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1.2. O Documento e a Ficção

À nossa frente, estava projectada uma imagem fixa da praça Bellecour, em Lyon. A

surpresa era mínima. Mal tive tempo de dizer para o meu companheiro: “E

arrastaram-nos para isto? Há mais de dez anos que vejo coisas destas!” Mal tinha

acabado de falar, quando um cavalo puxando uma carroça se pôs a mexer em

direcção a nós, seguido por outros veículos e peões, toda a animação da praça.

Perante isto, ficámos de boca aberta, admirados, espantados como nunca.

Estas palavras foram ditas por Georges Méliès depois de ter visto La Place des Cordeliers à

Lyon (1895), um dos filmes mostrados pelos irmão Auguste e Louis Lumière na primeira

sessão pública e comercial de cinema. A sessão decorreu a 28 de Dezembro de 1895 em

Paris e foi composta por dez filmes: La Sortie des usines Lumière à Lyon (A Saída da Fábrica

Lumière em Lyon), La Voltige, La Pêche aux poissons rouges, Le Débarquement du Congrès de

Photographie à Lyon (O Desembarque do Congresso dos Fotógrafos em Lyon), Les Forgerons,

L’Arroseur arrosé (O Regador Regado), Le Repas de bébé (O Almoço do Bebé), Le Saut à la couverture,

La Place des Cordeliers à Lyon, e La Mer.

Efeito de Realidade e Efeito Impressionista

Na genealogia do cinema há dois aspectos fundadores: o efeito de realidade envolve uma

crença nas imagens do cinema como projectando o mundo e o efeito impressionista,

ligado ao espectáculo do movimento, dado à percepção sem necessidade de mediação

ou aprendizagem cultural. O primeiro efeito dá importância ao objecto filmado. O


segundo dá importância ao olhar sobre ele — também as pinturas da montanha de

Sainte-Victoire feitas pelo pintor pós-impressionista Cézanne, não são uma simples
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representação da montanha, mas materializam o olhar dele sobre ela, o modo como ele

a viu ou foi vendo. Podemos dizer que o cinema nasce no cruzamento destes dois

aspectos, dando mais importância a um ou a outro.

No cinema, somos fascinados pelo que olhamos, acompanhando o movimento do

que olhamos. Há portanto uma correspondência entre o movimento das imagens e o

movimento do nosso olhar. O cinema mobiliza o olhar, coloca-o a mover-se, tem a

capacidade de fazer embarcar o nosso olhar no movimento que ele cria.

Irmãos Lumière

Em La Sortie des usines Lumière à Lyon (A Saída da Fábrica Lumière em Lyon, 1895), a distância

da câmara foi calculada de modo a dar a ver as pessoas e o portão da fábrica —

respondendo assim a duas das questões fundamentais do cinema: o que filmar e como

filmá-lo, para onde apontar a câmara e onde colocá-la, questões estéticas e éticas, que

um filme como Photographe (Fotografia, 1895) ilustra tão bem. Saída do Pessoal Operário da

Fábrica Confiança (1896) do pioneiro português Aurélio Paz dos Reis, tendo o mesmo

tema, demonstra de modo cabal a importância deste tipo de decisões, já que a sua

perspectiva é oblíqua em vez de frontal e é mais aberta. O que fascinou as pessoas

quando assistiram aos primeiros filmes dos irmãos Lumière (e talvez muitos
espectadores de hoje tenham perdido a consciência deste mistério fascinante, do

mistério das imagens que mexem) foi verem imagens em movimento, possibilitadas por

um dispositivo, o cinematógrafo, que culmina uma série de invenções e experiências

tecnológicas.

Por um lado, os espectadores viram-se interpelados culturalmente pelo que

reconheciam nas imagens, pelas pessoas, pelos objectos, pelos lugares. Por outro lado,
viram-se também interpelados por uma certa forma de olhar. Estes dois aspectos, o

cultural e o fisiológico, cruzaram-se no espectáculo do cinematógrafo dos irmãos


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Lumière. O teórico Jean-Louis Schefer chama a atenção para a origem baixa, proletária,

vulgar do cinema, não porque os seus criadores sejam assim, mas porque assim é o seu

espectador-alvo. Daí que o teórico Jean-Louis Schefer chame a atenção para a origem

baixa, proletária, do cinema. Não porque os seus criadores sejam assim, mas porque

assim é o seu espectador-alvo. Esta é uma afirmação verdadeira do ponto de vista

cultural, mas não do ponto de vista social. Os dez filmes mostrados na primeira sessões

e nas que se seguiram são variados quando vistos a partir do segundo ponto de vista.

Ainda assim, vale a pena reconsiderar o que diz Schefer na medida em que o cinema

vem colocar em questão a separação destas duas dimensões, a cultural e a social,

mostrando como podem estar ligadas. O cinema teve desde logo o potencial de mudar o

modo como os pobres, que não tinham acesso à educação, se viam a si mesmos e ao

mundo.

Em Barque sortant du Port (1895), o movimento das ondas ganha uma força

impressionista. É um movimento, não das máquinas, mas da natureza. A força e beleza

da composição do plano está no modo como não é desvendado o local onde a câmara

está assente, antecipando o modo como muitas vezes o cinema nos faz sentir que uma

câmara nos deu acesso ao que estamos a ver ao mesmo tempo que a sua presença como

objecto desaparece ou não é tornada explícita através da imagem.

L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat (Chegada de um Comboio, 1896) é um dos filmes

mais famosos dos Lumière. Ao contrário do que por vezes se pensa, não foi um dos
filmes projectados na sessão de Dezembro de 1895. O enquadramento enfatiza a

diagonal do ecrã e a perspectiva, criando uma composição dinâmica, que expande o

dinamismo próprio do comboio que se aproxima. O plano foi rodado numa altura do

dia em que o sol estava alto. Por isso, a sombra projectada pelo comboio não é

demasiado longa ou intensa. Não tapa ou esconde as pessoas. Pelo contrário, permite-

nos distinguir claramente as pessoas.


Démolition d’un mur (Demolição de um Muro, 1896) é um filme fundamental. Os filmes

dos irmãos Lumière produzidos no seu cinematógrafo constituem um proto-cinema,


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um cinema primitivo, um cinema primeiro, um percursor do cinema. Podemos falar

nestes termos sobre as pinturas pré-históricas de Lascaux também. Este filme foi

acidentalmente projectado de trás para a frente e depois refeito de modo a incluir esse

efeito no próprio filme, isto é, a acção que acabámos de ver anda para trás. Démolition

d’un mur demonstra que os irmãos Lumière eram já cineastas (enfim, Louis Lumière era

o cineasta), utilizando o acidental, descobrindo as possibilidades de uma nova arte.

Esta decisão, intencional, de utilizar o acidental é semelhante à que levaria Jean Renoir

a utilizar as chuva que apareceu inesperadamente, anos mais tarde, na rodagem de

Partie de campagne (Passeio no Campo, 1936). Os Lumière descobriam que o cinema

introduz um movimento próprio, autónomo do movimento das coisas filmadas.

Georges Méliès

Uma figura importante que emergiu no cinema francês, fazendo contraponto ao

cinema dos Lumière foi Georges Méliès. Méliès era um mágico que tinha uma sala de

espectáculos. Para controlar melhor a sua arte cinematográfica, ele mandou construir

um estúdio de vidro, que permitia a utilização de luz natural e de grandes telas

pintadas. Méliès fez falsos documentários, ou reconstituições documentais — emVisite

sous-marine du Maine (Visita Submarina ao Naufrágio do Maine, 1898), por exemplo, um


grupo de mergulhadores visitam os restos do navio de guerra Maine, da guerra entre os

EUA e a Espanha no final do séc. XIX e um aquário entre a cena e a câmara simula que

tudo se passa debaixo de água. No entanto, o cinema era para ele principalmente um

meio que lhe permitia criar sequências mágicas como as de L’Homme orchestre (1900),

que mostra um homem a multiplicar-se, formando uma orquestra. Ele utilizava

truques simples como a mudança de elementos cénicos entre um plano e outro, a


paragem da filmagem, e a sobreposição de películas. Os seus filmes tornaram-se muito

populares em França, em particular fantasias como Le Voyage dans la lune (A Viagem à


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Lua, 1902), onde elementos como a lua adquirem grande expressividade e o cenário

ganha profundidade visual, com diferentes níveis.

Estados Unidos, Espectáculo e Ficção

A grande figura percursora do cinema americano foi Thomas Edison, inventor do

Cinetoscópio. O filme The Kiss (O Beijo, 1896), realizado por William Heise para a

companhia de produção de Edison, mostra um homem e uma mulher a beijarem-se. O

filme provocou polémica, não só por mostrar um beijo em público, mas sobretudo por

o exibir na escala espectacular do grande ecrã. Um outro filme do ano da primeira

sessão dos Lumière, revela como desde o princípio do cinema houve um desejo de

ficção, de raiz histórica ou não, que aqui envolve a evocação de um acontecimento do

séc. XVI: Execution of Mary, Queens of Scots (1895), realizado por Alfred Clark para a

produtora de Edison, retrata a decapitação de Maria Stuart, Rainha dos Escoceses.

Reino Unido e a Escola de Brighton

O cinema dos primórdios mostrava já uma grande vitalidade. Em Inglaterra, Birt Acres
e Robert W. Paul realizaram Rough Sea at Dover (1895), semelhante a Barque sortant du

Port, mas ainda mais abstracto, sem presença humana e apenas alimentado pelo

movimento violento das ondas. That Fatal Sneeze (1907), de Lewin Fitzhamon, produzido

pela companhia de produção do britânico Cecil Hepworth, foi feito quase uma década

depois. O cinema ainda estava a dar os primeiros passos, mas este filme revela como já

existia uma imaginação especificamente cinematográfica, com eventos a serem


encenados para a câmara e os actores a transmitirem sensações imaginadas,

promovidas pela destruição controlada do cenário e pelo baloiçar da câmara.


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Devemos importantes descobertas e invenções a alguns dos operadores de

câmara que trabalhavam para os irmãos Lumière. Alexandre Promio é considerado o

criador da câmara móvel. As primeiras câmaras eram suportadas por tripés rígidos

que não permitiam o movimento da câmara, nem sequer para fazer panorâmicas. Em

1896, Promio fez uma série de filmes colocando a câmara em barcos e registando a

viagem. Daí o nome que ainda hoje damos a estes movimentos de câmara em que o

eixo se move: travelling. Um desses filmes é Panorama du Grand Canal vu d’un bateau.

Estes primeiros filmes deram origem a outros, igualmente produzidos através da

colocação da câmara em veículos móveis, ligando a invenção do cinema a outras

inovações tecnológicas e mecânicas. O género que surgiu destas experiência é

denominado passeio fantasma, porque dava ilusão de que o espectador estava a viajar.

Este género tornou-se popular em Inglaterra e noutros países. View from an Engine

Front - Barnstaple (1898), produzido pela Warwick Trading Company, mostra uma

viagem de comboio através de uma pequena cidade no sul de Inglaterra. A câmara foi

coloca à frente do comboio dando à viagem um tom fantasmagórico. Colocar a

câmara sobre carris para a poder mover num estúdio de cinema tornar-se-ia comum

uns anos mais tarde.

Como Rough Sea at Dover já demonstrou, a Inglaterra foi uma região

particularmente importante nos primórdios do cinema, conjugando a inovação técnica

com a inventividade estética. Recentemente foi descoberto o primeiro filme a cores


feito em 1901 pelo inventor e fotógrafo Edward Raymond Turner. Turner patenteou o

seu método anos antes da invenção do Kinemacolor em 1906 e do Technicolor em 1916.

Filmou três crianças a brincar com um peixe no jardim de família, entre outras cenas

quotidianas. Morreu em 1903 e o seu processo (que envolvia o registo de fotogramas

através de filtros vermelhos, verdes, e azuis, depois projectando-os em sobreposição)

foi considerado pouco apurado. As imagens projectadas eram a cores, mas ficavam
desfocadas devido aos filtros e à sobreposição. O seu trabalho foi assim esquecido

durante demasiado tempo.


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O grupo mais importante que surgiu em Inglaterra foi a Escola de Brighton

(Brighton School). Construíram pequenos estúdios pelo país e exploraram efeitos

especiais e técnicas de edição que se tornaram muito influentes. Os membros mais

proeminentes desta escola eram fotógrafos como G. A. Smith. James Williamson tinha

feito o mesmo percurso profissional. O seu The Big Swallow (1901) é um óptimo exemplo

do engenho dos cineastas de Brighton. Sobre um fundo branco, um homem gesticula

por não querer ser filmado. Avança, com a boca aberta, comendo o operador e a

câmara. O título refere-se a este gesto como uma “grande deglutição”. É o cinema já

como arte auto-reflexiva.

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