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Ordem, Progresso e Animação.

Marcos Magalhães

Antes de abordar a questão de uma indústria de Animação brasileira, é importante


afirmar que, desde seus primórdios, a linguagem da Animação possui, por conta (ou apesar)
de sua diversidade e potencial artístico, uma enorme demanda do público e, portanto, uma
latente vocação industrial.
Quando falamos de primórdios aqui, estamos nos referindo à pré-história – muito,
muito antes da revolução industrial! A linguagem das imagens em movimento sempre foi
perseguida pelo ser humano, desde os desenhos das cavernas que buscavam reproduzir
movimentos de homens e animais. Esta representação a princípio dependia de uma
interpretação, como era o caso dos animais desenhados com oito patas ou mais (como se
fossem camadas superpostas do que hoje podemos chamar de “fotogramas”). E assim foi ao
longo de toda a história da arte humana, quando artistas dos mais diversos estilos e culturas
conseguiam captar e registrar em imagens fixas, por puro talento e engenho, uma
“sugestão” de movimento. Esta só pôde se concretizar na tão desejada “ilusão” de
movimento no século XIX, em plena alvorada da era industrial. Foi quando surgiram os
primeiros engenhos mecânicos que iam transformar curiosos truques de ótica na mais
poderosa expressão humana da atualidade, no espaço de pouco mais de um século,
A primeira “máquina” de projeção de desenhos animados foi um simples disco de
papelão com ranhuras chamado “Fenaquistoscópio”, lançado por Joseph Plateau por volta
de 1830. Mesmo que a intenção do inventor fosse o estudo da fisiologia da visão humana e
não fabricar um produto, o seu efeito de ilusão de movimento, inequivocamente eficiente
para qualquer observador, já indicava um potencial comercial. Um aperfeiçoamento deste
aparelho, o Zootrópio, idealizado em 1834 por Willian Horner, mas só patenteado e
comercializado trinta anos depois, se tornou sucesso de vendas e fenômeno de marketing no
final do século, vendido como brinquedo, objeto de estudo ou até peça promocional de
produtos como balas e biscoitos.
No livro A Grande Arte da Luz e da Sombra: Arqueologia do Cinema, de Laurent
Mannoni1, encontramos um fascinante relato da corrida pelos modelos e soluções
mecânicas que vingariam na nascente indústria audiovisual. Conhece-se ali um panorama
bem mais amplo que a versão mais conhecida do “nascimento do cinema”, oficialmente
datada pela estreia do Cinematógrafo dos irmãos Lumière, em 1895.
O resgate de um episódio esquecido veio recentemente alterar o paradigma de que o
nascimento do “cinema” só acontece a partir das imagens fotográficas realistas do
Cinematógrafo: trata-se da história de Emile Reynaud, artista, inventor e empresário que,
pelo menos três anos antes dos Irmãos Lumière, obtinha sucesso de publico e crítica com as
sessões genuinamente cinematográficas de seu “Teatro Óptico”, na mesma Paris. Este
espetáculo era infinitamente mais próximo do que hoje chamamos “cinema”: continha
narrativa, montagem, diálogos, música e participação ativa da platéia, em um grande
espetáculo de projeção. As cenas eram projetadas a partir de uma fita translúcida perfurada,
semelhante à película cinematográfica. Apenas uma grande diferença: todas as imagens
eram desenhadas à mão!
Portanto, o desenho animado, a expressão mais popular da Animação, foi o
verdadeiro precursor de toda a indústria audiovisual. Emile Reynaud personifica o talento
que levou a mágica do Zootrópio às telas, com o sistema de espelhos que batizou de
“Praxinoscópio” e foi a base de seu Teatro Óptico. Mas, talvez por um detalhe de sua
personalidade, mais para artesão do que para empresário (ao contrário dos Lumière, que
tinham algum tino de comerciantes) não foi capaz de industrializar seu sistema. Ao
contrário: concentrava todas as tarefas da produção e do espetáculo em sua pessoa,
tornando o espetáculo comercialmente insustentável. Cada filme levaria meses para ficar
pronto, e por isso foi levado ao desespero quando verificou que, a partir de 1895, seu
público migrava para as sessões do “cinema real” do Cinematografo, este capaz de realizar
uma nova atração a cada semana... mesmo que os filmes não tivessem nenhum atrativo
além da mera reprodução fotográfica da realidade, em cenas cotidianas como a chegada de
um trem ou a saída de operários da fábrica.

1
MANNONI, Laurent. A Grande Arte da Luz e da Sombra: Arqueologia do Cinema. São Paulo: SENAC:
UNESP, 2003.
A falência e o fim trágico de Reynaud (num surto de depressão, jogou seu
equipamento e sua obra no Rio Sena) sepultaram o seu mérito por quase um século,
deixando a errada impressão de que o cinema seria prioritariamente uma reprodução da
realidade em movimento. Exagerada importância foi dada ao mecanismo padronizado de
filmagem e projeção lançado pelos Lumière e complementado por vários outros inventores
do calibre de Thomas Edison (que aperfeiçoou entre outras coisas a película 35 mm tal
como é até hoje). O suporte físico da reprodução realista ficou sendo considerado como o
pilar da nova indústria, quando hoje em dia sabemos que o produto mais valioso e
permanente será sempre o conteúdo imaterial, vindo do impulso humano em contar
histórias e representar fantasias. A animação e sua linguagem, da qual derivaram todas as
expressões audiovisuais em movimento que conhecemos, deve ser colocada como a base da
indústria audiovisual e reconhecida e valorizada como tal.
A indústria do cinema só deslanchou quando os filmes se descolaram do
documental e lançaram voos para a fantasia, a comédia e o sonho, assuntos impossíveis de
ser captados com a pura fotografia. E que melhor veículo para passear por estas esferas que
o desenho e a imaginação? Logo, quando algum desenhista teve a ideia (vários deles a
tiveram) de registrar, através da fotografia, suas imagens desenhadas – ou experimentar
objetos movimentados magicamente pelo stop-motion – vislumbrou-se um novo filão para
a exploração comercial do cinema. Na formação das primeiras cadeias de produção e
exibição cinematográfica, o desenho animado já teve lugar de destaque e público garantido.
Personagens nascidas nas histórias em quadrinhos (linguagem de crescimento paralelo, com
a mesma idade oficial do cinema, inaugurada em 1895 com o personagem Yellow Kid)
logo foram transpostas para as telas, e agentes de distribuição se especializaram em
comercializar seus direitos.
O primeiro personagem que fez o caminho inverso (das telas para os quadrinhos) foi
o Gato Félix, criação de Otto Messmer para os estúdios de Pat Sullivan. De seu sucesso no
cinema derivou uma bela carreira comercial, até hoje exemplo para o licenciamento de um
personagem em vários produtos de consumo. O erro básico de Sullivan foi não acreditar no
futuro do cinema sonoro e se recusar a dar voz ao personagem, o que acabou causando sua
decadência. Mas Félix mostrou o caminho para muitos outros personagens de sucesso que
se seguiram.
Durante a evolução da indústria do cinema ao longo do novo século, as pesquisas de
linguagem e de novos processos de produção de efeitos (não só os especiais) estiveram a
cargo dos animadores – que nem sempre levaram o devido crédito. O storyboard, por
exemplo, peça hoje em dia reconhecidamente fundamental no planejamento de uma
produção, vem da cultura do desenho animado e foi instituído pela equipe de Walt Disney.
Por alguma estranha razão (desconhecimento, ou talvez despeito?) a Animação foi
gradativamente perdendo status, chegando a ser considerada arte menor ou simples
curiosidade para a crítica, apesar de seu apelo junto ao público. Uma errônea classificação a
designou quase exclusivamente como um gênero infantil. Ora, os filmes de animação
inicialmente se destinavam ao público geral, ou até só para adultos, com sátiras políticas e
de costumes inapropriadas para menores. Foi só a partir dos longas de Disney, a partir dos
anos 1940, que as crianças passaram a ser o alvo principal, mas mesmo assim ainda
levando todas as idades às salas de projeção. Com o posterior advento da televisão e sua
programação das manhãs de sábado, o desenho animado correu o risco de se tornar
definitivamente um sub-gênero mal explorado, aprisionado em seu nicho e sem perspectiva
de libertação até o final do século XX.
Nos anos 1990, assistimos a um renascimento e valorização sem precedentes da
linguagem animada. Aconteceu no mundo todo, e se deve muito à grande transformação
introduzida nos meios de produção e exibição. A informatização das imagens permitiu
multiplicar o alcance da fantasia através da geração de imagens sintéticas, que antes
demandavam muito esforço e talento, além de árduo recrutamento e treinamento de mão-
de-obra. Com tudo isso, o cinema admitiu finalmente sua libertação da realidade. Tornou-se
difícil distinguir as cenas “reais” das “fabricadas” com o recurso da Animação.
A Animação é hoje reconhecida como uma indústria poderosa, quase tão estratégica
quanto a bélica. Mas poucos paises realmente chegaram a construir um núcleo industrial
nesta área. Nos Estados Unidos foram moldados os padrões que influenciaram todos os
outros modelos. Em meados do século XX, cientes do grande poder comunicativo da
linguagem, os soviéticos formaram um verdadeiro “parque industrial” da Animação, com
estúdios estatais instalados em vários de seus países aliados (Tchecoslováquia, Polônia,
Hungria, etc), com a diferença de que seus produtos tinham fins mais políticos do que
comerciais. Este “parque” foi sucateado com as mudanças do regime no final do século,
mas os talentos e a tradição continuam vivos e se renovando para o mercado global.
A partir dos anos 1960, com a televisão instalada e difundida em todo o mundo, o
Japão estrategicamente montou a sua indústria e seu padrão nesta área, com Osamu Tezuka,
gênio tanto do “mangá” como do “anime”, desempenhando o mesmo papel catalisador de
um Disney. A princípio os produtores japoneses visavam o mercado interno, mas logo
criaram condições de promover uma verdadeira invasão internacional que estabeleceu
novos padrões, hoje quase em pé de igualdade com o domínio americano.
Nos outros países, inclusive no bloco europeu, não há na Animação potências como
os EUA e Japão. A França deu um grande passo na década de 1990, firmando sua
identidade e marca industrial na Animação, e hoje cria séries e longas de sucesso, além de
ter talvez os melhores núcleos de formação artística profissional em Animação atualmente.
Mas não faz questão de concentrar toda a linha de produção em seu próprio território.
Na Ásia, antes apenas fonte de mão–de-obra especializada a bom preço, os países
vão construindo pouco a pouco a sua independência dos produtores americanos, japoneses
e europeus. Índia e Coréia são bons exemplos, em que o investimento no aprimoramento da
formação profissional foi o trampolim para uma maior autonomia e a possibilidade de
construir conteúdos próprios.
Em todo o planeta, o exercício da linguagem autoral e a busca de novas soluções
artísticas e técnicas explodem em festivais, na internet e nas novas plataformas como os
games e o celular.
A globalização fez com que as co-produções ou terceirizações fragmentassem a
cadeia industrial da Animação. Um único longa ou uma série inteira podem hoje ser criados
na França, planejados no Canadá, animados na Índia e finalizados na Alemanha, por
exemplo... Esta é a maior tendência, e o Brasil pode estar prestes a entrar neste clube.
O Brasil tem filmes de Animação desde o inicio do século passado, e os desenhos
animados há muito fazem parte de nossa cultura. Os produtos brasileiros eram escassos,
mas sempre com repercussão de público, desde o primeiro e curtíssimo filme, O Kaiser, de
Álvaro Marins, o Seth, em 1917. Seth foi um visionário que tentou fazer das caricaturas
animadas um produto comercial, encontrando algum mercado para seu trabalho, mas não o
suficiente para remunerar e garantir continuidade de seu processo artesanal de produção.
Sua trajetória foi mais ou menos a mesma, com diferenças de escala, de todos os produtores
brasileiros que o sucederam no século XX: um ou dois títulos de sucesso, comprovando o
talento, mas muita dificuldade para encaixar o produto e reproduzi-lo em série (se este
fosse o objetivo).
Portanto, não podemos falar que já existe uma “indústria de Animação brasileira”.
Ainda não dominamos o processo completo de criação, planejamento, produção,
finalização e principalmente distribuição e licenciamento de séries e longas de Animação.
Mas entramos num ótimo caminho neste início de milênio. Finalmente, a sociedade
brasileira foi forçada a reconhecer, pela invasão audiovisual presente em todas as mídias e
artefatos de comunicação, que a customização desta linguagem é fator estratégico e hoje em
dia uma absoluta necessidade. Em conseqüência, muitas ações positivas se encontram em
curso.
O que se está fazendo para recuperar o tempo perdido? A partir dos anos 1990, a
chegada de mais informações, com trocas de experiências com os produtores internacionais
(em eventos como o festival Anima Mundi) revelou as perspectivas e ajudou a definir o
nosso potencial numa indústria global de Animação. No próprio festival, incentivou-se a
formação de uma associação de classe (ABCA – Associação Brasileira de Cinema de
Animação) que tem estruturado ações junto a diversos setores (governo, mercado, publico,
empresas) que já começam a dar seus frutos. Uma série de editais está acontecendo visando
desenvolver projetos e modelos de produção (incentivando também as co-produções
internacionais).
Ao mesmo tempo, movidas por interesse mercadológico concreto, emissoras de TV
e operadoras de celular começam a disputar conteúdo brasileiro em Animação.
Em outro setor importante, o da formação, abrem-se cursos superiores e de
especialização em Animação em universidades públicas e privadas. Ainda não se treina
mão-de-obra para o mercado em cursos profissionalizantes, pois aquele não tem padrões
estabelecidos, mas os estúdios já incluem em seu planejamento o treinamento prévio de
suas equipes.
Podemos dizer, para finalizar, que a vocação brasileira para uma indústria de
Animação está se mostrando criativa, cultural, geradora de conteúdo e estilos próprios, e
dificilmente seguirá o mesmo caminho dos asiáticos, que enfrentaram uma fase inicial (em
alguns casos, permanente) de apenas executar material criado por outras culturas. Estamos
no início, mas temos feito as coisas certas. O futuro certamente será favorável, a exemplo
de duas outras vertentes culturais e de entretenimento, a nossa música e nosso futebol, que
já trilharam caminhos próximos dos industriais, e que se não se estruturaram fisicamente de
forma duradoura, pelo menos têm marca indelével no exterior. A Animação brasileira tem
tudo para se juntar a estes bem sucedidos produtos de consumo interno e exportação.

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Palestra proferida no evento RETOMANDO A QUESTÃO DA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA
BRASILEIRA, dia 18 de março de 2009 às 18:30 no cinema 1 da Caixa Cultural-RJ.

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