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Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo

A pontamentos sobre o texto teatral contemporâneo

S ílvia Fernandes

Q
ualquer espectador ou leitor mais assíduo cênica do diretor ou do ator. Diante dessa situ-
de dramaturgia contemporânea constata ação, não é de estranhar que uma das principais
facilmente sua diversidade. Construída se- tarefas do estudioso do texto teatral contempo-
gundo as regras do playwriting ou como râneo seja distinguir seu objeto. Pois tudo o que
storyboard de cinema, estruturada em pa- aparecia até o final do século XIX como marca
drões de ação e diálogo ou a partir de mo- inconfundível do dramático, como o conflito e
nólogos justapostos, tratando de problemas atu- a situação, o diálogo e a noção de personagem,
ais de forma realista ou metaforizando grandes torna-se condição prescindível quando os artis-
temas abstratos, hoje a peça de teatro desafia tas passam a usar todo tipo de escritura para
generalizações. A diversidade da produção che- eventual encenação, na tentativa de responder às
ga a ponto de levar um pesquisador da enver- exigências de tema e forma deste final de século.
gadura de Patrice Pavis a definir o texto teatral Talvez um olhar mais atento possa distin-
pelo critério elocutório. Segundo o teórico fran- guir nas formas híbridas do texto teatral con-
cês, atualmente texto de teatro é tudo aquilo temporâneo a necessidade de expressão de
que se fala em cena (Pavis, 1982, p. 140). O que assuntos que os modelos históricos não conse-
parece um exagero de simplificação encontra guem conter. A hipótese é reforçada pela leitura
eco no encenador americano Richard Schech- do já clássico Teoria do drama moderno, de Peter
ner, para quem drama é tudo que o escritor es- Szondi. A perspicaz análise de Szondi mostra
creve para a cena, e se opõe a script, o roteiro que a noção a-histórica de texto leva à suposi-
que serve como mapa de uma determinada pro- ção de que uma mesma forma dramática pode
dução (Schechner, 1988, p. 85). ser usada em qualquer época, para a construção
Parece evidente que essas definições prag- poética de qualquer assunto. Defensor da posi-
máticas resultam dos problemas para distinguir ção dialética, o teórico alemão percebe, ao contrá-
o texto teatral de hoje, quando as fronteiras do rio, uma equivalência entre forma e conteúdo,
drama alargaram-se a ponto de incluir roman- com a forma concebida como uma precipitação
ces, poemas, roteiros cinematográficos e até do conteúdo (como quer Adorno), onde a te-
mesmo fragmentos de falas esparsas, descone- mática nova funciona como um problema para
xas, usados apenas para pontuar a dramaturgia a antiga moldura formal.

Sílvia Fernandes é professora do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.

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Na época em que escreve, meados da dé- Fredrik Jameson em relação a outro contexto.
cada de 1950, Szondi constata que as peças O procedimento leva à diluição relativa do re-
compostas com diálogos trocados entre os per- ferente histórico, o que Jameson tenta explicar
sonagens, como numa conversação quotidiana, pela incapacidade que o artista contemporâneo
são incapazes de expressar as novas contradições teria de olhar o presente, um mundo extrema-
da realidade. E localiza a crise da forma dramá- mente complexo e cada vez mais difícil de
tica muito antes, por volta de 1880, quando a mapear (Jameson, 1996, p. 51).
crescente complexidade das relações sociais já De qualquer forma, como sucessor de
não cabe no mecanismo do drama absoluto, que Brecht no Berliner Ensemble, Müller sempre
se estrutura a partir das relações intersubjetivas alimentou a contradição entre a forma fragmen-
dos personagens. Não é de estranhar que, de- tária, com potentes descrições de imagem, e os
pois dessa crise, o drama seja cada vez mais con- traços alusivos aos momentos traumáticos da
taminado por procedimentos épicos e escape à história alemã deste século. É evidente que o
lógica intersubjetiva que funda a mimese tea- horror nazista e a repressão estalinista perma-
tral. A forte presença das técnicas analíticas na necem como alegoria incômoda em quase to-
construção do texto teatral contemporâneo tal- das as suas peças. Mesmo no caso de Quartett,
vez indique que a diegesis seja o modo mais efi- baseada nas relações perigosas de Choderlos de
caz de representar os “estados de coisas” a que Laclos, a rubrica inicial sugere um “bunker de-
Benjamin se refere quando analisa o teatro épi- pois da terceira guerra mundial” onde se movi-
co brechtiano1. mentam as figuras movediças de Valmont e
A dramaturgia pós-dramática pode ser Merteuil, trocando constantemente de papel
considerada uma das etapas mais recentes do como se fossem meras projeções do narrador.
texto teatral narrativo. Hans-Thies Lehmann, Essa identidade frágil força o espectador ou lei-
que cunhou o termo ao analisar as peças de tor a olhar os personagens como meras funções
Heiner Müller, observa que no limite essa dra- de enunciação e não mais como sujeitos com
maturgia prescinde do conflito, do diálogo, do autonomia ficcional suficiente para lhes permi-
personagem e da ação (Lehmann, p. 99). De tir ser agentes de um conflito dramático (Pavis,
fato, o leitor ou o espectador de Müller percebe 1990, p. 93). Corroborando essa impressão,
em seus textos mais radicais um processo de Stephen Watt menciona a subjetividade migra-
desdramatização levado a extremos. Quartett, tória como característica básica do drama mais
Medeamaterial ou mesmo Hamletmachine são recente, em que a identidade humana é marcada
verdadeiros tratados de argumentação, onde o em termos de horizontalidade, e liga-se a tra-
personagem expõe seus enunciados de modo vessias territoriais e ocupações temporárias de
arbitrário, através de longos monólogos que espaço, constituindo-se em termos bastante di-
impedem a troca dialógica e imobilizam o de- ferentes daqueles que enformam os modelos tra-
senvolvimento da suposta fábula que, aliás, nem dicionais de construção de personagem, mais
chega a ser definida pelo dramaturgo. No caso próximos do aprofundamento vertical (Watt,
desse tipo de escritura dramática, como o assun- 1998, p. 70).
to não é claro e o enredo não existe, o resultado De qualquer forma, Fernando Peixoto
é o esmaecimento do conteúdo, como observa considera a posição fronteiriça da dramaturgia

1 “O teatro épico não reproduz, portanto, os estados de coisas, mas tem sobretudo que descobri-los. A
descoberta dos estados de coisas se completa por meio da interrupção do curso dos acontecimentos”
(Benjamin, 1969, p. 11).

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de Müller como um momento de síntese, pois Sam Shepard, para mencionar apenas os casos
mostra a firmeza ideológica revestida de perple- exemplares.
xidade e a reflexão consciente sobre o processo O movimento não é novo. Como lembra
histórico, o questionamento do significado e da Anne Ubersfeld, a dramaturgia sempre foi es-
prática da revolução e a discussão do socialismo crita contra ou a favor do “objeto-teatro” a que
postos em tensão pelo debate sobre a ética indi- se dirigia (Ubersfeld, 1981, p. 14). A forma dra-
vidual (Peixoto, 1987, p. xv). Nesse turbulento mática, além de expressar um sentimento de
espectro temático, não é de estranhar que o con- época, sempre revelou uma prática cênica, um
flito seja substituído pela idéia de catástrofe, e tipo de desempenho e uma determinada ima-
em lugar de opor os protagonistas, oponha o gem da representação. A qualidade do espaço,
narrador ao mundo narrado. o estilo de atuação e o modelo de fábula que o
No aspecto estrutural, pode-se considerar teatro estava apto a contar sempre foram fato-
a dramaturgia de Müller como o correlato lite- res determinantes da escritura do dramaturgo.
rário de um tipo de encenação freqüente no A diferença, sentida numa parcela da dramatur-
princípio dos anos 80, criado especialmente por gia recente, é que esta aparentemente esqueceu
artistas da vanguarda formalista americana, as preocupações com a ação dramática, escrita
como Bob Wilson e Richard Foreman, e no para ser atualizada pelo espetáculo. Talvez a res-
caso brasileiro, por Gerald Thomas. Em certo posta dos dramaturgos à escritura autoral dos
sentido, os textos do autor alemão são a prova encenadores tenha sido uma dramaturgia não
de que os dramaturgos não ficaram alheios às dramática, sem ação, que em última instância é
modificações do espetáculo contemporâneo e autônoma. Pode ser lida como poema, depoi-
parecem ter incorporado ao veículo literário os mento ou relato. Nada em sua conformação re-
procedimentos criados por seus parceiros de vela a famosa incompletude literária, os “bura-
cena, redefinindo assim os limites da textua- cos” a que Ubersfeld se refere quando destaca a
lidade dramática. Certamente não se deve ao necessária passagem do literário para o cênico.
acaso a parceria de Heiner Müller com Wilson Talvez o exemplo mais radical dessa du-
nas encenações de Hamletmachine e Quartett. pla autonomia – da escritura dramática e da es-
Michael Vanden Heuvel foi um dos pri- critura cênica – sejam as peças de Heiner Müller
meiros teóricos contemporâneos a apontar o supostamente encenadas por Bob Wilson. A
forte movimento da dramaturgia do período em verdade é que as montagens de Müller por Wil-
direção à encenação, que agiu como fator de son tinham pouca semelhança com o que se
modificação das estruturas textuais. Para Heu- entende por encenar um texto dramático. O ar-
vel, esse mecanismo permitiu ao texto incorporar tista americano gravava a íntegra das peças do
a indeterminação e a dispersão características da dramaturgo e as exibia ao público como trilha
performance dos encenadores mencionados, sonora da escritura cênica. Na realidade, o que
além de influenciá-la, pois os canais dramático se via no palco era a justaposição do texto do
e cênico sempre operaram como interfaces aber- dramaturgo no espaço sonoro e do texto do en-
tas (Heuvel, 1993, p. 19-20). As peças de Müller cenador no espaço cênico, literatura e teatrali-
seriam um dos exemplos do processo formativo dade justapostas para criar um sentido aberto,
texto/cena deflagrado em conjunto, cujo gran- que cabia ao espectador completar2.
de precursor foi Samuel Beckett, e que envol- Talvez essa tenha sido uma das mudanças
veu outros criadores, como o Wooster Group e mais radicais da relação texto/cena no teatro

2 Para uma interessante análise das montagens, ver Maurin, 1998.

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contemporâneo. Para entendê-la, não é preciso atrais do ocidente e do oriente e define o texto
voltar à discussão sobre a natureza literária ou performático recorrendo ao teatro Nô. “O dra-
teatral do texto dramático. Jiri Veltruský, teóri- ma Nô não existe enquanto conjunto de pala-
co da escola de Praga, considera a discussão inú- vras que serão, em seguida, interpretadas pelos
til. Observa que sem dúvida o drama é uma atores, mas enquanto um conjunto de palavras
obra literária e, enquanto tal, pode ser simples- inextricavelmente unidas à música, aos gestos,
mente lido ou usado como componente da à dança, aos diferentes modos de interpretação
performance, como faz Bob Wilson com os tex- teatral, aos figurinos” (Schechner, 1991, p.
tos de Müller. A diferença está no tipo de teatro 247)3.
que se pratica e, em última instância, vai de- Partindo da distinção de Schechner, Jo-
terminar a escolha e o uso que se faz do texto. sette Féral procura relativizá-la. Em primeiro
Algumas formas teatrais contemporâneas, por lugar, enfatiza a existência de diferentes tipos de
exemplo, preferem os textos líricos e narrativos texto performático, dependendo da natureza e
ao drama, pois pretendem que a escritura cêni- do modo de inserção no espetáculo. Para Féral,
ca entre em relação com a literatura como um ainda que muitos deles sejam incompletos, frag-
todo, e não apenas com o gênero dramático mentados, heterogêneos, sem linha narrativa, e
(Veltruský, 1976, p. 95). seu sentido não se ligue à lógica do discurso li-
Richard Schechner retoma, em certo sen- terário, mas à combinatória de elementos cêni-
tido, a discussão de Veltruský, quando distin- cos em meio aos quais são apresentados, outros
gue dois tipos de texto de teatro. O texto per- mantêm a linearidade narrativa sem deixar de
formático (performance text) é indissociável da permitir um discurso cênico múltiplo. A ensaís-
representação e existe apenas enquanto materia- ta afirma que, nos dois casos, a constante é a
lização cênica relacionada a outros componen- dependência dos textos à totalidade da encena-
tes da escritura teatral. A representação lhe dá ção, pois ambos fazem sentido apenas em rela-
suporte e coerência, e é apenas como parte dela ção aos elementos da representação com que
que pode fazer sentido. Exatamente por isso o dialogam. Adotando uma perspectiva histórica,
texto performático é fragmentado, heterogêneo, considera o texto e o texto performático como
múltiplo, e seria incoerente tentar analisá-lo os dois pólos entre os quais a encenação con-
enquanto obra literária, pois depende dos ou- temporânea oscila, com o teatro dos anos 60 e
tros sistemas cênicos para se realizar. É verdade 70 escolhendo de preferência o segundo como
que pode ser transcrito, mas apenas como parti- base da representação. Acredita que numerosos
tura mínima da representação, pois depende da encenadores do período preferiram trabalhar
intervenção de outros elementos para compor a com textos não criados originariamente para o
totalidade da escritura cênica. Schechner opõe palco por julgarem que os excertos de roman-
o texto performático a algo que chama simples- ces, poemas ou depoimentos favoreciam uma
mente de texto (text), cuja existência extra-cê- maior liberdade criativa. Continuando sua aná-
nica considera perfeitamente legítima, pois pre- lise, Féral observa que o teatro dos anos 90
cede a representação e sobrevive a ela enquanto retornou ao texto literariamente autônomo,
obra literária autônoma. O encenador america- eleito como matriz para a criação dos espetácu-
no associa os dois tipos de texto às tradições te- los. Mas adverte que é preciso ver nessa polari-

3 A tradução brasileira publicada pela Hucitec opta por “texto da representação”, mas preferi o neologismo
“texto performático” para distinguir “performance text” do conceito de “texto espetacular”, que define a
escritura integral do espetáculo, e muitas vezes é traduzido como texto da representação ou texto cênico.

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dade não uma relação de exclusão, que conside- As observações de Veltruský, Schechner e
ra empobrecedora, mas antes um movimento de Féral podem facilitar a mudança do foco de aná-
complementaridade. Aproximando-se de Vel- lise do texto teatral. Pois até bem pouco tempo
truský, a ensaísta sugere que a opção preferen- a função precípua da peça de teatro era projetar
cial por um ou outro tipo de texto, ou por ambos, uma ação dramática que a cena deveria atuali-
depende de fatores exteriores, como ideologias zar. Sem dúvida foi Raymond Williams quem
e estéticas dominantes, associados a questões li- investigou as etapas decisivas dessa relação. Para
gadas ao percurso criativo do artista. Ainda que definir sua abordagem, Williams vinculou tea-
não discorde de Schechner de forma clara, Féral tral a dramático, medindo a teatralidade pela
sugere que não é a presença ou a ausência de capacidade que a literatura teria de criar ação
um texto performático que vai definir o tipo de através dos diálogos ou de outros recursos dis-
encenação. E, pode-se acrescentar, não é isso poníveis no veículo textual. Ao analisar por esse
que determina o uso que o encenador faz do prisma o desenvolvimento histórico da forma
texto. São as modalidades de integração do tex- dramática, constatou mudanças por volta do
to aos outros elementos da representação que princípio do século, o mesmo período em que
permitem dizer a que categoria a encenação per- Szondi localizou a crise. Williams definiu a
tence e de que forma ela trata o texto, perfor- mudança a partir do momento em que autores
mático ou não. dramáticos como Tchekhov passaram a escre-
Para corroborar suas conclusões, Josette ver textos em que os diálogos se dissociavam da
Féral cita o encenador canadense Robert Lepa- ação, transformada em algo que ele chama de
ge, responsável pela autoria cênica integral das comportamento, onde se consubstancia uma
produções que dirige, quer faça uso de textos nítida separação entre fala e performance. Ago-
ou textos performáticos, alternadamente ou de ra o texto dramático projeta uma “conversação
forma simultânea. Menciona como exemplo os provável” em que não há relação exata entre a
espetáculos Les Aiguilles, l’Opium e Elseneur, organização das palavras e o método de falá-las.
considerando este último bastante fiel ao Ham- Nem é preciso dizer que a peça de Tchekhov
let de Shakespeare (Féral, 1999). No caso brasi- abre espaço para uma interpretação sujeita a
leiro, sem dúvida é Antunes Filho quem mais amplas variações. As constantes divergências do
se aproxima dessa alternância, o que pode ser dramaturgo com Stanislavski a respeito da
conferido nas montagens de Drácula e Gilga- montagem de seus textos são mais uma prova
mesh e nas encenações de Nélson Rodrigues, do da instauração da polifonia significante a que
Macbeth de Shakespeare (Trono de Sangue) e, Bernard Dort se refere quando analisa o teatro
mais recentemente, das Troianas de Eurípides contemporâneo4 .
(Fragmentos Troianos). Também Enrique Diaz Entre outros motivos, é para ocupar o
faz opção alternada por um ou outro tipo de espaço aberto pelo texto que o encenador começa
texto, quando cria A bao a Qu ou encena A o lento trabalho de elaboração de uma escritura
Morta e O rei da vela de Oswald de Andrade, própria, iniciando o movimento de justaposição
sem que isso influencie de forma substancial sua do texto cênico ao dramático, até que o primei-
autoria cênica. ro adquira plena autonomia. Como observa

4 “The Seagull, by Chekhov”, capítulo de Drama in performance em que Raymond Williams analisa o
caderno de direção de Stanislavski para a montagem de A Gaivota, de Tchekhov, é um ótimo exemplo
de elaboração do texto cênico paralelo, com descrições muito esclarecedoras.

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Williams em outro ensaio, a “repetida tensão ressante observar como em suas peças a circula-
entre dramaturgos e encenadores, tão marcante ção da palavra auxilia a construção de estratégi-
nesse século, é característica dos problemas da as espaciais complexas. Na solidão dos campos de
própria forma dramática. Isso fica especialmente algodão é uma “trans-ação” entre traficante e cli-
claro nos movimentos de reforma literária que, ente onde o jogo de ataque e defesa é projetado
concentrando-se nos problemas da fala dramá- através dos movimentos do diálogo. Sem utili-
tica, menosprezaram os problemas básicos da zar uma única rubrica, Koltès consegue sugerir
ação dramática. Mudar a convenção da fala, mas a imobilidade do primeiro e a movimentação
não a outra convenção, é desintegrar uma for- do segundo através de um “motim verbal” que
ma que já tem seus métodos teatrais, e criar um se desdobra no ritmo preciso das falas e nas pas-
hiato que a produção é forçada a preencher” sagens bruscas do discurso altamente retórico à
(Williams, 1975, p. 407). linguagem cotidiana. O movimento do trafi-
Ao preencher esse hiato, a encenação per- cante em direção ao cliente e o recuo deste, na
mitiu à dramaturgia completar o percurso de tentativa dúbia de negar e afirmar a intenção de
autonomia e de expurgo da ação dramática a compra, acabam projetando territórios de ação.
que me referi anteriormente. E, por outro lado, Jean-Pierre Ryngaert nota, com razão,
também estimulou o movimento paralelo de in- que essa dança do desejo é falada, comentada e
corporação da nova materialidade cênica. Nes- realizada no desdobramento da linguagem, de
se caso, a contaminação do drama pela cena precisão quase maníaca, que em última instân-
contemporânea aconteceu especialmente atra- cia é quem se encarrega de coreografar a tensão
vés do uso de procedimentos literários que já que une e opõe os personagens. Nesse percur-
não pretendiam construir uma ação dramática so, o diálogo não exibe o desejo por meio do
para ser atualizada pelo palco. Agora os drama- sentido das falas – de certa forma, trata-se de
turgos procuravam incorporar a própria teatra- um encontro de trajetórias abstratas – mas por
lidade ao texto, na tentativa de apropriar-se de intermédio do elaborado sistema espacial que a
tudo aquilo que na representação é especifica- palavra projeta, dando acesso ao prazer através
mente cênico, essa “espessura de signos e sensa- da construção de uma rede imaginária de apro-
ções” que Roland Barthes liga a uma espécie de ximações verbais (Ryngaert, 1998, p. 25-6).
“percepção ecumênica de artifícios sensuais, ges- Como observa Anne Ubersfeld, todo o sistema
tos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que sub- espaço-temporal do texto é baseado nas isoto-
merge o texto sob a plenitude de sua linguagem pias desse movimento verbal de idas e vindas,
exterior” (Barthes, 1964, p. 41-2). que constrói uma coreografia repetitiva através
O resultado da apropriação da teatralida- da recorrência do mesmo vocabulário. Pode-se
de pela dramaturgia mais recente é que o texto dizer que os argumentos do cliente ressoam nas
literário ganhou novo estatuto. O dramático falas do freguês como gestos, e a alternância de
ainda se conserva no modo de enunciação, na monólogos fluentes e diálogos lacônicos hibri-
construção dos diálogos, monólogos ou narra- diza as formas dramática e épica, ao mesmo
tivas e, algumas vezes, no desdobramento dos tempo em que cria, pela alternância e variação,
personagens. Mas a qualidade teatral deixa de um intenso ritmo cênico (Ubersfeld, 1996, p. 196).
ser medida pela capacidade de criar ação. Agora Michel Vinaver nota que os diálogos de
teatral pode ser apenas espacial, visual, expressi- Na solidão dos campos de algodão têm qualidade
vo no sentido da projeção de uma cena espeta- postiça e retórica, acentuada pela falta de liga-
cular. Paradoxalmente, é teatral um texto que ção entre pergunta e resposta. Na verdade, as
contém indicações espaço-temporais ou lúdicas réplicas infladas são longos monólogos em que
auto-suficientes. Os textos do dramaturgo fran- cada interlocutor fala até perder o fôlego, sem
cês Bernard-Marie Koltès, por exemplo. É inte- que nunca se tenha certeza a quem se dirige. Em

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lugar de responder, o antagonista geralmente Patrice Pavis vê nessa retomada do diálo-


retoma sua fala anterior, compondo um movi- go um indício da necessidade de reatar relações
mento musical de repetição/variação também com o outro, mesmo que esse outro seja, como
presente em outro texto de Koltès, o Combate Na solidão dos campos de algodão, apenas um re-
de negro e de cães. A situação inicial da peça é a flexo invertido. No combate entre o cliente e o
de um homem que vem exigir de outro a resti- freguês, percebe a vontade de restaurar a dialé-
tuição imediata de um corpo. A diferença de tica da troca humana e, ao mesmo tempo, a ne-
visões de mundo entre Alboury e Horn, o ne- cessidade de fazer com que o outro fale para “in-
gro e o europeu, são demarcadas através dos ter- terpelar o mundo em suas certezas”.
ritórios que as falas projetam quando o primei- No entanto, é sintomático que os perso-
ro entra no campo do outro para reclamar seu nagens de Koltès, apesar de estarem sempre em
direito. O interessante é que Koltès consegue busca dos argumentos do interlocutor, pareçam
figurar a temática de oposição entre culturas no questioná-lo sem esperança de resposta imedia-
eixo espacial projetado pela exuberância da ve- ta. O que explica que os diálogos patinem nas
getação tropical (a rubrica do primeiro segmen- réplicas infladas, parecendo girar em falso. Se-
to indica “atrás das buganvílias, no crepúsculo”) gundo Pavis, esse processo mostra a visão de
oposta ao canteiro de obras. O principal tema mundo de um artista que perdeu a vontade de
da peça é exatamente a oscilação entre os terri- explicar ou compreender, “como se a questão
tórios demarcados pelo dentro e o fora, o velho do sentido, o da obra e o do mundo, tenha se
e o jovem, o branco e o negro, a Europa e a tornado obsoleta”. Essa opinião não impede o
África. Pode-se dizer que os principais eixos teórico francês de constatar uma forte ligação
temáticos ligam-se a essa oposição de espaços e, da dramaturgia francesa contemporânea com a
nesse sentido, é possível concluir que a ação dra- realidade, especialmente sensível nos textos de
mática é a passagem de um território a outro, Koltès, em que a violência das grandes metrópo-
de uma situação espacial a outra, feita através les pode explicar em parte a solidão existencial e
do movimento físico/verbal dos personagens. a exclusão social dos personagens (Pavis, 1998).
Nessa forma de construção dramática, que Mi- A mesma violência e marginalidade rea-
chel Vinaver considera uma “peça/paisagem” fi- parecem nos textos do dramaturgo brasileiro
gurada pela aventura da palavra, a temática se Dionísio Neto. O crítico Nélson de Sá vê no
cristaliza na projeção de espaços cênicos confli- artista um estranho híbrido dos diretores José
tantes, territórios inimigos “confragrados no Celso Martinez Corrêa, Gerald Thomas e Antu-
passe de armas dos diálogos” de réplicas incisi- nes Filho, que Dionísio considera o principal
vas não tanto pelo conteúdo semântico, mas responsável por sua formação (Sá, 1998, p.
pela brutalidade física que produzem (Vinaver, 444). A influência dos três encenadores pode
1993, p.47-82). explicar a clara incorporação de recursos cêni-
No momento em que um autor lança cos a textos que trazem as marcas da teatralida-
mão desses procedimentos para elaborar seus de contemporânea tanto nas falas quanto na es-
textos, outras dinâmicas de construção dramá- trutura narrativa e fragmentária. A par disso, é
tica estão em jogo. A atividade da palavra toma visível a filiação do dramaturgo ao teatro de Zé
o lugar antes reservado à progressão da intriga. Celso, de quem empresta a urgência de ser cro-
Dessa forma, o que Koltès concebe é uma mi- nista do tempo. “Quero extrair poesia do ho-
cro-dramaturgia baseada em estratégias de diá- mem contemporâneo, do português coloquial”,
logo feitas de figuras de ataque, de resposta, de afirma em entrevista recente.
esquiva, criando armadilhas que restabelecem De fato, a violência da grande cidade bra-
uma perspectiva agonística, desta vez dentro da sileira explode no registro do submundo urbano
própria linguagem (id., ibid., p. 82). e no tecido social esgarçado em cenas terminais

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em que marginais e artistas associam a discus- tados com os grandes diretores de ator com
são existencial ao crime, às drogas e à descren- quem trabalhou, como Antunes e Zé Celso.
ça. É o caso de Desembest@i, texto de 1996, que Mas a incorporação dessa dramaturgia do ator
mostra adolescentes praticando crimes descritos não acontece em forma de rubricas, o que em
em detalhes macabros, que lembram certas pas- última instância reforçaria a dependência do
sagens do Roberto Zucco de Koltès. texto à realização cênica. O que Dionísio pare-
Quanto à influência de Thomas, ela é vi- ce adotar é um modelo textual específico, se-
sível em peças como Perpétua e sobretudo em melhante ao de Koltès, capaz de transformar os
Opus Profundum, justaposição de monólogos/ monólogos em performances de palavra5.
performances de três protagonistas do contem- A partir dessas observações, é fácil con-
porâneo – um fotógrafo, um ator e um apaixo- cluir que na dramaturgia de Dionísio Neto pre-
nado pela imagem – que vomitam as visões su- pondera o que Franco Ruffini chama de “cena
jas do imaginário urbano de fim de milênio. A do texto”. O teórico italiano percebe, em qual-
“peça-show para atores, cantores e banda de quer texto de teatro, a convivência de dois com-
rock” tem apenas dois diálogos finais, um deles ponentes. O “texto do texto” é o elemento rígi-
a entrevista de um repórter com o ator de fama do, orientado, programado, que diz respeito ao
internacional que mal disfarça a voz onipresente conflito e à fábula, e tem como eixo o encadea-
do dramaturgo. Como nos trabalhos de Tho- mento da intriga. A “cena do texto”, ao contrá-
mas, o texto combina essa ostentação da auto- rio, é representada pelo personagem e tudo que
ria à indicação, nas rubricas, de inserções de lhe diz respeito, incluindo as réplicas e micro-
dança, música, cinema, mídias eletrônicas e vir- situações que se mantêm à margem do conflito
tuais, artes plásticas e moda, na conexão das e da fábula, dando passagem a certa imprevisi-
muitas referências do imaginário do artista. bilidade e curso livre ao encenador e ao ator.
A despeito da inclusão dos vários inter- Essa distinção permite avaliar como o texto de
textos da cultura contemporânea, o recurso es- Dionísio tem pouco a ver com o encadeamento
trutural mais interessante de Opus Profundum é da intriga e a coerência das ações. E como deve
o uso sistemático de sugestões de cena nos mo- muito à simultaneidade, ao ritmo, ao modo de
nólogos, com indicações de movimento e pro- compor as falas e o gesto, à projeção do espaço,
jeções de gesto contaminando as falas dos per- mas também aos deslizamentos de sentido, à
sonagens. A impressão que se tem é a de um poesia das palavras, às surpresas de construção.
dramaturgo que consegue incorporar ao texto À primeira vista, não é o que acontece
literário procedimentos de atuação experimen- com as peças do dramaturgo paulista Fernando

5 Processo semelhante acontece em relação aos diálogos. Da mesma forma que as indicações cênicas, eles
são incorporados aos monólogos como fala direta, na repetição de um procedimento bastante comum
na dramaturgia de Koltès, especialmente evidente no longuíssimo monólogo que é A noite logo antes
das florestas. Veja-se a esse respeito um trecho do monólogo de Opus Profundum que descreve uma
batida policial: “Mão na cabeça! Mão na cabeça senão leva furo! Mas eu não fiz nada. Tá drogado, filho
da puta. Tá com olho de drogado! Mas eu... Cala boca senão vai virar peneira pra São Pedro lavar
roupa! Encosta na parede! Tá machucando. É pra machucar sua bicha. Sou filho de advogado. Pode ser
filho do Papa! Tô limpo. Aí você tem certeza que vai ser ali. Pronto, chegou a sua hora. Valeu. E a Anna
Stesia? Foda-se. Documento. Documento. Cadê o monza? Não sei de nada. Cê roubou monza, caralho.
Tava andando indeciso. Tava procurando orelhão. Pascoale. Porra, foste tu que fotografou o Papa com
as bicha evangélica? Te vi na televisão. Pascoale” (Neto, 1996).

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Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo

Bonassi. Semanticamente fortes, elas têm uma inverossímeis, mas dissimuladas em hiper-rea-
relação imediata, quase selvagem, com o real. lismo. O contraste entre a plausibilidade dos
O espectador ou leitor é atropelado pela pulsa- diálogos e o absurdo da situação exposta – o
ção contemporânea que explode no longo mo- tensionamento da violência até o limite, sem
nólogo de Preso entre ferragens ou nos diálogos que se expliquem as razões que levaram a ela –
tensos e brutais de Um céu de estrelas, romance é o tratamento de choque que Bonassi aplica à
posteriormente adaptado para cinema e teatro. forma realista, cujo resultado é uma concentra-
A narrativa clara torna as peças perfeitamente ção dramática que se aproxima da estrutura da
legíveis como obras literárias e mostra um au- tragédia. Tragédia da falta de controle dos per-
tor que conhece bem a realidade do teatro, mas sonagens sobre a ação que não compreendem e
sabe escrever textos que não dependem do pal- da qual não são sujeitos. Tragédia da falta de es-
co para existir. São autônomos enquanto ficção perança que, como bem observa Jean-Claude
e projeção de uma cena imaginária. Bernadet, coloca o texto na contracorrente de
A linguagem de Bonassi é arma de duplo um tipo de mentalidade contemporânea, que só
corte que secciona a realidade social de classe admite o desfecho reconfortante.
média baixa e a solidão existencial das persona- Esse caminho dramático fatalmente leva-
gens, o impasse brasileiro e a dissolução moral ria Bonassi à alegoria, procedimento básico de
do homem contemporâneo. Essa duplicidade construção de Apocalipse 1, 11, em que a perso-
permite que os efeitos de real, ou de autentici- nificação de idéias ganha o contraponto feroz
dade, estejam estreitamente associados e se al- do naturalismo anterior, e onde Talidomida do
ternem a recursos da mais radical teatralidade. Brasil, a prostituta Babilônia e o Anjo Poderoso
Em Um céu de estrelas, por exemplo, o drama- convivem com cenas desconcertantes de um
turgo trabalha de forma aparentemente realista negro espezinhado pelo preconceito racial. A
a história de um desempregado que invade a analogia da violenta exclusão social brasileira
casa da noiva que o abandonou e comete todo com o Apocalipse de São João é nuclear para a
tipo de violência, para acabar cercado pela polí- concepção da peça, feita através de workshops
cia. No entanto, esse realismo sediado na Mooca coletivos com o Teatro da Vertigem e o encena-
convive com todo tipo de inverossimilhança as- dor Antonio Araújo.
sumida pelo dramaturgo – a polícia que chega Desde o princípio dos trabalhos, Bonassi
sem ser chamada, o contexto social insuficien- é levado para a sala de ensaios, integrando a cri-
te, a frágil personagem da mãe, que nem nome ação do texto ao trabalho dos atores, que se gui-
tem, e reza no banheiro como coro passivo dos am pelo risco do depoimento pessoal. Improvi-
protagonistas. É visível que o acento local e a sações, vivências, visitas a locais de referência
ambientação naturalista interessam ao drama- para ações e personagens e workshops breves são
turgo, mas seu ponto de partida é um leitmotiv os instrumentos de dissecação temática escolhi-
temático, geralmente a violência em todas as dos pelo elenco. Daí resulta a versão inicial do
formas possíveis, incorporado a personagens Apocalipse de João, em que o dramaturgo asso-
comuns ou marginalizados. cia sugestões poéticas, medos essenciais e julga-
Em As coisas ruins da nossa cabeça, Bonassi mentos de mortos a seu costumeiro realismo cru.
trabalha a mesma estrutura aparentemente rea- Depois de concluir essa primeira versão
lista, com diálogos plausíveis que opõem os per- do texto, em abril de 1999, Fernando Bonassi
sonagens Lena e Vilela. Mas, como no texto an- inicia a segunda etapa de trabalho. Agora o foco
terior, aos poucos esses seres desajustados e de criação é o espetáculo, ensaiado em oficinas
isolados em um bar de estrada na Amazônia públicas dirigidas pelo grupo. Paulatinamente,
(que pelo tom do texto, poderia ser um deserto um novo texto cênico de atores e diretor vai sen-
de Shepard) são colocados em situações-limite, do agregado às primeiras soluções, num movi-

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sala preta

mento de idas e vindas feito pela dramaturgista, quisa de campo para a composição de um ro-
que se encarrega de facilitar a troca do autor teiro de falas, espaços e gestos6.
com os atores e garante a presença coletiva na Na leitura pública da peça, realizada pelo
reescritura das cenas. grupo quase um ano antes da estréia, era visível
O novo processo, quase inaugural, leva a a autonomia dessa cena de palavras. Nessa altu-
modificações sucessivas do roteiro. O mais im- ra o espetáculo ainda não existia e a audição do
portante a observar, no entanto, é que cada cria- texto limpo, sem a fricção da teatralidade pos-
dor reage de forma independente aos estímulos terior, ressaltava o caráter das rubricas, que pro-
do trabalho colaborativo. Enquanto Antônio jetavam espaços cênicos diferentes daquele que
Araújo cria uma ambiência particular, auxilia- o espectador encontraria mais tarde. A impres-
do pelo poderoso espaço do presídio, Bonassi são era de que o dramaturgo, consciente do tra-
projeta no texto soluções também cênicas – es- balho autoral de atores e encenador, usava o tex-
paciais, gestuais, cinéticas – através de palavras to para criar sua própria cena imaginária, mais
que desenham sua própria visão do apocalipse. tarde contraposta à profusão barroca de Anto-
Vale a pena notar como essas projeções não se nio Araújo7.
restringem às rubricas metafóricas, mas invadem O dado diferencial do texto de Bonassi,
as falas dos personagens, acabando por compor paradoxalmente saído de um coletivo, é o pon-
uma cena imaginária quase independente, co- to de vista singular que preserva. Como se
mo se o dramaturgo usasse a prática coletiva, os intuísse que a polifonia do apocalipse só pode-
improvisos do elenco e as descobertas da pes- ria ser composta por vozes dissonantes, as úni-

6 Como ilustração desse procedimento, é interessante reproduzir aqui a “Ambientação 3”, que abre o
prólogo da primeira versão do texto: “Nos corredores que levam ao espaço da própria cena, os
espectadores verão diversos corpos pendurados por cordas, enforcados. Os corpos oscilam como
pêndulos. Alguns deles, agonizando, ainda sofrem espasmos e emitem seus últimos ruídos roucos”. Ou
ainda a descrição da “Espelunca da besta”, Ato 1, “A ascensão da Besta”: “Acompanhamos João até o
local do ‘Último show da Besta’. Trata-se de um ambiente que remete às piores espeluncas, com umas
poucas mesas. Num canto, uma TV exibe cenas de acidentes de automóveis, grandes enchentes e
queimadas. Essas imagens são intercaladas por um letreiro com a inscrição: ‘O tempo está próximo!’
Um garçom de quinta categoria prepara o espaço, ajeitando mesas, enxugando copos num mesmo
pano em que assoa o nariz. Numa das mesas, quatro jogadores promovem um carteado, fazendo um
grande alarido” (Bonassi, p. 6, 26).
7 Veja-se, a esse respeito, “A quarta carta”, lida no segundo ato da peça, “Queda de Babilônia”: “Haja o
que houver, a que tempo for, será a noite mais preta de todas as noites negras, em que os deuses das
chances dormem pesadamente, e sobrevoam corvos insanos dos piores Demônios do Brasil, terra de
contrastes e chacinas, convocando a face carcomida da morte violenta, dentes à mostra, quando os
assassinos entram pro que der e vier, deixando cem gramas de alma no esgoto da covardia, contra
homens desprezíveis cujas nucas explodem feito ovos e braços inúteis pedem clemência sob camas já
tampas de sarcófago. Só mesmo cães assustados é que salvam-se, mascando genitálias” (Bonassi, p. 60).
Lendo esse trecho, é inevitável pensar no conceito de hypotyposis, que Anne Ubersfeld empresta de
Quintiliano, via Henri Morier, para referir-se à construção de micro-cenários de palavras, que contam
histórias ou projetam quadros, por meio dos quais o espectador cria imagens sem o auxílio de estímulos
visuais. Segundo Ubersfeld, uma das características fundamentais dessa figura é que ela preserva certa
autonomia em relação à fábula e à ação (Ubersfeld, 1996, p. 137-40).

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Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo

cas capazes de esboçar uma mimese inédita. Na Araújo e Fernando Bonassi convivem em celas
preservação das diferenças, alegoria e naturalis- paralelas no Presídio do Hipódromo, onde Apo-
mo, sagrado e profano, cena e texto, Antonio calipse 1, 11 estreou no princípio do ano 2000.

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