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A HISTÓRIA DA ANIMAÇÃO TRADICIONAL PELA VISÃO DO

CAPITALISMO ARTISTA DE LIPOVETSKY

Autores(as): Lucas Mori Flores 1


Instituição de origem: Universidade Feevale

RESUMO:

A animação começa a evoluir a partir da disponibilidade de ferramentas tecnológicas


que permitam que os artistas criem a chamada “ilusão da vida”, baseada na persistência da
visão. Desde a sua forma mais primordial, enquanto projeções através das lanternas mágicas, a
animação sempre teve o caráter de entreter. Dessa forma podemos dizer que a animação nasce
uma arte de massa, antes mesmo da invenção do cinema, tendo em vista que a experiência de
Reyanud com o seu “Teatro Mágico” precede a invenção dos dispositivos que dariam origem a
chamada sétima arte. É neste contexto de nascimento do cinema e da massificação da arte para
o mercado, que o texto buscou estabelecer relações da arte da animação 2D, comumente
chamada de animação tradicional, enquanto “produto cultural” nascida em um sistema
identificado por Lipovetsky como “capitalismo artista”. Desde os seus artistas mais
importantes, exploradores de um novo meio artístico e de comunicação que não faziam ideia
até então, do mercado multibilionário que a animação se tornaria.

Palavras-chave:
Animação, Capitalismo, Artista

1
Graduado em Desenho Industrial – Hab. Programação Visual pela UFSM.
A história da animação tradicional
pela visão do capitalismo artista de
Lipovetsky
A arte e suas representações sempre fizeram parte da cultura humana, nascidas de
expressões com fins cerimoniais, desapegadas de funções estéticas, contemplativas, as pinturas,
esculturas e músicas faziam parte dos símbolos ritualísticos que formavam estes sistemas
coletivos (LIPOVETSKY, 2015). É inerente ao ser humano a necessidade de tentar exprimir
seus sentimentos e, de certa forma, ilustrar ou capturar a natureza conforme as suas tecnologias
permitem para diversos fins. Em 2019 foram encontradas pinturas rupestres de mais de 45 mil
anos ilustrando javalis em ilhas na Indonésia, são pinturas de caráter ilustrativo, procuram
recriar uma cena do cotidiano daqueles seres humanos já considerados modernos – “homo
sapiens”. Diferem das pinturas rupestres mais primitivas de caráter pictográfico, pois possuem
além do contorno, preenchimentos mais detalhados e sugestão de volume, profundidade. As
primeiras intenções dos seres humanos em tentar simular ou pelo menos estudar o movimento
dos animais, vem de 15.000 a.c. Desenhos primitivos de animais foram encontrados nas
cavernas da região de Lascaux na França, desenhados sequencialmente com suas poses
levemente alteradas, sugerindo o seu movimento. Também recentemente foi identificado em
uma espécie de tigela na região do Irã, datada de 5.200 a.c., desenhos sequenciais que quando
a tigela era girada, mostravam a animação de uma figura de um bode pulando e comendo de
alguns arbustos (BENDAZZI, 2016).
O estado de desenvolvimento da animação sempre esteve intrinsicamente ligada as
tecnologias disponíveis no seu tempo, se na pré-história, os pigmentos, pedras e eventualmente
pinceis rudimentares eram as tecnologias que os nossos parentes homo sapiens tinham ao seu
alcance, no decorrer dos milênios, mais especificamente no nosso século XVII, dispositivos de
projeção chamados de “lanternas mágicas”, seriam usadas em shows itinerantes como forma de
entretenimento e ilustração científica, uma maneira de amplificar e ilustrar a contação de
histórias. Ainda no século XVII utilizando-se de placas de cobre recortadas e posteriormente
placas de vidro pintadas, imagens com mudanças de poses eram alternadas sugerindo uma
animação, o primeiro registro destas exibições “animadas” data de 1736 pelo cientista holandês
Pieter van Musschenbrooek (BARBOSA JÚNIOR, 2002). Versões mais portáteis e práticas das
lanternas mágicas deram origem a um tipo de espetáculo que ficou bastante popular no final do
século XVIII, eram os chamados “phantasmagoria", onde lanternas projetavam imagens
alternando posições de seres diabólicos que, projetados em panos finos sobre o púbico e com a
adição de efeitos práticos como luzes, fumaça e efeitos de som, conferiam uma atmosfera
sombria a estes contos de terror. Embora estas animações rudimentares fizessem parte dos
espetáculos, elas em si eram apenas ferramentas das quais os criadores deste tipo de espetáculo,
com destaque para o belga Étienne Gaspard Robertson (1736-1837), souberam tirar proveito.
Das lanternas mágicas, passando por alguns dispositivos simples, na maioria dos casos
assumidamente tidos como brinquedos, e que não conseguiam alternar mais do que uma dúzia
de imagens, dando a sensação de animação, chegamos ao elaborado “Teatro Ótico” de Émile
Reynaud, capaz de projetar imagens sequenciais de até 20 minutos para pequenas multidões no
Grévin Museum de Paris. Ao remover esta restrição de poucas imagens repetidas em sequências
iguais, Reynaud possibilitou a criação de movimentos, de sequências animadas que serviam ao
propósito de criar histórias, de acordo com Bendazzi:

“Depois da invenção de Reynaud, o cerne da apresentação não era mais a


sensação de maravilhamento daqueles desenhos que se moviam, mas o
entretenimento em si.”

Uma “banda de um homem só” poderia ser a descrição de Reynaud, pois ao mesmo
tempo em que inventou e patenteou o seu teatro ótico, ele mesmo ilustrava os seus filmes, além
de operar o seu “Teatro Ótico” em todas as exibições. A animação com Reynaud já nasce, pelo
menos em parte, inserida dentro do capitalismo artista, ao misturarem arte e lazer, arte e
entretenimento, arte e comércio por exemplo, porém sendo ainda o artista o próprio gerente,
produtor e distribuidor do seu conteúdo. A animação não era projetada ou produzida com o
intuito de provocar introspecções e reflexões, não havia a pretensão romântica de outras formas
de arte como a escultura e a pintura por exemplo.
Émile Reynaud foi precursor em trazer um grande público para o espetáculo de
projeção, é estimado que de 1892 até 1900, aproximadamente 500 mil pessoas tenham assistido
ao seu espetáculo intitulado “pantomimes lumineuses” (BENDAZZI, 2016), instigando o
interesse naquilo que, depois da apresentação dos irmãos Lumière a poucas quadras de onde
Reynaud exibia o seu “Teatro Ótico”, em dezembro de 1985 seria conhecido como cinema. Sob
o ponto de vista sociológico, a invenção do cinema e da fotografia produziram o efeito da
“dessacralização” da arte, dissipou-se aquela “aura” mágica da Lanterna Mágica e entrou-se na
era da “reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN, 2013). Também sobre a popularização do
cinema e a fotografia, Lipovetsky afirma que “...desencadeou-se pela primeira vez uma
dinâmica de produção e de consumo estético na escala da maioria.” (LIPOVETSKY, 2015).
A animação, pelo seu caráter de arte técnica, dependente das ferramentas disponíveis
a sua época, se beneficiou amplamente de desenvolvimentos tecnológicos como, o
cinematógrafo dos irmãos Lumière 2 e o cinetoscópio de Thomas Edison, elas popularizaram as
formas de projeção, tornando mais acessível e prático, o trabalho ainda artesanal e experimental
de artistas precursores na animação tradicional como James Stuart Blacktorn, Émile Cohl e
Winsor McCay. Blacktorn experimentou com truques de captura de imagens os seus chamados
“lightning sketches”, uma forma de atração que, antes do cinema era apresentado ao vivo pelo
artista que ia fazendo rápidos desenhos acompanhando uma história, embora Blacktorn tenha
ficado mais famoso como empreendedor e realizador no setor audiovisual, o francês Émile Cohl
explorou o intangível físico com as suas metamorfoses animadas e exageros desenhados quando
a quadro na sua obra “Fantasmagorie” de 1908. McCay em 1911, com seus experimentos
animados de “Little Nemo in Slumberland”, adaptou os seus personagens em quadrinhos para
as telas, e mostrou, em tom de desafio, que era possível animar as suas criações. Mas foi em
1914, com seu traço delicado e mais simplificado quando comparados com o seu trabalho
anterior, que McCay, nos possibilitou enxergar as emoções de um personagem, com o seu curta
“Gertie the Dinosaur” nascia um personagem animado capaz de pensar e transmitir os seus
sentimentos ao público.
Com a popularização do cinema, também cresceu a demanda por curtas animados,
inicialmente exibidos nos estados unidos como atrações chamadas de “nickelodeons” 3 que
faziam parte de feiras, ou os chamados “teatros de variedades” (Vaudeville). Este mercado
continuou crescendo e acompanhando o crescimento das cidades americanas, surgiram os
cinemas propriamente ditos, casas construídas especificamente para a projeção de filmes e que
também aproveitaram para dar um verniz de sofisticação e elitização aos antigos
“nickelodeons”, por vezes vistos como lugares de má reputação. Neste ambiente de grande
demanda por filmes tradicionais e animados, são fundados em nova Iorque e posteriormente na
Califórnia os primeiros estúdios americanos, entre eles o do artista visual e empreendedor James
Stuart Blacktorn e seu sócio Albert E. Smith, a Vitagraph Studios.

“O capitalismo artista não é designado como tal em razão da qualidade


estética das suas realizações, mas dos processos e das estratégias que
emprega de maneira estrutural visando à conquista dos mercados. Não se
trata do apogeu da beleza no mundo da vida, mas da reorganização deste

2
Hoje em dia já se credita a criação do cinetoscópio ao francês Léon Bouly, em 1893 por falta de
pagamento teria perdido a patente aos irmãos Lumière.
3
O nome vinha do valor de entrada, normalmente um “nickel” - uma moeda de cinco centavos de dólar.
sob o reinado da artealização mercantil e da fábrica industrial das emoções
sensíveis.” (LIPOVETSKY, 2015)

De acordo com esta definição do capitalismo artista de Lipovetsky podemos afirmar


que, através da fundação dos grandes estúdios da Califórnia nos Estados Unidos entre 1911 e
1922, seria implementada e estruturada de uma vez por todas o capitalismo artista em sua
essência e com todas suas características, como a estetização sistemática dos mercados, a
aplicação de uma gestão empresarial na indústria criativa, o estabelecimento de um mercado
profissional de animação e cinema, capaz de gerar uma cadeia de empregos interligados e o
tratamento transmídia dos seus produtos, com a adoção do chamado “star system” por exemplo.
Os estúdios fundados eram, a MGM, Paramount, Warner Bros., Fox Films e RKO Radio
Pictures, conhecidos como “os grandes cinco”, e os “pequenos três” (Universal Pictures,
Columbia Pictures e United Artists).
Depois da primeira guerra mundial (1914-1918) e com a popularização internacional
dos filmes americanos, os Estados Unidos se consolidaram como grandes produtores
cinematográficos, muito se deveu aos efeitos pós-guerra na França e Inglaterra, maiores
produtores e distribuidores cinematográficos respectivamente até então. (FURNISS, 2016).
Sobre o pós-guerra e a popularização do cinema:

“O mundo do cinema expandiu-se vigorosamente, também. As produtoras


pararam de mirar em um público analfabeto e proletário, pois os clientes de
classe média provaram que consideravam o cinema tão divertido quanto o
teatro legítimo. Casas de cinema começaram a substituir shows itinerantes
cada vez mais, distribuição tornou-se uma profissão bem-organizada e o
sistema das estrelas4 ganhou corpo.” (BENDAZZI, 2016)

Junto ao desenvolvimento de curtas animados para entreter um público cada vez maior
nas salas de cinema em expansão, os produtores identificaram a oportunidade de criarem séries
animadas, onde poderiam trazer personagens previamente criados em outra peça que tenham
sido bem aceitos pelo público, dessa forma construindo uma maior relação entre este
personagem e o público. Este primeiro processo de massificação do cinema e do surgimento
das séries, viu surgir o seu primeiro “astro de cinema” animado, o Gato Félix. Criado por Pat
Sullivan e Otto Messmer em 1919, foi precursor na utilização de um personagem advindo da
animação na cultura popular. Sobre a popularização do Gato Félix, a autora Donna Kornhaber
escreve no seu livro intitulado “Nightmares in the Dream Sanctuary – War and animated
Films”: “A “Felix Mania” atingiu proporções que só podem ser comparadas com as loucuras

4
Sistema de contratos exclusivos e de longo prazo praticado pelos estúdios americanos, visando
controlar suas carreiras e imagem.
inspiradas por outros gigantes da mídia global do século XX, figuras como Charlie Chaplin ou
os Beatles.” Felix foi o produto animado surgido do chamado “sistema transestético”
(LIPOVETSKY, 2015), um personagem que cruzou as barreiras de arte enquanto produção em
massa de entretenimento, produtos de consumo e cultura. O Gato Felix chegou a estampar
aviões de guerra americanos durante a Primeira Guerra Mundial. O Gato Félix foi a primeira e
a maior até então, propriedade intelectual original da animação que fez uso do licenciamento e
difusão do seu personagem para outras plataformas e mídias. Um artista iniciante e
empreendedor de sobrenome Disney observou com bastante interesse este processo de
capitalização de um personagem animado, como veremos em seguida.
Quando tinha nove anos, Walt Disney (1901 – 1966) e sua família se mudaram para o
Kansas, encantado desde pequeno pelos teatros de variedades (vaudeville) da época, Walt
procurou seguir a carreira artística de todas as formas possíveis. Em 1919, aos 19 anos ele
começou a trabalhar em um estúdio de animação publicitária, foi lá que ele conheceu aquele
que se tornaria um famoso animador dos estúdios Disney, Ub Iwerks, que apesar de ter a mesma
idade de Walt, já era um artista habilidoso. Walt Disney sempre foi mais um empreendedor do
que um artista, e seguindo esse princípio ele fundou diversas empresas e buscou contratos para
a produção de séries animadas. O mais importante destes contratos até então, veio através do
produtor Charles Mintz. Em 1927 Walt Disney começou uma série animada intitulada “Oswald
the lucky rabbit”, a série trazia como personagem principal um carismático coelho orelhudo e
uma série de outros animai. A série era uma novidade no sentido de uma visão mais
cinematográfica da animação e da narrativa, Walt Disney priorizava a história em detrimento
as chamadas gags visuais e a “comédia pastelão” (slapstick comedy). Devido ao sucesso do
coelho Oswald, Mintz fechou um contrato com a Universal Pictures que comprou os direitos
da série. Em 1928 quando Disney pretendia renegociar com Mintz os valores da série, tendo
em vista este contrato com a poderosa Universal, Mintz surpreendeu Disney e contratou quase
todos os seus funcionários, transferindo a produção da série para um estúdio gerenciado pelo
seu então cunhado. Walt Disney havia perdido os direitos de produzir a série do seu coelho
Oswald em uma espécie de “golpe” armado por Mintz, para a sua sorte, Walt pode contar com
a ajuda de um único animador que se recusou a participar deste esquema, o amigo de longa data
de Walt, Ub Iwerks.
Walt Disney resolveu investir na criação de um novo personagem, a ideia inicial dele
era de criar um rato animado chamado “Mortimer”, para a sorte de todos, a esposa de Walt
achou o nome “Mickey” muito mais simpático e, apesar de Walt Disney ter sido responsável
pela personalidade, conceito inicial e a voz do personagem inclusive, o traço final ficou a cargo
do muito mais habilidoso Ub Iwerks. Em 1928 eles lançariam Mickey Mouse na animação
“Steamboat Willie”, esta animação incorporou as novidades técnicas desenvolvidas na série do
coelho Oswald e foi além, incorporou a recém inventada novidade da banda de som gravada na
película, possibilitando a sincronização da trilha, voz e efeitos a animação. Com o sucesso
imediato da série animada, somada as lições aprendidas com a capitalização do personagem
Felix por Pat Sullivan, e com o duro golpe aplicado por Mintz, Walt Disney soube como
ninguém a melhor forma de transformar aquele personagem quase em um símbolo de
dominação cultural e imperialista como alguns o veem hoje, o rosto do “Império Disney”.
A Disney hoje possivelmente seja o maior exemplo de triunfo do capitalismo artista
do mundo, na medida em que ela não mais vende produtos ou conteúdos, mas se define como
uma empresa que constrói sonhos e sentimentos, tanto que seus slogans atuais são “To make
people happy”, “The happiest Place on Earth” e “Where Dreams come true”.

“O capitalismo artista tem de característica o fato de que cria valor econômico


por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como um sistema
conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de
encantamento.” (LIPOVETSKY, 2015)

No auge dos conteúdos animados para o cinema, quem ditava o ritmo e o volume das
produções eram aqueles grandes conglomerados cinematográficos, os “grande cinco”
especialmente, eles encomendavam e compravam os direitos dos projetos de animação
diretamente dos estúdios de animação da época. Estas produções encomendadas normalmente
ocupavam melhores cinemas para exibição e integravam os pacotes de venda dos estúdios para
redes de exibidores. Estes pacotes “blocados” de venda, eram uma prática comercial
internacional comum aos estúdios americanos, que tornava difícil até para estúdios estrangeiros
exibirem os seus conteúdos nos seus próprios países, consistia em vender para os donos de
teatros e redes exibidoras, toda a sua produção anual como um único pacote, mesmo que os
compradores tivessem interesse em apenas algumas produções do seu catálogo, isso acarretava
uma inundação de filmes e curtas americanos ocupando todos os espaços de exibição
disponível, sem reserva de mercado para produção nacional, não era de interesse dos exibidores
comprar material local, tendo em vista que já dispunham de material americano em abundância.
Os grandes estúdios americanos já haviam compreendido o valor econômico da produção e
exportação destes novos bens de entretenimento. Para os estúdios de animação que não
conseguiam contratos com estes grandes produtores, restava buscar contratos menores com
distribuidores locais que vendiam para circuitos menores de exibição. Essa prática comercial
fazia parte do que foi chamado de “sistema de estúdio”, um conjunto de processos e
padronizações adotados para maximizar os lucros e garantir o sucesso comercial dos filmes.
Sobre a adoção de métodos mais convencionais e padrões de produção na indústria da animação
é importante pontuar que o próprio Lipovetsky destaca que, “A produção cultural no
capitalismo artista nunca foi, de fato, análoga à dos produtos manufaturados. E no tempo do
capitalismo artista hipermoderno é a produção material que se organiza cada vez mais como a
produção cultural de que o cinema foi a forma prototípica.”
A escala de produção industrial e a comercialização da animação é criticada pelo
próprio Winsor McCay quando em um 1927, em um evento oferecido pela importância da sua
obra, ele fala para colegas animadores o seguinte: “Animação deveria ser uma arte. Foi assim
que eu a concebi. Mas da forma que eu vejo, o que vocês colegas fizeram, foi transformá-la
num comércio. Não uma arte, mas um comércio. Azar!” Nem mesmo McCay escapou da sanha
capitalista quando, em uma época anterior a discussão de direitos autorais e propriedades
intelectuais, o jornal onde ele trabalhava, requereu os direitos exclusivos sobre o seu filme
animado “Gertie the Dinossaur”.
Voltemos as séries animadas como um todo, um ponto chave do processo de
capitalização da animação ainda viria através da sua segunda fase de massificação, ou a que
historiadores da animação chamam de o fim da animação clássica (BECK e MALTIN, 1987).
Entre os anos 50 e 60, com um mercado cinematográfico já bastante saturado de curtas e séries
animadas de estúdios famosos como Hanna Barbera, Walt Disney e Warner Bros e a difusão da
televisão especialmente nos lares americanos, houve uma migração sem volta das séries
animadas para a televisão, restando ao cinema o modelo de curtas e longas animados que
persiste até hoje. Ainda neste período nasceu o festival de animação de Annecy, atualmente um
dos mais importantes festivais de animação do mundo, nele havia espaço para a discussão e
exibição de filmes experimentais e de caráter mais romântico da arte da animação, embora com
o passar dos anos, o festival tenha aberto uma exibição e mercado paralelo destinados a
comercialização de conteúdo animado.
Ao recorrerem para a produção de séries animadas para a televisão, produtores tiveram
de, eventualmente, renunciar a recursos técnicos que antes adotavam para a produção voltada
ao cinema, um dos recursos ficou conhecido como animação limitada, um processo em que se
reduzia o número de quadros por segundo necessários para uma ação, dando-lhe o aspecto mais
travado. Isso facilitava e agilizava a produção para TV que necessitava cada vez mais episódios.
No entanto é interessante perceber que a qualidade estética não necessariamente caiu em
comparação com as peças exibidas no cinema, novos estúdios e artistas que buscaram romper
com o padrão estético difundido pela Disney como a UPA (United Productions of America),
por exemplo, trouxeram novas propostas visuais bastante ricas no sentido visual e que ao
mesmo tempo conseguiam trabalhar de forma mais equilibrada com esse novo mercado,
conciliando estilos visuais mais sintetizadas com os processos de produção mais ágeis.
Historiadores como Bendazzi no entanto afirmam que pelo menos da perspectiva da UPA, o
uso da animação limitada foi uma escolha de linguagem e não de recursos, tendo visto que a
maioria das suas obras ficava acima do orçamento.
Das feiras e teatros de variedades (Vaudeville), para os cinemas, para os sistemas de
difusão de tvs, aberta, fechada e eventualmente para canais exclusivamente dedicados a
animação, o mercado de animação ainda veria um novo e promissor mercado nascer com o
surgimento das plataformas de streaming digital. Sobre os efeitos da digitalização podemos
citar o Mapeamento da Indústria Criativa de 2022 da FIRJAN:

“O rápido avanço da digitalização acentua essas fragilidades e desafios. Os


efeitos da digitalização modificaram toda a cadeia de valor criativa. Ao mesmo
tempo em que cria oportunidades para negócios de conteúdo e serviços – por
exemplo, dando origem a setores como jogos digitais e realidade aumentada,
e expandindo os mecanismos de distribuição e comercialização – resulta,
também, em grandes desafios para modelos de negócios, proteção de
propriedade intelectual, regulação de mercados, formação de talento e
infraestrutura. Atualmente plataformas de distribuição controlam o acesso a
mercados, estabelecem padrões e dominam as informações sobre os
consumidores. Em substituição aos antigos intermediários – estúdios de
cinema, gravadoras, editoras, galerias – as plataformas intermediam o
acesso de cineastas, autores e artistas ao mercado, comprimindo ainda mais
as suas receitas.”

Todas estas “janelas” de expansão do mercado de animação coincidem com as


chamadas “três fases do capitalismo artista” de Lipovetsky, sendo a primeira fase a difusão do
cinema e da animação mudos e em preto e branco, como parte dos teatros de variedades e
posteriormente ganhando as telas de cinemas, nesta primeira fase já começam a se estruturar e
ganhar capital financeiro e poder econômico, especialmente depois da primeira guerra mundial,
os primeiros estúdios americanos. Perto de 1920 nos estados unidos a animação já é um
mercado de trabalho consolidado, com os estúdios adotando processos de produção e
gerenciamento mais padronizados. A segunda fase do capitalismo artista engloba justamente os
anos entre 1950 e 1980, época em que a animação saltou do cinema paras os lares, através da
televisão. Apesar de Lipovetsky afirmar que a segunda fase é marcada pelo estreitamento da
dimensão estética pela organização fordiana das empresas, podemos afirmar que pelo menos
com a animação, isso não se confirma, essa época é marcada pelo surgimento de diversos
artistas que imprimiam o seu estilo nos seus personagens e histórias, como Chuck Jones, Tex
Avery e Hanna e Barbera por exemplo, apesar de que a grande maioria trabalhava dentro dos
sistemas dos grandes estúdios, que ao perceberem o potencial da animação e muito devido a
consolidação e sucesso comercial da Disney, abriram subdivisões focadas em animação. A
terceira fase do capitalismo artista é relativa aos últimos trinta a quarenta anos, quando vemos
a animação, e os seus personagens adotarem características transmídia e transestéticos. Por
exemplo, Hello Kitty nasce no Japão em 1974 como um acessório de moda, rapidamente ganha
uma série animada a fim de expandir o seu universo e as suas possibilidades de comercialização,
o sucesso dessa estratégia vemos até hoje, quando ela assume um papel dentro da cultura
popular japonesa, transcendendo a animação e o consumo.
A partir da entrada dos novos canais de streaming, houve uma nova injeção de
recursos e muitos canais seduziram os artistas da animação com promessas de liberdade
criativa, normalmente em troca de cessão de direitos de propriedades intelectuais. Quanto mais
criativo eram os conteúdos animados produzidos, maiores investimentos eles atraíam, o que por
sua vez aumentava a pressão por novos conteúdos, que possivelmente precisariam de
investimentos maiores buscando retornos financeiros ainda maiores. Da perspectiva da
animação, são especialmente os canais de streaming os responsáveis pelo “hiperespetáculo” de
Lipovetsky, na medida em que agora há uma superexposição de conteúdos animados em
diversas plataformas, mídias e formatos onde eventualmente, a estética é apenas mais uma
ferramenta de venda e a concorrência agora são com as funções básicas humanas, os canais de
streaming estão competindo pelas “horas de sono” dos usuários. Ao mesmo tempo em que um
conteúdo animado esteticamente mais elaborado que outro pode fracassar se não for atribuído
a ele, as devidas campanhas de divulgação e marketing, torna-se necessário investir em todas
as engrenagens do capitalismo artista, o conteúdo e a arte em si só não é mais o determinante
de sucesso. Na realidade hoje o custo da divulgação um filme blockbuster pode chegar a custar
até metade do seu custo total de produção.

“O capitalismo artista não é designado como tal em razão da qualidade


estética das suas realizações, mas dos processos e das estratégias que
emprega de maneira estrutural visando à conquista dos mercados. Não se
trata do apogeu da beleza no mundo da vida, mas da reorganização deste
sob o reinado da artealização mercantil e da fábrica industrial das emoções
sensíveis.” (LIPOVETSKY, 2015)

Não há mais espaço neste mercado para a visão romântica do animador, artista que
cria as suas obras de forma artesanal, mantendo todos os direitos e imposições criativas das
suas obras. Se ainda há espaço para este tipo de criação, ela limita-se a raros casos no circuito
comercial, e ao circuito de animações autorais em festivais que ainda mantém e valorizam este
apelo artístico da animação, como o Festival de Annecy por exemplo.
Desde os meados de 1920, quando a profissão de animador e todas as profissões
decorrentes desta indústria já estavam bem estabelecidas nos Estados Unidos, os animadores já
sofriam com jornadas de trabalho exaustivas, culminando em greves entre 1935 e 1940, a
situação não melhorou muito até hoje. Alguns estúdios não aceitam a criação de sindicatos dos
seus trabalhadores, outros estúdios propõem, na forma de um “acordo de cavalheiros” oculto
entre os seus dirigentes, uma padronização de salários e um pacto de não cooptação de artistas,
buscando não inflar os custos desta mão de obra especializada. O artista integrante deste
complexo econômico-estético transformou-se em uma comodity, hoje em dia vemos surgir
mercados de mão de obra de animação barata e relativamente qualificada em países como Índia
e China, gerando uma espécie de internacionalização do “trabalho bruto” da animação,
enquanto aquele trabalho tido como mais criativo e intelectual é mantido no núcleo de criação
dos estúdios.
Se é verdade que animação não tomou os rumos desejados por McCay quando ele
começou os seus experimentos, com a extrema capitalização da sua arte, também é verdade que
ele certamente nunca poderia imaginar o status de celebridade e símbolo cultural que um
personagem animado, cuja personalidade ele mostrou possível transpor para a tela através da
sua Gertie, atingiria impulsionado justamente por esse capitalismo artista dos mundos
transestéticos descritos por Lipovetsky.

“A modernidade venceu o desafio da quantidade, a


hipermodernidade deve enfrentar o da qualidade na relação com as coisas,
com a cultura, com o tempo vivido. A tarefa é imensa. Mas não impossível.”
Lipovetsky, Gilles - A estetização do mundo.

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