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Tropicalismo

Em cada coração um punhal


Rafael de Luna Freire

O termo Cinema Marginal foi consagrada para denominar um conjunto de filmes brasileiros realizados na
passagem dos anos 60 para os 70 e que guardariam algumas características em comum. Contrapondo-
se ao Cinema Novo, filmes de jovens diretores como Rogério Sganzerla, Julio Bressane, Carlos
Reichenbach ou Andrea Tonacci representariam uma mudança no panorama cinematográfico da
época. Em cada coração um punhal é um filme que costuma ser considerado um filme marginal, tanto
pelo local e época em que foi feito (São Paulo, 1969) quanto pelo esquema de produção (em preto e
branco, orçamento e equipes mínimas). Entretanto, segundo Fernão Ramos em Cinema Marginal
(1968/1973) - A representação em seu limite (1987), o que uniria os filmes marginais seria, acima de
tudo, uma coesão estética.

Em cada coração um punhal é um longa-metragem em três episódios – Transplante de mãe(dir.


Sebastião de Souza), Clepsusana (dir. José Rubens Siqueira) e O filho da televisão (dir. João Batista de
Andrade) –, esquema comum na época no Brasil e no exterior (na França e Itália, principalmente), como
forma de possibilitar o lançamento comercial de curtas-metragens feitos independentemente. As
grandes diferenças que marcam esses três episódios reunidos num mesmo filme podem servir de
metáfora para as radicais diferenças que também existem dentre os filmes realizados especialmente
entre 1968 e 1971 e reunidos sob o rótulo do Cinema Marginal.

O primeiro episódio, Transplante de mãe, é baseado na canção Coração Materno, de Vicente Celestino,
que já tinha sido adaptada no filme Coração Materno, de 1951, dirigido por sua esposa, a também atriz
e cantora Gilda de Abreu. Entretanto, a referência mais interessante é que essa canção que passou a ser
considerada “brega” por seu excesso melodramático (a letra trágica fala de um homem que arranca o
coração da própria mãe para ofertá-lo para a amada) tinha sido regravada por Caetano Veloso, em
1968, para o disco-manifestoTropicália. Nos créditos pela música do filme está justamente o maestro
Rogério Duprat, o nome por trás dos arranjos tropicalistas. O tropicalismo, um “movimento” que partiu
da música (mas tendo inspiração nas artes plásticas e no próprio cinema, especificamente emTerra em
Transe), influenciou as mais diferentes esferas da cultura brasileira ao propor a mistura entre o arcaico e
o moderno, o velho e o novo, o brega e o pop como retrato da identidade multifacetada do país.

O espírito debochado, anárquico e irreverente do tropicalismo também está fortemente refletido no


episódio Transplante de Mãe. Mas se Caetano optou por uma versão que mesmo utilizando uma
aparente seriedade no seu arranjo de cordas e na entonação do cantor, reinventava a canção mesmo
nessa chave séria, no filme de Sebastião de Souza o campônio é interpretado por um propositadamente
canastrão John Herbert, filho de uma mãe vaidosa e perua (Liana Duval) e que se apaixona por uma
gorducha assanhada (Etty Fraser, atriz vista recentemente como a senhora de Durval Discos).

O humor ao mesmo tempo grosseiro e baixo, mas também jovial e avacalhado, permite que
identifiquemos num filme como Transplante de Mãe (assim como, por exemplo, em As Libertinas) uma
poucas vezes apontada origem para a pornochanchada. Filmes marginais podem ser vistos talvez como
precursores mais evidentes das comédias eróticas dos anos 70 do que algumas comédias cariocas
como Os Paqueras, por exemplo. John Herbert tentando com o maior esforço carregar a enorme Etty
Fraser no colo mostra uma ligação estreita, por exemplo, com um marco da pornochanchada
como Ainda agarro esta vizinha.

O humor também está presente no episódio seguinte, Clepsusana, sobre uma moça solitária (Julia
Miranda) que tem uma compulsão por roubar objetos – a Susana cleptomaníaca do título. Entretanto,
apesar da graça no furtos escancarados da protagonista, o episódio de José Rubens Siqueira tem um
tom muito mais melancólico que o do primeiro episódio, ainda mais quando a personagem principal se
apaixona. É justamente a paixão – logo depois frustrada – que redime a moça de sua compulsão. O tom
de comédia romântica amarga revela sua filiação à um gênero de grande sucesso (cujo marco é Um
homem, uma mulher, de Claude Lelouch) e que o próprio diretor José Rubens Siqueira voltaria em seu
segundo longa, Amor e Medo. Ao contrário da matriz do gênero – e de diversos representantes
nacionais, como O Casal – o filme não reserva à platéia um happy end.
O terceiro e último episódio de Em cada coração um punhal foi dirigido por João Batista de Andrade,
cineasta que vinha se dedicando especialmente ao cinema documentário, gênero que o acompanharia
em toda sua carreira. Em O filho da televisão um publicitário chamado Romeu (John Herbert novamente)
que transforma um rapaz (Medeiros Lima) num ídolo popular depois de estrelar um comercial, vê o
“feitiço se voltar contra o feiticeiro” quando pega em flagrante sua própria esposa, Julieta (Joana
Fomm), na cama com o garoto-propaganda. O casal se reconcilia, mas a mulher acaba engravidando do
garoto.

Enquanto em Transplante de Mãe o diretor de fotografia Hélio Silva faz uso de planos gerais e zoom
óticos, a fotografia e a impressionante câmera na mão de Jorge Bodansky, assim como a montagem de
Sylvio Renoldi, é que marcam os dois últimos episódios. Especialmente em O filho da televisão é notável
a busca do tom documentário, na filmagem nas ruas, com os atores interagindo com populares.
Inclusive, João Batista de Andrade já tinha utilizado essa mesma estratégia em seu longa também
“mariginal” Gamal, o delírio do sexo.

Apesar das diferenças, o que realmente aproxima os três episódios de Em cada coração um punhal não é
um elemento estético, mas temático. Em 1968 a TV Tupi revolucionava as telenovelas com Beto
Rockfeller, alcançando um extraordinário sucesso, e no ano seguinte a venda de aparelhos de televisão
aumentaria significativamente. O meio televisivo e a publicidade, ambos estreitamente ligados nesse
período, uma vez que os anunciantes freqüentemente tinham o controle do conteúdo dos programas,
não podiam mais ser ignorados por um cinema engajado como era o realizado no Brasil.

Em Transplante de Mãe, a mãe do campônio sonha que o filho faça comerciais de sabonetes e quando é
morta, de dentro de seu corpo, antes do coração, são retirados diversos produtos dos mais anunciados
nos comerciais (shampoo, sabonete etc). A solitária protagonista de Clepsusana, além de consumidora
compulsiva (mesmo que sem fazer uso do dinheiro), tem como único companheiro um aparelho de
televisão. Quando a paixão literalmente bate a sua porta é justamente para fazer uma pesquisa de
opinião – algo que cada vez mais as agências publicitárias e as emissoras de TV faziam uso. Esse
presente, entretanto, revela-se de grego.

O filho da televisão é o que se mostre talvez mais crítico desse circo midiático que se revelava cada vez
mais presente no Brasil. Algo que um companheiro de João Batista de Andrade, o igualmente
documentarista Maurice Capovilla, também abordaria no ótimo Babel, a garota-propaganda.

Em comum nos três episódios (e com diversos outros filmes da época, marginais ou não) se nota o
diálogo irreverente, ousado e crítico – mas também mais incorporador – com esses elementos urbanos e
modernos que não mais podiam ser desprezados.

Texto escrito para o programa da sessão do Cineclube Tela Brasilis realizada na Cinemateca do Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 25 de maio de 2005. Antecedendo a exibição do filme, foi exibido
o curta-metragem Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora (dir. Djalma Limongi Batista, 1968),
filme premiado no Festival JB/ Mesbla de Cinema Amador, evento que congregou toda essa geração de
cineastas surgidos na segunda metade dos anos 60 e que tinham em comum, acima de tudo, a vontade
de fazer cinema.

Fonte

Cineclube Tela Brasilis

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Tags: Cinema Marginal Década de 1960 Curta-metragem Televisão Gênero Cinema


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