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Discursos sobre a Ontologia do ser

social

Introdução

Os textos aqui reunidos são a coletânea de artigos


concluídos por mim após as discussões ocasionadas por causa
do meu primeiro trabalho elaborado em função dos
Fundamentos modernos da socialização. As ideias
perpetradas naquele livro foram distribuídas em seus 14
capítulos e nos mais diversos apêndices que redigi, que
aprofundavam a obra e direcionavam-na à discussão de
temáticas especialmente caras para a sociologia da
socialização que propus. As concepções de lá foram
elaboradas depois de pesquisas feitas e refeitas diversas vezes
e, à medida de seu pequeníssimo impacto editorial até a data
de hoje, não encontraram grandes obstáculos teóricos ou
oposições sérias, por mais que eu buscasse por críticos.

De qualquer forma, é tempo de ampliar os impactos


subsequentes que Fundamentos tem a ofertar à filosofia do
século XXI, tendo em vista as correntes que, parece-me,
crescem no Brasil contemporâneo 1 e as áreas que acabam por
1
Muitas vezes somos convencidos de que há, em nosso país, um
atraso fundamentalmente colocado sobre os departamentos de
filosofia do Brasil afora no que concerne a chegada dos temas em
voga no exterior. De fato, é verdade que as modas que repousam lá
fora chegam atrasadas aqui nos trópicos. Contudo não é sem esforço,
tangenciar aquela obra. Afinal, Fundamentos possui uma
magnitude que pode e deve ser explorada, tendo em vista que
as temáticas sociológicas que predispus lá não foram
totalmente elucidadas quando ancoradas sobre a rocha da
filosofia, especialmente no que abrange o assunto da
Ontologia.

Em verdade, chego a dizer que a mera possibilidade de


se discutir qualquer tipo de metodologia sociológica,
principalmente no que envolve teoria social, carece de algum
entendimento mínimo acerca da Ontologia do ser social. Não
à toa, os Discursos que apresento agora a vocês investigarão
os meandros filosóficos que cada vez mais impregnam as
raízes praxiológicas da sociologia axiomática. Dessa forma,
creio que poderei dar profundidade ao que penso ser de suma
importância. Quando enxergo as potencialidades de FMS
(Fundamentos modernos da socialização) em descrever tanto
a dinâmica quanto o estado atual dos fatos sociais, sou levado
a crer que a minha dedicação na explicação de minha teoria é
benéfica, pois leva o estudante e o pesquisador a um mais
elevado grau de entendimento sobre a realidade social.

O que, porém, são essas tais sociologia axiomática e


teoria social, que tanto incitam uma revisitação ontológica do
tema da socialização? Esse justo questionamento não pode
demorar a ser respondido, sob pena de qualquer coisa aqui
mencionada ficar sem razão de ser. Assim, dedico-me, nesta
Introdução, à explicação do que considero ser os dois
elementos supracitados e por que eles inauguram a
possibilidade de uma nova Ontologia do ser social a ser
explorada.

celeridade e respeito que novos trabalhos filosóficos sérios – que


diferem daqueles que simplesmente estão na moda – chegam aqui no
país e são estudados por alunos e professores de filosofia.
De início, portanto, digo que a sociologia axiomática
faz referência aos paradigmas inalienáveis advindos dos
axiomas da ação. Ela é a área da sociologia que estuda os
resultados sociais da ação em abstrato, sem as especificidades
históricas indicadas pela ocorrência do fenômeno. Afinal,
creio que o polimorfismo da ação humana não desfaz a
existência de uma lógica universal que a permeie, a torne
possível e seja anterior a ela. Em outras palavras: as variadas
atitudes e decisões dos seres humanos possuem uma base
sólida comum, i.e., uma estrutura lógica preexistente que
pode ser vislumbrada independente do fenômeno que a
carregue enquanto essência. Os fenômenos sociais, portanto,
possuem fatores imanentes a priori que fazem ser necessários
certos cuidados especiais2, discutidos previamente em
Fundamentos. É a sociologia que possui e que se aplica a
esses cuidados que chamo de sociologia axiomática.

Nesses meandros, a sociologia axiomática se conecta


com os fundamentos essenciais estudados pela praxiologia,
tendo como princípio filosófico 3 que tais fundamentos não

2
Já ouvi dizer – através de um senso comum que, creio, não pode
ser desmerecido, apesar de não possuir rigor científico que o
comprove – que especialistas tendem a supervalorizar os efeitos e os
objetos de suas áreas de atuação. De fato, quando digo: “fazem ser
necessários certos cuidados especiais”, pode-se fatalmente
compreender que caio nessa tendência. Contudo, escrevo o que
escrevo por ter certeza que, na verdade, é o descuido com esses
elementos que causa justamente o que a tendência diz gerar o
cuidado excessivo. É a ignorância acerca dos dados autoevidentes
que constituem a sociologia axiomática que produzem teorias que
dão muito poder aos sociólogos e engenheiros sociais. Os cuidados
que exijo são, na verdade, arestas aparadas que possibilitam o
melhor entendimento sobre as oportunidades e os limites da
investigação sociológica.
3
Não se deve ler o termo “princípio” com leviandade, pois não faço
referência a algum dogma arbitrário. A existência desse princípio
não antecede a análise filosófica que lhe é base, que nos permite crer
constituem tautologias ou juízos analíticos escolhidos ad hoc,
como dizem os neopositivistas. Pelo contrário: a axiomática
estuda as características basilares da constituição real do
mundo simbólico, de tal forma que sua compreensão
representa algo do entendimento acerca da passagem da
esfera subjetiva da vida individual até a objetividade dos fatos
sociais, que possibilitam a existência da sociologia e a
necessidade dela.

Em resumo: antes de estudar o estado do fato social, é


necessária a compreensão acerca de sua gênese. E mais: o
processo da gênese dos fatos sociais, já que regular e
universal, torna-se a própria urgência por uma sociologia
enquanto área de estudo autônoma4. A ação humana, por sua
vez, vinculada a essa área como sendo sua razão primeira,
possui regularidades que cabem ser demonstradas, que se
objetivam perante o olhar cuidadoso e indicam a existência de
uma igualmente regular objetividade do campo social. Foi
através da regularidade inata – praxiológica e metassocial –
da ação humana implicada sobre a sociologia que teci uma
nova crítica ao método durkheimiano e ao resultado de suas
investigações sociológicas. Da crítica, teorizei a sociologia
axiomática e então uma nova teoria social.

Assim sendo, digo que uma teoria social demonstra


suas configurações apenas a partir do estabelecimento da
sociologia axiomática, pois é um produto mais avançado de

na existência de juízos sintéticos a priori e superar as suspeitas –


justas, por sinal – dos neopositivistas lógicos.
4
Daí também que chego à conclusão de que qualquer discussão
metodológica em sociologia necessite de uma profusão de discussões
específicas que tangenciem a Ontologia do ser social. Nelas, os
axiomas da ação devem ser constantemente vislumbrados, a fim de
que as teorias subsequentes – das quais as teorias sociais fazem
parte – não sejam falhas.
seu desenvolvimento. Contudo, aquilo que considero ser
teoria social já está muito mais claramente esmiuçado pela
historiografia e pelas teses sociológicas elaboradas em geral,
mesmo que elas muito pouco tenham feito em prol da
axiomática. Afinal, ao mesmo tempo em que ela é um estágio
posterior à axiomática, não há como se ter por certo que
autores diversos, se atentando ou não à ação humana, não
acabariam cedo ou tarde por tecer suas próprias teses. Em
Durkheim, aquilo que critiquei tão veementemente – a
consciência coletiva – já fazia parte do que considero teoria
social, mesmo não fazendo quase nenhuma referência aos
ditames da sociologia axiomática corretamente entendida e,
na verdade, fazendo parte da própria suplantação da
axiomática no sistema durkheimiano.

Mas por quê, afinal? Ora, porque as teorias sociais são


o estado do processo de formação de hipóteses mais
exuberante da sociologia, que já trata de dar de bandeja ao
leitor e ao pesquisador o fenômeno social e sua dinâmica. Tal
estágio já entrega a interpretação de tudo e todos, dando
nomes e outorgando categorias aos mais diversos fenômenos
de natureza supostamente social. Contudo, se ela não faz
referência aos dados irredutíveis da ação humana, as teorias
sociais, ou teorias gerais das sociedades, permanecem vazias
de sentido. Elas apenas fazem sentido quando atreladas aos
aspectos gerais da lógica da ação, porquanto estas mesmas
que tornam a sociologia possível.

O que constitui, contudo, as teorias sociais é a forma


mais abrangente de explicação dos fenômenos sociológicos,
que demonstra as dinâmicas dos diversos resultados sociais
das ações humanas construídas. Enquanto a axiomática visava
conectar os axiomas da ação às suas consequências
sociológicas, a teoria social abarcará tais consequências num
bojo complexo, dinâmico e em si objetivo, posterior ao agente
social que o engendrou ou o desafiou subjetivamente.

De todo modo, não estou falando de pesquisa de


campo ainda, de estudo de caso. Não chegamos, até agora, no
momento em que a sociologia é dada a estudar, com
características historiográficas específicas, o episódio de certo
fato social e sua problematização. Os dados empíricos são
imprescindíveis para a empreitada científica que busca
interpretar alguma situação historicamente específica, o
recorte fenomenológico de algum fato social, por exemplo. A
teoria social se diferencia do estudo de caso, pois é
engendrada à generalização, ao entendimento de categorias
esperadas em todos os estudos de caso possíveis. Ora, isso só
é possível havendo regularidade. Ao buscar uma continuidade
razoável de eventos interconexos, causas e efeitos, o
sociólogo prescinde teoria social.

Da minha parte, tal como tenho dito, uma boa noção


acerca dos fundamentos axiomáticos da teoria social é
indubitavelmente imperioso para o pesquisador social. As
pesquisas pontuais, os estudos de caso, necessitam, no quadro
teórico maior que orienta a pesquisa empírica, dessas tais
duas categorias anteriores. O marxista opera segundo os
paradigmas que crê serem os mais eficientes à descrição
marxista da realidade dos fatos sociais. Da mesma forma
operam o estruturalista, o funcionalista, o pós-estruturalista...
As pesquisas de campo, portanto, feitas por profissionais
vocacionados pelos mais diversos teóricos, seguem
predileções específicas de cada sistema de teorias.

As ciências sociológicas enxergadas dessa forma,


penso eu, têm muito a explorar em cada uma de suas
divididas escolas. O resultado do que estou dizendo aqui é
uma divisão tripartite da sociologia: da axiomática até a
pesquisa empírica, passando pela teoria geral da sociedade.

No que tangencia tais questões que discuto, poder-se-á


confundir a axiomática com a Ontologia do ser social, tendo
em vista o fato de não haver divisão, até hoje, entre essas
valências teóricas da sociologia. A visão marxista clássica da
Ontologia do ser social poderia de fato ser considerada sua
axiomática, pois é das qualidades supostamente ontológicas
do trabalho que surgem as proposições de Marx que vão
diretamente em direção à sua teoria social, sem desvios. A
Ontologia como compreendida pelo universo marxista resulta
em específicas visões paradigmáticas acerca da aplicação
teórica e prática das categorias sociológicas. Se discernida
dessa forma, devo dizer-lhes ainda que a “axiomática”
marxista é muito mais bem elaborada que as pressuposições
elencadas por Durkheim e sua “consciência coletiva”.5

O que, todavia, diferencia a axiomática e a Ontologia


do ser social e o que me leva a falar sobre filosofia? Ora,
creio estar evidente que a axiomática não precisa
necessariamente ser enxergada com auspícios filosóficos,
enquanto a Ontologia faz parte do próprio modo filosófico de
investigação. A axiomática se encerra nas categorias
fundamentais inauguradas pela lógica inerente da ação
humana, ao passo que a Ontologia visa o entendimento do ser
social em si. Creio ser possível esse último intento posto
sobre o ser social, i.e., buscar conhecer o ser social por si só, e
creio também em sua importância para o melhor
entendimento das questões sociológicas abordadas em
Fundamentos. É da curiosidade infindável do ser humano que
surge essa digressão pós-axiomática da Ontologia do ser
social. Essa curiosidade, por sinal, é fruto da incapacidade
5
Eis um ponto que pode ser melhor discutido no futuro.
imanente de se responder tudo – sobre qualquer coisa –
através do método científico. A exemplo disso, permanecem
em Fundamentos todos os pontos em que a teoria que lá está
teve de parar por ter chegado em dados cientificamente
irredutíveis. Entretanto, tendo em vista que as dúvidas
filosóficas que se erguem são justas, permanece o fato de
haver uma parte essencialmente ontológica do agente social
de Fundamentos que deve ser estudada.

Bangu, Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 2023,


Brayan Sales.6

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Ensaio escrito dias após a feitura do artigo Sobre uma perspectiva
metodológica em economia: o apriorismo misesiano e o sintético a
priori – apresentado como requisito à obtenção do título de Bacharel
em Ciências Humanas – e durante o pré-lançamento da 2ª edição de
Fundamentos modernos da socialização.

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