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MACONDO

revista literária
N.º 7
SEMESTRAL
2013 /01

yuri amaury, danilo sales, ricardo russano, élen


rodrigues gonçalves, marcelo feres, helena barbagelata, aurélio
furdela, caetano sordi, bartolomeu pereira lucena, estevão
daminelli, denise freitas, emanuel r. marques, patrícia maia,
henrique ribeiro da silva, rafael batista

ARTIGO
LANÇAMENTOS
POESIA
CONTO
BIBLIOPHILIA
HAICAI
ENSAIO
expediente

EDITORES
francisco mariani casadore
marcos mariani casadore

COLABORADORES
os autores dos textos publicados na presente edilçao estão listados,
por ordem alfabética, nas páginas finais da revista.

IMAGEM DA CAPA
retirada do acervo pessoal dos editores.

não nos responsabilizamos por ideias e demais conceitos


expostos pelos autores, bem como pela autoria dos textos.

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CONTATO I ENVIO DE MATERIAL


colaboracao@revistamacondo.com.br
Fiz do meu prazer e da minha
dor o meu destino disfarçado.
Clarice Lispector
editorial
A sétima edição da o trabalho da melhor prazos para a entrega
Revista Macondo maneira possível: de relatórios parciais de
chega ao público, acabamos, por fim, mestrado e doutorado
novamente, com um priorizando a qualidade coincidiram com o
considerável atraso – (embora deixar o fator fechamento desta
antes de tudo, portanto, “tempo” em segundo edição. Nosso tempo
achamos que caberia plano não seja nunca livre, drasticamente
aqui um pedido de o que esperamos). reduzido nesses últimos
desculpas aos leitores Justificamos o meses, infelizmente
e, principalmente, aos atraso também em não foi o suficiente para
colaboradores. Sempre função de outras conseguirmos terminar
reiteramos o quão obrigatoriedades: nosso a edição e diagramação
complicado é lidar tempo hábil não estava a tempo do lançamento
com a leitura de todo preenchido somente previsto. Lamentamos
o material, seleção e com nossos empregos bastante por isso.
produção da revista, formais, mas também Para uma próxima
mas fazemos questão com tarefas referentes edição, estudamos
de realizarmos todo às nossas formações: os algumas mudanças

POESIA HAICAI CONTO


página 6 página 19 página 21
que evitariam o atraso e aproveitem bem! lusófonas (“Os Maias”,
– a proposta é que saia Recebemos, “Lavoura Arcaica” e
conforme o previsto, também, um número “Cinzas do Norte”),
em novembro: não considerável de de autoria de Danilo
mudaremos o prazo. ensaios e artigos que, Sales. . Confiram, ainda,
mais por motivos algumas indicações e
*** formais de espaço na lançamentos de bons
revista do que pela livros ao longo do
Agora, um pouco sobre qualidade, tivemos que número.
esta edição: contamos, restringir. Na edição, No mais, desejamos a
uma vez mais, com o disponibilizamos todos uma boa leitura!
recebimento de boas um artigo sobre a Nos vemos na Macondo
obras – os leitores poesia de Evandro 8.
poderão conferir Nascimento, escrito
excelentes textos nas por Élen Rodrigues
seções de contos, Gonçalves, e um ensaio
poesias e haicais. acerca da “decadência
Esperamos que gostem familiar” em três obras

ENSAIO ARTIGO COLABORA-


página 45 página 53 DORES
página 62
poesia
troco
À espreita
Sou caçador
Atiro flechas
Voo no ardor
Do alvo perseguido
Dou troco à vida
Ela não confessa
Guarda seus mistérios
Faço explodir o ultimato
- Vida!
Se bates em meu peito
Se és quem insinuas
Então
Foge destas flechas

primeiro semestre 2013 7


poesia

e onde aqui dentro?


Vivo uma vida incomparável,
Alhures prevista e plantada.
O agora é o que desemboca,
Trazido pelos tempos e pelos ventos.
Se há esquecimento,
Há poesia.
Todavia,
Em sintonia.
Soam os acordes,
De Pink e de Floyd.
Navego em suavidades,
Sonho é suave.
Ondas do acaso.
Pretensamente,
Tudo em harmonia.
A arte que sorri,
E que me diz –
Presente!
E já estamos aqui,
Todos, enfim!
E ainda é agora,
E tudo lá fora.
E voamos contentes,
E onde aqui dentro?

marcelo feres

8 MACONDO revista literária


anotações ao fim da
página
Um exemplar vem silenciar o coro
de vozes distantes e joga o oco,
o pardo fatigado junto às mil
e tantas semanas que compuseram
assim um bom conjunto de recusa.

Ao lado, décadas que me auxiliam


formular um rabisco incontornável,
avesso.
E nem por isso me desprendo
e nem por isso ultrapasso a mim mesma,
entre tantas linhas indispensáveis
acomodadas em face da urgência.

Mesmo após a eternidade e sua noite


inteira de morte e recompensa elas
não me valem. Mas ofertam seu ganho.

denise freitas

primeiro semestre 2013 9


poesia

manifesto
a classe poética reivindica para si
o direito de ter
preguiça

tarde
a preguiça puxava um cão
pelo assobio

a ladeira deitava para a preguiça passar


e cumprimentava o cão

acenando
os postes

10 MACONDO revista literária


a morte do sujeito
um sujeito entra no bar
a camisa manchada de sangue
rasgada
a pele do rosto duro
barrenta

pede um fogo-paulista
e um cigarro solto

- tiro de mulher não mata.

tomou de um gole só
bateu com força o copo
e morreu ali mesmo

no meio das putas que reclamavam da baixa freguesia


em cima do caderno esportivo
e de bitucas de cigarros fumados demais

primeiro semestre 2013 11


poesia

tempo de amoras
tempo de amoras

a menina colheu meus olhos


pousados num bem-te-vi
devia de ser domingo
por que as formigas não saíram
e tinha música nas casas

estevão daminelli

12 MACONDO revista literária


ellipsis
As árvores pendem soberbas
as copas em mantos de púrpura,
enquanto a brisa colhe muito álgida
metade das flores nos braços; duas
mulheres vergadas de sombra,
derramam o luto em coroas de lírios,
o peso da primavera que descansam
docemente sobre a terra involuta;
sepultam a lembrança nas horas
inacabadas da manhã, enquanto um
curso perfumado que passa, floreja
eternos os amores e os cantos.

primeiro semestre 2013 13


poesia

a janela do mundo
Há uma janela que se abre em promessas,
em que língua se segredam que não as escuto,
só oiço as mãos carpindo ósseas e servas,
cavando por pedras as sepulturas; assim
se espartilham os sonhos, por vezes
cedem-se, por vezes matam-se, enquanto
afugentada pelos beirais, corre exânime
a dor em gritos açoitados; há uma janela
descendendo as suas cortinas, mortalhas
de corpos donde se alçam os impérios;
deitados sobre a terra são apenas homens,
em pés simples e desfolhados, que a noite
sempre descoroa; há uma janela que se despe
de versos, arremessados como fímbrias
mortas ao humedecer da tarde, estendo-lhes
os braços até onde chega a vida, num
gesto pobre e de tão pouco.

14 MACONDO revista literária


astrolábio
I
A porto incerto sempre e sem sossego
André Falcão de Resende
Todo o pensamento se evola
como as aves espartilhadas na
plúmbea descendência das ondas,
a imitação irreversível de ontem num
arrepio de invocações e espuma;
as palavras derramam-se inconsoláveis,
estreitadas ao poema, nas mãos
infecundas agarrando a flor efémera,
em formas tão escassas de ar;
agarrando os dias interruptos de nada,
em que a razão calcorreia a memória,
solitária e erguida de cipreste,
transpondo os céus como o verso,
rasgando a terra em imortais faenas;
a alma parte no largo embarcadoiro
do tempo, pendula como estrela frígida
entre a noite e o alvor sereno;
destemperada e imensa, vozeia-se
como o mar que canta, irremovível
no seu silêncio inquieto, nos
seus regressos infinitos;

primeiro semestre 2013 15


poesia

II
Todo o pensamento corre para trás,
na sua dança boleada e infinda,
gravitando a luz que de si mesmo
traça, na sombra de um desejo
em fuga; as palavras abraçam-se
na ardência do presente, furtiva
presença que o poema espanta,
no enlaço breve do momento antes
a ser apenas tudo que seja; frágil
como a alegria volúvel e de
ninguém, que só se tem no
embargo de amar, a vida ansiada
e errante, a alma peregrina e
incessante, de um caminho
largo e sem chegar;

helena barbagelata

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das confissões de
travesseiro I
Não desejo que teu copo seque
Seu sorriso esmoreça
Ou que vire pântano
Abarrotar minha alma
De seu corpo
Amarrotar seu corpo
Num vice versar
louco

primeiro semestre 2013 17


poesia

epitáfio nº 1
Aqui jaz um homem
Que gostava de descer a rua
Se equilibrando no meio fio.
Nunca entendeu de Wall Street,
Mas no seu peito tocava uma orquestra de jazz.

bartolomeu pereira lucena

18 MACONDO revista literária


haicai
haicai

Onde você
estacionou seus lábios
depois da chuva?

Na quietude
soam os passos
de folhas secas

Neblina noturna
sufoca a noite
só eu respiro

Às vezes, quase dá
pra ver o firmamento
se movendo

yuri amaury

20 MACONDO revista literária


contos
contos

profissão:
dante ciclo. No entanto, com a placenta
literária quase a explodir um novo filho,
as palavras fluíam-lhe incessantemen-

escritor
te e ele obrava-as com a eficácia de um
mestre renascentista ao cinzelar a sua
tosca pedra que esconde um anjo no in-
terior. As gastas teclas do computador
O raiar da madrugada começava
eram atacadas com a mesma intensa
finalmente a carregar as pálpebras com
velocidade e dinâmica com que um ágil
um desactualizado sono, mas estando
pianista dactilografa ao tocar do fundo
possesso por um entusiástico delírio
da sua alma.
de criação não podia rejeitar a evidên-
Por entre enganos e correcções
cia da sua iminente inspiração artística.
ele mantinha a sua veemente caminha-
Estava a terminar o último capítulo do
da através do mundo ficcional que ele
seu tão ambicionado romance, não que
mesmo criara. A última página acabava
os outros não tivessem sido fruto de
de ser terminada. O Sol exibia os seus fi-
uma fervilhante ambição, mas este era
nos traços, que trespassavam os orifícios
o tal, aquele que o autor considerava a
da persiana e iam embater no armário
sua obra-prima. Logicamente que esta
das bebidas. Sim! Na verdade, depois
é uma sensação suspeita, pois após a
do exaustivo esforço e dedicação do
conclusão de qualquer romance ou no-
passado meio ano, duração de escrita
vela, entre outras iluminações, o escritor
do romance, após agonias e desmotiva-
é recompensado com uns breves minu-
ções, alegrias e convicções, só lhe ape-
tos orgásticos de sonho que colocam
tecia seguir o conselho do Sol e festejar
o Homem na posição de Deus. A auto-
com uma imaculada embriaguez que o
-satisfação de ter criado algo de supos-
deixasse caído durante outro meio ano.
tamente grandioso, o ansiado sentido
Em vez disso, enveredou por um
da sua vida. Também é lógico que esta
estranho raciocínio que ia exactamente
sacra ambiência se desvanece à medida
contra todas as reacções que esperava
que o tempo é ultrapassado por disper-
ter. Reflectiu acerca das personalidades
sas ideias que se vão concentrar num
a quem havia oferecido vida naquelas
outro fio condutor. No final, nasce um
páginas. Caso ele não se tivesse propos-
novo romance, uma nova empreitada
to a elaborar o romance, elas nunca se-
que vai ocupar um lugar neste redun-
22 MACONDO revista literária
riam notadas nem se suscitariam como é caminhar e que a maioria das pessoas
alvo de apreciação por parte do futuro ignora. Podia, no entanto, ter aproveita-
leitor. Nunca sequer haviam convivido do o carro dela, mas ela era senhora de
intimamente com o espírito do próprio um emprego sério, estável, rentável, e
escritor, visto que ele não teria tido a necessitaria da viatura para se locomo-
preocupação de as fecundar. ver até ao local de trabalho, enquanto
Com um raiado magenta a ornamen- ele, no seu difuso Universo, poderia fa-
tar-lhe os olhos, saiu de casa num ímpe- cilmente, e usufruindo mesmo, incutir-
to de Napoleão que decide conquistar -se no hemisfério de um transporte pú-
o Mundo, tendo como objectivo o pré- blico.
dio onde habitava o seu amigo e editor Lá estava ele, de pé, inserido na
Rui Gomes, o qual lhe vinha a implorar matilha humana que também aguarda-
nas passadas duas semanas a entrega va a chegada do transporte e que ran-
da recente escritura. gia os dentes quando alguma criatura,
A sua mulher ainda se deliciava inocentemente, dava dois descuidados
com o morno prazer que os lençóis de passos a mais e lhes usurpava o lugar na
flanela lhe causavam, mas não iria es- fila. Debaixo do seu braço direito emba-
tranhar de forma alguma a ausência do lava uma pasta de gasto cabedal cas-
companheiro, pois já conhecia bastante tanho, onde seguiam as suas preciosas
bem todas as contra-indicações de par- folhas.
tilhar a casa e a vida com um escritor. A manhã parecia presenteá-lo com
O homem das letras caminhou os uma peculiar frescura que desaparece-
cem metros que o distanciavam da pa- ra há algum tempo das suas fatigantes
ragem dos autocarros com a euforia de manhãs, ou talvez fosse, obviamente,
um adolescente que divaga para o seu mais uma vez o despertar do sentimen-
primeiro encontro amoroso. to da concretização. O Mundo podia
Por ele ser um verdadeiro escritor, instigá-lo à impaciência ou à raiva, com
e todos os verdadeiros escritores apre- um longo atraso do autocarro ou qual-
ciarem as longas e reflectivas caminha- quer dessas outras irritantes futilidades,
das, teria de deslocar-se desta interes- que hoje não conseguiria arrancá-lo do
sante forma. Interessante para quem seu elevado grau de dedicação. Havia
consegue sugar e dar uma utilidade algo maior, uma comunidade de meras
(será que a Arte é útil?) à banalidade que folhas que eram responsáveis pela sua

primeiro semestre 2013 23


contos

alegria. O meio de transporte não fa- transmitira. Era realmente bizarro e ca-
lhou a sua peregrinação de atraso. ricato para um escritor ser confrontado,
O autocarro estava sufocado de em pleno transporte público, com uma
pessoas. Anónimas individualidades, personagem dos seus escritos. O que
personagens principais da história das apetece é chegar junto da tal pessoa
suas vidas, e como ele gostava de clas- e perguntar-lhe pela neurótica mulher
sificá-las com suposições. Observá-las ou pela amante, ou como pensa resol-
na ingenuidade de não perceberem ver a situação do crime em que está
que são objecto de estudo e trabalho envolvido, obtendo como satisfatória
para um outro estranho que partilha o resposta uma cara de espanto e pânico.
mesmo percurso. Ao proceder à neces- Claro está que o criador sabe com uma
sária gincana para conseguir um claus- devida antecedência aquilo que irá
trofóbico canto onde pousar, deparou acontecer ao seu criado, ou seja, o seu
com um sujeito de meia-idade, bigode destino está traçado. Esta questão ser-
farfalhudo e cabelo curto aos caracóis, viria apenas para divertir o escritor com
ambos de tonalidade escura, que en- uma demonstração de superioridade,
carnava perfeitamente a personagem em relação ao personagem. Aquele cir-
do psicólogo que actuava no seu re- cunstancial homem era apenas a coin-
cém-terminado livro. Esta era uma nova cidência. A pergunta seria apenas uma
experiência na vida do artista e, para infrutífera vontade impedida pelas leis
maior cativação, o dito sujeito emanava da moral e da sanidade. Se é que exis-
uma expressividade que o escritor não tem escritores completamente sãos.
conseguira visionar durante o processo Impresso no seu rosto estava um
de recriação mental e era precisamente subtil sorriso, incompreensível e des-
a que se enquadrava no personagem. propositado para os restantes ocupan-
Se fosse realizado um filme daquela his- tes. Nada disso importava, se ele quises-
tória, aquele seria sem dúvida o actor se podia soltar gargalhadas de loucura,
mais que indicado. ele era superior a todas aquelas pessoas
Houve um fixo olhos-nos-olhos de que serviam algo ou alguém, enquanto
cinco segundos, que foi encerrado pelo ele gozava o poder de ambicionar esta-
sósia do médico. Já sentado na zona dos mais elevados, como transformar
central do autocarro, o autor digeria a ideias em palavras, e palavras em vidas.
ironia e coincidência que a situação lhe A lenta viagem prosseguia sem

24 MACONDO revista literária


grandes relevâncias, as quais costu- Cumprida a ligeira refeição, ele
mam acompanhar certas viagens onde reiniciou a sua marcha, à qual falhou o
os passageiros são ofertados com gra- digestivo cigarro final devido à exaus-
tuitos espectáculos de verdadeiros pa- tão de fumo com que a desperta noi-
lhaços. te o inundara e, tal era a ansiedade em
De súbito, ao olhar pela janela, ob- mostrar o seu trabalho, que o tabaco fi-
servou rapidamente uma rapariga de cou esquecido no espaço entre a última
cabelo ruivo que se assemelhava bas- dentada no croissant e o pagamento da
tante à figuração que ele fizera da filha despesa.
mais velha do psicólogo. Aquela que, a Por esta altura, ignorando já o es-
certa altura, se envolve com um pacien- plendoroso dia que o amanhecera, os
te do seu pai sem ter conhecimento de seus pensamentos e reflexões desagua-
que esse é o caso mais complicado do vam somente para o facto de, tendo ele
seu progenitor. Foi neste momento que terminado os derradeiros escritos do
um fino e agudo golpe de gelo o arre- livro nessa madrugada, como é que as-
piou em calafrios dorsais. sim que saiu de casa começou a cruzar-
Duas personagens encarnadas -se com os seus ainda frescos persona-
precisamente na manhã em que ele fi- gens? É claro que estas interrogações
nalizara os seus escritos. Quase que co- são aquelas para as quais os cientistas
meçava a acreditar na veracidade da nunca encontrarão resposta, mas, pro-
sua invenção. Estas coincidências (ou vavelmente, cientes da sua ignorância,
não, visto existir uma grande probabili- atribuiriam a explicação do fenómeno a
dade em cada um de nós se identificar qualquer assunto relacionado com ge-
alguma ou várias vezes na vida, física ou nes e afins.
psicologicamente, com personagens Apesar da infinidade de livros que
ficcionais) só lhe ampliavam ainda mais o escritor possa escrever e da multiplici-
a felicidade que o possuía. dade de temas que abordar, a fronteira
Saiu do autocarro, mas ainda assim entre o homem escritor e o homem so-
tendo um longo caminho pela frente cial será sempre uma incógnita.
até alcançar a desejada casa, e aprovei- Desta forma, o seu percurso foi
tou para tomar um breve pequeno-al- ambientado por um extremo estado de
moço no minúsculo café que ficava no ausência que o impossibilitaria de fazer
caminho. uma posterior descrição visual da cami-

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contos

caminhada. Mas aquele parecia ser o nha de concretizar imediatamente os


mágico conteúdo de uma obra-prima, o desígnios. O seu editor não estranhou,
desbravar de uma virgem floresta ainda pois estava habituado a lidar com aque-
inexplorada pela mão do Homem. Pre- le tipo de personagens (ir)reais.
cisaria somente de trabalhar cuidadosa-
mente a ideia e transformá-la no expo- emanuel r. marques
ente máximo da sua literatura.
Poderia ser a história de um es-
critor que, a certa altura, começa a en-
contrar os seus personagens nas ruas,
chegando mesmo a estabelecer diálo-
go com eles, ao mesmo tempo que ma-
nipula as suas vidas. Este parece ser um
óptimo conteúdo a explorar e transfor-
mar.
Escusado será dizer que o motivo
que o conduzia para a casa do amigo
editor estava agora silenciosamente se-
pultado debaixo do braço que o carre-
gava. O seu recente livro era agora um
enredo de desinteressantes intrigas ao
ser comparado com esta última explo-
são de criatividade. Neste momento, o
sequioso objectivo era despachar rapi-
damente o amontoado de papéis que
trazia e voltar a casa para dar início à al-
quimia do seu novo trabalho.
Ao chegar a casa do amigo, que
acolheu com satisfação o esperado do-
cumento da imaginação, despediu-se
imediatamente sob a sincera desculpa
de ter sido fulminado (abençoado) com
o súbito aroma da inspiração, à qual ti-

26 MACONDO revista literária


o elo
cigarro no mesmo ponto em que o ou-
tro acabou. Fumar mata. Diz o maço.
Mas eu não lhe ligo nenhuma.

invisível
E então tu levantas-te. Os meus
olhos reabrem-se. Tudo retoma a velo-
cidade normal, ou talvez o ritmo esteja
um pouco acelerado. Diriges-te ao bal-
Vi a tua boca. Ao longe. Sigo ago-
cão. Tenho-te ao meu lado.
ra pelas ruas atrás dos teus passos. Uma
“Um vodka ananás, se faz favor...”,
mulher de saltos altos passa por mim, a
diz a tua boca, cuidadosamente pintada
tentar a elegância entre os calhaus des-
de vermelho.
ta noite tão escura. Hesito entre ti e ela.
O barman prepara a tua bebida,
Decido por ti. O bar em que entraste
enquanto esperas ao meu lado. Entram
tem anjos atrás das garrafas. Parece que
tambores na música dos anjos e fazem
entoam uma melodia divina.
um barulho ensurdecedor. Olho para o
Sento-me ao balcão e peço um
whisky... Pelo canto do olho vejo outra
whisky puro. Não, duas pedras, afinal.
vez aquela que é a tua boca. Aquela que
Vejo-te lá ao fundo, numa mesa com
espera pelo vodka.
outras pessoas.
Fazes de conta que não, mas eu
Não sabes de mim. Mas eu olho
sei que já me viste. Os meus olhos pas-
para ti. O meu whisky está quase a aca-
sam do meu whisky para a tua bebida.
bar. Talvez eu não esteja aqui a fazer
Da tua bebida para os teus lábios, que
nada. Mas olho para a tua boca e tudo
a sorvem pela primeira vez. Dos teus
se reorganiza.
lábios para a tua garganta, por onde o
Concentro-me no objectivo. Hoje
líquido agora escorre. Da tua garganta
és tu. Amanhã pode ser outra qualquer.
para a tua voz, a dizer
Sem nenhum pretexto passo pela tua
“Obrigada!”
mesa. A tua boca sorri mas não é para
E dás meia volta com o copo na
mim. Volto ao balcão.
mão, ao mesmo tempo que os teus
“Outro whisky por favor.”
olhos passam semicerrados por mim.
Alguém carregou no pause e fica
Eu sei que já me viste. Não te preocupes
tudo em stand by. Tu e os teus amigos.
que eu espero. Não te preocupes que
Eu e o balcão. Menos a cinza e o fumo,
eu espero por ti.
sempre em mutação. Acendo mais um
primeiro semestre 2013 27
contos

São mais cinco whiskies antes dis- que abafo os teus gritos ao beijar com
to fechar e tu saíres pela porta, onde força a tua boca. A mesma força que te
quase tropeças por causa do vodka. Al- despe. Fazes de conta que não. Mas eu
guém te ampara o caminho e a tua boca sei que tu também queres.
ri. Eu vou com vocês um pouco mais
atrás. Há entre mim e o vosso grupo um patrícia maia
equilíbrio frágil, promovido unicamen-
te por mim. Um elo invisível, do qual só
eu me apercebo. Não te preocupes que
eu olho por ti. Finges que não, mas sa-
bes que olho por ti.
Caminhamos. De todos os baru-
lhos só oiço o som da tua voz. Isto está
a chegar ao fim. A rua prestes a acabar
e tu dizes-lhes adeus com um beijo que
envias pelo ar através da palma da tua
mão. Voltas a rodopiar como quando
estavas no bar e os teus olhos, mais
uma vez, passam por mim. Eu sei que tu
sabes que eu olho por ti.
Sigo-te até ao carro, serenamente,
como está combinado pelos anjos. Não
encontras as chaves na mala. E sentes
que estou mesmo atrás de ti. Agora, que
as encontraste, já sentes a minha respi-
ração perto da tua nuca, onde alguns
cabelos dourados se soltam do elástico
que os prende. E o molho de chaves faz
um ruído metálico ao cair, assustado, no
chão.
Sou eu que te agarro e às chaves
também. Sou eu que abro a porta do
teu carro enquanto dizes não. Sou eu

28 MACONDO revista literária


inventarian-
das desgraças e alcunhas dos pobres
coitados que encontramos nas mais di-
versas situações.

do giscard
Nome, divisão, membro amputa-
do ou ferimento profundo com o qual
foi encontrado: estas são as categorias
com que componho minhas infindáveis
geunet listas. De fato, somos nós, contadores
de mortos, bastante ineficientes. Já ti-
vemos épocas melhores. Nestas guer-
Meu trabalho é inventariar de-
ras de hoje, infelizmente, chegamos
funtos. De todas as ingratas profissões
num dia no campo de batalha e, impos-
surgidas com a guerra, a minha pode
sibilitados de completar nosso trabalho
ser contada entre as mais tediosas e
ao longo de um ciclo completo de sol,
desprovidas de interesse. Gastar a vida
temos de deixar o território sempre in-
com cadáveres (e ainda por cima unifor-
completamente cartografado, pois a
mizados) é como viver cercado de coi-
frequência das matanças a registrar é
sas inertes, silenciosas, às quais a última
mais rápida que nosso trabalho contá-
demonstração de respeito poderia ser
bil.
uma sepultura, todavia impossível. Mi-
Ontem vimos um homem cober-
nha tarefa dispensa ferramentas sofis-
to pelas vísceras do seu cavalo. Como
ticadas. Tenho à minha disposição uma
meus subordinados não encontraram
prancheta, um caderno, um lápis, uma
qualquer referência do seu nome, pro-
caneta-tinteiro, que carrego somente
cedência ou vinculação regimentar, o
por questão de consciência (que fun-
chamamos de “centauro”. Quando servi
cionário do grande exército não carre-
na campanha peninsular, um basco a
ga consigo uma delas?), alfarrábios de
nosso serviço me disse que, para o seu
outras guerras (a título de comparação
brioso povo, tudo o que existe, se exis-
numérica) e vinte lacaios de raia-miúda
te, tem um nome. É esta lógica que pro-
encarregados de identificar, nome por
curo aplicar àqueles que encontramos
nome, os que caíram por nossa bandei-
sem ter como chamá-los. Mesmo à for-
ra. São eles, em verdade, que perambu-
ça e jocosamente, criamos alcunhas.
lam pelos terrenos desolados das bata-
Já estamos muito longe da pátria.
lhas. Reservo-me a simples tabulação
primeiro semestre 2013 29
contos

Tanto no tempo quanto no espaço. Sin- lacaios, embora titubeantes, que coin-
to, às vezes, que meu trabalho já não faz cidências acontecem. Em Wizma, logo
o menor sentido. Pouco importa. Tama- em seguida, quatro; em Dorogobouge,
nha guerra e tão numerosas mortes já oito; em Chjat, trinta e dois. Às margens
eximiram os homens de procurar qual- do rio Moscowa, dos nossos dez mil sol-
quer explicação. Para qualquer coisa. dados caídos, duzentos e cinquenta e
Guerras simplesmente acontecem, as- seis chamavam-se Giscard Jeunet. Pró-
sim como simplesmente existe o enfa- ximo ao pequeno barranco em que me
donho trabalho de contar aqueles que escorava, incrédulo, para confeccionar
têm suas vidas ceifadas por ela. as tabelas do desastre, encontrava-se
Há, entretanto certa recorrência uma pilha de oito Giscard Jeunets. Eles
que me perturba. Kovno, Vilnus, Smor- se amontoavam com a falta de elegân-
goni, Molodezno, Polosk e Minsk: em cia própria aos defuntos insepultos. Tive
todos estes campos de batalha – con- vontade de entregar-me a Deus e inci-
fesso: uns melhores inventariados que nerar meus relatórios sem propósito: de
outros – há sempre o mesmo soldado que vale ao mundo a reiteração numé-
“Jeunet, Giscard, 4ª div. Inf.” para ser con- rica da morte de um mesmo indivíduo?
tabilizado. É impossível que seja sempre No acampamento seguinte, não
o mesmo, embora seja igualmente difí- me furtei a procurar, entre os soldados
cil acreditar que toda uma divisão do vivos, aqueles que posteriormente en-
exército napoleônico possua o mesmo contraria com a graça de Giscard Jeu-
nome. “A França é grande”, pensava eu net. Nenhum deles respondeu ao nome
a cada novo achado, “é natural que duas maldito. Nem mesmo aqueles que, feri-
ou mais pessoas tenham nomes iguais”. dos de morte no hospital de campanha,
E assim prosseguia a contagem, sem se assemelhavam-se ao Giscard Jeunet
que a minha confiança no tédio das leis de todas as batalhas grassadas. Tive
universais fosse quebrada. ainda de substituir dois de meus lacaios
Ao cruzar a fronteira da Rússia neste acampamento. Um deles deser-
branca, avançando pelas planícies de tou da companhia ao delirar, cambale-
Smolensk, passamos a encontrar não ante sobre a neve, que Giscard Jeunet
um, mas vários Giscard Jeunet nas deso- anunciava a chegada do anticristo. O
lações inventariadas. Em Dukhovshnina outro se perdeu numa floresta e grita-
eram apenas dois. Reafirmamos, eu e os va, a plenos pulmões: “Matem-me, bár-

30 MACONDO revista literária


quem se
baros, pois sou Giscard Jeunet!”
Calculo (considerando que ven-
ceremos a guerra) que até chegarmos

importa?
a Moscou serão ao todo 8.192 Giscard
Jeunets a serem contabilizados. Isto,
claro, se nenhuma outra batalha for tra-
vada entre nossa posição atual e a capi-
Eu sei, prometi que um dia escre-
tal da Grande Rússia. Através do modelo
veria um poema com teu nome, te des-
estatístico por mim desenvolvido, o nú-
creveria assim, mas tá complicado de
mero de homônimos a serem encontra-
encaixar as malditas rimas e construir
dos na batalha futura é o resultado da
uma estrutura bela que esteja a tua al-
multiplicação de Giscard Jeunets da ba-
tura. Tudo que tenho são vacuidades no
talha presente pelo número de Giscard
olhar, imensidão de textos inacabados
Jeunets da batalha anterior. Isto, claro,
e todas as contas a pagar dos meses de
tomando-se em consideração apenas
julho, agosto e setembro. Semana pas-
os campos inventariados por mim. Sabe
sada fugi de um cobrador histérico, ali
se lá se nos outros flancos muitos outros
na Rua da Praia, sabe? De repente me vi
Giscard Jeunets não são encontrados
correndo desesperadamente tentando
por meus colegas seguindo algoritmos
esquivar dos transeuntes apressados
diferentes.
e dos vendedores que se espalham, se
Temo, entretanto, que antes de
amontoam por ali, é nessas horas que
penetrarmos os subúrbios de Moscou
a gente deseja uma bicicleta. Ah! Não
toda a Europa sob bandeira napoleôni-
pude deixar barato, tive de reagir. De-
ca se torne Giscard Jeunet. De alguma
sonrar a memória dos meus antepassa-
forma muito estranha já me sinto um
dos na frente do meu irmão, em pleno
deles. Giscard Jeunet entre Giscard Jeu-
bar. Comecei quebrando todos copos
nets, esvaziando de mim o que resta de
e garrafas da nossa mesa, atirando-os
meu nome (já nem o lembro mais) com
ao chão, tentando acompanhar o rit-
a mesma velocidade que avança, desde
mo da música ambiente, não deu certo.
a linha do horizonte, uma companhia
Depois, quebrei minuciosamente todos
de cossacos.
quadros com o melhor taco de sinuca
da casa, o qual roubei. Pulei o balcão
caetano sordi e, entre goles de Jack Daniels, atirei na
primeiro semestre 2013 31
contos

parede oposta todas garrafas de be- pobre velhote, a cara judiada pela vida
bidas que não me agradam. Após, fui desregrada e sofrida, uma vida de mer-
para a cozinha e pedi pra dona Neusa da, pobre velhote. Fui embora com um
sair dali que o estrago seria grande. Fiz sorriso malicioso no rosto, meu taco de
tudo calmamente, com a serenidade de sinuca debaixo do braço e todas as con-
um monge zen-budista, pra não perder tas a pagar dos meses de julho, agosto e
a razão. Nessa altura do meu desvario setembro e mais a conta do estrago no
os clientes já haviam abandonado o lo- bar do Darci, naquela tarde chuvosa de
cal, com medo, pânico e curiosidade. outubro, sem o interesse de buscar no-
Meu olhar não perdeu sua vacuidade vos rumos, novos ares e destinos, pou-
habitual, mas minhas mãos pararam co me importava pra que lado ficava a
de tremer por alguns instantes. Jamais longa estrada para a liberdade, solidão,
senti remorso, sentimento dos fracos só queria chegar em casa. Cheguei, ser-
e mentirosos. O cobrador, dono do re- vi um copo de Jack, acendi um cigarro
cinto, conhecido como Darci, se encon- e fui pra janela pensar. A vida é engra-
trava escondido no banheiro, ligando çada. A vida é a única coisa que todos
pra polícia. Arranquei o celular de suas temos em comum, cada um com a sua.
mãos, atirei no vaso e dei descarga. O Escrever é uma atividade como qual-
infeliz era incapaz de me encarar nos quer outra, é como engraxar um sapato,
olhos. Pudera eu, aos 22, ver aquele se- tocar um instrumento, julgar um pobre
nhor aos 44 chorando feito um guri de diabo no banco dos réus, lapidar umas
8, lamentei sua fraqueza e sentenciei palavras, afiar com esmero minhas fra-
pausadamente baixinho ao seu ouvido ses, mergulhar de cabeça no possível
com ar augusto e voz levemente rouca: título insólito deste conto. É, eu dou tí-
“Fecha essa espelunca, calcula quanto tulo por último às minhas obras. Quem
te devo incluindo os estragos de hoje, se importa?
amanhã de manhã a gente acerta.”. Não
me disse nada, só concordou com a ca- henrique ribeiro da silva
beça. Percebi que, naquele momento, o
que o velho mais desejava era que eu
fosse embora e nunca mais surgisse em
sua vida. Pensei em algum tipo de tor-
tura sádica e psicológica, mas só pensei,

32 MACONDO revista literária


o homem
à procura de qualquer corpo perdido
entre as casas. Minha mãe deixou de
contar com o marido para o que quer

com 33
que fosse, titio passou a cuidar dela, en-
chendo-lhe o âmago de vaidades:
— Meu irmão é gente grande, lá
em Maputo… Oficial dos exércitos! —
andares na Gabava-se a minha mãe, sempre que se
referia ao tio João, em conversa com ou-
tras aldeãs.

cabeça Quando ele ia ao povoado visitar-


-nos, falava do prédio 33 andares, a mais
alta construção da cidade de Maputo,
Vinte e quatro anos mais tarde, no qual morava. Enquanto narrava, eu
eu havia de recordar-me, algo envergo- olhava para o céu, com o dedinho em
nhado e meio a rir-me, das circunstân- riste a contar estrelas, fingindo ser cada
cias da minha chegada à cidade, vindo uma delas, uma das casas do prédio.
da aldeia que me viu nascer. Para mim, — Eh, não conta as estrelas! Que-
Maputo afigurava-se, ao mesmo tempo, res fazer xixi na cama?— Berrava a mi-
como um lugar estranho e conhecido, nha mãe, arrebatando-me o dedo. Acto
de tanto ouvir o meu tio João contar na contínuo, eu meneava a cabeça e res-
aldeia, em noites de lua cheia, histórias pondia-lhe negativamente. Mas, logo a
das suas amplas casas sobrepostas, um seguir, levantava novamente os olhos,
autêntico amontoado de pedra sem redondinhos a contemplar a imensidão
igual. e, em segredo, perdia-me a somar estre-
Muitos anos mais tarde, vim a sa- las até atingir o 33° andar.
ber que a aldeia fora a pior coisa que — E as pessoas vão como, lá para a
podia ter surgido na vida do meu pai, ao última casa, titio? Passam assim, a andar
despegar-lhe da terra dos seus ances- na boa, pelas casas uns dos outros?
trais, onde nascera e sepultara os pais, — Nada, sobrinho! Usam o eleva-
os avôs, os bisavôs e toda a sua pro- dor. Ou as escadas, nos dias sem ener-
génie, não mais voltou a ser o mesmo. gia!
Passou a andar taciturno, macambúzio, — O que é um elevador? Escadas?
juntinho às paredes, qual assombração
primeiro semestre 2013 33
contos

O que é energia? porto, desencontrando-se, sempre, do


Aí, o meu tio complicava-me mui- próprio dono. A vergonha não deixou o
to mais a cabeça, com explicações que meu tio aproximar-se do saco, quando
eu não conseguia entender. Quando eu, todo enfunado de orgulho, apontei
começava a parecer que a minha ca- para o carbónico combustível:
chola estava a fundir, fritarem-se-me os — É o nosso saco de carvão, titio.
miolos todos, eu fingia ter compreendi- A mamã mandou para a tia Hawa!
do, evitando assim dar em doido de sair Tia Hawa era a esposa do titio. O
a entoar doidices pelos caminhos da al- casal tinha-se conhecido no convento
deia, igual ao velho John Nyansala. onde ela se recolhera para seguir sua
— Um dia desses chamo-te. Irás vocação de Fé. Sonhava ser freira, levar
conhecer a cidade! uma vida restrita, Deus e ela, alheia a
O meu tio, homem de palavra, não qualquer manifestação do mundo pe-
igual a salamandra, ou os políticos com caminoso cá de fora. Mas, a guerra, in-
duas línguas, cada uma a falar a sua pró- sana que é, programou um ataque ao
pria coisa sobre o mesmo assunto, nas convento. Soldados de ambas as partes
férias de fim-de-ano seguintes, mandou sairiam da contenda com mulheris tro-
uma carta e dinheiro de avião. A minha féus. Ao tio João coube a menina Hawa,
vinda a Maputo era já uma questão de desvirginada por ele naquela mesma
pouco tempo. No ano lectivo prestes a noite, prenhe de punhais a rasgar os
iniciar, eu devia entrar no secundário. eclesiásticos paramentos.
A minha mãe tinha ouvido dizer, — É o nosso saco de carvão, titio!
não sei de quem, que em Maputo havia — Esquece o saco. Vamos ver o
falta de gás, lenha e carvão. Viviam-se prédio!
tempos difíceis, de seca, guerra e fome. — Aquele, de 33 andares, onde o
Ela lembrou-se de mandar uma lem- titio mora?
brança para o irmão, o meu tio João. Não havia como o saco não ficar
Nunca vim a saber exatamente abandonado no tapete. Voei quilóme-
como, mas a minha previdente mãezi- tros e quilómetros, na cabeça só a es-
nha conseguiu pôr-me a viajar de avião, pectativa de ver as casas sobrepostas,
com uma bagagem algo invulgar no pedra sobre pedra, quase a roçar o céu.
porão: um saco de carvão, que ficou a Entrámos na viatura, de marca
girar sem fim no tapete rolante do aero- Lada, do serviço do tio João, e fomos

34 MACONDO revista literária


deslizando até ao prédio. Já no eleva- meira vista! Ela tinha os seus próprios
dor, ele carregou no botão 22. Senti um motivos, alguns traumas impediam-na
pequeno abanão, mas titio tratou logo de pensar sequer em voltar a morar
de avisar: numa aldeia, cicatrizes da guerra…
— Já estamos a subir! Eu, todos os dias, vendendo bugi-
— O motorista está aonde? É como gangas pelas artérias da cidade, ambu-
no avião, titio, onde o piloto não se vê? lante, fatigado, deixo-me descansar nas
Daí passaram algumas semanas, e só escadas do prédio, tentando adivinhar
então percebi, o porquê de o meu tio como estará a antiga flat do meu tio João.
tanto se rir, quase a sufocar pela impe- Releio pela sexta vez uma linha da carta
tuosidade das gargalhadas. A tia Hawa, que a minha mãe expedira-me através
zelosa que era, tratou de lhe dar logo de um amigo de titio: “John Nyansala é
dois copos de água gelada, para estan- teu pai.” Reli de novo: “John Nyansala é
car a crise da avulsa risada. teu pai.” Outra vez, a missiva gritando-
Depois, passaram-se mais dois ou -me a mesma verdade nos olhos: “John
três anos, antes da assinatura dos Acor- Nyansala é teu pai! John Nyansala é teu
dos de Roma. As armas calaram-se. A pai! John Nyansala é teu pai!” Choro de
guerra acabou e muitos militares fica- raiva, enquanto me afluem à memória
ram sem trabalho. Foram desmobiliza- imagens do meu primeiro dia de aulas.
dos e o titio ficou sem emprego. À saída da escola, em conluio com um
Começou o negócio de casas, uma bando de outros meninos, rodávamos,
espécie de reversão das conquistas do em torno de um homem quase andra-
povo para a burguesia, anos antes per- joso, a cantarolar:
seguida como uma matilha de sarnen-
tos. “John Nyansala, we, we!
O tio João desembaraçou-se da John Nyansala, we, we!
sua flat, a troco do cacau desembolsado John Nyansala, we, we!
por um baniane, indo gastá-lo junto da John Nyansala,
minha mãe, lá na aldeia. John Nyansala,
Tia Hawa e eu deixámo-nos ficar John Nyansala,
por aqui, em Maputo, porque já não po- John Nyansala, we, we, we, we!”
díamos, nem podemos, viver longe do
33 andares. O meu grande amor à pri- Até hoje, ainda sinto o trovão da

primeiro semestre 2013 35


contos

bofetada que a minha mãe me descarre- Tia Hawa é que parecia ter dado com
gou na face, uma bolacha dada com os diferente sina. De quando em quando,
olhos marejados de lágrimas, a contras- via-a bamboleando as ancas, bunda ro-
tarem com os das mães dos outros me- liça e pernas torneadas, corada, numa
ninos, todas alegres ao chamar os filhos espécie de génio de santa e belzebu,
e divertindo-se também com a canção subindo escada acima até uma das ca-
de John Nyansala. Releio o parágrafo sas do prédio, onde matava a saudade
seguinte da carta. “Hoje fazes 25 anos. dos tempos em que era dona Hawa.
És homem feito e já posso contar-te. Sei Agora, quase galinha de pagar e
que merecias um outro presente. Mas, comer, ao gosto do freguês, louco de li-
Deus é que sabe. Quando viemos morar bidinosos desejos. Mas, não para todo
aqui, na aldeia comunal, acabavas de vir o sempre! Pois, um dia destes, desceu
ao mundo, apenas com uns dois ou três voando da varanda do arranha-céus.
meses de idade. O teu pai não queria vir, Minutos depois, o guarda diria
porque, vir para aqui, significava aban- à polícia ter apenas ouvido uma voz
donar a sua machamba, principalmente gritando da varanda de uma das flats:
as campas dos pais e avós. Só de pensar “Puta de merda, atirou-se do prédio!”
nisso, doía-lhe muito no coração. Ma-
goava-o deveras, ao ponto de a dor lhe aurélio furdela
encher o peito de amargura. Tanta que
cresceu e lhe subiu à cabeça. Depois fi-
cou doente do juízo, maluco, mas é o
teu pai. Desculpa a chapada que te dei
lá na escola. Imagino que não te tenhas
esquecido. Perdoas? ”
Adormeço, embalado pela fra-
grância das acácias em flor, a misturar-
-se no ar com o amoníaco a evolar da
urina que corre pelos passeios. O guar-
da do prédio vem acordar-me, quase na
hora do último autocarro para o Zimpe-
to, onde vou completar o sonho do 33
andares.

36 MACONDO revista literária


turvação rio das
Já sou velho. Não bebo mais aque-
la água. O córrego, que passa bem no
meio da cidade, saciava minha sede.
almas
Como uma turvação mental daquelas Nuestras vidas son los rios
boiadas. Aquele ribeiro fartava-me. Faz Que van dar en la mar

tanto tempo. Em época remota, vejo (e (Jorge Manrique, Coplas a la muerte de su padre)

rememoro) o remorso daquelas ruas.


Reflito aquela água. Os ponteiros passa- O primeiro contato com a água
ram. era um divisor natural. O frio trazia um
Uma água tão suja fartava, só não desconforto que, se não era insuportá-
lembro a quem. Pareciam ser tantas pes- vel, fazia-se notar: não está mais em sua
soas, puxadas por seus bois, a mergu- casa. Lucas e Marcos seguiam o ritual:
lhar naquela água com magnificência primeiro mergulhavam para acostu-
e alegria. Sentado num banco, via que mar com a temperatura da água, depois
tudo parecera manter-se igual. As cons- buscavam a boia que haviam deixado
truções mantinham-se velhas. Como as em terra firme. A boia era preta e com o
árvores no mesmo lugar, as três picha- formato de uma câmara de ar, dessas de
ções no muro se inventaram. carro, e tinha esse formato justamente
Estou velho, resta pouco tempo. porque era uma câmara de ar de trator.
Beber aquela água, mesmo que suja, Nada de diferente, quase todos os me-
dilucidara-me. Vejo a segunda infância ninos tinham uma dessas para descer
daqueles que mergulhavam naquele ri- o rio, os que não tinham dividiam com
beiro. Cada qual, face de uma só. Eram algum amigo. Há algum tempo o avô
a mesma criatura e, em cada face, uma de Lucas arrumara a boia para o neto,
verdade; reflexo de um todo. Andando que logo chamou Marcos para desce-
trôpega, aquela alma velha seguia. Re- rem juntos as corredeiras do rio. Desde
generada. É aqui que acaba? esse dia era a mesma coisa, pegavam a
estrada do Calipá, seguiam até a pon-
te, de lá começavam a descer o rio. Iam
rafael batista
contando, uma, duas, na terceira ponte

primeiro semestre 2013 37


contos

aportavam de volta. que assim, batizado Rio Branco, acabou


Assim faziam todos os meninos. O ficando Rio das Almas.
pai de João avisara, outros também avi- Molhados os dois, era hora de pe-
savam: depois da terceira ponte não se gar a boia. A regra era ficar cada um de
volta, o rio cresce em corredeiras mais um lado: pesavam quase a mesma coisa
violentas e nenhuma ponte surge para e assim a embarcação improvisada, que
o sossego. Parar? Só seguindo muito, tinha como maior defeito a falta de pru-
muito, que se chega à rodovia, mas até mo, permanecia equilibrada.
lá... Outros pais não diziam nada, não — Marcos, rema aí pra virar um
porque discordassem das coordenadas, pouco. Estou descendo de lado.
mas porque discordavam da brincadei- Seguiam assim os primeiros movi-
ra. O rio tinha uns vinte metros de largu- mentos na água, ordenando a descida.
ra; variava muito. Em época de cheia, só O principal, pensavam, é ordenar logo
os meninos mais velhos é que tinham o começo – viagem começando envie-
coragem de descer a correnteza de sada terminava nem se sabe como. Ti-
boia; mesmo para mergulhar da ponte nham mesmo essa confiança, de que
o rio ficava perigoso. Diziam que o filho todo o rumo da viagem pautava-se pelo
de seu Inácio sumira descendo o rio em seu começo.
sua boia, finais de março, nunca voltou. — Mais, Marcos, estamos descen-
Foi um choque na cidade, o menino, tão do de lado, daqui a pouco estamos de
bom, dizia o pai que seria engenheiro, costas e nem passamos da primeira
construía o prédio novo da prefeitura, ponte.
a reforma da ponte também ficaria por Era uma espécie de decolagem. Só
conta do menino, grande engenheiro depois de aprumada a boia, tomados
feito, que o pai, esses problemas, em os lugares corretamente, bico à frente
sua cabeça já tinha tudo resolvido. Ou- seguindo em trajetória navegável, só
tro que contavam a morte no rio era o aí podiam os dois relaxar. Não sei dos
bêbado Zé-Gato. Pulou, falavam, bêba- outros meninos como funcionavam as
do inteiro, mergulhão da ponte, épocas viagens pelo Rio das Almas, se era assim
de seca, nem água suficiente tinha pra tudo tão determinado pelo anterior,
receber gente, quem viu o corpo não mas Lucas e Marcos, esses dois sim, que
gostava de falar. Outros tantos tinham se não cruzavam a primeira ponte já to-
perdido a vida no correr daquele rio, talmente aconchegados como de cos-

38 MACONDO revista literária


tume, eram bem capazes de remar até a embarcação em seu rumo, isso faz o
a margem, subir o leito do rio e come- navegante, que assim está quase tudo
çar tudo de novo. Mania, alguns dirão. resolvido. O movimento das águas é de
Mas entendo. Havia a avó do Lucas, que conhecimento, sempre abaixo, rio vai
bordava muito, até vendia os bordados sempre ao mar. Não se luta contra a cor-
prontos. Pois a avó do Lucas bordava renteza, mas dela se aproveita.
sempre do mesmo jeito: descia as esca- — Viramos muito, Lucas, põe a
das de casa, pegava um copo de suco, mão na água. Volta um pouco, já está
subia as escadas, ajeitava as almofadas quase reto.
do sofá, sentava e começava. O primeiro Uma remada com a perna aqui,
ponto, dizia ela certa vez que Lucas quis uma instrução ali, estavam já no prumo,
aprender a bordar – escondido de todo seguindo direitinho correnteza abaixo.
mundo, é claro –, é o mais importante. Aí vinha o calor, o corpo empapado pela
O neto não entendeu muito bem, a avó mistura de suor e água doce. Outros ali
explicou. Errando o último, conserta-se se jogariam da boia, batendo as pernas
o último. Errando o primeiro, conserta- com força e esparramando água, mas
-se o último, o penúltimo e todos os os dois não podiam perder o rumo que
outros também. O primeiro ponto do com tanta dificuldade encontraram.
bordado definia como seriam todos os Com as mãos faziam conchas que en-
outros. O primeiro ponto faz a toalha, chiam com água do rio, depois levavam
dizia a avó. Lucas entendeu, até concor- as mãos ao rosto, ao peito, aos braços. O
dava, mas aí a seguir tanto assim? Via calor era assim, o primeiro a chegar de-
das dúvidas, certo dia contou ao amigo. pois de tudo feito; depois dele vinham
Marcos tinha em sua casa uma toalha os pensamentos, depois a conversa. As-
bordada e presenteada por dona Leo- sim seguia.
nor, avó do amigo; nas laterais da toalha — Por que você não saiu ontem?
flores azuis recebiam pequenos pássa- Ficamos lá na rua, a quadra estava fe-
ros alaranjados de asas abertas. Amava chada.
aquela toalha, nem sabia o porquê. Tão — Meu pai. Chegou em casa irri-
logo o amigo contou das manias da avó tado. Logo que me viu começou a fa-
na hora de bordar, Marcos decidiu que lação. Dever, cadê? Pensa que é tudo
assim é que navegariam. brincadeira? Nada de rua, pode ir pro
Içar as âncoras, homens, aprumar seu quarto fazer a lição.

primeiro semestre 2013 39


contos

— Mas se nem tinha lição. sava lá atrás, numa maneira engraçada


— Da próxima vez você passa lá de pensar dividido, se concentrava em
pra avisar ele, então. procurar os peixes, em analisar o porquê
— Foda! Ainda bem que meu pai de nunca encontrar peixes em um rio
trabalha longe. Quando chega só quer como aquele, tanto já ouvira elogiarem
saber de perguntar como vai tudo. Pede a pescaria naquelas águas, tentava defi-
pra eu ficar em casa, aproveitar a com- nir quais espécies por ali deviam habitar:
panhia dele, digo que volto mais cedo, tilápia, piapara, pacu, corvina, manjuba,
não volto, e ele nem bravo não fica. tucunaré e até mesmo pintado diziam
— Como eu queria que fosse as- já ter pescado. Nunca vira nenhum, vira
sim em casa também, podia ir meu pai já uma lontra certa vez. Como riram! O
e minha mãe, que é outra. bicho botava a cabeça pra fora, rápido
— Brigar mesmo só em final de mergulhava e sumia, mal se via a água
ano. Dá uns dez dias meu pai já come- mexer; procuravam, procuravam, quan-
ça a perder a saudade, e aí fica como se do viam surgia de novo, mesma cara de
morasse com a gente. Mas logo passa e malandra, lá quase vinte metros de dis-
ele tem que voltar para trabalhar. tância. Como riram, ia pensando Lucas,
— Inveja... mas lá no fundo evitava pensar naquilo,
O silêncio desceu repentinamen- esquece, é que ziguezagueava, pra quê.
te, sabiam o porquê. Lucas virou o rosto Viram passar vagarosamente a primeira
para o lado; olhava tudo como se fosse ponte.
pela última vez, ainda que não fosse. Pro- Os garotos aproveitavam a brisa
vavelmente voltaria ali, ir embora só ia que corria entre as árvores crescidas no
no começo do ano, mas, mesmo assim, leito do rio. O sol já não castigava como
sentia-se diferente, tudo era despedida. há pouco, às vezes até sumia por um
Começou a passar os dedos pela água, tempo, atrás de alguma nuvem ou ofus-
olhando fixo para baixo, aproveitava a cado pelo folharal uníssono que toma-
limpidez daquela parte do rio para pro- va as duas margens. O rio descia menos
curar algum peixe, pequeno que fosse preguiçoso, começava já a engrenar
– não eram águas naturais, rio mesmo? corredeira em algumas partes, pouco
Deveria ter peixe, outro animal que fos- ainda. Entre os galhos das árvores, um
se, mas nada aparecia, como sempre. bando de urubus voava em círculos for-
Nisso ia pensando Lucas, mas pen- mando revoadas de sombra nas águas

40 MACONDO revista literária


um pouco mais escuras do rio. Às vezes Passaram pela segunda ponte.
um deles empoleirava-se, ficava acom- A correnteza corria mais depressa, a tar-
panhando o voo do resto do grupo, pa- de já devia estar bem adiantada. Os dois
recia que apreciava. Aí o urubu cansava- começaram a prestar mais atenção no
-se, com força arremessava o corpo ao movimento da boia, firmavam os pés
ar fazendo tremer o galho vacilante sob na água tentando diminuir a velocidade
seu peso, batia uma, no máximo duas quando alguma curva mais acentuada
vezes as asas e adentrava o círculo de surgia à frente. Iam guiando confiantes,
voar tão leve; parecia que esperavam- conheciam cada curva, banco de areia,
-no, já orquestrando sua chegada, evi- ou mesmo galho encoberto pelas águas
tando a sua solidão. daquele rio. Silencioso, suave, singelo
— Esses bichos voam, voam, nem mesmo, o Das Almas, como às vezes re-
mexem as asas. sumiam, seguia seu percurso até o mar
— Pois é. E nem pequenos não com delicadeza; mesmo sua fúria, que
são. Olha aquele ali. não era pouca, seguia essa ordenação
— Um boi. das coisas, essa tranquilidade que não
— É. mudava nem mesmo quando a corren-
Assim seguia o assunto. Parado. teza era violenta. Quando as chuvas de
Marcos fazia menção de falar, virava a final de verão estouravam trovejando
cabeça pra Lucas, que já esperava o co- sobre sua superfície, ele aceitava com
mentário do amigo, preparava o seu. sobriedade esse lufar de vida nova, tre-
Nada vinha na cabeça. Falar do quê? pidava um pouco, chacoalhava-se au-
Corria rapidamente qualquer assunto: mentando o espetáculo, mostrando ao
escola, futebol, aquela menina nova céu que espelho é o mar: o Das Almas
na sala, aquela outra que todo mundo tinha lá suas personalidades. Era tam-
sabia gostava do Lucas, dizem que ela bém genioso, que dele fizessem pouco
já comentava com as amigas da ida do isso é que não aceitava, mas seu estilo
garoto. Aí lembrava; pronto! Que todo era sempre singelo – assim descia todas
assunto atravessava uma linha tênue, aquelas terras para chegar ao mar. Cal-
isso pode, isso não, e era já o isso não, mo mesmo na fúria, contundente mes-
o próprio ato de negar, que trazia em si mo na placidez:
mesmo o assunto: Lucas ia morar com o — Olha!
pai. O berro de Lucas foi tão alto, tão repen-

primeiro semestre 2013 41


contos

tino e inesperado, que Marcos quase foi que o dourado assomava reinante, do
boia abaixo. Alguns urubus já meio dor- lado de dentro, do entre-águas. Marcos
midos sobre as árvores se espantaram, vacilou foi ante essa ideia. Todo o negro
tremeram os galhos derrubando que mundo sob seus pés, a areia fina, mas
houvesse de frutas e folhas já meio sol- barrenta que se abria finamente para as
tas. raízes encharcadas das pequenas algas
— Quê foi, Lucas, precisa gritar as- e plantas aquáticas, os peixes e peque-
sim? Viu um jacaré por acaso? nos animais, tão nanicos, brigando para
— Olha! deixar que o outro, e não ele, virasse
Só isso conseguia falar Lucas, re- comida para aqueles que, ainda lon-
petindo as palavras e os gestos. Imóvel, ge de serem grandes, eram maiores. E
apontava para a água. Marcos se apoiou aí os que ficavam mediando, piau pas-
e com cuidado levantou o pescoço, es- sava engolindo coisa que fosse, inseto
ticando-se para procurar o que o amigo ou fruta, com aquela boca pequena, e
apontava. Entre as águas refratárias e olhando lá pra cima, estranhando de re-
amarronzadas esgueirava-se um ama- pente aquela sombra que se projetava;
relo vivo, tingido das cores tristes do rio. viam todos só a barriga, nem amarela
Foi levantando mais, pode ver bem o era, tremiam todos, nadava vagabundo
que o amigo gritara, que tamanho, nun- e arrogante aquele gigantesco doura-
ca vira algo assim: era um dourado! do. Isso pensou Marcos, tirou quase que
— Nossa! como tique os pés da água.
I mperceptivelmente, Marcos co- Lucas não lembrou de piau ne-
meçou a puxar os pés para cima da boia. nhum, corvina, inseto ou o que fosse,
Sabia que dourado não comia gente, era por ali esses nunca passaram; admira-
óbvio, comia turiva, curimbatá, sarapó; va aquele dourado como se fosse ele
naquele rio provavelmente mais man- mesmo. Um peixe naquele rio, o peixe
juba, piapara e lambari, mas não gente. daquele rio, sendo que por isso tanto
Era óbvio, até ridículo, sabia, mas o bi- esperara. Acompanhava os movimen-
cho, quase um metro, de repente pare- tos calmos do bicho com os olhos arre-
cia ser o dono do rio. Não do rio como galados, nem falar mais não conseguia.
um todo, leito, árvores e animais ao re- Sentiu-se preso ao rio, àquele lugar, dali
dor, nem mesmo pássaros voantes so- não podia sair: era já ele mesmo o peixe,
bre as margens, era do outro lado do rio o dourado que reinava aquelas águas;

42 MACONDO revista literária


nada ali era capaz de causar-lhe apreen- que tinha a ver com isso? Alguém per-
são, tinha quase um metro, era naque- guntara se concordava? Se preferia as
las águas calmas que deveria continuar. águas marrons do Das Almas indo para
Mas aí é que vinha o desespero, o mar ou para o coreto da praça tocar
tantos anos esperando pra ver o peixe, zabumba? Isso lá foi com ele decidido?
agora ali ao seu lado vagava tranquilo Ocorreu votação? Pois se ocorreu não
um dourado, quase um metro devia ter, votara, pra ele não servia. Queria mes-
e a boia não parava. A correnteza não mo fosse à merda tudo: ficariam ele, o
parava, continuavam descendo. Anos amigo e o peixe.
esperando e agora parecia que nin- A água enegrecia sob a luz pro-
guém lembrava, nada esperava, foi se fundamente alaranjada do sol. Começa-
desesperando, mudo ainda. Marcos ao vam os barulhos do lusco-fusco; saíam
seu lado também observava o peixe, os pássaros de cantar alegre, dando es-
começava já a virar a boia tanto o me- paço aos sapos, ao excesso de grilos e
nino se levantava para procurar o bi- ao zumbido dos mosquitos. O bruxule-
cho que cada vez mais distanciava. A ar do matagal volteando o rio aumenta-
cor amarelada foi fugindo, o dourado va, aqui e ali pequenos animais esguei-
foi se tornando fosco, meio cinza, já de- ravam-se às margens do Das Almas.
pois marrom, marrom, marrom, sumiu Às vezes algum mergulhava sorrateiro,
nas águas. Lucas quedou-se paralisa- nem balançar a água não balançava,
do, o olhar perdido focava o rio que já pouco se podia ouvir, menos ainda ver;
passara. Olhando para trás o menino se ao olhar já tinham passado, sumido no
angustiava pensando que o peixe con- breu do rio. Lucas e Marcos mantinham
tinuava lá, era culpa da correnteza, nem um silêncio quase sepulcral; os dedos
havia maneira de lá continuar – quem de um ou de outro volteava o plano rijo
partia era ele mesmo. A letargia foi vi- e tênue cristalizado pela água; era um
rando ódio, que tinha ele que ver com encostar de mundos, um contato que
o movimento das águas? Se o rio procu- ligava o de lá de baixo ao de cima, uma
rava o mar, problema era dele? Queria multiplicação de sensações. Ainda que
ficar lá com o dourado; ele, Marcos e o tentassem, já não conseguiam mais evi-
peixe. Sempre só os três, assim deseja- tar os pensamentos. Pior: já não tinham
va. A boia segue a correnteza, que se- mais forças nem pra evitar na cara os
gue o declive, que ruma ao mar... e ele pensamentos que corroíam a sobrieda-

primeiro semestre 2013 43


contos

Iam tão absortos que ora passavam


longos momentos olhando um para o
outro sem dizer palavra, ora miravam
ao longe, tempo longo passando, nem
mesmo saberiam dizer o que olhavam.
Já não era mais desespero que assoma-
va sobre as águas do rio, nem havia o
que censurar do movimento das águas:
era o natural. Foram aceitando. Aceitan-
do calados, sem contestar, parecia não
haver mais problema. Mas de repente
foi virando mais que aceitação, mais
que simples consentimento. Aquie-
taram-se, pois surgiu-lhes certa ideia;
nem se pode dizer que surgiu, parecia já
estava ali faz tempo; sempre. Passaram
da paisagem longínqua, observaram a
imagem mais próxima, foram volvendo
o olhar um ao outro, tiveram a ideia jun-
tos, cabeças que em grupo pensaram,
talvez pela pouca distância entre uma e
outra. E talvez tenha sido esse olhar as-
sim, adivinhando um o pensamento do
outro, surpresos de a mesma coisa pen-
sarem, mesmo momento, foi surgindo
em cada boca uma fisgada, quase de
anzol mesmo, puxando lábio, fazendo
abrir-se primeiro em tímido sorriso, de-
pois em grande risada. Estouraram em
gargalhada, divertindo-se muito.
Atravessaram a terceira ponte.

ricardo russano
44 MACONDO revista literária
ensaio
ensaio

FAMÍLIA EM a história de três gerações compostas


quase que exclusivamente por homens.
DESORDEM Afonso e seu filho Pedro têm suas tra-
jetórias brevemente narradas, sendo
Danilo Sales importante destacar o permanente
conflito entre esse pai e seu filho. Torna-
Trato da decadência familiar em do símbolo da fraqueza decorrente da
três romances de língua portuguesa: Os educação romântica e católica que re-
Maias de Eça de Queirós (1888), Lavoura cebe quando criança, Pedro é o oposto
Arcaica de Raduan Nassar (1975) e Cin- do pai, um liberal que, dotado de forte
zas do Norte de Milton Hatoum (2005). ânimo, simboliza a potência do homem
Partindo da análise comparativa entre culto e progressista.
as obras, busco compreender o impulso A narrativa, entretanto, focaliza
desagregador que percorre as diferen- a história de um terceiro personagem:
tes narrativas. Carlos da Maia, filho de Pedro e neto de
Tendo em vista as diferentes datas Afonso. Fruto do relacionamento entre
de publicação e as peculiaridades das um homem romântico e uma mulher
diversas tramas, limito-me, no presente volátil, Carlos tem um breve contato
texto, a comparar os núcleos familiares com seus pais. A mãe adúltera foge com
representados, tomando a desestrutu- outro homem e o pai, em conseqüên-
ração dos laços como elemento temá- cia, se suicida. Pedro é criado por seu
tico que perpassa as obras estudadas. avô. Enxergando na criação do neto a
Com base na hipótese de que os três possibilidade de transmissão dos seus
romances representam tensões entre valores, Afonso o submete aos moldes
gerações, confronto essas narrativas a de uma rígida educação britânica, com
partir das diferentes possibilidades de o intuito de gerar no neto uma disposi-
resolução dos conflitos que apresen- ção afetiva mais sólida que aquela ob-
tam. servada no filho.
*** Um ilusório êxito do projeto de
Em Os Maias, romance que apre- Afonso faz-se notar quando Carlos tor-
senta a progressiva falência da outro- na-se médico de relativo prestígio e
ra imponente família de sobrenome volta então à pátria para morar ao lado
homônimo ao título, acompanhamos do avô. Reformado o casarão do Rama-

46 MACONDO revista literária


lhete, transformando-se novamente em quentemente, da ação incestuosa) não
opulento lar dos Maias, a vida da família impede que Carlos prossiga o relacio-
transcorre pacificamente. A estabilida- namento com Maria Eduarda, mas aos
de familiar parece então restabelecida: poucos a paixão o dilacera internamen-
atingido o objetivo do patriarca de efe- te e altera a percepção da mulher ama-
tuar no neto o progresso que não havia da e do próprio amor, que passa a ser
sido possível alcançar na formação do associado a um impulso animalesco. A
filho e dignificada a estrutura arquitetô- irrupção do incesto na trama promove
nica que expressava a abastança e a re- não só a ruptura do caso amoroso en-
generação do núcleo familiar, a harmo- tre os irmãos, mas também o confron-
nia entre as diferentes gerações parecia to entre neto e avô. Ao saber da notícia,
garantida. A promessa de progresso se Afonso se decepciona amargamente e
insinuava, formando o clima de aparen- desse desgosto resulta sua morte
te estabilidade. Originando os conflitos que vão
Surge então a figura de Maria Edu- demolir a estrutura nuclear dessa famí-
arda, suposta mulher de um cavalheiro lia, o incesto surge, no plano figurativo,
brasileiro. A personagem evoca rapida- como a fratura da ordem instituída. Ao
mente no espírito de Carlos o amor pro- romper com um tabu, o protagonista
fundo, e esse seu desejo os leva a man- instaura a desordem no seio familiar,
ter uma relação intensa de concubinato. causando o seu desmembramento. Por
Ultrapassando os limites aceitáveis da contaminação simbólica, a morte de
conjunção adúltera, o romance é des- Afonso é a derrocada do poder patriar-
coberto e algumas verdades são reve- cal – o qual, abalado seriamente pelo
ladas: Maria Eduarda não é casada, mas impulso desagregador da relação inces-
vive como acompanhante de Castro tuosa, sucumbe.
Gomes, o qual “disponibiliza” a mulher O impacto causado pela morte
para a vivência do amor que parecia im- de Afonso faz com que Maria Eduarda
possível. Eliminado esse obstáculo, os seja exilada na França e com que Car-
amantes planejam o matrimônio. los também se exile durante dez anos,
O projeto de união é, no entanto, após os quais regressa a Lisboa. Redu-
interrompido pelo surgimento da notí- zida a família a apenas um integrante,
cia atroz: os amantes são irmãos. O co- a sina trágica de decadência está apa-
nhecimento do parentesco (e, conse- rentemente anunciada na impossibi-

primeiro semestre 2013 47


ensaio

lidade genealógica dos Maias: Carlos, no próprio pensamento (evocado na


como uma espécie de filho revoltado, discordância entre a teoria e a prática), a
foi inconscientemente responsável pela geração aludida por Eça está no centro
morte do patriarca, e, ao mesmo tempo, da tensão entre a ameaça de dissolução
não parece capaz de estabelecer uma e a esperança de continuidade. No ro-
nova lei que permita dar continuidade mance, o conflito entre as gerações cul-
a sua estirpe. Consequentemente, entra mina com a morte do patriarca, porém
em vigor uma ameaça de dissolução, o representante dessa descendência
que insinua agora uma instabilidade in- vinga apenas enquanto oscilação, dú-
superável. vida. A possibilidade de superação dos
É sintomático, então, perceber impasses vividos pela geração de Carlos
a cena final do romance de Eça como Eduardo – que, em larga medida, repre-
ambígua. Estando os amigos Carlos da senta a cultura portuguesa em tempos
Maia e João da Ega conversando sobre de Regeneração – aparece apenas como
a “teoria da existência”, cujo teor se re- uma tentativa, como uma “probabilida-
sume à invalidade do esforço para qual- de longínqua surgida no ocaso”.
quer objetivo, lembram-se que estão ***
atrasados para chegar a uma reunião Em Lavoura Arcaica, romance que
marcada e resolvem correr atrás do apresenta a insurreição do filho em re-
“americano” que está passando naque- lação à ordem familiar ditada pelo pai,
le momento. Podendo ser lida como um a narrativa acompanha a partida e o
traço de esperança, a corrida de Carlos retorno do rebento desgarrado. Filho
e Ega assinala também a superficialida- revoltado, incompatível com a estrutu-
de das doutrinas pessimistas que cons- ra do lar que o circunda, após ter reali-
tituem matéria da conversa que acaba- zado o incesto com a irmã Ana, resolve
ram de travar entre eles. Prometendo se afastar do núcleo familiar. Temendo
inércia, imediatamente, empreendem pela instabilidade que causaria sua pre-
uma ação, sem consciência do parado- sença na casa paterna, André se refugia
xo que executam. Suas doutrinas são numa pensão, iniciando a desagrega-
superficiais, inconsistentes e não resis- ção da família.
tem às provas mínimas impostas pela Mandado em busca de seu irmão
existência. extraviado, Pedro – que encarna a he-
Apresentando grande confronto rança da lei do pai, entrando em con-

48 MACONDO revista literária


cordância com os paradigmas do pa- da união familiar, os versículos repre-
triarca – encontra André, o qual revela sentam a restauração da ordem ante-
os motivos da sua fuga (a prisão encer- riormente abalada. No romance, contu-
rada pela casa, a doença incompatível do, a volta do filho professa a esperança
com a organização rígida do ambiente fugaz de apaziguamento das diferenças
doméstico, o confronto com a figura entre as gerações e a impossibilidade
paterna), expondo a cisão entre a lei do da restauração familiar.
pai e o desejo do filho. O incesto então Recorro ao desfecho do romance
revelado concentra a máxima ruptura de Nassar.
com a ordem da casa. Sentados à mesa, quando da volta
Afirmando a importância de An- de André, pai e filho dialogam longa-
dré para a completude da família, de- mente (todo o capítulo 25 do romance)
sestruturada desde o dia da sua parti- sem conseguir, entretanto, chegar a al-
da, Pedro arrasta finalmente o irmão de gum consenso. Tendo como base a im-
volta à casa ao evocar a tristeza que se portância da família, da terra, do traba-
abateu sobre sua mãe e irmãs. O regres- lho e do tempo, o pai – arauto da ordem
so do filho faz nascer então a promessa e da lei naquele ambiente – toma por
de felicidade no ambiente familiar, pro- absurdas as opiniões do filho, calando-
vocando na casa um clima de euforia -o durante a discussão. Incorporando
que culmina na preparação de uma fes- ao extremo sua autoridade de patriarca,
ta celebratória para a sua chegada. Agi- ele impõe ao filho a doutrina que rege o
tada pela esperança de reconciliação e progresso da família e da casa, na ten-
consequente restauração da harmonia, tativa de transmitir como herança seus
a família presta a devida solenidade ao princípios.
retorno do filho desviado. Contrário aos alicerces que sus-
Episódio obviamente alusivo à pa- tentam a lei do pai, André prossegue
rábola do filho pródigo, o regresso de amando o corpo da família e, por isso,
André apresenta uma paródia do tex- relaciona-se sexualmente com Ana
to bíblico na medida em que rompe e também com Lula, seu irmão mais
com a concordância entre as gerações novo. Tal impulso carnal aponta para o
professada no evangelho. Preceituada conflito entre esse desejo desregrado,
a harmonia definitiva entre pai e filho, que representa a pulsão maior do filho,
sendo a celebração do regresso o ápice e a ordem primeva, representada pela

primeiro semestre 2013 49


ensaio

força arcaica do pai, que preconiza um de dissolução continua visível, pois o


amor familiar sereno, abstrato, longe de embate entre gerações persiste na me-
toda concretização. mória do filho. A possibilidade de con-
Na cena final do romance, em que tinuidade está, paradoxalmente, repre-
ocorre a festa celebratória da volta do sentada na lei inexorável que sustenta o
filho desgarrado, Pedro procura por seu pai e a família: a “soberania incontestá-
pai e lhe transmite uma “sombria reve- vel do tempo”.
lação”. Este, transtornado pela notícia, ***
agarra o alfanje e desfere um golpe Em Cinzas do Norte, romance pas-
mortal sobre a filha Ana, que comemo- sado no Amazonas do início da ditadura
rava, dançando euforicamente, o retor- militar, ocorre a decadência da rica fa-
no do irmão. O desespero se abate so- mília Mattoso. O choque entre pai e fi-
bre a família, que sucumbe diante da ira lho constitui o impulso central da narra-
irrefreada do patriarca. tiva. A relação entre Trajano e seu filho
Sentindo-se ferido e ameaçado Raimundo é dificultada pela diferença
pela quebra da interdição do incesto, o que envolve as duas gerações, sendo
pai se reveste da autoridade divina que um o eterno adversário do outro. Con-
permite a ele decidir sobre a vida dos trastando visões de mundo e posições
membros da família, virando “lei incen- ideológicas, pai e filho se debatem ao
diada” capaz de destruir seu próprio re- longo do romance. O filho não conse-
bento para demonstrar a superioridade gue adequar-se à lei do pai, nem o pai
da sua força simbólica. Paradoxalmente, consegue aceitar a inovação do filho.
por ser tomado por um impulso passio- Trajano, patriarca da família, in-
nal, ele rompe o equilíbrio que sempre vestido de enorme autoridade, é um
defendera. Afinal, o patriarca também representante da força progressista,
sucumbe ante o poder desagregador responsável pela “marcha ao desenvol-
da paixão individual que nascera no fi- vimento” ecoada nos discursos oficiais
lho e projetara-se na filha. da época. Raimundo, entretanto, filho
O conflito entre as gerações cul- revoltado contra a lei instaurada pelo
mina com a destruição da família. Mes- pai, decididamente contrário ao impul-
mo abalado e tensionado pelo confron- so desenvolvimentista encarnado pelo
to com o filho, a lei do patriarca assoma suposto progenitor, é um representan-
na lavoura arcaica. Contudo, a ameaça te da força intelectual engendrada pelo

50 MACONDO revista literária


trabalho artístico. que ainda uniam o núcleo familiar. Que-
Não aceitando a diferença do fi- brado este último lastro de resistência,
lho, o pai – assumindo simbolicamen- a desestruturação toma conta do agru-
te o pacto com a máxima positivista pamento familiar, culminando então na
nacional da ordem e progresso, averso morte de Jano e de Mundo: ambas as
aos entraves impostos a essa evolução gerações são aniquiladas.
– acredita que Mundo “não promete É possível notar nessa morte de pai
nada” por seu apreço às Artes. Encon- e filho uma observação sobre o resulta-
trando abrigo na proteção materna de do do conflito entre as gerações. Desti-
Alícia e do seu “amante” Ranulfo, o filho tuídos ambos dos poderes materiais e
desviado passa então a abalar a lei do simbólicos (já que submetidos à morte,
pai, provocando-o com suas caricaturas fator capaz de finalizar a representação
e sua rebeldia em relação à ordem ins- de seus impulsos), nem Mundo nem
taurada. Jano conseguem vitória. Sem afirmar
Forma-se o abismo colocado entre as rupturas, figuradas pelo filho, nem
pai e filho, já que não existe a possibili- assegurar a continuidade do mundo re-
dade de harmonização entre os “rabis- pressor, simbolizado pelo pai, o roman-
cos obscenos” de Mundo e a “correção ce de Hatoum anuncia o encerramento
moral” representada por Jano. Essa que- de uma era em que a luta travada entre
bra na relação termina por insinuar a essas forças ocupara posição central.
descontinuidade como um destino na- A ameaça de dissolução completa
cional. é, todavia, tensionada pela figura soli-
Recorro ao final do romance em dária do órfão Olavo. O amigo de infân-
estudo. Mesmo a herança é colocada cia sobrevive para contar a tragédia de
em xeque. Mundo não é filho biológico Mundo e Jano, podendo narrar a disso-
de Jano, mas do artista impostor Arana, lução da família. Além disso, articulado
ao qual supostamente se associa pelo ao símbolo mitológico da ressurreição
seu ímpeto criativo. Essa falsa herdade da fênix, a mensagem deixada pelas
faz com que a instabilidade, antes ape- cinzas desse norte brasileiro encerra a
nas suscitada no conflito entre as gera- representação da possibilidade de res-
ções do pai e filho, seja generalizada no surgimento e renovação, mesmo após
corpo social, provocando a destruição a destruição do mundo que abrigava o
dos laços sanguíneos, únicos alicerces conflito insolúvel entre duas gerações.

primeiro semestre 2013 51


lançamentos

CONVERSA COM
ESCRITORES

Ramona Koval (Org.)

Editora Globo
448 páginas

REFORMA NA
PAULISTA E UM
CORAÇÃO PISADO

Elisa Andrade Buzzo

Oitava Rima
272 páginas

52 MACONDO revista literária


artigo
artigo

O LUGAR DO LIVRO NA ta e espectador, está por dentro e por


fora (apud FIGUEIREDO: 2010). Através
MODERNIDADE: disso, cria-se uma crença narcisista no
eu e no desejo de autoconhecimento,
UM ESTUDO SOBRE em que a procura da identidade do su-
O RETRATO jeito moderno permanece em conflito
com a realidade subjacente.
DESNATURAL, DE Ao transformar tais diários em lite-
EVANDO NASCIMENTO ratura, alterando os fatos vividos e dan-
do-lhes a forma de ficção, ou de poesia,
ao fazer da literatura uma representa-
Élen Rodrigues Gonçalves ção do cotidiano, o autor cria a sua mi-
tologia pessoal para compor a própria
“Escrevendo no escuro”, “Pedaços”,
poesia. É o que interessa à literatura
“Interversões”, “Respirações”, “Microen-
contemporânea hoje, em que o coleti-
saios”, “Restos”: são os seis diários des-
vo cede lugar ao individual. Essa ideia
naturais que transportam uma série de
encontra-se clara no poema “outros
sensações, percepções, conhecimentos
(egos)” (NASCIMENTO, 2008, p. 128).
e domínios da poesia de Evando Nasci-
mento (2008). Iniciando-se sob forma
outros
de poema, no ano de 2004, a história
(egos)
progride com relatos, contos, ensaios,
diálogos, entrevistas, conversas, crôni-
eu estilhaçado
cas, e-mails, configurando-se numa im-
eu estilizado
portante significação entre as formas da
eu estil o
ficção e as formas da confissão, marcas
eu stil
da literatura contemporânea.
eu
O estatuto do diário é o da con-
e
fidência, na qual a relação entre o eu
e o diário define-se pelo paradoxo de
- pois eu...
se guardar um segredo e pela vontade
- pós-eu
de falar. O diário é um gênero literário
complexo em que o autor vive e se vê
Num imbricar de gêneros, a obra provo-
viver, e simultaneamente, é protagonis-
54 MACONDO revista literária
ca no “corpo” daquele que a lê uma rea- a autoficção, formalmente, a arte de
ção à materialidade do objeto, isto é, o Evando caracteriza-se pelo efeito tec-
prazer do texto, no leitor, se dá a partir nocientífico oferecido pela contempo-
do momento em que seu ‘corpo’ segue raneidade, cuja transmissão de conhe-
as suas próprias ideias, assim como Bar- cimento é facilitada pelos mecanismos
thes dissera: “porque meu corpo não tecnológicos que propiciam uma trans-
tem as mesmas ideias que eu” 1. missão de dados de forma mais rápida
Estabelece-se, inevitavelmente, e instantânea, ecoando as palavras de
uma espécie de diálogo entre a leitura e Paul Valéry:
o visual, na medida em que seus diários
carregam um apelo sensorial: não se A arte não pode fugir por mais tem-
trata simplesmente de poemas, ensaios, po aos efeitos da ciência moderna e
contos, ou crônicas, já que, para o autor, dos processos modernos. [...] É pre-
“não se pode fetichizar nenhum gênero, ciso também estar preparado para
vale não desprezar nenhum gênero” 2. o fato de que grandes inovações
Referendado pelo próprio autor, transformarão totalmente as técni-
em palestra ministrada na Universida- cas das artes de que elas, em cons-
de Federal de Juiz de Fora, no dia 26 de ciência, influenciarão as próprias
maio de 2010, esses traços, esses dispo- criações e de que eventualmente
sitivos usados para se ultrapassar, trans- chegarão a mudar o próprio con-
gredir os diferentes gêneros consti- ceito de arte da maneira a mais fan-
tuem a alterficção, sempre presente em tástica (VALÉRY, 1934, apud Cam-
sua obra. A ficção, para ele, é uma con- pos, 1978, p. 88).
vergência, uma aproximação cada vez
maior do real. A autoficção, por usa vez, Dessa forma, instaurando uma
encontra-se no limiar da imaginação e imagem própria, essa mitologia pessoal,
da realidade, existindo, de fato, como Evando tece os liames que relacionam
efeito. De fato, extremamente anticon- forma e conteúdo, densidade linguísti-
vencional, segundo Antonio Cícero, ao ca e identidade literária. A realidade é
apresentar a obra em análise, seus “diá- instantânea como a vida, que se perfaz
rios não podem deixar de ser tão desna- de uma série de snapshots que captam
turais quanto o retrato que desenham”. os momentos, transformando-os em
Estabelecendo uma relação com poesia, conferindo-nos a pluralidade de

primeiro semestre 2013 55


artigo

temas, ideias, pensamentos e formas. te, oculta-as do leitor. Essa ideia, tão
Entretanto, existe uma conformidade presente em filósofos como Derrida e
entre esses aspectos, conferindo à es- Rousseau, torna patente sua precedên-
crita uma sonoridade residual, de forma cia. Esse “eu”, por sua vez, só existe em
que sua poesia atinge os “olhos” da ima- virtude do “outro” que o completa. Ou
ginação do leitor. Por conseguinte, ine- seja, toda a experiência do “eu” só existe
xiste uma dependência cronológica rí- porque o “outro” libera sua existência. O
gida entre seus diários, permitindo sua “eu” não passa de uma ficção do “outro”.
leitura a partir de qualquer ponto. A alterficção novamente entra em jogo,
Para Ezra Pound (1976), a força da sinalizando que tudo vem do “outro”, e a
poesia está em sua austeridade, em ser ele retorna. Através de suas palavras, “a
direta e livre de deslizes emocionais. A experiência que no escuro tateio é por
sua força está na sua verdade, no seu natureza irredutível a uma única identi-
poder de interpretação. Assim é a poe- dade” (Idem, ibidem, p. 126).
sia de Evando Nascimento, cujo sentido A definição de autobiografia e au-
não está no sentimento incrustado nas toficção parecem, neste momento, bas-
palavras, ele está presente nas próprias tante claras: enquanto a primeira tenta
letras que a compõem. contar toda a sua história a partir das
origens, a segunda recorta a história
pois se tornou em fases diferentes, dando uma inten-
imperativamente necessário sidade narrativa própria. A autoficção,
escrever na primeira pessoa, por um lado, é a escrita do presente,
mas isto é, ela “engaja” o leitor sobre aquilo
sem ingenuidades, com to- no qual o autor quer descrever. Na auto-
dos os disfarces briografia, por outro lado, a experiência
o a(u)tor pessoal se confunde com a observação
(NASCIMENTO, 2008, p. 12) do mundo e, assim, ela acaba se tornan-
do heterografia, história simultânea dos
De início, o poeta avisa ser impe- outros e da sociedade.
rativamente necessário escrever na pri- A partir de então, o decorrer da
meira pessoa, já que é por esse meio obra caracteriza-se pela economia de
que se busca a veracidade das palavras palavras, pelo abstrato opondo-se ao
do eu poético, mas, paradoxalmen- concreto e, paradoxalmente, comple-

56 MACONDO revista literária


tando-se. Na dinâmica rítmica de cada gero do real realiza-se em um trabalho
verso da obra, coexistem entidades an- delicado da poesia: no verso, algo vem
tagônicas e inconciliáveis, da mesma a atingir a inteligência, como nos versos
forma que tempo e espaço, tão efê- a seguir (NASCIMENTO, 2008, p. 20):
meros como a tecnologia, a cada dia
transformando-se e revolucionando-se. Ícaro
No pólo oposto, confinada numa enca- (mapplethorpe)
dernação, tão antiga que sua história se
perde na construção da aurora da nossa o sonho é a quadratura do circulo
cultura, sobrevive a literatura em meio
à era digital. Pensando por esse viés, a beleza corre alada, a beleza ago-
configura-se também a visão que o au- ra sonha com a beleza visível-invi-
tor tem da cidade como a metáfora do sível, a beleza contempla o dilema
mundo. sem fim, desolada e serena a beleza
Ocorre, nesses diários, uma proxi- atua, a beleza desaba num abismo
midade absoluta pelas coisas instantâ- de reflexos, com suave alegria a be-
neas. Perdendo sua intimidade e identi- leza se desfaz em mais beleza, a be-
dade por expor-se ao mundo moderno, leza desfigura a beleza, oh a beleza
resta ao sujeito o diário, objeto físico – que não há.
que guarda toda a auto/alterficção do
eu poético. Esse diário será, portanto, o (11.III.05)
ponto de encontro de todos os gêneros
já explicitados anteriormente. Na poética de Evando, há uma
A obra literária, em meio à con- motivação gráfico-visual obrigando a
temporaneidade, converte-se em obje- um constante exercício do olhar do lei-
to de consumo: “As tecnologias se tor- tor. A excessiva exposição plástico-visu-
naram vocativo para o pensamento”3. al do cotidiano compõe essa expressão
Metáfora da beleza alada que cor- poética em que os seres, as formas e as
re, Ícaro se desfaz com o tempo e se figuras superpostas constituem uma
desfigura: por serem de cera, suas asas resposta à efemeridade das imagens
desintegram-se. Em outras palavras, é o na sociabilidade contemporânea. A sua
real que se desfaz. O fascinante, o belo originalidade, portanto, está na sua for-
são simulacros através dos quais o exa- ma, em seus versos “duros” e nítidos.

primeiro semestre 2013 57


artigo

A chave da autoficção está mais pectos tão divergentes e conflituosos


no leitor e na perturbação gerada em jamais couberam tão perfeitamente
sua leitura do que no autor, sem, con- como nos versos de Evando Nascimen-
tudo, eximir o ego deste. Mas a verda- to.
de interpretativa é o que mais interessa, Defendendo o novo, ele soube
sobretudo quando coberta pela ficção. apropriar-se daquilo que a tecnologia
A verdade é desconstruir, da mes- e a literatura têm de melhor para cons-
ma maneira que o discurso filosófico, truir sua poesia. A objetividade da sua
imposto por Derrida. Isso quer dizer linguagem e o despojamento da mes-
que tanto a verdade quanto o discurso ma; sua sutileza; a imagem figurativa
filosófico estão sujeitos a modificações, que assume valor emblemático em sua
a alterações encarregadas pelo tempo, escrita; tudo isso, além de assegurar a
por efeito, também, da característica da consistência do “tecido verbal” e levar
própria linguagem. a um determinado grau de abstração,
Vivenciando a modernidade con- constitui aspectos que configuram a le-
temporânea, pergunta-se, frequente- veza da sua obra.
mente, se a literatura será capaz de so- Impossível não se lembrar de Italo
breviver em meio à era digital. Segundo Calvino (1990, p. 20) quando se refere ao
Augusto de Campos “a poesia é uma fa- software, em Seis propostas para o pró-
mília dispersa de náufragos bracejando ximo milênio. É o software que coman-
no tempo e no espaço”4. Com efeito, a da o que age sobre o mundo externo. O
poesia é capaz de andar pelos seus pró- seu poder se deve à sua leveza, mas isso
prios pés, não carecendo de muletas só ocorre mediante um contraponto: o
para se apoiar e sobreviver a este século hardware. Essa leveza está associada à
em que os modernos meios de comu- precisão e à determinação, presentes
nicação encarregam-se de consumir. nas palavras de Evando. Como é igual-
Como é igualmente possível ampliar mente impossível não relacionar Paul
essa ideia para a atividade literária, em Valéry5 (apud CALVINO, 1990, p. 28): “É
geral. preciso ser leve como um pássaro e não
De que fala o escritor contempo- como uma pluma”. Como em um diário
râneo? E de onde? Ao responder a esses da vida real, a autoficção é convertida
e outros tipos de indagações, é possível em impulso inventivo, a existência do
dizer, pelo menos, que todos esses as- “eu” e do “outro” são verdades absolutas

58 MACONDO revista literária


que se transfiguram em alterficção da 4. Fundação Eng. Antonio de Almeida. Porto,
realidade literária. Leve como um pás- 2001. p. 21- 44.
saro, mas consistente, claro e afirmativo. FIGUEIREDO, Euridice. Dany Laferrière: au-
tobiografia, ficção ou autoficção? Dispo-
NOTA S: nivel: http://www.revistabecan.com.br/
1. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. arquivos/1173617264.pdf. [Capturado em:
Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 20/06/2010].
70, 1973, p. 23. FIGUEIREDO, M. Fatima Viegas Bauer-. Meta-
2. NASCIMENTO, Evando. Retrato desnatural. morfoses do Eu. O Diário e Outros Gêneros
Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 159. Autobiográficos na Literatura Portuguesa do
3. FURTADO, Fernando Fabio Fioresi. A litera- Século XX. Atas da seção 8 do IV Congresso
tura na cena finissecular. In: Luiza Lobo (org.). da Associação Alemã de Lusitanistas. 2002.
Globalização e literatura. Discursos transcul- FURTADO, Fernando Fabio Fioresi. A literatu-
turais. Rio de Janeiro: RELUME Dalurá, 1999. ra na cena finissecular. In: Luiza Lobo (org.).
p.113-125. Globalização e literatura. Discursos transcul-
4. CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, con- turais. Rio de Janeiro: RELUME Dalurá, 1999.
troverso. 2. Ed. São Paulo: Editora Perspectiva. p.113-125.
1988. 7-9. NASCIMENTO, Evando. Ficções do eu – Fic-
5. Na obra Seis propostas para o próximo mi- ções do outro. In: SIMPOSIO INTERNACIONAL
lênio não consta bibliografia. LITERATURA, CRITICA, CULTURA IV: INTER-
DISCIPLINARIDADE. Comunicação oral. 25 de
REF ERÊNCI AS: maio de 2010. Anfiteatro da Fale.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. Ma- NASCIMENTO, Evando. Retrato desnatural (di-
ria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 70, ários – 2004 a 2007). Rio de Janeiro: Editora
1973, p. 23. Record, 2008.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo POUND, Ezra. A arte da poesia: ensaios esco-
milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Compa- lhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José
nhia das Letras, 1994. Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1976.
CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, contro- POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto
verso. 2. ed. São Paulo: editora Perspectiva. de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Edi-
1988. p. 7-9. tora Cultrix, 1973.
DIAS, Ângela Maria. Topografias poéticas da
pós-modernidade no Brasil. Revista Veredas

primeiro semestre 2013 59


bibliophilia

HISTÓRIAS DE tórias e das relações que


se esboçam (a não ser em
PARIS “Só por distração”, últi-
mo conto, protagonizado
A Biblioteca Azul, por um viajante errante
selo da Editora Globo, sem origem nem desti-
MARIO BENEDETTI
lança no Brasil “Histórias nos definidos), e cria uma
EDITORA GLOBO,
de Paris”, um volume cur- atmosfera bem cadencia-
2013, 64 P.
tinho que reúne quatro da e harmoniosa com as
contos do uruguaio Ma- narrativas. Já a prosa de
rio Benedetti. A novidade Benedetti dispensa elo-
fica por conta da edição gios: garante aquele rigor
ilustrada por Antonio Se- elegante e alta qualidade
guí. Algumas caracterís- aos contos. Quem assina
ticas comuns perpassam a orelha é Eric Nepomu-
os textos escolhidos, re- ceno.
tirados de três livros dife-
rentes de Benedetti: com
exceção de “Cinco anos
de vida”, publicado em
1968 (e, portanto, antes
do período ditatorial mi-
litar vivenciado no terri-
tório uruguaio), os outros
textos trazem a questão
do exílio como pano de
fundo essencial dos enre-
dos – as personagens são
marcadas pela mesma ex-
periência contundente e
melancólica.
Paris também é o
cenário comum das his-

60 MACONDO revista literária


bibliophilia

FICO BESTA outros momentos, pon-


derada e modesta, o re-
QUANDO ME trato de Hilda é o mais
ENTENDEM honesto possível. Diz: “se
“Qualquer cretino você é coerente consigo
pode ser espontâneo. En- mesmo, o resto é supor-
tão eu acho que a litera- tável. Eu suporto”. Não
HILDA HILST tura vem desse conflito faltarão passagens áci-
EDITORA GLOBO, entre a ordem que você das e/ou bem-humora-
2013, 64 P. quer e a desordem que das em bate-papos dos
você tem”. Cristiano Diniz mais diversos. Uma lei-
organiza, em “Fico besta tura imprescindível para
quando me entendem”, fãs da literatura, rechea-
um compilado com 20 do de valor lírico e histó-
entrevistas de Hilda Hilst, rico. “Outro dia, perguntei
realizadas ao longo de a um professor: ‘Por que,
50 anos. O livro, lançado durante os debates, nin-
pelo selo Biblioteca Azul, guém se dirige a mim?’.
complementa a coleção ‘Ora, os alunos têm medo
de obras ficcionais da es- de você’. Este ano, quan-
critora – que perpassam do fui eleita patrona da
a poesia, o teatro e o ro- turma, comecei dizendo:
mance. ‘Não se preocupem, por-
Além de entrevistas que eu é que tenho medo
mais “pontuais”, ocasio- de vocês’. E adiantou?
nadas pelos lançamentos Continuo falando sozi-
de seus livros, nos apro- nha”.
ximamos um pouco mais
da pessoa de Hilda e suas
opiniões, ideias e posi-
ções. Ora dura e contun-
dente, ora sensível; por
vezes, muito segura, em

primeiro semestre 2013 61


colaboradores
colaboradores

Aurélio Furdela ::: contista e dramaturgo mo- Denise Freitas ::: nasceu em Rio Grande(RS),
çambicano, representativo da novíssima pro- em 1980. Escritora e professora. Livros pu-
sa moçambicana, depois de publicar De medo blicados: Misturando Memórias (2007), Ma-
morreu o susto (2004, 2a edição), contos que res inversos (2010); está entre os autores que
encetam uma incursão surrealista no univer- compõem a Antologia poética: Moradas de
so tradicional moçambicano, no que ele tem Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011); possui
de antítese em relação aos valores da moder- publicações em diversas revistas, dentre as
nidade, Gatsi Lucere (2005), texto dramático quais, Revista Sibila, Musa Rara, Revista Modo
que representa o Estado de Mwenemutapa, de Usar. Escreve o blog: www.sisifosemper-
e O golo que meteu o árbitro (2006), crônicas das.blogspot.com
desportivas, Furdela brinda-nos, desta vez,
com esta afirmação categórica e insólita: As Élen Rodrigues Gonçalves ::: é graduanda em
hienas também sorriem (conto publicado re- Letras pela Universidade Federal de Juiz de
tirado deste último). Fora e, nas horas vagas, escreve em busca de
esquecimento. Na área de Letras, é integran-
Bartolomeu Pereira Lucena ::: formado em Fi- te do Projeto de Pesquisa “Viagens por ou-
losofia pela Universidade Estadual da Paraíba, tros mares: diásporas africanas e seus mapas
reside no município de Malta PB e é professor literários”, no qual procura desenvolver um
da E.E.E.F.M. Dr. Antônio Fernandes de Medei- arquivo literário e teórico de poetas cuja cria-
ros. Não tem livros publicados, não cria ani- ção poética precisa ser reconhecida.
mais.
Emanuel R. Marques ::: Formado em Comuni-
Caetano Sordi ::: é antropólogo e filósofo de cação Audiovisual. Já trabalhou em televisão,
formação (UFRGS e PUCRS, respectivamente), assim como já ganhou a vida a fazer visitas
além de um obstinado consumidor de ficção. num convento e museu do séc. XV. Autor e
Tem predileção por contos e já assinou blog participante em livros, revistas e fanzines de
com nome inspirado em Jorge Luis Borges contos, poesia e textos teatrais. Colaborador
(obibliotecariodebabel.blogspot.com.br), em projectos de diversos campos artísticos,
atualmente desativado. como música, artes plásticas e vídeo.
Contato: caetano.sordi@gmail.com.
Estevão Daminelli ::: 26. já quis ser astronauta.
Danilo Sales ::: 23 anos, solterapolitano. For- tem um poema publicado numa coletânea
mado em Letras Vernáculas pela Universida- vagabunda que só lhe rendeu prejuízos. atu-
de Federal da Bahia em 2010. Atualmente almente publica seus textos por aqui: http://
cursando o mestrado em Literatura e Cultura ou-isso.blogspot.com.br/
pelo Programa de Pós-Graduação em Litera-
tura e Cultura da UFBa. Helena Barbagelata ::: nasceu em Lisboa a 6
de Dezembro. É uma artista multidisciplinar,

primeiro semestre 2013 63


colaboradores

dedicada às artes plásticas, música e letras. Ricardo Russano ::: Autor do livro Noites Ári-
Participa em antologias e revistas literárias das (ed. Patuá), Ricardo nasceu em Angatuba,
em Portugal, Brasil e Itália, tendo sido laurea- uma pequena cidade do interior paulista, em
da em diversos concursos internacionais. 1987. Aos 18 anos mudou-se para São Paulo
para estudar Letras na Universidade de São
Henrique Ribeiro da Silva ::: tenho 22 anos e Paulo, formando-se em 2011. Em 2012, tam-
sou natural de Porto Alegre no Rio Grande do bém nessa universidade, começou a cursar
Sul, cidade que moro e sempre morei. Já me Biblioteconomia, curso que abandonou no
mudei sete vezes de casa. Acho que por isso mesmo ano. Pretende cursar História e tem
me canso, depois de certo tempo, de morar duas certezas: morrerá corinthiano e de es-
no mesmo lugar. Sobre a escrita, escrevo des- querda.
de 2009. No inicio só escrevia poesias, este
ano comecei a escrever contos e me identifi- Yuri Amaury ::: tem, no momento, 21 anos. Es-
quei mais com a prosa. Sou muito fã de Cor- tuda cerca de 50% do currículo do curso de
tázar, Kerouac e Garcia Marquéz. Letras da UTFPr. Não trabalha, não tem na-
morada, não bebe nem fuma. E não escreve.
Marcelo Feres ::: Nascido em 06/07/1957, na Tanto é que demorou uns 40 e poucos minu-
cidade de Niterói, RJ. Graduado em Adminis- tos pra redigir estas 3 linhas, e não encontrou
tração pela EBAP, Rio de Janeiro, em 1979; maneira de terminar com estilo. Blog: http://
graduado e pós-graduado em Direito pela buddhist-clouds.tumblr.com/
UNESA, Rio de Janeiro, em 2005; estudante contemporâneos como Roberto Piva,
de Filosofia. Claudio Willer, Helena Ortiz, Tanussi Cardoso,
Hilda Hilst e Claudio Aguiar, entre outros.
Patricia Maia ::: Tenho 37 anos, sou coordena- E-mail: tallerleolobos@yahoo.com
dora editorial do portal Boas Notícias e jor-
nalista freelance. Sou portuguesa, natural de
Lisboa. Estes contos que envio fazem parte
do livro de contos “Brilho Vermelho”, vence-
dor da menção honrosa do prémio Alves Re-
dol 2009. email: maiapatricia@hotmail.com

Rafael Batista ::: é naturalizado na cidade de


Araçatuba/SP. Estuda História na UFMS, par-
ticipou da Coletânea “Tantas Palavras” da UBE
(União Brasileira de Escritores).
Contato: rbatista.ata@hotmail.com;
http://rafaelbatistaa.blogspot.com.br.

64 MACONDO revista literária


lançamentos

VITAMINA

Juliana Bernardo

Editora Patuá
92 páginas

FERA D’ALMA

Herta Müller

Editora Globo
250 páginas

primeiro semestre 2013 65


www.revistamacondo.com.br
www.revistamacondo.co.cc
2013
2011

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