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A Hora do Show é uma sátira ácida que questiona o propósito e o limite da própria
sátira. Conta a história de um produtor de TV (Pierre Delacroix [de nome propositalmente
europeu], interpretado por Damon Wayans) que, quando encarregado de fazer um
programa para cativar telespectadores negros, decide criar um show provocativo para
expor o preconceito inerente da emissora em que trabalha, bem como seu chefe (Michael
Rapaport), cujos comentários preconceituosos são blindados pela desculpa de ter “uma
esposa negra e dois filhos mestiços”.
Assim, Pierre cria um programa no qual coloca atores negros em blackface, uma
variedade de entretenimento extremamente popular e racista nos E.U.A e no mundo
durante o século XIX até grande parte do século XX. A ideia de Pierre acaba gerando
reações inesperadas por uma parcela do público, e uma grande mudança cultural tem
início. O programa é genial em sua sátira ou acaba sendo uma permissão de retorno não
tão disfarçada à cultura abertamente racista que marca a história da “América” e do
cinema?
A grande cena da gravação do programa, a ser analisada aqui, conta com a atuação
enérgica de Savion Glover como Mantan e de Tommy Davidson como Sleep’n’eat. Os
nomes dos personagens (em tradução livre; Homem Bronzeado e Dorme, Come) já
deixam claro o uso dos estereótipos oriundos da escravidão e reforçados durante o período
de entretenimento com blackface no programa de Delacroix.
Fica claro a partir das primeiras falas e da atuação de Mantan e Sleep’n’eat que o
conteúdo do programa será composto apenas de estereótipos racistas que eram tão
abertamente disseminados algumas décadas antes. O uso de termos extremamente
ofensivos como “coon”, a linguagem corporal exagerada advinda de personagens como
Jim Crow, bem como o próprio jeito de falar dos astros remetem a tempos (não distantes)
de entretenimento racista, como reforçado em uma das sequências finais do filme. Além
disso, o set do programa imita uma plantation de algodão (cenário da escravatura sulista
nos Estados Unidos), os figurantes estão vestidos com uniformes listrados, os
personagens são obcecados por melancia, e seu papel é essencialmente dançar.
Mantan então começa um discurso bizarramente racista e inflamado, que termina
com a frase “I’m sick and tired of niggers and I’m not gonna take them anymore” (Estou
cansado de crioulos e não vou aguentá-los mais). Essa frase é uma variação de uma fala
do filme Network (1976, dir. Sidney Lumet), que é uma sátira da indústria televisiva. No
filme de Lumet, um apresentador começa a ter episódios maníacos que resultam em
poderosos discursos anti-establishment e que terminam em desmaio. Os executivos
acabam explorando o apresentador durante esses episódios, e um de seus bordões é “I’m
as mad as hell and I’m not gonna take this anymore” (Estou raivoso como o diabo, e não
vou aguentar mais isso), frase que ele, como Mantan em A Hora do Show, encoraja os
telespectadores a gritarem de suas janelas. Uma revolução cultural pop e controlada,
patrocinada pelo próprio establishment midiático – e que, no caso de Spike Lee, vai
terminar em regresso cultural. O uso dessa frase em específico reforça um dos temas mais
importantes do filme de Lee – a voracidade capitalista que perpetua o racismo enquanto
finge não ser mais racista. Isso é expresso no filme também com a fala sobre “negro
predileto de Hollywood no momento”. Há, portanto, uma crítica ao trabalho de
maquiagem da sociedade racista – o retrato dos conflitos e da marginalização como algo
do passado, mas uma recusa a se aprofundar no tema e nas ramificações existentes no
período atual.
De volta ao espetáculo, os estereótipos racistas continuam, um número de dança
encerra o programa e Delacroix (bem como sua assistente Sloan, interpretada por Jada
Pinkett-Smith) parece incomodado com os aplausos retumbantes da plateia do estúdio e
de seu chefe. Aliás, é possível que os planos de reações dos espectadores entrecortados
com Mantan e Sleep’n’eat durante a gravação do programa sejam os mais interessantes
do ponto de vista da linguagem fílmica.
No começo, alguns negros imediatamente riem e aprovam a sátira latente,
enquanto alguns brancos parecem extremamente desconfortáveis. Outros negros parecem
menos desconfortáveis que os brancos, mas a expressão de desaprovação é visível e,
convenhamos, compreensível. O chefe de Delacroix, desde o início tão confortável com
o fato de que não é racista, instantaneamente parece se divertir com o espetáculo, mas
pelo contexto do filme sabemos que seu gosto pelo que vê não provém de nenhum senso
de ironia. Seja por racismo ou por ironia (quem sabe o primeiro diluído no segundo), mais
brancos começam a aproveitar o espetáculo. Qual é a diferença, afinal? Aí está outro
questionamento interessante trazido pelo filme. Ao final do show, alguns brancos
aplaudem sem pestanejar, enquanto outros olham para os lados para se certificar de que
os negros estão aplaudindo antes. A decupagem proposta, com a câmera mostrando a
plateia do ponto de vista do palco, transforma a tela do cinema em um espelho. Quem
assiste ao filme em uma sala de cinema se vê projetado na tela – afinal, como reagir? O
que seria esperado que eu se sentisse nesse momento, e o que eu realmente sinto?
Fontes:
http://www.contracampo.com.br/100/artderrotadopensamento.htm
http://www.contracampo.com.br/criticas/bamboozled.htm
https://www.youtube.com/watch?v=VGG61dzoxKs
Filmes citados:
Network: Rede de Intrigas (1976), dir. Sidney Lumet
Faça a Coisa Certa (1989), dir. Spike Lee
Malcolm X (1992), dir. Spike Lee
A Hora do Show (2000), dir. Spike Lee
A Última Noite (2002), dir. Spike Lee