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Escola Superior de Tecnologia de Abrantes

Da Trilogia dos Dólares à Pós-Trilogia dos Dólares

Delano Valentim

Realização
2020 - 2021
Índice

1. Da Trilogia dos Dólares à Pós-Trilogia dos Dólares

1.1. Bob Robertson…………………………………………………......03

2. O Caubói, o Revolucionário, e o Mafioso…

2.1 Solitários e Misantropos …………………………………………...…05

2.2 Amizades e Vendetas…………………………………………....……08

2.3 Sonhos e Fortunas………………………………………….…………11

4. C`era una volt il West

4.1 Um Épico da Vida de Pessoas Comuns………………………………13

5. Um Maluco Especial………………………………………….………26

6. Filmografia…………………………………………………….……...26

7. Bibliografia………………………………………………….…...……27

8. Referências…………………………………………………………....27

9. Imagens………………………………………………………………..27

Índice de Imagens

Imagem 1…………………………………………..…………….……...14

Imagem 2……………………………………………………………..…16

Imagem 3…………………………………………….……………….…17

Imagem 4…………………………………………………………..……18

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Imagem 5…………………………………………………………..…...18

Imagem 6……………………………………………………………….18

Imagem 7……………………………………………………………….19

Imagem 8………………………………………………………….……19

Imagem 9……………………………………………………….………20

Imagem 10……………………………………………………….……..23

Imagem 11……………………………………..………………….……23

Imagem 12………………………….……….………………………….24

Imagem 13………………………………….…………………….….…25

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1. Da Trilogia dos Dólares à Pós-Trilogia dos Dólares

Não se vende o sonho de uma vida inteira.

Harmonica

1.1 Bob Robertson*

Sergio Leone (1929-1989) era filho de Roberto Roberti (1879-1959),


um ator e cineasta italiano com mais de noventa filmes no currículo. A sua
mãe, Bice Valerian (1886-1969), trabalhou com o seu pai no primeiro
western italiano, La Vampira Indiana (1913), onde interpretou a
protagonista.

Enquanto crescia no bairro romano do Travestere, ainda garoto Leone


junto do pai frequentara os estúdios de cinema e as reuniões políticas contra
o fascismo. Na escola conheceu Ennio Morricone (1928-2020), futuro
companheiro de empreitadas cinematográficas e responsável por suas trilhas
sonoras.

Leone andava com pequenos candidatos a gangsteres que mais tarde


serviriam de inspiração para o seu primeiro roteiro, Viale Glorioso (1947),
deixado na gaveta após a visualização de I vitelloni (1953) de Federico
Fellini (1920-1993). A memória desta época estaria presente em seu grande
projeto derradeiro.

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Os pais desejavam evitar que o filho seguisse carreira nos estúdios,
então ele foi para a universidade de direito. Leone deu os primeiros passos
na direção como assistente voluntário; e curiosamente aparece no filme Ladri
di bicicletti (1948) de Vittorio de Sicca (1901-1974), onde numa cena figura
como um dos padres que se protegem da chuva.

Nos estúdios da Cinecittà em Roma, Sergio Leone se destacou como


assistente de direção. Quando algum cineasta americano ia filmar na Itália
ele era indicado para trabalhar com eles. Na época dos épicos peplum. Leone
codirigiu fitas como Quo-Vadis (1951) de Marvin LeRoy (1900-1987).

A pedido do produtor Paolo Moffa (1915-2004), Sergio Leone assinou


a sua primeira longa peplum, Il Colosso di Rodi (1961). Após a experiência
iniciou os westerns pelos quais se tornaria conhecido. A sua estreia no gênero
se deu com Per un pugno di dollari (1964). Leone se inspirou no filme de
Akira Kurosawa (1910-1998), Yiojimbo (1961), este por sua vez inspirado
no livro do americano Dashiell Hammet (1894-1961) Red Harvest (1929).

Per un pugno di dollari apresentou o ator Clint Eastwood ao mundo,


um jovem monossilábico e inexpressivo que atuava em uma série western de
sucesso na tevê americana, Rawhide (1959-1965).

Os produtores de Per un pugno di dollari disseram a Leone não ter


como pagá-lo por causa dos custos com o processo de plágio movido pelo
cineasta japonês Akira Kurosawa. Para provar que o filme não havia sido
bem sucedido por acaso, Leone filmou Per qualche dollaro in più (1965). E
na sequência Il buono, il brutto, il cativo (1966).

Em seguida Sergio Leone gerou C`era una volt il West (1968), estória
passada no final do século dezenove sobre o fim do Velho Oeste. Logo
produziria um roteiro seu e de Sergio Donati para o qual escolheria o

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realizador. Mas os atores Rod Steiger (1925-2002) e James Coburn (1928-
2002) exigiram que fosse ele a dirigi-los, caso não romperiam o contrato.

Giu la testa (1971) é a estória da amizade de um revolucionário


irlandês com um bandido mexicano. Giu la testa viria a ser boicotado por
representar uma visão cética em relação aos ideais revolucionários numa
época em que estes se encontravam na moda (2017, apud, Jean Baptiste-
Thoret, 2018, pg.78).

O maior sonho de Leone era um filme inspirado na biografia The


Hoods (1953) de Harry Grey. Apesar de ser italiano não contaria uma estória
sobre a máfia italiana dos Estados Unidos, e sim a judia. Chegou a recusar o
convite para dirigir The Goodfather (1972), deixado para Francis Ford
Coppola, no intuito de não confundir o projeto de gangsters que sonhava
realizar. Ele seria seu último trabalho, Once Upon a Time in America (1984).

*Pseudônimo com o qual assinou o seu primeiro western Per un pugno


di dollari, por orientação dos produtores que desejavam um nome que soasse
anglo-saxão. Pode ser traduzido como o filho de Roberto, uma homenagem
ao pai. (2017, apud, Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg.34).

2. O Caubói, o Revolucionário, e o Mafioso…

A revolução é a confusão.

John Mallory

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2.1 Solitários e Misantropos

Aos vinte anos de idade Sergio Leone descobriu Voyage au bout de la


nuit (1932) de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). O romance não só se
tornaria “o seu livro de cabeceira”, como ele sonharia adaptá-lo (2017, apud,
Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg.45-90). É possível encontrar em toda a obra
de Leone personagens com traços de Bardamu: o alter ego do escritor
francês; pessimista, niilista, e descrente na humanidade.

No cinema de Sergio Leone estão os outsiders que vivem à margem,


inadaptados, e cavaleiros solitários como o “homem sem nome” de Per un
pugno di dollari ou Harmonica (Charles Bronson, 1921-2003) de C`era una
volt il West. Quando muito carregam uma alcunha. O cavaleiro andante ou o
anti-herói como as personagens do romantismo do século dezenove que
serviriam de metáfora para a vida de muitos artistas em séculos de solitude.

São personas presas à nostalgia. Não conseguem se livrar “do que


poderia ter sido”. Em Once Upon a Time in America, Noodles (Robert de
Niro), age como um adulto-adolescente incapaz de abandonar o seu tempo
de jovem. O seu primeiro amor, Deborah (Jennifer Connelly/Elizabeth
Mcgovern), ainda é o seu “grande amor”.

Quando Noodles retorna à Nova York, o seu antigo amigo, Fat Moe
(Larry Rapp), como uma sombra dos tempos idos, o interpela sobre o que
fez nos últimos trinta anos, Noodles responde: “Deitei-me cedo.” Citando
Marcel Proust de À la recherche du temps perdu mergulhado em suas
memórias (2017, apud, Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg.82).

Deborah pede a Noodles para não ir à recepção, pois irá estragar as


lembranças que são tudo o que resta a eles. Noodles não consegue. Vive a
fuçar o antigo em busca de novidades. Não consegue fluir o presente.

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O passado insiste em atormentá-las. Se recusam a superá-lo. E o
nostálgico vem muitas vezes através da vingança, como é o caso do Col.
Douglas Mortimer (Lee Van Cleef, 1925-1989), em Per qualche dollaro in
più. Mortimer existe para vingar a morte da irmã. Não consegue “abandonar
o quarto” onde foi violada e morta. E não aceita a inexistência dela.

Harmonica vive para executar o assassino do irmão, e permanece com


a harmônica que Frank, personagem de Henry Fonda (1905-1982), pôs em
sua boca naquele dia. O instrumento tem sido um souvenir do dia em que o
seu irmão foi executado. Enquanto o irmão não for vingado, ele continuará
vivo no tempo em sua mente onde nunca deixou de existir.

Harmonica diz nomes de cadáveres para Frank, mas o algoz do seu


irmão mal se lembra das suas vítimas e diz que morreram há muito tempo.

John Mallory, personagem de James Coburn em Giú la testa,


Guerrilheiro do IRA, deixou a Irlanda atrás da revolução mexicana, na
tentativa de implantar os seus sonhos ali, na terra do sanguinário ditador
Huerta. Mallory não admite a impossibilidade da utopia. Ir para o México
pode ser uma esperança ou uma fuga.

Dr. Villega sob tortura se torna delator dos companheiros de luta. No


passado John Mallory foi traído pelo amigo com o qual dividia uma mulher.
Esta mulher segundo Sérgio Leone representava a revolução que todos
queriam abraçar (2017, apud, Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg.78, Noël
Simsolo, 1999). Diferente do primeiro alcaguete de quem se vingou com o
assassinato, dessa vez Mallory recusa a vingança.

Após ouvir da boca de Juan (Rod Steiger) que na revolução os ricos


que leem livros exploram os pobres que não leem livros, e que decidem
quando é a hora da mudança, Mallory joga o texto do russo anarquista
Mikhail Bakunin (1814-1876) na lama. Numa cena seguinte decide tomar

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atitude diferente de Villega e fica para destruir a ponte. Ele se mantém ao
lado do povo representado por Juan.

Mallory nega a vida quando Juan oferece ajuda para que sobreviva.
Ele prefere explodir a si mesmo. Precisa retornar eternamente àqueles dias e
se manter junto da mulher e do amigo que parecem suturados aos melífluos
acordes repetitivos de Ennio Morricone, como um refrão de música pop
insistente como a lembrança. O estribilho melífluo do flashback guarda o
melhor da vida ao repetir o nome das duas protagonistas, John, Juan.

Após o suicídio de Mallory, Juan que havia perdido a família numa


chacina pergunta: “Então, e eu?” Como se nós seres humanos só pudéssemos
nos legitimar na presença do outro. Se não há espectador, não há filme.

2.2 Amizades e Vendetas

Na cinematografia de Sergio Leone a amizade surge fruto de uma


situação. Estas amizades se apresentam na necessidade imperativa do outro.
Os laços fortes brotam da dependência e da consequente fidelidade nos
momentos difíceis. Nada é gratuito ou proposital. O genuíno é obra do acaso.

Com a exceção de Noodles de Once Upon a Time In America, e seus


amigos que iniciaram juntos as suas vidas, e não conseguiram se livrar das
relações do passado, assim como não podem vislumbrar os tempos
vindouros, as outras personagens de Leone se unem por objetivos comuns.

É assim com Joe, o “homem sem nome” (Clint Eastwood), e o


estalajadeiro Silvanito (José Calvo, 1916-1980). Joe está em busca de
dinheiro enquanto joga um bando contra o outro. Silvanito deseja se livrar

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do jugo de ambos os bandos. Principalmente o de Ramón Rojo (Gian Maria
Volontè/1933-1994) que assombra a pequena San Miguel.

Em Per qualche dollaro in più, o vínculo surgido entre Monco (Clint


Eastwood) e o Col. Douglas Mortimer também é oportuno. Monco está no
“rastro” do dinheiro oferecido como recompensa pela captura de El Indio
(Gian Maria Volontè) e sua gangue. Mortimer deseja se vingar de El Indio
pela morte da sua irmã.

No fim Mortimer deixa claro o quanto é fiel não só aos seus objetivos
como ao novo amigo. No momento fatídico faz uma piada dizendo que
Monco ficará rico, e se afasta tranquilamente enquanto vê o outro recolher
os corpos do bando de El Indio. Mortimer poderia simplesmente tentar matá-
lo para ficar com a recompensa ou negociar parte do dinheiro.

O caso de Biondo (Clint Eastwood) e Tuco (Eli Wallach, 1915-2014)


é emblemático. Pois um não confia no outro. Durante Il buono, il brutto, il
cativo os dois se digladiam ao se verem engendrados numa teia de traições.
Eles traem e são traídos. Deixam evidente que não irão pestanejar se
puderem “entregar a cabeça” alheia.

A inimizade dos dois começa quando Biondo deixa Tuco definhando


no deserto. Mas Tuco sobrevive ao vê-lo se afastar. Assim que pode “dá o
troco” fazendo o mesmo com o amigo/inimigo.

Ao ser ameaçado de morte por Sentenza (Lee Van Cleef), Tuco


entrega Biondo ao brutto. Ao longo da estória sabendo que Biondo está em
posse do segredo que leva ao tesouro escondido no cemitério de Sad Hill,
Tuco usa toda a sua engenhosidade para se manter unido a Biondo. A
amizade dos dois se fortalece para que possam combater os inimigos que tem
em comum e que cruzam os seus caminhos.

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No fim Biondo mesmo estando em vantagem deixa o outro vivo; a pé,
e no deserto como anteriormente. Mas com uma parte do tesouro como paga
por sua ajuda. O castigo é para que não o subestime. Tuco cumpriu o seu
acordo no que lhe cabia.

A moral das personagens de Leone as impede que sejam injustas


diante de outros marginais, que assim como elas seguem o mesmo código de
conduta específico.

Noodles se recusa a chamar Max por seu nome em Once Upon a Time
In America. O trata por senador Bailey, pois é esta a falsa identidade que
assumiu (2017, apud, Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg. 86).

Max dá o revólver a ele para que se vingue. Noodles não dá esta


alternativa ao amigo. O outro não terá a redenção. Max o traiu. Ficou com o
dinheiro que juntaram e com o “amor da sua vida”.

Da mesma forma que Mallory não delatou Villega aos outros para que
sofresse com a culpa. O que acaba fazendo com que Villega cometa o
suicídio à sua frente. No mundo onde a amizade se dá por “contratos sólidos”
e as relações são por conveniência, e não por afinidade, não existe perdão.

Harmonica e Cheyenne (Jason Robards, 1922-2000) tem um inimigo


em comum. Frank tenta pôr a culpa em Cheyenne pelo assassinato de Brett
McBain (Frank Wolff). Harmonica quer se vingar de Frank por causa do
irmão. Jill McBain (Claudia Cardinale) por causa da morte do marido. Os
laços de amizade entre os três se torna tão forte que ao final do filme
Harmonica carrega Cheyenne morto para enterrá-lo.

Num lugar onde as mulheres são “presas fáceis”, e, é normal serem


abusadas, Jill MacBain acredita que Cheyenne irá violá-la. Ele não faz isso.
Frank sim, o bandido sem escrúpulos. Presente na figura de Henry Fonda,
que nos filmes de John Ford (1894-1973) representava o justiceiro

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americano, e que agora atira em crianças (2017, apud, Jean Baptiste-Thoret,
2018, pg. 68). Mais uma prova da desilusão na obra de Leone.

Cheyenne diz a Jill McBain que ela é uma meretriz como a sua mãe
que possuía forte personalidade. Leone cria laços inquebrantáveis entre os
seus personagens. É admirável que tanto Cheyenne quanto Harmonica não
tentem se aproveitar de uma “linda e pobre mulher indefesa”.

Próximo ao desfecho da estória, sabendo que irá ter de ficar sozinha


naquele ambiente hostil, Jill McBain diante de dois homens de caráter, diz a
Cheyenne que ele é bonito. Ele responde que é bonito, mas não é o homem
certo. E vendo a apreensão da outra, diz, “muito menos ele”, se referindo a
Harmonica, que parece ser a primeira escolha de Jill.

Cheyenne diz a Jill McBain, que se Harmonica sair vivo do duelo com
Frank ele irá embora. O mesmo Harmonica que Cheyenne disse carregar a
morte. Realmente Harmonica o faz. É possível ver a desilusão nos olhos de
Jill. Harmonica diz que talvez volte. Jill Mcbain reforça que será bom se isso
acontecer. Cheyenne segue Harmonica.

Nenhum dos dois estava interessado na beleza, no corpo, ou nas posses


herdadas de Jill McBain. Eles realmente tinham amizade por ela. Uma
mulher que mal conheciam, e não tinham nenhuma obrigação de defender.
Os laços mais fortes nos filmes de Leone nascem do acaso e do sofrimento
compartilhado.

2.3 Sonhos e Fortunas

Per un pugno di dollari

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O sonho é o que motiva o bom o mal e o vilão na obra de Leone. Joe
sonha enriquecer com o dinheiro que Rámon roubou e a recompensa paga
pelo outro bando da cidade.

Per qualche dollaro in più

El Indio é obcecado pelo banco de El Paso. Monco deseja a


recompensa pela cabeça de El Indio. Mortimer vive para se vingar do
assassino da sua irmã.

Il buono, il brutto, il cativo

Tuco, Biondo e Sentenza estão atrás do tesouro enterrado em Sad Hill.

C`era una volt il West

Sr. Morton (Gabriele Ferzetti/1925-2015) tem o sonho de interligar a


costa atlântica ao Oceano Pacífico. Brett McBain sonha construir a sua
estação. Jill McBain almeja uma vida equilibrada ao abandonar a
prostituição atrás do futuro marido. Harmonica se dedica a vingar a morte do
irmão.

Once Upon a Tim in the America

Max ficou com o dinheiro que juntou uma vida inteira com os seus
amigos, e com Deborah, “flor da obsessão” e dos sonhos de Noodles.

Giu la testa

Juan é obcecado pelo banco da Casa Verde. John Mallory sonha com
a revolução.

Todas as personagens de Sergio Leone são motivadas por um objetivo


ou ideal que norteia as suas vidas. Sejam eles morais, ou imorais.

Sergio Leone conseguiu realizar os seus sonhos. E o seu maior projeto,


Once Upon a Tim in the America, foi aquele que mais deu “dor de cabeça” a

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ele. Justamente o ápice do seu talento, e talvez aquele que o tenha levado à
morte, pois segundo pessoas próximas, os aborrecimentos decorrentes do
filme teriam agravado os seus problemas de saúde. Assim como as suas
personagens, Sergio Leone viveu para sonhar, em seu caso, com o cinema.

4. C`era una volt il West

Uma raça antiga.

Harmonica

4.1 Um Épico da Vida de Pessoas Comuns

Na entrada de C`era una volt il West o espectador acompanha os três


bandidos na velha estação onde encontram o bilheteiro e uma indígena. O
idoso tenta emitir algumas palavras, mas é desencorajado pelos homens. São
quase treze minutos de suspensão até que a pergunta de Harmonica seja
proferida. A tensão aumenta a cada segundo. Leone brinca com o tempo
ralentado mostrando completo domínio do seu ofício.

A disposição do trio de caubóis no espaço diante das três portas do


ambiente exíguo retoma o trielo de arena da trilogia dos dólares (2017, apud,
Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg. 50).

A fotografia equilibrada de Tonino Della Colli (1923-2005) busca


harmonizar o espaço e prevalece durante a longa. Remete à pintura realista
de Edward Hooper (1882-1967) de quem Leone era fã (Imagem 1). O
aspecto onírico da cidade de Flagstone rememora os quadros de Giorgio de

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Chirico (1988-1978) da fase metafísica. Outra grande influência de Leone
(2017, apud, Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg. 57). O sonial percorre a estória.

Imagem 1: O equilíbrio dos corpos no espaço como influência da pintura realista.

Há uma sinfonia de sons. As pás de um moinho. A madeira que range.


Um pássaro. Uma goteira no chapéu do caubói negro (Woody Strode/1914-
1994). Um galo. O estalar de dedos do segundo caubói (Al Mulock/1926-
1968) e o seu passar de mãos na água. O ganido do cão.

A batalha do terceiro deles (Jack Elam/1920-2003) com a mosca que


o azucrina, assim como o som do telégrafo provocam uma enorme irritação
neste último que arrebenta os seus fios como a negação do futuro pelo qual
temem ser invadidos. O progresso que transformará o Velho Oeste.

A melodia monótona destes sons cadenciados no mesmo compasso


soa como música aos ouvidos. Quando finalmente o caubói consegue
prender a mosca no cano do revólver ouve-se o sibilo do trem como uma
reverberação do zunido do inseto. Como se um tocasse a harmonia do outro
dentro da mesma partitura.

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O trem chega e ninguém desembarca. Mas ao virarem de costas os
caubóis ouvem as três notas do instrumento de Harmonica. Este tema será
vertido em leitmotiv da personagem. Depois de matar os três ficam apenas
os sons das hélices do moinho e do vento a soprar.

Em sua quinta Brett McBain (Frank Wolff) caça com o seu filho
Timmy McBain (Enzo Santaniello). De repente as cigarras param os seus
cantos. Brett McBain “fareja o ar e pressente o perigo”. Os sons retornam.
Quando enfim eles param novamente, Brett MacBain ouve o retinir de um
tiro e sua filha Maureen (Simonetta Santaniello) caí ao chão.

A sequência da chacina da família McBain é uma homenagem ao


western. Leone não só explora o trabalho do designer de som, coma equipe
do engenheiro Fausto Ancillai, como faz referências a outros cânones do
western. Sergio Donati, Bernardo Bertolucci (1941-2018) e Dario Argento
roteiristas de C`era una volt il West trabalharam bastante com estas alusões.

O silêncio do inseto como prenúncio da morte foi utilizado em The


Searchers (1956) de John Ford. A canção Danny Boy cantada por Maureen
McBain pertence ao filme Pursued (1947) de Raoul Walsh (1887-1980).
Muitas dessas referências serão vistas à medida que a estória avança (2017,
apud, Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg. 66).

Leone faz do pastiche uma das marcas do seu trabalho quando o


transforma em arte e recicla inclusive a si mesmo. A música de Ennio
Morricone parece soar como um auto sampler incidental e se reinventa e
reconstrói em várias versões. Músicas de C`era una volt il West parecem se
fundir às de Once Upon a Time in America.

Em Giu la testa o Banco da Mesa Verde de Juan rememora a obsessão


de El Indio pelo banco de El Paso. Assim, como a explosão da ponte por

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Mallory e Juan relembram à de Il buono, il brutto, il cativo (2017, apud, Jean
Baptiste-Thoret, 2018, pg. 72-73).

O menino Timmy percebe que a sua família acaba de ser assassinada


quando vê chegar o bando de Frank. A canção de Ennio Morricone ocupa os
altifalantes. É uma composição com sons de guitarras elétricas mais
relacionadas ao Sgt. Pepper`s Lonelys Hearts Club Band (1967) dos Beatles
do que as sonoridades dos antigos westerns.

O rosto de Jill McBain é focalizado na porta do trem. Sergio Leone


sabia filmar as mulheres (Imagem 2) e sublinhava as suas plasticidades como
é perceptível no rosto de Deborah (Once Upon a Time in the America). Jill
Mcbain sorri ao ver o mundo que à espera. O seu riso traz “o ar da esperança”
da prostituta que abandonou Nova Orleans por “amor” para viver isolada
com um homem do campo e sua família em busca de uma vida melhor.

Imagem 2: Leone explorava a plástica dos rostos femininos.

Nesta estação se encontra o nome do Sr. Morton, o barão da ferrovia.


No centro de Flagstone, na cena em que Frank é atocaiado por seus
comparsas, está o Theater Cosmopolitan. Nome sugestivo no universo

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cosmopolita de Sergio Leone; onde se misturam indígenas,
afrodescendentes, chineses, irlandeses e mexicanos. A América ressurge no
mundo onírico de Sergio Leone sonhado como na pintura de Chirico.

O lugar de dimensões oníricas está presente no vagão do Sr. Morton,


um vilão de histórias em quadrinhos com a sua tuberculose óssea (Imagem
4). Nas falésias dos navajos onde o Sr. Morton encontrará Frank (Imagem
5). No bar isolado da imensidão onde ocorre a primeira aparição de
Cheyenne (Imagem 6). No campo aberto ao lado do vagão de Morton. E se
espalha por todo o cenário (Imagem 7).

“Contar uma história fantástica num cenário realista confere ao filme


uma dimensão mítica, fantástica. Aconteceu…” (2017, apud, Jean Baptiste-
Thoret, 2018, pg.71, Noël Simsolo, 1999)

Imagem 3: Ainda é possível aludir ao mundo onírico de Fellini em Leone.

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Imagem 4: Talvez fosse assim a dimensão fantástica da realidade para Leone.

Imagem 5: O bar isolado do mundo numa paisagem de sonho.

Imagem 6: Os trilhos ao lado do vagão de Morton. O enigmático espaço aberto.

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Ao perceber que Brett McBain não vem, Jill entra na loja da estação.
Quando a câmera do lado de fora sobe num movimento feito com uma grua
e a cidade de Flagstone (Imagem 8) do worldmaking Sergio Leone (2011,
apud, Rodrigo Octávio, 115-272 pp) é revelada ao espectador junto da
música de Ennio Morricone, uma esfera se desvenda em desenvolvimento e
se apresenta, e representa todos os sentimentos esperançosos da personagem.

Imagem 7: A cidade de Flagstone em construção como a vida de Jill McBain.

Imagem 8: O plano subjetivo de dentro da carroça em meio à balbúrdia do centro


da cidade prima por ser de revelação.

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A partir deste momento C`era una volt il West ganha tons de epopeia.
É sintomático que Leone tenha tido o sonho de fazer uma nova versão de
Gone with the Wind (1939) (2017, apud, Jean Baptiste-Thoret, 2018, pg. 72).
Pois Jill Mcbain é uma contraparte de Scarlett O`Hara (Vivien Leigh, 1913-
1967). As duas se parecem em sua obstinação e a “sinfonia visual” de Leone
ecoa a estória de Scarllet O`Hara.

O cocheiro que leva Jill Mcbain tem a jocosidade mexeriqueira dos


subalternos de Gone with the Wind. Neste caminho a fotografia remete ao
sentimento épico. Assim como o ambiente natural (Imagem 9). A música
orquestral de Ennio Morricone para Jill reforça a ideia da inspiração de Gone
with the Wind, também no tema composto por Max Steiner (1888-1971).

Imagem 9: Leone filma em Monument Valley cenário grandioso de John Ford.

O carroceiro irá dizer a Jill que Brett Mcbain é um maluco para chamar
aquele lugar de Sweetwater. Ele usa termos pejorativos para reforçar a
suposta loucura de Brett Mcbain. Quando eles param no bar acontece a
entrada triunfal de Cheyenne. É possível ouvir os tiros e tudo o que se dá do

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lado de fora. Mas ninguém dentro do bar vê nada. Novamente Leone utiliza
o som para contar a sua estória.

Cheyenne é o arquétipo do Arlequim da comédia dell`arte italiana.


Não como um bobo da corte ou Tuco de Il buono, il brutto, il cativo,
excessivamente jocoso e maléfico. Mas sim próximo de um malandro
carioca. É o bandido “gente boa”. Os seus discursos darão pausas em seu
tema musical antes de concluir uma blague. Da mesma forma que acontecia
no samba de breque dos antigos malandros dos morros do Rio de Janeiro.

Sr. Morton é outra personagem guiada pelo som. Numa de suas


aparições ele diz a Frank querer ver o Pacífico da janela do seu vagão. Em
outra de frente a uma pintura onde se encontra o mar, ouve-se o som das
ondas diante da imagem estática. Ele viverá por este sonho. Em sua última
cena, observado por Frank, agonizando e prestes a morrer, Morton termina
com o rosto próximo de uma poça e ouve-se o som de ondas.

O sonho de Brett Mcbain era construir uma estação e ao seu redor uma
vila. Ele sabia que a locomotiva teria de passar por sua propriedade no único
lugar onde havia água. É o motivo de Jill Mcbain não encontrar dinheiro em
sua casa. Ele o investiu todo em seu empreendimento. Quando Cheyenne diz
a Harmonica que Brett Mcbain era um maluco, Harmonica responde: “Mas
um maluco especial.”

Na mesma conversa Harmonica frisa que Brett Mcbain era irlandês,


como se isso fosse um privilégio e mostrasse a fibra de um povo. Outro
irlandês da obra de Sergio Leone é John Mallory, que apresenta a mesma
força de caráter com as suas intenções.

Frank aparece para enfim duelar com Harmonica. Frank diz a


Harmonica que o Sr. Morton em seu lugar não estaria preocupado em saber
que Harmonica ainda estava vivo. Frank conta a Harmonica que o Sr. Morton

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disse a ele que nunca seriam iguais. Harmonica responde a Frank que ele não
é um homem de negócios. Os dois negam o progresso que irá varrê-los da
paisagem.

Ao ouvir que não é um negociador Frank responde a Harmonica: “Eu


sou apenas um homem.” No que Harmonica retruca: “Uma raça antiga.”
Frank continua: “Nada mais importa. Nem as terras, nem o dinheiro e nem a
mulher.” Eles não conseguem se livrar do passado. Não pensam em se
adaptar ao presente. C`era una volt il West da mesma forma que Once Upon
a Time in America é um filme sobre a negação da passagem do tempo.

Frank precisa saber quem é o homem que salvou a sua vida. É uma
questão de honra e de seguir o código de ética implícito nas atitudes dos
caubóis. Harmonica matou os traidores de Frank, pois queria ser ele a matá-
lo. Orgulhoso Frank precisa deixar que o outro tenha a oportunidade da
vingança. Harmonica tem uma postura digna forçando Frank ao duelo.

Jill Mcbain havia ralhado com Harmonica dizendo que ele salvou a
vida de Frank. Harmonica respondeu: “Não deixei que o matassem. É
diferente.”

Em flashback o irmão de Harmonica está com os dois pés em seus


ombros. Se Harmonica não conseguir sustentá-lo ele morre. Frank se revela
sendo a sombra que se aproximou disforme desde o início nas lembranças de
Harmonica. Abre o plano da fotografia contornada pela música sombria de
Ennio Morricone (Imagem 10). Harmonica não aguenta o peso do irmão que
morre sufocado com a corda no pescoço. Harmonica era apenas uma criança.

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Imagem 10: Quando o plano abre a imagem aterroriza junto a música de
Morricone.

Após levar um tiro Frank desaba como Harmonica e este põe a


harmônica em sua boca. Frank não tinha visto Harmonica com o
instrumento. De volta ao passado pelo olhar de Frank é possível ver que
lembrou do menino. Harmonica se vingou. A sua missão foi cumprida.

Depois do duelo Harmonica entra na casa, pega as suas coisas e saí


diante de Jill McBain estarrecida (Imagem 10.1). Como Cheyenne havia dito
a ela. Harmonica diz que talvez volte. Cheyenne o segue para morrer diante
dele.

Imagem 11: A imagem de Jill representa a destreza de Leone com os rostos


femininos.

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A câmera sobe do rosto de Harmonica com o mesmo movimento de
grua da cena da estação no início, e revela o novo mundo que começa
(Imagem 11). Aparece o Novo Oeste capitalista numa das cenas mais bem
compostas do cinema.

Imagem 12: O Recomeço.

Jill McBain irá continuar da mesma forma que Scarlett O`Hara


continuou. Jill McBain aceitou o convite de Brett. Mentiu dizendo que os
dois já haviam sido casados. Não resistiu à violação de Frank para não
morrer. E nem Harmonica nem Cheyenne quiseram se juntar a ela.

Jill McBain agora leva água para os trabalhadores que chegam


(Imagem 12). O antigo Oeste acabou. Jill McBain aceitou a dinâmica do
capitalismo. Assim como Scarlett O`Hara ao segurar a areia de Tara no final
com ânimo forte. O cenário está todo mudado. Chegam hordas de
trabalhadores pulando dos vagões. Cheyenne morreu. Harmonica foi
embora. O último western de Sergio Leone é a sua despedida e testemunho
do gênero.

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Imagem 13: Jill Mcbain como a representação do novo.

Jill McBain diferente de todas as personagens de Leone representa a


renovação e continuidade, como Leone representou para o western. O filme
que trata sobre o fim do Velho Oeste foi o maior responsável por sua
perpetuação. Jill McBain recomeça a partir do que para muitos é o fim. Pois
só assim a vida pode continuar. Foi por esta capacidade de adaptação que a
humanidade tem sobrevivido até hoje. E o cinema também.

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5. Um Maluco Especial

Sergio Leone

Em vida Sergio Leone não foi uma unanimidade entre a crítica


especializada. Os seus filmes eram pejorativamente classificados como
Bang-bang à Italiana e Spaghetti Western, além de acusados de serem
excessivamente violentos e pregarem a desesperança. Mas no futuro
influenciariam movimentos como a Nova Hollywood. E hoje são tidos como
“objetos de culto” e considerados “à frente do seu tempo”.

6. Filmografia

Il Colosso di Rodi (1961). Direção de Sergio Leone. Itália,


Indimenticabili, 2017. Blue Ray (1h e 42 min.).

Per un pugno di dollari (1964). Direção de Sergio Leone. United


States: KL Studio Classics, 2020. Blue Ray (1h e 39 min.).

Per qualche dollaro in più (1965). Direção de Sergio Leone. United


States: KL Studio Classics, 2020. Blue Ray (2h e 12min.).

Il buono, il brutto, il cativo (1966). Direção de Sergio Leone. United


States: KL Studio Classics, 2020. Blue Ray (2h e 58min.).

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C`era una volt il West (1968). Direção Sergio de Leone. United States:
KL Studio Classics, 2020. Blue Ray (2h e 45min.).

Once Upon a Time in America (1984). Direção de Sergio Leone.


United States: KL Studio Classics, 2020. Blue Ray (3h e 49min.).

7. Bibliografia

Jean-Baptiste Thoret - Coleção Grandes Realizadores, Sergio Leone –


Cahiers du Cinéma, edição exclusiva para o Jornal Público, 2008.

Rodrigo Octávio d`Azevedo Carneiro – Era Uma Vez no Spaghetti


Western: estilo e narrativa na obra de Sergio Leone. Recife, 2011. 115-272
pp.

8. Referências

An Opera of Violence. – Direção: Lancelot Narayan (2003). United


Kingdon. Filmaffinity. DVD (29min).

Sergio Leone, Uné de Amérique Legend. – Direção: Jean-François


Giré (2018). Colaboração: Noel Simsolo. França: ARTE, 2018. DVD (53
min).

9. Imagens

Todas as imagens foram extraídas do site IMDB.

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