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ERGUE A CABEÇA

-
Um projeto de adaptação do dramaturgo Carlo Muñoz G.
História original de Ana Moreira
Em tempos de pandemia ficar em casa da amiga
é um grande programa para o sábado a noite.
- Emília Bôto

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Dramatis Personae

ANDREIA SOFÍA Uma mulher forte, desafiadora, mas ao mesmo tempo contida. 35
FRANCISCO anos, com uma vida moderadamente estável
, independente e decidida. Ela fica calada sobre muitas coisas
que gostaria de dizer, mas finalmente o faz. Ao longo da
dramatização ela vivencia uma evolução entre o sarcasmo para se
comunicar e a forma direta (e até ofensiva) de dizer as coisas.

LUÍSA MARGARIDA Mulher intelectual e poetisa, mas não gosta de falar muito. 31
MENDES anos, rancorosa, às vezes séria e hostil. Utiliza muitos sons de
boca, sendo até sugerido que a atriz invente uma “muletilla”
(dizer uma frase ou palavra constantemente) se quiser. Sempre diz
uma frase que dá sentido ao conteúdo da conversa. Muito
eloqüente, culta e refinada.

EMÍLIA ANA BARBARA Joven, despreocupada, loca y vividora. 25 años, inmadura, pero
impetuosa. No tiene conocimiento cultural, pero si un gran
conocimiento de vida. Le gusta el alcohol y la fiesta. Se sugiere
a la actriz mostrar siempre una actitud de que nada lo toma en
serio, todo es un broma para ella. Se recomiendan gritos, risas y
una antipatía con todas las personas con las que interactúe.

DANIEL DAVID NUNES Rapaz de 28 anos, perdido no mundo. Ele não sabe o que quer fazer
da vida, portanto, tudo o deixa preguiçoso, tudo é negativo, ele
tende a reclamar do sistema constantemente. Porém, sua preguiça
constrói uma reflexão profunda que caracteriza os jovens de sua
idade. Recomenda-se falar devagar, mas com confiança.

SERGIO PEDRO AMARO Homem de 32 anos, solteiro e com vontade de ter uma companheira.
Ele busca ser um galã em todos os lugares, gosta de surpreender
as pessoas e ser constantemente o centro das atrações. Ele tem
uma retórica muito habilidosa; é inteligente e interessante.

NARRAÇÃO : CATARINA GIRÃO

I
Manhã.

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Um pequeno apartamento partilhado por 3 mulheres.

Na cozinha, ANDREIA e LUÍSA preparam o pequeno almoço.

ANDREIA
Agora mesmo tudo flutua à minha volta. O espaço, as partículas, os
ponteiros do relógio, o número das horas digitais, o mapa
geográfico, as convenções do que é norte ou sul, o que é para cima
ou para baixo. As coisas são, estão, existem ao mesmo tempo. O que
é que me impede? O que é que realmente me está a impedir? Será o
passado que me enlaça as mãos, os pés, a alma? Às vezes, tenho
momentos em que todos estes nós mentais desaparecem e tudo parece
possível, mas depois vem o café e o cigarro aqui na cozinha e fico
horas parada enquanto a vida acontece lá fora. Mais um e outro
cigarro e outro café porque preciso e de repente já é tarde e
doem-me as costas de estar aqui; no mesmo sítio, sentada, com
frio, curvada sobre o ecrã luminoso do telemóvel. Então
convenço-me que amanhã, amanhã é que é, amanhã o dia vai correr
bem, algo de bom vai acontecer. Mas não, é tudo mentira. Amanhã o
dia vai ser igual. Constante “desmonoramento”, nem consigo dizer
bem esta palavra à primeira, outra vez, em constante
desmoronamento. Tudo, a vida toda a cair, a vida toda sempre a
cair e a seguir, apanhar os cacos das partes do corpo que se
partem. Estou tão cansada. Mais vale varrer tudo para debaixo do
tapete e abrir outra garrafa de vinho. Parece-me que a menina é
uma thrill seaker disse-me o uma vez o terapeuta, um homem, ou por
outra, um senhor de pullover calçado com sapatos género mossaquin.
De perna cruzada, ar de quem fuma charuto e bebe whisky à noite
com os seus companheiros vestidos com os mesmos sapatos e as
mesmas calças tom caqui.

LUÍSA
Mania eterna de nos classificar. Sempre que fui ao teatro vi e
escutei os mesmos textos. Antigos, muito antigos e carregados de
mensagens que insistem em ressoar no nosso tempo presente. As
personagens masculinas enaltecidas em grandes heróis
transformadores e transformados. As atrizes fazem as donzelas, as
vítimas, as mães, as putas, as filhas, as enfermeiras. Apetece-me
assobiar alto, bem alto no meio do público. Uma vez assobiei!
Assobiei sim, no meio do teatro, no início do que ia ser mais um
desses textos de um autor europeu conceituado morto há décadas e
um encenador duvidoso. Mas querida, tens de conhecer os clássicos,
não é? Claro que tenho de conhecer os clássicos, amor. E
conheço-os. Estudei-os no liceu, no mestrado e no doutoramento.
Metade da vida a ler e a ver os clássicos, eles estão por todo o
lado! Estão em primeiro lugar no ranking de qualquer pesquisa que
faças. E não duvido, há que conhecer as formas do passado para
compreender e com alguma sorte adivinhar o futuro. Mas a verdade é

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que ninguém consegue adivinhar o que aí vem. Esta fratura, esta
ferida no espaço e no tempo vai deixar nos cicatrizes para sempre.
Como é que os clássicos nos vão ajudar agora? O que é que nos
podem dizer? Como é que nos podem ajudar? Que ideias podemos
encontrar neles que nos ofereça algum conforto ou esperança, um
vislumbre de outras possibilidades de vida? Toda uma nova
narrativa é necessária para nos reorganizarmos.

EMÍLIA entra na cozinha.

EMÍLIA
Bom dia.

ANDREIA e LUÍSA
Bom dia!

EMILIA
Acho que está um rapaz a dormir no meu quarto.

ANDREIA e LUÍSA
Bom trabalho!

ANDREIA
Tens aí café, serve-te.

LUÍSA
Até que horas foi ontem?

EMÍLIA
Não sei, mas era quase madrugada quando chegamos a casa.

LUÍSA
Podiam ter sido apanhados.

EMÍLIA
Nós tínhamos uma declaração para circular até tarde e
aproveitámos.

ANDREIA
E como se chama o moço?

EMÍLIA
Ah…

ANDREIA e LUÍSA
Ela não se lembra!!

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EMÍLIA
Lembro-me, chama-se…

LUÍSA
Deu-lhe uma branca.

EMÍLIA
Espera! Então ele é o....não. Ele disse que se chama...espera,
espera, espera…Daniel!

ANDREIA e LUÍSA batem palmas

EMÍLIA
O jovem e belo Daniel, que após uma noite agitada se encontra
adormecido no quarto da vossa amiga, afirma que vem de boas
famílias. Seguramente o menino de oiro dos olhos da mamã, agora
transformado num adulto ainda cheio de sonhos, ambição, promessas
e certezas do que vai ser quando for grande. Aliás, ele já é
imensa coisa. Tem-se em muito boa conta como tive a oportunidade
de reparar na nossa longa conversa, isto é, monólogo, onde durante
pelo menos um par de horas escutei com alguma, mas não toda a
atenção, a sua incrível história de vida, absolutamente banal e
igual a tantas outras.

ANDREIA
E o que faz, exatamente?

EMILIA
Exatamente não sei. Diz que anda à procura.

LUÍSA
Andamos todos à procura.

EMÍLIA
Neste momento escreve e produz conteúdos para plataformas
digitais. Cria uma torrente de imagens intermináveis para o vácuo,
para o abismo do infinito virtual.

LUÍSA
Ah, esse género.

ANDREIA
Vou sair, precisam de alguma coisa da rua?

EMÍLIA
Vais fazer o quê lá fora?

ANDREIA

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Tenho coisas para fazer.

EMÍLIA
Vai ser produtiva?

ANDREIA
Sim, vou aproveitar o dia. Vou produzir imenso, marcar datas,
reuniões, projetos, possibilidades de futuro!

EMÍLIA
Que brava, tão proactiva, tão cheia de energia que ela está hoje.
Tiveste uma bela noite de sono, foi? Já eu devo ter dormido umas
três horas no máximo, não consigo pensar no presente quanto mais
no futuro.

ANDREIA
Deixa de dizer disparates. Querem que traga alguma coisa, ou não?

LUÍSA
Traz álcool.

ANDREIA
Para desinfetar?

LUÍSA
Para a alma!!

EMILIA
Traz vinho, mulher! Queremos beber!

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II

Andreia está sozinha sentada num banco de jardim. Ouve-se o latir de um


cão grande ao longe, alguns risos de crianças, o som grave da buzina de um
barco muito distante. O tempo passa. Andreia abre um livro, lê algumas
linhas e desiste. A sua atenção volta-se para o telemóvel que tira do
bolso juntamente com os auscultadores. Olha em redor, não vê ninguém,
coloca os auscultadores e começa a dançar. O volume sobe, o ritmo da
música aumenta e Andreia dança agitada.Subitamente Andreia pára. A música
continua, mas Andreia fica imóvel até a canção terminar. Silêncio. Andreia
sai.

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III

ANDREIA está no supermercado. Está no corredor dos doces, olha para as


tabletes de chocolate. Sérgio surge ao fundo do corredor, repara em
Andreia. Aproxima-se.

SERGIO
Qual é que vais escolher?

ANDREIA
Não sei.

SÉRGIO
Gosto deles com setenta por cento de cacau.

ANDREIA
Prefiro de leite com frutos secos.

SÉRGIO
Há quanto tempo não fazes uma refeição completa?

ANDREIA
Isso é um convite?

SÉRGIO
Talvez.

ANDREIA
Sabes cozinhar ou mandas encomendar?

SÉRGIO
Prefiro ser eu a fazer. O serviço de entregas é um mecanismo que,
em regra geral, promove o trabalho precário e alimenta
preguiçosos. Gostas mais de carne? Peixe? Vegetais? Comida
asiática? Francesa, fusão? Já sei, gostas de comida italiana. Já
alguma vez foste à Sicília?

ANDREIA
Roma.

SÉRGIO
Se quiseres levo-te.

ANDREIA
As fronteiras estão fechadas.

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SÉRGIO
Há sempre uma maneira.

ANDREIA
Tens um avião privado?

SÉRGIO
Talvez.

ANDREIA
Obrigada, mas estou bem assim.

SERGIO
E recusas assim, de forma tão displicente tão generosa oferta?
Olha que isso é raro nos dias de hoje. Até mesmo incompreensível.
Qualquer outra pessoa no teu lugar nem sequer hesitava. Estou a
ver que não és uma pessoa curiosa. Que não queres sair do mesmo
lugar. Falta-te aí alguma ambição, desejo de aventura.

ANDREIA
Qual é a contrapartida?

SÉRGIO
Estás desconfiada?

ANDREIA
Estou atenta.

SÉRGIO
Queres manter as tuas opções em aberto, é isso? Mas pensa bem, que
outras alternativas tens? O que te espera esta noite? Vais fazer o
quê, vais para casa? Vais ficar em casa, no sofá, a beber vinho, a
comer chocolate e a ver séries no computador até adormecer.

ANDREIA
Nada é de graça. Se é de graça é porque o produto és tu. És tu que
és vendido, explorado, consumido. Assumes que tens algo que eu
queira, assim, sem pedir nada em troca? Há sempre uma troca, um
câmbio, mesmo que não seja evidente, mesmo que pareça inocente,
bem-intencionado, há sempre alguém que lucra enquanto o outro se
perde em ilusões.

SÉRGIO
Quando não conhecemos, presumimos. Para facilitar diz-me tu: o que
gostavas de ter?

ANDREIA
Neste momento não quero ter nada. Quero apenas ser.

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SÉRGIO
Mas isso é fácil, precisas apenas de visibilidade. De ser visível
para os outros, para os teus amigos, para a família, para os
colegas e já agora os inimigos. Não há fronteiras que te possam
impedir de chegar a todos os cantos do globo. Basta seres
original, genuína, autêntica, tu própria! Eu tenho uma plataforma
genial que te pode permitir fazer isso, basta fazeres uma
subscrição para apareceres.

ANDREIA
Não, não, não. Acho que percebeste mal. Não quero aparecer, quero
ser.

SÉRGIO
Mas podes ser o que tu quiseres. É só criar uma conta e
estabelecer a tua imagem num contexto por ti selecionado através
de um serviço customizado ao pormenor para satisfazer as tuas
necessidades e refletir o teu perfil. A escolha é sempre tua. És
tu quem decides. Passas a ser em qualquer lugar, divulgada em
qualquer parte, expandida, ilimitada, infinita.

LUÍSA e EMÍLIA entram no supermercado. Interrompem a conversa entre Ana e


Sérgio.

LUÍSA para Andreia


Estávamos a ficar preocupadas contigo!

EMÍLIA
Pensávamos que tinhas sido levada para a esquadra, já viste que
horas são? Temos de voltar.

SÉRGIO
Ofereço-me para ir com vocês. Faço o jantar para todas.

EMÍLIA
Não te conhecemos de lado nenhum.

SÉRGIO
Tenho o teste negativo e a prova de circulação.

LUÍSA
Quanto tempo tem o teste?

SÉRIGIO
Cerca de quarenta e duas horas.

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EMÍLIA
Esse carrinho de compras cheio é teu?

SÉRGIO
É.

LUÍSA
Anda, podes vir.

ANDREIA
O quê?

EMÍLIA
Deixa-o vir. Vamos pagar.

SÉRGIO
Eu pago.

EMILIA e LUÍSA
Nós aceitamos.

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IV

Cozinha.
Entram ANDREIA, LUÍSA, EMÍLIA e SÉRGIO carregados com os sacos cheios do
supermercado. Pousam-nos em cima da mesa. Começam a arrumar as compras.
Varias iguarias saem dos sacos de plástico e são colocadas no frigorifico e
nos armários. Outras ficam em cima da mesa prontas para serem
confecionadas. Pratos, talheres, copos e panelas começam a ser dispostos e
organizados para utilização.

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V

DANIEL acorda no quarto de Emília, acende a luz. Ouve ao burburinho


animado que vem da cozinha. Levanta-se da cama, olha em redor.

DANIEL
Que horas são? Onde está o meu telefone? A minha camisa? As minhas
calças.

DANIEL escuta os risos que vêm do lado de fora. Encontra a roupa espalhada
pelo chão e em cima da cama, veste-se. Descobre e pega no telemóvel caído
ao lado da cama.

DANIEL
É tarde. Perdi o dia, não fiz nada. Maldita esta sensação inútil.
Vinte emails novos, sete chamadas não atendidas, quinze mensagens
novas, mais as notificações. Devia ser proibido pedir respostas ao
domingo. Por lei o direito a desligar, à desconexão. Infindável
ansiedade de responder, de me disponibilizar para esse efeito e
ocupar o meu corpo com isso. Quando pensas que já respondeste a
tudo, lá vem mais uma notificação para te assombrar e que não vai
sair da tua cabeça enquanto não a resolveres. Podes fingir que não
a vês, mas a pulga está lá à tua espera. Há dias que os meus olhos
queimam, as minhas mãos doem, os meus ombros fecham e na minha
cabeça surge uma névoa. Ainda tenho tempo, não me vou deixar
ficar, ainda posso tentar e aproveitar o resto do dia.

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VI

Na cozinha, os preparativos para o jantar continuam.

ANDREIA
Antigamente, quando ainda havia mundo lá fora, os espetadores eram
a maioria. Eram o sujeito da estética, os consumidores de objetos
artísticos. Precisavam de ser constantemente alimentados por
objetos de contemplação. 0 genial é que tudo isso mudou e agora
cada um de nós possui, de forma acessível e supostamente grátis,
as ferramentas necessárias para nos transformarmos em obras,
marcas, objetos.

SÉRGIO
Porque preferes não satisfazer os desejos estéticos dos outros? És
uma pessoa desagradável?

ANDREIA
Isso soa-me a um monstro triturador que não me apetece alimentar.

SÉRGIO
Porquê tanta resistência? Imagina só, cada individuo com as suas
singularidades, transforma-se num duplo artificial, digital, uma
espécie de simulacro de si próprio para efeitos de ornamento,
comunicação e discussão num espaço virtual infinito. É bela esta
ideia, é enorme.

ANDREIA
Essa conversa faz-me dores de cabeça.

SÉRGIO
Isso é fome.

ANDREIA
Dói-me o corpo de não dançar.

SÉRGIO
Não precisas de corpo, a biologia tornou-se superficial. É redutor
pensar apenas nessa fórmula, por isso que te dói. Permaneces por
vontade própria fechada num mundo pequeno e irrelevante se
comparado com as novas possibilidades.

ANDREIA

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Sinto-me amarrada a um presente que se reproduz a si mesmo e não
nos conduz a lado nenhum.

SÉRGIO
Precisas mesmo de desconstruir, quer dizer descontrair.

LUÍSA
Vou abrir o vinho!

SÉRGIO
Abre o branco. Vou preparar uma iguaria típica da Sicília.

EMÍLIA
Que maravilha. Amo, adoro, corações e tudo o mais.

LUÍSA ergue o copo cheio.

LUÍSA
À destruição dos limites e das autoridades impostas!

EMÍLIA
À desobediência!

ANDREIA
Ao questionamento.

Brindam. SÉRGIO começa a preparar o jantar. ANDREIA, EMÍLIA e LUÍSA ajudam.

SÉRGIO
O incrível mercado de Catânia na Sicília tem para oferecer o
melhor, o mais fresco peixe e marisco que possam imaginar. Um
verdadeiro luxo à beira-mar, junto dos socalcos de lava produzidos
há milénios atrás pelo glorioso Etna. Esta noite, sugiro uma
cataplana de crustáceos, uma bela salada de polvo regada com
azeite extra virgem e uma parmigiana de peixe espada. Para
acompanhar, o Geneviève reserva branco que já têm no bico.
Atenção, esse não veio do supermercado. Tive de o encomendar.
Mandei logo vir várias garrafas, gosto de partilhar as coisas boas
da vida.

LUÍSA
Está ótimo! Fresco, floral, doce, fortificado. Alexandria?

EMÍLIA
Uma das videiras mais antigas, geneticamente modificada e com
origem no Egipto. Uma casta bastante comum, mas de muita qualidade
e ainda presente.

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Entra DANIEL.

DANIEL
Estou cheio de fome.

LUÍSA
Apetite é sinal de saúde.

ANDREIA e LUÍSA
Olá Danieeeel...

SÉRGIO
Não sabia que havia mais um. Estavas escondido?

EMILIA
Estava a descansar, bem que precisava.

DANIEL
Na verdade, devia estar a trabalhar. Não publiquei nada hoje, não
sei o que se passa no mundo. Quantas horas dormi? Nove? Onze?
Dormir o dia todo é contraproducente é pior que procrastinar.

SÉRGIO para Emília


Acho que o teu amigo não se sente bem.

DANIEL
Quem és tu? Não te vi, não estavas cá ontem.

SÉRGIO
Se estás com fome chegaste na altura certa. Sou o cozinheiro desta
noite e tu, já que apareceste, também estás convidado. Confio que
não sejas esquisito com a comida.

DANIEL
Por estes dias não sou esquisito com nada.

SÉRGIO
Gostas de tudo, não é?

DANIEL
Diria que sim.

SERGIO
Bem me parecia.

EMÍLIA
Ele não tem muito sentido crítico, mas é bom rapaz.

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LUÍSA
Valha-nos isso! Não vejo mal nenhum em ser descomplicado.

DANIEL
É um bocado arrogante pensarem que não tenho sentimentos.

EMÍLIA
Isso do sentir está ultrapassado, o que importa aqui é a
experiência. Neste momento estás a experienciar um buraco no
estômago, uma ausência, um vazio na tua existência que ainda não
foi alimentada. Precisas de comer meu amor. Senta-te aí, tira um
copo e serve-te.

ANDREIA
É melhor abrir outra garrafa.

SÉRGIO
Esta ocasião merecia uma história.

Os preparativos para o jantar avançam. Sentados à mesa começam a servir e a


comer.

LUÍSA
Confesso que me sinto um pouco ansiosa. Esta experiência
gastronómica, este pequeno evento deixa-me inquieta como se o
corpo se apercebesse de um perigo eminente. Sinto-me em alerta
como se algo fosse acontecer. Ao mesmo tempo há uma sensação
familiar, calorosa, agradável. Uma sensação antiga. Uma memória
distante sobre outros momentos e conversas semelhantes, pequenas
repetições de circunstâncias com outras pessoas, se calhar as
mesmas, mas noutro lugar.

DANIEL
Não me importo de fazer uma história. Acho importante documentar e
partilhar as nossas experiências, mesmo as mais insignificantes.
Ler o jornal, tomar um café, passear o cão, apanhar-lhe o presente
para dentro do saco do lixo, cheirar uma flor, fazer um ovo
estrelado. Dos instantes mais íntimos até aos episódios cheios de
força coletiva.

SÉRGIO
Nada é íntimo.

DANIEL
A necessária e importante construção de um arquivo das nossas
memórias.

LUÍSA

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Quem é que mais tarde vai decidir o que é relevante ou não? Quem é
que programa e organiza as memórias numa linha cronológica? Que
linha cronológica? De quem? A partir de que lugar? Quem é que faz
a narração?

SÉRGIO
Nada voltará a ser íntimo. Nunca mais.

ANDREIA
Toda uma geração que nunca vai conhecer a intimidade.

DANIEL
A intimidade pede privacidade.

SÉRGIO
O privado não existe.

ANDREIA
Se és privado és suspeito. Tornas-te num alvo fácil para
atormentar, julgar e opinar. Formam narrativas sobre ti para
preencher aquilo que não conseguem saber. Sentem-se ofendidos por
não partilhares, por lhes negares a tua intimidade e inventam-te
histórias pouco lisonjeiras. Assumem que tens algo a esconder e
começa toda uma perseguição. Quase como uma caça às bruxas, essa
engenhosa desculpa medieval para o femicídio.

Com o avançar da refeição, tornam-se cada vez mais animados.

LUÍSA
Lá está! As bruxas! Outra ideia de narrativa repetida e
interiorizada até aos dias de hoje. As bruxas, as górgonas, as
harpias, as fúrias, as sereias. Criaturas que vinham para
maldizer, seduzir e amaldiçoar o destino dos homens ao mesmo tempo
que atrapalham as aventuras épicas dos nossos heróis.
Mulheres a serem vencidas, dizimadas, mortas! Elas próprias muitas
vezes já vítimas de uma maldição qualquer que as atirou para a
condição de criatura. Muito provavelmente por terem renunciado aos
avanços amorosos de um Deus qualquer que se achava por direito
divino exercer posse sobre uma pobre mortal ou até mesmo uma
divindade com quem partilhava os privilégios do Olimpo.

EMÍLIA
A magia dos contos de cautela. A propaganda do aviso. Cuidado! Não
saias do caminho, não atravesses o jardim à noite, dá a volta, vai
pela luz! Não vás sozinha, olha que te vais arrepender, tem medo,
não questiones, obedece. Ou pensas o quê? Que podes ocupar assim à
vontade o espaço público sem sofreres consequências?

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SÉRGIO
Vocês as três podiam fazer um programa, um direto.

ANDREIA
Porque não? Se calhar já está na altura de me render.
SÉRGIO
Finalmente! Brava! Muito brava! Mais tarde ou mais cedo acabam
todos por se render. Uns dizem que é por motivos de trabalho,
outros por vaidade, outros para estarem em contato com a família,
amigos, os amantes ou com aquele amor distante. Não interessa
muito se publicas fotos tuas, dos teus gatos, das festas, do
recém-nascido, citações de autoajuda, filosofia de bolso, o teu
novo trabalho, promoção ou se estas só a observar. Na verdade, é
tudo a mesma coisa. Cedem e submetem-se exatamente pelos mesmos
motivos, o que nos move é o mesmo propósito, o combate desenfreado
pela atenção, que toda uma multidão de espectadores nos veja e
adore. Queremos ser vigiados, vendidos, comprados, queremos
atenção vinte e quatro horas por dia, todos os dias para sempre.

ANDREIA
Mas tenho uma condição.

SÉRGIO
Claro que tens. Todos nós temos.

ANDREIA
Se vou renunciar a minha privacidade, a minha existência singular
para uma plataforma regida por zeros e uns, manipulada e
alimentada por um sistema antropofágico preciso de garantias.

SÉRGIO
Sou apenas um simples coletor, uma espécie de angariador de
assinaturas. Mas diz-me, faço o que estiver ao meu alcance para
que também faças parte do nosso pequeno e engraçado culto.

LUÍSA
Agora sim, chamaste a coisa pelo nome certo! A prática de um
determinado comportamento em redor de determinados assuntos,
sujeitos ou objetos. A adoração de determinados elementos e
matérias através de rituais que envolvem ofertas, veneração,
procissões e a construção de templos.

EMÍLIA
Isso requer crença.

LUÍSA
Requer sacrifício.

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ANDREIA
Daniel, fazes o favor de filmar? Queremos fazer um direto.

Surge um som de uma sirene de aviso vindo da rua. A luz da cozinha


apaga-se. Silêncio. Passado um minuto, acende-se a luz de
emergência. A lâmpada é fraca, intermitente e ruidosa devido ao
mau contato. Andreia sobe para cima da mesa, caminha por cima dos
pratos, do que restou da comida, por entre as garrafas e os copos
de vinho. Emília e Luísa juntam-se a ela. Daniel senta-se numa das
pontas da mesa. O corpo de Sérgio jaz morto, ensanguentado a um
canto.

ANDREIA
“A Lua tem um ar muito estranho esta noite. Não tem um ar
estranho?

LUISA
Dir-se-ia uma mulher louca, uma mulher louca à procura de amantes
por todo o lado.

EMILIA
E está nua. Está completamente nua. As nuvens estão a tentar
cobri-la, mas ela não quer.

ANDREIA
Cambaleia através das nuvens como uma mulher embriagada.

LUÍSA
Tenho a certeza de que anda à procura de amantes. Não cambaleia
como uma mulher embriagada? Parece uma mulher louca, não é?”

ANDREIA
Não queremos fazer parte de plataformas, não nos queremos
subscrever e oferecer o nosso conteúdo. Não nos vamos desvalorizar
em troca da gratificação instantânea e cair nessa armadilha da
oportunidade disfarçada de promoção. A prática vigente da
autoexploração dos corpos e do pensamento. O retrato transparente
com a legenda redundante que sublinha mais uma mensagem inspirada,
motivacional, vulgar.
Narrativas vazias, embrutecidas, repetitivas. Falsos altares de
adoração permanente. Vinte e quatro sobre vinte e quatro horas por
dia, trezentos e tal dias por ano. Um papiro, um rolo infinito, um

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precipício para a escuridão. Ergue a cabeça rainha, senão a coroa
cai. Levanta os teus olhos do poço e lança o teu olhar para o
horizonte, para o teu futuro, o nosso futuro. Não, não há. Não há
retorno, mas também não desejo voltar atrás. Sim, de acordo. Há
que perceber as formas do passado para repensar o futuro, mas
estou aborrecida das baladas retro, das modas retro e dos anos
antes que nos aprisionam numa nostalgia inútil sobre um tempo
perdido. Pequenos truques de propaganda que operam para que não
saias do mesmo lugar, para que não imagines outras hipóteses. Um
algoritmo para te encerrares sobre ti mesma, que te guarda
confortavelmente numa caixinha que se encaixa apenas noutras suas
semelhantes e onde nada de diferente te pode incomodar. Que bom,
que maravilha, que perigo, não podemos ser assim tão inocentes. A
banalidade da auto-monumentação através da existência num estado
de constante exibição. Não nos vão capturar dentro dos vossos
dispositivos, dentro do bolso de um casaco qualquer afundados
nesta ilusão da multiplicação dos ecrãs. Queremos permanecer
assim, tão dóceis e cúmplices perante a construção de uma ordem
artificial pronta para nos cilindrar? Não reconheço a hierarquia
nem tenho de satisfazer essas ou outras expectativas. Quero o meu
corpo de volta. Vamos voltar para a rua.

FIM

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