/em-video-bolsonaro-diz-querer-populacao-toda-armada-contra-
ditadura.shtml>. Acesso: 24 maio 2020.

EM CASA lendo a p. 223


Isolad@s

de casos e respectivo esgotamento dos leitos hospitalares. Em um


momento em que as pessoas precisam estar em isolamento social, e que
a saída às ruas potencializa ainda mais os efeitos da pandemia, têm sido
igualmente corriqueiras as manifestações pró-governo federal, que,
como papagaios, repetem discursos lesivos, autoritários e coercitivos,
embora esses não representem a maioria do povo.

Quatro. Antonio Candido, nos registros iniciais do ensaio O Direito à


Literatura, avalia que, em comparação a épocas passadas, temos o
máximo de racionalidade técnica e domínio da natureza, os quais
permitiriam, por exemplo, a resolução de problemas severos como a má
distribuição da alimentação e a destruição de vidas pela guerra. Pondera
que, mesmo assim, vivemos em uma época em que a barbárie está
ligada à ideia de “civilização”. Em 1988, ano da publicação original do
ensaio e, portanto, em um contexto de reabertura democrática, Candido
afirmou que a barbárie está crescendo, mas sua propagação e defesa
não têm sido proclamadas com discursos elogiosos. Exemplifica, para
tanto, que discursos que fazem uma correlação direta entre pobreza e
vontade de Deus estão sendo minorados; que, embora houvesse uma
hipocrisia entre fatos e ações, políticos reverberam uma suposta
inaceitação das desigualdades, mostrando que a imagem da injustiça
social constrange e que não é indiferente à média opinião. De acordo
com Lilia Schwarcz, o movimento de naturalização da desigualdade, de
evasão do passado, é característico de governos autoritários que lançam

EM CASA lendo a p. 224


Isolad@s

mão de narrativas eufemísticas como forma de manutenção no poder.


Em momentos de crise, acrescenta, parte da população brasileira volta-
se ao “sonho da concórdia” do Regime Militar. Desse modo, o Brasil de
2020, pisado por coturnos, barganhado por salteadores, golpeado por
um quarteto afinado em 2016 (sociedade civil, mídia, jurisprudência e
parlamento), acometido por um vírus, parece distante do
constrangimento discutido por Candido.

Cinco. Essa política genocida acomete a sociedade brasileira todos os


dias. E em especial as mulheres. Nós, as matáveis38. Aqui falo no
feminino, porque nesta sociedade somos a maioria: além do rol de
barbáries à moda brasileira já discutidos, nós, mulheres, somos as que
morrem primeiro, vítimas da Covid-19, após contrair o vírus em um
apartamento do Leblon39; somos alvos de violência doméstica; somos a
maioria na categoria profissional da enfermagem e que, portanto, somos
as mais vulneráveis, visto que estamos na linha de frente no combate à
pandemia; somos a maioria das trabalhadoras domésticas que são

38
MODELLI, Lais; MATOS, Thais. Como a pandemia de coronavírus impacta de maneira
mais severa a vida das mulheres em todo o mundo. G1. Disponível em:
<https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/19/como-a-pandemia-de-
coronavirus-impacta-de-maneira-mais-severa-a-vida-das-mulheres-em-todo-o-
mundo.ghtml>. Acesso: 19 abr. 2020.
39
DE MELO, Maria Luisa. Primeira vítima do RJ era doméstica e pegou coronavírus da
patroa no Leblon. UOL. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-
noticias/redacao/2020/03/19/primeira-vitima-do-rj-era-domestica-e-pegou-
coronavirus-da-patroa.htm>. Acesso: 30 mar. 2020.

EM CASA lendo a p. 225


Isolad@s

obrigadas a se dividirem em inúmeras tarefas ao longo da semana;


somos a maioria das idosas que moram sozinhas; somos nós que
também perdemos filhos: cravejados de balas em operações policiais40
ou vítimas do desleixo e do racismo, estirados no chão, após uma queda
do nono andar, quando poderíamos ter o direito ao isolamento social,
assegurado pela proteção empregatícia41. E somos a minoria numérica
em representação no Congresso Nacional42.

Seis. Vladimir Safatle adverte que “[...] a política é, em seu fundamento,


a decisão a respeito do que será visto como inegociável. Ela não é
simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação
taxativa daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança”. Como
toda realidade está coberta de contradição, talvez seja necessário

40
COELHO, Henrique; JUNIOR, Eudes; PEIXOTO, Guilherme. Menino de 14 anos morre
durante operação das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, RJ. G1. 2020.
Disponível: < https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/19/menino-de-14-
anos-e-baleado-durante-operacao-no-complexo-do-salgueiro-rj.ghtml>. Acesso: 20
maio 2020. G1 SÃO PAULO. Dois policiais militares de folga são apontados como
suspeitos da morte de adolescente de 15 anos na Zona Sul de SP, diz DHPP. G1 SP.
Disponível em: < https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/16/dois-policiais-
militares-de-folga-sao-apontados-como-suspeitos-da-morte-de-adolescente-de-15-
anos-na-zona-sul-de-sp-diz-dhpp.ghtml>. Acesso: 16 jun. 2020.
41
O GLOBO. Polícia indicia por homicídio patroa da mãe de menino que caiu do 9º andar
no Recife. O GLOBO. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/policia-
indicia-por-homicidio-patroa-da-mae-de-menino-que-caiu-do-9-andar-no-recife-
24462723>. Acesso: 05 jun. 2020.
42
CORREIO BRAZILIENSE. Levantamento mostra que mulheres são minoria nas cúpulas
dos partidos. CORREIO BRAZILIENSE. 2020. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/06/21/interna_politica
,764686/mulheres-sao-minoria-nas-cupulas-dos-partidos.shtml>. Acesso: 05 jun. 2020.

EM CASA lendo a p. 226


Isolad@s

recorrer, mais uma vez, à obra literária de Ruth Rocha, e recordarmos


a postura de uma menina que se recusa a ser submissa frente às
tentativas de intimidação do pequeno monarca. A narrativa sugere uma
postura de não subserviência, mesmo em períodos históricos nocivos.
Desse modo, na ausência de políticas que protejam a vida, ficar em casa
(para os/as que podem), cuidar de si e dos/as outros/as, têm sido a
recusa de manter-se inerte e servil frente às sucessivas tentativas de
intimidação e ameaça do reizinho mandão. Ficar em casa tem sido a
resistência. E velar para que a nossa jovem e frágil democracia não volte
a laranjais à procura de velhos sapos verde-oliva para beijar, também.

REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BRUM, Eliane. Brasil sofre de fetiche da farda. Jornal El País. 2020. Disponível:
<https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-05-27/brasil-sofre-de-fetiche-da-farda.html>.
Acesso em 28 maio 2020.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970.

CARVALHO, Luiz Maklouf. O cadete e o capitão: A vida de Jair Bolsonaro no quartel.


Todavia, 2019.

MACHADO, Ana Maria. Silenciosa Algazarra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 290
p.

ROCHA, Ruth. O reizinho mandão. 27. ed. São Paulo: Salamandra, 2013. 40 p. (Série: O
reizinho mandão). Ilustrações de Walter Ono.

SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. 1. Ed. São Paulo: Três
Estrelas, 2013.

SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Companhia
das Letras, 2014.

EM CASA lendo a p. 227


Isolad@s

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.

TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir Pinheiro. O que resta da ditadura: a exceção brasileira.
Boitempo Editorial, 2015.

TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. Rio de Janeiro: Record, 2015.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. Tradução de Caio
Meira.

ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a Literatura Infantil Brasileira. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2009.

EM CASA lendo a p. 228


Isolad@s

LISTA DE DESFAZERES43

Ana Elisa Ribeiro


Mineira de Belo Horizonte, onde reside. Seus títulos
de poesia mais recentes são Álbum e Dicionário de
Imprecisões, pelas editoras mineiras Relicário e
Impressões de Minas, respectivamente. Acredita no
poder de transformação da leitura, de escrita e da
literatura. Doutora em Linguística Aplicada e mestre
em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG), é professora titular do
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais (CEFET-MG).
anadigital@gmail.com

43
Poesia publicada originalmente no projeto Pão e Poesia, de
Sabará (MG).

EM CASA lendo a p. 229


Isolad@s

LISTA DE DESFAZERES

Três abraços: da avó,


da mãe e do aluno,
que também não virá
enfrentar esta sala
onde hoje, além das lêndeas,
habitam apenas nossas ausências.

Escolher maçãs e uvas


no mercado da esquina
à espera de encontrar
algum paraíso entre as frutas.

Por ora, não iremos;


e as frutas permanecerão
sob a placa de perigo.

Evitar as mãos das pessoas,


mesmo que pareça grosseiro;
e as mãos são agora
como flechas envenenadas.

Os beijos ficam
para a próxima encarnação.

Ana Elisa Ribeiro (julho de 2020)

EM CASA lendo a p. 230


Isolad@s

TEMPOS DE COVÍDEOS E O
IMAGINÁRIO DA GUERRA44

Rafael Nogueira Costa


Pós-Doutor em Educação pela Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes) e Doutor pelo
Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em
Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Professor Adjunto na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Instituto
de Biodiversidade e Sustentabilidade (NUPEM).
rafaelnogueiracosta@gmail.com

44
Este texto foi escrito no momento de pandemia do Covid-
19. A proposta foi escrever um conto, sem nenhuma
preocupação com a verdade e com os fatos científicos. Todos
os personagens são fictícios.

EM CASA lendo a p. 231


Isolad@s

Mateusinho corre no corredor de taco de madeira. O corpo


trêmulo tenta se equilibrar passo a passo. No meio do corredor escuta
uma voz:

– Vem, Mateusinho, vem ver o tio Paulo que acabou de chegar


da China. Assustado, rapidamente faz meia volta e aperta os passos para
dentro do quarto.

Ninguém sabe como surgiu esse covídeo. Talvez aquela criança


nem seja o Mateusinho. É provável, também, que não exista um tio
naquela história que tenha chegado da China. Inclusive, pode ser que o
susto seja apenas uma brincadeira de pique pega com o pequeno ser em
formação.

O fato que tem intrigado a comunidade científica é sobre a


origem dos covídeos. As últimas décadas têm sido dedicadas pela
ciência para responder as seguintes questões: Quando surgiu o primeiro
covídeo? Como nascem os covídeos? Os covídeos são seres vivos? É uma
mutação das telas?

As hipóteses são constantemente atualizadas pela Organização


Mundial do Covídeo (OMC). Entre todas as questões levantadas pela
Isolad@s

comunidade científica, a que sempre dividiu os especialistas é sobre a

zcondição vital dos covídeos.


No 1o Congresso Internacional de Estudos sobre os Covídeos,
realizado em Berna (Suíça), no ano de 1933, a controvérsia foi
amplamente debatida. Por um lado, um grupo defendia a ideia que os
covídeos eram seres vivos. A capacidade de infecção e a replicabilidade
dos covídeos eram os principais sinais da sua condição vital. Por outro
lado, um grupo de cientistas defendia a ideia contrária. Ou seja,
argumentavam que, para serem vivos, era necessário o processo de
compartilhamento entre telas por intermédio dos humanos. Para esse
grupo, o covídeo era um simulacro. Uma mera imitação da vida, uma
dimensão ainda não conhecida.

Até o final do século passado, a ideia que prevaleceu foi a de


que os covídeos não tinham vida. Após a publicação de um artigo de
autoria de Raimunda da Silva Santos, uma das maiores especialistas em
covídeos do mundo, na renomada revista científica Scientific Distraction,
o campo científico deu por encerrada a controvérsia. Novos artigos
científicos foram escritos com base nesse trabalho.

Os livros didáticos carregavam essa narrativa. Nas escolas, os


professores de biologia das instituições voltadas para aprovação nos
exames de entrada no ensino superior, reafirmavam a descoberta e os
avanços da ciência em relação aos covídeos. No quadro de giz em salas
Isolad@s

lotadas e janelas quadradas, os professores e professoras rabiscavam


com o pedaço de gesso e escarravam o debate científico:

– Covídeos são simulacros. Se ninguém apertar o enviar, eles


ficam adormecidos nas telas de distração dos humanos. Encapsulado, o
covídeo não consegue desenvolver sua ação de contaminação. Logo, ele
não é vivo. Depende de algum humano para dar início a sua proliferação.

Os alunos colavam atentamente os cospes em seus cadernos. O


pessoal do fundão perdia as maiores partículas. Mas, se distraíam de
outra maneira.

No final do século passado, os especialistas em covídeo já


alertavam a sociedade e os governos sobre possíveis pandemias das
telas por covídeos. A história do surgimento ainda é um mistério. A
hipótese mais aceita é que eles surgiram com os experimentos dos
alquimistas da imagem, no final do século XIX.

Esses alquimistas detinham o controle sobre os covídeos, o que


gerou status, fama e dinheiro. Uma parcela pequena da população tinha
contato visual com os covídeos nessa época. Dessa forma, não passava
de mera curiosidade e distração dos mais afortunados. As aparições em
público eram totalmente controladas, o que não gerou muito interesse
da comunidade científica, e muito menos de boa parte dos humanos.

Durante a segunda guerra mundial, os covídeos eram


controlados pelas grandes potências mortíferas. Cada país enviava para
Isolad@s

guerra, além de navios com bombas, armas e soldados, pessoas para


registrar as imagens da carnificina. Assim, de exibição em exibição, as
imagens conquistavam o imaginário das pessoas. A ideia de vitória e
conquista do território era facilmente espalhada, assim como o
extermínio das baratas.

O sistema de exibição era sistematicamente organizado em


salas fechadas, frequentadas pelos donos do capital. Eles precisavam
assistir aos resultados dos investimentos das máquinas de morte. Com
o tempo, os gerentes do capital perceberam que, naquele sistema de
exibição em salas escuras, adormecia uma grande oportunidade de
aumentar o patrimônio financeiro.

Durante a Guerra Fria, essa rede de bilionários e generais de


estrelas se juntou para proliferar, de maneira controlada, por meio de
poderosos centros de força. Cientistas do mundo inteiro começaram a
se debruçar sobre o tema e ampliaram as respostas para as principais
questões.

Com o fim da controvérsia sobre a condição vital dos covídeos,


as principais revistas científicas criaram dossiês específicos para novas
descobertas sobre essas mutações. Além da compreensão dos
surgimentos dos vírus das mentes, a principal curiosidade da
comunidade científica era identificar os centros de produção e os
impactos sociais, econômicos e psicológicos na humanidade e no
planeta.
Isolad@s

Sobre a distribuição controlada e sistematizada dos covídeos, a


principal hipótese é que eles tenham sido produzidos a partir de uma
força tarefa entre cientistas e engenheiros da morte, vinculados ao
exército de um país do Norte. Os cientistas políticos argumentavam que
a produção dos covídeos por esse país, tinha surgido para desestabilizar
os governos democráticos ao redor do mundo na década de 1960. Para
isso, esse país atuou de maneira sistemática formando uma rede de
distribuição em vários países.

No Brasil, essa rede foi institucionalizada pela grande imprensa,


sob a linha de um “novo poder”, que instituiu uma maquinaria de guerra
de captura do imaginário. Qualquer produção de covídeos combatentes
ao sistema dominante era interrompida, quando o centro de produção
era identificado, os produtores eram violentamente torturados e muitos
corpos nunca mais foram vistos. Dizem que eram jogados em poços.

Nessa época, uma emissora foi escolhida para ser equipada


com a tecnologia mais avançada de distribuição de covídeos na América
Latina. O país assistiu a uma verdadeira chuva de telas. Os sofás das
casas foram retirados das varandas e direcionados para a tela, que
projetava imagens em preto e branco. O centro da casa passou a ser o
sofá, o quintal a periferia. Essa emissora, durante muitos anos, ocupou
as telas e o imaginário social de toda uma nação. Tirava e colocava
presidentes, governadores e prefeitos.
Isolad@s

Além de promover um processo de construção de uma


identidade coletiva, por meio de pílulas de covídeos, que eram
bombardeadas diariamente nas telas em proliferação. O centro emissor
de covídeos se beneficiava dos poderes de construir verdades sociais.

Buscava-se, meticulosamente, construir as narrativas e


provocar emoções nos humanos. Os covídeos infantis eram curtos e
vinculados à venda de supérfluos. Tudo pensado pelos programadores
de emissão. A ordem de exibição era debatida por um grupo de
psicólogos especializados em recepção de covídeos. Os coordenadores
tinham sido enviados pelo Governo Central do Brasil para um
treinamento na maior instituição de produção e emissão de covídeos do
Mundo, em Los Angeles, nos Estados Unidos da América.

Em uma montanha de um distrito da cidade, é possível ver um


letreiro gigante com letras brancas: Covídeowood. A história do
Covídeowood começou no início do século passado, quando grandes
empresas iniciaram as suas produções e foi erguida uma gigantesca
indústria. A mesma quantidade de recurso que esse país investia em
maquinário de morte para controlar o mundo, era também investida na
produção dos covídeos. Dessa forma, esse país reconfigurou o mundo.
Colonizou por covídeos e outros vírus, além das bombas, o imaginário
coletivo.

Porém, no início da década de 1990, os covídeos começaram a


se reproduzir de maneira descontrolada. Em rede e sem centro,
Isolad@s

invadiram as telas dos humanos de várias maneiras e em distintas


direções. Ocorreu uma desestabilização dos centros de emissão de
covídeos. Como flechas, os covídeos foram lançadas por grupos
independentes.

Essa proliferação de covídeos foi responsável por


descentralizar as transmissões para as telas, desestabilizando o coro
dos contentes. Das máquinas de guerra controladas pelas grandes
mídias, começaram a surgir forças contra-hegemônicas, constituídas
por uma rede difusa de proliferação de covídeos. Os covídeos
começaram a ocupar os espaços moleculares que ainda não tinham sido
ocupados, constituídos por forças ativas nômades. Nas multidões, as
linhas de fuga começaram a causar algumas microrrevoluções. Oh,
minha imagem, faça sempre de mim um covídeo que interroga!

Alguns covídeos foram responsáveis por gerar verdadeiras


revoluções em vários países. Por exemplo, na noite de 3 de março de
1991, um trabalhador da construção civil foi espancado de maneira
covarde e cruel por policiais de Los Angeles, nos Estados Unidos da
América. Pobre poder sobre o corpo colonizado. Uma pessoa
testemunhou a violência. Escondido, nas cortinas da casa, a testemunha,
com uma câmera na mão e uma revolta na cabeça, capturou e distribuiu
a morte, que rapidamente infectou as telas do mundo inteiro.

Os policiais envolvidos no crime foram absolvidos por um júri


formado por filhotes dos colonialistas. O covídeo provocou uma onda de
Isolad@s

protestos que marcou a história da Califórnia. Incêndios, mortes e


saques em estabelecimentos comerciais. Se não fosse esse covídeo,
aquele assassinato passaria impune por um longo tempo.

Entretanto, quase três décadas depois daquele episódio,


novamente os EUA revelam ao mundo que o racismo fardado ainda
opera nas esquinas daquele país. Não é diferente em territórios com
outras bandeiras. “Não consigo respirar”, tentava balbuciar o homem
deitado com a face no chão, enquanto tinha o pescoço esmagado por um
joelho de um psicopata fardado.

O crime foi capturado por um covídeo que registrou os últimos


suspiros de vida daquele homem. Sua voz, sufocada, implorava pela
interrupção do seu algoz. Um homem branco, pálido, fraco, uma criança
mimada. Protegido pelo seu traje de super-herói enlatado, resultado de
uma fabricação do Covídeowood. Óculos de sol na cabeça raspada.
Camisa de botão azul com um broche no peito. Na cintura, uma
parafernália necrófila. Spray de pimenta, cassetete, algemas, pistola,
buzina, apito, alarme, rádio, gps etc. Aquele homem de bota preta, sem
todos aqueles escudos, não aguentaria um tapa de mão aberta na orelha.

O símbolo do colonizador. Sua ânsia assassina. Esmagadora de


vida. Tomado pela vaidade, rapidamente conquistou as telas. De tela em
tela, a cena entrava nas mentes dos humanos. O resultado não foi
diferente do ocorrido em 1991. Fogo, bomba e destruição. A energia
concentrada nas almas, explodiu e tomou as ruas. Em Minnesota,
Isolad@s

parecia ter caído uma bomba atômica, que espalhou pelo mundo, um
desejo de justiça.

No Brasil, no dia 18 de maio de 2020, um covídeo foi produzido


por familiares de um adolescente morto por um tiro de fuzil, dentro da
residência da família. O jovem, isolado do mundo, jogava videogame,
escondido da pandemia de outro vírus. No covídeo produzido pela família
é possível visualizar as marcas de bala dentro da casa. O crime
aconteceu no Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, e comprovou a
tática necrófila imposta pelas forças opressivas do Estado. Todos
sabemos que eles entram nas favelas, becos e vielas, cuspindo balas de
chumbo para todos os lados. Ações de guerra, que operam no calor da
emoção, cada vez mais distante da inteligência e da proteção da vida,
parecem fazer parte do cotidiano de várias pessoas ao redor do mundo.

Não se iludam, isso não é diferente em outros países. Porém,


nem sempre surgem covídeos. E muitas vezes, quando surgem, muitos
deles não apresentam uma capacidade grande de contaminação. Por
isso, muitos deles não conseguem se espalhar com facilidade ao ponto
de promover lutas por transformações.

Silenciosamente. Nos meses de fevereiro e março, enquanto os


corpos suados se lambiam nas ladeiras de Santa Teresa, no Rio de
Janeiro, ou em Olinda, no Recife, o mundo se transformava.
Isolad@s

Uma proliferação silenciosa de outra espécie de vírus pulava as


barreiras imaginárias entre animais e humanos. Cientistas já alertavam
anos antes, não esqueçam disso! Não foram ouvidos.

Mutações em curso, mais uma controvérsia sobre a origem. Não


existiu tempo para debate. O mundo redondo, conhecido como Planeta
Terra, girou mais devagar. Um pedaço de RNA, parecendo uma coroa,
migrou de animais selvagens em confinamento num mercado no interior
da China, para os pulmões dos animais humanos. Rapidamente, de cuspe
em cuspe, o vírus conquistou alvéolos, pulmões, casas, ruas, bairros,
países e continentes. Febre, tosse e muita confusão mental.

A resposta de uma rápida proliferação viral em rede, tendeu a


ser mais política do que científica. A relação entre política e ciência
virou, em alguns países, uma relação de escuta e, em outros, uma
relação de disputa. A pedagogia das mutações revelou os coveiros,
filhotes das moedas. E os heróis, humanos de máscaras e tecidos
brancos sobre a pele.

Numa perspectiva ultrareducionista, o mundo se dividiu em pelo


menos duas novas classes: Os isolad@s e os andarilhos das ruas. Viver
isoladamente virou luxo para poucos. Agarrados em suas telas e
conectados ao mundo. A classe que se isolou em suas casas e
apartamentos, com portas fechadas, viram a mão se transformar em um
ser luminoso e pulsante de informações.
Isolad@s

Não só informações, claro. Estava quase tudo disponível nas


telas, bastava um espaço interno, uma conexão relativamente rápida e
pronto. Era só escolher o caminho: trabalho dobrado ininterrupto,
piadas, sexo, brindes, risos, tensões, dúvidas, gráficos, fotos, curtidas. Os
covídeos se proliferaram de maneira nunca visto em toda história da
humanidade. Aquela tela em mãos virou uma bomba pulsante de luz
branca. Luz sem descanso, até a última gota de bateria. De lá saiam
convites para encontros por telas, chegavam comidas, remédios, livros,
produtos nacionais e internacionais. Débito, boleto ou crédito? Um luxo
para poucos.

Na nova divisão mundial. Do outro lado, os andarilhos das ruas


pisoteavam os escarros. Eram motoristas de ônibus, motoboys, médicas,
enfermeiros, padeiras, atendentes de caixa nos supermercados, nas
farmácias, petroleiros. Condutores do trem do progresso. Nas lojas
consideradas de necessidades vitais, o trabalho ficou ainda mais árduo.
Os andarilhos das ruas patinavam sobre os cuspes contaminados, para
manter a família na classe dos isolad@s.

Foi essa pandemia, chamada maldição de 2020, ou Covid-19, que


fez com que os covídeos se multiplicassem de maneira explosiva e
reconfigurou uma série de certezas científicas sobre eles. No mês de
abril do mesmo ano, foi realizado o 43o Congresso Internacional de
Estudos sobre os Covídeos, o primeiro na modalidade online. A questão
central do congresso retomava as origens dos debates: o covídeo é um
Isolad@s

ser vivo? Após uma ampla rodada de apresentações, comprometidas


pela oscilação na internet, a comunidade científica chegou a um novo
consenso.

A notícia foi anunciada numa coletiva de imprensa transmitida


em mandarim para todos os continentes. Sim! Os covídeos são seres
vivos que migraram das telas para as mentes dos humanos
independentes da sua vontade ou iniciativa. A comunidade científica
apontou ainda que novos surtos de covídeos poderão acontecer em
breve. Entretanto, esclareceram os cientistas, seria praticamente
impossível prever quando e como será a próxima proliferação.

Com a proliferação das lives, os covídeos migraram em massa


das condições controladas pelas emissoras de TV do mundo inteiro. Com
a pandemia do Covid-19, o tique toque na mente ficou frenético. Além
disso, as lives se proliferaram no mundo inteiro ao ponto dee formar um
novo processo de socialização, chamado livezação.

Não foi uma invenção a partir da pandemia do fragmento da


molécula proteica, é verdade. Já faz um tempo que um grupo de
cientistas alertava sobre esse processo. No Brasil, começou a ficar mais
evidente, quando um grupo de ninjas, munidos com as suas telas,
traçavam linhas de fuga dentro das manifestações contra os
governantes, transmitindo ao vivo o ponto de vista no interior do
movimento. Dessa forma, as lives dos ninjas, quebraram o discurso
hegemônico, muitas vezes recortado cirurgicamente pelas emissoras de
Isolad@s

TV, que transmitiam as suas verdades construídas e controladas pelo


Grande Deu$. Contra discurso, ao vivo, sem edição, capturava as bombas
jogadas por policiais fardados em cima da multidão.

Enquanto isso, as emissoras filmavam do topo dos prédios e


dentro dos helicópteros as imagens que seriam fatiadas,
cirurgicamente. A distância entre as emissoras do alto e os humanos de
baixo, era facilmente identificada nos covídeos das emissoras, quando
comparados com os registros dos ninjas.

Uma ordem do gabinete de controle das principais emissoras


determinava: vândalos e destruição do patrimônio público e privado,
eram as palavras fundantes na construção do discurso para estancar o
inimigo.

Os ninjas, em tempo real, sentiam o cheiro da bomba e do


sangue, a contrapelo, revelando o outro lado. Coisa de comunistas e
esquerdistas, orientavam o Grande Deu$ e os seus gerentes, na tentativa
de aniquilar a narrativa.

Enquanto isso, no interior de um órgão governamental, surgia


uma máfia da imagem, produzida com base na ideologia supostamente
conservadora e liberal. Aqui começa a história do Ítalo Marreta. Jovem
de classe média, cursou propaganda e marketing numa universidade
privada do Rio de Janeiro. Foi lá que ele conheceu o seu atual patrão. A
relação profissional surgiu de uma amizade, que era fortalecida nas
jogadas de altinha nas areias da praia e nas festas dos condomínios
Isolad@s

fechados na Barra da Tijuca. Entre taças de cristal que dançavam com


muito gelo, gim, água tônica, raspas de limão siciliano e ramos de
alecrim, Ítalo ganhava destaque e confiança do atual deputado federal.

Até aquele momento, Marreta era um jovem comum, nascido


nos fundos da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. O mundo do jovem
se ampliou, quando aquela rede de relacionamentos foi criada. Primeiro
na graduação, depois nas rodas de altinha e, por fim, nas festas com
doses de requinte, pouco comum no meio social daquele jovem.

Nas eleições para presidência em 2018, o mundo do Ítalo


Marreta virou de cabeça pra baixo. Brigou com parentes e amigos. Virou
patriota e reverteu suas contas sociais para criticar todos os humanos
que usassem qualquer peça de pano vermelho em suas mentes.

Seu pai, apesar de ter alcançado o posto de contra-almirante


da Marinha, foi vítima de uma explosão no paiol de munição na década
de 1990, na Baía de Guanabara, o que o deixou surdo e com um
posicionamento radicalmente crítico da relação entre forças armadas e
política. Ítalo não queria escutar o posicionamento do pai. Não existia
clima para o almoço de domingo. A família estava dividida e o jovem quis
começar uma nova vida. Jogou para baixo do tapete suas origens,
inclusive a sua própria família, que passou a menosprezar e ignorar.
Cambada de ignorantes, rosnava e babava ao falar da família e daqueles
que caminhavam na calçada esquerda.
Isolad@s

Marreta ganhou visibilidade no grupo mais poderoso para


concorrer às eleições de 2018. Foi contratado com verba de duas
empresas privadas. Nunca viu tanto dinheiro. Passou a pagar suas
contas com cartão de crédito e virou sócio de um clube de tiros. Andava
com camisa do jacaré. Perfume importado e comprou, em trinta
prestações, um carro duas vezes mais veloz do que o permitido por lei
nas rodovias federais.

Ítalo se transformava à medida que a popularidade do seu


patrão aumentava. Supostamente cada vez mais poderoso, rosnava e
cuspia para qualquer humano com posicionamento contrário. Possuía
uma retórica de ataque fulminante, “não discuta com argumentos,
destrua o seu inimigo no ponto mais fraco”. Repetia a frase como um
mantra. Sua voz ganhou ouvidos. Sua narrativa passou a ser
compartilhada por jovens e idosos conservadores.

Mas, foi no mês de novembro de 2018 que a vida do jovem Ítalo


mudou radicalmente. Com a conquista do poder do seu atual patrão, o
Deputado Federal Renan Lima, atingiu o momento mágico. Comemorou
como se o Brasil tivesse feito uma goleada na final da copa do mundo.
De festa em festa, dançava se imaginando no centro do universo. Um
pequeno príncipe, arrancava as flores do seu pequeno jardim das
aflições.

No primeiro dia de 2019 estava em Brasília. Se emocionou


quando, do alto da aeronave que vinha do Rio de Janeiro, conseguiu
Isolad@s

visualizar os desenhos do avião sobre o chão do território do lobo-guará.


Nunca tinha pisado os pés no cerrado. As únicas três vezes que tinha
saído do Rio de Janeiro foram para ir para Miami, Disney e NY.

O clima de festas, com bandeirinhas verde amarela pela capital


do país, o deixou extremamente eufórico. Sem ter a capacidade de fazer
qualquer tipo de leitura sobre a formação histórica daquela cidade, que
carregava um ar de modernidade. Mas, que em tempos de baixa umidade
do ar, fazia algumas narinas escorrer sangue e o pulmão ressecar.

Alugou um SUV automático e foi conhecer o plano piloto. Deixou


as malas no hotel na Asa Norte. Enviou mensagens pela tela da
comunicação instantânea chamada de “grupo Renan Lima assessoria”.
Em minutos já estavam juntos gritando: “minto, minto, minto”. Estava
tecida a rede do poder. A proposta era torcer a bandeira para escorrer
o vermelho.

Na noite, grande festa com uísque 17 anos. No dia seguinte, Ítalo


foi passear pela capital do país. Gostou do que viu, ainda munido da
euforia da nova vida. Fez um percurso da Asa Norte para os principais
edifícios desenhados por um arquiteto famoso do Rio de Janeiro. Decidiu
morar numa casa com piscina no Lago Norte.

Nas margens do Lago Paranoá, se encontrou com a equipe do


gabinete. Uma festa, pareciam amigos de longa data. Eram vinte e três
copos de uísque, entre cervejas e picanha argentina na chapa. Já eram
Isolad@s

nove horas da noite, quando o Deputado Renan Lima enviou uma


mensagem pela tela. Estava atrasado, mas chegaria em minutos.

Ítalo não largava a tela. Enviava mensagens para os grupos de


apoiadores. Postava fotos, enviava mensagens escritas e curtia as
postagens do deputado, seu amigo e naquele momento, fiel patrão. Às
vinte e duas horas e dezessete minutos, Renan Lima chegou no
restaurante.

Foi abraçado pelo grupo de assessores. Recebeu tapas nas


costas do garçom. Pediu uma cerveja. Apontou o dedo para o cardápio,
indicando a quantidade de barcos com comida japonesa. Logo em
seguira, fez o seu primeiro discurso, exclusivo para os assessores.
Agradeceu todo o apoio que o levou a conquistar a vaga no Congresso.
Deu um beijo na mulher siliconada e lipoaspirada e brindou com o sabor
de sorrisos falsos.

Estava selado o encontro que daria início a uma rede de


produção de covídeos. Ítalo foi escalado para o cargo de assessor chefe
do gabinete do desafeto. Comandaria uma rede de produção de
narrativas, feitas por pessoas e distribuídas por robôs. Aprendeu a
programar. De lá sairiam ataques aos humanos que apresentavam
circuitos conectivos com maior número de seguidores e que
apresentavam críticas ao partido do Lima. Estava montado a operação
de emissão de desafetos por covídeos.
Isolad@s

O gabinete do desafeto produziria ataques sistemáticos. Ítalo


estava excitado com a função que lhe foi dada. Matriculou-se numa
academia. Comprou oitocentos reais em produtos para aumento da
massa muscular, queria se ajustar de maneira inteligente. Montou um
armário com blazers e camisas importadas.

A festa do Ítalo não tinha hora, nem local. Estava flutuando.


Nunca tinha respirado tão bem. Frequentava os melhores restaurantes
de Brasília. Transitava nas festas fechadas das mansões do Lago Norte.
Passou a colecionar namoradas. Mentia para as menininhas. Para
algumas, se apresentava como diplomata. Para outras, era agente
secreto da Polícia Federal.

O ano de 2019 foi assim. Malhação, festas, viagens e requinte de


crueldade nas produções. Tinha ódio de gay, negro e pobre. Idolatrava
as armas. Ironizava qualquer forma de afeto. Era o dono do mundo.
Somente no ano de 2019, fez duas viagens para os EUA. Já estava
familiarizado com o país.

Na primeira ida, foi consultar o líder intelectual, seu guru, Olavo


é o Caralho. Voltou com roupas, perfumes, presentes para as namoradas
e várias anotações no caderno. Passou a se comunicar com o seu guru
de maneira frequente, por aplicativos de telas.

Do gabinete do desafeto saiam os covídeos que carregavam


ideias necrófilas, vinculadas ao extermínio do contraditório. Mensagens
de ataque. As armas de captura do imaginário e aniquilamento das
Isolad@s

ideologias contrárias saiam de lá. A rede de relacionamentos do Ítalo


estava cada vez mais ampla. Frequentou muitas reuniões com
empresários e consolidou parcerias fundamentais para ampliação das
produções. Comia do bom e do melhor. Da hamburgueria boutique ao
restaurante mais sofisticado, entrou na plataforma do mundo dos
privilegiados. Virou especialista em mercado financeiro.

Porém, as relações começaram a mudar dentro do gabinete do


desafeto. A raiva contaminou por dentro os assessores. Intrigas e jogos
de interesses derrubariam o Ítalo da chefia. Mesmo bem articulado, só
conseguiu permanecer no cargo até o final do ano de 2019. Sem
perceber, o castelinho de areia começou a desmoronar, também por
fora. A formação de uma comissão especial para o combate aos covídeos
do desafeto, colocou o cargo do Ítalo numa condição de extremo
destaque. Todos os holofotes estavam apontados para ele.

Deixou de malhar. Começou a comer pizza, refrigerentes e


barras de chocolate. Começou a sentir fortes dores na lombar, que
irradiavam pelo nervo ciático gerando até a sola dos pés. Não conseguia
mais ver as belezas do cerrado. Passou a odiar Brasília. Tudo era feio.
Os ares do cerrado secaram o seu pulmão.

Bastante noticiado pela grande mídia, viu nas capas dos jornais
a formação de um Centro de Campanha de Combate ao Covídeo do
desafeto, operação lobo-guará. Seus dias de príncipe estavam contados.
O Deputado Renan Lima enviou um áudio informando que precisava
Isolad@s

desligá-lo imediatamente do cargo. Quando a pandemia do Covid-19


entrou com força no Brasil, Ítalo já estava desligado do gabinete e com
o passaporte aprendido pelos lobos. Foi morar novamente nos fundos da
Baía de Guanabara.

Dividiu o apartamento com os pais e com a irmã mais nova, de


treze anos. Luiza, tinha visão de mundo diferente. Queria ser artista de
teatro e organizava eventos culturais na escola. As refeições estavam
difíceis de ser realizadas em família. Luiza com tinta azul no cabelo,
questionava o racismo, o desmatamento, o derrame de óleo na costa
brasileira e sonhava em estudar numa universidade pública. Ítalo tinha
mudado, era um adulto sem sonhos. Não cabia mais naquela família. Os
argumentos do pai somavam-se às narrativas da pequena Luiza. Dona
Ângela, a matriarca da família, nos momentos mais tensos corria para o
seu radinho, agarrada nas falas de um padre católico, fazia suas
orações. Ítalo não tinha mais afeto por aqueles humanos, nem mesmo
os amigos do bairro eram do seu interesse.

Seus investimentos na bolsa de valores tinham despencado,


perdeu mais da metade do que ganhou. Não tinha condições econômicas
de bancar a vida de 2019. Viciado na luz branca das telas, deixou de ver
a lua nascer, se desconectou da luz do sol. Parecia estar em processo
de adaptação para o que vinha pela frente.

Numa manhã de terça, viu a tristeza no rosto dos pais quando


os lobos bateram em sua porta. Algemado, foi intimado para depor sobre
Isolad@s

as produções dos covídeos dos desafetos. Não teve escolhas, entregou


o esquema, os financiamentos e detalhou o cotidiano da produção e viu
o mundo virar pequeno. Seu pai, após um ataque do coração, perdeu o
ar.

Quando saiu do cárcere, Ítalo se transformou num corpo sem


afeto. Sem vida, sem músculos. Escorregou no próprio desamor. Sem
dinheiro, sem cheiro da Europa, sem calor humano. Quando voltou a ver
a luz do sol, deu um sorriso vingativo ao ler a notícia na banca de jornal.
O seu ex-patrão, o Deputado Renan Lima, não tinha consigo ser reeleito
em 22.
Isolad@s

ESTADO DE DIREITO OU DE
MISÉRIA? EIS A QUESTÃO.
OS MOVIMENTOS SOCIAIS, A
DEMOCRACIA E UMA NOVA
SOCIABILIDADE.

Alline Garcia
Possui licenciatura em Filosofia pela Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes). É pesquisadora do
Nepefil/Ufes. Entre outros tópicos, investiga a dialética
materialista na fase tardia de Theodor Adorno e no
jovem Marx.
alline-filosofia@hotmail.com

EM CASA lendo a p. 253


Isolad@s

PREFÁCIO
presente ensaio insere-se na constelação das reflexões
O fomentadas no debate público e acadêmico neste período
pandêmico (COVID-19), a partir de uma perspectiva crítica,
prospectiva e acessível aos mais diversos estratos de leitores/leitoras com
interesse na discussão. As humanidades apresentam diagnósticos para a
atual crise civilizatória sob os mais diversos prismas do fenômeno - que é
amplo e congruente em suas convergências enquanto pandemia -, ou seja,
incide em diversas esferas da sociedade, como a ambiental, política,
econômica e social.

Haja vista a velocidade da propagação destas perspectivas, o debate


repercute massivamente através de plataformas midiáticas e acadêmicas,
provocando impactos na opinião pública e em setores organizados da
Sociedade Civil. Destarte, há no afluir das distintas contribuições uma
constante muito oportuna para a atual conjuntura brasileira e que, portanto,
trataremos dela aqui, a saber: o Estado.

Há esforços de problematização, nesse sentido, tematizando desde


a função social até os perigos de um Estado de exceção. Personalidades
reconhecidas no cenário acadêmico e político, como filósofos, sociólogos,
economistas, assistentes sociais, juristas, ativistas de movimentos sociais/
estudantis, instituições partidárias, influenciadores digitais manifestam-se
constantemente sobre a necessidade de refundir novas diretrizes para a

EM CASA lendo a p. 254


Isolad@s

relação entre o Estado e a Sociedade Civil neste contexto tão emblemático e


depois dele.

Evoca-se, portanto, uma reflexão crítica sobre a sociabilidade em


face dos efeitos neoliberais dos últimos anos realçados durante a pandemia.
O cerne da questão que abordaremos é: a) a diferença entre a dimensão
social e política do Estado; b) a possível relação dos movimentos sociais com
esses âmbitos, c) uma proposta de nova sociabilidade orientada pelo
princípio de cooperação visando à democracia popular.

O PONTO DE PARTIDA - HEGEL E A EXPERIÊNCIA DA


SOCIABILIDADE: A FILOSOFIA COMO TRINCHEIRA
DOS NOVOS TEMPOS
egel, na "Enciclopédia das Ciências Filosóficas" destaca a
H intrínseca relação entre o pensamento e o objeto na experiência,
isto é, como pensamento e objeto, pela mediação, constituem o
conteúdo do saber. Pensar filosoficamente é pensar as coisas a partir de
conceitos universais concretos. Logo, significa que pensar é negar o mais
imediato, o aparente, é elevar-se da representação individual/isolada como
saber verdadeiro. Esse movimento de mediação entre a sensibilidade e o
pensamento (o universal), é aquilo que Hegel chama de experiência. A
reflexão filosófica, portanto, é uma progressão de vários tempos históricos,
é o pensamento ativo junto aos conteúdos que surgem no tempo, conforme
explicita Hegel:

EM CASA lendo a p. 255


Isolad@s

A filosofia do nosso tempo é a filosofia que rememora a história e


avança na atualização do seu conteúdo (objeto). Ou seja, filosofia é um
esforço de conformação do pensamento ao mundo, às ideias em movimento
(das filosofias anteriores) que o prefiguram. No prefácio à "Fenomenologia
do Espírito", Hegel destaca a necessidade de dinamização da Filosofia, da
permanente adequação ao tempo presente:

A Coisa mesma não se esgota em seu fim, mas em sua


atualização; nem o resultado é o todo efetivo, mas sim
o resultado junto com o seu vir-a-ser (HEGEL, 2002, p.
24).

Nesse sentido, a tarefa da filosofia é estar o mais próxima possível


do conteúdo da consciência do tempo que lhe é próprio. O filósofo e cientista
social Prof. Marcos Nobre (UNICAMP) fez um extraordinário trabalho de
introdução à Fenomenologia do Espirito e sobre seus desdobramentos para
a teoria social contemporânea na obra intitulada "Como nasce o novo". Ele
sintetiza a Filosofia Crítica, na esteira do projeto hegeliano na Modernidade,
da seguinte maneira: "[...] Filosofia é um emblema para sistematização do
conhecimento do tempo presente. O objeto de Hegel é o conhecimento de seu
tempo" (NOBRE, 2018, p. 23).

O nosso objeto também é o tempo presente e, em razão disso, o


ensaio pretende interpelar pressupostos conjunturais que, em ocasião da
pandemia, expressam contradições na relação entre o Estado, a Sociedade
Civil e os movimentos sociais e, a partir delas, apresentar o princípio de
cooperação como pressuposto para pensarmos uma nova sociabilidade, uma
verdadeira democracia popular.
EM CASA lendo a p. 256
Isolad@s

INTRODUÇÃO À QUESTÃO GERAL - ESTADO DE


DIREITO OU ESTADO DE MISÉRIA? EIS A QUESTÃO
filósofo, teólogo e educador cearense Manfredo Araújo de Oliveira
O (UFC) na obra "Ética e Economia" ao delinear os efeitos do
neoliberalismo nos anos 90 (em sua dimensão econômica e ética)
na formação social política brasileira aponta o paradoxo que constitui a
especificidade da nossa sociabilidade no Capitalismo Financeiro, a saber, a
contradição entre capacidade técnica de reprodução material e condição de
vida das/dos trabalhadores.

Na elucidação dos âmbitos que constituem a sociabilidade, a saber,


o político e o econômico, Manfredo questiona a efetivação do Estado de
Direito num país que mantém uma estrutura de miserabilidade. O filósofo
reitera que a satisfação das necessidades humanas e a eliminação de
desigualdades sistêmicas são pressupostos de uma sociedade política, isto é,
a seguridade da dignidade humana - como expressão de autonomia e
liberdade - é um pressuposto da democracia moderna que configura a
conformação da sociedade, quanto à sociabilidade, ao Estado de Direito.
Segundo o filósofo: "Nós não podemos considerar nosso país propriamente
um Estado de Direito, enquanto a violência e a arbitrariedade sistêmicas
regerem as relações econômicas (MANFREDO, 1995, p .13)".

Com efeito, a tese que assumimos aqui, do Estado de Miséria, em


ressonância ao que fora exposto por Manfredo, é de uma deformação

EM CASA lendo a p. 257


Isolad@s

histórica do Estado de Direito e, consequentemente, uma alienação da


"verdadeira democracia" (Marx), aquela que tem a raiz da sociabilidade no
próprio homem. Abordar a relação entre Estado e sociabilidade perpassa,
necessariamente, as discussões sobre ética e direito, afinal, nossa
sociabilidade é caracterizada pelo reconhecimento da democracia liberal
enquanto forma política de organização das relações sociais.

Nesse ínterim, convém destacar que há um extenso debate sobre a


função do Estado quanto à promoção e proteção da igualdade de direitos dos
cidadãos, tendo como base o ordenamento jurídico - enquanto instância
normativa da sociabilidade, orientada pelos postulados universalistas da
Ética Ocidental, nesta reflexão, todavia, vamos nos ater ao debate sobre a
revitalização do caráter dos movimentos sociais em tempos de pandemia
enquanto uma alternativa de construção de uma nova sociabilidade,
desvinculando-os do exclusivo ativismo institucional.

INTRODUÇÃO À CONJUNTURA LATINO-AMERICANA -


ESTADO NEOLIBERAL E A POLITIZAÇÃO DA
DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA
Começaremos com algumas características mais amplas sobre o
C que é neoliberalismo e, em sequência, trataremos da questão
particular que nos interessa.

EM CASA lendo a p. 258


Isolad@s

Perry Anderson, historiador inglês, situa a origem do Neoliberalismo


no período subsequente à II Guerra Mundial na Europa e no EUA. Segundo o
historiador, o neoliberalismo "foi uma reação teórica e política veemente
contra o Estado intervencionista e de bem-estar (PERRY, 1995, p.9)". Essa
definição é basilar, porém quando pensamos no Capitalismo Dependente 45
latino-americano, mais especificamente no caso brasileiro nos deparamos
com particularidades na forma pela qual o neoliberalismo se desenvolveu
aqui.

O Prof. Dennis de Oliveira (ECA/USP), militante do movimento negro,


integrante da Rede Anti Racista Quilombação46, destaca as especificidades
da nossa anatomia:

No caso específico do Brasil, um país que passou por


uma revolução burguesa de caráter conservador, que
manteve estruturas aristocráticas e escravistas quase
que intactas, a adoção deste modelo neoliberal
aumenta um processo de exclusão que já existia,
praticamente condenando ao extermínio os ocupantes
deste segmento populacional. Este aumento se dá de
duas formas: a-) de forma extensiva, ao ampliar o
número de pessoas que entram na zona da exclusão
social, num processo que podemos denominar de
democratização da senzala; b-) de forma intensiva, ao
intensificar os mecanismos de exclusão daquelas
pessoas que já estavam na zona dos excluídos, num
processo complementar que denominaremos de
extermínio da senzala. Os dois processos -
democratização e extermínio da senzala -

45
Cf: MARINI, Ruy. Dialética da Dependência. Rio de Janeiro, Editora Expressão Popular, 2005.
46
Cf: https://quilombacao.wordpress.com/quem-somos/.

EM CASA lendo a p. 259


Isolad@s

praticamente destroem a incipiente sociedade civil


brasileira e transforma a cidadania num privilégio cada
vez mais inacessível à maioria. Os direitos sociais,
embora previstos legalmente, transformam-se em
letra morta diante da incapacidade dos poderes
públicos garanti-los sem uma ruptura com todo o
sistema social (OLIVEIRA, 2000, p. 32-33).

O neoliberalismo brasileiro se desenvolve numa formação social


decorrente do escravismo colonial47. Podemos já inferir que identificamos o
Estado Neoliberal no Brasil com o Estado de Miséria por ampliar a exclusão
e o extermínio a partir do enfraquecimento do Estado enquanto estabilizador
da contradição entre produção e relação de produção no Capitalismo
mundializado (ou Financeiro), a exemplo disso, podemos mencionar todos os
ajustes fiscais e reformas trabalhistas propostas a partir da crise de 2008. A
historiadora Virgínia Fontes (UFF) acentua a contradição do Estado Neoliberal
e a seguridade social do seguinte modo:

Como o Estado nasce da desigualdade fundamental no


terreno da produção da vida — as classes sociais — que
ele próprio precisa reproduzir e assegurar, ele
permanentemente tensiona a igualdade jurídica
infringida pela desigualdade real. Ademais, a “razão do
Estado” se confunde com os interesses das burguesias
— em especial o crescimento econômico, equiparado à
produção capitalista. A crise contemporânea assume,
pois, um perfil político [...] o desmantelamento das
políticas universais e igualitárias. O conjunto desse
processo, em curso na atualidade, é enorme desafio e

47
Cf: PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011, MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2ª ed. São Paulo: Fundação
Maurício Grabois; Anita Garibaldi, 2014, GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2010.

EM CASA lendo a p. 260


Isolad@s

exige o permanente exercício de pesquisas rigorosas e


da elaboração de sínteses correlacionando as tensões
nacionais e internacionais, do ponto de vista dos
trabalhadores. As grandes contradições — e crises —
atuais emergem diretamente da expansão do
capitalismo e de seu ideário liberal ou neoliberal, e não
do enfrentamento de processos revolucionários. Não
obstante, um anticomunismo ferrenho e retrógrado é
reativado, aparentemente pretendendo bloquear
qualquer reivindicação de cunho igualitário. Em suma,
a democracia parece ter se tornado comunista
(FONTES, 2017, p. 409)

Virginia salienta, como os autores que nortearam nossa definição de


neoliberalismo acima, que a crise contemporânea do neoliberalismo assume
um caráter político e, portanto, a partir disso, temos aqui uma questão a
pautar: Se o Estado Neoliberal converge crise econômica em crise política,
se historicamente não vivemos a consubstancialização da democracia liberal
no país, qual é o conceito de sociabilidade que orienta a atuação dos
movimentos sociais na luta por outra democracia que não a democracia
formal do Estado de Miséria? É uma pergunta retórica, para reflexão, sobre
a qual o próprio texto ao fim das seções introdutórias sinalizará a tendência
atual.

A resposta, numa perspectiva histórica e dialética, começa pela


gênese e progressiva análise da ideia de democracia arraigada na América
Latina. O sociólogo argentino Atilio Boron (1998) defende a ideia de que a
América Latina não viveu nenhuma revolução substancialmente burguesa
devido à necessidade de consolidação dos modos de produção exigida pelo
mercado. O capitalismo dependente reduziu o processo de democratização

EM CASA lendo a p. 261


Isolad@s

na América Latina, por exemplo, a um processo de adaptação aos interesses


do capital. Enquanto na Europa houve uma onda de redemocratização nos
Pós-Guerra, na América Latina vivemos um período de pauperização com o
avanço das forças produtivas. Ele afirma que as próprias esquerdas aderiram
a esse conceito facilista e otimista de democracia, que ele caracteriza como:
a) caráter linear e ininterrupto dos progressos democráticos; b) a
democracia tem o seu limite na normalização das instituições políticas.
Borón aponta que a esquerda migrou de um reducionismo economicista a um
reducionismo (virtuoso) político:

Essa falida intenção de fazer com que a política


recuperasse a "dignidade" de que havia sido despojada
por um grosseiro economicismo se traduziu, em muitas
ocasiões, na mera substituição de um reducionismo -
que remeta tudo à esfera econômica - por outro,
supostamente virtuoso e de natureza política (BORON,
1998, p. 70).

O conceito de democracia na América Latina, para o sociólogo, está


condicionado à estrutura formal do Estado e do sistema representativo. Ele
não nega que haja melhorias para as classes subalternas, que é melhor ter
alguma garantia constitucional de seguridade do que não ter nenhuma,
porém o reformismo tropeça na contradição entre democratização política e
autocracia econômica. Segundo o sociólogo, o desafio das esquerdas na
América Latina é ultrapassar o politicismo da democracia e formular uma
agenda alternativa de transformação social a partir das demandas
decorrentes das desigualdades sistêmicas. Borón defende que cabe aos
novos governos na América Latina assegurar a democracia como ferramenta

EM CASA lendo a p. 262


Isolad@s

de construção de uma "boa sociedade" e não como "protetora" de "direitos


individuais".

NOSSA CONJUNTURA BRASILEIRA HOJE - O ESTADO,


OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A PANDEMIA.
ão temos espaço o bastante para esboçar uma análise conjuntural
N ampla e minuciosa sobre a gênese e desenvolvimento histórico dos
movimentos sociais no Brasil até o presente. Nem mesmo é
possível traçar um panorama dos debates que circunscrevem a relação dos
movimentos sociais48 com os partidos, o terceiro setor (uma terceira via
entre o público e o privado) e o Estado Neoliberal, mas de modo abreviado
destacamos alguns aspectos da atuação dos movimentos nessa última
década antecedente à pandemia. A socióloga Maria da Glória Gohn descreve
os movimentos sociais como:

[...] ações sociais coletivas de caráter socio-político e


cultural que viabilizam formas distintas de a população

48
Definições já clássicas sobre os movimentos sociais citam como suas características
básicas o seguinte: possuem identidade, têm opositor e articulam ou fundamentam-se em um
projeto de vida e de sociedade. Historicamente, observa-se que têm contribuído para
organizar e conscientizar a sociedade; apresentam conjuntos de demandas via práticas de
pressão/mobilização; têm certa continuidade e permanência. Não são só reativos, movidos
apenas pelas necessidades (fome ou qualquer forma de opressão); podem surgir e
desenvolver- -se também a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência. Na
atualidade, apresentam um ideário civilizatório que coloca como horizonte a construção de
uma sociedade democrática (GOHN, 2011. p.4). Conferir as obras de Maria da glória Gohn sobre
a sociologia dos movimentos sociais: Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e
contemporâneos, Edições Loyola São Paulo: 1997, Novas teorias dos movimentos sociais, São
Paulo: Edições Loyola: 2008.

EM CASA lendo a p. 263


Isolad@s

se organizar e expressar suas demandas [...] Os


movimentos realizam diagnósticos sobre a realidade
social, constroem propostas. Atuando em redes,
constroem ações coletivas que agem como resistência
à exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem e
desenvolvem o chamado empowerment de atores da
sociedade civil organizada à medida que criam sujeitos
sociais para essa atuação em rede (GOHN, p. 3-4, 2011).

Os diagnósticos sobre as políticas públicas49 no Brasil


(compensatórias/ afirmativas), principalmente durante o governo do Partido
dos Trabalhadores (PT), prefigura um debate extenso entre políticas
distributivas e redistributivistas.

As cientistas políticas Tatagiba, Abers e o sociólogo Silva (2018),


concebem uma intrínseca relação entre as políticas públicas e os
movimentos sociais. Eles seriam um subsistema onde pessoas comuns da
sociedade civil se agrupam para atuar em prol de modelos alternativos de
sociabilidade, para disputar um lugar de participação na construção das
políticas públicas - tanto na posição de confronto para implementação como
de manutenção. Ademais, os movimentos sociais também atuam como
cooperadores no quadro institucional do Estado durante o governo de um

49
As políticas públicas são frutos de processos ideacionais, por meio dos quais se definem os
problemas que devem merecer atenção pública e as formas de solução desses problemas.
Essas ideias surgem e se transformam por meio de experiências práticas ao longo do tempo
e em diferentes localidades e níveis. Tais experiências não somente produzem informações
“técnicas” sobre a adequação de uma definição de problema ou sobre a viabilidade de uma
solução, mas também geram recursos e relacionamentos para defender e implementar ideias
específicas (Abers e Keck, 2013; Ansell, 2011; Hajer e Wagenaar, 2003; Zittoun, 2014). Por fim, a
construção das políticas tem uma dimensão relacional, na medida em que seus resultados
dependem das interações entre atores políticos e sociais estratégicos, em condições
institucionais e conjunturais dadas (Tatagiba, Abers, Silva. 2018).

EM CASA lendo a p. 264


Isolad@s

partido alinhado ao núcleo programático. Essa cooperação é denominada de


ativismo institucional, quando os movimentos sociais se relacionam com a
burocracia para implementar políticas públicas que expressem suas agendas
sociais. Conforme elucidado pelas autoras e pelo autor:

Os movimentos não só aproveitam as oportunidades


colocadas pela conjuntura, como, no caso da presença
de aliados em posições de poder ou da existência de
canais institucionais de acesso aos processos
decisórios, também tentam criar oportunidades ao
atuarem para alterar o ambiente institucional no qual
operam. Não raro, para fazer a disputa por modelos
alternativos de políticas públicas, os movimentos
sociais enfrentam o desafio de reformar o Estado.
Muitas vezes, trata-se de lutas para definir ou redefinir
a estrutura organizacional do próprio subsistema de
política pública, na tentativa de criar espaço
institucional para o movimento e suas propostas
(TATAGIBA, ABERS, SILVA, 2018, p. 8).

Durante a pandemia evidenciou-se a articulação - mais que


fundamental - dos movimentos sociais em prol das demandas sociais. Em um
primeiro momento, pensando no ativismo social mencionado acima, pode-se
inferir duas perspectivas possíveis sobre o fenômeno: 1) Por que os
movimentos sociais não mobilizaram - ou não repertircuram-
intensivamente essa agenda de pautas estruturais/emergenciais junto à
sociedade civil antes da pandemia, já que algumas delas já haviam sido pré
concebidas e até sancionadas, a exemplo: a renda básica de cidadania (LEI
Nº 10.835, 2004) 50durante o governo Lula. E quanto às cartilhas de saúde

50
“Art. 1º É instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito
de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco)

EM CASA lendo a p. 265


Isolad@s

popular, medidas emergenciais de enfrentamento da fome, pesquisa e


extensão das universidades com acessibilidade virtual, dossiês e mídias
digitais explicativas sobre direitos sociais, por que não houve iniciativas
didáticas e de fácil acesso como essas anteriormente? 2) O que podemos
aprender com essa mobilização de caráter emergencial durante a COVID-19?

Nosso propósito é elucidar algumas reflexões sobre o segundo ponto


devido ao espaço limitado. Certamente, o primeiro ponto evidencia a
problemática do ativismo institucional, suas causas, efeitos e
desdobramentos no tecido social a curto e médio prazo. Precisaríamos fazer
um balanço geral das implicações desse ativismo nas políticas públicas e,
consequentemente, os impactos dessa imbricação na sociedade, nos sujeitos
reais – de carne e emoções, principalmente na população negra e periférica.
Durante a pandemia, os movimentos sociais mediaram ativamente os
problemas agravados pela vulnerabilidade social. Chama à atenção algumas
mobilizações de resposta rápida e eficientes, mas também as medidas
estruturais caríssimas ao desenvolvimento de uma nova sociabilidade.

É o caso, por exemplo, da "Plataforma emergencial para


enfrentamento da pandemia do coronavírus e da crise" 51 (Março, 2020) pelas

anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um


benefício monetário”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br.
51
O documento pode ser encontrado em formato PDF no sítio eletrônico:
https://todomundo.org. O texto estabelece medidas de enfrentamento à pandemia e à crise
decorrente a partir da garantia e preservação da vida, renda e emprego. Explicitando as
necessidades fundamentais que vão desde a alimentação, saúde e moradia até nova
organização da aplicação dos recursos públicos.

EM CASA lendo a p. 266


Isolad@s

frentes "Brasil Popular e Povo sem Medo", que reuniu diversos movimentos
sociais e centrais políticas em nome de um projeto democrático que amenize
as consequências da crise sanitária e econômica, conforme consta na
apresentação do documento. Em Vitória (ES), os movimentos sociais vêm
atuando nas mais variadas frentes de combate/amenização das
desigualdades ampliadas durante a pandemia nos grupos mais vulneráveis,
a exemplo disso, podemos citar a "Unidade Negra Capixaba de Combate à
Covid-19" que reuniu diversos coletivos, representantes religiosos das
religiões de matriz africana, professores, agentes comunitários, dentre
muitos outros grupos vinculados ao movimento negro capixaba para a
elaboração de uma carta e de um baixo-assinado52 reivindicando ao governo
do Estado decreto de lockdown até a diminuição da curva de contágio, entre
outras medidas de prevenção e cuidado da população negra. O coletivo de
53
mulheres "Juntas e seguras” lançou uma cartilha informativa para o
enfrentamento de violência doméstica contra mulheres durante o isolamento
social. O Levante popular da juventude/ES54 também atuou junto às periferias
da Grande Vitória com a campanha "NÓS POR NÓS" na distribuição de cestas
básicas e materiais de higiene, foram mais de duas toneladas de alimentos
doados, contemplando mais de 150 famílias em situação de vulnerabilidade.

52
Cf:GOBBO, Elaine Entidades do Movimento Negro realizam protesto nesta quinta no Centro
de Vitória, 02 de Junho, 2020, Disponível:https://www.seculodiario.com.br/saude/entidades-
do-movimento-negro-realizam-protesto-nesta-quinta-no-centro-de-vitoria, Acesso em: 10
de Julho, 2020.
53
Cf: www.juntaseseguras.com.br.
54
Cf campanha NÓS POR NÓS na região da Grande Vitória pelo Instagram: @levantees.

EM CASA lendo a p. 267


Isolad@s

Sem falar das mobilizações programáticas que ganharam contorno e


visibilidade veloz durante a pandemia, como é o caso do Fórum Popular da
55
Natureza organizado em 2019, mas lançado em Junho/ 2020, que é um
movimento de resistência à submissão da natureza ao capital e prospecção
de alternativas ecológicas alinhadas a uma compreensão de economia que
não contribui para a crise ambiental como a que enfrentamos hoje no
neoliberalismo.

UMA NOVA SOCIABILIDADE: A CRÍTICA QUE


ARRANCA AS FLORES IMAGINÁRIAS DOS GRILHÕES
PARA QUE A FLOR VIVA DESABROCHE.
[...] A tarefa da história, depois de desaparecido o além
da verdade, é estabelecer a verdade do aquém. A tarefa
imediata da filosofia, que está a serviço da história, é,
depois de desmascarada a forma sagrada da
autoalienação [Selbstentfremdung] humana,
desmascarar a autoalienação nas suas formas não
sagradas. A crítica do céu transforma-se, assim, na
crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do
direito, a crítica da teologia, na crítica da política
(MARX, 2010, p. 146).

No decurso dessas mobilizações, cabe à reflexão o tipo de relação


que os movimentos sociais e a Sociedade Civil passarão a ter com o Estado
daqui por diante. Para subsidiá-la, vamos avocar algumas considerações do
muito citado (mas pouco lido) Karl Marx. Nos anos 1840, do século XIX, Marx

55
Cf: http://forumdanatureza.org.br/sobreoforum/.

EM CASA lendo a p. 268


Isolad@s

se debruça intensamente sobre a relação entre o Estado e a sociedade civil,


o social e o político, afinal, essa era a grande problemática da filosofia
moderna e da formação social que prefigurava a ascensão da democracia
burguesa e o rompimento da ordem feudal, a Monarquia prussiana na
Alemanha. Nesses escritos da juventude, Marx esboça críticas contundentes
à concepção idealista do Estado monárquico, como concebido por Hegel, onde
a sociedade é constitutiva do Estado e não o Estado decorrente dos sujeitos
reais. A concretude é predicada pela ideia (conceito), logo, a atividade
racional encarnada na história é o Estado, não os sujeitos reais. Disso resulta
uma autodeterminação do Estado frente às particularidades. É a razão
(especulativa,embora histórica) que se faz carne, e não a razão histórica na
concretude da formação social dos sujeitos que se faz Estado. Segundo Marx,
Hegel inverte a correlação entre Estado e Sociedade Civil a partir de uma
separação entre o que é orgânico e o que é ideia, de modo que a constituição
política do Estado é feita a partir das determinações lógicas da formação
social na autodeterminação da ideia e não a partir das distinções reais da
formação social, logo, há uma passagem da ideia abstrata de sujeitos reais
para a constituição política do Estado ao invés da organicidade ser à base da
ideia política. Vejamos:

O pressuposto, o sujeito, são as distinções reais ou os


diferentes lados da constituição política. O predicado é
a sua determinação como orgânicos. Em vez disso, a
Ideia é feita sujeito, as distinções e sua realidade são
postas como seu desenvolvimento, como seu resultado,
enquanto, pelo contrário, a Ideia deve ser desenvolvida
a partir das distinções reais. O orgânico é justamente a
ideia das distinções, a determinação ideal destas. Mas

EM CASA lendo a p. 269


Isolad@s

aqui se fala da Ideia como de um sujeito, da Ideia que


se desenvolve em suas distinções. Além dessa inversão
de sujeito e predicado, produz-se aqui a aparência de
que o discurso trata de outra ideia que não a do
organismo. Parte-se da ideia abstrata, cujo
desenvolvimento no Estado é a constituição política.
Não se trata, portanto, da ideia política, mas da Ideia
abstrata no elemento político (MARX, 2010, p. 33).

Essa mesma disjunção idealista ganha o contorno da diferenciação


que fazemos hoje na análise do neoliberalismo no Brasil entre Estado de
Direito e Estado de Miséria. Marx compreende a verdadeira democracia como
uma superação da dicotomia entre o Estado político (legislativo) e a
Sociedade Civil (enquanto membros singulares). A necessidade de
representação já aponta para a separação entre eles. "A sociedade civil é
sociedade política real (Ibid, 2010, p.133)". Nesse sentido, não se trata de não
formular leis, mas de formular leis reais, que respondam aos desejos
populares.

Na obra Sobre a Questão Judaica, ele diferencia a emancipação


política da emancipação humana, a verdadeira democracia é a plenitude da
emancipação humana, a concretude da liberdade. Isto é, a emancipação
política refere-se apenas a um momento formal de reconhecimento das
necessidades dos sujeitos reais. A verdadeira democracia é um movimento
de autocrítica permanente entre o político e o social. O Estado de Miséria é
um Estado político que deve ser ultrapassado, pois:

Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma


definitiva, o homem leva uma vida dupla não só
mentalmente, na consciência, mas também na

EM CASA lendo a p. 270


Isolad@s

realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial


e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na
qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na
sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa
particular, encara as demais pessoas como meios,
degrada a si próprio à condição de meio e se torna um
joguete na mão de poderes estranhos a ele. A relação
entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão
espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra
(MARX, 2009, p. 40).

Marx concebe a emancipação política apenas como reconhecimento


formal dos indivíduos, na forma do direito, que passa de homem a cidadão,
alienando-o da sua atividade individual e intersubjetiva na sociabilidade, ou
seja, a emancipação política ainda não é a efetivação da democracia. A
emancipação humana, por sua vez, é a concretização desse cidadão abstrato.
A força social não está alienada de si como força política. Na verdadeira
democracia, elas estão em correlação. Com base nessas considerações,
surge a pergunta: como é possível transitar de um Estado de Miséria a uma
verdadeira democracia? A resposta não está dada, mas a caminho, haja vista
que a reflexão filosófica crítica parte da experiência social, a verdade do
objeto, a realidade em constante movimento, modifica o percurso do
pensamento e, consequentemente os diagnósticos do tempo, conforme
elucidamos lá no início do texto. Se nos governos anteriores aos governos
Temer-Bolsonaro, os movimentos sociais viram dentro do próprio Estado
Político a possibilidade de transformação do Estado de Miséria, durante a
pandemia o limite desse enxerto democrático ficou escancarado e não só
pela incapacidade do atual governo de responder às necessidades da

EM CASA lendo a p. 271


Isolad@s

população, mas devido à própria insustentabilidade dessa sociabilidade a


qual estávamos adaptados.

Evidenciou-se também a capacidade de mobilização da sociedade


civil e dos movimentos sociais como agentes de modificação da sociabilidade.
A crise que vivemos não é surpreendente, embora aterrorizante. O filósofo
Maurício Abdalla, por exemplo, já sinalizava desde 2002 no livro "O princípio
da cooperação: em busca de uma nova racionalidade", a necessidade de
transitarmos de uma sociabilidade competitiva para uma sociabilidade
solidária, de enfrentarmos a crise da natureza como uma crise da
sociabilidade humana em razão do princípio de troca. A sociabilidade
predominante é orientada pelo princípio que ele chama de troca competitiva,
cujo fundamento é o mercado, e a consequência é a constante tensão entre
as classes sociais que se desdobra em fenômenos como a violência
sistemática, degradação ambiental, dentre outros fenômenos subjacentes ao
problema da exclusão social. Numa economia solidária, o que orienta a
sociabilidade é a troca complementária, onde as necessidades são supridas
em ambos os lados da relação de troca a partir do princípio de cooperação.

Segundo Abdalla, não se trata de uma eclosão repentina de uma


nova sociabilidade, mas de uma transformação progressiva da interpretação
da realidade, uma alternativa ao modo vigente de nos relacionarmos com os
outros e a natureza. Os movimentos sociais durante a pandemia vêm
conseguindo rememorar com a sociedade a solidariedade como possibilidade
de outra sociabilidade suplantando o princípio individualista da ética

EM CASA lendo a p. 272


Isolad@s

burguesa - até então tão em voga na opinião pública na última eleição


presidencial com apelos a um Estado mínimo-, além de outra forma de
correlação entre a força social e a forma política do Estado. Caberá aos
movimentos sociais daqui por diante o velho caminho do ativismo
institucional nos escombros do Estado de Miséria ou o adubo de uma nova
sociabilidade em meio ao colapso socio-ambiental que estamos vivendo. A
ética da cooperação, segundo Abdalla, é uma dialética entre indivíduo e
coletividade, tanto o indivíduo compõe a totalidade como a totalidade o
perfaz, disso decorre que o desenvolvimento da ética da cooperação é um
processo de experiências concretas, como a instituição da renda básica
emergencial, investidas de formação e educação. Para o futuro: Democracia
num Estado de Miséria ou Cooperação num Estado de Direitos?

Que a razão des-naturada não volte à normalidade!

REFERÊNCIAS
ABDALLA, Maurício. O princípio da cooperação: em busca de uma nova racionalidade. Ed
Paulus, 2ºed, São Paulo, 2004.

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neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

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outras providências, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2004/Lei/L10.835.

ARAÚJO, Manfredo. Ética e Economia. São Paulo, Ed. Ática, 1995.

EM CASA lendo a p. 273


Isolad@s

BORÓN, Atílio. A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal. In SADER, Emir & GENTILI, Pablo
(orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e
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https://doi.org/10.1590/0101-6628.116.

HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Trad: Paulo Meneses,
São Paulo, Loyola, 1995.

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GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais na Contemporaneidade. Revista Brasileira de


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São Paulo, 1997.

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad: Rubens Enderle e Leonardo de Deus,
2ª ed. revista, São Paulo, Boitempo, 2010.

____. Sobre a questão judaica. Trad: Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2010.

MARINI, Ruy. Dialética da Dependência. Rio de Janeiro, Editora Expressão Popular, 2005.

MOURA, Clóvis. Dialética radical do Brasil negro. 2ª ed. São Paulo: Fundação Maurício Grabois;
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NOBRE, Marcos. Como nasce o novo. São Paulo: Ed. Todavia, 2018.

OLIVEIRA, Dennis. Globalização e racismo no Brasil. Unegro, São Paulo, 2000.

EM CASA lendo a p. 274


Isolad@s

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

TATAGIBA, Luciana; ABERS, Rebecca; SILVA, Marcelo K. Movimentos sociais e políticas


públicas: ideias e experiências na construção de modelos alternativos. Disponível em:
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8601/1/Movimentos.pdf, 2018.

EM CASA lendo a p. 275


Isolad@s

IMAGINANDO O FIM DO
CAPITALISMO

Luciana Molina Queiroz


Licenciada (2011) e bacharela (2013) em Filosofia pela
Universidade Federal do Espírito Santo, mestra em
Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais
(2014) e doutora em Teoria e História Literária pela
Universidade Estadual de Campinas (2018). Durante o
doutorado, recebeu como prêmio do Emerging
Leaders in the Americas Program bolsa de estágio de
pesquisadora visitante na University of Alberta e
também realizou doutorado sanduíche com bolsa
CAPES PDSE na Stanford University.
lucianamqueiroz@gmail.com

EM CASA lendo a p. 276


Isolad@s

Poema do beco

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?


- O que vejo é o beco.

(Manuel Bandeira)

s imagens de pensamento se tornaram marcantes dentro da


A filosofia analítica. Mas não é possível esquecer de seu uso na
tradição filosófica em geral. Cunhar imagens para pensar de maneira mais
aguda é algo que remonta aos primórdios da História da Filosofia. Tal
preferência por tomar imagens expressivas como ponto fulcral do discurso
nos remete tanto aos pré-socráticos como àquela que provavelmente é a
alegoria mais famosa da História da Filosofia: a Caverna de Platão, n’A
República. Podemos dizer que, dessa forma, os filósofos montam seu próprio
cinema: imagens são projetadas com o fito de nos fazer pensar melhor.

É análogo a esse procedimento o modo pelo qual o filósofo esloveno


Slavoj Žižek aborda o cinema em suas obras filosóficas. Quase
obsessivamente mesclando filosofia e cinema, ele virá a reconhecer a si
mesmo como um cineasta frustrado. Mais do que simplesmente fazer críticas
cinematográficas, Žižek cria “imagens de pensamento” a partir de filmes.
Dessa prática, surgiram dois filmes protagonizados por ele e voltados quase
que exclusivamente a pensar a arte cinematográfica e a cultura pop: The
Pervert’s Guide to Cinema (2006) e The Pervert's Guide to Ideology (2012).
Ambos os filmes, dirigidos por Sophie Fiennes, mostram o filósofo como uma

EM CASA lendo a p. 277


Isolad@s

espécie de apresentador ou VJ da MTV, em frente a um fundo de chroma key


que imita os cenários dos filmes que ele analisa.

É nesse sentido que ele lê o clássico de Alfred Hitchcock “Psicose” -


mostrando como sótão/hotel/casa principal podem ser visualizados como
uma espécie de id/ego/superego na constituição psíquica de Norman Bates.
Norman, afinal, alterna suas personalidades nesses lugares. Numa variante
disso, Žižek destaca a arquitetura como um elemento importante em Psicose:

Outro aspecto desse mesmo antagonismo diz respeito


à arquitetura. Também podemos considerar Norman
um indivíduo dividido entre duas casas — o motel
horizontal, moderno, e a casa da mãe, gótica, vertical
—, sempre correndo entre uma e outra, sem nunca
encontrar um lugar que seja seu. Nesse sentido, o
caráter unheimlich do final do filme significa que, em
sua identificação total com a mãe, Norman encontra
finalmente seu Heim, sua casa. Em obras modernistas
como Psicose, essa separação ainda é visível, enquanto
o objetivo principal da arquitetura pós-moderna de
nossos dias é obscurecê-la (ŽIŽEK, 2018, p. 98).

O uso que o filósofo faz do cinema parece bastante esquemático e


limitado do ponto de vista da crítica cinemográfica. É como se aplicasse
psicanálise para ler filmes, o que acaba culminando no efeito de tentar enfiar
um sapato em um pé um número maior. Não cabe e não poderá caber, porque
não respeita a alteridade do objeto analisado. Na verdade, utiliza o filme não
para pensar a si mesmo, mas antes para pensar algo externo ao filme. Ou
seja, não há análise propriamente imanente e o objeto fílmico
frequentemente fica em segundo plano. Mas disso sai algum tipo de reflexão

EM CASA lendo a p. 278


Isolad@s

social e psicanalítica que, se não é sempre que consegue nos persuadir, é


bastante eficiente em plantar uma semente reflexiva.

É dessa forma também que o cinema faz aparições no modo como


Žižek interpreta a crise do coronavírus. Ainda no final de janeiro de 2020,
quando o problema se encontrava basicamente na China, ele escreve o
primeiro de seus vários textos sobre a pandemia. A maioria dos outros
filósofos só se dignará a pegar canetas e teclados quando o coronavírus
assaltar a Europa.

Referência recorrente na sua produção é uma ideia do teórico e


crítico literário Fredric Jameson, que teria dito que é mais fácil imaginar o
fim do mundo que o fim do capitalismo. Assim, como o próprio Jameson, Žižek
parece ter gosto por obras de ficção científica que projetam a humanidade
em um futuro ou espaço distintos do nosso. Quando o coronavírus emerge
em Wuhan, ele confessa que parte do seu fascínio se deve à semelhança que
observa entre as fotos da província e imagens de um filme distópico. A
provocação de Jameson, apesar de muito evocada, parece até agora ser
objeto de muitos equívocos. Jameson se questiona como o cinema
hollywoodiano hegemônico é capaz de pensar vários finais catastróficos para
o mundo, ao mesmo tempo em que dificilmente conseguimos ver qualquer
iniciativa criativa que nos confronte com uma sociedade não capitalista.
Disso é possível inferir que, para a ideologia hollywoodiana, é mais fácil
pensar o fim do mundo que o fim do capitalismo.

EM CASA lendo a p. 279


Isolad@s

Ao observar a recepção dos textos do Žižek sobre a pandemia,


percebemos que seus críticos, entusiastas ou não do cinema hollywoodiano,
padecem frequentemente do mesmo problema. Sob o pretexto de maior
realismo, muitos se indignaram com a ideia de que seria possível haver
qualquer frente de resistência ao capitalismo durante a crise do coronavírus.
Por carência de imaginação ou mesmo medo de que fosse possível um mundo
diferente do capitalista, ficaram presos na lógica de Hollywood. No caso, para
os críticos do Žižek, é muito mais fácil imaginar a exacerbação do capitalismo
do que qualquer alternativa que se interponha a ele. Nesse sentido, as
consciências estão presas, reificadas.

Apenas o chanceler Ernesto Araújo, com a paranoia anticomunista


que imputa aos comunistas um poder maior do que eles parecem
efetivamente ter na atual conjuntura, deu os devidos créditos a Žižek, isto é,
foi capaz de perceber que o que estava em jogo era a própria tentativa de
disseminar o comunismo – hipótese que outros críticos parecem ter
descartado de antemão.

A esquerda liberal achou o filósofo ingênuo. Parafraseando o próprio


filósofo, e se o oposto fosse verdade? E se é ela que não consegue perceber
como sua própria consciência e imaginação foram capturadas pela ideologia
capitalista? Capturadas a ponto de recusarem a perceber que a crise também
oferece oportunidades? Žižek tenta extrair esperanças e possibilidades da
leitura da conjuntura política. Mas os liberais fazem caretas e pedem para

EM CASA lendo a p. 280


Isolad@s

que ele deixe para trás qualquer esperança – como se tivéssemos adentrado
no inferno de Dante.

Suas intervenções foram, é claro, feitas de maneira apressada, no


calor da hora – e por isso percebemos algumas dissonâncias entre todos os
textos escritos, reunidos e lançados pela Boitempo em formato de livro
(2020). Ainda assim, vale a pena ressaltar que o filósofo também especula
sobre a possibilidade de cenários nada desejáveis, tais como a
semidesintegração do poder estatal e a luta por territórios, o que compara
com outra obra distópica, Mad Max. Há o risco do megacapital aproveitar a
oportunidade para se renovar de maneira mais totalitária, mediante o
controle das redes e dos dados, assim como de expressar descaso em
relação à vida dos idosos e fracos. Esse descaso, aliás, já foi observado nos
discursos do Presidente da República no Brasil e de seu séquito, que desde o
começo da crise falam com conformismo sobre a morte de pessoas mais
vulneráveis. Com isso, Žižek postula uma pergunta retórica: o coronavírus
será mais benéfico para os bancos ou é possível que uma nova ordem
mundial surja disso?

Levando-se em conta o poder de adaptação, maleabilidade e


sobrevida do capitalismo, a aposta de que ele vai se intensificar após a
pandemia parece mais do que razoável. Por outro lado, a identificação de
potencial emancipatório na catástrofe é o imperativo categórico do
comunista. Caso contrário, lançaríamos mão do fatalismo, que pode parecer

EM CASA lendo a p. 281


Isolad@s

uma posição infinitamente mais confortável, mas que ao mesmo tempo é


aquela que vai nos mergulhar mais profundamente na catástrofe capitalista.

O coronavírus revela mais do que nunca a necessidade de


cooperação e solidariedade internacional. Essa solidariedade, por um lado,
revela-se como isolamento social – algo que, no mundo anterior, corrente,
seria contraintuitivo. Mas não somente dessa forma: atores internacionais
precisam cooperar e, ao mesmo tempo, vemos dentro dos estados-nações
solidariedade sendo expressa por grupos mais locais. O comunismo a que
convoca Žižek passa por esses dois eixos: 1) papel mais ativo do Estado; e 2)
inibição dos mecanismos do mercado.

A iniciativa privada, afinal, revela-se impotente para lidar com a


crise, que só parece passível de ser mitigada através de serviços e
infraestrutura que o Estado precisa adquirir, tais como hospitais, remédios,
laboratórios para pesquisar e produzir vacina etc.

Diante desse quadro, Žižek, por mais que tenha tido fascínio pelos
filmes distópicos, vai buscar em um filme de outro gênero a alegoria-chave
do que o coronavírus pode representar para as sociedades capitalistas.
Trata-se de Kill Bill, o filme de Tarantino de artes marciais e com pitadas de
faroeste. Argumenta:

Não poderíamos dizer que a ideia por trás das


especulações sobre como o coronavírus pode levar à
queda do governo comunista na China passa um pouco
por aí? Como se essa epidemia operasse tal qual uma
espécie de ataque social ao regime comunista chinês

EM CASA lendo a p. 282


Isolad@s

com a “técnica dos cinco pontos que explodem o


coração”? Uma vez golpeados, eles ainda podem
permanecer sentados, comentando a situação com
tranquilidade e tocando os procedimentos rotineiros de
quarentena etc., mas toda e qualquer mudança real na
ordem social (como efetivamente confiar nas pessoas)
inevitavelmente levará a seu colapso... Minha modesta
opinião, contudo, é muito mais radical que essa: arrisco
dizer que a epidemia do coronavírus é uma espécie de
ataque com a “técnica dos cinco pontos que explodem
o coração” a todo o sistema capitalista global – um
sinal de que não podemos mais continuar tocando as
coisas da mesma forma, e de que é necessária uma
mudança radical (ŽIŽEK, 2020, p. 30).

Beatrix Kiddo finalmente está em face de Bill. Ela lhe aplica um golpe
lendário das artes marciais. Um golpe que necessariamente se demora para
ter todos os efeitos concretizados. Seria possível que a crise atual seja esse
golpe que só se revelará mortal mais adiante? Isto é, o coronavírus não torna
ainda mais evidentes as falhas e dificuldades do sistema capitalista em
construir uma sociedade justa? Além de, é claro, evidenciar a crise ecológica
iminente? É esse, afinal, o sentido do questionamento feito por Žižek.

ADORNO E A ARTE CATASTRÓFICA

discussão sobre ideologia realizada por Jameson e Žižek chama


A atenção para o fato de que a transformação política se relaciona
também com imaginação e desejo. E, nesse sentido, a investigação acaba por
se deslocar para objetos artísticos, na medida em que neles observamos
mais claramente a construção do imaginário. Nesse sentido, é forçoso

EM CASA lendo a p. 283


Isolad@s

apontar para uma discussão anterior, que diz respeito ao modo como a
ideologia e a imaginação aparecem na indústria cultural e na arte de
vanguarda. Para tanto, tomo como referência a filosofia do integrante da
Escola de Frankfurt Theodor Adorno, que foi leitura importante para a
constituição do pensamento do próprio Jameson.

O filósofo húngaro György Lukács recorre a uma imagem para


descrever a Escola de Frankfurt: Grande Hotel Abismo. A analogia mordaz
buscava criticar o tom supostamente estetizante e fatalista contido na
filosofia de Adorno, Horkheimer, dentre outros. A biografia de Stuart Jeffries
sobre o grupo de pesquisadores leva o mesmo nome – o que indica que a
expressão talvez já tenha sido ressignificada e não mais represente
necessariamente uma crítica mordaz.

Lukács imagina os integrantes da Escola de Frankfurt como


apreciadores de ambientes requintados (o Grande Hotel), mas que estão, ao
mesmo tempo, à beira do abismo, pois não conseguem ver nada para além
da obstrução da práxis política. Esse diagnóstico, frequentemente associado
ao momento da publicação da Dialética do esclarecimento, possivelmente se
modifica mais tarde. Mas talvez valha a pena traçar paralelos entre essa
imagem e aquela surgida no Poema do Beco, que utilizei como epígrafe neste
ensaio. No poema de Bandeira, o eu lírico, apesar de ter condições de reparar
em outros elementos que se situam à sua frente, só é capaz de observar um
único aspecto. Com essa tirada irônica típica do modernismo brasileiro,
Bandeira adverte para o fato de que, independentemente de haver paisagem,

EM CASA lendo a p. 284


Isolad@s

Glória e baía nas mediações, temos um problema de perspectiva, que só nos


faz enxergar os aspectos negativos do cenário.

Talvez possamos considerar que o poema explicita algumas das


questões dessa encruzilhada imaginativa em torno de pensar ou não o fim do
capitalismo. O pensamento não deve ser pessimista ou otimista. Deve ser
apenas (mas é isso que é custoso) ser dialético. Para tanto, faz-se necessário
confrontar todas as potencialidades e entraves emancipatórias do momento
presente.

Se o pensamento de Adorno, Jameson e Žižek nos servem para


pensar o modo como a ideologia capitalista nos faz desejar o modo de vida
capitalista, a partir dessas referências dissonantes, podemos extrair um
problema-chave a respeito do funcionamento da imaginação artística, qual
seja: será que cabe a ela nos mostrar imagens concretas de superação da
sociedade existente?

A imagem de Lukács parece ser, ironicamente, profícua para a


interpretação da reflexão estética de Adorno. Como esteta de gosto
requintado e rigoroso, ele também faz frequentemente em sua Teoria
estética o elogio de uma arte sombria e catastrófica. É possível que haja nisso
ressonâncias do Nietzsche que elogia a tragédia. A arte como ópio do povo,
meticulosamente utilizada como algo de terapêutico e relaxante, é recusada.
Deixo para os psicólogos e demais profissionais da saúde analisarem se o
mais prudente é evitar sofrimento neste período de grandes comoções
derivadas da pandemia. Minha discussão aqui enfoca, contudo, a relação

EM CASA lendo a p. 285


Isolad@s

entre Estética e Filosofia Social. Já com o Nietzsche de O Nascimento da


Tragédia, poderíamos questionar o sentido dessa arte que funciona como
mitigação e consolo dos problemas da vida.

Na Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer descrevem


pessoas que se dirigem ao cinema para se distrair dos problemas em curso.
A indústria cultural é tão eficiente e totalizadora que podemos inclusive
perceber que faz com que tópicos históricos complexos como a Segunda
Guerra Mundial sejam trivializados quando entram em suas engrenagens.
Por isso, podemos até mesmo identificar uma Indústria do Holocausto, na
medida em que mesmo eventos trágicos e terrificantes são mostrados pela
lógica do espetáculo. Não é de se estranhar a notícia divulgada de que o
diretor Michael Bay, de Transformers, já planeja um filme sobre o
coronavírus – o que de antemão nos coloca temerosos de que mais um
evento histórico doloroso seja transformado em espetáculo devido à
representação estereotipada da indústria cultural.

Esse, contudo, é apenas um dos lados da moeda. O outro lado diz


respeito ao fato de que Adorno sempre questionou a necessidade de as obras
de arte apresentarem uma utopia positiva, isto é, uma utopia que lançasse
mão de imagens que representassem uma sociedade reconciliada. Se ela o
fizesse, daria uma solução abstrata, sem fincar os pés nos aspectos
específicos da realidade concreta, material. Talvez nisso possamos enxergar
algo do Marx que recusou o socialismo utópico. No lugar de uma utopia
positiva, Adorno sugere uma utopia negativa. Apesar de muito preocupado

EM CASA lendo a p. 286


Isolad@s

com a indústria cultural, não parece particularmente preocupado com o fato


de seus filmes mostrarem ou não o fim do capitalismo. Por isso, afinal, não
seguiria as exigências de um pensamento dialético e materialista.

A frase muito repisada de Adorno sobre Auschwitz não faz jus à sua
reflexão sobre arte, espalhada por vários textos dedicados à música, à
literatura, e, em particular, à sua Teoria estética publicada inacabada e
apenas postumamente. De acordo com isso, parece ser relevante
lembrarmos da passagem da Dialética negativa em que Adorno se retifica,
pensando na importância da expressão de sofrimento: “O sofrimento
perenizante tem tanto direito à expressão quanto o martirizado tem de
berrar; por isso, é bem provável que tenha sido falso afirmar que depois de
Auschwitz não é mais possível escrever nenhum poema” (ADORNO, 2009, p.
300).

A inspiração de muito do que o filósofo escreveu sobre arte


catastrófica talvez fosse Auschwitz. Mas não podemos esquecer que, se no
trajeto de Adorno entre Europa-EUA não houve oportunidade de se
confrontar com a população famélica que se encontra na periferia do mundo,
é, ainda assim, desse sofrimento que se alimenta a arte contemporânea em
vários de seus desdobramentos.

Em razão disso, faz-se necessário trazer intempestivamente este


autor já morto, e que não defende mais sua própria teoria, para fazer as
objeções ao modo de pensar que se constituiu como preponderante tanto no
senso comum como também em alguns círculos ilustrados: a ideia de que a

EM CASA lendo a p. 287


Isolad@s

arte deve ser relaxante, distrair dos problemas ou mesmo configurar uma
sociedade utópica e libertada. É em sintonia com essa concepção que vimos
surgir editais de fomento da cultura que querem deliberadamente
contemplar projetos que não se relacionam com a pandemia. Ou mesmo uma
Secretária da Cultura que defende a leveza na arte. Com isso, não há fomento
ou incentivo para aqueles que buscar expressar as dores relacionadas ao
covid-19. E isso é o pior que poderíamos fazer pela memória dos que se foram
e daqueles que sofrem as tensões impostas pela quarentena.

CINECLUBE ABISMO
m janeiro de 2020, ministrei uma disciplina de verão para a Pós-
E Graduação em Letras e para a Graduação em Filosofia da UFES,
sobre Žižek e o cinema. A partir desse encontro, tive a seguinte
ideia em conjunto com colegas e ex-alunos: a de organizar um grupo de
estudos sobre a Teoria estética, de Adorno, e usar uma das salas da
universidade para sediar o encontro. Com a emergência do coronavírus,
tivemos todos que nos adaptar a uma nova realidade. Disso surgiu uma
segunda ideia: a de fazermos discussões sobre filmes relacionados à
pandemia, distopias e catástrofes.

As reuniões acontecem quinzenalmente pelo zoom. Estamos


impossibilitados de nos abraçar ou tomar uma cervejinha na Rua da Lama
após o expediente. No final das contas, esse parece ser o treino biopolítico
de uma condição que nos acompanhará por pelo menos mais alguns meses

EM CASA lendo a p. 288


Isolad@s

– sobretudo levando-se em conta as políticas públicas de saúde adotadas no


Brasil.

Durante o semestre, conversamos a respeito de 5 filmes


relacionados à pandemia e à catástrofe. Começamos com O sétimo selo,
clássico de Ingmar Bergman que se passa na Idade Média assolada pela
peste. Apesar das rusgas de Adorno com o cinema, é um filme que tem muitas
afinidades com a reflexão estética adorniana, a começar pelo fato de ter uma
temática extremamente trágica e, de vez em quando, dar a ela uma
configuração cômica – o que não é muito distante do que fazia o grande herói
artístico de Adorno, Samuel Beckett.

Depois, inspirados pela onda de Parasita, vimos O expresso do


amanhã, filme do diretor Bong Joon-ho. Um filme declarado quase por
unanimidade pelo grupo como terrível. Não assustador ou trágico, e sim
francamente ruim. Por fim, um filme clássico de Kubrick, Dr. Strangelove.
Uma sátira mordaz sobre a guerra.

Coincidentemente, poucos dias antes saíra uma charge da Le Monde


Diplomatique Brasil inspirada pela obra de Kubrick. Na capa da edição de
maio, é possível ver o presidente Jair Bolsonaro sentado no vírus com face
extasiada – o puro gozo com a morte e a destruição. A arte acaba sempre
acertando em alguma coisa da vida.

Em seguida, debatemos Hiroshima, Mon Amour e Terra em transe. E


cada vez mais nos afastamos da temática da pandemia e nos voltamos ao
significado mais essencial do abismo frankfurtiano: o capitalismo e suas

EM CASA lendo a p. 289


Isolad@s

mazelas, que precisam ser enfrentadas com honestidade e coragem – algo


que só poderá ser feito se, uma vez no Grande Hotel, não nos abstivermos de
olhar para o abismo.

Com razão, não podemos esquecer Auschwitz. E, em breve, também


não poderemos esquecer a covid-19 sob o governo de Jair Bolsonaro. Nesse
sentido, urge observamos como o cinema, dentre outras modalidades
artísticas, é capaz de expressar as contradições desse momento histórico.
Isso ainda parece mais proveitoso que o elogio a uma arte leviana, que se
subtrai à expressão das contradições sociais.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento : fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

ŽIŽEK, Slavoj. Lacrimae rerum: ensaios sobre o cinema moderno. São Paulo: Boitempo, 2009.

ŽIŽEK, Slavoj. Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo. São Paulo: Boitempo, 2020.

EM CASA lendo a p. 290


Isolad@s

SERÁ POSSÍVEL AMAR?

Emerson Campos Gonçalves


Como poeta, publicou A morte do Jornalista
(Ed. Independente, 2020). É doutor em Educação pelo
PPGE/Ufes e pesquisador do Nepefil/Ufes. Além de
organizador, também contribui nesta obra como
autor do ensaio Covid-19 e pós-verdade.
professoremersoncampos@gmail.com

EM CASA lendo a p. 291


Isolad@s

SERÁ POSSÍVEL AMAR?

Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (Coríntios, 13: 7)

Sonho com tudo aquilo que não


me resta mais - além da janela
outras janelas? Aglomerações
- infinitas – de múltiplas telas?

Quando calhar dessa virtualidade


d’um amor sem vida ou toque de
muitos zeros-e-maldades-e-uns
nunca mais m-a-t-e-
r-i-a-
l-
i-
z-
a-
r-
conseguiremos
outra vez,
outro dia,
alguém,
amar?

EM CASA lendo a p. 292


Isolad@s

Espreito pela cortina meio arredada


num fecho de chuva - talvez de luz
revelam-se pessoas sem máscara
despidas de empatia, corações nus

Quieto.

Cerrado na minha própria tristeza


Testemunho um mundo que se des
_pe
_da
_ça sem lápides

Solitários e acompanhados de
ansiedade&incerteza

Esse aperto no peito nos sufoca


Vira alguém?
Ninguém.
Nada
no dicionário salvará esses versos.

Nenhum santo remédio que feche a rima


poderá despertar amor a quem desdenhou
cento-e-tantas mil vidas pequeninas.
(Emerson Campos, agosto de 2020).

EM CASA lendo a p. 293


Isolad@s

A UNIÃO EUROPEIA IRÁ


SOBREVIVER AO CORONAVÍRUS?56

David Gonçalves Borges


Professor de Filosofia da Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Doutorando em Filosofia pela Universidade da
Beira Interior (UBI), Portugal. Fundador e consultor do
site de notícias "Fora!" (https://fora.global), especializado
em geopolítica e relações internacionais.
davidgborges@hotmail.com

56
Este ensaio foi publicado originalmente no site de notícias
sobre geopolítica e relações internacionais Fora!, em 10 de
abril de 2020. O Original está disponível em
https://fora.global/2020/04/10/analise-a-uniao-europeia-
ira-sobreviver-ao-coronavirus/.

EM CASA lendo a p. 294


Isolad@s

mais influente bloco econômico-político do mundo corre o risco


O de ser uma das principais vítimas do Covid-19. Os sinais aparecem
por todos os lados. Negociações entre autoridades a respeito de
emissão de títulos para combate à pandemia e seus efeitos econômicos
entraram em colapso57 na quinta-feira (09/04). Italianos e espanhóis se
sentiram insultados por alemães e holandeses. O primeiro-ministro da Itália,
Giuseppe Conte, disse que seu país enfrenta uma “emergência econômica e
social”. Os dinamarqueses falaram de “uma crise financeira com esteróides”.
O vice-presidente da comissão europeia, Frans Timmermans, afirmou que “a
União Europeia como conhecemos não vai sobreviver a isto”.

Semanas antes, o ministro das finanças holandês, Wopke Hoekstra,


declarou que a Espanha deveria ser investigada por não ter margem
orçamental para lidar com a crise. O primeiro-ministro de Portugal, António
Costa, reagiu, chamando a declaração de “repugnante”58. O rei da Espanha
endossou a fala de Costa59. Pedro Sánchez, o primeiro-ministro espanhol,
afirmou que “o futuro da Europa está em jogo na guerra contra o
coronavírus”60.

57
https://www.bbc.com/news/world-europe-52211650.
58
https://www.dn.pt/poder/discurso-de-ministro-holandes-e-repugnante-diz-costa-
11992373.html.
59
https://www.dn.pt/mundo/covid-19-rei-de-espanha-disse-a-marcelo-reconhecer-o-
discurso-de-costa-sobre-holanda-12031359.html.
60
https://amp.theguardian.com/world/2020/apr/05/spanish-pm-survival-eu-rests-
response-coronavirus-crisis.

EM CASA lendo a p. 295


Isolad@s

O presidente da Sérvia, Aleksandar Vučić, cujo país está pleiteando


a entrada no bloco europeu desde 2014, já havia declarado em uma
entrevista61 em meados de março que “agora todos se deram conta de que a
solidariedade internacional não existe; a solidariedade europeia não existe”.
A insatisfação dos sérvios com a resposta atual à crise se soma a desilusões
anteriores62 em relação à política externa do bloco e ao longo tempo de
espera para que o país ingresse na União Europeia.

Todos estes fatores são, obviamente, agravados pela recente saída


do Reino Unido do bloco63 – que ainda está sendo digerida. Somam-se ainda
à instabilidade política permanente em que países como França64 e Espanha65
se viram nos últimos anos, e à recente substituição de alguns nomes fortes
do bloco66 que mantinham as coisas em estado de normalidade.

A Oxford Analytica, empresa do ramo de consultoria geopolítica, já


havia publicado uma análise67 chamando a atenção para a “falta de coesão”

61
https://www.youtube.com/watch?v=mPJKLuJA6NQ&feature=youtu.be.
62
https://www.youtube.com/watch?v=7E74Y0ylrFY.
63
https://fora.global/2019/10/30/reino-unido-impasse-do-brexit-leva-a-novas-eleicoes-em-
12-de-dezembro/.
64
https://fora.global/2019/12/05/franca-greves-contra-pacote-de-reformas-paralisam-o-
pais/.
65
https://fora.global/2019/11/11/espanha-eleicoes-gerais-podem-dificultar-formacao-de-
novo-governo/.
66
https://fora.global/2019/11/27/europa-nova-presidente-da-comissao-europeia-promete-
agenda-ambiciosa/.
67
https://dailybrief.oxan.com/Analysis/DB251718/COVID-19-threatens-to-fragment-the-EU-
further.

EM CASA lendo a p. 296


Isolad@s

e a “ameaça de fragmentação” do bloco europeu. Um grupo de intelectuais


portugueses foi mais enfático: “A solidariedade europeia não é uma opção,
mas sim uma necessidade se a União Europeia não quiser transformar-se
numa das principais vítimas do covid-19”68.

No fim das contas, um pacote emergencial de 500 bilhões de euros


para que os países-membros contraiam empréstimos foi aprovado69 no dia
10/04, sexta-feira, sendo pouco mais do que uma ampliação do mecanismo
europeu de estabilidade, que já existia – um terço do que o Banco Central
Europeu já havia declarado que seria necessário: algo por volta de 1,5 trilhão
de euros.

A razão da querela já é bem conhecida: os países do norte da Europa


não confiam nas políticas econômicas dos países ao sul do continente, que
por sua vez se sentem desassistidos pelo bloco por estarem constantemente
sob pressões econômicas e humanitárias mais fortes do que os demais. Foi
o mesmo motivo da reação lenta à crise de 2008.

Uwe Nerlich, analista da Geopolitical Intelligence Services, acredita


que a França sairá fortalecida da disputa por estar realizando uma contenção

68
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/04-abr-2020/as-escolhas-da-europa--12027828.html.
69
https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/apr/10/coronavirus-crisis-truth-eu-
union-financial-rescue.

EM CASA lendo a p. 297


Isolad@s

sutil da Alemanha em meio aos demais países-membros, inclusive com


aspirações militares70.

Quando a SARS-CoV-2 chegou ao continente europeu, muitos


Estados-membros da União Europeia reagiram com medidas unilaterais que
não foram bem vistas pelos demais membros do bloco. Inúmeros países
fecharam fronteiras e limitaram voos; alguns impuseram leis que permitiam
o confisco de mercadorias necessárias ao combate à pandemia – levando até
mesmo a uma disputa por insumos hospitalares que ficou conhecida como
“guerra das máscaras”. Em um contexto no qual a circulação de bens e
mercadorias é livre entre parte dos países signatários, tais medidas
adquiriram a imagem de fato grave e de “rompimento” com os valores de
fundação do bloco. Os países que adotaram essas medidas, por outro lado, se
defenderam afirmando que a resposta conjunta estava sendo muito lenta, e
que ao adotá-las estavam protegendo os demais. Em resumo, trata-se da
velha disputa entre nacionalismo e soberania territorial, por um lado, e
cosmopolitismo, abertura de fronteiras e coesão política, de outro. Alguns
países, como a Hungria, já atiraram pela janela qualquer ambição de
continuar pertencendo ao bloco, dando preferência a modelos autoritários de
governo71.

70
https://www.gisreportsonline.com/opinion-macrons-european-defense-initiative-can-
work,defense,3132.html.
71
https://fora.global/2020/03/30/hungria-parlamento-aprova-que-viktor-orban-governe-
por-decreto/.

EM CASA lendo a p. 298


Isolad@s

O cenário ainda é incerto, mas pode-se fazer algumas conjecturas


para o futuro:

1) A União Europeia não vai ruir de imediato devido à profunda


interdependência entre seus membros, mas grupos eurocéticos –
assim são chamados aqueles que manifestam desagrado com a
existência do bloco – devem se fortalecer, ao menos no curto prazo.

2) O fortalecimento de grupos eurocéticos deve beneficiar as


aspirações eleitorais de candidatos e partidos que são críticos ao
projeto europeu, como o FN (França), o FPÖ e o BZÖ (Áustria), a AfD
(Alemanha) e o M5S (Itália). Populistas como Le Pen, Salvini e Orbán
se beneficiam diretamente.

3) Irá aumentar o sentimento de insatisfação da população dos países


do sul – como Espanha, Itália, Portugal e Grécia – com os países do
norte, que já são vistos pelas populações austrais como
imperialistas e insensíveis às necessidades de outros povos.

4) Macron (presidente da França) e Merkel (chanceler da Alemanha)


têm uma janela de oportunidade e podem aproveitar a situação para
se consolidarem como fiadores do projeto europeu, desde que sejam
capazes de pacificar o cenário interno em seus países e mitigar a
desconfiança dos demais líderes do continente – ambas as tarefas
têm se mostrado difíceis.

EM CASA lendo a p. 299


Isolad@s

5) Países que pleiteiam a admissão no bloco irão se mostrar mais


reticentes nas negociações futuras e, caso a União Europeia não se
mostre capaz de enfrentar os novos desafios que se impõem, estes
países podem até mesmo retirar suas candidaturas.

6) China e Rússia, que souberam capitalizar o momento geopolítico


enviando auxílio a alguns dos países mais afetados (em especial a
Itália) e conduzindo sua política externa de forma respeitosa, podem
esperar um ganho de soft power relativo após o fim da pandemia.

7) A interdependência produtiva e comercial começará a ser cada vez


mais questionada devido à falta de fábricas de insumos hospitalares
de alguns países europeus em meio à crise, que se viram obrigados
a recorrer a importações cuja operacionalização foi problemática;
isto deve levar, no futuro, a longas rodadas de negociação sobre as
regras internas do bloco dos pontos de vista fiscal e produtivo.

8) A política migratória provavelmente será endurecida, não apenas


devido à crise econômica próxima, mas também devido à
desconfiança geral das populações – e dos eleitores – em relação a
imigrantes, que podem ser vistos como disseminadores de doenças.

Tudo isso em meio a um cenário em que o centro das relações


geopolíticas se desloca do Atlântico (EUA-União Europeia) para o Pacífico
(China e Leste Asiático-EUA).

EM CASA lendo a p. 300


Isolad@s

Em resumo, a União Europeia provavelmente não irá a óbito amanhã.


Mas passará algum tempo respirando com a ajuda de aparelhos.

EM CASA lendo a p. 301


Isolad@s

DESCONFINADOS

Thiago Verissimo.
Possui graduação em Letras-português (2004),
mestrado (2008) e doutorado (2017) em Letras -
ênfase: estudos literários - pela Universidade Federal
do Espírito Santo (Ufes). Atualmente é professor da
Faculdade Europeia de Vitória (Faev) e funcionário da
Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo
(Sedu).
thiagocverissimo@gmail.com

EM CASA lendo a p. 302


COVID-19: UMA GUERRA DE TODOS
OU UMA GUERRA CONTRA TODOS?

Monnique Greice Malta Cardoso


Mestranda em Educação na Universidade Federal do
Espírito Santo (Ufes) e graduada em Filosofia
(Licenciatura) também pela Ufes. É membro e
pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Educação, Filosofia e Linguagens (Nepefil/Ufes), do
Núcleo de Participação e Democracia (Nupad/Ufes) e
também do Grupo de Pesquisa em Educação de
Jovens e Adultos e Educação Profissional na Cidade e
no Campo (Ufes).
monniquegmalta@hotmail.com

EM CASA lendo a p. 304


Isolad@s

INTRODUÇÃO
m meados de janeiro de 2020, o mundo foi bombardeado por
E informações acerca da epidemia por um novo coronavírus na
província chinesa de Wuhan, primeiro epicentro da doença.
Rapidamente se tornou uma pandemia atingindo diversos países e
continentes. Mesmo se tratando de uma matéria de saúde pública, a política
não descansa, afinal esta movimenta a polis e enquanto houver comunidade
haverão conflitos.

Nosso enfoque aqui é refletir acerca da miríade de questões políticas


e sociais que se desdobram a partir das medidas justificadas “em razões de
segurança” que têm sido adotadas pelos governos, a fim de salvaguardar a
vida (mas também a economia) diante do cenário da pandemia do COVID-19.
É isto que este breve texto ensaístico tentará elucubrar.

Considerando a relação paradoxal entre segurança e liberdade, surge


um outro elemento nesse campo de conflitos: a solidariedade, que pode ser
compreendida como um potencial construtor de novas responsabilidades
sociais e políticas e também de afetos entre os seres humanos para a vida
“pandêmica” e pós pandemia.

Ao adotar medidas de segurança, muitas dessas subtraem a liberdade


dos sujeitos, que, por sua vez, se atentam para o seu individual e não estimam
seu próximo ou sua comunidade. Assim, como inserir a solidariedade nessa
discussão? Talvez o primeiro passo, seja buscar compreender a quantos e a

EM CASA lendo a p. 305


Isolad@s

quais essas medidas excepcionais favorecem e por conseguinte, a quais


desfavorece.

Para nos atermos a discussão contemporânea que cerceia a questão


da pandemia, enfocando os elementos acima mencionados (segurança,
liberdade e solidariedade) traremos algumas considerações em Thomas
Hobbes acerca da fundação do Estado Moderno, cujas contribuições são
importantíssimas para compreender para qual papel o Estado foi constituído
e qual foi o objetivo central desse acordo mútuo entre os seres humanos.

Ao abordarmos o caráter securitário do Estado, a partir de


considerações do filósofo contemporâneo Giorgio Agamben, de maneira
análoga à tese hobbesiana, buscar-se-á na ideia da desconfiança e do medo
as munições utilizadas pelos governos, para justificar as medidas
excepcionais adotadas em nome da segurança, e que culminam em um
estado de exceção, no qual opera-se na tênue linha entre norma e
arbitrariedade.

Não obstante a isso, torna-se claro como a filosofia (como o


conhecimento) é importante para refletir o cenário presente, bem como para
chamar-nos atenção para o papel que nós, filósofos, pensadores, estudiosos
e pesquisadores devemos desempenhar em momentos de crise (Cf. Giacoia,
2018; Cardoso, 2020).

EM CASA lendo a p. 306


Isolad@s

A TROCA DO MEDO PELA LIBERDADE


A única maneira de erigir esse Poder Comum – capaz
de defender as pessoas contra os invasores
Estrangeiros e contra as Injúrias mútuas [...] é a
entrega de todo poder e força individual a um único
Homem ou a uma Assembleia de homens, que possa
transformar as Vontades de cada um, pela pluralidade
das vozes em uma Vontade Única (HOBBES, 2015, p.
156).

Para compreendermos como a segurança se tornou uma necessidade


que se sobrepôs a outras, faz-se necessário passearmos pela fundação do
Estado Moderno, a fim de entender a teoria hobbesiana de estado de
natureza. Para o filósofo inglês, Thomas Hobbes, no estado natural os seres
humanos viviam em uma guerra de todos contra todos, na qual não havia
noções de justiça ou de ética, tão pouco noções de propriedade ou normas
que pudessem resguardar seus bens e suas vidas. Ou seja, não havia paz e
nem a possibilidade de desfrutar de suas conquistas, pois ao contrário disso,
aquele que se julgava mais forte considerava que tinha direito à tudo e por
conseguinte julgava o outro como fraco, logo, aquele outro tinha direito a
nada. E por sua vez, aquele julgado como fraco, julgava a si mesmo como
forte e julgava-se no direito de tomar para si o que pertencia a outros.

O que mantinha essa circularidade de dominação era a desconfiança


mútua e o medo da morte, e por causa desses dois elementos aquelas
pessoas (que viviam no estado de natureza), em comum acordo, decidiram
entregar seus direitos (a tudo) à “um homem ou uma assembleia de homens”
(Cf. Hobbes, 2015) para que um Poder pudesse cumprir seu papel de

EM CASA lendo a p. 307


Isolad@s

estabelecer limites às propriedades e às ações humanas, bem como


controlar os conflitos e limitar tais ações. A partir do contrato social
instituído, o Estado passaria a estabelecer direitos e deveres aos sujeitos (Cf.
Cardoso, 2018). Logo, por meio do acordo mútuo entre as pessoas, houve a
troca do medo e da desconfiança pela segurança.

Portanto, o Estado Político, ou Leviatã, é “um Homem Artificial […] para


cuja proteção e defesa foi planejado” (HOBBES, 2015, p. 13).

O ESTADO SECURITÁRIO QUE TUDO PODE


[…] não que por natureza estejamos sempre em guerra.
O que Hobbes quis dizer é que nossa condição natural
é tal […] que a guerra permanece o horizonte sempre
possível das relações entre os homens e sendo
possível, isto basta para justificar o comportamento
efetivo de nos anteciparmos às suas consequências e
nos comportarmos efetivamente a fomentar uma
situação de disputa (LIMONGI, 2002, p. 21).

De maneira análoga à condição natural de guerra entre os seres


humanos afirmada por Hobbes, é que traremos os entendimentos do filósofo
contemporâneo Giorgio Agamben sobre a relação entre esse estado de
guerra e o estado securitário.

Recorremos à obra Stasis: civil war as a political paradigm72 (2015),


para utilizarmos como ponto central para este texto, a minuciosa análise que

72
Ainda não existe uma versão em português para a obra, cujo título pode ser traduzido como
“Stasis: guerra civil como paradigma político”.

EM CASA lendo a p. 308


Isolad@s

Agamben faz do frontispício da obra Leviatã, de Hobbes, da qual podemos


destacar três excelentes questões para elucidar nossa proposta de
discussão: 1) o fato do Leviatã não estar dentro da cidade, mas fora dela, nos
leva a compreender que a tomada de decisão também não está mais dentro
da cidade (na figura de seus cidadãos), mas fora dessa, visto que seus direitos
foram transferidos ao Estado, aquele homem artificial - que não reside na
cidade por não ser um cidadão comum e que foi constituído para um
determinado papel e função; 2) a cidade vazia, mostra que os cidadãos não
mais residem nela, pois já compõem seu soberano, logo, os cidadãos comuns
sustentam e permitem a existência de tal soberania de poder, tendo o Leviatã
autonomia e soberania na promoção da segurança da cidade. Assim, “A
unificação da multidão de cidadãos em uma única pessoa é algo como uma
ilusão de perspectiva; representação política é apenas uma representação
ótica (mas não menos eficaz por conta disso)73” (AGAMBEN, 2015, p. 41,
tradução minha); 3)Para quê guardas armados em uma cidade vazia e qual o
interesse em guardar uma cidade na qual os seus cidadãos não se
encontram? Será que havia um interesse em proteger os bens ou talvez
proteger a cidade de ataques inimigos? Sendo os seres humanos iguais por
natureza, ao se anteciparem no ataque ou em preparar uma defesa essa pode
ser justificada por motivos de segurança. Afinal, “Os homens não querem
apenas viver – mas viver bem. Não os levou à sociedade só o medo da morte,

73
“The unification of the multitude of citizens in a single person is something like a perspectival
illusion; political representation is only an optical representation (but no less effective on
account of this)”.

EM CASA lendo a p. 309


Isolad@s

mas também a esperança de conforto; e, afastados o homicídio e a fome,


expande-se o seu desejo, almejando mais e mais” (RIBEIRO, 2004, p. 117).

Em março do corrente ano, jornais noticiaram o seguinte: “Alemanha


se protege de ofensiva de Trump por potencial vacina contra o coronavírus”
(ISTOÉ, 2020). Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos da América
(USA), fez uma proposta milionária ao laboratório alemão CureVac para
garantir exclusividade ao seu país no acesso as vacinas que estão sendo
produzidas com vistas ao enfrentamento ao COVID-19. Por que o governante
não investiu esses milhões de dólares para agilizar os trabalhos científicos
em prol da humanidade? Se mesmo em uma situação como essa não foi
capaz de promover sentido ao exercício de solidariedade, principalmente
entre países, o que ainda está por vir? Até onde o soberano pode ir para
“garantir” a segurança aos seus cidadãos? Na Bahia, cresci ouvindo um ditado
bastante comum: “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Assim, a segurança vem sendo tratada com prioridade às outras


necessidades e “exigindo” que medidas excepcionais sejam adotadas sem
maior atenção (ou preocupação) aos seus desdobramentos. O estado
securitário, para o filósofo italiano, configura-se quando sem limites os
governos exercem operações políticas e econômicas, apresentando “[…] três
características que podem ser facilmente divisadas: a manutenção do medo
generalizado, a despolitização dos cidadãos, a renúncia à efetividade ou
certeza da lei” (NASCIMENTO, 2018, p. 289).

EM CASA lendo a p. 310


Isolad@s

Não obstante a situações como a acima descrita, governos também


têm adotado medidas para promover, de maneira paradoxal, a segurança às
vidas e a economia (lembra da cidade vazia, mas com a presença de guardas
armados?). Entretanto, inúmeras dessas medidas e ações tem culminado não
somente na subtração da liberdade dos sujeitos, mas tem se desdobrado em
questões de desigualdade social e econômica entre a população atingida pelo
risco alto ou moderado de contágio. Quando de fato tais medidas são
adotadas pelo Príncipe em favor do povo ou dos grandes74?

NO CONFLITO SEGURANÇA-LIBERDADE, ONDE SE


ENCAIXA A SOLIDARIEDADE?
A Secretaria Municipal de Saúde recomenda que as
pessoas suspeitas de estarem infectadas devem se
manter isoladas em um cômodo distante dos outros
membros da família. “Se houver apenas um cômodo, a
orientação é de que as pessoas infectadas devem
tentar permanecer a pelo menos um metro de distância
dos demais moradores”, ressalta a prefeitura.

“Como vamos pedir isolamento para uma pessoa que


mora com mais quatro, cinco ou seis numa casa de 2
ou 3 cômodos? É impossível”, afirma Paulo Buss (ISTOÉ,
2020)

74
Na obra O Príncipe, Maquiavel apresenta a relação de conflitos de desejos entre o povo e os
grandes. No referido trecho, constante no capítulo IX, o filósofo florentino explica que o desejo
do povo é viver livremente e não ser oprimido pelos grandes, enquanto os grandes desejam o
poder para governar e oprimir o povo. (Cf. Cardoso, 2019).

EM CASA lendo a p. 311


Isolad@s

O trecho acima foi extraído da matéria intitulada: “Coronavírus: favelas


do Rio de Janeiro se preparam para o pior” (Op.cit). A questão é: como aplicar
medidas de distanciamento social e de cuidados de higiene, quando falta
acesso a água a muitos? Quando a segurança tem valor superior às outras
necessidades, decisões governamentais infringem diretamente o direito
constitucional, que promete ao indivíduo (prefiro não dizer que garante, pois
não garante a todos) uma vida digna e com acesso a saúde, a água, etc.

Seguindo essa mesma “lógica”, enquanto os moradores de bairros


nobres se entendiam no isolamento social dentro de seus condomínios
fechados e com suas áreas de lazer interditadas, nos bairros periféricos não
há nada de entediante: os ônibus continuam cheios de passageiros, dentre
eles diaristas e porteiros que não podem cumprir o isolamento para que sua
fonte de renda e de sustento não sejam comprometidas e por isso (muitos)
trabalham naqueles condomínios fechados cujos patrões estão em
“quarentena”.

Outra questão que merece reflexão é uma das medidas adotadas pelo
governo brasileiro, a saber a que garantiu o pagamento de Auxílio
Emergencial75 no valor de R$ 600,00 para os cidadãos que se enquadram em
determinadas categorias socioeconômicas76. Ao que parece não houve uma

75
“É um benefício financeiro destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores
individuais (MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer proteção
emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus -
COVID 19” (CAIXA, 2020).
76
“Tem direito ao benefício o cidadão maior de 18 anos, ou mãe com menos de 18, que atenda
a todos os seguintes requisitos: pertença à família cuja renda mensal por pessoa não

EM CASA lendo a p. 312


Isolad@s

integração sistematizada das informações no período de análise do


requerimento do cidadão, tendo em vista que inúmeras pessoas solicitaram
o benefício sem se enquadrar nas categorias devidas. Inclusive, a mídia
noticiou que houveram artistas e digital influencers que solicitaram o auxílio
para depois sortear o valor em dinheiro nas redes sociais. Dessa questão,
emergem outras duas: 1) será mesmo que um auxílio emergencial no valor
de R$ 600,00 é suficiente para aqueles que se encontram numa situação de
desemprego ou de cumprimento ao isolamento social pagarem o aluguel ou
fazerem as compras no supermercado no final do mês? 2) E o que pensar ou
como buscar compreender aqueles que ao invés de utilizarem sua influência
enquanto pessoas públicas e conscientizarem o maior número de pessoas a
um exercício de solidariedade e busca por soluções e políticas públicas em
favor daqueles que mais sofrem neste momento, optam por utilizar o direito
que não precisam mas que é essencial para outra pessoa? Parece meio
confuso para entender, mas a lei, o direito, nem sempre são justos. É justo
um juiz ter direito a um auxílio moradia de mais de R$ 4.000,00 e usufruir
desse direito enquanto a empregada doméstica que trabalha na casa dele
muito provavelmente não tem direito a tal benefício? O que gostaria de

ultrapasse meio salário mínimo (R$ 522,50), ou cuja renda familiar total seja de até 3 (três)
salários mínimos (R$ 3.135,00); e que não esteja recebendo benefício previdenciário ou
assistencial, seguro-desemprego ou outro programa de transferência de renda federal,
exceto o Bolsa Família; que não tenha recebido em 2018 rendimentos tributáveis acima de R$
28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e nove reais e setenta centavos); esteja
desempregado ou exerça atividade na condição de: microempreendedores individuais (MEI);
contribuinte individual da Previdência Social; Trabalhador Informal, de qualquer natureza,
inclusive o intermitente inativo” (CAIXA, 2020).

EM CASA lendo a p. 313


Isolad@s

deixar claro quanto a esta última questão é que ela retrata a falta de
pertencimento com o mundo no qual se vive, com as comunidades e
realidades às margens das suas. Como construir um “mundo novo”, a partir
desse presente, com “novas” relações entre os seres humanos e com novos
compromissos do poder público para com a população? As medidas atuais
são eficientes? Dunker esclarece:

Enquanto a biopolítica nos oferece verdadeiros


monumentos para o controle das populações – como a
escola, os hospitais e os dispositivos de colonização –,
a necropolítica se caracteriza pela lentidão, pelo
adiamento e pela manutenção de situações de miséria
e desproteção. É isso que explica a lentidão na tomada
de medidas protetivas, a negligência descarada em
relação aos trabalhadores informais e o pouco caso
com a vida das pessoas praticados pelo presidente
(DUNKER, 2020).

Logo, a quem interessa políticas públicas de qualidade e a luta por


justiça social? Ao povo ou aos grandes? A pandemia não chegou e mudou
“somente” a rotina nos hospitais, nos prontos atendimentos ou nas unidades
básicas de saúde. A pandemia mudou o modo de vida da população mundial
e vem desnudando as injustiças e desigualdades socioeconômicas. No caso
do Brasil, utilizemos como exemplo o estado do Espírito Santo, no qual o
governo estadual suspendeu as atividades presenciais de ensino e tem se
desdobrado na modalidade online, que atualmente foi prorrogado até 31 de
agosto do corrente ano (Cf. sítio Governo ES). Desta medida, emergem
algumas outras questões que também merecem nossa atenção: será mesmo
que aquelas famílias que residem nos morros de Vitória ou em áreas

EM CASA lendo a p. 314


Isolad@s

periféricas ou rurais têm acesso a computador e internet suficientes para o


aluno ou aluna acompanhe a nova rotina imposta até mesmo pela rede
pública de ensino? E este é somente um desses desdobramentos, pois a
questão ainda é agravada se pensarmos em quem irá acompanhar aquela
criança ou adolescente no horário de suas atividades online, tendo em vista
que nem todos em a flexibilidade e possibilidade de trabalhar na modalidade
home office, principalmente os profissionais operários, de serviços de
manutenção, limpeza e serviços gerais. Daí a situação desdobra-se em mais
uma questão (desculpe, mas elas são muitas): será que o responsável pelo
acompanhamento do aluno ou da aluna tem escolaridade e instrução
suficientes para desempenhar este papel?

Afinal, a guerra é contra quem?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessas condições [de crise], a consciência filosófica
sempre foi interpelada com vistas a uma tarefa que
pertence essencialmente à sua esfera de
responsabilidade espiritual: aquela que consiste em
formular um diagnóstico crítico do presente, lastreado
em rememoração histórica, com o propósito de aportar
alguma clareza em momentos sombrios e de incerteza,
quando a tomada de decisões torna-se urgente e
inexorável […] Ora, este é justamente o cenário no qual
se desenrola o drama da reflexão ética contemporânea
(GIACOIA, 2018, p. 139-140, colchetes meus).

EM CASA lendo a p. 315


Isolad@s

Como perceberam, eu não trouxe respostas, mas trouxe algumas


perguntas. Afinal, o filósofo não responde, mas pergunta (recentemente falei
sobre isso em outro capítulo de livro). E nós, filósofos, cientistas, pensadores,
professores, pesquisadores temos um papel a exercer diante de situações de
crise, que neste caso é a pandemia e seus desdobramentos: propor reflexões
e nos posicionarmos como auxiliares para o nascimento das ideias77, para a
difusão do conhecimento e para a conscientização dos sujeitos.

E pautada nesse compromisso ético e de consciência filosófica, a meu


ver, não devo “deixar passar batido” as contribuições atuais de Agamben
acerca desse período de pandemia, principalmente por eu ter recorrido às
suas teses no decorrer desse trabalho. Destaco essas palavras:

[...] es el estado de miedo que evidentemente se ha


extendido en los últimos años en las conciencias de los
individuos y que se traduce en una necesidad real de
estados de pánico colectivo, a los que la epidemia
vuelve a ofrecer el pretexto ideal. Así, en un círculo
vicioso perverso, la limitación de la libertad impuesta
por los gobiernos es aceptada en nombre de un deseo
de seguridad que ha sido inducido por los mismos
gobiernos que ahora intervienen para satisfacerla
(AGAMBEN, 2020, p. 19).

Infelizmente o filósofo italiano errou ao afirmar a invenção de um


contágio ou de uma epidemia (Cf. Frateschi, 2020; Žižek, 2020). Será que
assim como Tales de Mileto, o filósofo italiano se distraiu olhando para cima
e também caiu em um buraco? Aprendemos, observamos e vivenciamos a

77
Aqui faço referência ao método socrático denominado maiêutica.

EM CASA lendo a p. 316


Isolad@s

cultura do medo instaurada pelos governos que se dá também para o


controle social e a dominação dos corpos.

No decorrer da história, o conhecimento subsidiou inúmeras guerras,


barbáries e atrocidades contra a humanidade, e consubstanciadas em
afirmações de intelectuais, como essa de Agamben, é que discursos
presidenciais, campanhas político-econômicas são realizadas no intuito de
menosprezar os impactos da doença COVID-19. No caso do Brasil, faltaram
atitudes mais breves em favor da população mais atingida pelos reflexos da
pandemia, faltou responsabilidade ao naturalizar o número de mortos com
um “e daí, não sou coveiro” e de definir o vírus como uma “gripezinha”. Faltou
mesmo empatia, comprometimento e seriedade diante da atual conjuntura.

Este tempo presente nos convoca a um exercício maior de cidadania


e de solidariedade, uma vez que usufruir da garantia de liberdade (individual
constitucional) interfere na saúde e na vida de outros. E por vezes os
privilégios nos cegam para a necessidade dos demais. Por isso a urgência
em lutarmos pelo outro, lutarmos não só pelo futuro, mas pelo presente para
construirmos um novo modo de vida também durante a pandemia e não
apenas após seu fim (algo ainda desconhecido). O distanciamento social, a
aplicação das provas do Enem, concorrer a uma vaga em uma instituição de
ensino pública e de qualidade por meio do Sisu, vacinas, disponibilidade de
leitos em UTI’s não devem selecionar um grupo populacional em detrimento
de outro.

EM CASA lendo a p. 317


Isolad@s

Ao que parece, estamos em guerra. Uma guerra confusa, mas ainda


assim uma guerra como qualquer outra e que demonstra possuir dois lados:
um de todos contra o vírus e o outro de todos contra todos.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. 2ª ed. - São Paulo: Boitempo,
2004.

______. La invención de uma pandemia. In: Sopa de Wuhan: pensamento contemporâneo em


tempos de pandemias. Editorial ASPO, 2020.

______. Stasis: a civil war as a political paradigm. Tradução de Nicholas Horen. Stanford
University Press: Califórnia. 2015.

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. “Perguntas frequentes – auxílio emergencial”. Disponível em:


<http://www.caixa.gov.br/auxilio/perguntas-frequentes/Paginas/default.aspx>. Acesso em
26/07/2020.

CARDOSO, M. G. M. Relatório de Iniciação Científica). Análise do Estado Securitário de Agamben


sob uma leitura da fundação do Estado em Hobbes. UFES: 2018. Disponível em
<http://portais4.ufes.br/posgrad/anais_jornada_ic/desc.php?&id=13010>. Acesso em 07/11/2019.

______. A Positividade do Conflito para Garantia da Liberdade Política: uma inspiração


maquiaveliana. In: Filosofia, Engajamento e Sociedade. Yuri Miguel Macedo (Org.). 2ª ed. – Porto
Seguro: Editora Oyá, 2019.

______. O Valor da Segurança: Considerações em Hobbes e Agamben para reflexão política do


cenário hodierno. In: Livro: Filosofia para quê? A importância do pensamento filosófico para
reflexões atuais. Monnique Greice Malta Cardoso, Sabrina Paradizzo Senna (Orgs.). 1ª ed. -
Porto Seguro: Editora Oyá, 2020.

DUNKER, C. A Arte da Quarentena para Principiantes. Editora Boitempo, 2020.

FRATESCHI, Y. Agamebn sendo Agamben, em 12 de maio de 2020. In: Bolg da Boitempo.


Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2020/05/12/agamben-sendo-agamben-o-
filosofo-e-a-invencao-da-pandemia/>. Acesso em 26/07/2020.

GOVERNO DO ES. “Governador anuncia prorrogação da suspensão das aulas presenciais até
31 de agosto”, em 24 de julho de 2020. Disponível em:
<https://www.es.gov.br/Noticia/governador-anuncia-prorrogacao-da-suspensao-das-aulas-
presenciais-ate-31-de-agosto>. Acesso em 26/07/2020.

EM CASA lendo a p. 318


Isolad@s

ISTOÉ. “Coronavírus: favelas do Rio de Janeiro se preparam para o pior”, 23 de março de 2020.
Disponível em: <https://istoe.com.br/coronavirus-favelas-do-rio-de-janeiro-se-preparam-
para-o-pior/>. Acesso em 09/06/2020.

______. “Alemanha se protege de ofensiva de Trump por potencial vacina contra o coronavírus”,
16 de março de 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/alemanha-se-protege-de-ofensiva-
de-trump-por-potencial-vacina-contra-o-coronavirus/>. Acesso em 17/06/2020.

HOBBES, T. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução


Daniel Moreira de Miranda. 1ª ed. - São Paulo: EDIPRO, 2015.

LIMONGI, M. I. Hobbes. Coleção Filosofia passo-a-passo. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução de Lívio Xavier. 4ª ed. – São Paulo: EDIPRO, 2015 (Série
Clássicos Edipro).

NASCIMENTO, D. A. Estado Securitário e biopolítica: Agamben reencontra Foucault na segunda


década do século vinte e um. Quadranti – Rivista Internazionale di Fi losofia Contemporanea
– Volume VI, nº 2, 2018, p. 286-306.

RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2ª ed. 2004.

ŽIŽEK, S. Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo. Editora Boitempo, 2020.

EM CASA lendo a p. 319


Isolad@s

PANDEMIA E PANDEMÔNIO
NEOFASCISTA: O MICROFASCISMO
BRASILEIRO EM TEMPOS DE
COVID-19

Wécio Pinheiro Araújo


Professor efetivo na Universidade Federal da Paraíba
(DSS/UFPB), onde desenvolve atividades de ensino,
pesquisa e extensão nas áreas de filosofia política e
social no Grupo de Estudos em Filosofia e Crítica Social
(GEFICS-CNPq). Doutor em filosofia pelo Programa de
Doutorado Integrado UFPE/UFPB/UFRN, com estágio
sanduíche na Alemanha (HGB/Leipzig), mediante bolsa
CAPES/PDSE. Mantém um blog no qual escreve
mensalmente: https://wecio.blogspot.com
weciop@hotmail.com

EM CASA lendo a p. 320


Isolad@s

“Nós criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma


paixão. Não é necessário que ele seja uma realidade...
Nosso mito é a nação, nosso mito é a grandeza da nação!”

(Benito Mussolini, em discurso de 1922 no


Congresso Fascista de Nápoles78)

propósito deste ensaio é realizar uma breve análise crítica de


O algumas mediações imanentes à mítica ideológica
microfascista que determina a tragédia política brasileira
contemporânea, de modo que transforma a pandemia em um
amplificador social do pandemônio neofascista. Para isso, analisamos
essa problemática a partir de uma leitura sincrônica realizada entre, de
um lado, alguns elementos da tragédia em Aristóteles sob uma inflexão
antropológica associada ao conceito de pandemônio encontrado na obra
de John Milton79, e de outro, o conceito de microfascismo formulado com
base no pensamento de Michel Foucault. Não obstante, é a partir do
ensaio da Marilena Chauí, intitulado Brasil: mito fundador e sociedade
autoritária (2000), que fazemos esta inflexão antropológica no conceito
de mito (mythos) em seu sentido aristotélico, como parte da concepção
de tragédia encontrada na Poética. Nos alinhamos com Chauí (Ibid., p. 9)
quando ela diz que “Ao falarmos de mito, nós o tomamos não apenas no
sentido de narração pública de feitos lendários da comunidade, isto é,

78
Cf. STANLEY, 2018.
79
Sobre o conceito de pandemônio na obra de John Milton, vide nota de rodapé nº. 83.

EM CASA lendo a p. 321


Isolad@s

no sentido grego da palavra mythos, mas também no sentido


antropológico, no qual essa narrativa é a solução imaginária para
tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para
serem resolvidos no nível da realidade”.

O coronavírus SARS-CoV-2 é um fenômeno biológico, mas a


pandemia é social e política. Não obstante, a tragédia política brasileira
transforma a crise pandêmica em um amplificador social do
contemporâneo pandemônio neofascista. O ponto forte do novo
coronavírus é o contágio, mas este ocorre por meio de mediações sociais
que transcendem a determinação biológica. Neste sentido, analisamos a
pandemia como uma crise de choque com impacto social e político80, sob
dois aspectos simultâneos que estabelecem uma ligação ineliminável na
urdidura do pandemônio político contemporâneo, a saber:
primeiramente, como fenômeno biológico de impacto social e
amplificador de uma situação política pré-existente (o pandemônio
neofascista), e junto disto, também como processo social que sofre
determinações históricas do microfascismo. É sobretudo neste segundo
aspecto que podemos fazer a inflexão do conceito de mito encontrado
na tragédia aristotélica, sob a perspectiva foucaultiana da microfísica
do poder, situada na contradição estabelecida entre, de um lado, o
conteúdo social das relações de poder estabelecidas na sociedade

80
Obviamente há um significante impacto econômico, embora não seja o caso de entrar
nesta seara aqui.

EM CASA lendo a p. 322


Isolad@s

brasileira, e de outro, a forma como este conteúdo é vivenciado, não


raro, por meio de narrativas mitológicas que expressam práticas
discursivas carregadas de elementos fascistas e seus negacionismos,
seja da história e da racionalidade científica, ou ainda da lógica ético-
política da cidadania e dos direitos humanos sob a perspectiva do Estado
democrático de direito.

Para entender melhor a questão, é preciso situar a crise


pandêmica no contexto da contradição supramencionada que, no seu
evolver histórico anterior à própria pandemia, levou a um avivamento
contemporâneo daqueles elementos fascistas encontrados na
microfísica social do cotidiano (os microfascismos)81, e produzidos na
formação histórica brasileira enquanto uma mitologia política que se
traduz na tragédia contemporânea que denominamos como um
neofascismo de massas. Nesta direção, a chave de leitura crítica
proposta aqui é a seguinte: o neofascismo é um fenômeno político
gestado nas práticas discursivas que traduzem politicamente o
conteúdo das relações sociais em formas subjetivas deste conteúdo ser
vivenciado no cotidiano das múltiplas correlações de forças
constituintes das relações de poder na microfísica de uma sociedade –
o que mais à frente explicaremos melhor a partir do conceito de
microfascismo. Cabe ressaltar que não há um fascismo clássico no
Brasil; isto é, não há um Estado fascista (ou um fascismo de Estado)

81
Mais à frente, explicamos melhor os conceitos de microfísica social e microfascismo.

EM CASA lendo a p. 323


Isolad@s

como na Itália de Mussolini em 1919 – conforme descreveu o historiador


Robert Paxton82. Identificamos o caso brasileiro como um fascismo
social, que denominamos por neofascismo de massas – o que
explicaremos a seguir.

Com base na concepção de pandemônio cunhada pelo poeta do


século XVII, John Milton, na sua obra Paraíso perdido83, podemos dizer
que no Brasil, a reunião de todos (pân) os demônios (daimônion) ídeo-
políticos da sua formação social, adquire um enredo mitológico na
tragédia política contemporânea desse neofascismo de massas e seu
mito fundador84. Nos dias atuais, o pandemônio neofascista se define por

82
Conta Paxton que (2007, p. 15-16) “Ao fim da Primeira Guerra Mundial, Mussolini cunhou
o termo fascismo para descrever o estado de ânimo do pequeno bando de ex-soldados
nacionalistas e de revolucionários sindicalistas pró-guerra que vinha se reunindo ao seu
redor. Mesmo então, ele não possuía o monopólio da palavra fascio, que continuou sendo
de uso geral entre grupos ativistas de diversos matizes políticos. Oficialmente, o
fascismo nasceu em Milão, em um domingo, 23 de março de 1919. Naquela manhã, pouco
mais de cem pessoas, entre elas veteranos de guerra, sindicalistas que haviam apoiado
a guerra e intelectuais futuristas, além de alguns repórteres e um certo número de
meros curiosos, encontraram-se na sala de reuniões da Aliança Industrial e Comercial
de Milão, [...] para ‘declarar guerra ao socialismo (...) razão de este ter-se oposto ao
nacionalismo’. Nessa ocasião, Mussolini chamou seu movimento de Fasci de
Combattimento, o que significa, aproximadamente, ‘fraternidades de combate’.”
83
Como estamos a abordar a Poética de Aristóteles, nada mais apropriado do que
resgatar o conceito de pandemônio – palavra composta pelos termos gregos pân
(“todos”) e daimónion (“demônios”) –, encontrado na obra Paraíso Perdido, de autoria do
escritor e poeta inglês John Milton (1608-1674). Trata-se de um poema épico que retrata
a visão cristã da origem do mundo e dos homens, no qual é narrada a rebelião de Satã
e sua expulsão do paraíso, que o leva a convocar uma assembleia de demônios (leia-se:
pandemônio). Segundo Milton, o pandemônio designa o palácio de Satã erguido no
inferno, onde os pares infernais ali se assentam em conselho.
84
Conforme destaca Chauí (2000, p. 9), “Se também dizemos mito fundador é porque, à
maneira de toda fundatio, esse mito impõe um vínculo interno com o passado como

EM CASA lendo a p. 324


Isolad@s

um movimento de massas para a manifestação política (nas ruas e no


espaço cibernético), que se expressa na elocução de práticas
discursivas de ódio contra a democracia, as quais, se anteriormente ao
coronavírus já afrontavam os valores ético-políticos atinentes ao Estado
democrático de direito, agora com a crise pandêmica, afrontam também
desde as orientações dos órgãos de saúde até toda a racionalidade
científica necessária ao combate da pandemia. Nessa assembleia do
pandemônio político neofascista, os piores mitos sociais decorrentes da
autoritária microfísica egoístico-passional inerente à formação da
sociedade brasileira, prevalecem sobre qualquer possibilidade de
formação de uma necessária esfera ético-política para enfrentar a
pandemia, posto que a ousadia da ignorância e o ódio decorrente da
polarização fascista, se tornam as principais mediações que
correspondem à forma de ser vivenciada politicamente a crise
pandêmica sob o enredo mitológico da tragédia microfascista.

Neste contexto, assumimos a seguinte hipótese: há na formação


social brasileira uma vivência mitológica da realidade política,
modeladora de uma subjetividade microfascista, que se materializa no
pandemônio do neofascismo como tragédia política sublimada nas
práticas discursivas que conduzem as condutas dos indivíduos em

origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva permanente
presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da
compreensão do presente enquanto tal” (2000, p. 9); tratamos melhor disto mais à frente.

EM CASA lendo a p. 325


Isolad@s

sociedade. Segue que na crise pandêmica, essas práticas discursivas


formadas na microfísica do cotidiano – conforme formulado por
Foucault (2009; 2018; 2019, 1977) –, tem seu conteúdo microfascista
amplificado no avivamento dos piores mitos sociais da formação
histórica brasileira, seja o negacionismo científico a rejeitar as medidas
sanitárias, a mitologia delirante de uma conspiração comunista, ou
ainda o patriarcado a matar ainda mais mulheres durante o isolamento
social. Tudo isso contribui para ampliar um duplo contágio social: de um
lado, o contágio biológico do vírus, e de outro, o contágio político do
neofascismo, à medida que ambos se retroalimentam e se reforçam
mutuamente durante a pandemia, na forma de um fascismo social.
Afinal, se o vírus se propaga objetivamente pelo ar, o neofascismo se
propaga subjetivamente pelas práticas discursivas determinadas pela
mítica ideológica microfascista.

Para compreender a questão da pandemia de Covid-19 e como


esta se traduz politicamente em um amplificador social do pandemônio
neofascista, dividimos esta exposição em dois momentos:
primeiramente apresentamos a formulação de uma chave de leitura
crítica a partir de três dos elementos constituintes do conceito de
tragédia em Aristóteles (o mito, a elocução e o espetáculo)85 sob uma
inflexão antropológica; em seguida, costuramos esta chave de leitura

85
No total, são seis os elementos, partes ou momentos que constituem a tragédia em
Aristóteles (mito, caracteres, elocução, pensamento, espetáculo e música).

EM CASA lendo a p. 326


Isolad@s

com uma exposição introdutória do conceito de microfascismo,


amparado na concepção foucaultiana de como as práticas discursivas
modelam a subjetividade e conduzem as condutas dos indivíduos em
uma sociedade, sob a inflexão da própria natureza mitológica
encontrada na ordem do discurso estabelecida a partir da formação
social brasileira.

ARISTÓTELES E FOUCAULT NA MITOLOGIA DA


TRAGÉDIA POLÍTICA BRASILEIRA
emos no Brasil contemporâneo uma mentalidade política
T formada na esteira ideológica do microfascismo, amparada
por um moralismo reacionário e sua mitologia fundante
pautada em um patriotismo chauvinista amplificador dos piores mitos
sociais da formação histórica brasileira (leia-se: o colonialismo, o
racismo, o escravismo, o mandonismo, a homofobia, o negacionismo
histórico, a rejeição da racionalidade científica e dos direitos humanos,
etc.). Trata-se da mediação que formou culturalmente uma concepção
reacionária de nação, capaz de magnetizar o imaginário popular de
grande parte da sociedade brasileira, sob um patriotismo autoritário e
antidemocrático. Conforme ressalta a Marilena Chauí (2000, p. 9), “um
mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para
exprimir-se, novas linguagens, novos valores e ideias, de tal modo que,

EM CASA lendo a p. 327


Isolad@s

quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si


mesmo”.

Sem a pretensão de estabelecer alguma exegese definitiva, a


partir de uma leitura que consideramos possível da tragédia em
Aristóteles, identificamos no drama histórico do Brasil contemporâneo,
alguns elementos conceituais úteis (o mito, a elocução e o espetáculo)
para esquadrinhar a urdidura entre mitologia e política na formação das
práticas discursivas que comparecem nas relações de poder, de modo a
produzir um fascismo social a partir da microfísica do cotidiano. No
tocante à chave de leitura aqui proposta, tais elementos são
encontrados na afamada obra aristotélica intitulada de Poética, na qual
o filósofo grego define a tragédia como “[...] composições que recebem o
nome de drama, pois imitam as pessoas em ação” (ARISTÓTELES, 2004,
p. 37).

Em primeiro lugar temos o mito (mythos), que segundo


Aristóteles se constitui como o enredo do drama (a alma da tragédia).
Na política brasileira, o mito se coloca no drama histórico da revelação
dessa sociedade para si mesma, à medida que as massas estabelecem
uma relação identitária com uma liderança que passa a ser denominada
como “mito” e “herói” na forma estranhada de si mesma que se
manifesta em como as pessoas se reconhecem em sociedade. Na vida
coletiva da pólis contemporânea brasileira, a partir das suas formas de
vivenciar politicamente o conteúdo das relações sociais, esses

EM CASA lendo a p. 328


Isolad@s

indivíduos são conduzidos por meio de uma narrativa mitológica


neofascista que identificou os seus “hérois” em figuras como Jair
Messias Bolsonaro ou Sérgio Moro. No Brasil, a produção formativa
dessa narrativa política mitológica se realiza regida pela ausência de
uma substância ético-política na própria formação social deste país,
capaz de libertar racionalmente o indivíduo da pura subjetividade com
relação à mera opinião imediatista e acrítica, que os gregos chamavam
de doxa em oposição à episteme. Como sociedade, o Brasil não foi capaz
de produzir um ethos e uma cultura política orientada pela lógica
democrática da cidadania social. Portanto, a tragédia da política
brasileira reside no fato de que o seu mito fundador não formou uma
cultura política democrática; ao contrário, a mitologia social decorrente
da formação histórica brasileira é fundada, fundante e formadora de
práticas discursivas autoritárias e microfascistas no tocante à urdidura
das relações de poder que se formam na sociedade civil e agora
adquirem centralidade no Estado. Em termos políticos objetivos das
cenas históricas dessa tragédia e sua rapsódia na contemporaneidade,
podemos dizer que a sociedade brasileira elaborou uma constituição
dita cidadã em 1988, mas não foi capaz de formar politicamente cidadãos
ou de produzir um ethos democrático, justamente porque não formou
práticas discursivas capazes de promover uma subjetividade política
democrática na esteira das múltiplas correlações de forças que
constituem o cotidiano e sua microfísica social. Essa mitologia
microfascista representa o drama da política corrompida em sua

EM CASA lendo a p. 329


Isolad@s

dimensão ético-política já desde o seu processo de formação social


historicamente determinado e culturalmente condicionado, que
compromete a democracia por meio do afastamento da razão, que é
vivenciada através da sua própria negação como irracionalidade
política. Neste ponto é onde mora o perigo do neofascismo de massas, a
partir do qual – conforme alertou o pintor espanhol Francisco de Goya –
, o sono da razão pode produzir os piores monstros de toda mitologia
conhecida: os monstros políticos.

O segundo elemento da tragédia aristotélica resgatado aqui é a


elocução ou a “fala” (lexis). Trata-se do meio da imitação se realizar
sendo dita. Portanto, consiste na expressão verbal por meio da qual se
exteriorizam no discurso os pensamentos, os desejos, as paixões, as
vontades e as ideias das personagens de um drama trágico. Na formação
do imaginário popular brasileiro e sua mitologia fundante, podemos
identificar aquilo que Foucault define como uma ordem do discurso
socialmente estabelecida enquanto conduto de passagem da elocução
microfascista na vivência mitológica da vida em sociedade por meio de
um fascismo social, que a todo momento reproduz os seus mitos sociais
e sua mentalidade autoritária e antidemocrática. Não obstante, na
microfísica da tragédia política brasileira, a elocução corresponde às
práticas discursivas que materializam essa narrativa mitológica na
forma das massas vivenciarem politicamente a sua própria rapsódia;
processo por meio do qual se produz o microfascismo.

EM CASA lendo a p. 330


Isolad@s

Na terceira posição está o espetáculo (opsis). É a parte na qual


se toma conhecimento da finalidade da tragédia. O sentido do drama.
Consiste na maneira própria da tragédia imitar a vida de modo artístico,
no caso de Aristóteles, ou na forma mitológica de se vivenciar a política,
no caso do imaginário popular brasileiro. No Brasil, o último grande
espetáculo ocorreu na vivência mitológica de uma facada que viralizou
como uma verdadeira rapsódia que explodiu enquanto um fenômeno de
massas na tragédia política brasileira durante as eleições de 2018. Nesta
direção, nem interessa se a facada realmente existiu ou não, o fato
determinante é que ela foi vivenciada como real enquanto ponto alto da
tragédia brasileira como um espetáculo de histeria coletiva. Em resumo,
a facada foi o gatilho do pandemônio que se traduziu politicamente como
avivamento neofascista materializado nas urnas eletrônicas. Essa
mitologia de falsos heróis promoveu e promove uma catarse delirante
que alimenta com mais ignorância o sofrimento que, contraditoriamente,
é produzido pela própria ousadia da ignorância política de um povo que
no seu imaginário cultural ainda não chegou nem sequer ao Iluminismo.

Por sua vez, como fica a costura destes três elementos que
extraímos da tragédia aristotélica sob a inflexão antropológica da chave
de leitura aqui proposta? Vejamos: o mito e sua elocução em tempos de
pandemia da Covid-19, amplifica socialmente o pandemônio político
como espetáculo, isto é, um surto de histeria coletiva que reúne pessoas
na forma de associações e manifestações políticas de agentes da

EM CASA lendo a p. 331


Isolad@s

banalidade do ódio e da irracionalidade como formas de vivenciar a


política. Sendo assim, com base na inflexão que fazemos no sentido da
tragédia encontrado na Poética de Aristóteles, podemos dizer que a
tragédia política brasileira seria uma espécie de farsa (falsa tragédia)
com seus falsos heróis, pois segundo Aristóteles, “Homero imitava
homens superiores; Cleofonte, iguais; Hegêmon de Tasos, o primeiro a
escrever paródias, e Nicócares, autor da Dilíada, os inferiores; [...] A
mesma diferença se encontra na tragédia e na comédia; esta procura
imitar homens inferiores ao que realmente são, e aquela, superiores”
(ARISTÓTELES, 2004, p, 39).

O caso brasileiro poderia até mesmo ser uma “comédia”, se


realmente não fosse trágico. Por sua vez, importa ressaltar que a
concepção de Aristóteles acerca da origem da poesia e, portanto, da
tragédia e da comédia, aponta para causas puramente naturais86. Neste
ponto, a nossa chave de leitura faz uma inflexão antropológica para
formular a concepção de tragédia política aqui apresentada,
compreendida não a partir de causas naturais, mas como decorrente de
um processo de formação social historicamente determinado e

86
No capítulo IV da Poética, diz ele: “Ao homem é natural imitar desde a infância – e
nisso difere ele dos outros seres, por ser capaz da imitação e por aprender, por meio da
imitação, os primeiros conhecimentos” (ARISTÓTELES, 2004, p. 40). A ciência moderna
sabe que o mimetismo não é algo exclusivo dos seres humanos, outras espécies como
os primatas ou até mesmo algumas aves, são capazes de realizar imitação e obter
aprendizado a partir desta, mesmo que de maneira profundamente limitada com relação
à espécie humana.

EM CASA lendo a p. 332


Isolad@s

culturalmente condicionado sob narrativas mitológicas (por isso a


validade de Aristóteles, apesar do giro exegético em tela) que se
expressam subjetivamente na forma de práticas discursivas que se
produzem e reproduzem na microfísica social do cotidiano – e é neste
ponto que entra o Foucault, conforme veremos mais à frente. Isso nos
permite resgatar alguns dos elementos conceituais da tragédia
aristotélica (mito, elocução e espetáculo), de modo a utiliza-los sob um
sentido político moderno. Sendo assim, à luz dessa embocadura
filosófica simultaneamente social e histórica, se torna possível definir a
tragédia política contemporânea na e pela relação estabelecida entre,
de um lado, o conteúdo das relações sociais, e de outro, a forma deste
conteúdo ser vivenciado politicamente sob um enredo mitológico
microfascista.

Assim, o pandemônio neofascista brasileiro amplificado pela


pandemia, se revela como um espetáculo do fascismo social, que imita
“homens inferiores”, nomeados como “mitos” e “heróis” políticos dessa
assembleia que reúne sob uma narrativa mitológica da vida política,
todos os piores demônios da formação social brasileira. Contudo, entre
o biológico e o mitológico, a política é a questão, pois é na vida em
sociedade que se dá o drama histórico constituinte da tragédia brasileira
em tempos de pandemia.

Sabemos que a política é determinada ontologicamente pelo


desenvolvimento histórico do ser humano como ser que se autoproduz

EM CASA lendo a p. 333


Isolad@s

a partir do trabalho, mas não naquilo que corresponde unicamente ao


mundo da produção de mercadorias, que podemos situar na poiêsis
aristotélica. É preciso também levar em conta o mundo da atividade em
si mesma como seu próprio fim, que na Ética a Nicômaco (1987)
Aristóteles aponta justamente na práxis, isto é, o mundo onde atuam as
pessoas em ação imitadas pela arte da tragédia. Este último é o mundo
ético e político como formador da consciência e das subjetividades
individual e coletiva, campo fértil para a produção das narrativas
mitológicas condensadas no imaginário popular – terreno no qual se
forma o microfascismo.

No Brasil, o mundo da práxis tem fortes ligações históricas com


a vida política sob a formação social imposta pelas elites e seu mito
fundador na esteira de uma sociedade autoritária e suas contradições
imanentes, que acabam por ser “harmonizadas” ideologicamente na
ordem das práticas discursivas que modelam as relações de poder sob
narrativas mitológicas microfascistas, desde, por exemplo, os
colonizadores ideológicos do passado (os jesuítas) até os colonizadores
ideológicos do presente (os pastores neopentecostais). Essa é a
mediação que produziu a mentalidade que hoje conduz as condutas e
modela os indivíduos sob vetores subjetivos microfascistas nesta
sociedade.

EM CASA lendo a p. 334


Isolad@s

MICROFASCISMO E PANDEMÔNIO NEOFASCISTA


EM TEMPOS DE PANDEMIA
microfascismo se define pelo conjunto de microelementos
O autoritários, reacionários e moralistas produzidos nas
relações de poder que conduzem as condutas e modelam os
indivíduos politicamente em uma sociedade, desde o núcleo familiar até
a escola, a igreja, o partido político, o sindicato, a empresa, etc. Na vida
política, os microfascismos são os elementos discursivos que se
constituem como uma mítica de significação ideológica das práticas
discursivas de um fascismo social estabelecido na forma dos indivíduos
vivenciarem politicamente o conteúdo das múltiplas correlações de
forças que constituem as relações de poder em uma sociedade.
Podemos dizer que se trata daqueles microelementos fascistas de vetor
subjetivo que comparecem como uma progressão imanente à formação
das práticas discursivas na microfísica social. Esses microelementos
fascistas se objetivam tanto no discurso como em outras práticas sociais
enquanto uma contradição em processo, estabelecida entre conteúdo e
forma na constituição do sujeito em sociedade. E o cotidiano é a região
na qual, por meio deles, as práticas discursivas operam “harmonizando”
a contradição estabelecida entre o conteúdo das relações sociais e a
forma deste conteúdo ser vivenciado de maneira reacionária, moralista

EM CASA lendo a p. 335


Isolad@s

e autoritária87 sob um enredo mitológico. A esse cotidiano imbricado


pelas relações de poder constituídas a partir das formas subjetivas dos
indivíduos vivenciarem o conteúdo das relações sociais, chamamos de
microfísica social – que a partir de Foucault, podemos dizer que é a
verdadeira nascente do poder enquanto uma contradição em processo.

Com base nos estudos de Michel Foucault (2009), podemos dizer


que por meio do discurso, aquilo que é vivenciado sob as relações de
poder historicamente estabelecidas, e de acordo com a formação social
de uma época ou de um país e sua mitologia fundante, é exteriorizado
sendo dito. Desse modo, a ordem do discurso é formada a partir daquilo
que é vivenciado enquanto práticas discursivas, estabelecidas entre, de
um lado, como essas práticas são produzidas na forma de saberes, e de
outro, como são vivenciadas em sociedade e adquirem o status de
verdade por meio de rituais próprios. Consequentemente, no Brasil, essa
produção discursiva ocorre carregada de determinações das relações
de poder vivenciadas sob narrativas antidemocráticas. Neste processo,
o discurso microfascista enquanto parte constitutiva do indivíduo na
formação social brasileira, se põe como um conduto formativo das
relações de poder e dos seus processos sociais de subjetivação. Isto diz
respeito à maneira como este indivíduo, por meio das práticas sociais

87
Conforme explica Leandro Konder (2009), o autoritarismo por si só não significa
fascismo.

EM CASA lendo a p. 336


Isolad@s

enquanto práticas discursivas – ou seja, que só se realizam sendo ditas


–, se constitui como sujeito.

A microfísica social se constitui ao longo do processo histórico


de formação de uma sociedade e suas determinações culturais, sob as
relações de poder materializadas no discurso, não apenas enquanto
conteúdo, mas sobretudo como formas subjetivas deste conteúdo ser
vivenciado, o que diz respeito as regras do seu funcionamento comum,
ou seja, os processos por meio dos quais o poder se constitui e circula
entre os indivíduos em suas múltiplas correlações de forças, desde o
cotidiano até o Estado e suas instituições. Neste sentido, o discurso é
conduto de passagem e também, ao mesmo tempo, objeto e mecanismo
de sustentação do poder, conforme ressalta Foucault (2009, p. 10): “[...] o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar”.

No tocante ao neofascismo, o que está em questão é como na


microfísica do cotidiano são produzidas e reproduzidas ideologicamente
as determinações reacionárias, autoritárias e moralistas que modelam
as formas dos indivíduos vivenciarem politicamente seus afetos (e
desafetos), sua sexualidade, seus desejos e seus medos sob um enredo
mitológico, ao mesmo tempo individual e coletivamente, desde a infância
até a idade adulta. Na contemporaneidade, vemos que os
microfascismos se constituem como a base de um avivamento fascista

EM CASA lendo a p. 337


Isolad@s

que se materializa no pandemônio neofascista, à medida que essas


determinações são canalizadas e amplificadas ideologicamente na
arena política, pelos setores mais conservadores, sobretudo em
momentos de crise, a exemplo da pandemia de Covid-19, quando se
acirram as tensões relativas à vida em sociedade.

A mediação que serve de conduto de passagem histórico-social


para os processos de subjetivação dos microfascismos está na formação
dos mitos sociais mais tacanhos que formam a mentalidade autoritária
de um povo. O pandemônio neofascista se dá à medida que essa
mitologia é vivenciada ideologicamente como uma realidade concreta e
com implicações reais na vida em sociedade, ou seja, na práxis. Desde o
cotidiano do indivíduo na família e na sociedade civil, até a esfera da
coletividade ético-política, na qual o poder adquire centralidade no
Estado, a ficção desses mitos sociais é vivenciada como real de modo a
promover o pandemônio enquanto movimentos de associação de
massas para a promoção de práticas de ódio como forma de
manifestação política regidas por narrativas política de caráter
mitológico em suas práticas discursivas.

No caso do neofascismo no Brasil e sua amplificação social


durante a crise pandêmica, formas de consciência ideológica viscerais
à formação social brasileira aparecem afloradas sob narrativas
mitológicas, com ênfase para os negacionismos histórico e científico.
Todas essas determinações convergem para o avivamento de três

EM CASA lendo a p. 338


Isolad@s

aspectos que, imbricados, caracterizam propriamente o neofascismo


brasileiro como uma tragédia política (fascismo social) capaz de fazer
da pandemia um amplificador do pandemônio social e político: i) Uma
visão mítica de nação sob um discurso patriótico chauvinista; ii) A visão
do outro no campo político, não como o opositor que deve ser
antagonizado no jogo democrático, mas, ao contrário, como um inimigo
que deve ser eliminado e que, diante disso, este patriotismo guia-se pela
necessidade mitológica de salvação, que se expressa marcada pelo
culto à figura de um messias político que antropomorfiza e encarna “o
mito” fascista; iii) Um pragmatismo político que se manifesta no culto da
ação pela ação ideologicamente marcado pelo negacionismo histórico e
também cientifico (a exemplo daqueles que negam, seja a ditadura civil-
militar de 1964 ou a realidade do vírus).

No campo das instituições políticas, estamos diante daquilo que


a antropóloga e historiadora Lilian Schwarcz (2019) identifica como uma
mitologia de Estado, regida pela elocução da polarização do “eles”
contra “nós” ou do “nós” contra “eles”88 – condição ideal para o
pandemônio neofascista. Adorno (2018) destacou que “A maioria
esmagadora das declarações dos agitadores é dirigida ad hominem. Elas
são baseadas mais em cálculos psicológicos que na intenção de
conseguir seguidores por meio da expressão racional de objetivos

88
Também o Jason Stanley, explica essa dinâmica em sua obra Como funciona o
fascismo: a política do “nós” e “eles” (2018).

EM CASA lendo a p. 339


Isolad@s

racionais”. Na ordem do dia, a sintomática síntese desse movimento está


na máxima viral e neofascista, altamente contagiosa: “Meu partido é o
Brasil”. Conclusão: esse movimento de massas constituído pelo
pandemônio político do neofascismo, encontra na pandemia um
amplificador social, e seu conduto de passagem está no ódio e na
ousadia da ignorância como formas de vivenciar a política; processo no
qual pandemia e pandemônio se retroalimentam na constituição da
tragédia política brasileira em tempos de Covid-19.

Na contemporaneidade, chegamos a um momento da formação


histórica brasileira, no qual essa visão mítica de nação constituída sob
um invólucro chauvinista e reacionário, precisava de uma liderança que
encarnasse esse mito antropomorfizado em um autêntico representante
do típico “homem de bem”: temente a Deus, chefe de família no modelo
tradicional, que coloca ordem na casa sob a autoridade hipócrita do
moralismo cristão, emplacado no discurso pela ousadia da ignorância,
que nega a ética dos direitos humanos e rejeita a racionalidade
científica. Com a derrocada do lulismo, todos os demônios do
ultraconservadorismo brasileiro estavam à procura de uma liderança
que encarnasse esse avivamento político dos mais pérfidos e
reacionários mitos sociais carregados de elementos fascistas. Como
adverte Madeleine Albright (2018, p. 17), “a energia do fascismo é
alimentada por homens e mulheres abalados por uma guerra perdida,
um emprego perdido, uma lembrança de humilhação ou a sensação de

EM CASA lendo a p. 340


Isolad@s

que o seu país vai de mal a pior”. Dessa maneira, surge a demanda por
um mito antropomorfizado (um messias político) que pudesse “salvar” o
Brasil da pecha petista da corrupção e da “ameaça comunista”, sob a
missão de uma limpeza moral, diante da qual a pandemia do coronavírus
facilmente é desacreditada por esta narrativa política mitológica sob a
mítica ideológica do negacionismo científico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Covid-19, doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2,
A ganha força com a ousadia da ignorância e do egoísmo
humano totalizado na loucura da razão econômica capitalista
vivenciada pelos indivíduos sob a mítica das práticas discursivas
microfascistas. Neste contexto, diante da pluralidade de mediações que
constituem a crise contemporânea, com a chegada do elemento
pandêmico temos também uma determinação biológica socialmente
estabelecida entre, de um lado, o conteúdo das relações sociais, e de
outro, a complexidade dos processos de subjetivação que determinam a
forma das pessoas vivenciarem politicamente em suas práticas
discursivas, este conteúdo sob narrativas mitológicas de base
microfascista.

Na contextura do modo de produção e reprodução capitalista, a


tragédia está determinada ontologicamente pela substância social do
trabalho historicamente desenvolvida, ou seja, a natureza de destruição

EM CASA lendo a p. 341


Isolad@s

criativa do processo de trabalho carrega a chave da caixa de Pandora


da natureza. À medida que cria e se autoproduz alterando e destruindo
(integral ou parcialmente) aquilo que está posto no equilíbrio natural do
planeta, o trabalho como técnica historicamente desenvolvida sob a
razão do capital, aponta inevitavelmente na direção de tragédias
biológico-sociais (pandemia) e políticas (pandemônio).

Na conjuntura hodierna, o vírus surge como uma síntese


biológica de todas as determinações sociais e políticas do nosso tempo,
e produz uma situação pandêmica que penaliza a ousadia da ignorância
mistificada no drama histórico desta vivência mitológica da vida política.
No Brasil, a pandemia ganha força com o pandemônio da desinformação
e do negacionismo científico; triunfa por meio da mistificação
encontrada no discurso dos falsos heróis do pandemônio neofascista; e
acaba por reforçar as piores narrativas mitológicas enquanto forma
política dos indivíduos vivenciarem o conteúdo das relações sociais, de
modo a modelar uma subjetividade de massas que não detém elementos
para compreender minimamente a real gravidade da situação em
termos racionais.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. A Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda Fascista. In: Blog da
Boitempo, publicado em 25. out. 2018. Disponível em: <<
https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/25/adorno-a-psicanalise-da-adesao-ao-
fascismo/ >> Acesso em: 30. abril. 2020.

ALBRIGHT, Madeleine. Fascismo: um alerta. – São Paulo: Planeta, 2018.

EM CASA lendo a p. 342


Isolad@s

ARISTÓTELES. Poética. In: Aristóteles – Vida e obra. São Paulo: Editora Nova Cultural,
2004 (Coleção Os Pensadores), p. 32-75.

_____. Ética a Nicômaco. – São Paulo: Nova Cultural, 1987.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. – São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2000.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula inaugural no College de France.


Pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio.
18. ed. - São Paulo: Loyola, 2009.

________. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da


Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. – 7ª ed. – Rio de Janeiro/São Paulo, Paz
e Terra, 2018.

______. Microfísica do Poder. – 9. ed. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2019.

________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.

KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. – 2. ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2009.

MILTON, John. Paraíso perdido. – 1 ed. – São Paulo: Martin Claret, 2018.

PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. – São Paulo: Paz e Terra, 2007.

REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. - 3. ed. - São Paulo: Martins Fontes,
2001.

SCHWARCZ, Lilian Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. – 1 ed. – São Paulo:


Companhia das Letras, 2019.

STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”. – 1 ed. – São
Paulo: L&PM, 2018.

EM CASA lendo a p. 343


Isolad@s

O RESSURGIMENTO DA
IRRACIONALIDADE E O
SILENCIAMENTO DE VIDAS NA
PANDEMIA PELA COVID-19 NO
BRASIL
Kênia Faria Brant
Doutoranda em Educação (PPGE/Ufes), Mestra em
Estudos de Linguagens (Cefet-MG) e graduada em
Artes Visuais (UNIMONTES-MG). Pesquisadora no
Nepefil/Ufes e professora de Arte do IFMG – campus
Governador Valadares.
kenia.brant@ifmg.edu.br

Juliana Sampaio da Silva


Mestranda em Educação (PPGE/Ufes) e graduada em
Pedagogia (Ufes). Pesquisadora no Nepefil/Ufes.
julianasampaio16@hotmail.com

EM CASA lendo a p. 344


Isolad@s

“Tá lá um corpo estendido no chão”


(Aldir Blanc/ João Bosco)

ratar de um tema repetidas vezes prenunciado e propagado na


T mídia parece agora querer fazer “chover no molhado”, como nos
faz recordar o dito popular. E é por aqui mesmo que começaremos
a dialogar com o dia a dia da pandemia causada pelo velho vírus, Covid, que
em 2019 tornou-se “novo” de novo lá no velho mundo. Como a uma fênix,
ressurgida com vigor, em voo célere veio aportar nessa nação no início de
2020 trazendo consigo o amargor de novas experiências e pobrezas para a
”Pátria Amada Brasil”. A junção aqui dessas duas condições bárbaras serve
como caminho escolhido para identificar quem são, quais foram, e como
estão os 5 milhões de cidadãos brasileiros infectados nesse curso da história,
e mais de 150 mil mortos até meados de outubro de 2020.

É a partir dos estudos de Walter Benjamin (1994), organizados nas


Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura, como crítico literário e também questionador do
pensamento filosófico e artístico no início do século XX que iniciamos nossa
reflexão. Benjamin apoiou-se no uso das metáforas e outros simbolismos da
história para questionar os acontecimentos no velho mundo. Como a um
flâneur e pesquisador inspirado no marxismo, vinculado à Escola de
Frankfurt elaborou vários estudos sobre a história, ainda que inacabados,
como também deixou vários ensaios. Legado que deve ser investigado nas

EM CASA lendo a p. 345


Isolad@s

atuais conjecturas de incerteza, especialmente sobre o valor da experiência


como marca histórica.

Parafraseando Benjamin, propomos revisitar também as fábulas de


Esopo para apreciar os símbolos e signos articulados na elaboração das
confabulações sobre o tempo, a memória e a experiência. Nesse momento
pandêmico, seja no Brasil ou em toda parte do mundo, surgem novos e frágeis
simbolismos mascarando o tempo do “humano, demasiado humano”
(Nietzsche, 2005) na tentativa de ludibriar a morte.

Benjamin (1994) cita alegorias e fatos para representar as vivências


e os terrores da experiência sem sentidos no momento da morte. O texto nos
parece como manifesto ressentido diante da modernidade e das vivências
deixadas pela Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo antevendo que os
rastros deixados são os fomentadores da segunda catástrofe em andamento,
bastando apenas perceber os desmandos e comandos do regime nazista na
Europa, da qual ele também foi vítima contumaz. Da narrativa simbólica na
fábula ao discurso didático como método de contar e recontar a história,
Benjamin segue para o movimento que indica a experiência como sendo uma
espécie de herança que passa de uma geração à outra, ou seja, naturalmente
dos mais velhos para os mais jovens. São vivências provenientes de lugares
e realizações vívidas, potencializadas pela recordação no ato próprio de
narrar a tradição oral.

EM CASA lendo a p. 346


Isolad@s

Daí advém nossa questão que está também nesta passagem de


Benjamin (1994): “Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que
possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração?” Na falta de
respostas prontas a essa indagação, seguimos com mais alguns
questionamentos: O que o suicídio de um homem aos 85 anos, moribundo ou
não, tem a nos revelar sobre a morbidez da sociedade brasileira? Por que a
morte de velhos, crianças e adolescentes reproduz o território da exclusão?
O que pensar dos atuais discursos governamentais, laureados de ideais
fascistas que claramente consideram descartáveis a vida de grupos
minoritários diante da atual pandemia provocada pela Covid-19?

Ancorados nos aportes da Teoria Crítica da Sociedade, os ensaios


benjaminianos problematizam a inquestionável finitude da vida, ao mesmo
tempo em que sugere que o ato de permanência é resistência, para poder
perpetuar-se no tempo. A proposta do autor é seguir atravessando as
experiências das gerações que nos antecedem. Para Benjamin, no ato de
atravessar a memória, acontece o olhar de volta para o passado, certo
desvelar, no entanto, sem ressuscitá-lo. Contudo, em ato contínuo, ou
circular, de olhar para o passado e narrar a história, vê-lo progredir para o
tempo de agora, juntar-se os quebra-cabeças, é missão do observador para
forjar o futuro. A “história é objeto de uma construção cujo lugar não é um
tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”, isto é,
“repleto de atualidade” (Benjamin, 1994, p. 22). Para ele, o que interessa é
organizar a luta constante para identificar opressores e oprimidos, assim,

EM CASA lendo a p. 347


Isolad@s

afirma que não é possível escapar do tempo ou da morte cronológica e


permanecer sem a finitude do corpo. No contínuo da multiplicidade das
experiências é que a existência humana elabora construtos de interpretação
do passado que perpetua na memória coletiva.

CONFABULAÇÕES (IR)RACIONAIS SOBRE A COVID-19


“Cultura é apenas uma delgada pelinha de maçã,
sobre um caos incandescente”
(Nietzsche)

enjamin é sagaz e paradoxal nas comparações e alegorias no texto


B Experiência e pobreza (1994) quando escolhe evidenciar o
memento mori para recordar a condição da barbárie nazista e
também sinalizar para a possiblidade de a humanidade poder experimentar
algum saldo positivo após as duras experiências. Ao recordar a parábola do
Pai e filhos brigões (Esopo, 2011), em que o velho moribundo, antes de partir,
exemplifica como legado, que a única condição de viver com honradez e
dignidade está no “trabalho”, espécie de chave de acesso ao mundo social e
feliz, que proporciona ensinamentos morais e técnicos. Nessa apropriação
literária, interessa-nos fixar e ater-nos à “felicidade” de que fala Benjamin,
como a elaboração da erfahrung, que pode ser traduzida como a experiência,
que, metamorfoseada no tempo é capaz de criar memórias. A experiência
de que ele trata é dada pelo tempo nas coisas, e não exatamente pelo tempo
gasto na produção e reprodução do trabalho. Nas coisas estão plasmados os

EM CASA lendo a p. 348


Isolad@s

vestígios da coletividade e a expertise dos artífices. Era motivo de felicidade


aos velhos a façanha de ensinar ofício aos mais jovens, repassar a
experiência e o modus operandi como meio de seguir e perpetuar a tradição.

Nesse ato de atravessar o tempo, a experiência se alargava de um


lugar a outro, da família para a comunidade, fecundando de cultura a tradição
de um povo. A experiência hodierna está perdendo esse lugar de fala. O
silenciamento de vidas com a pandemia beira a irracionalidade da Idade
Média que tinha como propósito apagar as batalhas da ciência e os avanços
da racionalidade do século XX. Similar alerta pode ser percebido nos ensaios
de Benjamin (1994) ao referir-se às “batalhas” com o tempo histórico e o
passado, que são responsáveis por algum tipo de experiência. Todavia, nesse
caso “mais pobres em experiências comunicáveis”, presta-se a indicar quase
sempre como condição moral.

Pergunta o autor: “Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio


cultural, se a experiência não mais o vincula a nós” (Benjamin, 1994, p.115)?
A resposta dele é direta: “uma nova barbárie”. Este é o ponto que espreitamos
para vincular à problemática proposta, a da efemeridade do tempo, em
tempos de pandemia (Covid-19) e a ausência da empatia que faz apagar os
“vestígios” de individualidade e subjetividade da cultura brasileira. Quando a
“cultura” é entendida de forma generalista é exatamente aí que nasce a
barbárie, ensina Nietzsche (2005).

EM CASA lendo a p. 349


Isolad@s

A BARBÁRIE GOVERNAMENTAL: POBREZA DE


EXPERIÊNCIA COM A PANDEMIA
“Apaguem os rastros”
(Bertold Brecht)

o final de 2018 o país já sinalizava para os fortes ataques à


N democracia brasileira e para os abusos da memória ao eleger um
governante que em discurso prometia um novo pacto nacional
para reestabelecer a “ordem e progresso” no Brasil. Velhos discursos
travestidos de novidade, mobilizando o que há de pior do fascismo, contra os
direitos humanos, em favor do mito da pátria criada por programa de política
que subverte o que seja democracia. Trata-se da seleção do “povo” que terá
ou não direito ao estado de direito.

A pandemia provocada pela Covid-19 não foi a derrocada de tomadas


de atitudes emergenciais para salvar o povo brasileiro, foi, no entanto,
escudo muito bem-vindo para arquitetar o plano econômico em detrimento
ao custo político da saúde sanitária. A governança do país surge com a defesa
de que a pandemia é adversa e não estava nos “planos” do seu governo. As
ações do governo confundem progresso com predação ao atacar as
instituições públicas, especialmente as da saúde e educação, para criar um
ambiente de desacreditação pública, que visa ao golpe de Estado.

EM CASA lendo a p. 350


Isolad@s

A criação simbólica de nacionalismo autoritário atrelado ao


militarismo como força de comando, com valores ultraconservadores trata
os brasileiros que discordam do programa, como inimigos do progresso.
Quando o coronavírus chegou de vez ao Brasil, oficialmente no final de
fevereiro de 2020, a proposta foi menosprezar o grau de risco. Assim, o
número de contaminados cresceu em progressão geométrica, pondo à prova
a capacidade de o governo gerir até mesmo a crise idealizada pela equipe
ministerial para “monitorar” o caos.

Em uma sociedade brutalmente desigual como a do Brasil é desigual


também a forma de contágio de uma pandemia. Chega a ser um erro crasso
comparar o Brasil, país de dimensões continentais à Europa em relação à
saúde pública. A realidade brasileira não deveria ser politizada em facções
que minimiza ou vitimiza a pandemia como a crise insurgente. O coronavírus
é apenas mais um dos sintomas mórbidos alojados nesse desgoverno.

CASOS NO CAOS: SEVERINA PANDEMIA


“E se somos Severinos iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual, mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre de velhice antes dos
trinta, de emboscada antes dos vinte de fome um
pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte
Severina ataca em qualquer idade, e até gente não
nascida)”
(João Cabral de Melo Neto)

EM CASA lendo a p. 351


Isolad@s

omos iguais na morte, diz o poeta. Na arte e na poesia é possível


S chegar à morte como fim perene da igualitária vida humana. Até
que ela se esvaia é preciso que a vitalidade sobreviva aos embates
engendrados entre ela e o meio social. Não é somente agora, no aparente
caos que vivemos da dependência da sociabilidade, e isso vai além de um
discurso econômico do colapso do mercado, há uma rede muito mais
complexa. Apesar da profunda desigualdade na economia, esse “novo
normal”, como alcunhado por alguns economistas, o que acontece na prática
das relações sociais, especialmente na classe trabalhadora que ascenderá
rapidamente ao flagelo da desigualdade social, é a exclusão. Fica
escancarada a proposta estrutural da burguesia em manter o capital
organizado com a periferia totalmente dependente. A crise pandêmica
desemprega e emprega. A depender do eixo mercadológico, a morte é
também empregadora. À classe trabalhadora cabe o amargor da
expropriação dos direitos, especialmente aqueles que em nada tem como
garantia, a não ser a ilusão da autonomia. A pandemia agrava e condiciona a
manutenção da lógica capitalista e de fato poderá dizimar alguns
microempreendedores, os trabalhadores informais e até mesmo os
servidores públicos, novo alvo governamental para justificar a privatização
e esfacelamento da coisa pública.

Por pior que pareça não estamos no caos. Afirmam algumas


correntes sociológicas. O desabamento da máquina pública não aconteceu,
apesar de estar à revelia do parlamento e do judiciário, o que provoca medo

EM CASA lendo a p. 352


Isolad@s

iminente nas relações comerciais e sociais. O vírus que nos atinge é


sistêmico e velho conhecido: vírus ideológico. Todavia é por sua
especificidade e distinção que pode acometer e comprometer até ao grau
máximo o definhamento da individualidade. Ao desafiar o individual dentro
da coletividade, embaralha a subjetividade humana incitando o corpo a
adaptar-se ao novo estágio da humanidade. Basta olhar para imposição de
novos modelos educacionais com objetivo escancarado de legitimar o fim da
educação pública a serviço do mercado educacional sob o fetiche de
educação inclusiva e para todos.

A sofisticação nesse processo é tão sutil e genérica que radicaliza o


conhecimento concreto das relações cientificamente elaboradas ao longo da
história, e faz confundir a razão e a emoção, tanto quanto a condição da
fragilidade da vida humana perante as mudanças realmente necessárias. A
vida ronda o vazio e toma a morte como fim útil, resultado da alienação do
discurso moralizante como primazia do ser. A idealidade do sujeito fica
reduzida a uma representação de si no campo social, sem levar em conta a
totalidade do ser. Assim, ignora a tradição e a memória construída ao longo
do tempo de trabalho, restando à racionalidade objetiva, aposentar os ideais
conscientes.

Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país


é o caos como tudo aqui. A humanidade não deu certo.
Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora
num país como este. E com esse tipo de gente que
acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje.
(Flávio Migliaccio, 04 maio 2020).

EM CASA lendo a p. 353


Isolad@s

O trecho refere-se à carta deixada pelo ator Flávio Migliaccio antes


de findar sua representatividade como trabalhador em plena atividade
artística, contando com mais de 65 anos de trabalho ativo como ator, diretor,
produtor, roteirista de televisão, teatro e cinema. Esse roteiro final
desenhado pelo artista nos possibilita vários desdobramentos, todavia vamos
refletir na questão da “velhice” e comungar a respeito do que tem sido
vivenciado por outros tantos idosos no contexto da pandemia no Brasil. “Não
deu mais” ou não dá mais para ignorar o desprezo social que se tem imputado
aos mais velhos. Em diálogo com esse triste fato Mirian Goldenberg,
professora de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais (IFCS-UFRJ), pesquisadora da temática sobre envelhecimento, em
recente entrevista à BBC News Brasil89 traz importantes contribuições que
nos possibilitam dialogar com as questões de nosso texto dentro de sua
complexidade. A especialista aponta a produção e reprodução de uma
espécie de discurso violento carregado de preconceito e estigma a respeito
dos idosos, explica que tal discurso, apesar de sempre ter existido,
evidenciou-se com a pandemia do novo coronavírus.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que o maior grupo de


risco são as pessoas com mais de 60 anos de idade, comumente classificados
como pertencentes à terceira idade, ou ainda, velhos da melhor idade. Ao

89
BARRUCHO, Luiz. Pandemia de coronavírus evidencia 'velhofobia' no Brasil, diz antropóloga.
BBC NEWS Brasil, 02/05/2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
52425735>. Acesso em: 05/05/2020.

EM CASA lendo a p. 354


Isolad@s

utilizar o termo “velhofobia” a pesquisadora busca descrever preconceitos


associados aos idosos, em especial no atual contexto, além de estudar o
pavor do envelhecimento muito marcado na população brasileira. Segundo
ela: “Estamos assistindo horrorizados a discursos sórdidos, recheados de
estigmas, preconceitos e violências contra os mais velhos.” Migliaccio aqui é
a representação ínfima dessa sordidez social, de uma humanidade que de
fato não tem dado passos certos.

Nem mesmo a experiência e o tempo de servidão da população de


idosos têm sido resguardados como direito social e político. Retornando a
“Experiência e Pobreza” Benjamin (1994) aponta um prejuízo na qualidade e
desvaloração da experiência ocasionada pela modernidade, que teria dado
lugar a outro tipo de experiência, algo esvaziado, portanto ausente das
marcas da história e memória dos passantes. Nas gerações anteriores a rede
de comunicação com o futuro fazia-se ao estagiar com os mais velhos e
reproduzir seus ditos no sacrossanto e desejado futuro. Aos velhos de hoje
não é dado o direito de dizer. Assim, na mesma medida, vivenciamos ou
presenciamos uma espécie de violência que silencia a geração que seria a
rede de comunicação e produção de novas experiências.

IN MEMORIAM: ATOS INCONCLUSOS


“Fico na frente da televisão para aumentar
o meu ódio”
(Rubem Fonseca)

EM CASA lendo a p. 355


Isolad@s

Benjamin (1994) é preciso ao afirmar que “A experiência está na


história”. Com mais de 150 mil mortes (outubro de 2020) a (in)governança
atual do Brasil, vitimiza a idade da experiência pela falta de boa imunidade
que causa algumas comorbidades, como sendo a causa primeira e comum
que leva à finitude da vida de significativa parte da população brasileira.

Fora a necessidade de cultivar a empatia, percebe-se certo


estranhamento ao natural. O estranhamento é uma forma de cultura em si
mesmo, no caso dessa política brasileira, a cultura narcisista e mítica do
comando armado de poder. Para os atuais governantes o significado da vida
e da morte depende das defesas para o progresso na nação. O fetichismo da
mercadoria, revestido de democracia liberal é declarada forma de governo
fascista, e “ainda” não é ditadura fascista, entretanto, segue mistificando as
ideias conservadoras, que é o mesmo que conservar ideologias nazifascistas
- que mobilizam as práticas neofascistas nas parcelas das camadas
socialmente excluídas ou pouco esclarecidas.

O establishment, bandeira política para dizer sobre o novo


“estabelecimento” da ordem, tem mudado radicalmente a estética da vida e
da morte para despolitizar a segurança e o estado de direito, descumprindo
assim a constituinte que estabelece a segurança pública. Ao incentivar que
o “povo” minimize o poder viral em defesa da atual política brasileira de
ordem progressista, subverte também a democracia em autoritarismo.

EM CASA lendo a p. 356


Isolad@s

Precisamos acionar razão, apesar da emoção e da dor apagar


corpos. Precisamos de estratégias para lidar com as instabilidades
arquitetadas pelo poder em curso que justifica muitas das atitudes
arbitrárias em nome da ordem. Amante das redes sociais o chefe do
executivo do Brasil conclama, em vídeo, para ato público “todos na rua
apoiando Bolsonaro”90 explica a legenda do vídeo, juntamente com
impactantes imagens do político salvador da pátria. Tudo que esse
desgoverno quer, é arrastar multidões para o caos. Os coletivos estão mais
emocionados que organizados, e nessa encruzilhada, entre razão e dor, o ato
de manifestar-se é dialético, é risco e resistência!

A insatisfação é legitima a indignação também. O ressurgir da


irracionalidade é mais uma relação de causa e efeito, pois o “esclarecimento”
para Adorno (1992) deve guiar-se por conhecimentos técnicos e estruturados
para não cair nas armadilhas do condicionamento. A racionalidade sempre
esteve perto de poucos. Apesar do avanço da ciência, desde o século XX,
ainda é privilégio de poucos o estudo da sociedade de forma crítica. A ideia
poética de mundo é muito mais encantadora que a séria razão e os
constantes movimentos da ciência. Estar à deriva do controle da vida
individual e coletiva leva à insegurança e por isso mesmo ao desejo de

90
Estadão. https://brpolitico.com.br/noticias/bolsonaro-manda-video-convocando-para-ato-
anti-congresso/

EM CASA lendo a p. 357


Isolad@s

assegurar-se em outras fontes universais para criar determinada


cosmovisão de ser e estar no mundo.

A ciência é exatamente a atividade do exercício da dúvida. Mutantes


são as análises, porque perene é a vida humana. A dúvida, a incerteza, o vai
e vem dos experimentos não é problema para a ciência, como exemplifica o
epidemiologista Antônio Moura da Silva, professor da Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), "Todos os cálculos continuam indicando que o Rt [taxa
de reprodução de um vírus por contaminação geométrica] no Brasil continua
acima de 1 (BBC News Brasil)”; quando a OMS divulga como razoabilidade de
controle pandêmico, que esse índice seja menor que 1. Noutra vertente, as
reações à ciência são orientadas para a práxis sensacionalista e mítica para
confundir e desencadear ideais neoliberalistas, como corrobora Eduardo
Pazuello, enquanto ministro interino da saúde, que fez uma declaração no
mínimo controversa ao afirmar que o avanço da pandemia no Norte e
Nordeste do Brasil, estaria acontecendo devido ao forte inverno que o
Hemisfério Norte do planeta está enfrentando (BBC News Brasil).

Daí a questão que na atualidade, para a maioria da população


brasileira, que não pensa cientificamente, vislumbra de forma irracional e
simplista saídas para a suposta crise. Não há como convencer com
argumentos racionais, por exemplo, sobre o avanço da atual epidemia no
Brasil que não pelo discurso da educação e do esclarecimento. Algumas
questões devem ser analisadas com dados científicos, outras são facilmente
apuradas pelo instinto humano, a saber, a preservação da espécie. Certo é

EM CASA lendo a p. 358


Isolad@s

que ainda estamos longe de apresentar dados ou roteiros conclusivos para


lutar com igualdade de direitos.

Atualmente, os estudos já concluídos até meados de outubro, não foi


possível estabelecer “ainda” se o Brasil atingiu o pico da doença. Essa
determinação estatística dependeria da estabilidade de dados entre um pico
e outro. Outras pesquisas e testes com a vacina para o vírus também não
estão “ainda” concluídos. Pode-se inferir que, somente com os avanços da
pesquisa cientifica, poder-se-á fortalecer a imunidade, aliviar sofrimentos e
criar a resistência física para o enfrentamento da Covid-19.

Se é racional acomodar-se a uma mistura ambígua de


sofrimento e prazer marginal, quando as alternativas
políticas mostram-se perigosas e obscuras, é também
racional rebelar-se quando o sofrimento ultrapassa
em muito as gratificações, e quando tal ação parece
encerrar mais ganhos do que perdas (EAGLETON, 1997,
p.13).

Portanto, a única forma relativamente racional e eficaz, é o


distanciamento físico e a empatia com os diferentes. O isolamento tende a
aproximar a conivência entre os iguais na busca de uma pseudosegurança,
que, em contrapartida acaba por privar da experiência do contraditório.
Render-se às evidências reais da possibilidade da morte é a crença que
salva. Rebelar-se também.

Para boa parte da população brasileira o isolamento é mais que uma


privação de liberdade temporária, é sofrimento e morte. Para outra grande
parte é limitação real de privação das condições mínimas para a

EM CASA lendo a p. 359


Isolad@s

sobrevivência. Para alguns poucos por cento de brasileiros a irracionalidade


é opção de vida e morte. Que não nos falte resistência!

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor. Mínima Moralia: reflexões a partir da vida danificada. São Paulo: Ática, 1992.

BARRUCHO, Luiz. Pandemia de coronavírus evidencia 'velhofobia' no Brasil, diz antropóloga.


BBC NEWS Brasil, 02/05/2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-
52425735>. Acesso em 05 maio 2020.

BBC News BRASIL. Os 3 fatores que apontam quando Brasil chegará ao pico da epidemia de
covid-19. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52988646. Acesso em 13 jun
2020.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In.: Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Volume I. Tradução de Sérgio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 222-232.

BENJAMIN, Walter. As Teses sobre o Conceito de História. In.: Obras Escolhidas: Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura Vol. 1, p. 222-232. São
Paulo, Brasiliense, 1994.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In.: Obras Escolhidas: Magia e técnica, arte e
política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7ª
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOSCO, João & BLANC, Aldir. De frente pro crime.

BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. São Paulo: Editora 34, 2000.

EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 1997.

ESOPO. Fábulas Completas. Trad. Neide Cupertino de Castro Smolka. São Paulo: Moderna, 2011.

FONSECA, Rubem. O Selvagem da Ópera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.

MARCUSE, Herbert. Razão e revolução: Hegel e o advento da teoria social. 5ª edição. Trad.
Marilia Barroso. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

EM CASA lendo a p. 360


Isolad@s

MELO NETO, João Cabral. Morte e Vida Severina e outros poemas para vozes. 4ª edição. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Os novos rumos da História Oral: o caso Brasileiro. Revista de
História. São Paulo, n. 155, 2 sem/ 2006. p. 191- 204.

NIETZSCHE, Frederich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Heloisa da Graça
Burati. São Paulo: Rideel, 2005.

NIETZSCHE, Frederich. Humano demasiado humano I: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo
Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

EM CASA lendo a p. 361


Isolad@s

PANDEMIA E ISOLAMENTO:
[R]EVOLUÇÕES NO LIMITE DO CAOS

Vicente Aguimar Parreiras


Professor efetivo no Centro Federal de Educação
Tecnológica de Minas Gerais – CEFET-MG, campus BH,
EPT, Graduações, Mestrado e Doutorado em Estudos
de Linguagens. Doutor em Linguística Aplicada pela
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
vicentearchives@gmail.com

Mateus Esteves de Oliveira


Mestre e doutorando em Estudos de Linguagens pelo
CEFET-MG.
mateus2012_ita@hotmail.com

EM CASA lendo a p. 362


Isolad@s

Recentemente, ao terminar o ano de 2019, a notícia da mutação do


vírus Corona — originando a doença Covid-19 — tomou o centro das
preocupações dos principais líderes internacionais como uma ameaça real à
saúde humana e à economia global. Tal fato afetou estruturas de frágil
equilíbrio, como o próprio sistema econômico, e ampliou, junto com a
disseminação do vírus, a incerteza frente à realidade. No entanto, não há
novidade com relação ao constante estado de incerteza no qual vivemos.
Como bem coloca o estudioso de temas relacionados à complexidade, o
filósofo francês Edgar Morin, já estamos inseridos em um contexto instável,
onde as consequências não necessariamente estão ligadas a causas
determinadas.

Diante dessa ideia, somos levados a compreender que a declaração


de estado de pandemia pela OMS (Organização Mundial da Saúde), nem o
aparecimento de um novo vírus são, unicamente, as causas do agravamento
dos problemas sociais e econômicos que os países enfrentam. Todavia, não
se pode negar, diante das circunstâncias, que o quadro mundial após a Covid-
19 é grave. Em todas as nações atingidas, há hospitais com poucos materiais
para prevenção e para o tratamento da doença, tais como respiradores e até
mesmo álcool em gel e máscaras de proteção. Tal quadro agrava a
preocupação da população e das autoridades e eleva a dificuldade para se
enfrentar o problema.

Como não há no mundo um sistema de saúde capaz de tratar os


portadores desse novo vírus, a OMS recomendou o isolamento social como a

EM CASA lendo a p. 363


Isolad@s

forma mais eficaz para conter a evolução do número de infectados. Nesse


ínterim, muitos profissionais são impossibilitados de trabalhar, mesmo a
contragosto, seja por falta de demanda ou para preservar a vida de
familiares no grupo de risco (idosos e portadores de doenças crônicas).
Diante disso, a incerteza quanto ao atendimento das necessidades básicas
passa a ser um dos desdobramentos mais tensos da crise, pois lida-se com
o próprio senso de sobrevivência.

Essa breve contextualização foi necessária para ilustrarmos, no


decorrer deste trabalho, como o paradigma da Complexidade e as teorias dos
Sistemas Adaptativos Complexos e do Caos são fundamentais para
compreendermos a ocorrência de fenômenos das mais diversas naturezas
no nosso cotidiano e suas realizáveis alterações no curso das relações
humanas após o período de turbulência, que é provocado pela incursão de
um elemento estranho no sistema em estado de equilíbrio. Com isso,
relacionamos o cenário atual de pandemia a um Sistema Adaptativo
Complexo (SAC) para identificarmos os seus prováveis atratores caóticos.
Abordamos também a pauta do isolamento social como justificativa para
estado de exceção bem como a bifurcação pós-pandemia e a possível
reorganização da sociedade.

TEORIA DOS SISTEMAS


A teoria dos sistemas surgiu no contexto de pesquisa da Física
quando os estudiosos perceberam que a estrutura de pensamento

EM CASA lendo a p. 364


Isolad@s

cartesiano, baseada nos princípios do filósofo René Descartes, não conseguia


responder às novas dúvidas que se levantavam à medida que os estudos
sobre o átomo, tomado como parte divisível, aprofundavam-se.

No entanto, os preceitos de Descartes permearam a ciência e


consolidaram o modo clássico de análise, no qual o todo é decomposto em
partes menores e analisado numa sequência linear de abordagem, partindo
dos tópicos mais simples para os mais complexos (ARAÚJO; GOUVEIA, 2016).
Pode-se dizer que esse modelo para a construção do conhecimento ainda
impera no campo acadêmico, sobretudo na educação.

Todavia, em virtude da aparente inaplicabilidade em alguns casos


dessa linha metodológica, os físicos passaram a dar atenção à noção de
sistema como a ideia de uma unidade indivisível, mas com componentes
interdependentes (como é a atual concepção atômica), alinhada com a
instrução aristotélica de que “o todo é maior do que a simples soma das suas
partes”. Tal abordagem, passou a substituir, gradativamente, a visão analítica
e se espalhou por outras áreas do saber científico, como a linguística e a
biologia.

Em linha gerais, a Teoria Geral dos Sistemas propõe que


organizemos nosso pensamento com base na visão geral do fenômeno
estudado, mais comumente chamada de visão global. Enquanto o modo
clássico preconiza a relação parte-todo, o sistêmico privilegia a primeira
abordagem do objeto de pesquisa em sua totalidade — como um sistema —
composto por partes interligadas e com funções articuladas para manter o

EM CASA lendo a p. 365


Isolad@s

seu funcionamento. A compreensão da funcionalidade do sistema é, de


acordo com essa teoria, uma das principais estratégias para conhecermos
as partes e seus arranjos na ordem complexa.

Nessa concepção sistêmica, entende-se que os sistemas são


dinâmicos e se adaptam de acordo com as novas situações a que são
submetidos em momentos de crise.

SISTEMAS ADAPTATIVOS COMPLEXOS


Um Sistema Adaptativo Complexo (SAC), em linhas gerais, pode ser
compreendido como uma ramificação da área de estudos sobre os sistemas
complexos. Na concepção de Augusto (2009, p. 231), um sistema se define
como “um conjunto interligado de elementos que realizam certo objetivo.
Segundo a autora, os “sistemas possuem propriedades e naturezas diversas”
e, por essa razão, podem ser denominados de simples ou complexos. A
pesquisadora compreende que os sistemas simples são constituídos por
“componentes similares” ligados por estruturas fixas. Além disso, eles
trabalham de modo programado. A estudiosa, baseada nas explicações de
Larsen-Freeman e Cameron (2008), aponta o semáforo como um exemplo de
sistema simples (AUGUSTO, 2009).

Já os sistemas considerados complexos são compostos por


componentes de naturezas diferentes, não obrigatoriamente em alto número,
mas que estabelecem conexões por meio do fluxo contínuo de interações que

EM CASA lendo a p. 366


Isolad@s

ocorre de diversas formas. Independentemente da quantidade de elementos,


nem um formante pode agir de modo autônomo (AUGUSTO, 2009).

Por sua vez, Leffa (2009) defende que os sistemas, especificamente


os complexos, estão presentes em todos os fenômenos, sejam eles
naturais (o clima) ou culturais (comunidade de falantes, de trabalhadores,
etc.); além disso, possuem ao menos duas características em comum: “(i) são
sistemas compostos de partes que interagem entre si; (ii) são sistemas que
evoluem num determinado período de tempo” (LEFFA, 2009, p. 25).

O que diferencia o SAC dos demais tipos de organização sistêmica é


a sua capacidade de mutação e adaptação em relação às alterações das
condições iniciais. Sendo assim, é importante destacar que o estado inicial
do sistema influencia consideravelmente na adaptação pela qual passará e
na constituição do seu estado final.

Em virtude da sua dinamicidade, Paiva (2006) não considera o SAC


como um Estado. Para a pesquisadora, esse tipo de sistema apresenta
características muito mais ligadas a eventos processuais. Costa (2020, p.
312), por sua vez, apresenta o consenso entre os estudiosos dessa teoria para
elencar algumas características, tais como a “imprevisibilidade, dinamismo,
fractalidade, abertura, não linearidade [...]”.

O caráter imprevisível de um SAC aponta para interrogações que


buscam compreender em que momento, sobre quais condições e por qual
maneira ocorreu o fato em estudo.

EM CASA lendo a p. 367


Isolad@s

A ideia da fractalidade, por sua vez, contribui para entendermos a


propriedade da autossimilaridade presente no caos. Esse conceito partiu da
observação de estruturas de Geometria Fractal e passou a ser aplicado com
frequência pelos estudiosos da Complexidade a ponto de essa geometria se
tornar conhecida como a geometria da Teoria do Caos (FEY; ROSA, 2012). De
acordo com a etimologia, o termo fractal deriva do latim fractus, que
corresponde à ideia de fragmentado ou fracionado. Diz respeito ao princípio
de que “a parte está no todo e o todo está na parte” (FEY; ROSA, 2012, p. 224).

Apesar de pesquisadores de várias áreas do conhecimento terem


trabalhado para conceituar e sintetizar sua aplicabilidade no pensamento
complexo, o fractal pode ser considerado um objeto produto da “repetição de
um mesmo processo recursivo, apresentando autossemelhança e
complexidade infinita” (FEY; ROSA, 2012, p. 225).

Em consonância com a fractalidade, a não linearidade induz à


compreensão de que o SAC não segue uma lógica padrão para incorporar
elementos em função de uma ou outra ordem de aquisição como ocorre na
abordagem cartesiana, mais associada às ciências exatas. Assim, admite-se
que a estrutura sistêmica adaptativa seja aberta à interação entre seus
próprios componentes (trocas internas) e com outros sistemas (trocas
externas).

Diante dessas características, reafirmamos a dinamicidade dos SAC


e a sua aplicabilidade para o entendimento de várias questões sociais. É uma
compreensão metafórica que nos oferece uma alternativa ao pensamento

EM CASA lendo a p. 368


Isolad@s

linear que, em muitos casos, é insuficiente para estear nossas ações


estratégicas frente a crises e problemas imprevisíveis.

Nessa perspectiva, continuaremos nossa explanação sobre a Teoria


da Complexidade dissertando a respeito do caos e suas implicações na
formação final do sistema após a fase de turbulência.

TEORIA DO CAOS
A teoria do caos, em tese, preceitua que pequenas alterações nas
condições iniciais de um determinado evento podem provocar reações
altamente desproporcionais no seu estado final. Foi a partir dos estudos do
meteorologista Edward Lorenz, na década de 1960, que a noção de
imprevisibilidade passou a permear o pensamento científico e servir como
base teórica para tentar identificar uma aparente ordem — influenciada por
leis precisas — em meio à aparente desordem do caos, que é quando não
se consegue observar claramente um padrão de comportamento entre os
elementos do sistema.

Assim como o SAC, essa teoria vem sendo aplicada metaforicamente


em várias áreas do conhecimento a fim de compreender processos e de
corrigir desvios possíveis do objeto de estudo em questão. Na linguística
aplicada, Paiva (2009) utiliza, como associação, a ideia criacionista dos mitos.
Segundo a pesquisadora, os mitos são criados para explicar de modo objetivo
temas cercados de incertezas. Analogamente, com base na narrativa
presidencial sobre a pandemia de coronavírus em 2020, percebe-se a

EM CASA lendo a p. 369


Isolad@s

tentativa de construir o mito de que a Covid-19 se tratasse apenas de uma


“gripezinha”, um resfriado sem importância que só acomete gravemente
idosos sem “histórico de atletas” e portadores de comorbidades.

De fato, o mito é elaborado e difundido entre uma comunidade para


preencher um vazio inicial. Alguns exemplos claros que a estudiosa utiliza
são os mitos sobre a formação do Universo e da Terra. Paiva (2009) observa
que, mesmo havendo largas divergências culturais entre os povos, a criação
do que se pretende explicar se dá em meio a um vazio inicial. O vazio do
conhecimento científico é marca do governo atual que tem a sua base
ideológica no fundamentalismo religioso e no negacionismo olavista, tais
como o terraplanismo e o movimento antivacinas.

Da mesma forma que a mitologia, as condições iniciais do processo,


tomado como alvo de estudo, são caóticas (PAIVA, 2009). Parreiras (2005),
bem como Paiva (2009), reconhece o papel fundamental das condições
iniciais para o sistema complexo em um contexto de caos.

Em virtude da sua imprevisibilidade, o pensamento científico caótico


é inserido no paradigma da Complexidade como um tipo de comportamento
sistêmico não linear, no qual inexiste a relação lógica proporcional entre as
suas causas e efeitos; é também altamente sensível às condições iniciais,
mas pode apresentar, discretamente, um padrão de organização. Logo, “o
nome caos é dado a esse comportamento imprevisível de um sistema
determinístico” (PAIVA, 2009, p. 191).

EM CASA lendo a p. 370


Isolad@s

Assim, olhando pelo retrovisor os fatos políticos que culminaram


com a eleição presidencial de 2018, a partir de 2005 ficam evidentes as
condições iniciais que provocaram a turbulência em que nos encontramos
hoje na pandemia:

O ano de 2005 ficou marcado pelo deputado Roberto Jefferson que


provocou a turbulência que ficou conhecida como “escândalo do mensalão”.
Foi o início da construção da narrativa de que o PT governava sobre pilares
podres, sustentados por corrupção, chefiado por um metalúrgico vagabundo
e inculto que se preocupava unicamente em aparelhar o Estado para se
perpetuar no poder.

As passeatas que ocorreram em 2013 por todo o país, aparentemente


“sem partidos” na liderança visível, reforçaram a narrativa de que “o povo
estava cansado da corrupção” instalada no poder central. Black blocks se
encarregavam de promover vandalismos que eram atribuídos aos militantes
“de esquerda”, análogos a terroristas. Deputado de direita foi acusado de
financiar movimentos tais como MBL e Vem pra Rua. Investigações atuais da
PF apontam o “gabinete do ódio” como um dos pontos de financiamento dos
movimentos populares que exigem intervenção militar, AI-5, fechamento do
Congresso Nacional e do STF e de disseminação de fake news.

A operação Lava Jato atuou fortemente a partir de 2014 na


construção da narrativa da “esquerda corrupta” com prisões de lideranças
do PT e acusações à presidenta Dilma Rousseff na tentativa de evitar sua

EM CASA lendo a p. 371


Isolad@s

reeleição. Mesmo tendo cooptado Marina Silva e enxovalhado a imagem


pública do ex-presidente Lula, Dilma foi reeleita.

Em 2015, inconsolável e perplexo com o resultado das urnas, Aécio


Neves não assimilou a derrota e anunciou que “Dilma não governaria” porque
a oposição bloquearia todos os projetos do governo no Congresso Nacional,
mas foi transformado em pó à medida que a mídia noticiava seu envolvimento
em vários escândalos de corrupções e que foi sendo abandonado à própria
sorte por seu partido que o usou como “boi de piranha”, imolando-o para
salvaguardar a imagens dos demais caciques do PSDB. A pressão aumentou
fortemente sobre a então presidenta Dilma, Lula e o governo. A operação
lava jato se mantinha no topo do noticiário e o então juiz Sérgio Moro, que
em 2019 aceitou participar do ministério da justiça do governo ao qual
beneficiou com sentenças discutíveis, transformou-se em paladino da moral
e dos bons costumes. O Projeto “Ponte para o futuro” do então vice presidente
Temer escancarou o golpe parlamentar-judicial-midiático articulado pelo
próprio e que assumiu a liderança do governo na câmara.

Em 17 de abril de 2016 houve a votação da admissibilidade do


processo de impeachment da presidenta Dilma em uma Sessão histórica na
Câmara dos Deputados com votos em nome de filhos, mães, pais, família e
torturadores, tais como Brilhante Ulstra. Um circo dos horrores que culminou
com o afastamento da presidenta durante a tramitação do projeto de
impeachment. O vice-presidente assumiu interinamente a presidência e teve
início o desmonte dos programas sociais e dos direitos trabalhistas.

EM CASA lendo a p. 372


Isolad@s

Em 2017 concretiza-se o impeachment da presidenta Dilma Rousseff


e os golpistas no poder manipulam e recrudescem as narrativas da
“corrupção do PT” visando ao processo eleitoral de 2018. Lula faz “caravana”
pelo Brasil, mas acaba sendo condenado sem provas e preso na PF em
Curitiba/PR como parte da estratégia para deixá-lo inelegível, evitando que
vencesse a corrida presidencial e para destruir sua imagem de estadista.

De fato, provocados pela movimentação dos seus fatores iniciais, os


sistemas caóticos podem seguir certa ordem, apesar de imprevisíveis. Nessa
linha do tempo apresentada a partir de 2005, nota-se claramente a
imprevisibilidade do sistema caótico. A cada investida de seus opositores,
Lula se fortaleceu politicamente. Mesmo no cárcere, ganhou as manchetes
internacionais e foi visitado por líderes mundiais, além de receber apoio de
um grande grupo de populares que se mantiveram em vigília em frente ao
TRF-4 em Curitiba durante todo o tempo em que foi mantido preso. Lula teve
mais evidência estando preso do que teria em liberdade.

No âmbito de seus estudos, Paiva (2009, p. olhas194) afirma que o


momento iminente ao caos corresponde ao “ponto onde a aquisição sofre
mudança repentina de um estado a outro e quando o aprendiz é desafiado e
exposto ao risco de cometer erros e aprender com eles”.

Após o momento de caos (turbulência ou bifurcação) o sistema entra


no novo estado e suas novas condições de existência passam ao estágio de
equilíbrio, inclinando, portanto, à acomodação. Este último passará a ser um
estado inicial inédito, ainda que características anteriores permaneçam. Tal

EM CASA lendo a p. 373


Isolad@s

comportamento pode ser compreendido por intermédio dos atratores


caóticos, por esse motivo são peças-chave na estabilização do sistema.
Também denominado de “atrator estranho”, trata-se de um espaço instável
no sistema em que os elementos se movimentam irregularmente, sem uma
ordem aparentemente conhecida de antemão, assim como ocorre nas duas
outras categorias. Tal comportamento contribui para sustentar o ponto de
vista comum aos pesquisadores da complexidade quando afirmam que os
sistemas caóticos são altamente imprevisíveis, mas não completamente
aleatórios.

Com base nessa definição, o atrator do tipo caótico se aplica ao


cenário atual de pandemia da Covid-19 para inseri-la no pensamento
complexo, que é o nosso objeto de estudo deste capítulo. Ainda com os
conhecidos problemas nos sistemas de saúde em todos os países no mundo,
poderíamos considerar que este era o estado de equilíbrio pois, a comunidade
científica não havia detectado, até então, algum fator considerado novo.

Com isso, a Covid-19 surgiu a abalou estruturas centrais da


sociedade capitalista, forçando boa parte da população a abandonar
temporariamente as atividades econômicas consideradas não essenciais
para se isolar. De imediato, a fim de minimizar os efeitos catastróficos da
ausência dessas atividades, atitudes governamentais tomaram proporções
inéditas no histórico mundial de crises. Conforme divulgado pela mídia, até
mesmo os economistas considerados neoliberais reconheceram que os
Estados precisam interromper políticas de restrição de gastos para socorrer,

EM CASA lendo a p. 374


Isolad@s

em primeiro plano, a vida dos cidadãos, o que derrubou a falsa dicotomia


entre saúde e economia.

Esse quadro revelou o frágil equilíbrio entre os atores social,


econômico e político ao redor do planeta e evidenciou a necessidade de ações
conjuntas. A partir dos pressupostos do paradigma da Complexidade e da
Teoria do Caos, conseguimos, dentro de nossas limitações como seres
humanos, ampliar as possibilidades de análise dos fatos para além do olhar
simplista de causa e efeito e levantar algumas questões propulsoras de
nossas discussões.

Em que medida podemos conceber as reações das autoridades


globais diante do caos como pontos de confluência da população civil e até
mesmo do ciclo de transmissão do vírus? Diante das evidências expostas
pelos líderes mundiais, a crise tende a se inclinar para o lado político e a
menosprezar a face humanitária do problema? Quais efeitos o isolamento
social pode provocar na nova visão de Estado como agente zelador da
população e garantidor dos direitos básicos à vida? São interrogações assim
como essas que motivam o exercício do olhar por meio das lentes da
complexidade para encará-las de modo coerente com suas dimensões.

Na perspectiva da teoria do caos, a pandemia da Covid-19 parece ser


o chamado “limite do caos” em que o sistema bifurca e sofre mutação. Assim
sendo, ao sairmos do estado de pandemia, teremos à nossa frente duas
opções de caminhos a seguir, sem a possibilidade de alguém ser esquecido
porque a vida é um sistema dinâmico, aberto, complexo que afeta a todos,

EM CASA lendo a p. 375


Isolad@s

mesmo se estiverem parados. Ambos os caminhos são imprevisíveis, como


também é característico dos sistemas adaptativos complexos. Um caminho
acena com o pseudo conforto de voltarmos à vida do ponto em que estávamos
antes da pandemia. O outro caminho promete uma possibilidade
revolucionária de revisão das relações do ser humano nos níveis social,
cultural, ecológico e econômico, inovando em todos os âmbitos.

Analogamente ao percurso político recente do Brasil, a crise


sanitária desencadeada pelo novo coronavírus, em certa medida, reforça a
noção de imprevisibilidade do “efeito borboleta” característica dos sistemas
caóticos, em que “o bater de asas de uma borboleta na Amazônia pode
provocar um furacão na Flórida”.

Os governos do Partido dos Trabalhadores entre 2003 e 2016, ao


contrário das práticas neoliberais que predominaram antes e depois,
provaram que promover redistribuição de renda, implantar políticas públicas
inclusivas das chamadas “minorias”, de valorização cultural, de erradicação
da pobreza absoluta, de promoção de bem estar social às pessoas
historicamente marginalizadas, de ênfase nos direitos individuais, sociais,
trabalhistas “é investimento e não gastos, benesses ou ‘esmolas’ para
incentivar malandros à vagabundagem”.

De fato, a velocidade com que a Covid-19 deixou de ser um surto na


cidade de Wuhan na China e se transformou numa pandemia, evidencia o
nível inexorável da globalização. Independentemente dos modelos político e
econômico adotados em cada país, das tradições e ritos culturais e religiosos

EM CASA lendo a p. 376


Isolad@s

de cada grupo social, todos os elementos que compõem esse sistema aberto,
adaptativo e complexo, estão em constantes interações interna e externa,
nos níveis micro e macro, e evoluindo.

Assim, queimadas na Amazônia; pessoas morrendo de inanição em


várias partes do mundo; diques de barragens de rejeitos tóxicos de
mineração cedendo e matando pessoas e animais, destruindo cidades, o meio
ambiente e envenenando rios e mares são fatores que provocam
turbulências que desencadeiam reações desse SAC em busca do reequilíbrio,
tendo em vista que todo SAC tende ao equilíbrio.

Desse mesmo modo, o organismo humano, que também é um SAC,


ao perceber a presença do novo coronavírus, ataca-o para eliminá-lo e se
reequilibrar em outro patamar de “aprendizagem” porque, em vencendo a
batalha, terá desenvolvido anticorpos para combater novos ataques.

O fato novo nessa pandemia é a progressão exponencial do contágio


e a necessidade de tratamento hospitalar intensivo para auxiliar o organismo
a combater o vírus e que pode gerar uma saturação da capacidade de
atendimento dos sistemas de saúde, o que gerou a necessidade do
“isolamento social” tendo em vista que ainda não se chegou a uma vacina ou
outro medicamento cientificamente eficaz no combate ao vírus.

A quarentena por tempo indeterminado, que em 30 de junho de 2020


já ultrapassou cem dias, provoca turbulências individuais e coletivas de
várias ordens; tais instabilidades podem gerar resultados também os mais

EM CASA lendo a p. 377


Isolad@s

diversos e imprevisíveis. Por um lado, indivíduos e instituições privadas e


estatais podem perceber que são capazes de se reinventarem e inovarem as
suas relações pessoais, de trabalho, de produção e de consumo. Por outro
lado, os grandes capitalistas globais e seus representantes na política podem
ver na pandemia uma oportunidade para implantar a noção de “Estado
mínimo”, como foi verbalizado pelo Ministro do Meio Ambiente numa recente
reunião interministerial ao defender aproveitar que o foco da imprensa na
pandemia para “passar a boiada” e desregular mecanismos de proteção ao
meio ambiente.

Ficou evidente pelas manifestações da presidência da república em


entrevistas, vídeos e pronunciamentos oficiais, pelos vídeos divulgados por
megaempresários nos primeiros dias de confinamento e pelas carreatas em
defesa da flexibilização do isolamento social, que a classe dominante
endinheirada está consciente de que estamos no meio do turbilhão em
direção ao limite do caos e que essa pandemia é um “divisor de águas”; um
turning point, uma bifurcação que nos colocará no século XXI.

Então, para que possamos vislumbrar uma sociedade equânime,


solidária e em equilíbrio com as forças do universo, essa pandemia é uma
oportunidade revolucionária para agirmos em função da construção de nova
ordem social. As pessoas podem estar mais abertas a ouvirem o apelo ao
bom senso e se comprometerem com uma mudança de hábitos.

Pode ser um bom momento para induzirmos a problematização das


formas lineares de produção, ainda ancoradas na relação de causa e efeito

EM CASA lendo a p. 378


Isolad@s

e do controle dos processos produtivos, em prol das inovações que uma


abordagem não linear, fundamentada na complexidade e na liberdade das
ações individuais e coletivas, de forma colaborativa, possa agregar à nossa
cultura de produzir e de consumir.

Por fim, a globalização da comunicação via Internet nos permite a


continuidade da mobilidade que o confinamento nos privou e nos possibilita
avançarmos com nossas bandeiras de luta, combatendo o pensamento
retrógrado do neoliberalismo predatório e propondo uma nova dinâmica
social sem apoios que a imobilizem, mas em princípios que facilitem os fluxos
internos de energia, suas interações e trocas intrínsecas e extrínsecas para
produção de energia para alimentação e retroalimentação dos elementos do
sistema individual e coletivamente.

REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Andréa Cristina Marques de.; GOUVEIA, Luís Borges. Uma revisão sobre os princípios
da Teoria Geral dos Sistemas. Revista Estação Científica, Juiz de Fora, n. 6, jul-dez. 2016.
Disponível em: <https://portal.estacio.br/media/3727396/uma-revis%C3%A3o-sobre-os-
princ%C3%ADpios-da-teoria-geral-dos-sistemas.pdf>. Acesso em: 08 de abr. de 2020.

AUGUSTO, Rita de Cássia. O processo de desenvolvimento da competência linguística em inglês


na perspectiva da Complexidade. In: PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira; NASCIMENTO,
Milton do (Orgs.). Sistemas Adaptativos Complexos: lingua(gem) e aprendizagem. Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2009.

COSTA, Alan Ricardo. Sistemas Adaptativos Complexos e Linguística Aplicada: organizando a


literatura da área. Domínios de Linguagem, v. 14 n. 1, 2020. Disponível
em <http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem/article/view/47672>. Acesso em
13 de abr. de 2020.

FEY, Franciele.; ROSA, Jarbas André da. Teoria do caos: a ordem na não-linearidade. Universo
Acadêmico, Taquara, v. 5, n. 1. 2012.

EM CASA lendo a p. 379


Isolad@s

LARSEN-FREEMAN, Diane; CAMERON, Lynne. Complex Systems and Applied Linguistics.


Oxford: Oxford University Press, 2008.

LEFFA, Vilson J. Se mudo o mundo muda: ensino de línguas sob a perspectiva do


emergentismo. Calidoscópio, v. 7, n. 1, p. 24-29, 2009. Disponível em:
<http://www.leffa.pro.br/textos/trabalhos/leffa_emergentismo.pdf>. Acesso em 13 de abr. de
2020.

OYAMA, Andressa Carvalho Silva. A Teoria da Complexidade na aprendizagem de espanhol em


Teletandem. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, São
José do Rio Preto, 202 f, 2013.

PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. Autonomia e complexidade. Linguagem e Ensino,


Pelotas: Universidade Católica de Pelotas, v. 9, n.1, 77-127, 2006. Disponível em
<http://www.rle.ucpel.tche.br/index.php/rle/article/view/176/143>. Acesso em 03 de set. de
2019.

______. Entrevista: Programa Extra-classe. 2014. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=iyQmIOMW-xw&t=129s>. Acesso em: 08 de abr. de 2020.

______. Caos, Complexidade e aquisição de segunda língua. In: PAIVA, Vera Lúcia Menezes de
Oliveira; NASCIMENTO, Milton do (Orgs.). Sistemas Adaptativos Complexos: lingua(gem) e
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PARREIRAS, Vicente Aguimar. A sala de aula digital sob a perspectiva dos sistemas complexos:
uma abordagem qualitativa. Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte,
2005.

EM CASA lendo a p. 380


Isolad@s

COVID-19 E PÓS-VERDADE:
O ESCÁRNIO DA RACIONALIDADE
TÉCNICO-INSTRUMENTAL

Emerson Campos Gonçalves


Doutor em Educação pelo PPGE/Ufes e pesquisador do
Nepefil/Ufes. Além de organizador, também contribui
nesta obra com o poema Será possível amar?
professoremersoncampos@gmail.com

EM CASA lendo a p. 381


Isolad@s

m Educação após Auschwitz, ao mencionar o extermínio que fora


E promovido pelo regime nazifascista, Theodor W. Adorno lembra que
“[...] só o simples fato de citar números já é humanamente indigno”
(p. 120, 1995)91. É bárbara a tendência imperativa, própria da racionalidade
técnico-instrumental que compõe a locomotiva moderna ab initio, de reduzir
toda a singularidade da vida a emaranhados infindáveis de estatísticas e
gráficos. E, para o nosso dissabor, a barbárie dos números segue vitoriosa,
impondo-se através da materialização de um dos piores cenários possíveis:
uma pandemia92 – de proporções talvez só previstas nos sci-fi mais
apocalípticos e, por isso mesmo, aparentemente distópicos e longínquos –
flagela a humanidade em todos os continentes. Logo, com toda a carga de
indignidade que os símbolos numéricos trazem, precisamos atestar: mais de
um milhão de pessoas já morreram vítimas da Covid-19 no planeta. Mirando
nosso próprio quintal pela janela, no correr deste interminável 2020 e a
reboque do endurecimento da “necropolítica93” fascista de Jair Bolsonaro, o
Brasil se consolidou como o grande epicentro da doença no mundo: a

91
ADORNO, T. W. Educação e emancipação. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1995.
92
O coronavírus foi declarado uma pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS) no
último 11 de março, quando mais de 4,2 mil pessoas já haviam morrido da doença ao redor do
globo.
93
É importante tomar o conceito de necropolítica no sentido exato proposto por Achille
Mbembe a partir de sua releitura em Foucault, isso é, como a política de morte, a política que
vai direcionar todas as ações do estado para privilegiar a sobrevivência dos indivíduos de
alguns grupos sociais e aceitar a morte dos indivíduos de outros grupos (MBEMBE, Achille.
Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018).

EM CASA lendo a p. 382


Isolad@s

“gripezinha94”, mencionada pelo “Capitão Cloroquina”95, já vitimou mais de 150


mil brasileiros, concretizando, com mórbida folga, a promessa que ele
próprio firmou em entrevista concedida duas décadas atrás, já que,
literalmente, com seu governo, está “fazendo o trabalho que o regime militar
não fez, matando uns 30 mil”96.

Tomando emprestados os estudos sobre a personalidade autoritária


conduzidos por Theodor W. Adorno e seus colaboradores do Grupo de
Berkeley97, sobretudo as nove características principais que compõem a
Escala de Fascismo (convencionalismo; submissão autoritária; agressividade
autoritária; antissubjetividade; superstição e estereotipia; poder e
dureza/rigidez; destruição e cinismo; projeção; e obsessão com sexo e
sexualidade), sem grandes esforços conseguimos, cientificamente, numa
análise hermenêutica, comprovar: no campo discursivo, os posicionamentos
de Bolsonaro e de parte considerável de seus apoiadores demonstram,
efetivamente, que estamos lidando com personalidades potencialmente
antidemocráticas e fascistas.

94
Da 'gripezinha' ao 'e daí?', confira as reações de Bolsonaro enquanto aumentavam as mortes
pela pandemia no Brasil. Reportagem de O Globo publicada em 30 de abril de 2020.
95
Capitão Cloroquina venceu: mais gente nas ruas, novo recorde de mortes. Coluna Balaio do
Kotscho no Portal Uol publicada em 09 de abril de 2020.
96
Vídeo da entrevista disponível no Youtube em <https://youtu.be/qIDyw9QKIvw>. Acesso em 21
de maio de 2020.
97
ADORNO, T. W.; et al. The authoritarian personality. New York: Harper & Brothers, 1950.

EM CASA lendo a p. 383


Isolad@s

Conforme Adorno reitera em diferentes momentos de sua extensa


produção bibliográfica, a pressão do mundo administrado continua a se
impor e multiplicar “em uma escala insuportável” (ADORNO, 1995, p. 122),
impelindo-nos rumo a um sentimento claustrofóbico que, preservados
naquilo que têm de mais básico os pressupostos objetivos que condicionaram
Auschwitz, tende a se converter novamente em uma pulsão generalizada de
raiva contra a civilização, culminando em práticas e comportamentos que, a
depender do descompasso histórico (como o que, lamentavelmente,
experimentamos na América Latina nesta virada de década), podem se
alinhar com uma concepção fascista de mundo. Isso é: justamente em meio
à pandemia do SARS-CoV-2, o perigo do fascismo nunca nos rondou (nós,
latino-americanos) tão próximo.

Outrossim, é mister ponderar que as ideias potencialmente


autoritárias e fascistas são frutos da imposição da ideologia burguesa
através dos diferentes meios que essa usa para ocupar a superestrutura
social, condicionando processos semiformativos que impedem o indivíduo de
ter uma visão autocrítica plena perante o mundo, uma Bildung. Querendo ou
não, as condições para a volta do fascismo foram preservadas na medida em
que se conservou, também, o mesmo sistema de representação simbólica do
qual soube se aproveitar Joseph Goebbels98. Nesse sentido, qualquer debate

98
Prova da persistência dessas condições é o discurso proferido pelo ex-secretário da Cultura
do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, em 16 de janeiro de 2020, quando, ao lançar o Prêmio
Nacional das Artes, replicou a estética (trilha sonora, aparência, disposição dos elementos no
vídeo, tom de voz) e um extenso trecho da mensagem divulgada por Goebbels antes de iniciar
a queima de livros na Alemanha nazista.

EM CASA lendo a p. 384


Isolad@s

que se pretenda significativo precisa considerar a premissa de que falamos


de uma ameaça real e não apenas de um espectro que nos amedronta na
calada da noite. É preciso reconhecer a gravidade do cenário que se
apresenta pintado de verde e amarelo: um contexto de pandemia e fascismo.
E tudo isso, no mundo hodierno, atravessado pela pós-verdade como
escárnio da própria racionalidade técnico-instrumental burguesa.

Desconsiderar esse cenário pode trazer análises enviesadas sobre a


atual situação de isolamento social promovida pela pandemia de SARS-CoV-
2. Ora, se obviamente sabemos que não se trata de uma “gripezinha” (mais
do que desumana, tal comparação é efetivamente criminosa), também não é
prudente imaginar que a Covid-19 seja apenas nomenclatura utilizada para
induzir uma “medida de emergência frenética, irracional e totalmente
infundada”, utilizada como justificativa para limitar nossa liberdade e
implementar o estado de exceção, conforme sustentou Giorgio Agamben em
análise demasiadamente apressada e/ou ansiosa no último 26 de fevereiro99.
Trata-se, sim, de um evento capaz de colocar em xeque nosso próprio senso
de humanidade, nossos contratos sociais vigentes, nossos modos de
produção, nossa limitada compreensão sobre a ideia de esfera pública e
nossa capacidade de reconhecimento e reação solidária – enquanto espécie
– frente o inesperado e o caos.

99
Lo stato d’eccezione provocato da un’emergenza immotivata. Texto de Giorgio Agamben em
Il Manifesto publicado em 26 de fevereiro de 2020.

EM CASA lendo a p. 385


Isolad@s

Não vou me ater aqui em contrapor Agamben em sua análise (até


porque tal tarefa foi feita por Jean-Luc Nancy, que goza de envergadura
teórica para tal embate)100. Contudo, acho relevante lembrar da contradição
que seria ter que lembrar ao filósofo italiano que nesta sociedade, como ele
próprio escreveu (e Walter Benjamin antes dele), a exceção é a regra, é a
norma. Enfim, de que não trata de se legitimar um estado de exceção com as
medidas de restrição na circulação das pessoas (ainda que essa crítica
sempre seja importante), mas de admitir a exceção (que é o novo coronavírus)
dentro da exceção enquanto barbárie que institui a normalidade (que é o
sistema de opressão dos estados capitalistas), que já restringe de diferentes
formas a circulação de determinados grupos e classes – ou vamos fingir que
o negro da periferia possui os mesmos acessos que o branco da classe média,
que pessoas LGBTQI+ conseguem circular sem qualquer temor?

Confuso pensar em exceção dentro da exceção? Nem tanto quando


olhamos para a realidade objetiva e ideológica que cercava nossa vida
ordinária nos tempos que antecederam a pandemia, isso é, de um mundo
notoriamente orientado por aquilo que muitos teóricos acordaram denominar
por pós-verdade, ou seja, um mundo onde a crença particular de cada
indivíduo se impunha como verdade inconteste a despeito da necessidade de
qualquer comprovação científica; onde a vontade absoluta do espírito
individualista se colocava num patamar não-histórico (ou pós-histórico)

100
Soma-se a essa discussão a “tréplica” de Giorgio Agamben, intitulada Chiarimenti
(Esclarecimentos, em tradução livre), publicada em no site da editora Quodlibet em 17 de
março de 2020.

EM CASA lendo a p. 386


Isolad@s

desconexo em relação ao próprio correr da vida; onde, literalmente, qualquer


crise seria um pormenor frente a crença de que a natureza foi dominada de
tal maneira que teríamos o direito de projetar nossas pulsões mais
mesquinhas e desencontradas sem nenhuma sustentação objetiva ou
empírica dos fatos, como se o mundo estivesse definitivamente adestrado
para se adaptar aos nossos caprichos.

Sei que escrever sobre pós-verdade pode parecer pouco produtivo


neste contexto em que a discussão central se pauta nas medidas de contenção
de uma doença tão grave e no real significado do isolamento social imposto,
mas, mesmo me arriscando no jogo das análises a contrapelo (como tentou
Agamben e, também, Slavoj Žižek101), acho importante elencar algumas
contradições que essa crise nos revela. Isso porque – recordando a
provocação da professora Samira Sten num grupo de WhatsApp que nosso
núcleo de pesquisa mantém – essa tentativa pertence, de alguma forma, ao
meu papel como cientista social neste momento: já que, além de ficar em
casa, posso fazer muito pouco para ajudar no combate ao Covid-19, talvez a
minha contribuição seja buscar outros modelos de sociedade em que, se não
livres, estaríamos menos expostos e/ou vulneráveis aos riscos de um vírus
desconhecido, com sistemas de acolhimento, saúde e gestão humana mais
democráticos e, portanto, eficientes.

101
Monitor and punish? Yes, please! Texto de Slavoj Žižek em The Philosophical Salon publicado
em 16 de março de 2020.

EM CASA lendo a p. 387


Isolad@s

Por isso insisto no tema pós-verdade neste ensaio. Para muitos, a


pós-verdade seria uma espécie de escárnio em relação à racionalidade
técnico-instrumental sob a qual se constitui o estado burguês (talvez, assim
como os produtos da indústria cultural são em relação à obra de arte
burguesa)102. Em outras palavras, essa perspectiva, que não precisa de
encontrar qualquer sustentação no mundo objetivo, seria uma verdadeira
zombaria da busca do homem moderno pelo controle da natureza pela razão.
A meu ver, contudo, esse enquadramento está, paradoxalmente, correto e
equivocado. Explico! A pós-verdade não surge como paródia à racionalidade
instrumental, mas como produto da fé cega depositada pelo homem moderno
neste estado absolutamente racional de domínio sobre o mundo objetivo, que
seria totalmente maleável para se adaptar às suas pseudoteorias (como o
neoliberalismo, por exemplo). Ou seja, o equívoco está em tratá-la (a pós-
verdade) como um deboche dionisíaco sobre a “vitória da razão”, quando, em
sua gênese, ela é a confirmação desse espírito desleixado. E é aí que surge a
contradição: ao não intencionar esse enquadramento, ela acaba se tornando
escárnio daquilo que ousa confirmar, uma vez que não pode fazê-lo
objetivamente. Afinal, a crença cega, tal qual a religião e o vício, nada mais é
do que o apoio de uma suposta verdade em objetos falsos, decorativos103. Logo,
acreditar nesse domínio irrestrito e final do homem sobre a natureza que

102
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos
filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
103
TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Tradução de Antônio Zuin (et
al.). Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2010.

EM CASA lendo a p. 388


Isolad@s

marca a pós-verdade nada mais é do que a sustentação de um pensamento


falso a partir de uma premissa falsa, isso é, da elaboração de simulacros
arranjados a partir de uma ilusão racional. E aí, como sabemos, o perigo da
“farsa da farsa” é que ela, via de regra, carrega a ideologia responsável por
conduzir-nos a estados nazifascistas104.

Neste cenário de pós-verdade, não era muito difícil prever que


qualquer crise que demandasse uma mobilização pautada em ações sociais
coordenadas e coerentes com a realidade teria impactos desastrosos,
capazes de conduzir-nos de vez a esse estado de “farsa da farsa” ou à
legitimação de uma “exceção da exceção”. E, ao fim, é disso que trata a
expansão do coronavírus enquanto crise humana: o trem da história ameaça
ser descarrilado pela pandemia. O porvir, porém, segue aberto. É ele que
precisamos observar.

Assim, tomando a metáfora benjaminiana, compreendamos que o


correr objetivo da locomotiva que ameaça sair dos trilhos nos impõe a dureza
do aço quando tentamos freá-la, afinal nenhum manual poderá prevenir com
total eficácia dos perigos do caminho. Trocando as palavras, da mesma forma
como o 11 de setembro marcou um duro golpe aos delírios da “agenda pós” e
suas múltiplas e infinitas “verdades”, o surgimento de uma pandemia em meio
a uma perspectiva marcada pela negação da realidade objetiva na pós-

VEDDA, M. XI Congresso Internacional de Teoria Crítica: Estado de exceção e racionalidade


104

na idade mídia. Conferência: Filosofia, teoria social e Estado de exceção. 01-05 de out. de 2018.
Notas do congresso.

EM CASA lendo a p. 389


Isolad@s

verdade, quando governos de extrema-direita começavam a avançar por todo


o globo, representa um tensionamento histórico com múltiplos
desdobramentos possíveis no campo ideológico e das relações humanas,
capazes de parar o trem ou – no pior dos cenários que se apresenta – acelerá-
lo descontrolado de encontro à próxima estação.

Surgem então, expostas na crise, as veias das contradições dessa


sociedade que se habituou a tratar todas as suas relações (e aqui entram
educação, saúde e o acesso a bens naturais, como a água) prioritariamente
como mercadorias. Como listado no início deste ensaio, é colocado em xeque
o individualismo do homem moderno, seus contratos sociais, seu conceito de
opinião pública e seu modo de produção econômica. E isso acontece sobretudo
porque a transmissão do coronavírus entre os diferentes países ocorreu (ao
menos inicialmente) a partir de um grupo social que sempre teve o privilégio
de se deslocar (talvez por isso tamanho debate sobre a exceção que marca o
isolamento). Aí, como não é possível combater uma pandemia com discursos
sem sustentação científica, tampouco administrar uma crise global de saúde
com “memes” e “fake news”105, semeia-se naturalmente a incerteza num
tempo que todas as certezas eram intocáveis, autossustentadas por outras
teias de certezas vazias, produzidas por esse indivíduo “liberto” das redes
online.

Recomendo a leitura do artigo Fake news: um subproduto do jornalismo ou da escola?, que


105

publiquei nos anais do VIII Coninter.

EM CASA lendo a p. 390


Isolad@s

Neste cenário, marcado pelos questionamentos impostos pela


expansão do coronavírus e o isolamento social, aparece a bifurcação à qual
devemos direcionar nossa atenção e cuidado neste momento: com a vida
literalmente suspensa e/ou paralisada pela “exceção da exceção” no estado
moderno, surgem dois caminhos principais possíveis, cuja escolha pode ser
determinante para saber se acordaremos do pesadelo ou se acordaremos
num pesadelo pior. O primeiro deles, solidário e natural, surge como uma
mea-culpa (ainda que não se pretenda assim) dos “liberais” (mais uma vez,
ainda que esses também não se pretendam assim) mais conscientes:
incentiva-se a solidariedade entre as classes e o gerenciamento do bem-
estar social pelo Estado; aposta-se na socialização dos bens essenciais,
defendendo a gratuidade de serviços de energia elétrica, água e gás;
menciona-se a necessidade de uma renda básica mínima comum, a fim de
garantir o sustento das camadas mais pauperizadas; reforça-se o papel
educativo e formativo da imprensa e do jornalismo; promove-se a defesa da
saúde e da educação públicas (ambas alvo costumaz de ataque nos tempos
de pós-verdade), com destaque para a relevância do papel das universidades
como centros de pesquisa capazes de desenvolver medidas eficazes para
cuidar dos atingidos pela pandemia... [e por aí vai].

A face mencionada acima é assumida por uma parcela significativa


das pessoas, que optam por abandonar o discurso da pós-verdade
(prioritariamente burguês), trocando o apoio no objeto falso pela retomada de
um projeto racional “inacabado”, ou seja, reconhecendo – ainda que de forma
inconsciente – que não fomos e que não somos capazes de dominar

EM CASA lendo a p. 391


Isolad@s

plenamente a natureza e que um modelo baseado nessa falsa noção, como o


neoliberal, representaria nossa extinção.

Contudo, existe um segundo movimento que preocupa. Trata-se das


manifestações favoráveis ao endurecimento do modelo em crise como
solução para a própria crise – e aqui é importante lembrar que escrevo sob a
perspectiva de um Brasil que segue naufragando em meio às piores maldades
na necropolítica neoliberal106. Nesse cenário, o que mais espanta é a redução
e o desmantelamento de condições básicas à manutenção do bem-estar
humano numa crise que é, prioritariamente, de saúde humana. E aqui a crítica
de Agamben talvez faça mais sentido, não porque existe uma superestimação
da doença (o que, definitivamente, não há), mas porque os objetivos com os
decretos (de calamidade etc.) e as medidas provisórias em alguns países –
como ocorre no Brasil – têm sim a intenção de promover mais exceção e
restrição de direitos. Mais do que desafios, aos olhos dos abutres, soam como
oportunidades. Olhemos para o caso brasileiro. Até o momento, a aposta para
conter a epidemia no país girou em torno do “bem estar” econômico de
bilionários e banqueiros, com a autorização da redução da jornada de trabalho
e do salário, suspensão de vínculos empregatícios e liberação de aportes de
dinheiro público mais do que generosos para as instituições financeiras. Até
mesmo o auxílio-emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais

106
Para ilustrar essa perspectiva, basta verificar a tentativa do Ministério da Educação de
impor o regime de Educação à Distância em substituição às aulas presenciais, ação que
serviria de piloto para, num futuro não muito distante, enfraquecer ainda mais o labor docente
e a autonomia das universidades públicas.

EM CASA lendo a p. 392


Isolad@s

(aprovado após uma coalizão de partidos de esquerda se opor aos R$ 200


pretendidos pelo Governo Federal) trouxe como justificativa a necessidade de
fazer a ‘economia pulsar’. Quando o modelo neoliberal atingiu o ápice de sua
crise, a aposta – aproveitando a impossibilidade de movimentação e
mobilização nas ruas – é de mais medidas neoliberais. Se isso avançar, em
breve, milhares de brasileiros minguarão de fome em meio à pandemia.

Dentro dessa perspectiva, duas breves menções me parecem


importantes: à ideia de tempo livre em Adorno107 e à ineficácia desse homem
“pós-moderno” e livre das redes sociais online. Sobre a primeira questão, é
no mínimo curioso identificar que o mesmo decreto que suspendia os
contratos de trabalho verse sobre a obrigatoriedade de que as empresas
ofereçam cursos online para que os funcionários usem seu tempo em casa se
aperfeiçoando (se isso não ilustra a tentativa de ocupar todo e qualquer tempo
livre possível para a reflexão e crítica com uma extensão do trabalho, poucas
outras coisas conseguirão ilustrar). Sobre o segundo ponto, fica uma
confirmação: bater panelas na janela, como a classe média ensinou no golpe
de 2016, é um gesto simbólico de grande alcance, mas de pouquíssima
serventia se não tiver aderência nos campos decisivos de gestão da sociedade
(que no caso da classe média foi o confortável apoio do Judiciário e do
Legislativo ao golpe de 2016, mas no caso do proletariado sempre foram as
ruas como espaço de resistência e luta). Enclausurados, teremos uma batalha

107
ADORNO, Theodor W. Palavras e sinais: modelos críticos 2. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.

EM CASA lendo a p. 393


Isolad@s

difícil de nossas janelas se não conseguirmos apoio em novos campos de


decisão que não sejam as redes sociais da internet.

Por fim, ainda dentro desses desdobramentos possíveis, encerro


estas reflexões, por ora, chamando para um diálogo dentro daquele que
sempre foi meu corpus de análise principal: o jornalismo. Admito ter caído em
tentação nos últimos meses ao elogiar em demasia o trabalho extremamente
eficaz de conscientização realizado por muitas emissoras de televisão no
Brasil (nesse momento em que “informação” pode salvar milhares de vidas,
efetivamente se trata de uma missão louvável). Digo cair em tentação porque
o brilho nos olhos também pode turvar nossa visão. E meu foco só foi
reestabelecido quando me deparei com o absurdo e repugnante editorial de O
Globo, publicado em 20 de março, que, em linhas resumidas, defendeu o
sacrifício do salário de servidores públicos como contribuição para o combate
da Covid-19.

O incômodo profundo gerado pelo texto me fez recuar um passo e


olhar de forma crítica para a cobertura da mídia. Nesse recuo o que percebi é
que por um lado é sim necessário reconhecer a “valoração” da informação
neste momento como estratégia formativa, com jornais mais longos, maior
número de boletins informativos, tons mais sóbrios, escuta de especialistas
diversos, ações conjuntas entre diferentes grupos (entre outras medidas).
Mas, por outro lado, a constatação principal é de que, para além da estética
mais democrática, existe uma ética impregnada no conteúdo jornalístico que
não se modificou, mesmo sob o flagelo da pandemia. E isso assusta. Os

EM CASA lendo a p. 394


Isolad@s

interesses dos grupos/famílias que detêm a maior parte desses veículos


hegemônicos seguem inabalados e alinhados com a segunda perspectiva
sinalizada neste ensaio (de endurecimento neoliberal), conforme entrega o
editorial supracitado ou as recorrentes pautas “REC” sobra a reforma
administrativa que objetiva destruir o funcionalismo público. As coberturas
sobre os danos das ações neoliberais, por sua vez, seguem superficiais, muito
mais focadas na figura grotesca de um presidente que deveria ser interditado
do que nas consequências dos atos desmedidos, sendo o papel de resistência
prioritariamente assumido pelos veículos contra-hegemônicos, como sempre
foi. Mais: romantiza-se o trabalho em casa (home office), a Educação à
Distância e o confinamento, direcionando um destaque mínimo para os
desdobramentos gravíssimos que a pandemia traz para os segmentos mais
pauperizados (afinal, como qualquer crise social, o coronavírus também
potencializa as questões de classe). Não que os contrapontos não estejam lá.
Como sempre eles estão, mas em escala ínfima perto do conjunto, incapazes
de abalar ou externar os questionamentos que habitam os pensamentos de
toda uma sociedade neste momento. Segue-se sem ir à raiz do problema. E
mais uma vez aqui ratifico minha tese108: isso acontece porque o próprio
jornalismo moderno se alimenta da mesma raiz. Enfrentá-la seria colocar-se

108
O jornalismo como antifilosofia e a formação de indivíduos potencialmente fascistas na
sociedade excitada: uma análise dos comentários sobre o golpe de 2016 em Veja e Carta
Capital. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito
Santo (PPGE/Ufes).

EM CASA lendo a p. 395


Isolad@s

em xeque. E esse risco os donos de jornal não querem, preferem que não haja
reflexão, preferem o jornalismo como antifilosofia.

É certo que esse cenário de dor, onde não conseguimos sequer dizer
quem são nossos mortos, nos obriga a almejar uma reconstrução. É certo que
um outro mundo é preciso, um novo projeto de humanidade. Mais solidário,
com relações outras que não o capital especulativo, o mercado e a ganância
de banqueiros e barões da mídia. Reforço: a crise que nos atinge deixa como
única certeza a necessidade da reconstrução. As opções são múltiplas, mas
os caminhos principais me parecem esses dois: buscar a utopia e a esperança
de uma outra sociedade (sem classes) ou aumentar a aposta nos erros que
nos conduziram ao infortúnio atual. Sigo com a esperança desde já.

EM CASA lendo a p. 396


Isolad@s

“CANÇÃO DA DESESPERANÇA”,
DE MARA CORADELLO109

Wilberth Salgueiro
Professor Titular de Literatura Brasileira na Universidade
Federal do Espírito Santo (Ufes). Mestre e Doutor em
Letras pela UFRJ, realizou pós-doutoramento em
Literatura Comparada (UFRJ/2006) e em Literatura
Brasileira (USP/2014). Neste livro também colabora com
“’Soneto contra o vírus e os viris”.
wilberthcfs@gmail.com

109
Texto publicado originalmente no Jornal Rascunho, em maio
de 2020.

EM CASA lendo a p. 397


Isolad@s

Aos artistas sem live


Às mães solteiras cozinhando um miojo – achando longos os cinco minutos
Ao pai presente um pouco de tempo a mais no banheiro, em suspiro
Aos amantes que se amam, e estão separados
Aos professores que odeiam tecnologia
Aos idosos trancafiados
A quem não tenta inventar uma vida nova e não montou um canal de coach,
vendas, network
A quem desiste e fica na cama todo dia um pouco mais
A mim
Aos sonhos que parecem náufragos
Aos náufragos que parecem agora, enfim, normais
Aos bipolares, aos borderlines, aos esquizos
E a seus analistas
Aos suicidas atônitos, pegos no ato com a morte (enfim?) no encalço
Aos adictos, aos desvalidos, à Nossa Senhora dos Tarjas Pretas
Aos meus sapatos que pensam que eu morri, e de repente são desinfectados com
álcool nas solas
Ao sol pairando apenas nos incautos
À classe trabalhadora que nunca parou e reza toda manhã pela sorte
Aos caras do Uber, Uber Eats, iFood, Rappi, Shipp
À faxineira que vejo limpando a vidraça em frente ao meu prédio, no seu décimo
andar de coragem, certamente, para seus filhos
Ao vendedor de picolé que berra lá em baixo enquanto eu escrevo isso
A todos os vendedores de caixinhas: balas, meias, canela de velho, bombons
A quem não vai mais arrumar emprego esse ano – talvez nem ano que vem
Àquele que dirige a ambulância que corre na rua neste átimo
A todos vocês e para mim: desejo vida
Não desejo sobrevida, desejo vida:
dignidade, "andar tranquilamente no país em que nasceu", a segurança de fazer e
acontecer, sonhos na medida do real, "amantes de manhã, trabalhadores à
tarde, poetas à noite",
na sua soleira apenas os sonhos, desejos de alcançar o impossível e não
apenas, um pão
Que nossos sonhos não podem ser entubados com esse oxigênio falho do capital.

(Mara Coradello, abril de 2020)

EM CASA lendo a p. 398


Isolad@s

Talvez, daqui a um tempo, quem vier a ler esse poema de Mara


Coradello não entenda a razão primeira de sua existência: a pandemia do
coronavírus. No Brasil, a moléstia se estende à política (miliciana, ignorante,
genocida) que tomou conta do governo e da presidência. Em maio de 2020, já
se registraram mais de doze mil óbitos aqui, e cerca de trezentos mil no
mundo, afora as inumeráveis subnotificações. Diretrizes de comportamento
são incessantemente divulgadas, entre elas a dita quarentena. Em síntese,
se trata de manter o máximo isolamento social para tentar diminuir a
propagação do vírus e assim o colapso do sistema de saúde. Trabalhos
essenciais (saúde, segurança, abastecimento etc.) podem ser exercidos, com
muitos protocolos de prevenção, enquanto os demais devem ficar em
suspenso ou ser feitos de casa.

“Canção da desesperança” foi publicado no Facebook da autora


capixaba em 30 de abril, obtendo dezenas de compartilhamentos. Seu
impacto se deve, além da comoção coletiva em torno do assunto, ao fato de,
verso a verso, vir desenhando um painel de fragilidades, mas também de
forças, que nos tocam em momento tão singular. O título, “Canção da
desesperança”, não esconde o que pensa a poeta: falta luz no túnel. É bonito
o esforço da batalha, mas a guerra, por ora, tem vencedor, e é o vírus, que
tem como cúmplice nada menos que seu próprio alvo: o homem.

Verso a verso se desenha um tempo, no qual a poeta e nós, “todos


vocês”, estamos: “Aos artistas sem live” diz da moda em que, por necessidade
ou narcisismo, artistas e fãs se conectam virtualmente, e shows, saraus,

EM CASA lendo a p. 399


Isolad@s

bate-papos, debates se multiplicam. Mas há os deslocados, os


marginalizados, os que ficam “na porta estacionando os carros”. Os versos
são flashes de um cenário dolorido que testemunhamos: “Às mães solteiras
cozinhando um miojo – achando longos os cinco minutos”. Mesmo uma
refeição tão emblematicamente relacionada ao fast food, feito um macarrão
instantâneo, parece demorar, dada a hipotética falta de amparo em situação
de quarentena. A verve da poeta provoca o lugar assaz mais cômodo do pai
– “Ao pai presente um pouco de tempo a mais no banheiro, em suspiro”:
mesmo “presente”, a distância (“banheiro”) e certo tédio (“suspiro”) imperam,
denunciando diferenças e privilégios dos lugares da mulher e do homem.

Cada verso exige, se não uma exegese, alguma paráfrase. Em “Aos


amantes que se amam, e estão separados” fala da dor da ausência e da
impossibilidade (provisória?) do afeto. Com “Aos professores que odeiam
tecnologia”, o poema se refere à profusão de escolas e redes que, em meio a
polêmicas, adotaram, adrede e ad hoc, o ensino a distância, para compensar
a suspensão das aulas presenciais. O curto verso “Aos idosos trancafiados” é
certeiro: se a ciência médica estipulou que pessoas mais velhas são mais
suscetíveis à mortal doença, elas devem ser trancafiadas, “isoladas ou
fechadas em determinado ambiente, para evitar o convívio social” (Houaiss).
A ironia aparece às escâncaras em: “A quem não tenta inventar uma vida
nova e não montou um canal de coach, vendas, network”. Oportunistas,
aproveitadores, enganadores brotam, se a raiz é fraca. Da ironia à
melancolia: “A quem desiste e fica na cama todo dia um pouco mais” – se as
notícias trazem mortes, velórios, enterros, cemitérios, caixões, e se o luto se

EM CASA lendo a p. 400


Isolad@s

atualiza a cada mórbido gráfico diário, a melancolia demora mais e mais (não
há tempo que seja bastante para elaboração do luto).

Este é um poema-dedicatória: diante de um quadro catastrófico, a


poeta recorda, sobretudo, grupos de pessoas que são atingidas em sua vida
pelo vírus. (Por email, a autora esclarece que a ausência no poema de
profissionais da saúde atendeu a um princípio básico: “médicos, enfermeiras,
e os que têm fome mereciam entrar no poema, mas o tornariam por demais
panfletário”.) O menor verso do poema diz: “A mim”. Ou seja, importa afirmar
que a desesperança atinge a todos. Uma tristeza cinza paira sobre todos. No
inferno estamos todos.

O verso “Aos sonhos que parecem náufragos” traz um termo que há


de se repetir, e não à toa: sonhos. Sendo sonho um misto de fantasia, desejo
e utopia, a presença danosa de um vírus exterminador da vida faz, de fato,
afundar todo ânimo de normalidade, daí a ternura e solidariedade “Aos
bipolares, aos borderlines, aos esquizos / E a seus analistas”. Se o mundo,
sem a ameaça concreta de extinção a partir de um vírus ainda sem
domesticação, já se mostra instável para tantos, que dirá se tal instabilidade
se prolifera? O cheiro da morte se antecipa aos suicidas. Se obedientes ao
isolamento, dependentes químicos também hão de dar sua cota de
abstinência. A invocação (hilária) à “Nossa Senhora dos Tarjas Pretas”
mostra que o poema oscila entre extremos de melancolia e relaxamento,
entre a desesperança e a canção.

EM CASA lendo a p. 401


Isolad@s

O saboroso verso “Aos meus sapatos que pensam que eu morri, e de


repente são desinfectados com álcool nas solas”, inspirado (conforme a
autora) em meme da internet, parece fazer a travessia para os versos finais
mais engajados: o verso “À classe trabalhadora que nunca parou e reza toda
manhã pela sorte” sintetiza a lista que virá, de terceirizados do Uber e afins,
da faxineira, dos vendedores de rua, dos motoristas de ambulância. A
legítima preocupação econômica – “A quem não vai mais arrumar emprego
esse ano – talvez nem ano que vem” – ganha lugar: lasciate ogni speranza...
Por todo o canto, devastação.

Eis que, entretanto, a flor vence a náusea: “A todos vocês e para mim:
desejo vida / Não desejo sobrevida, desejo vida: / dignidade, ‘andar
tranquilamente no país em que nasceu’, a segurança de fazer e acontecer,
sonhos na medida do real, ‘amantes de manhã, trabalhadores à tarde, poetas
à noite’, na sua soleira apenas os sonhos, desejos de alcançar o impossível e
não apenas, um pão”. Se o vírus coroa a morte, no poema há de reinar a vida,
muito além de qualquer migalha de pão. No citado “Rap da felicidade”, Cidinho
e Doca cantam em tom de revolução: “O povo tem a força, só precisa
descobrir / Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”. A poeta e os
compositores se unem no desejo de felicidade, de poder popular, seja diante
de um corrosivo e invisível vírus, seja diante de um negacionista e visível
presidente.

O derradeiro verso não deixa dúvida quanto ao inimigo-mor: “Que


nossos sonhos não podem ser entubados com esse oxigênio falho do capital”.

EM CASA lendo a p. 402


Isolad@s

Aqui, capital significa todo o sistema de exclusão, desigualdade e injustiça


que impede as pessoas de respirarem, de viverem com dignidade. A própria
autora informa que no trecho “amantes de manhã, trabalhadores à tarde,
poetas à noite” há ecos de A ideologia alemã, de Marx e Engels: “Logo que o
trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de
atividade exclusivo e determinado (...) o indivíduo é caçador, pescador, pastor
ou crítico (...) na sociedade comunista, a sociedade regula a produção geral
e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de
caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado,
criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade”. A citação
explica o contundente fecho: “Que nossos sonhos não podem ser entubados
com esse oxigênio falho do capital”. Não há de haver vírus que vá nos isolar,
nos reduzir àquilo que não somos: seres medrosos, monolíticos, ilhados.

Diante da ameaça, devemos reinventar nossos modos de viver, nosso


direito à felicidade, nosso acesso pleno ao oxigênio (literal e metafórico).
Contra o silêncio indiferente da covid-19, e contra o silêncio covarde dos
cúmplices, o que se pode esperar de melhor do que uma canção acontecer?
O coronavírus expôs as vísceras da luta de classes, haja vista que está nos
menos favorecidos a estatística maior de óbitos. Com essa “Canção da
desesperança”, Mara Coradello recupera um clima de Armazém dos afetos e
de A alegria delicada dos dias comuns, títulos de livros seus (lidos também
com doses de ironia). Todos estamos envolvidos nesse clima, em busca de
afeto e delicadeza, ora mais expostos aos inimigos, ora um pouco protegidos

EM CASA lendo a p. 403


Isolad@s

entre quatro paredes. É de nós, desse lugar-comum do existir, que vai da


solidão à solidariedade, que fala o poema – triste, forte, belíssimo poema.

EM CASA lendo a p. 404


Isolad@s

A QUERELA DO CORONAVÍRUS:
SOBRE A FALTA DE ECONOMIA
POLÍTICA NO DEBATE A RESPEITO
DA SOCIEDADE PÓS-PANDEMIA110

David Gonçalves Borges


Professor de Filosofia da Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Doutorando em Filosofia pela Universidade da
Beira Interior (UBI), Portugal. Fundador e consultor do
site de notícias "Fora!" (https://fora.global), especializado
em geopolítica e relações internacionais.
davidgborges@hotmail.com

110
Este capítulo é uma versão encurtada de um manuscrito
maior, em processo de publicação. Aqui está presente somente
a terceira parte do manuscrito original, que contém reflexões
próprias; as duas primeiras consistem na apresentação da
interpretação de diversos autores – mencionados na
introdução – a respeito da pandemia.

EM CASA lendo a p. 405


Isolad@s

INTRODUÇÃO
Durante a pandemia que assolou o mundo nos últimos meses,
diversos intelectuais de renome se manifestaram em publicações
acadêmicas e na mídia a respeito dos riscos e expectativas trazidos pelo
cenário pós-pandemia, por vezes com um enfoque ético ou fenomenológico-
existencial, e por vezes com enfoque de cunho mais político.

A pandemia de SARS-Cov-2, também chamada de pandemia do novo


coronavírus (ou Covid-19), foi identificada inicialmente em Wuhan, China, com
os primeiros pacientes apresentando sintomas em dezembro de 2019 e a
doença sendo identificada em janeiro de 2020 (HUANG et al., 2020; WHO,
2020a). A Organização Mundial de Saúde declarou a doença uma emergência
de saúde pública internacionalmente preocupante em 30 de janeiro de 2020
(WHO, 2020b), e a classificou como pandemia em 11 de março (WHO, 2020d).
Até o momento do término da redação deste texto (17 de junho de 2020),
8.043.487 pessoas foram infectadas, resultando em 439.487 mortes,
distribuídos por 213 países e territórios (WHO, 2020c).

Não apenas por seus efeitos sobre a saúde pública, mas também
devido às consequências políticas e econômicas da pandemia, diversos
intelectuais proeminentes teceram considerações a respeito dos efeitos de
curto, médio e longo prazos decorrentes da doença, que passou a se
configurar como uma crise de proporções globais. Em 25 de fevereiro de
2020, Giorgio Agamben escreveu um artigo de imprensa para o periódico
italiano Il Manifesto (AGAMBEN, 2020b), tendo sido respondido por Jean-Luc
EM CASA lendo a p. 406
Isolad@s

Nancy no Antinomie em 27 de fevereiro (NANCY, 2020); Roberto Esposito


teceu uma resposta a Nancy no mesmo veículo em 28 de fevereiro
(ESPOSITO, 2020); Agamben forneceu sua réplica através do Quodlibet em 17
de março (AGAMBEN, 2020a). Byung-chul Han teceu sua própria análise
sobre o fenômeno no Welt, da Alemanha, publicada também no El País Brasil,
nos dias 22 e 23 de março (a publicação foi simultânea e a diferença de datas
é decorrente dos distintos fusos horários entre os dois países; HAN, 2020a,
b); Slavoj Žižek escreveu um livro, intitulado Pandemic! (ŽIŽEK, 2020),
durante seu próprio isolamento, cujas primeiras resenhas a respeito
apareceram na imprensa em abril. Bruno Latour também redigiu suas
próprias considerações sobre a pandemia em 29 de março (LATOUR, 2020);
assim como Anselm Jappe, em 06 de abril (JAPPE, 2020), e Jacques Rancière,
em 09 de maio (RANCIÈRE, 2020). Autores lusófonos também trataram do
tema: o prof. Filicio Mulinari, em capítulo de livro publicado no Brasil
(MULINARI, 2020)111; André Barata e Renato Carmo, em uma série de artigos
para o Jornal Económico, de Portugal (dos quais três são de especial
interesse: BARATA; CARMO, 2020a, b, c)112; e Boaventura de Sousa Santos,
professor português, em livro recentemente publicado (SANTOS, 2020).

Trata-se do mesmo artigo publicado como capítulo neste livro, ao qual tive acesso antes de
111

sua publicação. O prof. Mulinari foi gentil em enviar uma versão preliminar de seu texto, para
o qual solicitou revisão e considerações teóricas a respeito.
112
A série pode ser consultada no endereço das colunas de opinião do Jornal Económico:
https://jornaleconomico.sapo.pt/categoria/opiniao. A partir do oitavo ensaio, os autores
começaram a abordar o tema das desigualdades e do desemprego. Ressalte-se que o prof.
Barata teve acesso a uma versão preliminar e mais longa deste texto logo após a publicação
de seu sétimo ensaio, em meados de maio, e nela constavam inúmeras críticas devido aos

EM CASA lendo a p. 407


Isolad@s

As análises mencionadas apresentam muitas divergências entre si e


alguns pontos de aproximação. Pressupondo que o leitor já as conhece, nas
linhas seguintes apresento a elaboração de uma reflexão própria apoiada em
influências teóricas distintas daquelas utilizadas pelos autores
supramencionados. O objetivo deste texto é propor uma avaliação alternativa
baseada na crítica do valor e nos trabalhos de Marx.

É POSSÍVEL ROMPER COM O MODELO ATUAL DE


SOCIEDADE?

Torna-se claro que, a despeito das divergências iniciais e da


polarização entre os autores citados – aparentemente causada por
interpretações caricatas que eventualmente possam ter uns dos outros –, há
um núcleo comum permeando a todos: a pandemia e o período da “grande
reclusão”113 decorrente dela possuem certo potencial de ruptura com as
bases ideológicas do modo de reprodução social vigente. O futuro pode vir a
ser melhor se este potencial de ruptura for utilizado de forma proveitosa,
mas nada impede que as sociedades pós-pandemia venham a ser piores do
que eram antes: mais opressivas, mais autoritárias, mais excludentes, mais

autores terem majoritariamente ignorado as questões econômicas e sociopolíticas trazidas


pela pandemia, focando no aspecto existencial da mesma.
113
Na mídia e nas publicações acadêmicas em língua inglesa tornaram-se frequentes as
expressões “the great lockdown”, “great reclusion” e “great seclusion” em referência às
medidas de contenção adotadas por múltiplos governos – bem como as adotadas por cidadãos,
mesmo sem a imposição de seus governos – para evitar a contaminação pelo SARS-Cov-2.

EM CASA lendo a p. 408


Isolad@s

hobbesianas. Há divergências quanto à probabilidade de que ocorra o melhor


cenário ou o pior cenário, mas nenhum dos autores mencionados aparenta
excluir uma das duas hipóteses; Agamben é o único que talvez possa ser
interpretado como estritamente pessimista. Adicionalmente, a maioria deles
aponta para as políticas neoliberais, que se tornaram o paradigma vigente
na gestão pública ao longo das últimas décadas, como parte integrante da
incapacidade demonstrada por diversos Estados de responderem
adequadamente à crise – epidemiológica, econômica e/ou social – que se
instaurou devido ao novo coronavírus.

Entretanto, deve-se considerar que a ênfase de todos os autores


citados anteriormente reside no terreno da ideologia e da ética, com pouca
atenção sendo dirigida (e apenas por alguns deles) aos determinantes
estruturais mais concretos que constituem o modo de vida das sociedades
atuais. Independente do nome que escolhermos para caracterizar o sistema
que rege as sociedades contemporâneas, em especial as ocidentais –
capitalismo, neoliberalismo, capitalismo tardio, mundo pós-industrial,
toyotismo, capitalismo financeiro, e assim sucessivamente –, essa forma de
organização e reprodução social específica não se mantém apenas devido às
crenças daqueles que vivem nela; ainda que a pandemia e o confinamento ou
reclusão decorrentes desta torne possível, no curto ou médio prazo, uma
reavaliação das crenças e modos de interpretação do mundo dos seres
humanos concretos que vivem neste tipo de sociedade, as estruturas
palpáveis que organizam as sociedades contemporâneas não são meramente
mantidas através da ideologia. Fluxo de mercadorias, mercado de capitais,

EM CASA lendo a p. 409


Isolad@s

regulamentações estatais, produção e distribuição de energia e de água,


agricultura comercial (em contraste com a agricultura para consumo
próprio), extração de matérias-primas, relações diplomáticas e/ou bélicas
entre estados, poder policial, forças armadas, plantas fabris, instituições
religiosas, entre outros, possuem componentes concretos que determinam
seu funcionamento e não são facilmente reformuláveis através de uma mera
mudança nas atitudes ou crenças daqueles que estão imersos nas relações
entre estes ambientes e setores, que, em última instância, são todos. Seria
necessária a elaboração de soluções que vão muito além de um
reposicionamento ético-existencial dos sujeitos, e que permitissem a
reconfiguração não só dos sistemas políticos, mas também de todo o modo
de produção e de circulação de bens atualmente existente.

É necessário, ainda, ressaltar que a esperança por uma ruptura que


desestabilize o ideário neoliberal faz parte da escatologia tipicamente
presente não apenas nas diversas militâncias dos grupos de esquerda, mas
também nos círculos intelectuais humanistas – mesmo aqueles que não
possuem uma identificação declarada com ideias de esquerda, ou até as
rejeitam abertamente. É hipoteticamente necessária uma grande crise – ou
uma grande revolução, na versão do marxismo mais ortodoxo – para que seja
atingido o paraíso terreno de uma nova humanidade. Crises reais, de
qualquer porte, se configuram como oportunidades por desvelarem este
potencial revolucionário. Há algumas similaridades com o cristianismo
messiânico e, em grande parte, pode-se especular se as pessoas dos dias
atuais, intelectuais inclusos, não herdaram este modo peculiar de

EM CASA lendo a p. 410


Isolad@s

interpretação da realidade que os circunda dos modelos político-econômicos


surgidos entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século
XX, que ainda são essencialmente os que existem à nossa disposição para
interpretação da conjuntura política e social. Tanto o socialismo de estado
quanto o neoliberalismo, o fascismo e o anarquismo revolucionário se
baseiam em alguns pressupostos que, em última instância, são semelhantes:
há um paraíso a ser obtido (uma nova sociedade, vista como melhor do que
a anterior), as pessoas podem obter sua “salvação” se seguirem os preceitos
corretos (se forem fiéis o suficiente ao ideário ao qual aderem e realizarem
obras em seu prol), e haverá uma grande tribulação que, após superada,
resultará na regeneração da humanidade através dos “escolhidos”. Com
simplificações, o socialismo e o anarquismo atinham-se à revolução social,
espontaneamente gestada e conduzida pelas massas114; o fascismo apostava
em uma revolução das massas em prol de – e deixando-se conduzir para –
uma concepção total de sociedade gestada por alguns líderes com virtudes
“excepcionais”115; o neoliberalismo mantém a crença no trabalho diligente de
seus fiéis em prol do mercado, com o objetivo de gerar prosperidade material
– os escolhidos, que tenham se dedicado o suficiente, serão agraciados com

114
Para o aspecto revolucionário do marxismo, já bem conhecido, ver MARX; ENGELS, 1998. A
posição revolucionária de Marx e Engels é ecoada em LENIN, 2015, e em TROTSKY, 1986. Para
o anarquismo, ver BAKUNIN, 1970, com especial atenção às páginas 16-17. A posição adotada
por Bakunin nesta obra é ecoada em escritos de anarquistas que foram seus contemporâneos
e continuadores, como Piotr Kropotkin, Errico Malatesta e Emma Goldman – mas a discussão
pormenorizada da postura revolucionária de autores anarquistas não faz parte do escopo
deste artigo. Para a relação entre marxismo e teologia, ver ARON, 1962.
115
A consulta direta aos escritos dos principais líderes históricos fascistas fundamenta esta
conjectura; ver HITLER, 1939; MUSSOLINI, 1933.

EM CASA lendo a p. 411


Isolad@s

a possibilidade de usufruírem dessa prosperidade, enquanto os demais serão


punidos com a miséria pela sua falta de zelo e de observância às regras do
mercado116. Considerando-se que as principais correntes de pensamento
político e social que ainda nos influenciam filosoficamente nos dias atuais
compartilham entre si aspectos escatológicos, não é de surpreender que
qualquer análise social ou política feita atualmente estará, também, imbuída
de escatologias semi-teológicas – independentemente de quais sejam as
preferências intelectuais ou os posicionamentos éticos pessoais dos
emissores destas análises.

A pandemia e a grande reclusão irão, certamente, provocar uma


enorme crise econômica de consequências sociais ainda pouco previsíveis. O
Fundo Monetário Internacional prevê uma queda de 3% no output econômico
mundial em 2020, chegando a -7,5% na zona do Euro, -5,9% para os Estados
Unidos e -5,2% para a América Latina e o Caribe (IMF, 2020). A despeito dos
“pacotes de auxílio” promovidos por muitas nações, em qualquer crise
tendem a ser os pequenos negócios aqueles que sofrem mais risco de ir à
falência, e não os grandes – que não somente têm acesso a mais capital de
giro e linhas de crédito melhores, como podem exercer pressão política, na
forma de lobbies, para receberem mais apoio governamental. Quando a
pandemia arrefecer, os grandes negócios terão uma enorme oportunidade

116
Walter Benjamin compara o capitalismo a uma religião de culto incessante em BENJAMIN,
2013. O manuscrito incompleto do filósofo alemão teve inspiração em Weber, que explora as
aproximações entre a ética protestante e o sistema capitalista em WEBER, 2004. Para uma
discussão sobre os escritos de ambos os autores em contraste, ver LÖWY, 2009.

EM CASA lendo a p. 412


Isolad@s

de comprar as empresas menores que estarão, fatalmente, endividadas,


fortalecendo seus monopólios e a concentração de riqueza, e promovendo
um aprofundamento do capitalismo de compadrio (ou crony capitalism) já
presente em diversos países (CHEKIR; DIWAN, 2014; HABER, 2013; KANG, 2002;
PEI, 2016). Isto já foi teorizado por Marx em suas considerações a respeito da
centralização de capital (MARX, 2013, p. 698-704).

O mesmo fenômeno pode – e provavelmente irá – se repetir nas


zonas rurais de países em desenvolvimento, uma vez que o processo de
apropriação das terras (land grabbing) de pequenos proprietários por
grandes empresários agrícolas e corporações transnacionais, incluindo
fundos de investimentos (hedge funds) que apenas especulam com o valor
das propriedades – sem real preocupação com a produção em si ou com as
consequências sociais e ambientais de seus empreendimentos –, é fato já
amplamente observado (BALEHEGN, 2015; JR.; FRANCO; et al., 2012; JR.; KAY;
et al., 2012; JR.; FRANCO, 2011; MANAHAN, 2011; PITTA et al., 2018; SCHUTTER,
2011). E, assim como no caso da concentração de capital em monopólios,
encontra-se teorizado desde o século XIX (MARX, 2013, p. 835-844).

É perceptível que em meio ao debate dos intelectuais cujos ensaios


foram analisados neste manuscrito houve uma mudança de tema central no
tocante à pandemia. Enquanto Agamben, que iniciou a querela, demonstrou
preocupação com as medidas autoritárias que governos poderiam vir a tomar
e as justificativas que poderiam vir a utilizar, a entrada de Byung-chul Han
na discussão inicia a análise de questões mais abrangentes que não estavam

EM CASA lendo a p. 413


Isolad@s

sendo abordadas, e Žižek, assim como todos os que se manifestaram


posteriormente, começaram a dar maior ênfase em questões ambientais,
econômicas e de sustentação do atual sistema político-social – ao mesmo
tempo em que demonstraram um otimismo um pouco maior, embora não
acrítico, quanto às possibilidades de ruptura com o sistema atualmente
vigente e a capacidade de organização dos cidadãos comuns (normalmente
não representados na política institucional) para finalidades políticas e de
militância. No entanto, a cautela demonstrada por Han e, de certo modo,
ecoada por Rancière, deve ser levada a sério: a pandemia, e o isolamento
decorrente dela, tendem a promover individualização em maior grau do que
promovem oportunidades de ações coletivas. Há uma certa esperança
ingênua nos escritos dos demais autores, que talvez decorra da inferência
de que a reclusão para evitar o contágio deixa as pessoas com mais tempo
livre, e que, mesmo fisicamente isoladas, o tempo extra disponível lhes dá
maiores chances para pensarem sobre questões sociais e se conectarem
através de redes de comunicações, em especial a internet, para darem início
a projetos conjuntos; alguns desses projetos poderiam, obviamente, tomar a
forma de militância política no pós-pandemia. O problema com este
raciocínio é que ele faz vistas grossas ao fato de que uma parcela substancial
da população mundial não possui acesso a meios de comunicação que
permitiriam este tipo de contato. O raciocínio dos autores pode ser válido
para a Europa, onde 82,5% dos indivíduos contam com acesso à internet, ou
para o continente americano, onde o total chega a 77,2% – percentual
distorcido para cima por nações como os Estados Unidos e o Canadá, visto

EM CASA lendo a p. 414


Isolad@s

que na América Latina a média é muito mais baixa. As pessoas que vivem
nestas regiões podem, certamente, se comunicar mesmo evitando o contato
físico. Em outras partes do globo os percentuais caem drasticamente: 51,6%
no mundo árabe; 48,4% na região da Ásia e Pacífico; 28,2% na África. A média
mundial nos países considerados desenvolvidos gira em torno de 86,6%,
enquanto nos países em desenvolvimento é de 47% e, nos países menos
desenvolvidos, precisamente os que mais necessitam – e se beneficiariam –
de uma reformulação no sistema político-econômico global, 19,1%. Há ainda
diferenças de classe e de gênero que afetam a inclusão digital. Nas zonas
rurais de países em desenvolvimento ou de países pouco desenvolvidos,
mesmo a população que vive dentro do alcance das redes de
telecomunicações frequentemente não possui meios para acessá-las, seja
por falta de equipamentos eletrônicos ou pela impossibilidade de assinar
pacotes de dados (ITU, 2019).

O problema se estende para a segurança alimentar das populações


afetadas pela pandemia. A Food and Agriculture Organization, órgão das
Nações Unidas, vem alertando para o impacto do novo coronavírus sobre as
cadeias de produção e distribuição de alimentos, bem como para um possível
aumento da fome global – em especial nos países com menores índices de
desenvolvimento (FAO, 2020a, b, c, d). Pessoas buscando a sobrevivência de
si mesmos e de seus filhos podem, sim, vir a formar movimentos políticos e
sociais, ou a ingressar em movimentos anteriormente existentes – mas a
tendência de curto prazo é que estejam preocupadas prioritariamente em
tentar garantir suas necessidades básicas ou readquirir a segurança

EM CASA lendo a p. 415


Isolad@s

alimentar e financeira que possuíam antes da calamidade, ao invés de


buscarem pressionar seus governos em prol de reestruturações sociais mais
amplas. Somando-se o possível aumento da fome, da miséria e da
desigualdade à dificuldade preexistente de acesso a redes de
telecomunicações por parte substancial da população global, bem como à
pressão de inúmeros governos para a retomada imediata do crescimento
econômico, a diferença de poder de barganha existente entre as grandes
empresas e os cidadãos que trabalham para elas, e a necessidade premente
– um imperativo biológico – que as pessoas possuem de garantir os meios
materiais para a sua sobrevivência, parece extremamente otimista imaginar
que a pandemia terá como consequência de curto ou médio prazo um abalo
no capitalismo de mercado contemporâneo – aliado íntimo do colonialismo,
como lembrou Boaventura de Sousa Santos apesar de seu próprio otimismo
velado e cauteloso. Cabe ressaltar que Barata e Carmo também alertaram
para as possíveis “invisibilidades” decorrentes da pandemia, assim como
Žižek afirmou que o “golpe mortal” recebido pelo capitalismo se manifestará
apenas em um prazo mais longo – mas, apesar de tais considerações, os três
se mostraram demasiadamente esperançosos diante da conjuntura. Mulinari,
que abordou a “razão instrumental camuflada de utilitarismo”, mostrou-se
muito mais cético quanto a perspectivas futuras de ruptura.

Intelectuais humanistas tendem a compartilhar, entre si, certos


valores; e normalmente são formados em grandes centros urbanos e
costumam ser oriundos das classes médias ou abastadas. Mesmo que se
identifiquem, por empatia, com os problemas das populações rurais e das

EM CASA lendo a p. 416


Isolad@s

classes baixas – residentes em favelas, guetos, cortiços e “bairros de lata” –


, é frequente que não consigam perceber as questões estruturais sistêmicas
que afetam a dinâmica social destes grupos. Demonstram viés ao
manifestarem a crença de que bastam mudanças éticas, ou na forma de ver
o mundo, para que ocorram alterações mais amplas, sistêmicas, nas formas
de organização social. Adicionalmente, apesar de suas pretensões de
universalidade, a filosofia ainda é muito capturada pela cultura e associada
à construção de identidades nacionais (PETERS, 2015). É sintomático que
apenas os autores do “sul” epistemológico global (Portugal, Brasil e
Eslovênia), para tomarmos emprestada uma das categorias de Boaventura
de Sousa Santos117, tenham feito considerações – ainda que, em alguns casos,
mínimas – a respeito das “invisibilidades”, do colonialismo, da pouca
perspectiva de mudança em curto prazo ou da razão instrumental estar
sendo utilizada em prol da exploração econômica.

Há de se ressaltar, ainda, que a pandemia resultou em um ganho


assombroso de prestígio por profissionais da área médica e científica em
geral – em alguns países, alçados ao nível de heróis populares ou de
superstars. Embora as críticas feitas pela filosofia contemporânea à
autoridade científica e ao cientificismo – decorrentes da interpretação, por
vezes apressada, dos escritos de autores como Bachelard, Foucault, Kuhn,
Feyerabend, Lakatos e Schumacher, entre outros – tenham, possivelmente,

117
Boaventura escreve: “Na minha concepção, o Sul não designa um espaço geográfico.
Designa um espaço-tempo político, social e cultural” (SANTOS, 2020, p. 15). Ver também
SANTOS; MENESES, 2014.

EM CASA lendo a p. 417


Isolad@s

alimentado um certo sentimento anticientífico ou obscurantista em tempos


recentes, cuja expressão mais grave na atual situação se manifesta nos
movimentos antivacinação, é preciso demonstrar cautela com a dinâmica de
refluxo. Medidas autoritárias podem vir a ser adotadas por autoridades
políticas sob a égide da “necessidade” pretensamente inquestionável da
autoridade científica. Esse risco inclui não apenas medidas de fundo
sanitário, como as criticadas inicialmente por Agamben, mas também as de
finalidade econômica: não é difícil imaginar que no pós-pandemia Estados
venham a ampliar suas políticas de austeridade e a afrouxar limitações
legais à exploração de pessoas e recursos naturais, invocando as
justificativas de economistas – enquanto autoridades científicas – a respeito
da necessidade de reconstrução econômica (ou utilizando expressões
correlatas, como “retomada” ou “crescimento”). O alerta de Byung-chul Han
quanto à possibilidade da China “exportar” para o ocidente seu modelo
autoritário de governo baseado em técnicas de vigilância digital parece
alarmista, mas deve ser tomado com seriedade. Como dito por Han, os
cenários futuros podem ser muito similares ao que descreve a jornalista
canadense Naomi Klein em seu livro A doutrina do choque, que narra os
fatores que levaram à implementação de políticas neoliberais em diversos
países da América Latina, da Ásia e do Leste Europeu (KLEIN, 2007). É
provável, inclusive, que o desenrolar deste tipo de fenômeno se faça notar

EM CASA lendo a p. 418


Isolad@s

primeiro nas periferias do capitalismo, para depois atingir os países


desenvolvidos118.

O fato de neoliberais convictos, como os presidentes dos Estados


Unidos da América e da França, estarem “aumentando” o Estado para “salvar”
a economia, como aponta Žižek, não indica uma superação do sistema
vigente. Ao contrário, é possível ler estas medidas como um aumento da
força das instituições que são capazes de realizar a manutenção do sistema,
mantendo o “comitê de negócios da burguesia”, nas palavras de Marx, em
funcionamento119. O keynesianismo nunca teve como derradeira intenção ser
uma superação do modo de vida capitalista; sempre foi, antes de tudo, uma
forma de fornecer a ele uma sobrevida alongada120. Todas as sociedades
modernas são sistemas produtores de mercadorias, e isso independe de
adotarem um modelo mais regulado estatalmente, como no caso do
socialismo de estado ou do keynesianismo, ou um modelo de mercado mais
desenfreado, como no capitalismo de concorrência neoliberal (KURZ, 2015, p.
72). A ideia de renda básica universal (ou de cidadania), para citar outro
elemento que tem sido bastante discutido – e até implementado em caráter

118
Para uma introdução à dinâmica das relações entre centro e periferia na geopolítica e no
comércio global que auxilia a sustentar a reflexão apresentada, ver MABOGUNJE, 1980.
119
“Die moderne Staatsgewalt ist nur ein Ausschuß, der die gemeinschaftlichen Geschäfte der
ganzen Bourgeoisklasse verwaltet” (MARX; ENGELS, 1977, p. 464).
120
“Frequentemente se assume que a Teoria Geral é um tratado esquerdista, um chamado para
governo grande e impostos altos. Na realidade, a chegada da economia keynesiana nas salas
de aula dos Estados Unidos foi atrasada por um caso sórdido de macartismo acadêmico. [...]
Mas Keynes não era socialista – ele veio para salvar o capitalismo, não enterrá-lo” (tradução
livre). Introdução escrita por Paul Krugman para KEYNES, 2018, p. XXVI-XXVII.

EM CASA lendo a p. 419


Isolad@s

temporário – nos países que adotaram a estratégia do lockdown, tem raízes


que remontam a Condorcet (CONDORCET, 2005, p. 200-201), Thomas Paine
(PAINE, 2004) e Charles Fourier (FOURIER, 1967, p. 490-492), bem como Stuart
Mill (MILL, 1885, p. 195), tendo encontrado adeptos como Bertrand Russell
(RUSSELL, 1996, p. 92-93) e Milton Friedman (FRIEDMAN, 2002, p. 190-195)121,
entre outros. É uma ideia gestada e defendida principalmente por autores
favoráveis ao livre-mercado, ou que consideraríamos como favoráveis nos
dias de hoje. Em um sistema baseado em trocas e consumo, dar às pessoas
a possibilidade de continuarem consumindo ou de aumentarem seus gastos,
a despeito da existência de uma crise sanitária, promove a manutenção
desse sistema – não a sua superação.

Ademais, o capitalismo é algo maior do que um mero sistema


econômico. Consiste em um modo de organização e reprodução social que
invade todas as esferas da socialização humana, gerando uma dominação
sistêmica na qual os seres humanos concretos não estão propriamente
subordinados a outros indivíduos – como pregam os marxismos ortodoxos,
cujo cerne é a luta de classes –, mas sim ao funcionamento autônomo do
próprio conjunto social, que acaba criando uma forma de “dominação sem
sujeito” (KURZ, 2010, p. 213-297). A heteronomia experimentada nas
dinâmicas sociais cotidianas não se deve às volições e cálculos utilitaristas
de políticos e empresários que deteriam algum tipo de “poder” sobre o
sistema produtor de mercadorias, e sim ao movimento de autorreprodução

121
Friedman se refere à ideia como “imposto de renda negativo”.

EM CASA lendo a p. 420


Isolad@s

do próprio sistema (Idem, ibidem, p. 213-220 e 223-240). Isto é especialmente


ilustrado pelos teóricos da crítica do valor, como Kurz:

Nenhum sujeito da mercadoria, modernizado até as


últimas consequências, ainda tem a sensação de se
“subordinar” a um outro indivíduo enquanto tal. […]
Aquilo que os indivíduos atualmente percebem como
sendo sua heteronomia é, desde sempre, um
funcionalismo abstrato do sistema, o qual já não é
absorvido por nenhuma subjetividade. Todos os
funcionários das hierarquias de função são percebidos
tais como são: executores subalternos de processos
destituídos de sujeito, indivíduos aos quais não apenas
não nos “subordinamos”, mas que são até mesmo
julgados em virtude de sua “competência funcional”
(Idem, ibidem, p. 226).

Ou Jappe:

No seu nível mais profundo, o capitalismo não é,


portanto, a dominação de uma classe sobre a outra,
mas o fato, sublinhado pelo conceito de fetichismo da
mercadoria, de que toda a sociedade está dominada por
abstrações reais e anônimas. Há grupos sociais que
administram esse processo e dele extraem benefícios
– porém, chamá-los “classes dominantes” significaria
tomar as aparências por “dinheiro vivo”. Marx não diz
outra coisa quando denomina o valor de “sujeito
automático” do capitalismo (JAPPE, 2014, p. 20).

Ou, ainda, Postone:

Conceituo o capitalismo em termos de uma forma


historicamente específica de interdependência social
com um caráter impessoal e aparentemente objetivo.
Essa forma de interdependência se realiza por
intermédio de relações sociais constituídas por formas
determinadas de prática social que, não obstante, se
tornam quase independentes das pessoas engajadas

EM CASA lendo a p. 421


Isolad@s

nessas práticas. O resultado é uma forma nova e


crescentemente abstrata de dominação, que sujeita as
pessoas a imperativos e coerções estruturais
impessoais que não podem ser adequadamente
compreendidos em termos de dominação concreta (por
exemplo, dominação pessoal ou de grupo), que também
gera uma dinâmica histórica contínua. [...] Essa
reinterpretação trata a teoria do capitalismo de Marx
menos como uma teoria das formas de exploração e
dominação na sociedade moderna e mais como uma
teoria social crítica da própria natureza da
modernidade (POSTONE, 2014, p. 18).

É pouco provável que a parte da população global mais afetada pelo


empobrecimento decorrente da crise econômica pós-pandêmica, encontre,
imediatamente após o fim da emergência sanitária, meios de romper com tal
“dominação abstrata” descrita acima, intimamente conectada à enorme
interdependência que é inerente às sociedades atuais.

As análises que apostam no potencial de ruptura que a pandemia e


o confinamento trazem para os “explorados”, que logo se levantarão (crê-se)
para derrubar seus “exploradores”, decorrem de uma parte substancial das
classes intelectualizadas (vagamente liberal em sua essência política,
embora influenciada pela sociologia marxista ortodoxa – o que a torna
empática com os pobres apesar de, geralmente, estar pouco familiarizada
com a vida real na periferia do capitalismo) não compreender de fato o
caráter que foi assumido pelo trabalho nas sociedades atuais, não só como
fator de produção mas também como elemento organizador da ontologia
social.

EM CASA lendo a p. 422


Isolad@s

A esse respeito, após a revolução industrial, o trabalho deixa de ser


um mero “metabolismo com a natureza” pelo qual se caracterizava nas
sociedades agrárias pré-modernas. Ele passa a uma condição de
pressuposto metafísico inquestionável (KRISIS, 1999). Na modernidade, quem
não trabalha não come; “trabalhador” vira sinônimo de “cidadão” e a
civilização não tem lugar para os ociosos122. Trata-se um pressuposto
econômico invadindo a esfera política. Nas décadas que sucederam a
revolução industrial ocorreu uma fetichização da forma especificamente
moderna assumida pelo trabalho, que se tornou um elemento de organização
e coesão social percebido como a-histórico, ligado a uma teleologia do
progresso que deve ser posta em marcha por um idealizado – e abstrato
(KURZ, 2010, p. 85-102) – sujeito produtor de mercadorias (Idem, ibidem, p.
46). Mesmo nas tentativas de construção de um modelo alternativo ao
sistema capitalista, como as ocorridas na extinta União Soviética e na China
maoísta, o trabalho como elemento promotor da elevação moral do indivíduo
não foi descartado ou sequer questionado; isso nunca foi mudado pelos
países que adotaram o socialismo de coturno como modelo político, pois
mesmo o planejamento estatal da economia nada mais era do que uma
organização estatal da produção, da circulação e do dinheiro (KURZ, 2004, p.
24-25). Os pressupostos básicos do sistema mantiveram-se inalterados.
Embora a passagem da categoria “trabalho” de sua forma pré-moderna para

122
“Quem não trabalha não come” e “a civilização não tem lugar para os ociosos” são frases
de Lênin e Henry Ford, respectivamente, lembradas de forma crítica por Bruno Lamas em seu
prefácio de KURZ, 2018, p. 5.

EM CASA lendo a p. 423


Isolad@s

a forma especificamente capitalista tenha sido colocada em evidência com


maior zelo pelos teóricos da crítica do valor, mesmo “ortodoxos” seriam
capazes de encontrar alusões a este fenômeno nos escritos de Marx (MARX,
2004, p. 83; 2013, p. 292-293). Ocorre que, no período imediatamente posterior
à Segunda Guerra Mundial, o foco dos movimentos sociais deixou de estar
nas relações de produção, que constituem a base determinante das
sociedades produtoras de mercadorias; a atenção foi quase completamente
deslocada para a superestrutura das sociedades, ou seja, a ideologia, a
cultura, a educação, a religião, a mídia e as formas jurídicas, que são
contingentes123 – isto dificulta o surgimento de uma crítica social mais
precisa ou mesmo mais radical, e promove a impressão de que, para que as
sociedades contemporâneas se alterem em suas bases, basta que ocorra
uma mudança na forma de pensar dos seus partícipes.

As escassas considerações a respeito dos pressupostos ontológicos


e metafísicos da sociedade atual, que se configura, simultaneamente, como
uma sociedade do trabalho e para o trabalho, sendo que este também
constitui o fundamento material e econômico da produção de mercadorias
(uma coisa “sensível-suprassensível”) (MARX, 2013, p. 146), revelam que o
debate sobre as possibilidades de “emancipação” que teriam sido abertas

123
Uma reflexão semelhante a respeito do deslocamento de foco dos movimentos sociais pode
ser encontrada em JAPPE, 2014. Os conceitos de base e superestrutura foram desenvolvidos
por inúmeros teóricos, embora nem sempre a partir desta mesma terminologia; para uma
introdução a este tipo de relação em Weber, ver SCAFF, 1984. Para uma introdução com foco
em Gramsci, ver MORERA, 1990. Nos escritos de Marx a relação pode ser encontrada em MARX,
2008.

EM CASA lendo a p. 424


Isolad@s

pela pandemia e pela reclusão sanitária subsequente está, em grande


medida, sendo travado dentro das dicotomias de “esclarecimento” e
“contraesclarecimento”, bem como de “modernidade” e “antimodernidade”
(KURZ, 2010, p. 102-112). Os alicerces mais concretos do atual sistema de
organização social – qualquer que seja o nome pelo qual se decida chamá-
lo – não estão recebendo atenção suficiente. Corre-se o risco de que tal
debate se torne inócuo, caindo em vulgarização teórica propícia à estetização
da pobreza e do agrarismo, bem como à auto-heroicização e romantização
dos “revolucionários” e “humanistas”, que não apenas anseiam por um
sistema mundial novo no pós-pandemia, como alegam que já podem entrever
sinais de sua manifestação. Sem que as bases da sociedade do trabalho
sejam colocadas em questão, quaisquer iniciativas futuras com vistas à
reformulação do modo de organização social tendem a se caracterizar ou
pelo espontaneísmo, ou pelo reavivamento de ideologias e modos de
interação política que já se mostraram fracassados no passado, constituindo
apenas em relações de fetiche diferentes das atualmente existentes (KURZ,
2010, p. 57-58).

Em suma, as tendências de curto prazo não apontam na direção de


uma reavaliação e consequente ruptura no modo de organização social –
com seus determinantes políticos e econômicos – que vigorou antes da
pandemia. Mas, e quanto a tendências de longo prazo? Seria possível que as
populações cujo empobrecimento foi agravado pela pandemia se engajassem
politicamente, uma vez readquirida, posteriormente, a segurança material
para a sobrevivência? É isto que Žižek defende, quando afirma que o golpe

EM CASA lendo a p. 425


Isolad@s

mortífero sofrido pelo sistema atual irá manifestar seus efeitos a posteriori.
Tal hipótese certamente não pode ser excluída, mas tampouco a hipótese de
que a corrida por uma reconstrução econômica no pós-pandemia, o aumento
de medidas de controle contra a disseminação de patógenos – seja o SARS-
Cov-2 ou outros quaisquer –, a securitização124 de questões de saúde pública
e assistência social, ou de produção de equipamentos hospitalares, e o
renovado prestígio de lideranças políticas e de “especialistas” chancelados
pelo discurso científico podem, igualmente, desferir um duro golpe em
qualquer perspectiva de ruptura com o neoliberalismo nas próximas
décadas. Qualquer tentativa de refutar uma destas duas hipóteses seria
similar a tentar desmontar e estudar o motor de um veículo enquanto ele se
encontra em movimento. É extremamente desafiador – e talvez sequer seja
realmente útil – realizar um exercício de futurologia em um cenário tão
incerto. Talvez a conclusão que possa ser extraída da querela entre
intelectuais a respeito do coronavírus seja a de que é necessário mais do que
um conjunto de reflexões ético-fenomenológicas ou existenciais a respeito
dos sentimentos experimentados pelas pessoas para a elaboração de

124
Nas relações internacionais, securitização é o processo pelo qual atores estatais
transformam assuntos que não são necessariamente essenciais para a sobrevivência de um
Estado em questões de “segurança”; assuntos securitizados com sucesso recebem
quantidades desproporcionais de atenção e recursos (inclusive, muitas vezes, recursos do
aparato repressivo de Estado), em comparação com assuntos não securitizados que causam
mais danos humanos. O termo foi criado por Ole Wæver, professor da Universidade de
Copenhagen, em 1993, tendo se popularizado desde então. Para uma introdução ao conceito,
ver WILLIAMS, 2003.

EM CASA lendo a p. 426


Isolad@s

prognósticos – ou para a promoção de programas e bandeiras – de cunho


político ou social.

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@S ORGANIZADOR@S

Emerson Campos Gonçalves é Doutor em Educação


(PPGE/Ufes), Mestre em Estudos de Linguagens
(Posling/Cefet-MG), Bacharel em Comunicação Social-
Jornalismo (PUC Minas) e Licenciado em Letras-
Português (Ifes). É autor dos livros “Convergência
infinita de mídias: um manual teórico para não jogar
seu conteúdo jornalístico no lixo” e “A morte do
jornalista” (poesias). É pesquisador do Nepefil/Ufes.

Robson Loureiro é Pós-Doutor em Filosofia pela


University College Dublin (2013-2014) e pela Universität
Leipzig (2018) e Doutor em Educação pelo PPGE/UFSC
com estágio sanduíche na University of Nottingham. É
coordenador do Nepefil/Ufes e professor na
Universidade Federal do Espírito Santo. Entre outros,
publicou os livros “A teoria crítica vai ao cinema” e “A
teoria crítica volta ao cinema”, ambos pela Edufes.

Mariana Passos Ramalhete é Doutora e Mestra em


Educação (PPGE/Ufes). É Licenciada em Letras-
Português (Ufes) e Pedagogia (Ufes), com
especializações na área educacional. É pesquisadora
do Nepefil/Ufes e do grupo de pesquisa
interinstitucional Literatura e Educação. É professora
do Instituto Federal de Educação do Espírito Santo,
campus Venda Nova do Imigrante.

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