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2.4. Slapstick Americano

O cinema de comédia europeu procurava o herdeiro de Max Linder, que segundo o

crítico francês André Bazin só surgiu com Jacques Tati (1907-82). Entretanto, os EUA

desenvolviam e apuravam a arte da comédia cinematográfica. Durante a década de

1910, a maior parte dos filmes cómicos baseados na acção física (o chamado slapstick)

eram curtas-metragens mostradas antes das longas-metragens — ainda que muitas

das estrelas cómicas por vezes atraíssem mais espectadores do que o filme que

supostamente eram o elemento principal da sessão. Durante a década de 1920, longas-

metragens de comédia tornaram-se por isso mais comuns. Estrelas como Buster

Keaton, Charles Chaplin, Laurel e Hardy, e Harold Lloyd, concentraram-se em criar

narrativas para enquadrar as suas elaboradas piadas físicas. Com a sua mestria do

tempo e da coordenação de cada gag, estes comediantes desenvolveram um dos géneros

mais proeminentes e vitais do cinema americano.

O Perigo Fintado em Lloyd

Harold Lloyd foi uma maiores figuras do slapstick. Durante a década de 1910, ele criou
uma personagem com óculos, um pouco tímida. Os seus filmes mais famosos são

comédias emocionantes nas quais o protagonista é apanhado em situações de perigo.

Na longa-metragem Safety Last! (O Homem Mosca, 1923), ele deu-nos algumas das

imagens mais memoráveis da sua carreira — em particular, quando fica pendurado no

relógio da fachada do edifício. Lloyd faz o papel de um rapaz ambicioso que trabalha

numa loja e que trepa um arranha-céus de modo a criar uma acrobacia para fins
publicitários. Never Weaken (Fraquejar, Nunca!, 1921), realizado por Fred C. Newmeyer, foi

a última curta-metragem de Lloyd e uma das suas melhores. O filme é uma das
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experiências que antecederam Safety Last!, permitindo aperfeiçoar o uso de técnicas

que permitiriam filmar actores em cenas de risco — ainda não eram usadas projecções

de fundo que complementassem a rodagem num estúdio, em segurança, embora

fossem usadas sobreposições; era tudo feito no local, montando apenas algumas

plataformas com colchões para apanhar o actor se ele caísse. A personagem principal

do filme trabalha perto da sua namorada. Ele pensa que vão casar, mas ouve a rapariga

dizer a alguém que vai casar com ele. Então decide suicidar-se. A arte de Lloyd

distingue-se pela meticulosa composição da acção, nomeadamente no modo como o

actor interage com os elementos do cenário. É isso mesmo que acontece quando Lloyd é

levado por uma viga de ferro para o exterior do edifício, de olhos fechados. Quando os

abre, pensa que está no céu. Depois, apercebe-se que está de facto equilibrado em cima

de uma viga.

A Cumplicidade Infantil de Laurel e Hardy

Embora actores como Harold Lloyd, Charles Chaplin, e Buster Keaton, acabassem por

entrar em longas-metragens, as curtas cómicas permaneceram uma parte popular dos

programas das salas de cinema. Um dos mais importantes produtores de curtas foi Hal

Roach, que descobriu Lloyd e Mark Sennett. Sob a sua direcção, emergiu uma nova
geração de estrelas cómicas que começou a trabalhar no início da década de 1920. Os

mais famosos foram Laurel e Hardy, Bucha e Estica (com mais rigor, Estica e Bucha, já

que Laurel é o magro e Hardy é o gordo). Stan Laurel era inglês e Oliver Hardy era

americano. Trabalharam em separado, antes de Roach os juntar numa das produções

do seu estúdio: Putting Pants on Philip (1927). Trata-se de uma comédia sobre um

americano (Hardy) a lidar com a confusão criada pelo seu primo escocês chamado
Philip (Laurel), que agressivamente tenta seduzir todas as mulheres com que se cruza.

Philip usa um kilt escocês em vez de calças — daí o título. Putting Pants on Philip
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permanece um dos filmes mais hilariantes da dupla. Tal como em relação a Lloyd, o

que é importante percebermos é o que define o estilo cómico destes dois cómicos.

Laurel e Hardy desenvolveram desde o início uma cumplicidade no modo de actuar

perante a câmara. Por vezes, recriam os gestos um do outro, outras vezes

complementam-se um ao outro, mas partilham cada momento, tornando clara a sua

afinidade. É do modo como um reage ao outro, um comunica com o outro, que nasce a

comédia. A piada pode começar apenas num deles, mas só ganha força através do

outro. A obra cómica com maior valor artístico da dupla na época do mudo é Big

Business (Grande Negócio, 1929), dirigido por James W. Horne e Leo McCarey, é a maior

prova disso. Neste filme, Laurel e Hardy fazem o papel de dois vendedores de árvores

de Natal que entram em conflito com um potencial comprador. No meio da zaragata e

da destruição que Bucha e Estica infligem aos pertences do cliente (e vice-versa), os

dois partilham e celebram o seu mau comportamento como se fossem crianças.

Ao contrário de Harold Lloyd, Laurel e Hardy transitaram com facilidade para o

cinema sonoro. A partir de 1931, os estúdios de Hal Roach, começaram a produzir

longas-metragens com os dois cómicos. A carreira de Lloyd ainda se prolongou no

início do sonoro. Mas, a pouco e pouco, o seu corpo mais velho e menos ágil já não

conseguia responder às exigências da personagem activa, sempre em situações de

risco, que tinha criado e retirou-se do mundo do cinema.

Os Retratos do Quotidiano de Chaplin

Charles Chaplin foi um dos maiores cómicos do cinema, mas foi também um grande

cineasta — admirado por cineastas tão diferentes como Sergei M. Eisenstein, Robert

Bresson, Manoel de Oliveira, e Jean-Marie Straub. Chaplin conseguia a proeza de ser


popular entre os espectadores e admirado pelos críticos de cinema mais exigentes.

Nasceu em Londres, Inglaterra, e teve uma infância muito pobre. Começou por se
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dedicar ao teatro de variedades (ou vaudeville). A sua popularidade fez com que

mantivesse contractos exclusivos com diversos estúdios, que dividem a primeira parte

da sua carreira em períodos, para os quais protagonizou e realizou curtas-metragens:

os Estúdios Keystone, depois a companhia de produção Essanay, e mais tarde a First

National. Em 1914, Chaplin entrou na primeira longa-metragem (filmes com mais de

40 minutos, segundo a regra americana) da sua carreira, Tillie’s Punctured Romance, mas

continuou a concentrar-se nas curtas. Foi precisamente nesse ano, em Kid Auto Races at

Venice (Charlot Fotogénico), que apareceu primeira vez num filme seu a personagem mais

famosa que ele criou: o vagabundo, o charlot (embora a palavra surja, de modo abusivo,

nalguns títulos portugueses de filmes onde a personagem não entra), quase sempre de

chapéu de coco e bengala, uma das figuras mais imitadas da história do cinema. Neste

primeiro filme, o vagabundo interfere com uma corrida de automóveis e põe-se à

frente da câmara. Foi uma oportunidade para Chaplin passear e mostrar a personagem

aos espectadores.

The New Janitor (Charlot Porteiro, 1914), já realizado por ele, mostra que Chaplin

interpretou outras personagens com igual força — aqui, um homem que cuida da

limpeza e manutenção de um edifício. O que o distingue é o uso da mímica e o modo

como trabalha o slapstick através de composições fisicamente complexas, utilizando

objectos quotidianos da forma mais inesperada. Há nele um perfeito controlo do tempo

de cada movimento, medindo momento a momento a inscrição desse movimento no


espaço. Apenas ele, estando também atrás da câmara, conseguiu registar isso na

perfeição em forma fílmica. Um bom exemplo disso é One A.M. (1916), também dirigido

por Chaplin, em que um abastado homem bêbado faz diversas tentativas para chegar

ao quarto na sua casa. Aqui não encontramos as acrobacias perigosas de Harold Lloyd

nem a perversidade cúmplice de Laurel e Hardy. Chaplin está sempre num quotidiano

reconhecido pelos espectadores. As suas narrativas são psicologicamente simples, mas


têm uma grande densidade humana.
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A 5 de Fevereiro de 1919, Chaplin embarcou numa das maiores aventuras do

cinema americano, um acto de amor e união tendo em vista a criação cinematográfica:

a fundação do estúdio United Artists, unindo-se a outros artistas, os actores Mary

Pickford e Douglas Fairbanks, e o cineasta D. W. Griffith. The Gold Rush (A Quimera do

Ouro, 1925) foi já produzido pela United Artists. É uma visão ao mesmo tempo terrível e

calorosa dos tempos difíceis da exploração de ouro em terras desabitadas e isoladas.

Charlot prepara um petisco a partir de um sapato, que divide com o seu companheiro

de cabana. Chaplin consegue mostrar as deploráveis condições de vida dos

exploradores através da humanidade das personagens e da sua capacidade para olhar a

realidade de uma forma inventiva e poética.

Um dos sucessos mais estrondosos da sua carreira foi The Kid (O Garoto de Charlot,

1921). O grande crítico e teórico do cinema húngaro, Béla Balázs, explica num ensaio

sobre Chaplin que ele traz o humor de Schildbürger (o simplório desajustado e

ignorante) para o mundo industrializado. Balázs escreve: “Essa é a profundidade da

arte de Chaplin, que se revela na melancolia tocante da pantomina como uma ingénua

humanidade afastada da civilização e deixada à sua própria sorte.” Em The Kid, Chaplin

interpreta mais uma vez o vagabundo, mas partilha a sorte e o ecrã com uma criança-

actor de grande expressividade: Jackie Coogan. Veja-se a mestria do realizador no uso

da profundidade de campo e na precisão do enquadramento. Note-se, de igual modo, a

grande expressividade dos corpos e rostos dos actores, a começar pelo próprio Chaplin.
O filme é igualmente um retrato da estratificação social, entre o mundo rico da mãe

que é forçada a abandonar o filho (por uma questão de moral da classe alta,

precisamente) e o mundo pobre onde Charlot acaba por criar a criança. O primeiro

mundo está cheio, mas há certas coisas que não são aceitáveis. O segundo, tem muitas

faltas que diminuem a qualidade da vida dos seus habitantes, e a introdução de certos

objectos (como os dois brinquedos oferecidos pela mãe) pode provocar inveja e
confusão. O adulto e a criança, pequenos criminosos que partem vidros para os
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arranjarem a troco de dinheiro, encontram formas criativas de viver com alguma

dignidade no exíguo espaço onde moram, apoiando-se no amor que os une.

A Impassibilidade Meditativa de Keaton

Buster Keaton nasceu no seio de uma família que trabalhava no teatro de variedades. O

pai, aliás, entraria mais tarde nalguns dos seus filmes. Ainda criança, juntou-se ao

espectáculo dos pais, Joe e Myra Keaton. No final dos anos 1910, Buster começou a

trabalhar no cinema como actor, participando nas curtas-metragens de Fatty Arbuckle,

que foi mentor de Charles Chaplin. Quando Arbuckle passou a fazer longas-metragens,

no início da década de 1920, Keaton ficou encarregado da sua unidade de produção de

curtas-metragens, aparecendo numa série de comédias populares. Entre elas está Cops

(1922), que Keaton dirigiu com Edward F. Cline. O comediante interpreta um homem

numa carroça de mudanças que, por acidente, se junta a uma parada da polícia. Num

momento, há um homem que atira uma bomba para a parada que aterra na carroça. Ele

reage utilizando a bomba para acender, calmamente, um cigarro. Esta calma de Keaton

é a marca mais importante da sua comédia. A sua figura cómica é geralmente

impassível, imperturbável, com uma ponta de melancolia, quase não mudando de

expressão facial, aconteça o que acontecer. Daí os nomes dados pelos críticos: great stone
face (grande cara de pedra) ou the man who never laughs (o homem que nunca ri). Um momento

como este, em que ele lida com grande serenidade com uma bomba (que coloca toda a

polícia contra ele quando rebenta), mostra um gosto por um humor bizarro, quase

surrealista.

Keaton fez depois longas-metragens, mas o seu humor peculiar e as suas

narrativas complexas fizeram com que fosse menos popular do que Harold Lloyd e
Chaplin. Um dos seus grandes sucessos foi Our Hospitality (As Leis da Hospitalidade, 1923),

realizado por ele e John G. Blystone, sobre um conflito entre duas famílias, os McKays
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e os Canfields, que se arrasta há gerações. Keaton é um McKay que, sem nada saber do

conflito, se apaixona por uma Canfield. O filme contém uma das mais famosas

sequências de salvamento da história do cinema — uma sequência acrobática, de

grande eloquência física. A expressividade cómica de Keaton não passa pelo rosto,

como em Chaplin, mas pela inteligência do humor e pela capacidade atlética.

The General (Pamplinas Maquinista, 1926), co-realizado com Clyde Bruckman, foi um

dos filmes de Keaton mais ambiciosos e um dos filmes mais amados pelo autor.

Passado durante a guerra civil americana, o filme narra um salvamento da noiva do

engenheiro ferroviário Johnnie Gray (Keaton) feita prisioneira. A acção é intensa, mas é

equilibrada com detalhes muito precisos da época retratada. Os gags são muito

elaborados em termos de encenação, muitos deles ocorrendo num único plano — como

quando o canhão apontado para a locomotiva de Johnnie atinge os raptores por causa

de uma curva nos carris. Apesar de todas as suas qualidades, hoje reconhecidas, o filme

teve poucos espectadores e foi menosprezado pela crítica. O facto de ter sido um

projecto caro que custou cerca de 750 mil dólares e os fracos resultados fizeram com

que Keaton perdesse alguma independência como artista. Dois anos depois, Keaton

assinou um contrato com diversas restrições com a MGM. Ainda participou num

grande filme, The Cameraman (1928), mas a pouco e pouco deixaram de lhe permitir a

liberdade de improvisar durante rodagem e a sua carreira declinou, sobretudo a partir

da introdução do som, que se generalizou gradualmente a partir dessa altura. A partir


da década de 1930, Keaton surgiu apenas em papéis secundários, sem que a sua carreira

conseguisse renascer. Havia de ser recuperado para um filme único realizado por Alan

Schneider e escrito por Samuel Beckett, Film (1965).

O cineasta palestiniano Elia Suleiman é um herdeiro confesso de Keaton. Yadon

ilaheyya (Intervenção Divina, 2002) está recheado de gags em que o realizador aposta tudo

na preparação cuidada da piada, na geração de antecipação, e depois capta o


acontecimento adoptando uma perspectiva desinteressada, impávida. Numa cena, um

morador que está em conflito permanente com outro vizinho, junta uma série de
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garrafas de cerveja na cobertura da sua casa. Não sabemos porquê. Mais tarde, a polícia

aparece para o interrogar e ele ataca-os com as garrafas. Do outro lado da rua, os

vizinhos testemunham a cena, sem reagirem.

Keaton gostava de filmes que reflectiam sobre o meio do cinema — e o referido

Film é mais um deles. O mais importante desses filmes auto-reflexivos é Sherlock Jr.

(Sherlock Holmes Jr., 1924), realizado apenas por ele. O filme contém uma elaborada

sequência de um filme-dentro-do-filme. O projeccionista interpretado por Keaton,

aspirante a detective, sonha que entra dentro do filme que está a projectar, depois das

personagens do filme se terem transformado na rapariga que ele ama, no seu rival, no

cúmplice do rival, e no pai da rapariga. Nesta reflexão o cinema aparece, por um lado,

como correspondendo aos nossos desejos mas, por outro lado, como algo com leis

próprias — como se vê quando o plano muda e ele se vê de repente numa nova situação,

à qual tem de se adaptar. Seguindo a mesma linha de pensamento, é fundamental

chamar a atenção para o travelling para frente que sela o projeccionista no filme-dentro-

do-filme. A câmara avança até o enquadramento coincidir com os limites do ecrã de

projecção. Os planos de Sherlock Jr. que se seguem são já do filme projectado. Deixou de

haver diferença entre os dois filmes. Para além disso, o filme explora insistentemente o

motivo visual das imagens em espelho e dos enquadramentos (paredes, portas, janelas)

dentro do campo do enquadramento, numa meditação sobre o que o cinema é e como

se compõe. No fim, o detective amador é inspirado pelas imagens do cinema e beija


finalmente a sua amada. Cinema e vida, arte e vida, contaminam-se, influenciam-se

sem que cada um perca a sua autonomia — como se vê pelo ar surpreendido da

personagem nos momentos finais do filme, quando olha para o ecrã e descobre os

bebés que irão seguir-se ao beijo...

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