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Sobre o amor

Charles Bukowski
Sobre o amor
Tradução de Valério Romão
Editado por Abel Debritto
Índice dos poemas

minha11
layover 12
o dia em que atirei uma fortuna pela janela 13
provo as cinzas da tua morte 16
o amor é um bocado de papel rasgado em pedaços 17
para a rameira que levou os meus poemas 18
sapatos19
uma coisa a valer, uma boa mulher 20
one night stand 21
a maldade da morte 23
o amor é uma forma de egoísmo 24
para a Jane: com todo o amor que tive, que não foi suficiente 26
para a Jane 28
advertência29
o meu verdadeiro amor em Atenas 30
mulher a dormir 33
uma festa aqui — metralhadoras, tanques, um exército
lutando contra homens nos telhados 35
para os 18 meses da Marina Louise 39
poema para a minha filha 40
resposta a uma missiva deixada na caixa de correio 43
todo o meu amor é para ela (para A.M.) 45
uma resposta a uma espécie de crítico 47
o duche 48
2 cravos 50
alguma vez beijaram uma pantera? 51
o melhor poema de amor que consigo escrever
neste momento52
espetando55
boa57
sorrindo, brilhando, cantando 60
uma visita a Venice 62
um poema de amor para a Marina 64
consigo ouvir o som de vidas humanas sendo rasgadas
em pedaços66
para aquelas três 68
o primeiro amor 70
amor73
em carne viva (para N.W.) 81
um poema de amor para todas as mulheres que conheci 83
fax86
uma para o engraxador 87
quem diabos é o Tom Jones? 90
sentado numa tasca junto à auto-estrada 92
uma definição 93
o meu velho 96
o fim de um caso breve 99
um para a de dentes de cavalo 102
oração para uma puta exposta ao mau tempo 104
cometi um erro 107
a deusa de metro e oitenta (para a S.D.) 109
miúdas quietinhas e limpinhas em vestidos de xadrez 111
esta noite 113
telefone pacífico 114
corcunda116
sereia118
sim119
2nd Street, perto de Hollister, em Santa Monica 122
deixar de me sentir um vibrador 123
um sítio para descontrair 125
o passanço 127
para a pequena 129
olá, Barbara 131
Carson McCullers 135
Jane e D
 roll 136
damo-nos bem 138
era porreiro 140
as minhas paredes do amor 143
encómio a uma mulher do caraças 145
amor147
elegia148
há quarenta anos naquele quarto de hotel 151
um mágico, desaparecido 156
sem sorte para isso 159
poema de amor para uma stripper 160
o amor esmagado como uma mosca morta 162
sapatos168
estore corrido 169
trepadeiras e treliças 173
virar177
oh, eu era um mulherengo! 179
poema de amor 183
um cão 184
o homem forte 187
o pássaro azul 193
a costureira 195
confissões198
minha

Ela jaz ali como um saco de batatas.


Consigo sentir a grande montanha vazia
da sua cabeça
mas está viva. Ela boceja, coça o nariz e
puxa para si os cobertores.
Em breve dar-lhe-ei um beijo de boa noite
e dormiremos.
E longe é a Escócia
e debaixo do chão as
marmotas correm.
Ouço os motores na noite
e através do céu uma mão
alva acena:
boa noite, querida, boa noite.

11
layover

Fazendo amor ao sol, o sol da manhã


num quarto de hotel
por cima do beco
onde os pobres catam garrafas;
fazendo amor ao sol
fazendo amor junto a um tapete mais rubro do que
 o nosso sangue,
fazendo amor enquanto os rapazes vendem manchetes
e Cadillacs,
fazendo amor junto a uma fotografia de Paris
e um maço de Chesterfield aberto
fazendo amor enquanto outros homens — pobres
tolos —
trabalham.

Daquele momento — a este…


podem ser anos dependendo de como são medidos
mas é apenas uma frase de regresso à minha mente —
há tantos dias
em que a vida trava, encosta, e se senta
e espera como um comboio parado nos carris.
Passo pelo hotel às oito
e às cinco; nos becos há gatos
e garrafas e vagabundos
e olho pela janela e penso
já não sei por onde andas,
e continuo a caminhar e pergunto-me
para onde vai a vida
quando isto pára.

12
o dia em que atirei
uma fortuna pela janela

e, disse, podes pegar nos teus tios e tias ricaços


e avós e pais
e em todo o seu petróleo de merda
e nos seus sete lagos
e nos seus perus selvagens
e búfalos
e em todo o Estado do Texas,
quero dizer, nos seus fuzilamentos de corvos
e nos teus passeios de sábado à noite
e na tua biblioteca minúscula
e nos teus vereadores corruptos
e nos teus artistas maricas —
podes pegar em todos eles
e no vosso semanário
e nos vossos famosos tornados
e nas vossas cheias imundas
e nos vossos gatos ululantes
e na tua subscrição da revista Life
e metê-los no cu, querida,
metê-los no cu.

consigo ainda manejar uma picareta e um machado (acho)


e consigo sacar
vinte e cinco dólares por quatro assaltos no ringue (talvez);
claro, tenho 38 anos
mas um pouco de tinta disfarça as madeixas brancas
no cabelo
e consigo ainda escrever um poema (às vezes),
não te esqueças disso, e ainda que
possam não render nada,

13
é melhor do que esperar por morte e por petróleo,
melhor do que caçar perus selvagens,
à espera de que o mundo comece.

ok, vadio, disse ela,


baza.

o quê? disse eu.

baza. fizeste a tua


última birra
estou farta das tuas birras de merda:
estás sempre em
personagem
como numa peça de O’Neill.

mas, amor, eu sou diferente,


não o consigo
evitar.

és diferente, pois!
céus, quão diferente!
não batas
a porta
à saída.

mas, amor, eu amo o teu


dinheiro!

nunca me disseste
que me amavas!

o que queres
um mentiroso ou
um amante?

14
não és nem um nem outro! fora, vadio,
fora!

… mas amor!

volta para o O’Neill!

dirigi-me para a porta,


fechei-a com suavidade e fui-me embora
dali, a pensar: tudo quanto eles querem
é um índio de madeira
para dizer que sim ou que não
e ladear a lareira

sem fazer grandes ondas;


mas não estás a ficar
mais novo, miúdo:
da próxima vez,
esconde
melhor
o teu jogo.

15
provo as cinzas da tua morte

as flores despontando estremecem


água súbita
pela minha manga abaixo
água súbita
fresca e limpa
como a neve —
enquanto as espadas
afiadas como caules
se enterram
no teu peito
e as doces rochas selvagens
avançam num salto
e
nos aprisionam.

16
o amor é um bocado de papel
rasgado em pedaços

toda a cerveja estava envenenada e o capitão morreu


assim como o oficial e o cozinheiro
não tínhamos ninguém para manejar as velas
e o vento de noroeste rompeu os panos como se estes
 fossem unhas
carambolámos à bruta
o touro rasgando as laterais do casco
e durante todo esse tempo num canto
um merdas qualquer estava com uma vadia bêbeda
 (a minha mulher)
ali a pinar
como se nada se passasse
e o gato não parava de olhar para mim
rastejando na despensa
por entre pratos batendo
pratos com flores e videiras pintadas
até que não consegui aguentar mais
e peguei no bicho
e atirei-o
borda
fora.

17
para a rameira que levou
os meus poemas

há quem diga que devíamos deixar de fora do poema


remorsos pessoais,
ficar pela abstracção, e há uma certa lógica nisso,
mas porra:
doze poemas pró caraças e eu não faço cópias e tens também
as minhas pinturas, as minhas melhores pinturas; é sufocante:
estás a tentar esmagar-me como a todos os outros?
porque é que não me ficaste com o dinheiro? É o que elas
 costumam tirar
das calças bêbedas dormindo adoentadas num canto
 do quarto.

da próxima vez leva-me um braço ou uma nota de cinquenta


não os meus poemas:
não sou o Shakespeare
mas um dia não haverá mais, abstractos ou o que quer
 que seja;
haverá sempre dinheiro e putas e bêbedos
até à última bomba,
mas como Deus disse,
cruzando as pernas,
vejo que fiz poetas de sobra
mas não muita
poesia.

18
sapatos

sapatos no guarda-roupa como lírios de Páscoa,


os meus sapatos sozinhos neste momento,
e outros sapatos com outros sapatos
como cães passeando por avenidas,
e só o fumo não basta
e recebi uma carta de uma mulher no hospital,
amor, diz ela, amor,
mais poemas,
mas eu não escrevo,
não me compreendo a mim mesmo,
ela manda-me fotografias do hospital
tiradas do ar,
mas eu lembro-me dela noutras noites,
quando não estava a morrer,
sapatos com saltos como adagas
ladeando os meus,
como essas noites intensas
podem mentir tanto,
como essas noites se transformaram finalmente
nos meus sapatos no guarda-roupa
encimados por sobretudos e camisas sem jeito,
e olho para o buraco deixado pela porta
e para as paredes, e não
escrevo.

19
uma coisa a valer, uma boa mulher

estão sempre a escrever sobre os touros, os toureiros,


aqueles que nunca viram um ou outro,
enquanto rasgo as teias das aranhas tentando chegar
 ao meu vinho
o zunzum dos bombeiros, maldito barulho rompendo
 a calmaria,
e tenho de escrever uma carta ao meu padre acerca
 de uma puta na 3rd Street
que não pára de me ligar às três da manhã;
escadas velhas acima, cu cheio de farpas,
a pensar em poetas de edições de bolso e no padre,
e atiro-me furiosamente à máquina de escrever,
e olhem olhem os touros continuam a morrer
e acabam com eles e criam-nos
como trigo nas searas,
e o sol é negro como tinta, como tinta negra isto é,
e a minha mulher diz Brock, por amor de Deus,
a máquina de escrever a noite toda,
como posso dormir? e rastejo até à cama
e beijo-lhe o cabelo desculpa desculpa desculpa
às vezes fico excitado não sei porquê
um amigo disse-me que ia escrever sobre
Manolete…
quem? ninguém, miúda, um tipo morto
como Chopin ou o nosso velho carteiro ou um cão,
dorme, dorme,
dou-lhe um beijo e faço-lhe uma festinha na cabeça,
uma boa mulher,
passado pouco tempo ela dorme e eu espero
pela manhã.

20
one night stand

a mais recente ferramenta pendendo da minha almofada


recebe a luz do candeeiro da rua pela janela por entre
 a neblina de álcool.

eu era a cria de uma puritana que me vergastava quando


o vento agitava folhas de erva que os olhos conseguiam ver
mexer e
tu eras
a rapariga do convento observando as freiras sacudindo
a areia de Las Cruces dos hábitos do Senhor.

tu és
o bouquet de ontem
tão tristemente
sovado. beijo os teus pobres
seios enquanto as minhas mãos tacteiam por amor
neste apartamento barato de Hollywood cheirando
a pão e gás e miséria.

avançamos por rotas memorizadas


os mesmos degraus velhos alisados por centenas de
passos, cinquenta amores, vinte anos.
e é-nos concedido um Verão bastante curto, e logo
é Inverno
de novo,
e tu caminhas sobre o soalho
pareces uma coisa pesada e estranha
e soa o autoclismo, um cão ladra
a porta de um carro bate…
algo nos fugiu inexoravelmente, tudo,

21
assim parece, e acendo um cigarro
e aguardo pela mais antiga maldição
de todas.

22
a maldade da morte

sou, quando muito, o pensamento delicado de uma mão


delicada
que almeja a corda de misturar, e quando
sob o amor das flores eu me quedar imóvel,
enquanto a aranha bebe a hora verdejante —
que repiquem sinos cinzentos de bebida,
que uma rã diga
uma voz morreu,
que as bestas da despensa
e os dias que têm detestado isto,
as esposas contrariadas de pesar irrestrito,
planícies de pequena capitulação
entre Mexicali e Tampa;
galinhas desaparecidas, cigarros fumados, pão fatiado
e não se tome isto por mágoa forçada:
coloque-se a aranha dentro do vinho,
bata-se de leve nos finos lados do crânio que tinham pouca
luz,
faça-se menos do que um beijo traiçoeiro
inscrevam-me para dançar
tu muito mais morta,
sou um prato para as tuas cinzas,
um punho cerrado para o teu ar.

a coisa mais imensa da beleza


é dar por ela desaparecida.

23
o amor é uma forma de egoísmo

vadiagem, a trompa de Eustáquio e a hera verde com insectos


mortos
e a forma como caminhámos esta noite
com o céu galgando nos nossos ouvidos e nos nossos bolsos
enquanto falávamos de coisas que não importam
e o eléctrico baloiçava e uivava a sua cor
que não notámos a não ser como uma coisa flaqueando
 o crepúsculo
enquanto mencionávamos o sexo por entre paralisias,
vadiagem, o fogo rubro, vadiagem a trompa de Eustáquio!
longe vão os dias, longe vai a hera verde com insectos mortos
e as palavras que dissemos esta noite e que não importam;
X 12, Púrpura e Ouro
OURO OURO OURO OURO OURO!
os teus olhos são ouro
o teu cabelo é ouro
o teu amor é ouro
o teu túmulo é ouro
e as ruas passam como pessoas caminhando
e os sinos tocam como sinos tocando;
as tuas mãos são ouro e a tua voz é ouro
e todas as crianças caminhando
e as árvores crescendo e os idiotas vendendo jornais
34256780000 oh enquanto estás
trompa de Eustáquio
fogo rubro
hera
verde com insectos mortos
púrpura e ouro
e as palavras que dissemos esta noite

24
estão a ir-se embora
por cima das árvores
perto do eléctrico
e eu fechei o livro
com o leão vermelho vermelho
junto aos portões de ouro.

25
para a Jane: com todo o amor que tive,
que não foi suficiente

pego na saia,
pego nas missangas
cintilantes em negro,
esta coisa que um dia se moveu
ao redor da carne,
e chamo mentiroso a Deus,
e digo que nada que se moveu
assim
ou que soube
o meu nome
poderia alguma vez morrer
na banal veracidade da morte,
e pego
no seu belo
vestido,
toda a beleza dela desaparecida,
e falo
com todos os deuses,
deuses judeus, deuses cristãos,
pedacinhos de coisas brilhantes,
ídolos, comprimidos, pão,
braças, riscos,
rendição instruída,
ratazanas no molho do prato de dois tipos que se passaram
sem qualquer hipótese,
sabedoria de colibri, sorte de colibri,
encosto-me a isto,
encosto-me a tudo isto
e sei:
o vestido dela sobre o braço:

26
mas
eles não
ma trarão de volta.

27
para a Jane

225 dias debaixo do chão


e sabes mais do que eu.

há muito que te retiraram o sangue


és um graveto seco num cesto.

é assim que isto funciona?

as horas de amor
neste quarto
ainda lançam sombras.

quando partiste
levaste quase
tudo.

ajoelho-me de noite
perante tigres
que não me deixam em paz.

o que tu foste
nunca mais acontecerá.

os tigres encontraram-me
e eu não me importo.

28
advertência

os cisnes afogam-se em água de esgoto,


retirem os avisos,
testem os venenos,
arredem a vaca do touro,
a peónia do sol,
arranquem da minha noite os beijos de alfazema,
mandem as sinfonias para o meio da rua
como pedintes,
afiem as unhas,
flagelem as costas dos santos,
atordoem sapos e ratos para o gato da alma,
queimem quadros deslumbrantes,
mijem na madrugada,
o meu amor
está morto.

29

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