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3.3. Realismo Poético Francês

O Cinema Francês e a Segunda Guerra Mundial

A França dominou o cinema entre os anos de 1895 e 1914, antes da Primeira Guerra

Mundial que se estenderia até 1918. Declinou com a guerra, devido às dificuldades

logísticas e económicas que atingiram o sector do cinema. O aparecimento do cinema

sonoro no final da década de 1920 deu um novo impulso ao cinema francês, mas o

declínio regressou nos anos 1930 e, depois, com a Segunda Guerra Mundial (1939-45). A

tentativa de salvar o cinema francês envolveu sobretudo o desenvolvimento de um

cinema regional, “francês”, e a procura de uma ideia de qualidade que enfrentasse a

quantidade do cinema americano que inundava as salas francesas.

O cinema francês era diverso, como sempre foi desde o início do cinema, mas tinha

uma marcada sensibilidade poética. René Clair, por exemplo, brincava frequentemente

nos seus filmes com as imagens e os sons, com os adereços e os actores, revelando uma

forte ligação ao dadaísmo e ao surrealismo. Le Million (O Milhão, 1931) está cheio de tais

imagens. Numa cena passada numa loja de penhores, esconderijo de dois criminosos,

um cantor lírico é obrigado a cantar. Rodeado de estranhos objectos, ouve as vozes dos

criminosos e é forçado por duas mãos armadas à frente de manequins. As armas, que
parecem estar a ser seguradas pelos bonecos, são mais tarde usadas como batutas que

conduzem a música. O final estrondoso da cena é igualmente extravagante.

Jean Vigo, um dos mais importantes cineastas desta época, deixou uma obra muito

curta. Vigo era um realista que acreditava na capacidade transfiguradora do cinema.

Em Zéro de conduite: Jeunes diables au collège (Zero em Comportamento, 1933) lança um olhar

imaginativo sobre a vida das crianças de um colégio interno. Os professores são quase
todos grotescos, roubando as crianças do entusiasmo que deviam ter pela vida e pelo

que estão a estudar. Há um professor que os incita à revolta. Na luta de almofadas no


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dormitório, Vigo consegue dar a ver a explosão de liberdade que os miúdos sentem,

improvisando uma procissão que celebra a ousadia e utilizando a câmara lenta como

forma de fixar os seus gestos libertadores.

Sacha Guitry é outro nome a reter. Autor de sofisticadas peças de teatro cómico,

Guitry adaptou muitas delas ao cinema. Le Roman d’un tricheur (Romance de um

Aventureiro, 1936) adapta precisamente um dos seus romances. O início do filme mostra

bem o estilo deste cineasta que defendeu um “teatro filmado” que pouco tinha de

estático, que com mais acerto pode ser denominado de “cinema teatral”. O genérico

falado e os bastidores mostrados exibem o cinema como construção artística. As cenas

de enquadramento narrativo passam-se num cenário declaradamente falso que

representa um café de rua. O narrador lança depois um flashback para a sua infância. A

voz como elemento estruturante do cinema, a música como substituta do som

síncrono, e o inventivo humor visual são outros traços inconfundíveis deste cinema.

Durante a ocupação nazi, e sob o poder do governo de Vichy, o cinema deixou de

poder lidar com a actualidade ou de tocar no assunto da guerra. Les Enfants du paradis

(Os Rapazes da Geral, 1945) ficou como um dos grandes filmes deste período de ocupação,

passado na Paris do séc. XIX. Trata-se de uma grande produção feita com muitas

dificuldades financeiras. O centro do filme é o cruzamento de amores não

correspondidos, particularmente entre o mimo Baptiste e a actriz Garance, mas

também entre outra actriz, Nathalie, e Baptiste. De modo delicado, o filme faz ecoar
estas relações no palco.

Outro grande nome que se começou a afirmar nesta altura foi Robert Bresson. Les

Dames du Bois de Boulogne (As Damas do Bosque de Bolonha, 1943) partilha muitos aspectos

com os chamados filmes de ocupação, dado que a narrativa se centra na alta sociedade

e opta por cenas de interiores, desviando a atenção dos problemas da actualidade dessa

altura. A cena em que Paul espera Agnès à porta da sua casa demonstra bem como
Bresson integrou essa ideia na mise-en-scéne do filme. A encenação organiza-se a partir

de noções de exterior e interior, fora e dentro, e do limite entres elas.


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Realismo Poético

O termo “realismo poético” foi cunhado por Jean Paulhan em 1929, a propósito do

romance La Rue sans nom (A Rua Sem Nome) de Marcel Aymé, adaptado ao cinema por

Pierre Chenal em 1934. Críticos como André Bazin defendiam que “realismo” e “poesia”

estão ligados nas melhores obras de cinema, mas o realismo poético francês tinha

características específicas: utilizava contextos visuais atmosféricos que evocavam o

romance, o mistério, ou a nostalgia; centrava-se em personagens da classe operária e

das camadas pobres da sociedade; optava por finais tristes, mas não necessariamente

sem esperança; e dava muita importância ao trabalho dos actores. Este movimento foi

muito influente na prática do cinema (inspirando os cineastas da Nova Vaga Francesa)

e na crítica de cinema (servindo de modelo para a definição daquilo a que os críticos

franceses chamaram de film noir).

Em La Petite Lise (Little Lise, 1930), dirigido por Jean Grémillon, encontramos as

características atrás mencionadas. Para além disso, o filme deve ser destacado no contexto

francês pelo seu uso pioneiro do som. Berthier é um condenado que anseia pelo reencontro

com a sua filha, que mais tarde descobre que se teve de prostituir. Um grande plano dele a

olhar para a fotografia dela transmite, de modo expressivo, a sua saudade e impotência e o

seu aprisionamento. O som intensifica esses sentimentos com a cantiga que os outros

presos cantam, confrontando aqueles que sentem que só se têm uns aos outros com um
deles que sente que ainda tem a sua filha. No realismo poético, trata-se de filmar situações

que, mesmo sendo desesperadas e tristes, adquirem uma dimensão poética, através de

uma forma sensível e imaginativa de abordar essas emoções. Sem negar o desespero e a

tristeza, desenvolve-se assim uma resposta poética à complexidade da situação.

Como escreve Dudley Andrew, o realismo francês substitui um cinema de eventos

(ou lógica narrativa) por um cinema de pessoas, linguagem, e meio social.5 O cenário ou

5. Ver Dudley Andrew, Mists of Regret: Culture and Sensibility in Classic French Film (Princeton, NJ: Princeton
University Press, 1995), 5.
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espaço cenográfico era portanto um elemento fundamental, como podemos ver nos

dois exemplos que se seguem. Em Pépé le Moko (1937), o cenário é usado para criar um

sentimento de cativeiro do protagonista no Casbá de Argel. Isto é notório nos planos na

cobertura — ainda que o filme tenha sido rodado no sul de França e em estúdio. Le Jour

se lève (Foi uma Mulher que o Perdeu, 1939), outra obra de Carné, é um dos mais conhecidos

exemplos do realismo poético francês. O protagonista é interpretado pelo mesmo actor

de Pépé le Moko, Jean Gabin, que participou em muitos destes filmes. Ele faz de François,

um operário que comete um homicídio no início do filme, que é encurralado pela

polícia num quarto de um apartamento. O filme enfatiza o isolamento deste homem

através do modo como ele olha pela janela, como não consegue encontrar saída e, no

exterior, através do edifício alto e estreito onde ele se encontra e que é um elemento

destacado no interior da cenografia.

Jean Renoir

Jean Renoir era filho do conhecido pintor impressionista Auguste Renoir. Renoir

esteve envolvido na denominada Frente Popular, uma coligação política de esquerda

que incluía comunistas e socialistas. Dentro desse movimento, supervisionou o filme

de propaganda La Vie est a nous (Life Is Ours, 1936), que foi dirigido por outros artistas
além dele, incluindo o cineasta Jacques Becker e o fotógrafo Henri Cartier-Bresson. O

filme tornou-se muito influente nos anos 1960 e foi recuperado no Maio de 68. É uma

obra de grande vitalidade formal e humor, como se vê no uso de um álbum de

fotografia com as famílias mais ricas e poderosas de França, combinando cenas

encenadas e documentais, e projecções dentro das cenas.

Na curta-metragem Partie de campagne (Passeio ao Campo, 1936), Renoir orquestra a


sedução de uma mãe e uma filha de Paris durante um passeio ao campo. Os dois

homens que as seduzem abrem a janela e a profundidade de campo sublinha o prazer


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de estar no exterior. É um espaço confinado que se abre. Através das imagens da

rapariga no baloiço essa brincadeira torna-se numa coisa etérea, com um sentido de

comunhão com a natureza. Os dois seminaristas que passam e ficam embasbacados

são Cartier-Bresson e Georges Bataille, o que mostra a forte ligação de Renoir aos mais

reconhecidos artistas e intelectuais desta época.

Em Le Crime de Monsieur Lange (O Crime do Sr. Lange, 1936), o cineasta organiza o

drama de uma comunidade que é ameaçada por Batala, que finge que morreu deixando

uma editora nas mãos de um cooperativa da qual Lange faz parte. A cena em que Lange

assassina Batala, depois deste último assediar a mulher que Lange ama, ficou na

história do cinema. A câmara abandona Valentine e Batala, percorre o pátio à medida

que vai acompanhando Lange do piso superior ao piso térreo. Não vimos Lange a

atravessar o pátio em direcção a Batala, antes de lhe dar um tiro, porque a câmara roda

180º no outro sentido em vez de acompanhar o deslocamento de Lange, depois de um

corte quase imperceptível. A câmara define assim a unidade comunitária e a conexão

interior ao percorrer os limites do pátio. O facto de não vermos Lange não quer dizer

que não sintamos a sua deslocação. O filme cria um afastamento, uma possibilidade de

meditação para reflectirmos sobre as acções dele. Por alguns breves momentos, não

estamos com ele, embora saibamos para onde ele vai.

La Règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939) faz a súmula de muitas das vertentes do

realismo poético francês. É um filme realista com uma grande carga poética. A ideia de
jogo do título remete para as brincadeiras que vamos acompanhando nos interesses

românticos e na caça que envolvem. Mas a regra do jogo pode ser tomada como algo

mais vasto que está relacionado com as dimensões sociais. O filme estabelece uma

relação de proximidade e contaminação entre o espectáculo teatral e a vida. Os diversos

espaços são sendo definidos como palcos e as personagens estão condenadas a fazer

um papel determinado pela estrutura social — ou não. É um filme que aposta numa
sofisticada interacção entre os actores no ecrã. Com uma grande mobilidade e fluidez,

a câmara vai seguindo os actores que entram e saem de campo em planos largos,
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prolongando-se temporalmente, com poucos cortes, e evitando contra-campos. Estas

técnicas negam a possibilidade de alinhamento com apenas uma das personagens.

Estamos na posição de observação de grupos de classes que se movimentam e se

encontram, inseridos nos diversos ambientes, da cozinha ao salão, aos quais o filme

consegue dar um ritmo vivo, inesperado, e bem-humorado. Este estilo permite a

Renoir comentar sobre a vida social, estratificada, sem que isso passe de uma forma

menos subtil através de simples declarações das personagens. Há uma personagem que

diz: “Neste mundo, o mais assustador é que cada um tem as suas razões.” Esta frase

pode ser entendida como um lema para Renoir, condensando o modo como ele olha

para as personagens, procurando entendê-las.

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