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revista literária
N.º 7
SEMESTRAL
2013 /01
ARTIGO
LANÇAMENTOS
POESIA
CONTO
BIBLIOPHILIA
HAICAI
ENSAIO
expediente
EDITORES
francisco mariani casadore
marcos mariani casadore
COLABORADORES
os autores dos textos publicados na presente edilçao estão listados,
por ordem alfabética, nas páginas finais da revista.
IMAGEM DA CAPA
retirada do acervo pessoal dos editores.
APOIO À PAGINAÇÃO:
ACESSE TAMBÉM
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marcelo feres
denise freitas
manifesto
a classe poética reivindica para si
o direito de ter
preguiça
tarde
a preguiça puxava um cão
pelo assobio
acenando
os postes
pede um fogo-paulista
e um cigarro solto
tomou de um gole só
bateu com força o copo
e morreu ali mesmo
tempo de amoras
tempo de amoras
estevão daminelli
a janela do mundo
Há uma janela que se abre em promessas,
em que língua se segredam que não as escuto,
só oiço as mãos carpindo ósseas e servas,
cavando por pedras as sepulturas; assim
se espartilham os sonhos, por vezes
cedem-se, por vezes matam-se, enquanto
afugentada pelos beirais, corre exânime
a dor em gritos açoitados; há uma janela
descendendo as suas cortinas, mortalhas
de corpos donde se alçam os impérios;
deitados sobre a terra são apenas homens,
em pés simples e desfolhados, que a noite
sempre descoroa; há uma janela que se despe
de versos, arremessados como fímbrias
mortas ao humedecer da tarde, estendo-lhes
os braços até onde chega a vida, num
gesto pobre e de tão pouco.
II
Todo o pensamento corre para trás,
na sua dança boleada e infinda,
gravitando a luz que de si mesmo
traça, na sombra de um desejo
em fuga; as palavras abraçam-se
na ardência do presente, furtiva
presença que o poema espanta,
no enlaço breve do momento antes
a ser apenas tudo que seja; frágil
como a alegria volúvel e de
ninguém, que só se tem no
embargo de amar, a vida ansiada
e errante, a alma peregrina e
incessante, de um caminho
largo e sem chegar;
helena barbagelata
epitáfio nº 1
Aqui jaz um homem
Que gostava de descer a rua
Se equilibrando no meio fio.
Nunca entendeu de Wall Street,
Mas no seu peito tocava uma orquestra de jazz.
Onde você
estacionou seus lábios
depois da chuva?
Na quietude
soam os passos
de folhas secas
Neblina noturna
sufoca a noite
só eu respiro
Às vezes, quase dá
pra ver o firmamento
se movendo
yuri amaury
profissão:
dante ciclo. No entanto, com a placenta
literária quase a explodir um novo filho,
as palavras fluíam-lhe incessantemen-
escritor
te e ele obrava-as com a eficácia de um
mestre renascentista ao cinzelar a sua
tosca pedra que esconde um anjo no in-
terior. As gastas teclas do computador
O raiar da madrugada começava
eram atacadas com a mesma intensa
finalmente a carregar as pálpebras com
velocidade e dinâmica com que um ágil
um desactualizado sono, mas estando
pianista dactilografa ao tocar do fundo
possesso por um entusiástico delírio
da sua alma.
de criação não podia rejeitar a evidên-
Por entre enganos e correcções
cia da sua iminente inspiração artística.
ele mantinha a sua veemente caminha-
Estava a terminar o último capítulo do
da através do mundo ficcional que ele
seu tão ambicionado romance, não que
mesmo criara. A última página acabava
os outros não tivessem sido fruto de
de ser terminada. O Sol exibia os seus fi-
uma fervilhante ambição, mas este era
nos traços, que trespassavam os orifícios
o tal, aquele que o autor considerava a
da persiana e iam embater no armário
sua obra-prima. Logicamente que esta
das bebidas. Sim! Na verdade, depois
é uma sensação suspeita, pois após a
do exaustivo esforço e dedicação do
conclusão de qualquer romance ou no-
passado meio ano, duração de escrita
vela, entre outras iluminações, o escritor
do romance, após agonias e desmotiva-
é recompensado com uns breves minu-
ções, alegrias e convicções, só lhe ape-
tos orgásticos de sonho que colocam
tecia seguir o conselho do Sol e festejar
o Homem na posição de Deus. A auto-
com uma imaculada embriaguez que o
-satisfação de ter criado algo de supos-
deixasse caído durante outro meio ano.
tamente grandioso, o ansiado sentido
Em vez disso, enveredou por um
da sua vida. Também é lógico que esta
estranho raciocínio que ia exactamente
sacra ambiência se desvanece à medida
contra todas as reacções que esperava
que o tempo é ultrapassado por disper-
ter. Reflectiu acerca das personalidades
sas ideias que se vão concentrar num
a quem havia oferecido vida naquelas
outro fio condutor. No final, nasce um
páginas. Caso ele não se tivesse propos-
novo romance, uma nova empreitada
to a elaborar o romance, elas nunca se-
que vai ocupar um lugar neste redun-
22 MACONDO revista literária
riam notadas nem se suscitariam como é caminhar e que a maioria das pessoas
alvo de apreciação por parte do futuro ignora. Podia, no entanto, ter aproveita-
leitor. Nunca sequer haviam convivido do o carro dela, mas ela era senhora de
intimamente com o espírito do próprio um emprego sério, estável, rentável, e
escritor, visto que ele não teria tido a necessitaria da viatura para se locomo-
preocupação de as fecundar. ver até ao local de trabalho, enquanto
Com um raiado magenta a ornamen- ele, no seu difuso Universo, poderia fa-
tar-lhe os olhos, saiu de casa num ímpe- cilmente, e usufruindo mesmo, incutir-
to de Napoleão que decide conquistar -se no hemisfério de um transporte pú-
o Mundo, tendo como objectivo o pré- blico.
dio onde habitava o seu amigo e editor Lá estava ele, de pé, inserido na
Rui Gomes, o qual lhe vinha a implorar matilha humana que também aguarda-
nas passadas duas semanas a entrega va a chegada do transporte e que ran-
da recente escritura. gia os dentes quando alguma criatura,
A sua mulher ainda se deliciava inocentemente, dava dois descuidados
com o morno prazer que os lençóis de passos a mais e lhes usurpava o lugar na
flanela lhe causavam, mas não iria es- fila. Debaixo do seu braço direito emba-
tranhar de forma alguma a ausência do lava uma pasta de gasto cabedal cas-
companheiro, pois já conhecia bastante tanho, onde seguiam as suas preciosas
bem todas as contra-indicações de par- folhas.
tilhar a casa e a vida com um escritor. A manhã parecia presenteá-lo com
O homem das letras caminhou os uma peculiar frescura que desaparece-
cem metros que o distanciavam da pa- ra há algum tempo das suas fatigantes
ragem dos autocarros com a euforia de manhãs, ou talvez fosse, obviamente,
um adolescente que divaga para o seu mais uma vez o despertar do sentimen-
primeiro encontro amoroso. to da concretização. O Mundo podia
Por ele ser um verdadeiro escritor, instigá-lo à impaciência ou à raiva, com
e todos os verdadeiros escritores apre- um longo atraso do autocarro ou qual-
ciarem as longas e reflectivas caminha- quer dessas outras irritantes futilidades,
das, teria de deslocar-se desta interes- que hoje não conseguiria arrancá-lo do
sante forma. Interessante para quem seu elevado grau de dedicação. Havia
consegue sugar e dar uma utilidade algo maior, uma comunidade de meras
(será que a Arte é útil?) à banalidade que folhas que eram responsáveis pela sua
alegria. O meio de transporte não fa- transmitira. Era realmente bizarro e ca-
lhou a sua peregrinação de atraso. ricato para um escritor ser confrontado,
O autocarro estava sufocado de em pleno transporte público, com uma
pessoas. Anónimas individualidades, personagem dos seus escritos. O que
personagens principais da história das apetece é chegar junto da tal pessoa
suas vidas, e como ele gostava de clas- e perguntar-lhe pela neurótica mulher
sificá-las com suposições. Observá-las ou pela amante, ou como pensa resol-
na ingenuidade de não perceberem ver a situação do crime em que está
que são objecto de estudo e trabalho envolvido, obtendo como satisfatória
para um outro estranho que partilha o resposta uma cara de espanto e pânico.
mesmo percurso. Ao proceder à neces- Claro está que o criador sabe com uma
sária gincana para conseguir um claus- devida antecedência aquilo que irá
trofóbico canto onde pousar, deparou acontecer ao seu criado, ou seja, o seu
com um sujeito de meia-idade, bigode destino está traçado. Esta questão ser-
farfalhudo e cabelo curto aos caracóis, viria apenas para divertir o escritor com
ambos de tonalidade escura, que en- uma demonstração de superioridade,
carnava perfeitamente a personagem em relação ao personagem. Aquele cir-
do psicólogo que actuava no seu re- cunstancial homem era apenas a coin-
cém-terminado livro. Esta era uma nova cidência. A pergunta seria apenas uma
experiência na vida do artista e, para infrutífera vontade impedida pelas leis
maior cativação, o dito sujeito emanava da moral e da sanidade. Se é que exis-
uma expressividade que o escritor não tem escritores completamente sãos.
conseguira visionar durante o processo Impresso no seu rosto estava um
de recriação mental e era precisamente subtil sorriso, incompreensível e des-
a que se enquadrava no personagem. propositado para os restantes ocupan-
Se fosse realizado um filme daquela his- tes. Nada disso importava, se ele quises-
tória, aquele seria sem dúvida o actor se podia soltar gargalhadas de loucura,
mais que indicado. ele era superior a todas aquelas pessoas
Houve um fixo olhos-nos-olhos de que serviam algo ou alguém, enquanto
cinco segundos, que foi encerrado pelo ele gozava o poder de ambicionar esta-
sósia do médico. Já sentado na zona dos mais elevados, como transformar
central do autocarro, o autor digeria a ideias em palavras, e palavras em vidas.
ironia e coincidência que a situação lhe A lenta viagem prosseguia sem
invisível
E então tu levantas-te. Os meus
olhos reabrem-se. Tudo retoma a velo-
cidade normal, ou talvez o ritmo esteja
um pouco acelerado. Diriges-te ao bal-
Vi a tua boca. Ao longe. Sigo ago-
cão. Tenho-te ao meu lado.
ra pelas ruas atrás dos teus passos. Uma
“Um vodka ananás, se faz favor...”,
mulher de saltos altos passa por mim, a
diz a tua boca, cuidadosamente pintada
tentar a elegância entre os calhaus des-
de vermelho.
ta noite tão escura. Hesito entre ti e ela.
O barman prepara a tua bebida,
Decido por ti. O bar em que entraste
enquanto esperas ao meu lado. Entram
tem anjos atrás das garrafas. Parece que
tambores na música dos anjos e fazem
entoam uma melodia divina.
um barulho ensurdecedor. Olho para o
Sento-me ao balcão e peço um
whisky... Pelo canto do olho vejo outra
whisky puro. Não, duas pedras, afinal.
vez aquela que é a tua boca. Aquela que
Vejo-te lá ao fundo, numa mesa com
espera pelo vodka.
outras pessoas.
Fazes de conta que não, mas eu
Não sabes de mim. Mas eu olho
sei que já me viste. Os meus olhos pas-
para ti. O meu whisky está quase a aca-
sam do meu whisky para a tua bebida.
bar. Talvez eu não esteja aqui a fazer
Da tua bebida para os teus lábios, que
nada. Mas olho para a tua boca e tudo
a sorvem pela primeira vez. Dos teus
se reorganiza.
lábios para a tua garganta, por onde o
Concentro-me no objectivo. Hoje
líquido agora escorre. Da tua garganta
és tu. Amanhã pode ser outra qualquer.
para a tua voz, a dizer
Sem nenhum pretexto passo pela tua
“Obrigada!”
mesa. A tua boca sorri mas não é para
E dás meia volta com o copo na
mim. Volto ao balcão.
mão, ao mesmo tempo que os teus
“Outro whisky por favor.”
olhos passam semicerrados por mim.
Alguém carregou no pause e fica
Eu sei que já me viste. Não te preocupes
tudo em stand by. Tu e os teus amigos.
que eu espero. Não te preocupes que
Eu e o balcão. Menos a cinza e o fumo,
eu espero por ti.
sempre em mutação. Acendo mais um
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contos
São mais cinco whiskies antes dis- que abafo os teus gritos ao beijar com
to fechar e tu saíres pela porta, onde força a tua boca. A mesma força que te
quase tropeças por causa do vodka. Al- despe. Fazes de conta que não. Mas eu
guém te ampara o caminho e a tua boca sei que tu também queres.
ri. Eu vou com vocês um pouco mais
atrás. Há entre mim e o vosso grupo um patrícia maia
equilíbrio frágil, promovido unicamen-
te por mim. Um elo invisível, do qual só
eu me apercebo. Não te preocupes que
eu olho por ti. Finges que não, mas sa-
bes que olho por ti.
Caminhamos. De todos os baru-
lhos só oiço o som da tua voz. Isto está
a chegar ao fim. A rua prestes a acabar
e tu dizes-lhes adeus com um beijo que
envias pelo ar através da palma da tua
mão. Voltas a rodopiar como quando
estavas no bar e os teus olhos, mais
uma vez, passam por mim. Eu sei que tu
sabes que eu olho por ti.
Sigo-te até ao carro, serenamente,
como está combinado pelos anjos. Não
encontras as chaves na mala. E sentes
que estou mesmo atrás de ti. Agora, que
as encontraste, já sentes a minha respi-
ração perto da tua nuca, onde alguns
cabelos dourados se soltam do elástico
que os prende. E o molho de chaves faz
um ruído metálico ao cair, assustado, no
chão.
Sou eu que te agarro e às chaves
também. Sou eu que abro a porta do
teu carro enquanto dizes não. Sou eu
do giscard
Nome, divisão, membro amputa-
do ou ferimento profundo com o qual
foi encontrado: estas são as categorias
com que componho minhas infindáveis
geunet listas. De fato, somos nós, contadores
de mortos, bastante ineficientes. Já ti-
vemos épocas melhores. Nestas guer-
Meu trabalho é inventariar de-
ras de hoje, infelizmente, chegamos
funtos. De todas as ingratas profissões
num dia no campo de batalha e, impos-
surgidas com a guerra, a minha pode
sibilitados de completar nosso trabalho
ser contada entre as mais tediosas e
ao longo de um ciclo completo de sol,
desprovidas de interesse. Gastar a vida
temos de deixar o território sempre in-
com cadáveres (e ainda por cima unifor-
completamente cartografado, pois a
mizados) é como viver cercado de coi-
frequência das matanças a registrar é
sas inertes, silenciosas, às quais a última
mais rápida que nosso trabalho contá-
demonstração de respeito poderia ser
bil.
uma sepultura, todavia impossível. Mi-
Ontem vimos um homem cober-
nha tarefa dispensa ferramentas sofis-
to pelas vísceras do seu cavalo. Como
ticadas. Tenho à minha disposição uma
meus subordinados não encontraram
prancheta, um caderno, um lápis, uma
qualquer referência do seu nome, pro-
caneta-tinteiro, que carrego somente
cedência ou vinculação regimentar, o
por questão de consciência (que fun-
chamamos de “centauro”. Quando servi
cionário do grande exército não carre-
na campanha peninsular, um basco a
ga consigo uma delas?), alfarrábios de
nosso serviço me disse que, para o seu
outras guerras (a título de comparação
brioso povo, tudo o que existe, se exis-
numérica) e vinte lacaios de raia-miúda
te, tem um nome. É esta lógica que pro-
encarregados de identificar, nome por
curo aplicar àqueles que encontramos
nome, os que caíram por nossa bandei-
sem ter como chamá-los. Mesmo à for-
ra. São eles, em verdade, que perambu-
ça e jocosamente, criamos alcunhas.
lam pelos terrenos desolados das bata-
Já estamos muito longe da pátria.
lhas. Reservo-me a simples tabulação
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contos
Tanto no tempo quanto no espaço. Sin- lacaios, embora titubeantes, que coin-
to, às vezes, que meu trabalho já não faz cidências acontecem. Em Wizma, logo
o menor sentido. Pouco importa. Tama- em seguida, quatro; em Dorogobouge,
nha guerra e tão numerosas mortes já oito; em Chjat, trinta e dois. Às margens
eximiram os homens de procurar qual- do rio Moscowa, dos nossos dez mil sol-
quer explicação. Para qualquer coisa. dados caídos, duzentos e cinquenta e
Guerras simplesmente acontecem, as- seis chamavam-se Giscard Jeunet. Pró-
sim como simplesmente existe o enfa- ximo ao pequeno barranco em que me
donho trabalho de contar aqueles que escorava, incrédulo, para confeccionar
têm suas vidas ceifadas por ela. as tabelas do desastre, encontrava-se
Há, entretanto certa recorrência uma pilha de oito Giscard Jeunets. Eles
que me perturba. Kovno, Vilnus, Smor- se amontoavam com a falta de elegân-
goni, Molodezno, Polosk e Minsk: em cia própria aos defuntos insepultos. Tive
todos estes campos de batalha – con- vontade de entregar-me a Deus e inci-
fesso: uns melhores inventariados que nerar meus relatórios sem propósito: de
outros – há sempre o mesmo soldado que vale ao mundo a reiteração numé-
“Jeunet, Giscard, 4ª div. Inf.” para ser con- rica da morte de um mesmo indivíduo?
tabilizado. É impossível que seja sempre No acampamento seguinte, não
o mesmo, embora seja igualmente difí- me furtei a procurar, entre os soldados
cil acreditar que toda uma divisão do vivos, aqueles que posteriormente en-
exército napoleônico possua o mesmo contraria com a graça de Giscard Jeu-
nome. “A França é grande”, pensava eu net. Nenhum deles respondeu ao nome
a cada novo achado, “é natural que duas maldito. Nem mesmo aqueles que, feri-
ou mais pessoas tenham nomes iguais”. dos de morte no hospital de campanha,
E assim prosseguia a contagem, sem se assemelhavam-se ao Giscard Jeunet
que a minha confiança no tédio das leis de todas as batalhas grassadas. Tive
universais fosse quebrada. ainda de substituir dois de meus lacaios
Ao cruzar a fronteira da Rússia neste acampamento. Um deles deser-
branca, avançando pelas planícies de tou da companhia ao delirar, cambale-
Smolensk, passamos a encontrar não ante sobre a neve, que Giscard Jeunet
um, mas vários Giscard Jeunet nas deso- anunciava a chegada do anticristo. O
lações inventariadas. Em Dukhovshnina outro se perdeu numa floresta e grita-
eram apenas dois. Reafirmamos, eu e os va, a plenos pulmões: “Matem-me, bár-
importa?
a Moscou serão ao todo 8.192 Giscard
Jeunets a serem contabilizados. Isto,
claro, se nenhuma outra batalha for tra-
vada entre nossa posição atual e a capi-
Eu sei, prometi que um dia escre-
tal da Grande Rússia. Através do modelo
veria um poema com teu nome, te des-
estatístico por mim desenvolvido, o nú-
creveria assim, mas tá complicado de
mero de homônimos a serem encontra-
encaixar as malditas rimas e construir
dos na batalha futura é o resultado da
uma estrutura bela que esteja a tua al-
multiplicação de Giscard Jeunets da ba-
tura. Tudo que tenho são vacuidades no
talha presente pelo número de Giscard
olhar, imensidão de textos inacabados
Jeunets da batalha anterior. Isto, claro,
e todas as contas a pagar dos meses de
tomando-se em consideração apenas
julho, agosto e setembro. Semana pas-
os campos inventariados por mim. Sabe
sada fugi de um cobrador histérico, ali
se lá se nos outros flancos muitos outros
na Rua da Praia, sabe? De repente me vi
Giscard Jeunets não são encontrados
correndo desesperadamente tentando
por meus colegas seguindo algoritmos
esquivar dos transeuntes apressados
diferentes.
e dos vendedores que se espalham, se
Temo, entretanto, que antes de
amontoam por ali, é nessas horas que
penetrarmos os subúrbios de Moscou
a gente deseja uma bicicleta. Ah! Não
toda a Europa sob bandeira napoleôni-
pude deixar barato, tive de reagir. De-
ca se torne Giscard Jeunet. De alguma
sonrar a memória dos meus antepassa-
forma muito estranha já me sinto um
dos na frente do meu irmão, em pleno
deles. Giscard Jeunet entre Giscard Jeu-
bar. Comecei quebrando todos copos
nets, esvaziando de mim o que resta de
e garrafas da nossa mesa, atirando-os
meu nome (já nem o lembro mais) com
ao chão, tentando acompanhar o rit-
a mesma velocidade que avança, desde
mo da música ambiente, não deu certo.
a linha do horizonte, uma companhia
Depois, quebrei minuciosamente todos
de cossacos.
quadros com o melhor taco de sinuca
da casa, o qual roubei. Pulei o balcão
caetano sordi e, entre goles de Jack Daniels, atirei na
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contos
parede oposta todas garrafas de be- pobre velhote, a cara judiada pela vida
bidas que não me agradam. Após, fui desregrada e sofrida, uma vida de mer-
para a cozinha e pedi pra dona Neusa da, pobre velhote. Fui embora com um
sair dali que o estrago seria grande. Fiz sorriso malicioso no rosto, meu taco de
tudo calmamente, com a serenidade de sinuca debaixo do braço e todas as con-
um monge zen-budista, pra não perder tas a pagar dos meses de julho, agosto e
a razão. Nessa altura do meu desvario setembro e mais a conta do estrago no
os clientes já haviam abandonado o lo- bar do Darci, naquela tarde chuvosa de
cal, com medo, pânico e curiosidade. outubro, sem o interesse de buscar no-
Meu olhar não perdeu sua vacuidade vos rumos, novos ares e destinos, pou-
habitual, mas minhas mãos pararam co me importava pra que lado ficava a
de tremer por alguns instantes. Jamais longa estrada para a liberdade, solidão,
senti remorso, sentimento dos fracos só queria chegar em casa. Cheguei, ser-
e mentirosos. O cobrador, dono do re- vi um copo de Jack, acendi um cigarro
cinto, conhecido como Darci, se encon- e fui pra janela pensar. A vida é engra-
trava escondido no banheiro, ligando çada. A vida é a única coisa que todos
pra polícia. Arranquei o celular de suas temos em comum, cada um com a sua.
mãos, atirei no vaso e dei descarga. O Escrever é uma atividade como qual-
infeliz era incapaz de me encarar nos quer outra, é como engraxar um sapato,
olhos. Pudera eu, aos 22, ver aquele se- tocar um instrumento, julgar um pobre
nhor aos 44 chorando feito um guri de diabo no banco dos réus, lapidar umas
8, lamentei sua fraqueza e sentenciei palavras, afiar com esmero minhas fra-
pausadamente baixinho ao seu ouvido ses, mergulhar de cabeça no possível
com ar augusto e voz levemente rouca: título insólito deste conto. É, eu dou tí-
“Fecha essa espelunca, calcula quanto tulo por último às minhas obras. Quem
te devo incluindo os estragos de hoje, se importa?
amanhã de manhã a gente acerta.”. Não
me disse nada, só concordou com a ca- henrique ribeiro da silva
beça. Percebi que, naquele momento, o
que o velho mais desejava era que eu
fosse embora e nunca mais surgisse em
sua vida. Pensei em algum tipo de tor-
tura sádica e psicológica, mas só pensei,
com 33
que fosse, titio passou a cuidar dela, en-
chendo-lhe o âmago de vaidades:
— Meu irmão é gente grande, lá
em Maputo… Oficial dos exércitos! —
andares na Gabava-se a minha mãe, sempre que se
referia ao tio João, em conversa com ou-
tras aldeãs.
bofetada que a minha mãe me descarre- Tia Hawa é que parecia ter dado com
gou na face, uma bolacha dada com os diferente sina. De quando em quando,
olhos marejados de lágrimas, a contras- via-a bamboleando as ancas, bunda ro-
tarem com os das mães dos outros me- liça e pernas torneadas, corada, numa
ninos, todas alegres ao chamar os filhos espécie de génio de santa e belzebu,
e divertindo-se também com a canção subindo escada acima até uma das ca-
de John Nyansala. Releio o parágrafo sas do prédio, onde matava a saudade
seguinte da carta. “Hoje fazes 25 anos. dos tempos em que era dona Hawa.
És homem feito e já posso contar-te. Sei Agora, quase galinha de pagar e
que merecias um outro presente. Mas, comer, ao gosto do freguês, louco de li-
Deus é que sabe. Quando viemos morar bidinosos desejos. Mas, não para todo
aqui, na aldeia comunal, acabavas de vir o sempre! Pois, um dia destes, desceu
ao mundo, apenas com uns dois ou três voando da varanda do arranha-céus.
meses de idade. O teu pai não queria vir, Minutos depois, o guarda diria
porque, vir para aqui, significava aban- à polícia ter apenas ouvido uma voz
donar a sua machamba, principalmente gritando da varanda de uma das flats:
as campas dos pais e avós. Só de pensar “Puta de merda, atirou-se do prédio!”
nisso, doía-lhe muito no coração. Ma-
goava-o deveras, ao ponto de a dor lhe aurélio furdela
encher o peito de amargura. Tanta que
cresceu e lhe subiu à cabeça. Depois fi-
cou doente do juízo, maluco, mas é o
teu pai. Desculpa a chapada que te dei
lá na escola. Imagino que não te tenhas
esquecido. Perdoas? ”
Adormeço, embalado pela fra-
grância das acácias em flor, a misturar-
-se no ar com o amoníaco a evolar da
urina que corre pelos passeios. O guar-
da do prédio vem acordar-me, quase na
hora do último autocarro para o Zimpe-
to, onde vou completar o sonho do 33
andares.
tanto tempo. Em época remota, vejo (e (Jorge Manrique, Coplas a la muerte de su padre)
tino e inesperado, que Marcos quase foi que o dourado assomava reinante, do
boia abaixo. Alguns urubus já meio dor- lado de dentro, do entre-águas. Marcos
midos sobre as árvores se espantaram, vacilou foi ante essa ideia. Todo o negro
tremeram os galhos derrubando que mundo sob seus pés, a areia fina, mas
houvesse de frutas e folhas já meio sol- barrenta que se abria finamente para as
tas. raízes encharcadas das pequenas algas
— Quê foi, Lucas, precisa gritar as- e plantas aquáticas, os peixes e peque-
sim? Viu um jacaré por acaso? nos animais, tão nanicos, brigando para
— Olha! deixar que o outro, e não ele, virasse
Só isso conseguia falar Lucas, re- comida para aqueles que, ainda lon-
petindo as palavras e os gestos. Imóvel, ge de serem grandes, eram maiores. E
apontava para a água. Marcos se apoiou aí os que ficavam mediando, piau pas-
e com cuidado levantou o pescoço, es- sava engolindo coisa que fosse, inseto
ticando-se para procurar o que o amigo ou fruta, com aquela boca pequena, e
apontava. Entre as águas refratárias e olhando lá pra cima, estranhando de re-
amarronzadas esgueirava-se um ama- pente aquela sombra que se projetava;
relo vivo, tingido das cores tristes do rio. viam todos só a barriga, nem amarela
Foi levantando mais, pode ver bem o era, tremiam todos, nadava vagabundo
que o amigo gritara, que tamanho, nun- e arrogante aquele gigantesco doura-
ca vira algo assim: era um dourado! do. Isso pensou Marcos, tirou quase que
— Nossa! como tique os pés da água.
I mperceptivelmente, Marcos co- Lucas não lembrou de piau ne-
meçou a puxar os pés para cima da boia. nhum, corvina, inseto ou o que fosse,
Sabia que dourado não comia gente, era por ali esses nunca passaram; admira-
óbvio, comia turiva, curimbatá, sarapó; va aquele dourado como se fosse ele
naquele rio provavelmente mais man- mesmo. Um peixe naquele rio, o peixe
juba, piapara e lambari, mas não gente. daquele rio, sendo que por isso tanto
Era óbvio, até ridículo, sabia, mas o bi- esperara. Acompanhava os movimen-
cho, quase um metro, de repente pare- tos calmos do bicho com os olhos arre-
cia ser o dono do rio. Não do rio como galados, nem falar mais não conseguia.
um todo, leito, árvores e animais ao re- Sentiu-se preso ao rio, àquele lugar, dali
dor, nem mesmo pássaros voantes so- não podia sair: era já ele mesmo o peixe,
bre as margens, era do outro lado do rio o dourado que reinava aquelas águas;
ricardo russano
44 MACONDO revista literária
ensaio
ensaio
CONVERSA COM
ESCRITORES
Editora Globo
448 páginas
REFORMA NA
PAULISTA E UM
CORAÇÃO PISADO
Oitava Rima
272 páginas
temas, ideias, pensamentos e formas. te, oculta-as do leitor. Essa ideia, tão
Entretanto, existe uma conformidade presente em filósofos como Derrida e
entre esses aspectos, conferindo à es- Rousseau, torna patente sua precedên-
crita uma sonoridade residual, de forma cia. Esse “eu”, por sua vez, só existe em
que sua poesia atinge os “olhos” da ima- virtude do “outro” que o completa. Ou
ginação do leitor. Por conseguinte, ine- seja, toda a experiência do “eu” só existe
xiste uma dependência cronológica rí- porque o “outro” libera sua existência. O
gida entre seus diários, permitindo sua “eu” não passa de uma ficção do “outro”.
leitura a partir de qualquer ponto. A alterficção novamente entra em jogo,
Para Ezra Pound (1976), a força da sinalizando que tudo vem do “outro”, e a
poesia está em sua austeridade, em ser ele retorna. Através de suas palavras, “a
direta e livre de deslizes emocionais. A experiência que no escuro tateio é por
sua força está na sua verdade, no seu natureza irredutível a uma única identi-
poder de interpretação. Assim é a poe- dade” (Idem, ibidem, p. 126).
sia de Evando Nascimento, cujo sentido A definição de autobiografia e au-
não está no sentimento incrustado nas toficção parecem, neste momento, bas-
palavras, ele está presente nas próprias tante claras: enquanto a primeira tenta
letras que a compõem. contar toda a sua história a partir das
origens, a segunda recorta a história
pois se tornou em fases diferentes, dando uma inten-
imperativamente necessário sidade narrativa própria. A autoficção,
escrever na primeira pessoa, por um lado, é a escrita do presente,
mas isto é, ela “engaja” o leitor sobre aquilo
sem ingenuidades, com to- no qual o autor quer descrever. Na auto-
dos os disfarces briografia, por outro lado, a experiência
o a(u)tor pessoal se confunde com a observação
(NASCIMENTO, 2008, p. 12) do mundo e, assim, ela acaba se tornan-
do heterografia, história simultânea dos
De início, o poeta avisa ser impe- outros e da sociedade.
rativamente necessário escrever na pri- A partir de então, o decorrer da
meira pessoa, já que é por esse meio obra caracteriza-se pela economia de
que se busca a veracidade das palavras palavras, pelo abstrato opondo-se ao
do eu poético, mas, paradoxalmen- concreto e, paradoxalmente, comple-
Aurélio Furdela ::: contista e dramaturgo mo- Denise Freitas ::: nasceu em Rio Grande(RS),
çambicano, representativo da novíssima pro- em 1980. Escritora e professora. Livros pu-
sa moçambicana, depois de publicar De medo blicados: Misturando Memórias (2007), Ma-
morreu o susto (2004, 2a edição), contos que res inversos (2010); está entre os autores que
encetam uma incursão surrealista no univer- compõem a Antologia poética: Moradas de
so tradicional moçambicano, no que ele tem Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011); possui
de antítese em relação aos valores da moder- publicações em diversas revistas, dentre as
nidade, Gatsi Lucere (2005), texto dramático quais, Revista Sibila, Musa Rara, Revista Modo
que representa o Estado de Mwenemutapa, de Usar. Escreve o blog: www.sisifosemper-
e O golo que meteu o árbitro (2006), crônicas das.blogspot.com
desportivas, Furdela brinda-nos, desta vez,
com esta afirmação categórica e insólita: As Élen Rodrigues Gonçalves ::: é graduanda em
hienas também sorriem (conto publicado re- Letras pela Universidade Federal de Juiz de
tirado deste último). Fora e, nas horas vagas, escreve em busca de
esquecimento. Na área de Letras, é integran-
Bartolomeu Pereira Lucena ::: formado em Fi- te do Projeto de Pesquisa “Viagens por ou-
losofia pela Universidade Estadual da Paraíba, tros mares: diásporas africanas e seus mapas
reside no município de Malta PB e é professor literários”, no qual procura desenvolver um
da E.E.E.F.M. Dr. Antônio Fernandes de Medei- arquivo literário e teórico de poetas cuja cria-
ros. Não tem livros publicados, não cria ani- ção poética precisa ser reconhecida.
mais.
Emanuel R. Marques ::: Formado em Comuni-
Caetano Sordi ::: é antropólogo e filósofo de cação Audiovisual. Já trabalhou em televisão,
formação (UFRGS e PUCRS, respectivamente), assim como já ganhou a vida a fazer visitas
além de um obstinado consumidor de ficção. num convento e museu do séc. XV. Autor e
Tem predileção por contos e já assinou blog participante em livros, revistas e fanzines de
com nome inspirado em Jorge Luis Borges contos, poesia e textos teatrais. Colaborador
(obibliotecariodebabel.blogspot.com.br), em projectos de diversos campos artísticos,
atualmente desativado. como música, artes plásticas e vídeo.
Contato: caetano.sordi@gmail.com.
Estevão Daminelli ::: 26. já quis ser astronauta.
Danilo Sales ::: 23 anos, solterapolitano. For- tem um poema publicado numa coletânea
mado em Letras Vernáculas pela Universida- vagabunda que só lhe rendeu prejuízos. atu-
de Federal da Bahia em 2010. Atualmente almente publica seus textos por aqui: http://
cursando o mestrado em Literatura e Cultura ou-isso.blogspot.com.br/
pelo Programa de Pós-Graduação em Litera-
tura e Cultura da UFBa. Helena Barbagelata ::: nasceu em Lisboa a 6
de Dezembro. É uma artista multidisciplinar,
dedicada às artes plásticas, música e letras. Ricardo Russano ::: Autor do livro Noites Ári-
Participa em antologias e revistas literárias das (ed. Patuá), Ricardo nasceu em Angatuba,
em Portugal, Brasil e Itália, tendo sido laurea- uma pequena cidade do interior paulista, em
da em diversos concursos internacionais. 1987. Aos 18 anos mudou-se para São Paulo
para estudar Letras na Universidade de São
Henrique Ribeiro da Silva ::: tenho 22 anos e Paulo, formando-se em 2011. Em 2012, tam-
sou natural de Porto Alegre no Rio Grande do bém nessa universidade, começou a cursar
Sul, cidade que moro e sempre morei. Já me Biblioteconomia, curso que abandonou no
mudei sete vezes de casa. Acho que por isso mesmo ano. Pretende cursar História e tem
me canso, depois de certo tempo, de morar duas certezas: morrerá corinthiano e de es-
no mesmo lugar. Sobre a escrita, escrevo des- querda.
de 2009. No inicio só escrevia poesias, este
ano comecei a escrever contos e me identifi- Yuri Amaury ::: tem, no momento, 21 anos. Es-
quei mais com a prosa. Sou muito fã de Cor- tuda cerca de 50% do currículo do curso de
tázar, Kerouac e Garcia Marquéz. Letras da UTFPr. Não trabalha, não tem na-
morada, não bebe nem fuma. E não escreve.
Marcelo Feres ::: Nascido em 06/07/1957, na Tanto é que demorou uns 40 e poucos minu-
cidade de Niterói, RJ. Graduado em Adminis- tos pra redigir estas 3 linhas, e não encontrou
tração pela EBAP, Rio de Janeiro, em 1979; maneira de terminar com estilo. Blog: http://
graduado e pós-graduado em Direito pela buddhist-clouds.tumblr.com/
UNESA, Rio de Janeiro, em 2005; estudante contemporâneos como Roberto Piva,
de Filosofia. Claudio Willer, Helena Ortiz, Tanussi Cardoso,
Hilda Hilst e Claudio Aguiar, entre outros.
Patricia Maia ::: Tenho 37 anos, sou coordena- E-mail: tallerleolobos@yahoo.com
dora editorial do portal Boas Notícias e jor-
nalista freelance. Sou portuguesa, natural de
Lisboa. Estes contos que envio fazem parte
do livro de contos “Brilho Vermelho”, vence-
dor da menção honrosa do prémio Alves Re-
dol 2009. email: maiapatricia@hotmail.com
VITAMINA
Juliana Bernardo
Editora Patuá
92 páginas
FERA D’ALMA
Herta Müller
Editora Globo
250 páginas