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1.3. Meios Técnicos e Artísticos

Divertimento Visual

O cinema continuou a explorar o tipo de divertimento visual que existia antes da

invenção do cinematógrafo. Imagens caricaturais eram comuns nos primórdios do

cinema. Um exemplo disso é The Whole Dam Family and the Dam Dog (1905), dirigido por

Edwin S. Porter para a produtora de Edison, que mostra uma família idiossincrática

que já tinha sido ilustrada noutros meios populares como a litografia.

Filme de Perseguição

O cinema expandia-se pelo mundo. De mésaventure van een Fransch heertje zonder pantalon

aan het strand te Zandvoort (The Misadventure of a French Gentleman Without Pants at the

Zandvoort Beach, 1905) é um conhecido exemplo holandês. Foi realizado por Willy

Mullens e produzido pela Alberts Frères, assim chamada para homenagear os irmãos

Lumière. A Alberts Frères, fundada por Willy e Albert Mullens, foi a maior companhia

de produção e exibição da Holanda. Este filme faz parte de um género denominado


filme de perseguição, em que a personagem principal é perseguida. Um homem adormece

junto ao mar. A maré molha-lhe as calças e ele despe-as. As pessoas que estão na praia

e a polícia perseguem-no por estar a atentar contra a moral pública. É um género que

foi muito popular entre 1904 e 1908 e que levantou um conjunto de problemas ao nível

da edição, já que como veremos mais tarde, era preciso garantir a legibilidade e

unidade espaciais e temporais de um plano para outro.


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Comédia Burlesca

O francês Max Linder foi o primeiro grande cómico do cinema. Tal como mais tarde

aconteceu com cómicos como Charles Chaplin e Buster Keaton, Linder dirigiu muitos

dos seus filmes. Max victime du quinquina (Max Takes Tonics, 1911) demonstra o talento do

actor para o humor físico e para a comédia de costumes. Neste filme, um médico

receita-lhe vinho como tónico, mas ele bebe uma quantidade muito superior à

receitada. Bêbado, Max vai sabotando (e, portanto, satirizando) todas as regras do que é

socialmente aceitável. O seu comportamento é tolerado apenas porque é confundido

com um comissário da polícia, um embaixador, e um ministro.

Início do Cinema Indiano

Raja Harishchandra (1913) foi o primeiro filme de ficção feito na Índia. Como muito

filmes indianos posteriores, a matéria narrativa vem da mitologia hindu — é de

salientar que no ocidente também foram feitos muitos filmes sobre os Evangelhos,

nomeadamente em França. Apenas uma parte do filme existe, mas é o suficiente para

percebermos que Phalke utilizava muitos dos princípios de filmagem e edição que

estavam a emergir no cinema ocidental, mesmo que o filme tenha um sabor


especificamente regional.

Cinema Animado

O cinema primitivo foi uma arte variada e alguma dela nem envolvia actores. Desde
cedo que se começaram a fazer experiências no cinema de animação. Em Le Squelette

joyeux (1897), os irmãos Lumière filmaram um esqueleto dançante e contente,


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controlado por fios. J. Stuart Blackton, um dos fundadores dos estúdios Vitagraph, a

maior produtora de filmes mudos nos EUA, foi um dos pioneiros da animação

cinematográfica. Blackton entra em The Enchanted Drawing (1900). Os desenhos que vai

produzindo tornam-se objectos reais e interagem com ele. Em The Haunted Hotel (1907),

uma refeição prepara-se a si própria através da técnica stop motion, na qual os objectos

são filmados sucessivamente em posições diferentes, fotograma a fotograma.

Fantasmagorie (1908) do caricaturista Émile Cohl, que trabalhou para a Gaumont entre

1908 e 1910, foi o primeiro filme totalmente em animação desenhada. Para criar um

movimento estável, contínuo, entre desenhos, Cohl colocou cada desenho por baixo de

uma placa de vidro e traçou o desenho para papel, introduzindo ligeiras diferenças nas

figuras. As transformações bizarras de figuras dos seus filmes demonstram uma

sensibilidade surrealista mais de uma década antes do “Manifesto Surrealista” de

André Breton. Em relação à animação stop motion de fantoches e bonecos, há que

destacar o nome do russo Ladislas Starevich. Muitos dos seus filmes, como Rozhdestvo

obitateley lesa (O Natal dos Insectos, 1913), eram protagonizados por insectos. Os registos

da época permitem perceber como os espectadores ficavam maravilhados com os

filmes de Starevich porque os insectos se moviam e reagiam com fluidez e

expressividade, como se fossem pessoas. O trabalho do cineasta era paciente,

manipulando subtilmente bonecos com articulações de arame. Ele é considerado por

muitos animadores o maior cineasta deste género da história do cinema.

D. W. Griffith

David Wark Griffith foi o primeiro grande cineasta da história do cinema, capaz de dar

densidade e complexidade artística a algumas das técnicas que começavam a ser


utilizadas nos filmes. O cineasta soviético Sergei M. Eisenstein chamou-lhe pai: “Não

existe cineasta no mundo que não lhe deva algo. [...] Quanto a mim devo-lhe tudo.” A
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sua obra têm uma grande diversidade. A Corner in Wheat (1909) é uma fábula política

sobre o negócio feito em volta do trigo e o contraste de nível de vida entre quem

trabalha os campos e quem faz dinheiro com a distribuição dos cereais, ao ponto dos

explorados não conseguirem comprar o que plantaram e colheram — repare-se nas

diferenças de postura e movimento de cada classe. The Lonely Villa (1909) segue uma

estrutura narrativa que se tornou muito popular: o last minute rescue, ou seja, o

salvamento no último minuto. Neste filme, há uma família em perigo e a tensão é

criada através de acções paralelas: uma linha narrativa centra-se no que se está a

passar na casa e a outra na tentativa do homem chegar a casa para salvar a sua mulher

e filhas. The Musketeers of Pig Alley (1912) opta por uma realismo rugoso, que faz

sobressair as texturas daquilo que filma, explorando a profundidade de campo e as

várias escalas de planos — notório, em particular, é o modo como o grande plano não

surge devido a uma aproximação da câmara ao actor, mas do actor à câmara. The

Avenging Conscience or “Thou Shalt Not Kill” (1914) é um conto moral sobre um sobrinho

que sonha matar o tio. O mais relevante passa pelo modo como Griffith dá a ver a

loucura do protagonista através do modo como é assombrado por imagens —

nomeadamente, pelo fantasma do tio que lhe vai aparecendo no local onde o crime

supostamente aconteceu. A sua figura é re-inscrita no espaço que antes habitava

através de um flashback sobreposto à acção no presente.

The Painted Lady (1912), também de D. W. Griffith, é um dos primeiros filmes a


concentrar-se no virtuosismo da interpretação de uma estrela feminina, Blanche

Sweet, que aqui retrata a loucura de uma mulher. Griffith enquadra-a da barriga para

cima, portanto em plano aproximado de tronco ou médio, para que todas as expressões

e todos os movimentos dela sejam visíveis. Em Broken Blossoms or The Yellow Man and the

Girl (O Lírio Quebrado, 1919) encontramos o mesmo interesse por uma actriz — nesse

caso, Lillian Gish.


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Mise-en-Scène e Edição

Comecemos com uma explosão. Cecil M. Hepworth foi um dos pioneiros do cinema

britânico e tornou-se num importante produtor entre 1905 e 1918. Explosion of a Motor

Car (1900) utiliza técnicas de edição que encontramos em Georges Méliès. Neste caso, a

explosão do automóvel é feita através do stop motion, parando a câmara, substituindo o

automóvel, e reatando a filmagem com a câmara exactamente no mesmo sítio. A

câmara está colocada para que possamos ver a rua em perspectiva, acompanhando a

deslocação do carro. Aquilo a que chamamos mise-en-scéne é basicamente este arranjo

de tudo o que é enquadrado: actores, luz, cenário, adereços, e guarda-roupa. O “tudo”

inclui também o modo como todos estes elementos são filmados através dos

enquadramentos e do movimento da câmara. A edição consiste na junção de planos

numa sequência — que mostre a sucessão de eventos tal como se desenrolou. Neste

caso, o corte é imperceptível exactamente para não quebrar a continuidade dos

eventos: o deslocamento e aproximação do carro e a sua subsequente explosão.

Mudança de Escala de Plano

Muitos dos primeiros filmes de ficção eram rodados em plano geral e a cena passava-se
num espaço semelhante a um palco teatral, com proscénio. Mary Jane’s Mishap (1903),

realizado por G. A. Smith da Escola de Brighton no Reino Unido, alterna já estes planos

abertos com planos aproximados que permitem ao espectador ver certos detalhes

(como quando a criada suja a cara ao engraxar os sapatos). Este tipo de ligação é

denominado raccord no eixo — a câmara permanece no mesmo eixo em relação à acção,

mas aproxima-se ou afasta-se da acção. Embora os gestos da actriz não colem


completamente com o plano anterior, há uma tentativa de transpor para o ecrã uma

acção contínua — e este é um dos princípios de continuidade no cinema.


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Sobreimpressão e Continuidade

Edwin S. Porter, um dos realizadores que trabalhou para Edison foi um dos mais

relevantes cineastas deste período, marcando de modo decisivo o modo como se faria

cinema. Porter era um projeccionista e um especialista em equipamento fotográfico. Os

seus filmes conjugam técnicas já utilizadas por Méliès, Smith, e James Williamson,

dando-lhes por vezes um maior impacto. The Life of an American Fireman (1902) explora

imagens sobreimpressas noutras imagens. O filme é por isso um dos primeiros exemplos

do uso de múltiplas imagens compostas no ecrã. O sonho do bombeiro, que abre o filme,

é mostrado num balão inserido na imagem. É de notar também que o salvamento que

fecha o filme é visto de dois pontos de vista, primeiro de dentro do apartamento e depois

de fora do edifício. Este tipo de repetição não era estranho neste tempo. Em Le Voyage dans

la lune (A Viagem à Lua, 1902), Méliès também repete a aterragem da cápsula na lua. Uncle

Tom’s Cabin (1903) foi o primeiro filme americano a utilizar intertítulos entre as cenas,

filmadas cada uma num só plano. O filme também mostra o uso de artifícios vindos do

teatro, tais como elementos cénicos pintados, que era comum nesta altura. Os

intertítulos já tinham sido usados no Reino Unido. The Great Train Robbery (O Grande

Assalto ao Comboio, 1903) foi um dos filmes mais populares de Porter. A cena de abertura

utiliza dois planos combinados, um do interior onde está o operador do telegrafo, outro

do exterior onde o comboio circula. Quando os assaltantes saem do escritório pela


esquerda, surgem no plano seguinte à esquerda. Este raccord de direcção permite que o

movimento espacial das personagem coincida com o seu movimento no ecrã. Este é um

filme fundamental para entender o modo como cinema foi tentando transmitir a

consistência espacial e temporal dos eventos narrativos para o espaço do ecrã.

Uma versão mais sofisticada desta tentativa de manter a direcção do movimento

das personagens através da composição visual pode ser vista em Rescued by Rover (1905),
no qual um cão descobre um bebé que tinha sido raptado. O percurso do cão é

perceptível por causa do uso rigoroso de raccords de direcção.


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Griffith e a Composição Fílmica

D. W. Griffith utiliza estas técnicas de forma singular. Broken Blossoms or The Yellow Man

and the Girl (O Lírio Quebrado, 1919) define Londres com um local sombrio, onde a luz é

ténue. Griffith pinta as imagens com a luz. A rua que vai reaparecendo tem um arco,

mas o espaço é fechado, contido, barrado pelo edifício atrás do arco, aprisionando

assim a personagem asiática. A loja dele está à sombra, contrastando com a luz

projectada, da qual não vemos a fonte, mas que ainda assim é aquilo que ilumina a rua.

O actor Richard Barthelmess aparece encostado à parede com os braços junto ao corpo,

numa postura defensiva, irrequieta, tensa. Noutro momento, os intertítulos são

utilizados de forma irónica, quando é dito que Burrows (Donald Crisp) não tolera a

falta de educação à mesa e depois é mostrado o mau comportamento dele à mesa. Mais

à frente, o cineasta insere um plano da rapariga (Lilian Gish) no quarto do piso

superior da loja, deitada, depois do pai dela ter sido informado onde ela está. Esta

imagem não é uma mera projecção do pensamento dele (porque ele não conhece esse

espaço), mas coloca as dois locais, o ringue e o quarto, em paralelo. O cinema tem assim

a capacidade de estabelecer ligações entre coisas aparentemente distantes, como se

uma imagem assombrasse a outra.

Em Intolerance: Love’s Struggle Throughout the Ages (Intolerância, 1916), Griffith

apresenta quatro histórias diferentes sob o tema da intolerância, ligadas pela imagem
de uma mãe (Gish) a embalar uma criança que vem de um poema de Walt Whitman.

Mudando de uma história para outra, Griffith obriga o espectador a dar um passo

atrás, a pensar sobre os actos de intolerância num contexto histórico mais alargado. A

primeira história passa-se no presente, nos Estados Unidos, e explora os conflitos

entre capitalistas sem escrúpulos e operários mal pagos e como o puritanismo moral e

arrogância social podem conduzir a falsas acusações de crimes. A segunda história é


bíblica e passa-se na Judeia, onde depois das bodas de Caná e do episódio da mulher

acusada de adultério, Jesus é perseguido e finalmente crucificado. A terceira história


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passa-se no Renascimento, em França, e é sobre as tensões entre católicos e

huguenotes, protestantes calvinistas, que conduziu ao Massacre de S. Bartolomeu, no

qual os segundos foram dizimados. O filme regressa ao presente antes de apresentar a

quarta história, que se passa na Babilónia, em 539 a.C., e se concentra na disputa entre

o rei Belsazar, associado à deusa Ishtar, e o persa Ciro, associado ao deus Bel-Marduk.

A rivalidade entre eles é também uma rivalidade entre deuses e devotos aos deuses,

que vai conduzir à queda da civilização babilónica.

Mise-en-Scène e Edição nos Filmes em Série

Na próxima aula vamos ver três episódios do filme em episódios ou filme serial, Les

Vampires (Os Vampiros, 1915) de Louis Feuillade. Feuillade fez outras obras marcantes

como esta, como Fântomas (1913). Estes filmes eram comuns nesta altura, mas

tornaram-se cada vez mais difíceis de exibir depois das salas começarem a ter horários

certos de projecções em vez de projecções contínuas. A complexidade narrativa de Les

Vampires é semelhante à de Intolerance, procurando seguir diferentes linhas narrativas e

ainda para mais ao longo de dez episódios separados. É uma oportunidade para

percebermos como um cineasta pode desenvolver princípios de mise-en-scéne e edição

numa forma de longa duração (399 minutos, mais de seis horas e meia),
nomeadamente através da performance acrobática de alguns actores no domínio da

mise-en-scène e do uso de tintagens de várias cores ao nível da edição.

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