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Lucas de Alvarenga Bueno 3º Semestre Matutino – Bacharelado em Audiovisual

História do Audiovisual Contemporâneo – Professor Francis Vogner dos Reis


Centro Universitário SENAC – Santo Amaro, São Paulo (SP)
2021

Uma cena de A Hora do Show, dir. Spike Lee -


Análise sobre cultura, TV e racismo nos E.U.A em vídeo e película

Uma introdução necessária – Contexto histórico, Spike Lee e Bamboozled

O contexto do audiovisual contemporâneo no qual surge o filme A Hora do Show


(2000) é radical, caracterizado principalmente por reflexões sobre o papel do cinema em
um mundo frenético de imagens televisivas. A TV e o vídeo tornam-se agentes culturais
arrebatadores e o valor do pacto com o tempo existente nos filmes é ignorado
constantemente em favor de informações rápidas e sucessivas. Não há pausa para
questionamentos; o consumo 24 horas por dia é regra na mídia. Jean-Luc Godard, em
uma entrevista de 1988, afirma que o cinema permite algo que a TV não permite – a
ampla reflexão sobre determinado assunto. Serge Daney, em seus artigos e entrevistas,
também mostra seu descontentamento com uma sociedade que, apesar de ultra-
comunicada, acaba por cair cada vez mais na mediocridade das imagens rápidas,
sucessivas e infinitas. É uma época de crise intelectual e imagética, de poluição visual e
sonora.
No meio de tudo isso, surge Spike Lee. Seus filmes parecem entrar de cabeça na
energia do período em que foram feitos. Sua linguagem potente e subversiva absorve o
contexto de cinema contemporâneo e é utilizada para propor reflexões catárticas e
profundas sobre a questão racial nos Estados Unidos. Para ele, o cinema e a luta social
são indissociáveis. Faça a Coisa Certa (1989) e Malcolm X (1992), dois de seus filmes
mais emblemáticos, escancaram o preconceito contra os negros de maneira inovadora,
propondo discussões complexas e de difícil digestão pelo grande público, por meio de
criativas sequências de montagem e do protagonismo inegociável de personagens negros.
Decerto, a cena em que a estudante liberal branca pergunta para o Malcolm X de
Denzel Washington o que ela pode fazer para ajudar a luta antirracista e o líder
muçulmano responde com um seco “nada”, propõe nuances que incomodaram grande
parte do público - chegaram a acusar Spike Lee (como fizeram com Malcolm X) de ser
um racista ao contrário. A visceralidade agressiva e necessária de seus filmes (inclusive
os menos politicamente carregados, como A Última Noite [2002]) marcou os anos 90 e a
virada do século. E é justamente em 2000 que um de seus filmes mais controversos e
interessantes é lançado – no qual Spike Lee critica tudo e todos.

Análise da cena – o Show em si


Cena a ser analisada: 50:27 – 55:37

A Hora do Show é uma sátira ácida que questiona o propósito e o limite da própria
sátira. Conta a história de um produtor de TV (Pierre Delacroix [de nome propositalmente
europeu], interpretado por Damon Wayans) que, quando encarregado de fazer um
programa para cativar telespectadores negros, decide criar um show provocativo para
expor o preconceito inerente da emissora em que trabalha, bem como seu chefe (Michael
Rapaport), cujos comentários preconceituosos são blindados pela desculpa de ter “uma
esposa negra e dois filhos mestiços”.
Assim, Pierre cria um programa no qual coloca atores negros em blackface, uma
variedade de entretenimento extremamente popular e racista nos E.U.A e no mundo
durante o século XIX até grande parte do século XX. A ideia de Pierre acaba gerando
reações inesperadas por uma parcela do público, e uma grande mudança cultural tem
início. O programa é genial em sua sátira ou acaba sendo uma permissão de retorno não
tão disfarçada à cultura abertamente racista que marca a história da “América” e do
cinema?
A grande cena da gravação do programa, a ser analisada aqui, conta com a atuação
enérgica de Savion Glover como Mantan e de Tommy Davidson como Sleep’n’eat. Os
nomes dos personagens (em tradução livre; Homem Bronzeado e Dorme, Come) já
deixam claro o uso dos estereótipos oriundos da escravidão e reforçados durante o período
de entretenimento com blackface no programa de Delacroix.
Fica claro a partir das primeiras falas e da atuação de Mantan e Sleep’n’eat que o
conteúdo do programa será composto apenas de estereótipos racistas que eram tão
abertamente disseminados algumas décadas antes. O uso de termos extremamente
ofensivos como “coon”, a linguagem corporal exagerada advinda de personagens como
Jim Crow, bem como o próprio jeito de falar dos astros remetem a tempos (não distantes)
de entretenimento racista, como reforçado em uma das sequências finais do filme. Além
disso, o set do programa imita uma plantation de algodão (cenário da escravatura sulista
nos Estados Unidos), os figurantes estão vestidos com uniformes listrados, os
personagens são obcecados por melancia, e seu papel é essencialmente dançar.
Mantan então começa um discurso bizarramente racista e inflamado, que termina
com a frase “I’m sick and tired of niggers and I’m not gonna take them anymore” (Estou
cansado de crioulos e não vou aguentá-los mais). Essa frase é uma variação de uma fala
do filme Network (1976, dir. Sidney Lumet), que é uma sátira da indústria televisiva. No
filme de Lumet, um apresentador começa a ter episódios maníacos que resultam em
poderosos discursos anti-establishment e que terminam em desmaio. Os executivos
acabam explorando o apresentador durante esses episódios, e um de seus bordões é “I’m
as mad as hell and I’m not gonna take this anymore” (Estou raivoso como o diabo, e não
vou aguentar mais isso), frase que ele, como Mantan em A Hora do Show, encoraja os
telespectadores a gritarem de suas janelas. Uma revolução cultural pop e controlada,
patrocinada pelo próprio establishment midiático – e que, no caso de Spike Lee, vai
terminar em regresso cultural. O uso dessa frase em específico reforça um dos temas mais
importantes do filme de Lee – a voracidade capitalista que perpetua o racismo enquanto
finge não ser mais racista. Isso é expresso no filme também com a fala sobre “negro
predileto de Hollywood no momento”. Há, portanto, uma crítica ao trabalho de
maquiagem da sociedade racista – o retrato dos conflitos e da marginalização como algo
do passado, mas uma recusa a se aprofundar no tema e nas ramificações existentes no
período atual.
De volta ao espetáculo, os estereótipos racistas continuam, um número de dança
encerra o programa e Delacroix (bem como sua assistente Sloan, interpretada por Jada
Pinkett-Smith) parece incomodado com os aplausos retumbantes da plateia do estúdio e
de seu chefe. Aliás, é possível que os planos de reações dos espectadores entrecortados
com Mantan e Sleep’n’eat durante a gravação do programa sejam os mais interessantes
do ponto de vista da linguagem fílmica.
No começo, alguns negros imediatamente riem e aprovam a sátira latente,
enquanto alguns brancos parecem extremamente desconfortáveis. Outros negros parecem
menos desconfortáveis que os brancos, mas a expressão de desaprovação é visível e,
convenhamos, compreensível. O chefe de Delacroix, desde o início tão confortável com
o fato de que não é racista, instantaneamente parece se divertir com o espetáculo, mas
pelo contexto do filme sabemos que seu gosto pelo que vê não provém de nenhum senso
de ironia. Seja por racismo ou por ironia (quem sabe o primeiro diluído no segundo), mais
brancos começam a aproveitar o espetáculo. Qual é a diferença, afinal? Aí está outro
questionamento interessante trazido pelo filme. Ao final do show, alguns brancos
aplaudem sem pestanejar, enquanto outros olham para os lados para se certificar de que
os negros estão aplaudindo antes. A decupagem proposta, com a câmera mostrando a
plateia do ponto de vista do palco, transforma a tela do cinema em um espelho. Quem
assiste ao filme em uma sala de cinema se vê projetado na tela – afinal, como reagir? O
que seria esperado que eu se sentisse nesse momento, e o que eu realmente sinto?

É importante notar que as sequências de gravação do programa para TV de


Delacroix são gravadas em película – a mídia física que definiu o cinema do século XX,
enquanto o resto do filme, feito para os cinemas, é gravado em vídeo, característico da
TV dos anos 80, 90 e 2000. O vídeo é representativo, na história do audiovisual, de
imagens mais rápidas, dinâmicas, instantâneas e consumistas, de menor valor artesanal.
A inversão não é por acaso – a cultura racista foi por muito tempo perpetuada por filmes
em película (como demonstrado por Lee na sequência final do filme, capaz de arrancar
lágrimas raivosas) e, com o vídeo e a hegemonia da TV e das imagens líquidas, esse mal
que sobrevive maquiado corre o risco de ser ainda mais massificado.
Depois da estreia do programa, a cultura do blackface volta a ser normalizada.
Com certo grau de ironia? Talvez, mas é impossível negar que o racismo que sempre
esteve presente na cultura norte-americana é escancarado após a estreia de Mantan. O mal
nunca foi cortado pela raiz. As figuras de madeira comicamente exageradas, mas também
de certa maneira assustadoras em estilo blackface inundam o escritório de Pierre
Delacroix, que acaba sendo conivente com aquilo tudo e pagando um preço alto por isso.
Essas são as consequências – as respostas de Spike Lee para as questões raciais e
imagéticas abordadas durante o filme. A Hora do Show é um filme-aviso. Apesar de seus
elementos satíricos, vale lembrar que o universo no qual o filme se passa é o nosso próprio
mundo. Um mundo no qual Denzel Washington interpretou Malcolm X, no qual Spike
Lee e Tarantino estão em conflito e no qual existe racismo estrutural na cultura e nas
imagens.

Fontes:
http://www.contracampo.com.br/100/artderrotadopensamento.htm
http://www.contracampo.com.br/criticas/bamboozled.htm
https://www.youtube.com/watch?v=VGG61dzoxKs

Filmes citados:
Network: Rede de Intrigas (1976), dir. Sidney Lumet
Faça a Coisa Certa (1989), dir. Spike Lee
Malcolm X (1992), dir. Spike Lee
A Hora do Show (2000), dir. Spike Lee
A Última Noite (2002), dir. Spike Lee

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