Você está na página 1de 4

IUGOSLAVO DE NASCIMENTO, CIGANO POR PROFISSÃO¹

Eduardo Valente

A 25ª Mostra Internacional de Cinema de SP, em 2001, nos deu duas chances raras de uma só vez.
Primeiro, a oportunidade de ter contato com uma obra quase completa de um dos cineastas mais
consagrados a surgir no cinema a partir dos anos 1980. Segundo, por não apenas trazer este
cineasta como convidado, mas em sua outra “profissão”, trazendo a sua banda para nos apresentar
a unza unza music num show de abertura da Mostra.

O motivo pelo qual chamamos Emir Kusturica de um dos mais consagrados cineastas de seu tempo
é simples: desde sua estreia no cinema com Do You Remember Dolly Bell? (1981) até Gato preto,
Gato branco (1998), simplesmente todos os seus seis longas saíram com um dos prêmios principais
nos maiores festivais de cinema do mundo. São duas Palmas de Ouro e um prêmio de melhor
diretor em Cannes, um Leão de Ouro de melhor diretor estreante e um de Prata em Veneza, e um
Urso de Prata em Berlim. Como sempre dizemos, prêmios são apenas prêmios e nada mais, mas um
currículo impressionante como este precisa ser respeitado, e serve de sinal de alguma coisa. O bom
de ter os filmes à disposição é poder justamente ir lá conferi-los.

Em conjunto e em retrospecto, o que fica do cinema de Kusturica? Certamente uma série de


conclusões e hipóteses podem ser levantadas. Os seus dois primeiros trabalhos – The Brides Are

1
Coming (1978) e Buffet Titanic (1979) –, feitos na TV iugoslava onde ele trabalhou após sair da
famosa escola de cinema tcheca FAMU, já mostram algumas das preocupações comuns do seu
cinema posterior. Antes de tudo, o desejo de desvendar os pequenos dramas da “gentinha”, ou
seja, das camadas mais baixas da sociedade. Seu cinema é muito raramente um de luxo, mas sim
um do caos, da estranheza, do pequeno drama com reflexões maiores. The Brides e Titanic têm em
comum ainda um ambiente quase claustrofóbico (certamente relacionado às condições de
produção), centrado no drama de poucos personagens praticamente numa mesma locação.
Enquanto o primeiro é um doentio e quase beckettiano estudo das relações de poder (outra
característica do cinema dele) dentro de uma família, entre marido, mulher e mãe, o segundo é uma
pequena fábula cruel sobre o ressentimento como motor da repressão e da vingança sem
compaixão. São trabalhos que beiram o surreal, embora absolutamente “realistas” na encenação. O
que talvez venha a ser uma das mais conhecidas características de Kusturica: trabalhar de tal forma
a materialidade da vida do dia a dia que consiga captar o quanto de magia e surrealismo está
embutido nesta.

Sua estreia no cinema, com Dolly Bell, é uma exacerbação destas primeiras características,
começando a ampliar o escopo do seu olhar, tanto no que se refere ao número e relação entre
personagens quanto no retrato crítico da sociedade iugoslava. O trabalho de análise política e
econômica que ele faz enquanto mostra a luta de um garoto para passar pela fase difícil da
adolescência é cheio de energia e humor cáustico. Kusturica retoma a questão dos laços de família,
algo de absolutamente vital no seu trabalho. A figura do pai e sua relação com o socialismo vão ter
paralelos em quase todos os seus trabalhos subsequentes. São filmes extremamente ligados ao local
e tempo em que são feitos, e nisso se pode argumentar que Kusturica é um grande cronista da
Iugoslávia ao longo de duas das décadas mais conturbadas naquela região. Em Dolly Bell estão ainda
lá a pobreza e as dificuldades financeiras, a criatividade como válvula de escape do dia a dia pelo
sonho, a força da tradição, a discussão política afetando o dia a dia da família.

De muitas formas, Dolly Bell pode ser considerado um prólogo para o filme seguinte, Quando papai
saiu em viagem de negócios, que deu a Kusturica a primeira Palma de Ouro. Neste, a questão
familiar e sua relação com o regime socialista volta a ser o centro da trama. No entanto esta possui
uma localização histórica mais distante, o que parece apenas um subterfúgio para se falar da
atualidade (no início há uma inegável ironia com uma introdução que apresenta o filme como “um
filme histórico, de amor”). Mas esta localização histórica possui alguma importância, pois inicia um
olhar que se tornaria épico mais adiante sobre a formação do Estado iugoslavo. Um outro ponto dos
mais importantes que este filme retoma de Dolly Bell, e que voltaria depois, é a centralização da
trama sobre uma figura jovem, sempre entre infância e adolescência. Kusturica registra a perda de
inocência e ao mesmo tempo certo idealismo romântico típicos da idade. Impressiona em especial
no filme a exacerbação do carinho do diretor por seus personagens, abraçando todas as suas falhas
de caráter e enganos como sublimes do humano. Kusturica se interessa profundamente por isso,
pela falibilidade maravilhosa do ser humano. Se não fosse por mais nada (e muito mais há), o filme
valeria pela descoberta do ator infantil (então) Davor Dujmovic. Sua atuação é absolutamente

2
estupenda, numa exata mistura de inocência e malandragem.

Esta descoberta e esta mistura seriam essenciais no próximo trabalho de Kusturica. O Tempo dos
Ciganos possui duas versões: um longa de duas horas e meia que levou o prêmio de diretor em
Cannes (e já visto no Brasil) e esta versão completa da TV com cinco horas, que passou em SP pela
primeira vez. Trata-se do primeiro dos dois (até agora) “épicos” de Kusturica. Assistida na sua forma
completa, é impossível não lembrar de O Poderoso Chefão. Assim como a saga de Michael Corleone
nos três filmes de Coppola, que servem de microcosmo do mundo ítalo-americano pela via
criminosa e contam a história da perda de inocência de um homem e sua descida ao inferno a partir
desta, o filme de Kusturica faz o mesmo trajeto com os ciganos, no caso iugoslavos (mas, como se
sabe, ciganos não possuem pátria). O protagonista é mais uma vez vivido por Dujmovic,
impressionante. O filme marca o início da relação fílmica entre o diretor e este mundo cigano, que o
fascina por tudo que já tínhamos visto antes: o caos, a loucura, o crime, a tradição, a família e sua
importância, a música. Mais uma vez, tudo filtrado pelo olhar de um jovem, que ao longo da saga
passa de um inocente romântico para um pragmático adulto. O filme ambiciona o tempo todo este
caráter de painel de um povo que o título indica. Na mistura entre o absurdo e a hiper-realidade
mostrada, sobra um cinema físico no qual sangue, suor e lágrimas jorram na tela junto com
excrementos e dinheiro. A versão da minissérie não é menos do que excepcional e completamente
apaixonante nas suas cinco horas de dramas e risos. Impressiona a sua dimensão trágica e
absolutamente humana.

Depois deste filme, impressionados talvez com o currículo, os americanos convidam Kusturica, que
exerce uma tentativa no cinema de lá. Arizona Dream, apesar de ganhar o Urso de Prata em Berlim,
talvez seja seu filme mais contestado. Ao tentar levar seu surrealismo hiper-real para o ambiente
americano, ele acabou não agradando aos críticos saudosos do seu cinema tão tipicamente
iugoslavo, muito menos ao público, ainda mais o americano. Como se sabe, isso é o principal para
decidir a continuidade ou não de uma carreira em Hollywood, então certamente foi fácil convencer
ambas as partes que Kusturica ficava melhor quieto na Europa.

Se bem que quieto é o pior dos adjetivos. Seu filme seguinte é sem dúvida aquele pelo qual ele será
lembrado, independente do que venha a seguir. É o tipo de trabalho que, gostem ou não, já nasce
clássico. Pela relação estabelecida com o mundo à sua volta, pela relação com o cinema e o mundo.
Underground – Mentiras de guerra não por acaso ganhou a Palma de Ouro mais uma vez para ele
(algo raríssimo), e correu mundo. Kusturica retorna à Iugoslávia num dos momentos mais cruciais
do país, em vias de sua desintegração após o falecimento de Tito e os conflitos étnicos abundantes.
Seu filme se dedica a um painel épico que mistura História e crônica do momento, no qual seu estilo
insano e orgânico dá o tom para um povo e uma situação (a da guerra, sempre) que não podem ser
explicados pela racionalidade. Do contato com os ciganos fica acima de tudo a musicalidade de
Goran Bregovic, numa das trilhas mais célebres do cinema moderno. O filme causou sensação no
seu retrato da luta entre irmãos que caracteriza o conflito balcânico, além do painel buscado.

Porém, se cinematograficamente o filme é quase um consenso (embora muitos o acusem de usar a

3
guerra como puro espetáculo cinético, uma crítica que parece não entender de onde vem a relação
entre real e absurdo no cinema de Kusturica), politicamente ele envolveu o diretor numa
controvérsia que o levou a declarar encerrada sua carreira no cinema. A França foi o principal foco
de críticas que associavam Kusturica ao nome de Milosevic, insinuando que seu filme era pró-sérvio,
quando ele simplesmente não era contra ninguém, mas apenas contra a insanidade da guerra. O
diretor externou seu desapontamento em entrevistas e artigos, e prometeu retirar-se. Este ponto
da carreira de Kusturica é central para pensarmos as relações com seu país, agora em desintegração
total. Se antes e principalmente aqui seu cinema é intrinsecamente iugoslavo, não somente em
temas e locações e relações históricas, mas até mesmo na sensibilidade e olhar, o que viria depois
caminharia em direções diferentes.

Como se esgotado pelo tour de force que foi o filme, ele quando decide voltar ao cinema o faz pela
paixão e pela festa que representam em sua vida a descoberta do povo cigano. Primeiramente
querendo documentar o ritual de um casamento, ele acaba se envolvendo com o projeto, e filma
Gato Preto, Gato Branco. O filme é a exacerbação do caos, da loucura, mas acima de tudo de um
cinema barroco do exagero em todos os detalhes. Trata-se de um imenso “respirar fundo” de um
diretor que havia perdido o desejo de dirigir, e de um homem acuado pelo seu tempo, pelo seu país.
O filme é delirante na sua energia, na sua completa desarticulação narrativa, em troca de sensações,
música, tradição e festa. É como se o diretor de tudo que veio antes entrasse em transe por duas
horas, num filme onde exacerba e sublima todos os seus temas, traumas, paixões. Um filme, pode-
se até dizer, cansativo e muitas vezes mais caótico do que o espectador pode suportar. Mas é o
próprio retrato das necessidades do autor e seu cinema no momento em que é realizado

Finalmente, fechando sua caminhada até aqui, temos Memórias em Super 8. Porém o que o filme
possui de mais relevante nesta análise de caminhada é que indica o caminho que “salvou” o
cineasta (e por que não o homem?) Kusturica: a música. Apaixonado por ela, e em especial sua
encarnação cigana, membro de uma banda desde 1986 (No Smoking Orchestra), Kusturica entrega
neste filme, assim como no show que pudemos ver em SP, que é como músico que ele relaxa, que
ele aproveita a vida e se sente feliz. Com o cinema ele precisa pensar o hoje e o ontem, precisa
intervir num processo de forma muitas vezes dolorosa, como Underground mostrou. Com a música
sua relação é outra, o menino volta a ter a inocência romântica perdida. Quem o viu no palco ou
quem percebe o extremo carinho livre do novo filme sabe do que se fala aqui. A música certamente
salvou o cineasta, que aliás compôs com a banda a trilha do filme anterior também.

À medida em que esta obra continuar, parece que veremos também uma continuidade disso tudo,
mas como ele lidará com a nova Iugoslávia, o quanto estará disposto a ser “cineasta” ou não, ainda
precisamos ver. O fato é que o Emir Kusturica, seja cigano ou iugoslavo, músico ou cineasta, precisa
ser acompanhado de perto porque seu cinema possui uma vida e uma energia na relação com o
mundo que fascina e traz enorme força vital ao espectador, ao crítico, ao cinema em geral.

¹ Originalmente publicado pela revista eletrônica Contracampo – www.contracampo.com.br em


novembro de 2001.

Você também pode gostar