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Contos

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Título: Contos
Autor: Anton Tchékhov
Tradução (do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra
Prefácio de Vladimir Nabokov
Capa: Fernando Mateus sobre foto do autor

© Relógio D' Água Editores, Julho de 2001

l.ª Reimpressão: Julho de 2011

Fonte: da edição A. P. TCHÉKHOV/ colecção em 12 tomos, com fixação de texto de M. Eriómin e anotada por P.
Eriómin, Editora Pravda, Moscovo, 1985, Colecção «Biblioteca Ogoniok / Obras Clássicas Nacionais».

Composição e paginação: Relógio D' Água Editores


Impressão: Tipografia Peres
Depósito Legal n.°: 167395/01
Anton Tchékhov

Contos
Volume I

Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra


Prefácio de Vladimir Nabokov

Clássicos
Prefácio

O avô de Anton Pávlovitch Tchékhov era servo — resgatou-se a si


mesmo e à família por 3500 rublos. O pai era um pequeno
comerciante. Na década de 1870 arruinou-se, pelo que toda a
família se mudou para Moscovo; Anton Tchékhov ficou sozinho em
Taganrog (sudeste da Rússia) a fim de terminar o curso dos liceus.
Viu-se obrigado a ganhar a vida. Terminado o curso, em 1879,
mudou-se também para Moscovo e entrou na universidade.
Tchékhov começou a escrever os seus primeiros contos para
ajudar a família, já que não havia outro modo de esta sair de uma
pobreza humilhante.
Estudou medicina e, ao acabar o curso na Universidade de
Moscovo, tornou-se assistente do médico distrital de uma pequena
cidade de província. Foi ali que começou a coleccionar um tesouro
de subtis observações ao tratar os camponeses, ao conviver com
oficiais do exército (na cidadezinha estava - aboletado um
regimento — em Três Irmãs há retratos destes militares) e com um
sem-número de representantes da província russa, cujas imagens
veio a reproduzir mais tarde nos seus contos breves. Mas neste
período escreveu sobretudo miniaturas humorísticas que assinava
com diferentes pseudónimos, reservan-do a sua assinatura
verdadeira para os artigos médicos. Estes pequenos contos
humorísticos eram publicados em vários pequenos jornais,
pertencentes por vezes a correntes políticas contrárias.
O próprio Tchékhov nunca se dedicou à actividade política, e não
porque fosse indiferente ao destino do povo simples: não
considerava a actividade política uma vocação sua; também servia
o povo, mas à sua maneira. Para ele, a principal virtude social era
a justiça, e durante toda a sua vida levantou a voz contra qualquer
injustiça, mas fazendo-o apenas como escritor. Era, sobretudo, um
individualista e um artista. Por isso, não era fácil atraí-lo para a
militância nalgum movimento político: tinha a sua maneira
própria de protestar contra a injustiça e a crueldade.
Normalmente, os críticos que escrevem sobre Tchékhov repetem que
acham de todo incompreensível o facto de, em 1890, o escritor ter
empreendido uma viagem perigosa e fatigante à ilha de Sacalina
para estudar a vida dos condenados aos trabalhos forçados.
As duas primeiras colectâneas de contos de Tchékhov — Contos
Matizados e No Crepúsculo — foram editadas em 1886 e 1887 e
mereceram de imediato o reconhecimento dos leitores. A partir daí
passou a ser considerado um dos mais importantes escritores
russos, tendo a possibilidade de publicar as suas obras nas
melhores revistas literárias, de abandonar a prática clínica e se
dedicar a tempo inteiro à literatura. Depressa comprou uma
pequena casa perto de Moscovo onde se instalou com toda a
família. Os anos que passou nessa casa foram os mais felizes da sua
vida. Aí gozou plenamente da sua independência, do conforto que
conseguiu criar para os velhos pais, do ar puro, do trabalho no
pomar, das visitas dos muitos amigos. A casa dos Tchékhov enchia-
se da alegria e da felicidade que constituíam o traço principal da
vida da família.
«Sentia uma vocação ardorosa não só pela plantação de ár-
vores, pela fecundação da terra, mas por toda a participação
criadora na vida. Com a sua natureza optimista, inesgotável-
mente activa, ansiava não só por descrever a vida, mas também
por transformá-la, construí-la. Ora se bate pela organização em
Moscovo da primeira Casa do Povo, com sala de leitu-ra, biblioteca,
auditório, teatro; ora se esforça por que, também em Moscovo, seja
construída uma clínica de doenças da pele; com a ajuda do pintor
Iliá Répin, organiza um Museu de Pintura e Belas-Artes em
Taganrog; toma a iniciativa da construção da primeira estação
biológica da Crimeia; faz recolha de livros para todas as escolas de
Sacalina, para onde os envia em grandes remessas; constrói, nos
arredores de Moscovo, uma atrás da outra, três escolas para os
filhos dos camponeses, e também um campanário e um serviço de
bombeiros. Mais tarde, quando se instalou na Crimeia, construiu ali
a quarta escola. Em geral, seja o que for que se construa, ele
entusiasma-se, porque, na sua opinião, tal actividade aumenta
sempre a soma da felicidade humana. Escreveu a Górki: "Se cada
qual, no seu lote de terra, fizesse tudo o que pudesse, que
maravilhosa seria a nossa terra!"
«E escreveu no seu livro de apontamentos: "O muçulmano cava
um poço para a salvação da sua alma. Seria bom se cada um de nós
deixasse neste mundo uma escola, um poço ou alguma coisa do
género, para que a vida não passasse e não desaparecesse na
eternidade sem deixar rasto." Muitas vezes, esta actividade de
Tchékhov exigia-lhe um trabalho duro e demorado, e quando, por
exemplo, construía as escolas, era ele quem lidava com os
pedreiros, os calafetadores, os mestres-forneiros, os cabouqueiros,
os carpinteiros, era ele quem comprava todos os materiais,
inclusive os azulejos e os tapadores para os fogões, quem
controlava pessoalmente as obras.
«E que trabalho o dele, como médico rural, durante a epidemia
de cólera, quando sozinho, sem assistentes, teve de tomar conta de
vinte e cinco aldeias! E a ajuda que dava aos famintos nos anos de
má colheita! E a sua prática médica, de muitos anos,
principalmente entre os camponeses dos arredores de Moscovo!
Segundo a sua irmã, Maria Pávlovna, que trabalhava com ele como
enfermeira, "dava consultas gratuitas em sua casa a mais de mil
camponeses doentes por ano, e ainda fornecia a cada um deles os
medicamentos." Poderia escrever-se um livro sobre o seu trabalho
em Ialta como membro da Comissão dos Doentes Ambulatórios.
Encarregou-se de tantas obrigações que, afinal, ele sozinho era
toda a Comissão! Muitos doentes de tuberculose chegavam nessa
altura a Ialta sem um tostão no bolso — vinham de Odessa, de
Kichiniov, de Khárkov, só porque sabiam que em Ialta estava Anton
Pávlovitch Tchékhov: "Tchékhov vai ajudar, arranjará dormida,
comida, tratamento!"» (K. Tchukóvski)
É toda esta grande bondade que perpassa pela sua obra literária,
mas não faz dela plataforma ou programa literários, é antes a cor
natural do seu talento. E todos os leitores o adoravam, o que
significava praticamente toda a Rússia porque nos últimos anos de
vida a sua fama era mesmo grandiosa. «Sem a sua sociabilidade
fenomenal, sem aquela vontade permanente de lidar com qualquer
pessoa, sem o seu interesse ferveroso pelas vidas, modos, conversas,
profissões de centenas, de milhares de pessoas nunca teria criado
aquela gigantesca enciclopédia da vida quotidiana russa dos anos
oitenta e noventa que se chama Pequenos Contos de Tchékhov.»
«— Sabe como escrevo os meus pequenos contos? — disse
Tchékhov a Korolenko, jornalista radical e contista, depois de se
terem conhecido. — Olhe.
«Passou o olhar pela mesa — conta-nos Korolenko — pegou no
primeiro objecto que lhe calhou — era um cinzeiro — pô-lo à minha
frente e disse: — Se quiser, amanhã terá um conto... Com o título "O
Cinzeiro".»
E pareceu a Korolenko que uma transformação mágica daquele
cinzeiro começava a dar-se: «Algumas situações indefinidas,
aventuras ainda sem forma começavam já a cristalizar-se em volta
do cinzeiro.»
A saúde de Tchékhov, que nunca fora boa (e que se agravara após
a sua viagem a Sacalina), depressa tornou imperioso que
procurasse um clima mais suave do que o da região de Moscovo.
Sofria de tuberculose. Partiu, primeiro para França, depois
instalou-se em Ialta, na Crimeia, onde comprou uma casa com
pomar. A Crimeia em geral, e sobretudo Ialta, é uma terra
maravilhosa, de clima bastante suave. Tchékhov viveu lá a partir
de finais dos anos 80 até quase à morte, fazendo apenas breves
visitas a Moscovo.
O célebre Teatro de Arte de Moscovo, fundado nos anos 90 por
dois amadores — o actor amador Stanislávski e o literato
Nemiróvitch-Dántchenko (ambos tinham um incrível talento
cénico) — ganhara fama ainda antes das encenações das peças de
Tchékhov, mas foi graças às suas peças que este teatro
verdadeiramente «se encontrou» e se elevou mais na perfeição
artística, dando por sua vez a estas peças uma notoriedade
autêntica. «Chaika», A Gaivota, tornou-se o símbolo do teatro —
uma gaivota estilizada está gravada no pano de cena e nos
programas. Cerejal, O Tio Vânia e Três Irmãs foram um êxito, não
só para o teatro, mas também para o autor. Tchékhov,
mortalmente doente, esteve presente na estreia [do Cerejal], viu os
espectadores entusiasmados, deliciou-se com o triunfo da sua peça
e depois, fraco como nunca, voltou para o seu retiro de Ialta. A sua
mulher Olga Knipper, umas das principais, ou melhor, a principal
actriz do teatro, raramente o visitava em /alta, e sempre por pouco
tempo. Não era um casamento feliz.
Foi em 1904 que Tchékhov, muito enfraquecido, foi à estreia de
Cerejal. Os espectadores não esperavam vê-lo, e o seu aparecimento
provocou aplausos estrondosos. A elite intelectual moscovita
homenageava-o. Faziam-se discursos intermináveis. Era tão
evidente o seu estado de fraqueza que se levantaram vozes na sala:
«Sente-se, sente-se... Que Anton Pávlovitch se sente.»
Passado pouco tempo viajou pela última vez em busca da cura —
desta vez para Badenweiler, na Floresta Negra alemã. Quando
entrou na Alemanha restavam-lhe três semanas de vida. Em 2 de
Julho de 1904, morreu longe da família e dos amigos, entre pessoas
alheias, numa cidade alheia.
Uma coisa é um artista autêntico como Tchékhov, outra é um
artista didáctico como Górki, um desses ingénuos e
desassossegados intelectuais russos que pensavam que bastava
manifestar um pouco de bondade e paciência para com o miserável
e meio selvagem mujique russo, e logo o mundo se transformaria.
Tomemos como termo de comparação o conto de Tchékhov, A Nova
Casa de Campo.
Um engenheiro rico mandou construir para si e para a mulher
uma casa com pomar, fonte, bola de cristal, mas sem terras aráveis
— precisavam de ar puro e de descanso. O cocheiro leva ao ferreiro
uma parelha do dono — dois cavalos esplêndidos, fartos, lisos,
brancos de neve e espantosamente parecidos um com o outro.
«Cisnes, autênticos cisnes» — diz este, olhando para os cavalos
com veneração.
Chega um velho mujique. «São brancos, mais nada — diz com um
sorriso manhoso e irónico — que mais têm? Fossem os meus
alimentados com aveia, seriam lisinhos como estes. É pô-los a
puxar o arado, e chicotada em cima.»
Num conto didáctico, sobretudo num com boas intenções e boas
ideias, esta fala soaria como a voz da própria sabedoria, e o velho
mujique, que com tanta profu.ndeza e simplicidade exprimira a
ideia de um modus vivendi na devida proporção com a existência,
seria depois apresentado como uma jóia de velho, um símbolo da
consciência do campesinato como classe em ascensão, etc.
Entretanto, o quefaz Tchékhov? O mais provávelfoi nem ele próprio
ter reparado que tinha posto na boca do velho camponês uma
verdade sagrada para os radicais da época. Para ele, o importante
era que estas palavras fossem fiéis à vida, fiéis ao carácter humano,
e não a um símbolo — o personagem não é cáustico por causa da
sua sabedoria, mas porque gosta de ser desagradável, estragar a
boa disposição às pessoas: ganhara ódio aos cavalos brancos e ao
cocheiro bem posto e bem nutrido; ele próprio é um homem
solitário, viúvo, com uma vida aborrecida (uma doença qualquer,
que ora dizia ser hérnia, ora lombrigas, impedia-o de trabalhar). O
dinheiro para o seu sustento mandava-lho o filho que trabalhava
numa pastelaria da cidade grande, por isso andava folgado de
manhã à noite e, se via um mujique a carregar com um tronco ou a
pescar, dizia: «Este tronco está podre», ou «Com este tempo, o peixe
não morde.»
Numa palavra, em vez de fazer da personagem uma mensa-gem
didáctica e tentar conseguir aquilo que a Górki e a qualquer outro
escritor soviético se afiguraria a verdade social, ou seja, apresentá-
lo como um modelo de virtudes (como no habitual conto burguês,
em que o herói, se gosta da mãe ou do cão, não pode ser má
pessoa), em vez disso, Tchékhov desenha uma pessoa viva sem se
preocupar com moralizações políticas e tradições literárias. A
propósito, os sábios de Tchékhov são normalmente uns maçadores
que nos lembram Polónio.
A ideia principal que os heróis de Tchékhov sugerem ao leitor —
desde os mais simpáticos aos mais repugnantes — consiste talvez no
seguinte: enquanto na Rússia for inexistente uma verdadeira
cultura moral e espiritual, uma idoneidade e uma riqueza material,
os esforços dos mais nobres e bem intencionados intelectuais, que
vão construindo pontes e escolas ao lado da eterna taberna, serão
baldados. Tchékhov chegou à conclusão de que a arte pura, a
ciência pura, o conhecimento puro, mesmo não chegando
directamente ao povo, dariam mais resultados do que as grosseiras
e desordenadas tentativas destes benfeitores.É de notar que o
próprio Tchékhov era um típico intelectual tchekoviano russo.
Nenhum escritor criou, com tão pouca ênfase, personagens tão
comoventes, que se podem definir com uma citação tirada do conto
Na Carroça: «Não se compreende — pensava ela — por que dá Deus
esta beleza, esta simpatia, estes queridos e tristes olhos a pessoas
fracas, infelizes, inúteis, e por que gostamos tanto delas». Eis o
velho regedor do conto Assuntos de Serviço que se arrasta pela
neve, verstá após verstá, com recados insignificantes e sem sentido
que não pode nem quer compreender. Eis um jovem do conto A
Minha Vida que saiu da confortável casa dos pais para se tornar
um trolha miserável, porque não aguentava a presunção bolorenta
e cruel da vida provinciana com os seus prédios abomináveis que o
pai, arquitecto, construía nas ruas da cidade. Que escritor resistiria
à sedução de um trágico paralelo: o pai constrói as casas, o filho
está condenado a pintá-las? Mas Tchékhov nem sequer se lembra de
insinuar tal circunstância, já sem falar de a acentuar e, assim,
rasgar o próprio tecido da narração. Eis, no conto Casa com
Mezanino, uma frágil rapariga, cujo nome é impossível articular
em inglês, a frágil Missiuss, a tremer na sua blusafina na noite
outonal, e o herói do conto que lhe lança aos ombros fracos o seu
sobretudo; no final, a luz na janela da rapariga e a paixão a
extinguir-se. Eis um velho da Nova Casa de Campo que não
compreende a bondade flácida e inútil do esquisito proprietário
rural, e ao mesmo tempo o abençoa do fundo do coração; ora,
quando a filhinha do senhor, bonequita mimada, chora ao sentir a
hostilidade dos camponeses, o velho tira do bolso um pepino com
migalhas de pão agarradas e dá-lho, dizendo: «Não chores,
pequena, senão a mãezinha faz queixa de ti ao pai e ele bate-te», já
ficamos com uma noção exacta na imaginação dos costumes na
casa do camponês, embora o autor não explique nem acentue nada.
Eis uma mestra-escola da aldeia, no conto Na Caroça, cujos
devaneios comoventes são a cada momento interrompidos pelos
buracos no caminho ou pelas palavras que lhe dirige o carroceiro
chamando-lhe, grosseira mas bondosamente, «Vassílievna». Há
também a Lipa do seu mais impressionante conto, No Barranco,
uma. camponesa submissa e ingénua a quem uma outra mulher
mata com água a ferver o bebezinho nu. E que maravilhoso é um
episódio precedente: o bebé ainda está bem, alegre, e a jovem mãe
brinca com ele — afasta-se até à porta, faz-lhe uma vénia e diz:
«Bom dia, Nikífor Aníssimitch»; depois corre para ele, aperta-o ao
peito, tagarela com ele carinhosamente. Eis, no mesmo conto
divino, um vagabundo desgraçado que fala a Lipa das suas
peregrinações pela Rússia. Uma vez, um senhor viajante, pelos
vistos um deportado político de Moscovo, encontrou-o algures nas
margens do Volga, olhou-lhe para os farrapos, para a cara
macilenta, e chorou: «Ai-ai — disse — que pão negro o teu, que dias
negros os teus...»
Tchékhov foi o primeiro escritor a atribuir às entrelinhas um
papel importante na transmissão do sentido concreto. No mesmo
conto sobre Lipa e o seu bebé há a personagem do marido vigarista
condenado a trabalhos forçados. Antes, praticando com êxito as
suas maquinações, mandava para casa cartas escritas numa letra
muito bonita. Mencionava de passagem que era o seu companheiro
Samoródov quem lhe escrevia as cartas. Não chegamos a
encontrar-nos com esse seu companheiro; mas, quando o marido de
Lipa é mandado para os trabalhos forçados, começam a chegar da
Sibéria cartas dele escritas com a mesma letra. Não se diz mais
nada, mas fica perfeitamente claro que, seja quem for o amigo
Samoródov, está envolvido nos crimes do outro e cumpre, agora, a
mesma pena.
Um editor disse-me uma vez que cada escritor traz gravado
dentro de si um número determinado, isto é, o número exacto de
páginas que nunca ultrapassará em nenhum livro. O meu número
era, salvo erro, o 385. Tchékhov nunca poderia escrever um
verdadeiro romance comprido. Era um sprinter e não um stayer. Dá
a impressão de que não sabia manter focado, durante muito tempo,
o padrão de vida que o seu génio apanhava por todo o lado; só era
capaz de manter o encanto vivo deste padrão pelo período
necessário a um conto, mas não podia conservar os pormenores
necessários a uma narrativa longa e em grande escala. O seu
talento dramático é o mesmo do novelis- ta; os defeitos das suas
peças teatrais são os mesmos que lhe viriam à tona se lhe passasse
pela cabeça ter escrito romances grandes. Tchékhov tem sido
comparado ao escritor francês de segunda Maupassant (chamado,
sabe-se lá porquê, de Maupassant) e, embora no sentido artístico
esta comparação seja insultuosa para Tchékhov, os dois têm um
traço em comum: ambos têm respiração curta. Quando
Maupassant se obrigava a forçar os espaços que saíam muito do
seu talento natural e escrevia romances como Bel Ami ou Une Vie,
no melhor dos casos resultava uma série de contos artificialmente
engatados uns nos outros, bastante irregulares e sem uma corrente
subaquática a atravessar todo o livro, corrente tão natural no estilo
de romancistas inatos como Flaubert ou Tolstói. À exclusão de um
faux-pas da juventude, Tchékhov não escreve nenhum grosso
volume. Os seus textos mais extensos, Duelo e Três Anos, são
também contos .
Tchékhov escrevia livros tristes para pessoas alegres; quero dizer
com isto que só um leitor com sentido de humor será ca-paz de
sentir a fundo a tristeza deles. Há escritores que emitem um som
intermédio entre o riso abafado e o bocejo — muitos deles, a
propósito, são humoristas profissionais. A outros, por exemplo a
Dickens, sai uma coisa intermédia da risada e do soluço. Existe
também uma variedade horrível de humor utilizada de propósito
pelo autor para dar um escape puramente técnico depois de uma
tempestuosa cena trágica, mas o truque nada tem a ver com a
verdadeira literatura. O humor de Tchékhov é alheio a isso tudo; é
um humor puramente tchekhoviano. O mundo, para ele, é cómico e
triste ao mesmo tempo, e sem repararmos na sua comicidade não
compreenderemos a sua tristeza, porque são inseparáveis .
Os críticos russos têm escrito que nem o estilo Tchékhov, nem a
escolha das palavras, nem o resto revelavam aquela minúcia
especial que obcecava escritores como Gógol, Flaubert ou Henry
James. O vocabulário de Tchékhov é pobre, as combinações de
palavras são quase banais; são-lhe alheios um verbo sumarento,
um adjectivo de estufa, um epíteto de menta e natas servidos numa
bandeja de prata. Não foi um virtuose da linguagem como Gógol; a
Musa dele vestia sempre a roupa de todos os dias . Por isso é
apropriado referir Tchékhov como exemplo de que é possível ser-se
artista perfeito mesmo sem o brilho insólito da técnica verbal, sem
um cuidado excepcional nas elegantes flexões da frase. Quando
Turguénev se põe a falar da paisagem, nota-se a sua preocupação
pelo vinco das calças da sua frase; cruzando a perna, lança olhares
sorrateiros para a cor das meias. A Tchékhov nada disso importa —
não porque tais pormenores não tenham importância, já que são
naturais e muito importantes para escritores de determinado
carácter —, é-lhe indiferente, porque, pela sua natureza, ele era
alheio a quaisquer invenções verbais. Mesmo uma ligeira
incorrecção gramatical ou um chavão jornalístico não o
preocupavam minimamente. A magia da sua arte reside em que,
apesar da tolerância para com as suas próprias falhas — que até
um novato brilhante poderia evitar com muita facilidade — apesar
da prontidão para se satisfazer com a primeira palavra que lhe
aparecesse, Tchékhov sabia transmitir a sensação do belo, coisa de
todo inacessível a muitos escritores que pensavam saber que a
prosa de luxo é que era rica. Tchékhov consegue este efeito
iluminando todas as palavras com uma luz baça e igual, dando-lhe
o mesmo matiz cinzento — a meio caminho entre uma vedação
velha e uma nuvem pesada. A diversidade de entoações, o cintilar
da fascinante ironia, a arte profanda da par- cimónia de
caracterização, a viveza dos pormenores, e o definhar da vida
humana — tudo traços puramente tchekhovianos — são
impregnados e rodeados pela neblina iriada e imprecisa das
palavras.
O seu humor calmo e subtil atravessa o cinzento das vidas por ele
criadas. Para a crítica russa filosófica ou com preocupações sociais,
Tchékhov tornou-se um incomparável intérprete de um
incomparável tipo russo. É-me bastante complicado explicar que
tipo é esse, porque está intrinsecamente ligado à história
psicológica e social da Rússia do século XIX. Não seria
completamente correcto dizer que Tchékhov se ocupa de pessoas
simpáticas mas ineficazes. Seria melhor dizer que os seus homens e
mulheres são simpáticos precisamente por serem ineficazes. O que
na verdade atraiu o leitor russo foi o facto de, nos heróis de
Tchékhov, o leitor reconhecer o tipo do intelectual russo, do
idealista russo, um ser estranho e comovedor, pouco conhecido no
estrangeiro e incapaz de viver na Rússia Soviética. O intelectual
tchekhoviano era alguém que, a uma profunda probidade, aliava
em si uma inépcia quase ridícula para concretizar os seus ideais e
princípios, uma pessoa devotada à beleza moral, ao bem da
humanidade, mas incapaz de qualquer trabalho prático na sua vida
privada; uma pessoa que saiu da sua vida provinciana para
mergulhar na neblina dos sonhos utópicos; uma pessoa que sabe
com precisão o que é bom e para o que vale a pena viver, mas ao
mesmo tempo se atola cada vez mais na lama. de uma existência
enfadonha; uma pessoa infeliz no amor, desesperadamente
azarenta em tudo, uma pessoa boa incapaz de fazer o bem.
Tomando a forma de médico, de estudante, de mestre-escola e de
gente de muitos outros ofícios, é este o ser humano que atravessa
todos os contos de Tchékhov.
O que mais irritava os seus críticos politizados era o facto de este
tipo não pertencer a um qualquer partido político determinado e de
o autor não o ter dotado de um programa político bem definido.
Aqui é que bate o ponto. Os ineficazes intelectuais de Tchékhov não
eram terroristas nem social-democratas, nem futuros bolcheviques,
nem nenhum dos inúmeros membros dos inúmeros partidos
revolucionários da Rússia. O importante é que o herói típico
tchekhoviano é um azárento defensor da verdade humana
universal, indefinida mas bela, que se carregou com um fardo que é
incapaz de suportar e que também não pode alijar. O que vemos em
todos os contos de Tchékhov é um contínuo tropeçar, mas quem
tropeça é sempre alguém que se distrai a olhar para as estrelas. É
sempre infeliz e faz os outros infelizes; não quem está mais perto
dele, mas quem está mais longe. Os sofrimentos dos negros num
país distante, de um cúli chinês, de um operário dos Urais
provocam-lhe mais dor de coração do que os malogros do vizinho
ou as desgraças da mulher. Tchékhov tirava especial prazer
literário do registo das mais pequenas variedades deste tipo de
intelectuais de antes da guerra e da revolução. Tais pessoas eram
capazes de sonhar, mas incapazes de governar. Destruíam as suas
vidas e as dos outros. Eram tolas, fracas, fiteis, histéricas; mas, por
trás de tudo isto, ouve-se na voz de Tchékhov: abençoado o país que
soube gerar este tipo humano. Eles deixavam escapar as ocasiões,
evitavam agir, não dormiam à noite inventando mundos que não
sabiam construir; mas a própria existência destas pessoas, cheias
de uma abnegação apaixonada e ferverosa, de pureza espiritual, de
elevação moral, o simples facto de estas pessoas terem vivido e
talvez ainda viverem hoje, algures, na implacável e reles Rússia
actual é uma promessa de faturo melhor, para todo o mundo,
porque, de todas as leis da natureza, a mais maravilhosa é talvez a
da sobrevivência dos mais fracos.
Foi deste ponto de vista que apreciaram Tchékhov aqueles que se
preocupavam, em igual medida, com as desgraças do povo russo e
com a glória da literatura russa. Ainda que alheio a uma
mensagem social ou ética directa, o génio de Tchékhov desvendou
mais aspectos tenebrosos da Rússia camponesa fa-minta,
desorientada, escrava, malfadada, do que o grande número de
outros escritores, do género de Górki, em cujos livros são
apresentadas ideias sociais em forma de marionetas pintadas. Digo
mais: uma pessoa que prefira Dostoiévski ou Górki a Tchékhov
nunca chegará a compreender a essência da lite-ratura russa e da
vida russa, e, o que é ainda mais importante, a essência da arte
literária em geral. Os russos tinham um jogo: dividir os seus
conhecidos em adeptos e adversários de Tchékhov, e avaliá-los
nesta base.
Aconselho do fendo do coração que abram o maior número
possível de vezes os livros de Tchékhov (mesmo nas traduções que
eles sofreram) para, esquecidos de tudo, viverem estes sonhos
fabulosos tal como foram concebidos. No século dos Golias, torres
de força, é útil lembrarmo-nos dos frágeis Davides. Paisagens
tristes, salgueiros estiolados inclinados ao longo dos caminhos
lamacentos, gralhas cinzentas a atravessarem o céu cinzento, uma
recordação que inesperadamente soprou de um canto miserável —
toda esta comovedora imprecisão, toda esta amorável fraqueza,
todo este mundo tchekhoviano pardacento murmurado em voz
baixa é digno de ser guardado no meio do brilho dos poderosos e
convencidos mundos que nos prometem os adoradores de Estados
totalitários.

Extraído de Vladimir Nabokov, Lectures on Russian Literature,


«Anton Chekhov (1860-1904)», pp. 245-255, A Harvest Books, Nova
Iorque (1982).
Contos
SAUDADE

A quem revelar a minha tristeza?...

Crepúsculo do entardecer. Farrapos de neve grossos e húmidos


rodopiam em volta dos lampiões acabados de acender e pousam em
camada fina e macia sobre os telhados, nos lombos dos cavalos, nos
ombros das pessoas, nos gorros. O cocheiro lo-na Potápov está todo
branco, um fantasma. Curvado, na curvatura máxima possível a um
corpo vivo, está sentado na boleia e nem se mexe. Se porventura
caísse em cima dele um morro de neve, parece que não a sacudiria...
A eguazinha dele também está branca e imóvel. Aquela imobilidade,
o anguloso das formas, o esgalhado das patas fazem-na parecer,
mesmo de perto, um doce de mel a um copeque em forma de
cavalinho. Parece mergulhada em pensamentos. Quem foi arrancada
do arado, das habituais imagens cinzentas, e atirada para aqui, para
este pântano cheio de luzes monstruosas, de um estrepitar
incessante e de gente a correr, não pode evitar reflectir...
Iona e a sua eguazinha há muito que não arredam do lugar.
Largaram de casa antes do almoço, e ainda não se estrearam. Ora, já
desce sobre a cidade a bruma da noite. A palidez dos lampiões cede
lugar às cores vivas, a azáfama da rua toma-se mais ruidosa.
— Cocheiro, para a Víborgskaia! - ouve Iona. - Eh, cocheiro !
Iona estremece e, através das pestanas coladas pela neve, vê um
militar de capote e capucho.
— Para a Víborgskaia! - repete o militar. - Estás a dormir ou quê?
Bate lá para a Víborgskaia!
Iona puxa as rédeas, em sinal de concordância, e faz cair camadas
de neve dos lombos da égua e dos ombros dele... O militar senta-se
no trenó. O cocheiro faz estalar os lábios, estica o pescoço à maneira
de um cisne, soergue-se e, mais por hábito do que por necessidade,
levanta o chicote. O cavalico que também estica o pescoço, entorta os
galhos das patas e arranca indeciso...
— Por onde achas que vais, seu diabo? — Iona ouve logo os berros
saídos da massa escura que se movimenta para trás e pa-ra diante. —
Por onde raio é que vais? Mantém-te à direita!
— Não sabes guiar? Mantém-te à direita! — zanga-se o militar.
O cocheiro de uma berlinda ralha, um transeunte que atravessava
a rua e roçou com o ombro no focinho da égua olha raivoso e sacode
a neve da manga. Iona remexe-se na boleia como sobre brasas,
espeta os cotovelos para os lados e revira os olhos como doido, como
se não percebesse onde estava e para quê.
— Os canalhas, han! — ironiza o militar. — Fazem tudo para
esbarrar contigo ou ser atropelados. É uma conspiração.
Iona vira a cabeça para o freguês e mexe os lábios ... Quer dizer
alguma coisa, mas da garganta só lhe sai um rouquido.
— O quê? — pergunta o militar.
Iona entorta a boca num sorriso, força a garganta e diz, rouco:
— Tocou-me a mim, meu senhor, pois ... morreu-me o filho esta
semana.
— Humm! ... E morreu de quê?
Iona vira-se com todo o corpo para o passageiro e diz:
— Vá-se lá saber! Das febres, se calhar... Ficou três dias no hospital
e morreu ... A vontade de Deus.
— Vira, seu diabo! — ouve-se na escuridão. — Estás cego ou quê,
rafeiro velho? Abre os olhos!
— A andar, a andar... — diz o passageiro. — Assim, nem amanhã lá
chegamos. Aperta com isso!
O cocheiro volta a esticar o pescoço, a soerguer-se e, com uma
graciosidade pesada, brande o chicote. Depois volta repetidas vezes a
cabeça para o passageiro, mas já este fechara os olhos, sem
disposição para o ouvir. Feito o serviço para a Víborgskaia, Iona pára
em frente de uma casa de pasto, curva-se todo e de novo deixa de se
mexer... A neve húmida volta a pintámos de branco, a ele e à
eguazinha. Passa uma hora, outra...
Pelo passeio, batendo ruidosamente com as galochas e bara-
fustando entre si, caminham três rapazes: dois são altos e esbeltos, o
terceiro é pequeno e corcunda.
— Para a Ponte Politséiski, cocheiro! - grita numa voz de cana
rachada o corcunda. - Três pessoas ... vinte copeques!
Iona agita as rédeas e estala os lábios. Vinte copeques não é preço
que se ajuste, mas não está para pensar no preço ... Um rublo ou
cinco copeques - para ele, agora, tanto faz, importa é ter fregueses ...
Os jovens, empurrando-se e praguejando, chegam-se ao trenó e
trepam todos de uma vez para o assento. Têm de resolver o
problema: quem são os dois que vão sentados, qual tem de ir em pé?
Depois de longa discussão, queixas e acusações mútuas, resolvem
que o corcunda, como é mais pequeno, vai de pé.
— Vá lá, aperta com isso! - esganiça-se o corcunda, acomo- dando-
se de pé e respirando para a nuca de Iona. - Mexe esse chicote! Lindo
gorro o teu, amigo! Não há-de haver pior em toda a cidade de
Petersburgo !
— Hi-hi... hi-hi ... - ri Iona. - É o que há...
— O que há, digo-te eu, é que apertes com isso! Vais fazer a corrida
toda nesse andamento? É isso? E se levasses?...
— Parece que me estala a cabeça... - diz um dos esgrouvia- dos... -
Ontem, em casa dos Dukmássov, eu e o Vasska emborcámos quatro
garrafas de conhaque pelos dois.
— Não percebo qual é a necessidade de mentir tanto! — irrita-se o
outro esgrouviado. - Mente, este porco.
— Deus me castigue se não é verdade ...
— Tão verdade como o piolho tossir.
— Hi-hi! - solta Iona uma risadinha. - Mas que pâ- -ândegos, estes
senhores!
— Porra para isto, diabos te carreguem! ... - indigna-se o corcunda.
- Vais andar com isto ou não, peste caduca? Já se viu alguém andar
assim? Carrega-lhe c'o chicote! Arre, diabo! Arre! Chega-lhe, com
força!
Iona sente atrás das costas o corpo desinquieto e a voz tre-mente
do corcunda. Ouve as injúrias que lhe caem em cima, vê gente, a
solidão começa a dissipar-se-lhe a pouco e pouco do peito. O
corcunda pragueja até se engasgar, numa combinação requintada e
variada de palavrões e tosse desgarrada. Os esgrouviados começam a
falar de uma tal Nadejda Petrovna. Iona volta a cabeça para eles.
Aproveitando uma pausa curta, vira-se ainda mais e murmura:
— Foi esta semana, senhores ... pois ... morreu-me o filho!
— Todos havemos de morrer... - suspira o corcunda, limpando os
lábios molhados da tosse. - Anda mas é para a frente, chega-lhe! Oh,
senhores, eu não posso continuar neste passo, sinceramente! Com
um tipo assim, quando chegaremos ao destino?
— Nesse caso anima-o um bocadito ... no cachaço!
— Estás a ouvir, peste caduca? Levas já duas cachaçadas!.. . Quem
faz cerimónias com esta raça de cocheiros mais vale andar a pé!...
Estás a ouvir, bruxo velho? Ou não ligas ao que a gente te diz?
E Iona ouve, mais do que sente, os estalos das cachaçadas.
— Hi-hi - ri-se. - Mas que pândegos, estes senhores ... Deus vos dê
saúde!
— Cocheiro, és casado? - pergunta um dos esgrouviados.
— Eu? Hi-hi ... senhores tão pândegos! Agora só tenho uma
mulher: a terra ... Hi-hi-hi ... Quer dizer, a cova! Morreu-me o filho e
eu estou vivo... Que coisa, a morte enganou-se na porta... Levou-me o
filho, em vez de me levar a mim ...
E,já Iona se vira para contar como lhe morreu o filho, quando o
corcunda suspira de alívio e declara que, graças a Deus, até que
enfim tinham chegado. Iona recebe os vinte copeques e fica a olhar
demoradamente para as costas dos pândegos, que se sumiram pela
entrada escura de um prédio. Outra vez sozinho, outra vez envolto
em silêncio ... Aquela saudade, que por um tempinho se abrandara,
oprime-lhe o peito com mais força ainda. Os olhos de Iona
percorrem sôfregos e inquietos as chusmas que formigam de ambos
os lados da rua: não haverá entre aqueles milhares de pessoas quem
aceite ouvi-lo? Mas a multidão corre sem atentar nele, nem naquela
saudade... Uma saudade tão grande, tão sem fim. Se o peito de Iona
rebentasse e aquela saudade se derramasse, inundaria o mundo,
contudo ninguém a vê. Tão mísera a casca em que a saudade se
meteu e, mesmo assim, nem à luz do dia se vê ...
Iona vê um guarda-portão com um saquinho de esteira e mete
conversa com ele.
— Que horas são, amigo? - pergunta.
— Passa das nove ... Que fazes aí especado? Passa!
Iona avança uns passos, curva-se e entrega-se à saudade ... Não
merece a pena falar com os outros - pensa. Mas nem cinco minutos
passam e já se endireita, sacode a cabeça, como picado por uma dor
aguda, e sacode as rédeas ... Não aguenta.
«Para casa - pensa. - Para casa!»
E a eguazinha, como que adivinhando-lhe o pensamento, me-te a
trote. Hora e meia depois já Iona está sentado à beira do fogão sujo e
grande. Os corpos estiram-se por todo o lado, pelo chão, nos bancos,
no catre por cima do fogão(1). O ar está abafadiço e fedorento ... Iona
põe-se a olhar para os que dormem, coça-se e arrepende-se de ter
voltado tão cedo para casa...
«Nem para a aveia ganhei - pensa. - Por isso é que se meteu em
mim esta tristeza. Um homem que sabe do seu ofício... que anda
farto e que o cavalo dele anda farto, sempre tem outro sossego ...»
Num dos cantos soergue-se um cocheiro, um jovem, resmunga
sonolento e estende a mão para o caneco da água.
— Estás com sede? — pergunta Iona.
— Pois estou!
— Então... bebe ... Olha, amigo, sucede que me morreu o filho ...
Estás a ouvir? Esta semana, no hospital... Foi uma coisa!
Iona sonda o efeito que terão produzido no outro aquelas palavras,
mas não vê nada. O rapaz já se agasalhava, cobria a cabeça, já
dormia. O velho suspira e coça-se ... Tinha tanta vontade de falar
como o rapaz de beber. Já lá vai uma semana que o filho lhe morreu
e ainda não falou com ninguém como é devido... Uma conversa a
sério, sem pressas ... Explicar como o filho ficou doente, o que ele
sofreu, o que disse na hora da morte, como se ficou ... O enterro,
como foi ao hospital buscar a roupa do defunto. Na aldeia ficou a
filha Aníssia... Dela também, dela também era preciso falar... Coisas
de que falar não faltam. Alguém que ouça, se aflija, suspire, se
compadeça... Para se falar, o melhor ainda são as mulheres. Ainda
que tontas, com duas palavras já choram.
«Vamos lá a ver o animal — pensa Iona. — Para dormir tens
tempo, ainda te hás-de fartar de dormir...»
Veste-se e sai à cavalariça, para ver a égua. Pensa na aveia, no
feno, no tempo... No filho não pensa, quando está sozinho não pode
... Pode falar dele com alguém, isso pode, mas pensar nele a sós
consigo próprio, imaginá-lo, é insuportável e assustador...
— A dares ao dente, não? — pergunta Iona à égua, vendo-lhe os
olhos brilhantes. — Vá lá, mastiga, mastiga... Já que não ganhámos
para a aveia, comemos feno ... É o que eu te digo . .. Já estou velho
para cocheiro ... Isso era para o meu rapaz, já não é para mim ... Esse
é que era um cocheiro ... Se fosse vivo ...
Iona fica um pedaço calado, depois continua:
— É assim a vida, eguazinha amiga... Já cá não está o Kuzmá
Iónitch ... Entregou a alma ao Criador... De repente, sem mais nem
menos, apagou-se... É assim: digamos que tu tens um potrinho, que
és a mãe do potrinho... E de repente, é um supor, o teu potrinho
entrega a alma ao Criador... Grande pena, não era?
A égua mastiga, ouve e respira para as mãos do dono.
Iona não tem mão em si e conta-lhe tudo ...
BRINCADEIRA

Um meio-dia luminoso de Inverno ... Um frio rijo, de rachar, e à


Nádenka, de braço dado comigo, cobrem-se-lhe os caracolinhos das
têmporas e a penugem do buço com uma geada de pra-ta. Estamos
num morro alto. Dos nossos pés até lá baixo estende-se um declive
liso em que o sol se olha como num espelho. Junto a nós, um
pequeno trenó forrado de pano vermelho.
— Vamos escorregar, Nadejda Petrovna! - imploro-lhe eu. - Só
uma vez! Garanto-lhe que chegamos lá baixo sãos e salvos.
Mas Nádenka tem medo. O espaço que se empina desde as suas
pequeninas galochas até ao fundo parece-lhe um verdadeiro
precipício assustador, desmedidamente fundo. Basta-lhe olhar para
baixo, basta eu propor-lhe que se sente no trenó, e já lhe esmorece o
ânimo, se lhe entrecorta a respiração; o que não será se se arriscar a
lançar-se pelo precipício abaixo? Aí morre, enlouquece.
— Suplico-lhe! - digo eu. - Não tenha medo! Bem vê que isso é
fraqueza, uma cobardia sua!
Por fim, Nádenka concorda, e vejo-lhe na cara que a sua cedência é
como arriscar a vida. Sento-a no trenó, pálida e tremente, envolvo-a
com um braço e lanço-me com ela no abismo.
O trenó voa como uma bala. O ar que cortamos chicoteia-nos o
rosto, rosna, assobia aos ouvidos, belisca de raiva, quer-nos arrancar
a cabeça dos ombros. A força do vento não nos deixa respirar. Parece
que o próprio diabo nos abraçou com as patas e, com um rugido, nos
arrasta para o inferno. Dos lados do trenó tudo se funde numa faixa
comprida a correr vertiginosamente ... Mais um pouco e morremos,
parece!
— Amo-a, Nádia! - digo a meia voz.
Agora o trenó já desliza mais devagar, cada vez mais devagar, o
rugido do vento e o zumbir dos patins já são menos assusta-dores, já
não se entrecorta a respiração e, logo, estamos em baixo. Nádenka
está mais morta do que viva. Pálida, quase não respira... Ajudo-a a
levantar-se.
— Por nada deste mundo eu volto a descer - diz ela, arre-galando
para mim uns olhos cheios de terror. - Por nada deste mundo. Por
pouco não morri!
Pouco depois, recomposta, começa então a espreitar-me nos olhos,
interrogativa: teria sido eu que disse aquilo ou foi iludida pelo
barulho de furacão da descida? Por mim, estou ao pé dela, a fumar, a
examinar com muita atenção a minha luva.
Pega-me pelo braço e passeamos demoradamente pelo sopé do
monte. O enigma, pelos vistos, não a deixa em paz. Foram ou não
foram proferidas aquelas palavras? Sim ou não? Sim ou não? É uma
questão de amor-próprio, honra, vida, felicidade, uma questão muito
importante, a questão mais importante do mundo. Nádenka
perscruta-me a cara com um olhar triste, impaciente, responde a
despropósito, está à espera que eu fale. Oh, que rosto lindo, que jogo
de expressões! Vejo que luta consigo própria, que tem necessidade de
falar, de dizer alguma coisa, de perguntar, mas não acha as palavras,
embaraça-se, tem medo, a felicidade impede-lho ...
— Sabe uma coisa? - diz sem olhar para mim.
— O quê?
— E se fôssemos ... escorregar mais um vez?
Subimos ao monte de gelo por uma escada. De novo sento a pálida
e tremente Nádenka no trenó, de novo voamos para o precipício
terrível, de novo ruge o vento e zumbem os patins, e de novo, no
momento mais vertiginoso e atroador da descida, digo a meia voz:
— Amo-a, Nádenka!
Quando o trenó pára, Nádenka passa o olhar pelo monte que
acabáramos de descer, depois perscruta a minha cara
demoradamente, escuta a minha voz indiferente e impassível, e toda
ela, todinha, até ao regalo e ao capucho dela, toda a figura dela
exprimem uma perplexidade extrema. Está-lhe escrito na cara:
«O que se passa aqui? Quem disse aquilo? Foi mesmo ele, ou
pareceu-me?»
Esta incerteza desassossega-a, faz-lhe perder a paciência. A pobre
nem responde às perguntas, carrega o sobrolho, está prestes a
chorar.
— Não quer ir para casa? - pergunto-lhe.
— Eu ... eu gosto de escorregar no trenó - diz ela corando. - E se
fôssemos mais uma vez?
«Gosta» de escorregar mas, ao sentar-se no trenó, está como das
outras vezes, pálida, quase não respira de medo, treme.
Descemos pela terceira vez, e vejo como ela me olha na cara, me
segue o movimento dos lábios. Mas eu aperto um lenço contra os
lábios, tusso e, chegados a meio do monte, consigo pronunciar:
— Amo-a, Nádia!
E o enigma continua enigma! Nádenka está calada, pensa...
Acompanho-a a casa, ela tenta ir mais devagar, abranda o passo,
sempre à espera que eu diga aquelas palavras. E vejo como a alma
dela sofre, que esforço faz para não dizer:
«Não é possível que tenha sido o vento! Também não quero que
tenha sido o vento!»
No dia seguinte, de manhã, recebo um bilhete: «Se for hoje ao
monte de gelo, venha buscar-me. N.» Desde então vou todos os dias
com Nádenka ao monte de gelo e, ao voarmos a pique no trenó,
pronuncio sempre a meia voz as mesmas palavras:
— Amo-a, Nádia!
Nádenka depressa criou o hábito desta frase, como se cria o hábito
do vinho ou da morfina. Não pode viver sem ela. É verdade que
escorregar pelo monte de gelo continua a meter-lhe medo, mas agora
o medo e o perigo dão um fascínio especial a estas palavras de amor,
palavras que continuam a ser um enigma e lhe moem a alma. Os
suspeitos continuam a ser os mesmos: eu e o vento ... Não sabe qual
dos dois lhe segreda o seu amor, mas, pelos vistos, já não se importa;
seja qual for a taça, o principal é inebriar-se.
Sucedeu que, ao meio-dia, fui sozinho ao monte; escondido entre a
multidão, vejo Nádenka a aproximar-se do monte, a procurar-me
com os olhos ... Depois, sobe timidamente as escadas ... E se mete
medo descer sozinha, oh, que medo! Está pálida como a neve, treme,
caminha como quem vai para a execução, mas vai, anda sem hesitar,
decidida. Pelos vistos, terá resolvido tirar a prova: ouvirá as palavras
maravilhosas, doces, não estando eu com ela? Vejo-a, pálida, com a
boca aberta de terror, a sentar-se no trenó, a fechar os olhos,
despedindo-se para sempre da terra, vejo-a a partir... «Z-z-z» -
zumbem os patins. Não sei se Nádenka ouve essas palavras ... Só a
vejo a sair do trenó, fraca, abalada. Pela cara dela, não saberá se
ouviu ou não ouviu alguma coisa. Enquanto deslizava, o medo deve
ter-lhe tirado a capacidade de ouvir, de distinguir os sons, de
perceber...
Chega o primaveril Março ... O sol é já mais carinhoso. O nosso
monte de gelo escurece, perde o brilho e, por fim, derrete. Acabaram-
se os passeios de trenó. A pobre da Nádenka já não tem onde ouvir
aquelas palavras, também já ninguém lhas pode dizer, porque o
vento se calou e eu me preparo para ir a Petersburgo - por muito
tempo, talvez para sempre.
Uma vez, antes da minha partida, uns dois dias antes, estava eu
sentado ao crepúsculo num jardinzinho, separado do quintal de
Nádia por um tapume alto e espetado de pregos ... Ainda estava frio,
por baixo do estrume ainda havia neve, as árvores ainda estavam
despidas, mas já cheirava à Primavera, e as gralhas, acomodando-se
para dormir, gritavam alto. Aproximo-me da cerca e fico muito
tempo a espreitar por uma fenda. Vejo como Nádenka sai para a
soleira e lança um olhar triste, angustiado, para o céu ... O vento
primaveril sopra-lhe directamente no rosto pálido, sofrido ...
Lembra-lhe o vento que outrora nos rugia no monte e como ela ouvia
aquelas duas palavrinhas, e o rosto dela toma-se triste, muito triste,
pela face desliza-lhe uma lágrima... E a pobre rapariga estende as
duas mãos como que a pedir que o vento lhe traga outra vez aquelas
palavras ... Então, fico à espera que o vento sopre para dizer a meia
voz:
— Amo-a, Nádia!
O que acontece com Nádenka, santo Deus! Solta um grito, abre-se
num sorriso amplo e estende as mãos ao encontro do vento, alegre,
feliz, tão bonita.
E eu vou fazer as malas ...
Isso foi há muito tempo. Nádenka já se acomodou: casaram-na ou
casou de livre vontade — tanto faz — com um funcionário da tutela,
tem três filhos. Mas não esqueceu como íamos os dois para o monte
de gelo, como o vento lhe trazia aquele «amo-a, Nádenka!»; para ela,
é agora a mais feliz, a mais comovente e maravilhosa lembrança de
toda a sua vida ...
Quanto a mim, agora que fiquei maduro, já não compreendo por
que lhe dizia aquelas coisas, por que brincava assim...
O AMOR

«Três da madrugada. Pelas janelas olha-me uma noite calma de


Abril e pisca carinhosamente para mim as suas estrelas. Não durmo.
Estou tão bem!
Todo o meu ser, da cabeça aos pés, é insuflado por um sentimento
estranho, incompreensível. Não consigo analisá-lo agora, não tenho
tempo, tenho preguiça, fique a análise com Deus! Procurará o
sentido das suas sensações uma pessoa que cai de cabeça do
campanário ou acaba de saber que ganhou duzentos mil? Estará para
isso?»
Começava mais ou menos assim uma carta de amor para Sacha,
menina de dezanove anos por quem me tinha apaixonado. Cinco
vezes a recomecei, cinco vezes rasguei folhas, risquei páginas inteiras
e voltei a escrevê-las. Atarefei-me em tomo da carta com vagares,
como em tomo de um romance encomendado, não porque quisesse
uma carta mais comprida, mais doce e sentimental, mas porque me
apetecia prolongar até ao infinito o próprio processo da escrita,
sozinho no silêncio deste meu gabinete por onde espreita a noite
primaveril, conversando com os meus próprios devaneios. Via por
entre as linhas a imagem querida e era como se à minha mesa se
sentassem também os espíritos a rabiscar nas folhas, ingenuamente
felizes, sorridentes e tolos de beatitude como eu. Ia escrevendo e,
volta e meia, olhava para a minha mão, a enlanguescer ainda do
último aperto das mãos dela, e se me ocorria desviar os olhos para o
lado via a grade da cancela verde. Era por trás dessa grade que Sacha
me olhava depois de eu me ter despedido dela. Quando me despedia
de Sacha, não pensava em nada, só lhe admirava a figura, como
qualquer homem decente admira uma mulher bonita; pois bem,
quando através da grade vi também dois olhos grandes, percebi de
repente, como numa inspiração, que estava apaixonado, que entre
nós estava tudo claro e decidido, que faltaria apenas cumprir
algumas formalidades.
É também um grande prazer selar uma carta de amor, vestir-se
sem pressas, sair com todo o vagar de casa transportando aquele
tesouro até à caixa do correio. No céu já não há estrelas; em vez
delas, a oriente, clareia por cima dos telhados uma faixa comprida,
interrompida a espaços pelas nuvens; é dessa faixa que se derrama
por todo o céu a luz pálida. A cidade dorme, mas já saíram à rua os
aguadeiros, e algures, numa fábrica ao longe, a sereia acorda os
operários. Perto da caixa do correio tenuamente recamada de
orvalho, veremos sem falta o canhestro guarda-varredor com o seu
tulup(2) campanular e de bastão em punho. Encontra-se no estado
cataléptico: não dorme nem está acordado, é qualquer coisa
intermédia...
Se as caixas do correio soubessem quantas vezes as pessoas se
dirigem a elas para decidirem os seus destinos, não teriam aquele ar
tão resignado. Eu, ao menos, por pouco não cobri de beijos a minha
caixa do correio e, olhando para ela, compreendi que os correios são
o bem supremo!.. .
Lembro a quem já alguma vez esteve apaixonado que, depois de
metermos a carta na caixa do correio, nos apressamos nor-malmente
a voltar a casa, nos deitamos rapidamente na cama e nos
agasalhamos no cobertor, com a certeza de que no dia se-guinte, mal
acordemos, nos sentiremos abraçados pela recordação do que se
passou na véspera e olharemos, enlevados, para a janela em que
penetra ansiosamente, através das pregas da cortina, a luz do dia ...
Mas vamos ao que interessa... No dia seguinte, ao meio-dia, a
criada de quarto de Sacha traz-me uma resposta: «Estou muito
contente venha hoje cá a casa por favor sem falta vou esperá-lo. A
sua S.» Esta falta de pontuação, o errozinho no «sem falta», toda a
carta, até o envelope comprido que a continha, encheram-me a alma
de enternecimento. Na letra espaçosa mas tímida reconheci o andar
de Sacha, o seu jeito de erguer muito as sobrancelhas quando ria, o
seu mover de lábios ... Mas o conteúdo da carta não me satisfez ...
Em primeiro lugar, não se responde assim a cartas poéticas e, em
segundo, para que preciso eu de ir a casa de Sacha e ficar à espera
que a mãezinha gorda, os maninhos e as comensais se lembrem de
nos deixar a sós? Aliás, nunca se vão lembrar disso, e nada é mais
repugnante do que contermos as emoções só porque está especada
ao pé de nós uma insignificância animada do género velhota meio
surda ou uma miudinha a assediar-nos com perguntas. Mandei
resposta pela criada sugerindo a Sacha um rendez-vous nalgum
jardim ou bulevar. A minha proposta foi aceite de bom grado. No
tocante a ela eu acertara, como se diz, em cheio.
Passava das quatro quando penetrei no canto mais afastado do
jardim municipal. Nem vivalma no jardim, de modo que o encontro
poderia ter sido menos recôndito, nas alamedas ou nos pavilhões ,
mas as mulheres não gostam de romances pela meta-de; havendo
mel tem de haver colher e, tratando-se de um encontro de amor, pois
que seja servido no bosque mais deserto e intransitável, nem que o
risco seja topar com um trapaceiro ou um vilão à procura de
pândega.
Quando me aproximei de Sacha estava ela de costas para mim,
costas essas onde entrevi uma quantidade diabólica de mistério. As
costas, a nuca e as pintinhas pretas do vestido pareciam dizer: psiu!
A rapariga estava de vestidinho simples, de chita, por cima do qual
lançara uma capinha leve. Para se dar mais mistério, ocultara a cara
por trás de um véu branco. Eu, pa-ra não estragar a harmonia, tinha
de aproximar-me em bicos de pés e começar a falar em sussurro.
Se bem percebo agora, a minha pessoa não era a essência do
rendez-vous, mas tão-só um pormenor. Sacha estava interessada,
não tanto em mim, mas no romantismo e mistério do encontro, nos
beijos, no silêncio das árvores sombrias, nas juras ... Nem um
instante ela se quedou esquecida, de respiração suspensa, nunca
despiu da cara a expressão de mistério, e penso eu, palavra de honra,
que se estivesse no meu lugar um Ivan Sídoritch ou um Sídor
Ivánitch qualquer ela se teria sentido na mesma muito bem. Vá lá
perceber-se, nestas circunstâncias, se gostam ou não de nós! E se
gostarem, será ou não de amor verdadeiro?
Do jardim levei Sacha para minha casa. A presença da mulher
amada em casa do celibatário faz o efeito da música e do vinho.
Normalmente, começamos por falar do futuro, e aí a nossa convicção
e presunção não têm limites. Construímos projectos, planos, falamos
com fervor de como vamos ser futuros generais, quando ainda não
somos alferes, numa palavra, vertemos tanta eloquência disparatada
que a interlocutora precisa de muito amor e inexperiência da vida
para se nos confiar. Felizmente para os homens, as mulheres
apaixonadas ficam sempre cegas de amor e nunca conhecem a vida.
Não só se nos confiam como empalidecem de êxtase místico por nós,
veneram-nos, bebem cada palavra do maníaco. Sacha ouvia-me com
atenção, mas logo li no rosto dela também alguma distracção: não
me compreendia. O futuro que eu lhe pintava só na aparência a
atraía, por isso não valia a pena expor-lhe os meus projectos e
planos. Interessava-se mais pela questão de saber onde seria o
quarto dela, que papel de parede poria, por que tenho um piano
vertical e não um piano de cauda, etc. Examinava com atenção a
quinquilharia em cima da minha mesa, as fotografias, cheirava os
frascos, descolava dos envelopes selos usados de que precisava para
uma finalidade qualquer.
— Por favor, colecciona para mim selos usados! — disse com uma
cara muito séria. - Por favor!
Depois achou no peitoril da janela uma avelã, partiu-a
ruidosamente com os dentes e comeu-a.
— Por que não colas etiquetas nos teus livros? - perguntou,
passando o olhar pelo armário dos livros.
— Para quê?
— Para nada, só para que cada livro tenha o seu número ... E onde
vou pôr os meus livros? Também tenho livros.
— Que livros tens?
Sacha ergueu as sobrancelhas, pensou e disse:
— Vários ...
Se me passasse pela cabeça perguntar-lhe que ideias, convicções e
objectivos ela tinha, creio que ergueria da mesma maneira o
sobrolho, pensaria e diria: «Vários... »
Depois acompanhei Sacha a casa e despedi-me dela na qualidade
de noivo verdadeiro, patenteado, condição em que permaneci até que
nos casaram. Se o leitor me der licença de julgar as coisas a partir da
minha experiência pessoal, dir-lhe-ei que ser noivo é muito
enfadonho, muito mais enfadonho do que ser marido ou não ser
nada. Um noivo nem é carne nem é peixe: partiu de uma margem
mas não chegou à outra; não está casado nem se pode dizer que
esteja solteiro; é qualquer coisa parecida com o guarda-varredor que
mencionei atrás.
Todos os dias, aproveitando um momento livre, apressava-me a
visitar a minha noiva. Habitualmente, enquanto me dirigia a sua
casa, levava comigo um sem-fim de esperanças, desejos, intenções,
sugestões e frases. Como andasse a sentir-me apertado e abafado, a
cada visita eu pensava sempre que, mal a criada de quarto me abrisse
a porta, ia mergulhar até ao pescoço numa felicidade refrescante. Na
realidade, acontecia outra coisa. Sempre que ia ver a minha noiva
encontrava toda a sua família e afins a costurarem o estúpido bragal.
(À propos: durante dois meses costuraram menos de cem rublos de
coisas.) Cheirava a ferros de engomar, estearina e óxido carbónico.
Estalavam-nos debaixo dos pés os vidrilhos e as missangas. Duas
salas principais tinham sido inundadas por ondas de linho, chita da
Índia e musselina, e do meio das ondas assomava a cabecinha de
Sacha com um fio de linha nos dentes. Toda a sala de costura me
recebia com gritos de alegria mas de imediato corria comigo para a
sala de jantar, onde não estorvava e não via o que só aos maridos é
lícito ver. Contrariado, tinha de ficar na sala de jantar conversando
com a comensal Pímenovna. Sacha, sempre com preocupação e
alarme, passava ao meu lado a correr com um dedal, um novelo de lã
ou outra ridicularia qualquer.
— Espera, espera... Já vou! — dizia quando eu levantava para ela
os olhos suplicantes. — Imagina que a toleirona da Stepanida
estragou o corpete todo do vestido de barege.
Assim descurado, enfurecia-me, ia-me embora, passeava pelas
ruas na companhia da minha bengala de noivo. Às vezes apetece-me,
digamos, dar uma volta a pé ou de coche com a noiva, vou buscá-la a
casa, e pronto, vejo-a já vestida para sair, com a mãezinha à espera
no vestíbulo, a brandir o guarda-sol.
— Temos de ir às compras! — diz ela. — É preciso comprar mais
caxemira e um chapéu novo.
Passeio perdido! Lá me juntava às senhoras e ia com elas às
galerias. É aborrecido, e irritante, assistir às compras das mu-lheres,
ver como regateiam e tentam levar a melhor sobre o embusteiro do
vendedor. Envergonhava-me quando Sacha, depois de revirar
montões de tecidos e conseguir reduzir o preço ad minimum, saía da
loja sem comprar nada ou então mandava cortar um retalhinho no
valor de quarenta ou cinquenta copeques. Sacha e a mãezinha saíam
da loja com aquele semblante de preocupação e susto, não se
tivessem enganado, comprado a coisa errada, não fossem escuras
demais as florinhas da chita, etc., e disso falavam sem fim.
Não, ser noivo é um tédio! É para esquecer!
Agora, estou casado. Anoitece, estou no meu gabinete, a ler. Por
trás de mim está Sacha a mastigar ruidosamente alguma coisa.
Apetece-me uma cerveja.
— Sacha, procura o saca-rolhas ... — digo-lhe. — Está por aí, não
sei onde.
Sacha salta do canapé, remexe ao deus-dará em duas ou três pilhas
de papel, deixa cair os fósforos e, não encontrando o saca-rolhas,
volta a sentar-se em silêncio ... Passam cinco ou dez minutos ...
Começa a morder-me um bichinho — é a sede, o des-gosto...
— Sacha, não procuras o saca-rolhas? — digo.
Sacha volta a saltar do canapé e a remexer nos papéis que estão ao
meu lado. O barulho de mastigação e o restolhar do pa-pel
produzem-me o efeito do rangido de facas a esfregar-se uma contra a
outra... Levanto-me e começo eu próprio a procurar o saca-rolhas.
Ei-lo por fim, a garrafa é desarrolhada. Sacha continua ao lado da
mesa e inicia uma história interminável.
— Não querias ler um livro, Sacha? ... — digo-lhe.
Pega num livro, senta-se à minha frente e começa a mexer os
lábios . .. Olho para a sua testa estreitinha, para os seus lábios a
mexer e fico pensativo.
«Vai fazer vinte anos ... — penso. — Se pegarmos num rapaz culto
da mesma idade e compararmos, que diferença! O rapaz tem
conhecimentos, convicções, e miolos.»
Perdoo-lhe porém a diferença, e a fronte estreitinha, e os lábios a
mexerem. Se bem me lembro, nos meus tempos dom-joanescos eu
cheguei a abandonar mulheres por causa de uma nódoa na meia, de
uma palavra estúpida, dos dentes mal lava-dos; mas agora perdoo
tudo: a mastigação, a azáfama com o saca-rolhas, o desleixo, as
conversas longas que não valem um pataco. É quase
inconscientemente que perdoo, sem forçar a vontade, como se as
faltas de Sacha fossem as minhas próprias faltas, e muitas coisas que
dantes me faziam contorcer produ-zem agora em mim
enternecimento, e até admiração. Os motivos desta tolerância total
residem no meu amor por Sacha, mas onde residem os motivos deste
amor, isso, palavra de honra, não sei dizer.
O CONSELHEIRO PRIVADO

Nos princípios de Abril de 1870, a minha mãezinha Klávdia


Arkhípovna, viúva de tenente, recebeu de Petersburgo uma carta do
seu irmão Ivan, conselheiro privado, carta essa onde, entre outras
coisas, se dizia: «A minha doença de fígado obriga-me a ir todos os
Verões para o estrangeiro, mas, como actualmente não tenho meios
disponíveis para ir para Marienbad, é bem possível, querida irmã,
que tenha de ir para a tua Kotchúevka...»
A minha mãe leu a carta, empalideceu, tremeu-lhe o corpo to-do,
no rosto desenhou-se-lhe uma expressão de riso e de choro. Chorou e
riu. Esta luta entre choro e riso lembra-me sempre o palpitar e o
crepitar de um vela de chama forte quando a salpi-cam com água. A
mãezinha leu a carta uma segunda vez, chamou toda a gente da casa
e começou a explicar-nos, numa voz entrecortada pela emoção, que
os irmãos Gundássov eram quatro: um morreu na primeira infância,
outro escolheu a carreira militar e morreu também, o terceiro, sem
ofensa para ele, era actor; quanto ao quarto, bem...
— O quarto, alto está, alto mora — soluçava a mãezinha. — É meu
irmão, crescemos juntos mas agora eu tremo, toda eu tremo... É que
ele é conselheiro privado, é general! Como te vou receber, meu
anjinho? De que vou falar contigo, eu, uma parva inculta? Não o vejo
há quinze anos! Andriúchenka — dirigiu-se-me a mãezinha -, alegra-
te, meu parvinho! É Deus quem o manda para bem da tua felicidade !
Depois de nos ter sido dada conta de uma mais pormenorizada
história dos Gundássov, instalou-se na propriedade uma azáfama a
que eu apenas estava habituado a assistir nas vésperas do Natal. Só a
abóbada celeste e a água do rio foram poupadas, o resto foi tudo
sujeito a limpeza, lavagem e pintura. Fosse o firmamento mais baixo
e mais pequeno, não corresse com tanta força o rio e também seriam
passados ao tijolo e à esponja. As paredes já estavam brancas como a
neve, mesmo assim foram caiadas; o chão da casa brilhava, cintilava,
mesmo assim passou a ser lavado diariamente. O Meia-Cauda (eu
próprio, na minha primeira infância, cortara um quarto do rabo ao
gato com a faca de partir o pão-de-açúcar, pelo que ganhou o nome
de Meia-Cauda) foi levado dos aposentos para a cozinha e entregue
aos cuidados de Aníssia; ao Fedka foi dito que, se os cães se
aproximassem da soleira, sofreria o «castigo de Deus». Mas ninguém
levou sova maior do que os pobres canapés, poltronas e tapetes!
Nunca antes os tinham zurzido à paulada como agora que se
esperava o convidado. Os meus pombos, alarmados pela pancadaria,
volta e meia levantavam voo.
Da aldeia de Novostróevka vinha o alfaiate Spiridon, único em
todo o distrito que ousava costurar para os senhores. Era um homem
sóbrio, laborioso e capaz, possuindo até alguma fantasia e algum
sentido plástico; muito do que fazia, porém, era imprestável. E isso
porque a dúvida lhe prejudicava o trabalho ... A ideia de que a sua
costura não estivesse perfeitamente à moda levava-o a refazer cada
peça até cinco vezes, com idas a pé à cidade para estudar os janotas,
desembocando isso, afinal, em vestir-nos com uns fatos a que mesmo
um caricaturista chamaria de exagero e paródia. Envergávamos
calças incrivelmente justas e casacos tão curtos que, na presença das
meninas, tínhamos sempre vergonha.
Este Spiridon tirou-me as medidas demoradamente. Mediu-me
todo em todos os sentidos, como se planeasse cingir-me inteirinho de
arcos, à maneira de uma pipa; apontava interminavelmente qualquer
coisa a lápis grosso num canhenho e cobria a régua das medições
com mossazinhas triangulares. Acabado o trabalho comigo, pôs-se a
medir o meu preceptor Egor Alekséevitch Pobedímski. O meu
inesquecível preceptor estava na idade em que os homens dão
grande atenção ao crescimento do bigode e são muito críticos em
relação à roupa; imaginem, então, o terror sagrado com que Spiridon
abordou o meu preceptor! Egor Alekséevitch foi obrigado a empinar
para trás a cabeça e a afastar as pernas em forma de V invertido, e
também ora a levantar, ora a baixar os braços . Spiridon mediu-o
várias vezes , pelo que andava à volta dele como um pombo
apaixonado à volta da sua pombinha; ajoelhava-se num joelho,
recurvava-se como um gancho... A minha mãe, esvaída, extenuada
por tantos afazeres e intoxicada pelo fumo dos ferros de engomar,
observava todo o longo ritual e dizia:
— Vê lá, Spiridon, olha que sofres o castigo de Deus se es-tragares
a fazenda! Nunca serás feliz se não agradares!
As palavras da mãezinha faziam com que Spiridon ora ardes-se de
febre, ora se cobrisse de suores, já que o alfaiate tinha a certeza de
não conseguir agradar. Pelo feitio do meu fato levou um rublo e
vinte, pelo de Pobedímski dois rublos, sendo o tecido, o forro e os
botões por nossa conta. Não pode ser caro, até porque da sua
Novostróevka a nossa casa são umas boas nove verstás(3), e o alfaiate
veio por quatro vezes tirar provas. Quando, nas últimas provas ,
enfiávamos as calças e os casacos acanhados ponteados de alinhavos,
a mãezinha franzia a cara com repugnância e espantava-se:
— Só Deus sabe aonde vai parar esta moda de hoje em dia! Até dá
vergonha olhar para isso. Se não fosse o irmão da capital, palavra de
honra, não lhes fazia fatos à moda!
Spiridon, contente por criticarem a moda e não a ele, encolhia os
ombros e suspirava, como quem diz: «Nada a fazer: fruto dos
tempos!»
A emoção com que esperávamos a chegada do hóspede só tinha
comparação possível com a tensão com que os espíritas esperam a
todo o momento a chegada do espírito. A mãezinha andava numa
fona, sofria de enxaqueca, chorava a torto e a direito. Eu perdi o
apetite, comecei a dormir mal e deixei de estudar. Mesmo durante o
sono não me largava o desejo de ver o mais depressa possível o
general, ou seja, um homem com dragonas, uma gola bordada que,
de tesa, se enfiava sob as orelhas, e com o sabre desembainhado na
mão — como no retrato da nossa sala de estar, por cima do canapé, a
esbugalhar os terríveis olhos negros para quem se atrevesse a olhar
para ele. Pobedímski era o único a sentir-se bem. Não se aterrorizava
nem se alegrava, apenas dizia, ao ouvir a mãezinha contar mais uma
vez a história da família Gundássov:
— Sim, será agradável conversar com um homem fresco.
O meu preceptor era encarado na propriedade como uma criatura
exclusiva. Era um jovem dos seus vinte anos, rosto cravejado de
pontos negros, cabelo desgrenhado, testa pequena e nariz
extraordinariamente comprido. O nariz dele era tão grande que, para
examinar alguma coisa, o meu preceptor tinha de pôr a cabeça à
banda como um pássaro. Do nosso ponto de vista, não havia em toda
a província homem mais inteligente, culto e donairoso. Fizera os seis
anos do liceu, depois ingressara na faculdade de veterinária, donde
não levou meio ano a ser expulso. Escondia com cuidado a causa da
expulsão, o que dava a possibilidade de ver no meu educador, a
quem assim o quisesse, um homem que sofrera e que era, até certo
ponto, misterioso. Falava pouco e apenas de coisas inteligentes,
durante a abstinência comia de tudo, mesmo comida dos dias
gordos, e olhava as coisas do mundo circundante exclusivamente de
alto e com desprezo, o que não o impedia de aceitar da mãezinha
ofertas em forma de fatos e de desenhar nos meus papagaios caras
estúpidas com dentes vermelhos. A mãezinha não gostava dele pelo
seu «orgulho», mas inclinava-se perante o seu intelecto.
A espera não foi longa. Nos princípios de Maio chegaram da
estação duas carroças com malas grandes. Essas malas tinham um
aspecto tão majestoso que, ao descarregá-las das carroças, os
cocheiros desbarretaram-se maquinalmente.
«Nestas arcas - pensei — devem estar os fardamentos e a
pólvora...»
Porquê a pólvora? Pelos vistos, na minha cabeça a noção de
general estava intrinsecamente ligada a canhões e a pólvora.
Na manhã de 10 de Maio, quando acordei, a minha ama informou-
me num sussurro que «tinha chegado o tiozinho». Vesti-me à pressa
e, lavada atabalhoadamente a cara e sem tempo para rezar a Deus,
saí a correr do meu quarto. No vestíbulo esbarrei com um senhor alto
e corpulento, com suíças fashionable e um sobretudo de peralta.
Hirto de terror sagrado, aproximei-me dele e, chamando à memória
o cerimonial ensaiado pela mãezinha, executei um rapapé, uma vénia
profunda e estiquei-me para a sua mão, mas o senhor não permitiu
que lha beijasse, declarando que não era o meu tio mas apenas o seu
camareiro Piotr. A aparência deste Piotr, muito mais ricamente
vestido do que eu e Pobedímski, lançou-me num espanto extremo,
espanto esse que, verdade seja dita, não me abandonou até hoje: será
que pessoas tão imponentes e respeitáveis, com rostos tão
inteligentes e severos, podem ser lacaios? E com que fim o seriam?
Piotr disse-me que o tio estava no jardim com a mãezinha.
Precipitei-me para lá.
A natureza, alheia à história da família Gundássov e
desconhecedora da patente do meu tio, sentia-se muito menos
embaraçada do que eu. No jardim reinava uma algazarra talvez só
comparável à das feiras. Inúmeros estorninhos, cortando o ar e
pulando pelas alamedas, perseguiam aos gritos os besouros. Nos
arbustos de lilases, que se nos metiam à cara para no-la afagarem
com os seus cachos de flores tenras e fragrantes, afadigavam-se os
pardais. De todos os lados, para onde quer que me virasse,
chegavam-me o canto do taralhão, os chilreios da poupa e do
esmerilhão. Fosse outra a ocasião e já eu tinha começado a perseguir
as libélulas ou a atirar pedras ao corvo que pousara num pequeno
monte de feno por debaixo do choupo, virando e revirando o seu bico
obtuso; mas agora não estava para traquinices. Batia-me o coração,
gelava-me o estômago; preparava-me para ver um homem de
dragonas, de sabre desembainhado e olhos terríveis!
Imaginem a minha desilusão! Ao lado da minha mãe passeava pelo
jardim um homem pequeno e delgadinho, um janota de fato branco
de seda e boné também branco. As mãos metidas nos bolsos, a
cabeça empinada para trás, sempre a querer tomar a dianteira à
mãezinha a cada passo que davam, o homem parecia um perfeito
jovem. Havia tanto movimento e tanta vida em toda a sua figura que
eu só pude notar-lhe a velhice traiçoeira quando me aproximei mais,
por trás, e lhe olhei para a orla do boné, onde brilhava a prata do
cabelo curto. Em vez da imponência e do gesto vagaroso de um
general, o que eu via era quase o jeito saltitante e buliçoso de um
garoto; em vez da gola enfiada sob as orelhas, uma gravata normal
azul-clara. A mãezinha e o tio passeavam pela alameda e
conversavam. Fui-me achegando devagarinho, sempre por trás, e
esperei até que um deles virasse a cabeça para mim.
— Que maravilha isto aqui, Klávdia! - dizia o tio. - Que bonito,
tudo tão bom! Se eu soubesse que tinhas aqui esta maravilha, por
nada deste mundo tinha ido alguma vez para o estrangeiro.
O tio dobrou-se rapidamente e cheirou uma tulipa. Tudo em que
punha a vista lhe dava enlevo e curiosidade, como se nunca tivesse
visto um jardim nem um dia de sol. Parecia movido a molas, o
esquisito do homem, palrava sem parar e não deixava que a minha
mãe metesse a mínima palavrinha. De repente, na viragem da
alameda, surgiu de trás de um sabugueiro o Pobedímski. Surgiu tão
inesperadamente que o tio estremeceu e deu um passo atrás. Para a
ocasião, o meu preceptor ostentava a sua capa de gala com romeira e
mangas, que muito o assemelhava, especialmente de costas, a um
moinho de vento. Tinha um ar majestoso e solene. Apertando o
chapéu contra o peito, à espanhola, deu um passo na direcção do tio
e fez-lhe uma vénia como a dos marqueses nos melodramas: para a
frente e um tudo-nada para o lado.
— Tenho a honra de apresentar-me a vossa excelência — disse em
voz alta —, pedagogo e preceptor do seu sobrinho, ex-estudante da
faculdade de veterinária, fidalgo Pobedímski !
A cortesia do meu preceptor agradou muito à mãezinha. Sorriu e
parou, na doce esperança de Pobedímski dizer mais alguma coisa
inteligente; mas este, na expectativa de que ao seu trato majestoso
lhe fosse respondido algo também majestoso, ou seja, um «humm» à
maneira dos generais acompanhado por dois dedos estendidos para
ele, ficou muito confuso e intimidado quando o meu tio se riu com
simpatia e lhe apertou com força a mão. Pobedímski ainda
murmurou mais qualquer coisa desconexa, tossiu e afastou-se.
— Então não é um encanto? — riu o tio. — Vê só: vestiu a capinha e
pensa que é muito esperto! Adoro isto, juro por Deus!.. . É que há
tanta sobranceria jovem, tanta vida, nessa ca-pinha estúpida! E este
rapaz quem é? — perguntou de repente ao virar-se e reparando em
mim.
— É o meu Andriúchenka — apresentou-me a mãezinha, corando.
— A minha consolação ...
Arrastei um rapapé pela areia e curvei-me numa grande vénia.
— Lindo menino ... lindo menino ... — murmurou o tio, retirando a
mão que eu lhe beijara e afagando-me a cabeça. — Chamas-te então
Andriucha? Pois, pois ... sim... juro por Deus ... Estudas?
A mãezinha, com meias patranhas e exageros, como todas as mães,
começou a descrever os meus êxitos nas matérias e no
comportamento, caminhando eu ao lado do tio e, de acordo com o
cerimonial, não deixando de fazer grandes vénias. Começava já a
minha mãe a sondar o terreno no sentido de que, com as minhas
capacidades notáveis, seria uma pena que eu não entrasse na escola
de cadetes a expensas do Estado, e chegando ao ponto em que, de
acordo também com o cerimonial, eu deveria desatar a chorar e a
pedir a protecção do tiozinho, quando o tio de repente parou e abriu
os braços de espanto.
— Deuses do céu! O que é isto? — perguntou.
Pela alameda, vinha direita a nós Tatiana Ivánovna, mulher de
Fiódor Petróvitch, o nosso feitor. Trazia nas mãos uma saia branca
engomada e uma comprida tábua de engomar. Quando passou por
nós deixou escapar um olhar tímido por entre as pestanas na
direcção do nosso convidado e corou.
— Cada vez mais maravilhas — disse o tio entre dentes, olhando-
lhe carinhosamente para as costas. — Em tua casa, querida mana, é
uma surpresa a cada passo... Juro por Deus.

É
— É a nossa beldade ... — disse a mãezinha. — Arranjaram este
casamento ao Fiódor nos arrabaldes da cidade ... a cem verstás daqui
...
Nem todos chamariam Tatiana Ivánovna de beldade. Era uma
mulher pequenina, gorducha, dos seus vinte anos, costas direitas,
sobrancelhas negras, sempre rosada, bonitinha mas sem qualquer
traço ousado a realçar-lhe o rosto e onde se pudesse parar o olhar,
como se tivesse faltado a inspiração e a segurança à natureza quando
estava a concebê-la. Tatiana Ivánovna era tímida, envergonhada e
bem comportada, tinha um andar leve e fluido, falava pouco,
raramente ria, toda a vida dela era tão monótona e rasa como o seu
rosto e o seu cabelo bem alisado. O tio franzia os olhos para as costas
dela e sorria. A mãezinha olhou-lhe perscrutadoramente para a cara
sorridente e fez-se séria.
— O mano, afinal, nunca chegou a casar! — suspirou.
— Não, não casei...
— Porquê? — perguntou baixinho a minha mãe.
— Como explicar-te? Foi a vida. Quando era jovem trabalhava de
mais, não tinha tempo para tratar da vida; quando quis finalmente
viver, caí em mim e vi que já tinha cinquenta anos às costas. Não tive
tempo. Aliás, falar disso é um tédio.
A mãezinha e o tio suspiraram ao mesmo tempo e seguiram; eu
larguei-os e corri à procura do meu preceptor para partilhar com ele
as minhas impressões. Pobedímski estava imóvel no meio do pátio a
olhar majestosamente para o céu.
— Vê-se logo que é um homem desenvolvido — disse meneando a
cabeça. — Espero bem que encontremos uma linguagem comum.
Passada uma hora veio ter connosco a mãezinha.
— Uma desgraça, meus queridos! — começou, resfolegando. — É
que o mano trouxe o lacaio, e o lacaio é de tal género que, Deus me
perdoe, não se pode metê-lo na cozinha ou no vestíbulo, é preciso
dar-lhe um quarto à parte. Anda-me a cabeça à roda, o que hei-de
fazer? Só podemos fazer uma coisa, queridinhos: não podíeis mudar
por enquanto para o Fiódor, para a casa dos fundos? E pomos o
homem no vosso quarto, está bem?
Resposta positiva da nossa parte, e com toda a prontidão, já que
morar na casa dos fundos proporcionava muito mais liberdade do
que ficar em casa, debaixo de olho da mãezinha.
— Outra desgraça! — continuou a mãezinha. — O mano diz que
não almoça ao meio-dia, mas só depois das seis, à moda da capital.
Até me anda a cabeça à roda! É que o almoço metido no forno até às
sete fica em papas. Palavra, os homens têm grande intelecto mas não
percebem nada da lida da casa. Vai ser preciso fazer dois almoços,
para mal dos meus pecados! Vós, queridinhos, almoçais ao meio-dia,
como sempre, e eu, velha que sou, vou aguentar até às sete à espera
do querido mano.
A mãezinha suspirou profundamente, ordenou que eu fizesse por
agradar ao tio, que Deus o tinha mandado para bem da mi-nha
felicidade, e foi a correr para a cozinha. Nesse mesmo dia, eu e
Pobedímski passámos a viver na casa dos fundos. Alojaram-nos num
quarto de passagem entre o vestíbulo e o quarto de dormir do feitor.
Apesar da chegada do tio e da nossa mudança de casa, a vida,
contra o que seria de esperar, continuou na mesma, preguiçosa e
monótona. Ficámos, enquanto durasse a visita, dispensados dos
estudos. Pobedímski, que nunca lia nem fazia fosse o que fosse,
ficava sentado na cama, passava o nariz comprido pelo ar e pensava
sabe-se lá no quê. De vez em quando levantava-se, experimentava o
fato novo e voltava a sentar-se, para poder estar cala-do e pensar. A
única coisa que o preocupava eram as moscas, a quem dava
palmadas implacáveis. Depois do almoço costumava «descansar»,
atormentando toda a quinta com o seu ressonar. Quanto a mim,
corria de manhã à noite pelo jardim, ou ficava no meu quarto dos
fundos a fazer papagaios. Nas primeiras duas ou três semanas
poucas vezes vimos o tio. Metia-se dias a fio no quarto a trabalhar,
apesar das moscas e do calor. A sua capacidade extraordinária de
ficar sentado, pregado à mesa, produzia-nos o efeito de uma
prestidigitação inexplicável. Para nós, mandriões que não sabíamos o
que era um trabalho regular, a sua diligência era um milagre.
Acordava por volta das nove da manhã, sentava-se à mesa e não se
levantava até ao almoço; depois do almoço voltava ao trabalho - e
sempre assim, até alta noite. Quando eu espreitava pela fechadura
para o quarto dele, via sempre a mesma coisa: o tio sentado à mesa a
trabalhar. O trabalho dele consistia em escrever com uma mão e em
folhear um livro com a outra; e, coisa estranha, todo ele se remexia:
baloiçava uma perna como um pêndulo, assobiava e abanava a
cabeça a compasso. Em todo este processo, o ar dele era distraído e
frívolo, como se não estivesse a trabalhar mas a jogar às cruzes. De
cada vez que eu espreitava via que tinha sempre vestido um casaco
curto todo janota e uma gravata atada num nó afoito, e, de cada vez,
mesmo através do buraco da fechadura cheirava a perfume fino de
senhora. Só saía do quarto para almoçar, mas almoçava mal.
— Não compreendo o meu irmão ! - queixava-se a mãezinha. -
Todos os dias matamos uma perua e pombos de propósito para ele,
eu própria lhe faço calda de fruta cozida, e ele come um pratinho de
canja e um bocadinho de carne do tamanho de um dedo e levanta-se
logo da mesa. Suplico-lhe que coma mais e ele então lá volta à mesa e
bebe leite. Mas que proveito tem o leite? O mesmo que lavadura!
Com uma alimentação assim pode-se morrer... Tento convencê-lo,
mas só se ri, brinca... Não, o meu querido mano não gosta da nossa
cozinha!
As noites eram muito mais alegres do que os dias. Quando o sol se
punha e se estendiam pelo pátio umas sombras compridas, nós, ou
seja, Tatiana Ivánovna, Pobedímski e eu, sentávamo-nos nos degraus
de entrada da casa dos fundos e ficávamos calados até que chegasse a
escuridão. Também, de que falaría-mos se já tínhamos dito tudo?
Sim, havia uma novidade — a chegada do tio — , mas também esse
tema se esgotou rapida-mente. O preceptor não desviava os olhos da
cara de Tatiana Ivánovna e suspirava fundo ... Naquela altura eu não
percebia o sentido daqueles suspiros nem o procurava, mas agora
são-me explicação para muita coisa.
Quando as sombras no chão se fundiam numa sombra única,
voltava da caça ou do campo o feitor Fiódor. Este Fiódor produzia
em mim a impressão de homem selvagem e, até, de homem
medonho. Era filho de um cigano russificado da cidade de Izium,
moreno, com grandes olhos negros, cabelo encaracolado, barba
desgrenhada, os nossos camponeses de Kotchúevo não lhe
chamavam outra coisa a não ser «diabo». De facto, havia nele muito
do cigano, para além do aspecto físico. Não conseguia parar em casa
e, dias a fio, andava pelos campos ou ia à caça. Era sombrio, bilioso,
taciturno, não tinha medo de ninguém nem reconhecia o poder de
ninguém sobre a sua pessoa. Era malcriado com a mãezinha, a mim
tratava-me por «tu» e ao Pobedímski desprezava-lhe a cultura.
Perdoávamos-lhe tudo isso, lançando-o à conta da sua condição de
homem irritadiço e doentio. Quanto à minha mãe, gostava dele
porque o homem, apesar da sua natureza cigana, era um ideal de
honestidade e trabalho. Amava a sua Tatiana Ivánovna
apaixonadamente, como cigano que era, mas esse amor revelava-se
sombrio, como que sofrido. Na nossa presença nunca acarinhava a
mulher, apenas esbugalhava raivosamente os olhos para ela e
entortava a boca.
Chegado dos campos, arrumava com estardalhaço e raiva a
espingarda na casa dos fundos, saía para a soleira onde já está-vamos
e sentava-se ao lado da mulher. Recuperava o fôlego e fazia à mulher
algumas perguntas relativas à lida da casa e mergulhava no silêncio.
— Vamos cantar — sugeria eu.
O preceptor afinava a viola e atacava, num baixo espesso, à
maneira de um sacristão, «No meio dos vales planos». Começava o
canto. O preceptor cantava, pois, em voz de baixo, Fiódor num tenor
quase inaudível, e eu em tiple, a mesma voz de Tatiana Ivánovna.
Quando todo o céu se cobria de estrelas e se calavam as rãs,
traziam-nos o jantar da cozinha. O preceptor e o cigano tinham um
comer ávido, rilhado, e era difícil dizer se aquele roedoiro era dos
ossos ou das mandíbulas deles; eu e Tatiana mal tínha-mos tempo de
acabar os nossos pratos. Depois do jantar, a casa dos fundos
mergulhava num sono profundo.
Uma vez, já em fins de Maio, estávamos sentados nos de-graus da
soleira e esperávamos pelo jantar. De repente passou um sombra e,
como que saído de dentro da terra, surgiu à nossa frente o
Gundássov. Olhou demoradamente para nós, depois pôs-se a agitar
os braços e a rir alegremente.
— Idílico! — disse. — Cantam e sonham olhando para a lua!
Encantador, juro por Deus! Posso sentar-me convosco e sonhar
também?
Calámo-nos, trocando olhares. O tio sentou-se no degrau inferior,
bocejou e olhou para o céu. Caiu o silêncio. Pobedímski , que havia
muito se preparava para falar com um homem fresco, entusiasmou-
se com a ocasião e foi o primeiro a quebrar o silêncio. Para as
conversas inteligentes tinha apenas um tema: epizootias. Tal como,
quando acontece ficarmos no meio de uma multidão de milhares de
fisionomias, se nos grava na memória apenas uma, e por muito
tempo, também Pobedímski, de tudo o que conseguiu ouvir na
faculdade de veterinária durante aquele meio ano, apenas se
lembrava de um fragmento:
«As epizootias causam grandes prejuízos à economia nacional. No
seu combate, a sociedade deve andar de mãos dadas com o governo.»
Antes de o pronunciar, o meu preceptor aclarou por três vezes a
garganta e por várias vezes se agasalhou com a capa. Ao ouvir aquilo
das epizootias, o tio pôs-se a olhar fixamente para o preceptor e
emitiu um som de riso pelo nariz.
— Juro por Deus, é lindo ... — murmurou examinando-nos como a
manequins. — É precisamente isso que se chama vida ... É assim que,
na essência, deve ser a realidade. E por que está tão calada, Pelagueia
Ivánovna? — dirigiu-se a Tatiana Ivánovna.
Esta envergonhou-se e tossiu.
— Falem, meus senhores, cantem ... brinquem! Não desperdicem o
tempo. É que o safado do tempo corre, não espera! Juro por Deus
que não terão tempo de abrir a boca para dizer «ah!» e já a velhice
bate à porta... Mas então já será tarde para viver! É assim, Pelagueia
Ivánovna... Não vale a pena ficarmos parados e calados ...
Nisto, trouxeram o jantar da cozinha. O tio entrou connosco para a
casa dos fundos e fez-nos companhia comendo cinco bolos de
requeijão e uma asinha de pato. Comia e olhava para nós. Todos lhe
provocávamos entusiasmo e ternura. Qualquer que fosse a parvoíce
emitida pelo meu inesquecível preceptor, fizes-se o que fizesse
Tatiana Ivánovna, achava tudo lindo e maravilhoso. Quando, depois
do jantar, Tatiana Ivánovna se sentou quietinha num canto a fazer
malha, o tio não tirava os olhos dos dedinhos dela e tagarelava sem
parar.
— Tenham pressa de viver, meus amigos ... — dizia. — Deus os
livre de sacrificarem o presente em prol do futuro! No presente é que
está a juventude, a saúde, o ardor, o futuro é só engano, é fumo! Mal
completem os vinte anos, comecem de imediato a viver.
Tatiana Ivánovna deixou cair uma agulha. O tio saltou do lugar,
apanhou a agulha e entregou-a com uma vénia a Tatiana Ivánovna, e
foi aí que fiquei a saber que existem no mundo pessoas mais finas do
que Pobedímski.
— Sim ... — continuava o tio. — Amem, casem-se ... façam asneiras.
A estupidez é mais cheia de vida e mais saudável do que todos os
nossos esforços inúteis e a nossa perseguição de uma vida com
sentido.
O tio falava muito e prolongadamente, a tal ponto que ficá-mos
fartos dele, e eu, sentado em cima de uma arca, ouvia a voz dele e
dormitava. Atormentava-me o facto de nem uma única vez naquele
tempo todo ele me ter dado a núnima atenção. Saiu da casa dos
fundos às duas da madrugada quando eu, vencido pelo sono, já
dormia como uma pedra.
Desde então começou a visitar a nossa casa dos fundos todas as
noites. Cantava connosco, jantava e ficava sempre até às duas,
tagarelando sem parar, sempre das mesmas coisas. Os seus trabalhos
do anoitecer e nocturnos foram abandonados e, pelos fins de Junho,
quando o conselheiro privado aprendeu a comer os perus e a fruta
cozida da mãezinha, foram abandonados também os trabalhos
diurnos. O tio desligou-se da mesa de trabalho e mergulhou na
«vida». De dia andava pelo jardim, assobiava e estorvava o trabalho
dos jornaleiros, obrigando-os a contarem-lhe histórias. Quando
punha a vista em Tatiana Ivánovna corria ao seu encontro e, se ela
transportasse alguma coisa com ela, oferecia-lhe ajuda, o que a
embaraçava terrivelmente.
Quanto mais se entrava no Verão, mais leviano, faceto e distraído
se tomava o meu tio. Pobedímski ficou completamente desiludido
com ele.
— É um homem demasiado unilateral... — dizia. — Não se nota
nada nele, nadinha, que pertença aos estratos superiores da
hierarquia. Nem falar sabe. Cada palavra, cada «juro por Deus».
Não, não gosto dele!
Desde que o tio começou a visitar a nossa casa dos fundos, deu-se
em Fiódor e no meu preceptor uma mudança visível. Fiódor deixou
de ir à caça, voltava para casa cedo, tomou-se ainda mais taciturno e
arregalava os olhos à mulher com uma raiva especial. Quanto ao
preceptor, deixou de falar de epizootias na presença do tio, carregava
o sobrolho e até sorria sarcasticamente.
— Aí vem o nosso garanhão das dúzias ! — resmungou uma vez,
quando o tio se aproximava da casa dos fundos.
A explicação que eu dava a mim próprio desta mudança era a de
que estariam ressentidos com o tio. O distraído do homem enganava-
se no nome deles, ficou sem saber, até ao dia de se ir embora, qual
dos dois era o preceptor e qual o marido de Tatiana Ivánovna, a esta
ora chamava Nastássia, ora Pelagueia, ora Evdokia. Nós
entemecíamo-lo, causávamos-lhe admiração, mas ele ria-se e tratava
connosco como quem lida com crianças pequenas ... Tudo coisas,
decerto, susceptíveis de ofender homens novos. Mas o problema,
afinal, não era de ressentimento, mas, como vejo agora, de
sentimentos mais delicados .
Lembro-me que numa das noites estava eu sentado na arca e
lutava contra a modorra. Nos olhos, cola viscosa, e o corpo, cansado
das corridas de todo o dia, cedia para o lado. Mas continuava a lutar
contra o sono e esforçava-me por olhar. Era quase meia-noite.
Tatiana Ivánovna, rosada e submissa como sempre, sentada à
mesinha pequena, costurava uma camisa para o marido. De um
canto, esbugalhava-lhe os olhos Fiódor, sombrio e carrancudo;
noutro canto estava Pobedímski, com a cabeça afundada nos
colarinhos altos da sua camisa, fungando com irritação. O tio andava
de um canto para outro, a pensar. Reinava o silêncio, só se ouvia o
roçar do tecido nas mãos de Tatiana Ivánovna. De repente, o tio
parou à frente dela e disse:
— Todos tão novos, tão frescos, tão bons, a vossa vida nesta
calmaria é tão serena que tenho inveja de vós. Afeiçoei-me a esta
vossa vida, só de me lembrar que tenho de ir embora daqui dá-me
um aperto no coração ... Acreditai na minha sinceridade !
A modorra cerrava-me os olhos, adormeci. Quando uma pancada
qualquer me acordou, estava o tio à frente de Tatiana Ivá- novna e a
olhar para ela com ternura. As faces dele ardiam.
— Perdi a minha vida — dizia. — Não vivi! O seu rosto jovem
lembra-me a minha felicidade perdida, e não me importava de ficar
aqui sentado a olhar para si até à morte. Levava-a comigo para
Petersburgo com prazer.
— E para quê? — perguntou Fiódor em voz rouca.
— Punha-a dentro de uma redoma em cima da minha mesa de
trabalho e ficava a admirá-la, mostrava-a aos outros. Sabe, Pelagueia
Ivánovna, não há lá ninguém como você. Temos lá ri-queza,
fidalguia, às vezes beleza, mas não esta verdade da vi-da... esta calma
salutar...
O tio sentou-se à frente de Tatiana Ivánovna e pegou-lhe na mão.
— Então, não quer ir comigo para Petersburgo? — riu-se. — Ao
menos deixe-me levar comigo a sua mãozinha... Esta mãozinha
encantadora! Não deixa? Sua avarenta, ao menos deixe-me beijá-la
...
Nisto, ouviu-se um ranger de madeira. Era o Fiódor que saltava da
cadeira e, em passadas rígidas e cadenciadas, se aproximava da
mulher. A cara dele estava de uma palidez cinzenta. Assentou o
punho na mesa com toda a força e disse numa voz abafada:
— Não admito !
Ao mesmo tempo que ele, pulara da cadeira Pobedímski. Também
pálido e raivoso, aproximou-se de Tatiana Ivánovna e bateu também
com o punho na mesinha...
— Eu ... não admito!
— O quê? O que se passa? — surpreendeu-se o tio.
— Não admito ! — repetiu Fiódor assentando outro murro na
mesa.
O tio levantou-se de um pulo e pestanejou, acobardado. Quis falar,
mas, por espanto e susto, não lhe saiu palavra; sorriu confuso e
trotou a passo de ancião para fora da casa dos fundos. Quando,
passado um pouco, chegou a mãezinha a correr, alarmada, Fiódor e
Pobedímski ainda batiam, como ferreiros os martelos, com os
punhos na mesa e diziam: «Não admito!»
— O que aconteceu aqui? — perguntou a mãezinha. — Por que é
que o mano se sentiu mal? O que se passa?
Bastou-lhe olhar para a cara pálida e assustada de Tatiana
Ivánovna, e para o marido enraivecido, para adivinhar o que
acontecera. Suspirou e abanou a cabeça.
— Chega de martelar na mesa! — disse ela. — Pára com isso,
Fiódor! E o senhor, Egor Alekséevitch, por que está para aí às
punhadas? O que tem a ver com isto?
Pobedímski caiu em si e atrapalhou-se. Fiódor olhou muito fixo
para ele, depois para a mulher, depois pôs-se a medir o quarto às
passadas. Mal a mãezinha saiu, assisti a uma coisa que, durante
muito tempo, pensei ser um sonho. Vi o Fiódor a agarrar no meu
preceptor, a erguê-lo no ar e a arremessá-lo pela porta...
Quando acordei de manhã, a cama do preceptor estava vazia. À
minha pergunta de onde estava o preceptor, respondeu-me a ama
num sussurro que o tinham levado de manhã cedo ao hospital com
um braço partido. A notícia entristeceu-me e, recordando o
escândalo da véspera, saí para o pátio. Apanhou-me um tempo
sombrio. O céu cobrira-se de nuvens, o vento corria rente ao chão
levantando poeira, papéis, penas ... Sentia-se a aproximação da
chuva. O enfado do tempo pintava-se também nas pessoas e nos
animais. Quando voltei para casa, disseram-me para não bater com
os pés, porque a mãezinha estava deitada, com a enxaqueca. O que
fazer? Passei o portão, sentei-me lá ao lado num banco e comecei a
procurar o sentido do que tinha visto e ouvido na véspera. Do nosso
portão saía um caminho que, contornando a casa da forja e um
charco que nunca secava, ia desembocar no caminho grande da
posta... Pus-me a olhar para os postes telegráficos, em volta dosquais
giravam nuvens de poeira, para os pássaros sonolentos pousados nos
fios, e de repente senti-me tão entediado que chorei.
Pelo caminho da posta passou uma diligência poeirenta a
abarrotar de gente da cidade, pelos vistos em romaria. Mal a
diligência me desapareceu da vista, esboçou-se na poeirada uma
traquitana ligeira de dois cavalos. Dentro, em pé, vinha o chefe da
polícia local, Akim Nikítitch, agarrado ao cinto do cocheiro. Para
meu grande espanto, a traquitana virou para o nosso caminho e
rasou por mim passando o portão. Enquanto tentava perceber por
que nos viria visitar o chefe da polícia, ouviu-se um barulho e
apareceu no caminho uma troika(4). Trazia o comandante da polícia
distrital, de pé no carro e apontando o nosso portão ao cocheiro.
«E este que virá cá fazer? — pensava eu observando o comandante
coberto de poeira. — Às tantas o Pobedímski fez queixa do Fiódor e
vieram prendê-lo.»
Mas o mistério não era assim tão fácil de desvendar. O chefe local
e o comandante distrital eram apenas os batedores, porque nem
cinco minutos tinham passado e já entrava no nosso pátio um coche.
Passou tão veloz ao meu lado que, ao espreitar pela janela, apenas
distingui uma barba ruiva.
Perdido em conjecturas e pressentindo qualquer coisa má, corri
para casa. Vi logo a mãezinha, no vestíbulo. Estava branca e olhava
aterrorizada para a porta, de trás da qual vinha um vozear
masculino. Os convidados tinham-na apanhado de surpresa, no auge
da enxaqueca.
— Quem é que veio, mamã? — perguntei.
— Irmã! - ouviu-se a voz do meu tio. - Prepara aí uns petiscos, para
nós e para o governador!
— É fácil dizer: petiscos! — sussurrou a mãezinha, a desfalecer de
terror. — O que terei tempo de lhes preparar? Cobrem a pobre velha
de vergonha!
A mãezinha deitou as mãos à cabeça e correu para a cozinha. A
chegada inesperada do governador alvoroçou e aturdiu toda a quinta.
Deu-se início a uma matança encarniçada. Uma dezena de frangos,
cinco peruas e oito patos foram mortos e, na confusão, pereceu
decapitado o ganso velho, patriarca fundador do nosso bando de
gansos e favorito da mãe. Os cocheiros e o cozinheiro pareciam
doidos e matavam as aves sem sentido, sem olharem à idade nem à
espécie. Perdi, para um molho qualquer, um casal de pombos-
mariolas caríssimos de que gostava tanto como a mãezinha gostava
do velho ganso. Durante muito tempo eu não iria perdoar ao
governador a morte dos meus pombos.
Ao anoitecer, quando o governador e comitiva, depois de farto
almoço, se sentaram nas carruagens e partiram, entrei em casa para
ver os destroços do banquete. Espreitando do vestíbulo, vi o tio e a
mãezinha na sala. O tio, com as mãos atrás das costas, andava
nervosamente para trás e para a frente, rente às paredes, e encolhia
os ombros. A mãezinha, desfeita e até mais magra, sentava-se no
canapé e seguia com olhos enfermiços os vaivéns do irmão.
— Desculpa, irmã, mas assim não pode ser... — resmungava o tio,
franzindo o rosto. — Apresento-te o governador e nem lhe estendes a
mão! Envergonhaste-o, coitado! Não, assim não dá... A simplicidade
é uma boa coisa, sim, mas deve ter os seus limites ... juro por Deus ...
E também, este almoço! Admite-se apresentar um almoço destes?
Que paparoca era aquela, por exemplo, servida como quarto prato?
— Era o pato com molho doce ... — respondeu baixinho a minha
mãe.
— O pato ... Desculpa, irmã, mas ... olha que até tenho azia! Fiquei
doente!
O tio fez uma cara azeda, chorosa e continuou:
— Diabos carreguem o governador e mais a visita! Só cá me faltava
a visita dele! Puff... que azia! Não posso dormir, não posso
trabalhar... Estou completamente destrambelhado ... E uma coisa
que eu não percebo é como podem vocês viver aqui sem trabalhar...
nesta pasmaceira! Pronto, só cá me faltava esta dor no epigastro !.. .
O tio carregou o sobrolho e pôs-se a andar mais depressa.
— Mano — perguntou baixinho a minha mãe — , por quanto fica ir
ao estrangeiro?
— Três mil , nunca menos — respondeu o tio em voz queixosa. —
Eu ia de bom grado, mas onde arranjo o dinheiro? Não tenho um
tostão! Puff... que azia!
Caiu o silêncio ... A mãezinha olhou demoradamente para o ícone,
matutando, depois disse a choramingar:
— Eu dou-lhe os três mil, mano ...
Três dias depois as malas majestosas eram levadas para a estação
e, após as malas, partiu também o conselheiro privado. Ao despedir-
se da mãezinha chorava e durante um bom pedaço não podia
despegar os lábios da mão dela; ora, quando se sentou na carruagem,
iluminou-se-lhe o rosto numa alegria infantil... Feliz, radiante,
acomodou-se, fez à minha mãe um gesto de despedida com a
mãozinha e, de repente, o olhar dele pousou em mim. Mudou-se-lhe
a cara para um grande espanto.
— Quem é este rapaz? - perguntou.
A mãezinha, que afirmara que Deus nos enviara o tio para minha
felicidade, ficou muito ressentida com a pergunta. Quanto a mim,
ignorei-a. Olhava para a cara feliz do tio e, sabe-se lá porquê, tinha
muita pena dele. Não me contive, subi à carruagem e abracei com
ardor aquele homem fraco e leviano, como toda a gente. Olhei-o nos
olhos e, querendo dizer-lhe alguma coisa agradável, perguntei:
— O tio já alguma vez andou na guerra?
— Ah, diabo do rapaz ... — riu-se o tio e beijou-me —, que-rido
menino, juro por Deus. Tão natural, tão cheio de vida isto tudo ...
juro por Deus.
A caleche partiu ... Eu via-a a afastar-se e, por muito tempo ainda,
ouvi aquele «juro por Deus».
UMA DESGRAÇA

Sófia Petrovna, mulher do notário Lubiántsev, bonita, jovem, dos


seus vinte e cinco anos, caminhava vagarosamente por uma picada
da floresta na companhia do seu vizinho da casa de campo, Iliin,
advogado oficioso. Passava das quatro da tarde. Sobre a picada
adensavam-se nuvens brancas de algodão; por de cima das nuvens
assomavam aqui e ali nesgas de azul-claro do céu. Eram umas
nuvens quietas, paradas, como presas pelos pináculos dos pinheiros
altos e velhos. Tudo calmo, o ar abafado.
Ao longe, a picada era cortada pelo aterro, não muito alto, do
caminho-de-ferro; desta vez, por qualquer razão, passeava-se pelo
aterro uma sentinela de espingarda a tiracolo. Logo por trás do
aterro via-se uma igreja grande e branca de seis zimbórios e telhado
enferrujado ...
— Não esperava encontrá-lo aqui — ia dizendo Sófia Petrovna, a
olhar para o chão e a esgaravatar com a ponta do guarda-sol as folhas
velhas do último outono — , mas ainda bem que o encontro. Preciso
de falar consigo a sério e de uma vez por todas. Ivan Mikháilovitch,
se realmente gosta de mim e me respeita, peço-lhe que deixe de me
perseguir. Anda atrás de mim como uma sombra, sempre com esses
olhares esquisitos em cima de mim, a dizer que me ama, a escrever
essas cartas estranhas e ... e eu não sei francamente quando isto irá
acabar! Oiça, onde irá parar isto tudo, meu Deus?
Iliin calava-se. Sófia Petrovna deu mais uns passos e continuou:
— Ainda por cima, esta mudança brusca em si deu-se em duas ou
três semanas, quando já nos conhecemos há cinco anos. Nem estou a
reconhecê-lo, Ivan Mikháilovitch!
Sófia Petrovna olhou para o acompanhante de soslaio. Este
observava com atenção, franzindo os olhos, as nuvens de algodão. A
expressão do seu rosto era de raiva, caprichosa e distraída, a
expressão de um homem que sofre e, ao mesmo tempo, é obrigado a
ouvir disparates .
— É espantoso que o senhor seja incapaz de compreender is-to! —
continuou Lubiántseva, encolhendo os ombros. — Veja se percebe
que já está a entrar num jogo menos decente. Sou casada, amo e
respeito o meu marido ... tenho uma filha... Será que não dá valor
nenhum a isso? Além de que, como meu amigo de longa data, deve
saber muito bem qual é o meu ponto de vista quanto à família...
quanto aos princípios da família em geral...
Iliin emitiu com a garganta uma espécie de grasnido descontente e
suspirou.
— Princípios da família ... — murmurou. — Oh, meu Deus!
— Sim, sim... Gosto do meu marido, respeito-o e, em qualquer
caso, dou grande valor à paz da minha família. Antes me deixava
matar do que causava a desgraça de Andrei e da filha... Peço-lhe,
Ivan Mikháilovitch, por amor de Deus, deixe-me em paz.
Continuemos bons amigos, como dantes, e deixe-se desses «oh» e
desses «ah» que não lhe ficam nada bem. Está dito e feito! Não se
fala mais no assunto. Conversemos de outra coisa qualquer.
Sófia Petrovna voltou a olhar de lado para a cara de Iliin. Este
olhava para cima, pálido, e mordia os lábios trémulos de zanga.
Lubiántseva não compreendia com que estava ele zangado, o que o
irritava tanto, mas a sua palidez enterneceu-a.
— Não fique zangado, vá lá, sejamos amigos - disse ela com
carinho. — Valeu? Tome a minha mão.
Com as duas mãos , Iliin pegou na mão pequena e rechonchuda
dela, afagou-a e levou-a devagarinho aos lábios.
— Não sou nenhum colegial — murmurou. — Não me seduz uma
amizade com a mulher amada.
— Basta, basta! Dito e feito! Está ali um banco, vamos sentar-nos...
A alma de Sófia Petrovna encheu-se de uma sensação branda de
calma: o mais difícil e delicado já fora dito, o torturante problema
estava morto e enterrado. Agora podia suspirar de alívio e olhar a
direito para a cara de Iliin. E olhava para ele, e o sentimento egoísta
de superioridade da mulher amada sobre o homem amante
acariciava-a deleitosamente. Agradava-lhe que aquele homem forte,
uma torre, com uma cara viril e zangada e grande barba negra,
inteligente, culto e, ao que diziam, talento-so, se sentasse submisso
ao seu lado e baixasse a cabeça. Passaram dois ou três minutos em
silêncio.
— Não, não está tudo dito e feito ... — começou Iliin. — É como se
me recitasse um texto didáctico: «amo e respeito o meu marido ... os
princípios da família...» Conheço isso de cor e posso adiantar-lhe
ainda mais. Digo-lhe sincera e honestamente que considero a minha
conduta criminosa e imoral. Que mais quer? E para que hei-de dizer
o que toda a gente sabe? Em vez de encher a barriga com padre-
nossos, era melhor que me explicasse: o que hei-de fazer?
— Já lhe disse: vá-se embora!
— Já me fui embora cinco vezes, sabe isso muito bem, e cinco
vezes arrepiei caminho a meio! Posso mostrar-lhe os bilhetes de
transporte directo, guardei-os todos. Não tenho forças para fugir de
si! Eu bem luto comigo próprio, uma luta terrível, mas não presto
para nada, c'os diabos, não tenho têmpera, sou fraco, pusilânime!
Não posso lutar contra a natureza! Está a entender? Não consigo!
Bem fujo daqui, mas a natureza agarra-me pelas abas do casaco. Que
impotência a minha, ordinária, repugnante!
Iliin ficou vermelho, levantou-se, pôs-se a andar para trás e para a
frente junto ao banco.
— Enraiveço-me como um cão! — resmoneou, cerrando os punhos.
— Odeio-me e desprezo-me, a mim próprio! Meu
Deus, ando a namoriscar a mulher alheia como um rapazola
depravado, escrevo cartas idiotas, humilho-me ... o-oh!
Iliin levou as mãos à cabeça, tossicou, sentou-se.
— E ainda tenho de levar com a sua falta de sinceridade ! —
continuou amargamente. — Se está assim tanto contra o meu jogo
feio, por que apareceu? O que a atraiu aqui? A única coisa que eu lhe
tenho pedido, nas minhas cartas, é uma resposta directa, categórica:
sim ou não; mas em vez de uma resposta frontal, faz os possíveis por
se encontrar todos os dias comigo, «por acaso», e serve-me citações
didácticas!
Lubiántseva sobressaltou-se e corou. Sentiu um choque de
desconforto, como uma mulher recatada que fosse apanhada sem
querer em roupa interior.
— Parece que suspeita que há jogo da minha parte ... — mu-murou.
— Sempre lhe dei respostas directas ... e hoje também lho pedi !
— Ah , e acha que estas coisas são de pedir? Se me tivesse di-to
logo «fora daqui!», há muito que eu já não estava cá, mas não disse.
Não, nem uma única vez me respondeu com frontalidade. Mas que
indecisão tão estranha! Palavra de honra, ou anda a brincar comigo,
ou ...
Iliin não acabou e apoiou a cabeça nos punhos fechados. Sófia
Petrovna pôs-se a recordar o seu comportamento, desde o princípio
até agora. Durante todos esses dias, tinha a certeza, nunca aceitou os
galanteios de Iliin, não só na prática mas também no seu pensar mais
íntimo, o que não a impedia de sentir agora nas palavras do
advogado alguma ponta de verdade. Como não descortinasse que
parte da verdade era essa, por mais que pensasse, não achou o que
responder ao reparo de Iliin. Mas calar-se era inconveniente, pelo
que disse, encolhendo os ombros:
— Agora a culpa é minha, ainda por cima.
— Não a culpo da sua falta de sinceridade — suspirou Iliin. — Disse
isso por dizer, saiu-me ... A sua falta de sinceridade é natural, muito
normal. Se toda a gente fizesse o acordo de ficar sincera de repente,
era o diabo, desmoronava-se tudo.
Sófia Petrovna não estava para filosofias, mas ficou contente com a
possibilidade de desviar a conversa e perguntou:
— Por que acha que as coisas são assim?
— Porque só os selvagens e os animais são sinceros. Uma vez que a
civilização introduziu na vida a necessidade de uma coisa tão
confortável como a virtude feminina, por exemplo, a sinceridade
tomou-se inconveniente ...
Iliin esburacava a areia com a bengala, sempre zangado.
Lubiántseva ouvia, não compreendia muito bem, mas a conversa
dele agradava-lhe. Antes de mais, gostava que um homem de ta-lento
falasse com ela, mulher vulgar, sobre «coisas inteligentes»; depois,
dava-lhe prazer observar como ele mexia o rosto jovem e pálido, vivo
e ainda zangado. Não percebia muita coisa, mas era-lhe clara aquela
bela ousadia de homem moderno com que ele, sem pensar duas
vezes, sem hesitações, resolvia os grandes problemas e tirava
conclusões definitivas.
Caiu de repente em si, percebendo que estava a admirá-lo, e
assustou-se.
— Desculpe, mas não compreendo — apressou-se a dizer. — Por
que lhe deu para falar de falta de sinceridade? Repito: seja um bom
amigo, deixe-me em paz! Peço-lhe sinceramente!
— Está bem, vou continuar a lutar! — suspirou Iliin. — Sempre às
ordens ... Mas é pouco provável que a minha luta vingue. Ou dou um
tiro na cabeça, ou ... caio na bebedeira mais estúpida. Não vou acabar
bem! Tudo tem os seus limites, e a luta contra a natureza também.
Diga-me, como é possível lutar contra esta loucura? E acha que, se
beber, posso levar de vencida esta exaltação? O que posso fazer se a
sua imagem se agarrou à minha alma e está sempre diante dos meus
olhos, dia e noite, obsessivamente, como este pinheiro agora?
Ensine-me que façanha eu tenho de cumprir para me poder libertar
deste estado abominável, desgraçado, em que todos os meus
pensamentos, todos os meus desejos e sonhos já não me pertencem,
a mim, mas a um demónio qualquer que se instalou em mim? Amo-
a, amo-a a um ponto tal que perdi o norte, abandonei o trabalho e os
meus próximos, esqueci o meu Deus! Nunca na vida amei tanto!
Sófia Petrovna não estava à espera que aquilo descambasse tão
bruscamente; afastou-se com todo o corpo de Iliin e olhou-lhe para o
rosto, assustada. Ele tinha os olhos marejados de lágrimas, tremiam-
lhe os lábios e tinha afincada na cara uma ex-pressão como que
faminta, suplicante.
— Amo-a! — murmurava, aproximando os olhos dos olhos dela,
muito abertos e assustados. — É tão bela! Sim, estou a sofrer muito,
agora, mas juro-lhe que ficaria toda a vida sentado assim, a sofrer e a
olhá-la nos olhos. Não ... não fale, suplico-lhe!
Sófia Petrovna, como que apanhada de surpresa, tentou achar as
palavras, logo, logo, que pudessem travar Iliin. «Vou-me embora!»,
decidiu, mas mal fez o movimento de levantar-se já Iliin estava de
joelhos aos pés dela... Abraçava-a pelas pernas, olhava-lhe para o
rosto e falava-lhe apaixonada, ardente, maravilhosamente. Cheia de
medo, estonteada, não ouvia as palavras dele, mas neste momento
perigoso, em que os joelhos se lhe apertavam com deleite, como na
água quente da banheira, procurava por qualquer razão, com uma
espécie de maldade, algum sentido nas suas sensações. Estava
zangada por toda ela, em vez da virtude a protestar, se encher de
languidez preguiçosa, de vazio, como um bêbado que não mede o
perigo do mar; só no fundo da alma um pedacinho remoto troçava
maldosamente: «Por que não te vais embora? Achas que tem de ser
assim? É isso?»
Procurando no seu íntimo o sentido daquilo tudo, não percebia por
que não arrancava de Iliin a mão a que ele se aferrava como uma
sanguessuga e por que se apressou, ao mesmo tempo que ele, a
espreitar à esquerda e à direita se alguém estaria a vê-los. Os
pinheiros e as nuvens mantinham-se imóveis e era como se olhassem
severamente, à maneira dos velhos contínuos que vêem a asneira do
aluno mas, por dinheiro, prometem não o denunciar à direcção. A
sentinela estava imóvel como um poste em cima do aterro e parecia
olhar para o banco.
«Que olhe!» — pensou Sófia Petrovna.
— Mas ... oiça! — articulou finalmente, com um desespero na voz.
— Aonde nos leva isto? O que vai ser depois?
— Não sei, não sei... — sussurrou ele afastando com um gesto as
desagradáveis perguntas.
Ouviu-se o assobio rouco e retinido da locomotiva. Aquele som frio
e alheio da prosa quotidiana fez com que Lubiántseva estremecesse.
— Não tenho mais tempo ... são horas! — disse, levantando-se
bruscamente. - Vem aí o comboio ... chega o Andrei! Vem almoçar.
Sófia Petrovna virou o rosto a arder para o aterro. Primeiro
apareceu a rastejar lentamente a locomotiva, atrás dela os vagões.
Afinal não era o comboio suburbano, como pensava Lubiántseva,
mas o de mercadorias. Numa cadeia comprida, uns atrás dos outros
como os dias da vida humana, os vagões arastavam-se, com a igreja
branca em fundo, e pareciam infinitos!
O comboio acabou de passar, o último vagão, com faróis e
controlador, já desaparecia por trás da verdura. Sófia Petrovna deu
meia volta brusca e, sem olhar para Iliin, pôs-se a andar rapidamente
pela picada. Já se dominava. Vermelha de vergonha, insultada, mas
não por Iliin, antes pela sua própria fraqueza, pela pouca vergonha
com que ela, tão convencida da sua alta moral e probidade, permitira
que um homem estranho a abraçasse pelos joelhos, só pensava agora
numa coisa: chegar o mais depressa possível a casa, ao seio da
família. O advogado mal conseguia acompanhá-la. Virando da picada
para uma senda estreita, voltou-se e lançou uma mirada tão rápida
para o homem que só lhe viu a terra nos joelhos; fez um gesto com a
mão a mandar que deixasse de segui-la.
Sófia Petrovna chegou a casa a correr e ficou uns bons cinco
minutos no quarto, imóvel, só olhando ora para a janela, ora pa-ra a
mesa de trabalho ...
— Desavergonhada! — descompunha-se a si própria. -
Desavergonhada !
Pôs-se a recordar em todos os pormenores, sem omitir nada, num
desejo de se magoar, que durante todos aqueles dias se insurgira, de
facto, contra a corte de Iliin, mas que também se sentira atraída pelo
desejo de ir esclarecer as coisas com ele; e mais: quando Illin se lhe
rojou aos pés, sentiu um prazer extraordinário. Recordou tudo, sem
se poupar e, sufocando de vergonha, ficou pronta a esbofetear-se.
«Coitado do Andrei — pensava, tentando, ao lembrar-se do
marido, dar ao rosto a expressão mais tema que pudesse. — Vá-ria,
minha pobre menina, não sabes a mãe que tens! Perdoai-me, meus
queridos! Amo-vos muito ... muito!» E, desejando provar a si mesma
que ainda era boa esposa e mãe, que a putrefacção ainda não tocara
aqueles «princípios» de que falara a Iliin, Sófia Petrovna correu à
cozinha e ralhou muito com a cozinheira por a mesa para Andrei
Iliitch ainda não estar posta. Fez esforços para imaginar o ar estafado
do marido, compadeceu-se dele em voz alta e pôs a mesa para ele por
sua própria mão, o que nunca fizera antes. Depois foi buscar a
filhinha Vária, pegou-lhe ao colo e abraçou-a com ardor; a miúda
pareceu-lhe pesada e fria, mas Sófia Petrovna não quis confessar a si
mesma essa sensação e pôs-se a dizer à filha o bondoso, o honesto, o
querido que era o papá.
Quando porém chegou logo depois Andrei Iliitch, mal o sau-dou.
Já lhe passara o ataque de sentimentalismo afectado, sem lhe ter
provado nada, deixando-lhe apenas, pela sua falsidade, um rasto de
irritação e fúria. Estava sentada à janela, sofrendo e desavinda
consigo própria. Só na desgraça se pode compreender que não é fácil
sermos senhores dos nossos sentimentos e dos nossos pensamentos.
Sófia Petrovna viria a contar, mais tarde, que se dera nela «uma
confusão tão difícil de destrinçar como contar os pardais de um
bando em voo rápido». Por exemplo, o facto de não ter ficado feliz
com a chegada do marido, de não ter gostado dos modos dele
durante o almoço, levou-a a concluir que lhe nascia ali um certo ódio
pelo marido.
Andrei Iliitch, quebrantado pela fome e pelo cansaço, enquanto
esperava que lhe servissem a sopa atirou-se com avidez
ao chouriço e pôs-se a mastigar ruidosamente, com as têmporas a
mexerem para baixo e para cima.
«Meu Deus — pensava Sófia Petrovna — , gosto dele e respeito-o,
mas ... por que mastiga ele de modo tão grosseiro?»
Pensava tão desordenadamente como sentia. Lubiántseva, como
toda a gente sem experiência de luta contra os pensamentos maus,
tentava com todas as forças não pensar na sua desgraça, e quanto
mais lutava mais nítidos se erguiam na sua imaginação a figura de
Iliin, a areia nos joelhos, as nuvens de algodão, o comboio ...
«Estúpida, o que fui lá fazer hoje? — atormentava-se. — Serei o
género de mulher que não pode confiar em si própria?»
São grandes os olhos do medo. Quando Andrei Iliitch estava a
acabar o último prato, Sófia Petrovna estava decidida: contar tudo ao
marido e fugir do perigo!
— Andrei , preciso de ter uma conversa muito séria contigo —
começou, findo o almoço, quando o marido já tirava a sobrecasaca e
as botas para se deitar a descansar.
— Diz lá.
— Vamo-nos embora daqui!
— Humm ... para onde? Ainda é cedo para voltar à cidade.
— Mas vamos viajar, ou assim...
— Viajar... — murmurou o notário espreguiçando-se. — É também
o meu sonho, mas como arranjamos dinheiro para isso e quem me
vai tratar do escritório?
Pensou um pouco e acrescentou:
— Bem sei que, para ti, isto aqui é aborrecido. Se queres, vai
sozinha!
Sófia Petrovna concordou, mas logo compreendeu que Iliin iria
aproveitar a ocasião para se meter logo no comboio dela, na mesma
carruagem ... Reflectia e olhava para o marido ,já sem fome mas
ainda lânguido. O olhar dela caiu por acaso nos pés dele, minúsculos,
quase femininos, com as peúgas às riscas e ambas com uns
fiapozinhos espetados nas pontas ...
Entre o estore e a vidraça batia e zumbia um zangão. Sófia
Petrovna olhava para os fiapos das meias, ouvia o zangão e
imaginava-se a viajar... Dia e noite, vis-à-vis, o Iliin, sem tirar os
olhos dela, agastado com a sua falta de força de vontade e pálido de
dor espiritual. Chamando-se a si mesmo de rapazola depravado,
ralhando com ela, repuxando-se os cabelos, mas, ao cair da noite, ao
apanhar os outros passageiros a dormir ou ao vê-los sair para
passearem na estação, caindo de joelhos diante dela e abraçando-lhe
as pernas, como naquele banco ...
Caiu em si, percebendo que devaneava...
— Ouve, não vou sozinha! — disse. — Tens de ir comigo!
— Fantasias, Sófotchka! - suspirou Lubiántsev. — Tens de ser
realista e desejar apenas coisas possíveis.
«Irás, quando souberes!» — pensava Sófia Petrovna.
Tomada a decisão de sair dali, custasse o que custasse, sentiu-se
livre do perigo; foram-se-lhe arrumando as ideias a pouco e pouco,
até já se permitia pensar em tudo: pensasse ou não, sonhasse ou não,
não aconteceria nada porque partiria dali! Ainda o marido dormia e
já caía a noite ... Sófia Petrovna estava na sala de estar e tocava
piano. A animação nocturna de fora das janelas, os sons do piano e,
principalmente, aquela ideia de que ela, espertinha, conseguira
ultrapassar a desgraça, alegravam-na sobremaneira. As outras
mulheres - dizia-lhe a consciência apaziguada — , na situação dela,
talvez não resistissem e entrassem em turbilhão, mas ela, que por
pouco não morreu de vergonha, que sofreu, está agora a fugir do
perigo, um perigo que, aliás, talvez nem sequer exista! Estava tão
enternecida com a sua própria virtude e firmeza que até se olhou três
vezes ao espelho.
Quando escureceu de todo, começaram a chegar os convidados. Os
homens ficaram na sala de jantar a jogar cartas, as senhoras
ocuparam a sala de estar e o terraço. O último a chegar foi Iliin.
Vinha triste, sombrio, parecia doente. Sentou-se num canto do sofá e
não saiu de lá todo o serão. Normalmente animado e loquaz, desta
vez guardava silêncio, caregava o sobrolho e esfregava os cantos dos
olhos. Quando se via obrigado a responder a alguma pergunta,
forçava um sorriso só com o lábio superior e respondia de modo
abrupto, quase raivoso. Por cinco vezes quis fazer espírito, mas as
graças saíam-lhe rígidas, como pedradas. Pareceu a Sófia Petrovna
que o homem estava à beira de um ataque de histeria. Só agora,
sentada ao piano, percebia claramente que esse homem infeliz não
estava para brincadeiras, que lhe doía a alma e se movia como uma
alma penada. Por causa dela estava a sacrificar os melhores dias da
sua juventude e da sua carreira, gastava o seu último dinheiro com o
aluguer da casa de campo, abandonava à sua sorte a mãe e as irmãs
e, o principal, esgotava-se naquela luta torturante consigo próprio.
Ela, por simples e quotidiano humanismo, deveria levá-lo a sério ...
Consciencializou tudo isso com nitidez, até à dor de coração, e se
nesse instante se chegasse ao pé de Iliin e lhe dissesse «não!» haveria
na sua voz uma força tal que seria difícil não obedecer. Mas não se
aproximou dele nem lhe disse nada, nem sequer pensou nisso ... A
mesquinhez e o egoísmo da sua natureza jovem nunca antes se
tinham revelado nela como nesta noite. Percebia que Iliin estava
infeliz e se sentava no sofá como sobre brasas, doía-lhe vê-lo assim,
mas, ao mesmo tempo, a presença ali de um homem que a amava até
ao sofrimento enchia-lhe a alma de triunfo, de um sentimento de
força. Sentia a sua juventude, a sua beleza, a sua inacessibilidade e —
já que tinha decidido partir — deu asas à sua liberdade nesta noite.
Coqueteava, ria às gargalhadas sem parar, cantava com um
sentimento e uma inspiração especiais. Tudo a alegrava, a divertia,
lhe parecia cómico. A recordação do que se passara naquele banco, a
sentinela a olhar, davam-lhe para rir. Davam-lhe para rir os
convidados, as piadas agressivas de Iliin, o alfinete da gravata dele,
que nunca antes vira. Era em forma de serpentezinha vermelha com
olhos de diamante, o alfinete; tão engraçada, a serpentezinha, que
estava pronta a cobri-la de beijos.
Sófia Petrovna cantava as suas romanças com nervo, com uma
afoiteza meio bêbada e, como que a brincar com a desgraça alheia,
escolhia romanças tristes, melancólicas, que falavam das esperanças
perdidas, do passado, da velhice ... «A velhice está mais perto, mais
perto ...» — cantava ela. Ora, bem lhe importava a velhice!
«Sinto qualquer coisa cá dentro que não é boa...» — pensava no
meio dos risos e do canto.
Os convidados foram-se embora à meia-noite. Iliin foi o último a
sair. Sófia Petrovna ainda teve a ousadia de o acompanhar até ao
último degrau do terraço. Apetecia-lhe anunciar-lhe que ia viajar
com o marido, para ver o efeito da notícia.
A lua escondia-se por trás das nuvens, mas havia bastante
claridade, e Sófia Petrovna via como o vento brincava com as abas do
sobretudo de Iliin e com as cortinas do terraço. Também via como
estava pálido Iliin e como, ao arremedar um sorriso, entortava o
lábio superior...
— Sónia, Sónetchka(5) ... minha querida! — murmurava, não a
deixando falar. — Minha querida, minha adorada!
Num ataque de ternura, com lágrimas na voz, derramava palavras
de carinho, cada uma mais doce do que a outra, e já deixava escapar
o «tu», como à mulher ou à amante. Inesperadamente para ela,
envolveu-lhe a cintura com uma mão e com a outra pegou-lhe no
cotovelo.
— Minha querida, meu encanto ... — sussurrou, beijando-a no
pescoço, perto da nuca —, sê sincera contigo, vem agora a minha
casa!
Ela furtou-se aos seus abraços e ergueu a cabeça para explodir em
indignação e revolta, mas a indignação não resultou, e toda a sua
apregoada virtude, toda a sua pureza, só chegaram para dizer o que
habitualmente dizem todas as mulheres normais em semelhantes
circunstâncias:
— Está doido!
— A sério, vamos! — continuava Iliin. — Fiquei convencido ainda
agora, e já antes, naquele banco, que a Sónia é tão incapaz de resistir
como eu ... Não pode fugir a isto! Ama-me, e agora está a regatear
inutilmente com a sua consciência...
Vendo que ela se ia embora, apanhou-a pela manga rendada e
concluiu apressadamente:
— Se não for hoje é amanhã, mas vai ceder! Para que espe-rar?
Minha querida, minha adorada Sónia, a sentença foi pronunciada,
para que adiar a execução? Para que enganar-se a si mesma?
Sófia Petrovna arrancou dele a mão e esgueirou-se pela porta.
Voltou à sala de estar, fechou maquinalmente o piano, ficou muito
tempo com o olhar fixo na clave do emblema e sentou-se. Sentia-se
incapaz de ficar de pé e de pensar... A excitação e a audácia
anteriores deram lugar a uma fraqueza terrível, junta a um tédio,
uma moleza ... Portara-se mal, sussurrava-lhe a consciência, tivera o
estúpido comportamento de uma rapariguinha desvairada, acabara
de ser abraçada no terraço e ainda sentia na cinta e na cova do
cotovelo aquela impressão. Ninguém na sala de estar, apenas ardia
uma vela. Lubiántseva estava sentada no banco redondo do piano,
sem se mexer, como que à espera de alguma coisa. E um desejo
pesado, insuperável, como que aproveitando-se da sua prostração
extrema e da escuridão, começou a apoderar-se dela. Como uma
jibóia, apertava-lhe os membros e a alma, crescia a cada segundo e já
não só ameaçava, como antes, mas apresentava-se diante dela nítido,
em toda a sua nudez.
Ficou meia hora sentada, imóvel, sem se impedir de pensar em
Iliin, depois levantou-se com preguiça e arrastou-se para o quarto de
dormir. Andrei Iliitch já estava na cama. Sófia Petrovna sentou-se à
janela aberta e entregou-se ao desejo. Já não havia «confusão» na
sua cabeça, todos os sentimentos e pensamentos se ajustavam
conformes em tomo de um objectivo claro. Ainda tentou lutar
consigo, mas logo desistiu ... Agora sabia que forte e implacável era o
inimigo. Era preciso força e firmeza para resistir-lhe, mas o meio em
que nascera, a sua vida e educação não lhe davam armas em que
pudesse apoiar-se.
«Imoral! Desavergonhada! — remoía para si mesma, increpando a
sua impotência. — Com que então, é assim que tu és?»
A sua virtude ofendida indignava-se com semelhante fraqueza, a
ponto de Sófia Petrovna se insultar a si própria com todas as palavras
injuriosas que conhecia, de dizer a si mesma muitas
verdades ultrajantes e humilhantes: que nunca fora uma mulher
decente, que só não caíra mais cedo porque não tinha tido
oportunidade, que toda aquela sua luta durante o dia não passara de
brincadeira, de uma comédia ...
«Admitamos que lutei - pensava -, mas que luta foi essa? As
mulheres venais também resistem, também lutam antes de se
vender, mas acabam por vender-se na mesma. Bela luta: como o leite
que azedou num dia! Num dia!»
Desmascarou também para si mesma o facto de não ser o
sentimento que a puxava para sair de casa, nem a pessoa de Iliin,
mas as sensações que a esperavam ... Nada mais que uma senhora
dona veraneante, adúltera, como muitas!
— «Mata-a-ram a mãe do pa-assarinho» - cantava perto da janela
um tenor rouco.
«Se é para ir, então é já» - pensou Sófia Petrovna. O coração
bateu-lhe com uma força terrível .
— Andrei! - quase gritou ela. - Ouve, nós ... vamo-nos daqui? Sim?
— Sim... Já te disse: vai sozinha!
— Mas ... ouve ... - insistiu ela -, se não fores comigo, arriscas-te a
perder-me! Parece-me que estou ... apaixonada!
— Por quem? - perguntou Andrei Iliitch.
— Por quem, isso para ti tanto faz! - gritou Sófia Petrovna.
Andrei Iliitch sentou-se, dependurou os pés da cama e olhou,
surpreendido, para o vulto escuro da mulher.
— Fantasias! - bocejou.
Não podia acreditar, mesmo assim assustou-se. Depois de reflectir
e de fazer à mulher algumas perguntas sem importância, expôs-lhe o
seu ponto de vista sobre a família, a traição ... Falou com apatia uns
dez minutos e voltou a deitar-se. As sentenças dele caíram em cesto
roto. Existem neste mundo muitos pontos de vista, sendo que uma
boa metade deles provêm de pessoas que nunca passaram por uma
desgraça!
Apesar da hora tardia, ainda via pela janela veraneantes a
passearem. Sófia Petrovna lançou pelos ombros um mantelete leve,
parou, reflectiu ... Ainda arranjou coragem para dizer ao marido
sonolento:
— Já dormes? Vou dar uma volta ... Queres vir?
Era a sua última esperança. Como não recebesse resposta, saiu.
Estava vento, o ar fresco. Não sentia o vento nem a escuridão, e
andava, andava... Parecia que uma força imparável a movia e que, se
parasse, a empurraria pelas costas.
— Imoral! — murmurava maquinalmente. — Desavergonhada!
Ofegava, ardia de vergonha, não sentia os pés, mas o que a
empurrava para diante era mais forte do que a sua vergonha, o seu
juízo, o seu medo ...
OS PAPA-JANTARES

O velho septuagenário Mikhail Petrov Zótov, popular(6) de


condição, decrépito e solitário, acordou por causa do frio e da
quebreira no corpo todo. Ainda estava escuro no quarto, mas a
lamparina do ícone já não ardia. Zótov levantou a ponta da cortina e
espreitou pela janela. As nuvens que cobriam o céu já começavam a
esbranquiçar, o ar a tomar-se transparente — passaria das quatro,
não mais.
Zótov gemeu, tossiu e, encolhido de frio, saiu da cama. Pelo seu
costume de sempre, ficou muito tempo diante do ícone, a rezar.
Rezou o Pai-Nosso, a Ave-Maria, o Credo, rezou por muita gente,
um rol de nomes. Havia muito que já não se recordava a quem
correspondiam esses nomes, rezava só por hábito. Também por
hábito, varreu o quarto e o vestíbulo e pôs a aquecer o pequeno e
barrigudo samovar de cobre vermelho e quatro pernas. Não tivesse
Zótov estes hábitos e não saberia como preencher a velhice.
O samovarzinho aquecia sem pressas e, de repente, desatou a
soprar num baixo tremente.
— Ai assopras! — resmungou Zótov. — Assopra pr'aí, que te leve o
demónio!
Nisto, o velho lembrou-se a propósito que sonhara essa noite com
um fogão e, já se sabe, sonhar com fogões é sinal de desgosto.
Os sonhos e os agoiros ainda eram das únicas coisas que lhe
podiam espicaçar os pensamentos. Também desta vez, com
particular esmero, se embrenhou na análise dos problemas, a saber:
o que agourava o samovar a assoprar, que desgosto podia trazer
sonhar com fogões? Para começar bem o dia, o mau agouro cumpriu-
se: quando Zótov passou o bule por água quente e quis fazer o chá,
não achou na lata nem uma folhinha.
— Que vida de forçado! — resmoneava, girando na boca migalhas
de pão negro. — Vida de cão! Não há chá! Se eu fosse um raio de um
mujique, vá que não vá, mas sou um proprietário, tenho uma casa.
Vergonha!
Resmungando e discutindo consigo mesmo, Zótov vestiu o
sobretudo, que mais parecia uma crinolina, enfiou os pés nas
enormes galochas cambadas (feitas pelo sapateiro Prókhoritch no
ano de 1867) e saiu para o pátio. O ar estava cinzento, frio e
sombriamente calmo. O pátio espaçoso, coberto de bardanas e folhas
amarelas a lembrar caracóis do cabelo, estava levemente prateado
pela geada outonal. Nem um sopro de vento, nem um som. O velho
sentou-se nos degraus da soleira empenada e logo aconteceu o que,
sem falhar, acontecia todas as manhãs: aproximou-se a cadela
Lisska, uma rafeira grande, branca com malhas pretas, pelada, uma
morte em pé, com o olho direito fechado. A Lisska chegava-se,
tímida, torcendo-se cobardemente, como se as patas não pisassem
terra mas um fogão em brasa, e todo o seu corpo decrépito exprimia
a extrema humildade submissa. Zótov fingiu não reparar nela; mas
quando a cadela, dando molemente ao rabo e continuando a
contorcer-se, lhe lambeu a galocha, o velho bateu o pé com zanga.
— Arreda daqui, morte em pé! — gritou. — Bicho maldito!
Lisska afastou-se, sentou-se e pôs-de a fitar o dono com o seu olho
único.
— Tinhosos! — continuou Zótov. — Só cá me faltavam agora estes
herodes !
E olhou com ódio para o barracão de telhado torto e coberto de
ervas; de lá olhava para ele, da porta, uma grande cabeça cavalar.
Lisonjeada pelos vistos com a atenção do dono, a cabeça mexeu-se
num movimento para a frente, e do barracão saiu todo o resto do
cavalo, decrépito como Lisska, também tímido e embrutecido de
humildade como Lisska, de patas finas, já grisalho, com a barriga
cavada e os lombos ossudos. Saiu do barracão e parou indeciso, como
que envergonhado.
— Para o raio que vos parta ... — continuava Zótov. — Nunca mais
vos leva o demónio, seus faraós das galés ... Desejam que lhes ponha
a mesa? — soltou uma risadinha, entortando a cara furibunda num
sorriso de desprezo. — É para já, meus senhores! Para um trotador
tão precioso, aveia da melhor, à discrição. Sirvam-se! É para já!
Também há petiscos para a excelentíssima cadela de raça pura! Uma
cadela tão cara como vossoria, se não desejar pão, posso servir-lhe
caminha de vaca.
Zótov passou uma meia-hora a resmungar, irritando-se
progressivamente; por fim, não aguentando mais a raiva acumula-
da, levantou-se de um salto, bateu com as galochas no chão e
desaustinou-se em rezingas:
— Não tenho obrigação nenhuma de vos dar de comer, parasitas !
Não sou milionário para se empanturrarem à minha conta! Eu
próprio não tenho o que comer, seus suínos nojentos, não venha uma
peste que vos leve! De vós não vem proveito nenhum, nenhuma
alegria, só desgraça e prejuízo! Por que não espichais de um vez?
Mas que criaturas tão importantes são estas que nem a morte pode
nada com elas? Pois continuai vivos, andai lá, mas sustentar-vos é
que eu não vos sustento! Estou pelos cabelos! Não quero!
Zótov insultava, indignava-se, a cadela e o cavalo ouviam. Sabe-se
lá se os dois papa-jantares percebiam que estavam a ser exprobrados
pelo pão que comiam, mas as barrigas deles cavaram-se ainda mais,
as suas figuras encolheram-se, desbotaram, degradaram-se ainda
mais em humildade ... O seu ar submisso, porém, irritou ainda mais
Zótov.
— Fora daqui! — gritou numa espécie de inspiração. — Fora da
minha casa! Que não vos ponha mais a vista em cima. Não sou
obrigado a ter em casa toda a porcaria que aparece! Rua!
O velho trotou até à cancela e, apanhando um pau do chão, pôs-se
a enxotar para fora do pátio aqueles papa-jantares. O cavalo sacudiu
a cabeça, mexeu as omoplatas e coxeou para fora da cancela; a cadela
foi atrás dele. Saíram ambos para o caminho e, a uns vinte passos,
pararam ao lado da cerca.
— Olhai que vós levais! — ameaçou-os Zótov.
Tendo expulsado os papa-jantares, acalmou-se e pôs-se a varrer o
pátio. De vez em quando espreitava para o caminho: o cavalo e a
cadela mantinham-se imóveis ao pé da cerca e olhavam, tristonhos,
para a cancela.
— Agora tratai da vida sem mim! — resmungava o velho, mas a
raiva como que se lhe fundia no coração. — Outro qual-quer que
trate de vós! Com que então eu sou avarento, sou mau ... não se pode
viver comigo... pois então ide para outro qualquer, que trate de vós ...
Pois . ..
Deleitado com o ar oprimido dos papa-jantares e já farto de
resmungar, Zótov saiu da cancela e, pintando na cara uma expressão
feroz, gritou:
— Que fazeis aí parados? Estais à espera de quê? Rais vos parta, aí
especados para não deixar passar quem passa! P'ra casa, ja!
O cavalo e a cadela baixaram as cabeças e, com ar culpado,
voltaram à cancela. Lisska, sentindo pelos vistos que não merecia
perdão, ganiu lastimosamente.
— Ficai para aí; mas, sustentar-vos, bem podeis esperar! — disse
Zótov deixando-os entrar. — Bem podeis morrer à fome.
Entretanto, o sol ia furando a bruma da manhã e já os seus raios
oblíquos deslizavam pela geada outonal. Fora, já se ou-viam vozes e
passos. Zótov arrumou a vassoura e decidiu ir à venda de Mark
Ivánitch, seu vizinho e compadre. Na lojeca do compadre, sentou-se
numa cadeira desdobrável, suspirou com dignidade, alisou a barba e
falou do tempo. Do tema do tempo, os compadres passaram ao do
novo diácono, do diácono saltaram para o coro da igreja - e a
conversa ia-se alongando. Conversando, o tempo passava
despercebido, e quando o moço que ajudava na venda trouxe uma
grande chaleira de água quente e os compadres começaram a tomar
chá, então o tempo voava como um pássaro. Zótov aqueceu, ficou
mais alegre.
— Queria pedir-te um favor, Mark Ivánitch - começou de-pois do
sexto copo, tamborilando com os dedos no balcão ... - Pois tu ... não
leves a mal, mas hoje deita-me também aí seis arráteis de aveia.
Do sítio onde se sentava Mark Ivánitch, por trás da grande caixa de
chá, saiu um suspirar profundo.
— Deita lá, faz favor - continuou Zótov. - Não levo chá, pronto, mas
mede-me a aveia ... Até me envergonho de te pedir, já muito te tenho
chagado com a minha pobreza, mas ... o cavalo tem fome.
— Medir, meço - suspirou o compadre. - Então não havia de
medir? Mas diz-me só, por favor, por que raio sustentas essas mortes
em pé? Se fosse uma besta como deve ser, mas o que é aquilo? Mete
nojo aos cães ... E a rafeira? Um esqueleto! Pr'a que diabo lhes dás de
comer?
— Então, onde é que os meto?
— Bem sabes onde. Leva-os ao Ignat esfolador e acabou-se a
cantiga. Há muito que deviam ter ido para lá. É o lugar certo para
eles.
— Que é o lugar certo, lá isso é, mas ... Pois, talvez tenhas razão ...
— Vives com o que te dão de esmola por amor de Deus, e ainda
tens bichos - continuava o compadre. - Eu meço-te a aveia, tanto se
me dá... Leva-a, por amor de Deus, mas depois, amigo, é que ... sai

É
caro levares todos os dias. És pobre e não se enxerga o fim da tua
pobreza! Eu dou, dou, e não lhe vejo o final.
O compadre suspirou e passou a mão pela cara vermelha.
— Francamente, mais valia que Deus te levasse! — disse. — Vives e
não sabes para que vives ... Sinceramente! Ou então, se o Senhor não
te quer levar ainda, entra para um asilo ou um albergue para os
pobres.
— Porquê? Tenho família ... Tenho uma neta ...
E Zótov pôs-se a contar demoradamente que, algures num casal,
vivia a sobrinha-neta Glacha, filha da sobrinha Katerina.
— Tem obrigação de me sustentar! — disse. — Quando eu morrer,
a casa fica para ela, então que me sustente! Vou para lá e pronto! É a
Glacha, não sei se estás a ver, filha da Kátia, aquela que, lembras-te,
era enteada do meu irmão Pantelei ... Estás a ver quem é? Ela é que
vai ficar com a minha casa... Então que me sustente !
— Acho bem, por que não? Há muito que devias ter ido para casa
dela, escusavas de andar para aí a viver da caridade por amor de
Cristo.
— E vou. Deus me castigue se não vou. Tem obrigação!
Quando, uma hora depois, os compadres beberam um copo
da rija, Zótov pôs-se no meio da venda a falar com animação:
— Há muito que ando para ir ter com ela! Vou já hoje!
— Acho bem! Sempre é melhor ires lá para o casal do que andares
para aí à toa e a morrer de fome.
— Vou agora mesmo. Chego lá e digo: ficas com a minha casa e, a
mim, dás-me de comer e respeitas-me. Tem obrigação! E se não
quiseres, nem casa nem bênção! Adeus, Ivánitch!
Zótov bebeu mais um copo e, inspirado pela nova ideia, apressou-
se a ir para casa... A vodka amolecera-o, andava-lhe a cabeça à roda,
mas não se deitou, fez uma trouxa com a roupa toda que tinha, rezou
uma oração, pegou num bordão e partiu. Sem olhar para trás,
murmurando e batendo com o pau nas pedras, passou todo o
caminho e saiu para os campos. Até ao casal eram dez a doze verstás.
Andava pelo carreiro seco, olhava para o gado da vila a mastigar
preguiçosamente a erva amarela e pensava naquela viragem brusca
da sua vida, que estava a fazer com tanta ousadia. Pensava também
nesses parasitas, os seus papa-jantares. Quando saiu de casa não
fechou a cancela, concedendo-lhes assim a liberdade de irem para
onde quisessem.
Ainda nem uma verstá percorrera pelos campos quando ouviu
passos atrás de si. O velho voltou a cabeça e logo fez um gesto de
irritação com os braços: atrás dele, cabisbaixos e com os rabos entre
as pernas, vinham muito devagar o cavalo e a Lisska.
— Tomai para trás! — abanou as mãos.
Os dois bichos pararam, olharam um para o outro, olharam para
ele. O velho seguiu, e eles sempre atrás. Então, o homem parou e
pôs-se a pensar. Era impossível ir para casa da mal conhecida neta
Glacha com aquelas criaturas, voltar para casa e fechá-las não queria,
até porque não podia fechá-los, a cancela estava estragada.
«Iam morrer fechados no barracão — pensava Zótov. — Afi-nal,
não será melhor ir ao Ignat?»
A casa de Ignat era ao lado do pasto, a cem passos da barreira.
Zótov, que ainda não tomara uma decisão definitiva nem sabia o que
fazer, avançou para a casa. Tinha vertigens, uma névoa nos olhos ...
Pouca coisa recorda do que aconteceu no pátio do esfolador Ignat.
Lembra-se, isso sim, do cheiro pesado e abominável a peles, lembra-
se do vapor saboroso da sopa de repolho que Ignat estava a comer
quando ele entrou. Como num sonho, passava-lhe pelos olhos como
Ignat, depois de tê-lo feito esperar duas horas, preparava
demoradamente qualquer coisa, mudava de roupa, falava com uma
mulher sobre não sei quê de calomelanos; lembra-se como o cavalo
foi ajeitado no tronco de abate, como depois ouviu duas pancadas
surdas, uma no crânio, a outra do barulho de um corpo grande a cair.
Quando a Lisska , ao ver a morte do amigo, se atirou com um ganido
ao Ignat, ouviu-se o terceiro golpe, que silenciou bruscamente o
ganido. A seguir Zótov lembra-se que, ao ver os dois cadáveres,
zonzo e como um tolo, foi direito ao tronco e meteu lá a própria
cabeça...
Depois, até à noite, os olhos dele ficaram toldados por uma névoa
escura, e nem os próprios dedos era capaz de ver.
INSIGNIFICÂNCIAS DA VIDA

Nikolai Iliitch Beliáev, casa própria em Petersburgo, frequentador


assíduo das corridas de cavalos, ainda jovem nos seus trinta e dois
anos, cheiinho de corpo, cara rosada, passou uma vez ao fim da tarde
por casa de Olga Ivánovna, de apelido Irínina, com quem vivia ou, na
expressão dele, com quem arrastava um romance aborrecido e longo.
De facto, as primeiras páginas deste romance, interessantes e
inspiradas, havia muito que estavam lidas; agora, as páginas
arrastavam-se infindavelmente e já não tinham nada de novo nem de
interessante para oferecer.
Como não encontrasse Olga Ivánovna em casa, o meu herói
deitou-se no canapé da sala de estar, à espera.
— Boa noite, Nikolai Iliitch! - ouviu uma voz infantil. - A mamã
não demora. Foi com a Sónia à costureira.
Na mesma sala de estar, no sofá, estava deitado Aliocha, filho de
Olga Ivánovna, rapazinho esbelto de oito anos, bem tra-tado e
vestido, como nos figurinos, de casaquinho de veludo e meias pretas
compridas. Estava deitado em cima de uma almo-fada de cetim e,
imitando pelos vistos um acrobata que vira havia pouco no circo,
levantava ora uma perna, ora outra. Quando as pernas elegantes se
cansavam, punha em movimento os braços ou dava um salto e
punha-se de cócoras, tentando fazer o pino. Executava tudo isso com
a cara muito séria, resfolegando sofredoramente, como se ele próprio
lamentasse que Deus lhe tivesse dado um corpo tão inquieto.
— Ah, viva, amigo! — disse Beliáev. — És tu? Nem tinha reparado
em ti. A mamã está boa?
Aliocha, pegando com a mão direita na ponta do pé esquerdo e
tomando uma posição muito pouco natural, virou-se, levantou-se de
um pulo e espreitou para Beliáev de trás do grande quebra-luz
felpudo.
— Como lhe hei-de dizer? — disse ele e encolheu os ombros. — A
mamã, no fundo, nunca está bem de saúde. É mulher, e às mulheres,
Nikolai Iliitch, dói-lhes sempre qualquer coisa.
Beliáev, não tendo mais nada que fazer, pôs-se a examinar o rosto
de Aliocha. Até agora, desde que conhecia Olga Ivánovna, nunca dera
grande atenção ao miúdo nem se interessara minimamente pela vida
dele: andava por ali um rapaz, mas por que estava ali , que papel
desempenhava — não lhe apetecia pensar nisso.
No crepúsculo do anoitecer, o rosto de Aliocha com a sua fronte
pálida e os olhos negros que mal pestanejavam lembraram de
repente a Beliáev a Olga Ivánovna tal como ela fora nas primeiras
páginas do romance. Apeteceu-lhe acariciar o miúdo.
— Vem cá, bichaninho! — disse ele. — Deixa-me ver-te mais de
perto.
O rapaz saltou do sofá e correu para Beliáev.
— Então — começou Nikolai Iliitch, pondo a mão no ombro magro
dele. — Que tal a vida?
— Como lhe hei-de dizer? Dantes vivia-se muito melhor.
— Porquê?
— É simples! Dantes, eu e a Sónia só estudávamos música e
leitura, agora obrigam-nos a decorar poesias francesas. Ah, o senhor
foi ao barbeiro!
— Sim, há pouco.
— Estou a ver. A barbicha está mais curta. Posso tocar? ... Não lhe
dói?
— Não, não dói.
— Por que é que quando puxamos só um cabelo dói, e quando
puxamos logo muitos não dói nadinha? Ah-ah! Sabe uma coisa? É
pena não usar suíças. Rapa-se aqui, e dos lados ... nestes lugares
deixa-se a barba ...
O rapaz encostou-se a Beliáev e pôs-se a brincar com a cor-rente
do seu relógio.
— Quando eu entrar para o liceu — disse — , a mamã compra-me
um relógio. Vou pedir-lhe que me compre uma corrente igual a esta...
Que medalhão! O meu pai tem um medalhão tal e qual, só que o seu
é às riscas, e o do meu pai tem letras ... Por dentro tem o retrato da
mamã. O meu pai agora tem outra corrente, que não é aos elos, mas
como uma fita...
— Como é que sabes? Tens visto o teu pai?
— Eu? M-mm ... não! Eu ...
Aliocha corou e, muito confuso por ser apanhado a mentir, pôs-se
a arranhar o medalhão com a unha. Beliáev olhou-lhe
perscrutadoramente para a cara e perguntou:
— Tens visto o teu pai?
— N-não!.. .
— Vá lá, fala francamente, com honestidade ... Vejo pela tua cara
que não estás a dizer a verdade. Se já te escorregou a língua para a
verdade, não vale a pena estares com rodeios. Diz lá, tem-lo visto ou
não? Vá, de amigo para amigo!
Aliocha ficou pensativo.
— Não diz à mamã? — perguntou.
— Essa agora!
— Palavra de honra?
— Palavra de honra.
— Jure por Deus!
— Ah, que irritante! Por quem me tomas?
Aliocha olhou à volta, esbugalhou os olhos e sussurrou:
— Mas, por amor de Deus, não diga à mamã... Nem a ninguém,
porque é segredo. Deus me livre que a mamã saiba, porque então
haverá sarilhos para mim, para a Sónia, para a Pelagueia... Está bem,
ouça então ... Eu e a Sónia vemos o nosso pai todas as
terças e sextas. Quando a Pelagueia nos leva a passear antes do
almoço, vamos à pastelaria do Apfel e o papá já lá está à nossa
espera... Está sempre numa saleta separada, aquela onde há uma
mesa de mármore e um cinzeiro que é um ganso sem costas ...
— E o que fazem lá?
— Nada! primeiro cumprimentamo-nos, depois sentamo-nos à
mesa, e o papá oferece-nos café e pastéis. A Sónia, sabe, come pastéis
de carne, mas eu detesto pastéis de carne! Prefiro os de couve e ovos.
Ficamos muito cheios, e ainda por cima depois, ao almoço, para a
mamã não desconfiar de nada, comemos o mais possível.
— E de que falam?
— Com o papá? De tudo. Beija-nos, abraça-nos, conta histórias
engraçadas. Sabe, ele diz que quando crescermos nos leva para
vivermos com ele. A Sónia não quer, mas eu estou de acordo. Claro
que vou ter saudades da mamã, mas escrevo-lhe cartas! É estranho,
mas acho que até é possível ir visitá-la nos feriados, não é verdade? O
papá diz que ainda me há-de comprar um cavalo. Homem muito
generoso! Não percebo por que mamã não lhe diz para vir viver com
ela e por que nos proíbe de o ver. É que ele gosta muito da mamã.
Pergunta-nos sempre por ela, como vai de saúde, o que faz. Quando a
mamã esteve doente, até deitou as mãos à cabeça... assim ... e corria
para a frente e para trás, corria ... Diz-nos sempre que devemos
obedecer-lhe e respeitá-la. Oiça lá, é verdade que somos uns
desgraçados?
— Humm ... Porquê?
— Vocês, diz ele, são umas crianças desgraçadas. Até é estranho
ouvir aquilo. Vocês são uns desgraçados, eu sou um des-graçado, e a
mamã é uma desgraçada. Rezem a Deus, diz ele, por ela e por vocês.
Aliocha parou o olhar na ave empalhada e ficou pensativo.
— Po-ois ... — mugiu Beliáev. — Então agora é assim? Fa-zem
congressos nas pastelarias. E a mamã não sabe?
— N-não ... Como pode saber? Nunca na vida a Pelagueia vai
contar. Anteontem o pai ofereceu-nos pêras. Doces como o mel!
Comi duas.
— Humm .. Muito bem, e ... ouve, o teu pai não fala de mim?
— Do senhor? Como lhe hei-de dizer...
Aliocha olhou com atenção para a cara de Beliáev e encolheu os
ombros.
— Não diz nada de especial.
— Mas o que diz ele, mais ou menos?
— Não se vai zangar?
— Ora essa! Será que ele fala mal de mim?
— Não fala mal, mas, sabe como é ... está zangado consigo. Diz que
é por culpa sua que a mamã está desgraçada e que o se-nhor...
causou a perdição da mamã. Esquisito, o meu pai. Eu bem lhe
explico que o senhor é boa pessoa e nunca grita com a mamã, mas ele
só abana a cabeça.
— Diz mesmo assim, que eu causei a perdição dela?
— Diz. Não se ofenda, Nikolai Iliitch!
Beliáev levantou-se e pôs-se a andar pela sala de estar.
— É estranho e ... ridículo! — murmurou, encolhendo os om-bros e
sorrindo ironicamente. — Ele próprio é o culpado de tu-do, e eu
agora é que causei a perdição dela, vejam só! Que cordeirinho
inocente. Foi assim mesmo que ele disse, que eu causei a perdição da
tua mãe?
— Foi, mas ... o senhor disse que não ficava zangado.
— Não estou zangado e ... tu não és tido nem achado nisto! Não,
mas é ... é até ridículo! Fiquei com a corda na garganta, e agora eu é
que tenho a culpa!
Ouviu-se a campainha a tocar. O rapaz arrancou e correu para fora
da sala. Um minuto depois entrou uma senhora com uma menina
pequena - era Olga Ivánovna, mãe de Aliocha. Atrás dela, a saltitar, a
cantarolar em alta voz e a abanar as mãos, entrou Aliocha. Beliáev
acenou com a cabeça e continuou a andar.
— Pois claro, a quem se há-de agora acusar senão a mim? -
murmurava, fungando de raiva. - Ele até tem razão! É um ma-rido
ofendido!
— De que estás a falar? — perguntou Olga Ivánovna.
— De que estou a falar? ... Ouve só as coisas que o teu legítimo
anda a apregoar! Verifica-se que eu sou um canalha e um malfeitor,
que causou a tua perdição e a dos teus filhos. Vocês são todos uns
desgraçados, e só eu é que sou feliz! Terrivelmente feliz!
— Não compreendo, Nikolai! O que se passa?
— Então ouve este jovem senhor! — disse Beliáev apontando para
Aliocha.
Aliocha corou, depois ficou pálido repentinamente, o rosto
desfigurou-se-lhe de susto.
— Nikolai Iliitch! — sussurrou distintamente. — Psiu!
Olga Ivánovna olhou com espanto para Aliocha, para Beliáev,
depois para Aliocha.
— Pergunta-lhe a ele! — continuava Beliáev. — A tua Pelagueia,
essa idiota chapada, leva-os às pastelarias e organiza-lhes lá
encontros com o paizinho. Mas não se trata disso, trata-se de que o
paizinho é um sofredor e eu sou um bandido, um canalha que
destruiu a vida de vocês os dois ...
— Nikolai Iliitch! — gemeu Aliocha. — O senhor deu a sua palavra
de honra!
— Deixa-me em paz ! — sacudiu-o Beliáev. — Há aqui coi-sas mais
importantes do que a palavra de honra. O que me revolta é a
hipocrisia, é a falsidade!
— Não compreendo! — pronunciou Olga Ivánovna, com as
lágrimas a brilharem-lhe nos olhos. — Ouve, Liolka — dirigiu-se ao
filho —, tens visto o teu pai, é?
Aliocha não ouvia nada, olhava horrorizado para Beliáev.
— Não pode ser! — disse a mãe. — Vou interrogar a Pelagueia.
Olga Ivánovna saiu.
— Oiça, o senhor deu a sua palavra de honra! — articulou Aliocha,
e todo o corpo lhe tremia.
Beliáev abanou a mão e continuou a andar. Estava mergulha-do no
seu ressentimento e, como antes, já não queria saber do rapaz. Ele,
homem feito e sério, não estava para pensar em rapazes. Quanto a
Aliocha, sentou-se a um canto e pôs-se a contar à Sónia, com terror,
como tinha sido enganado. Tremia, titubeava, chorava; deparara pela
primeira vez na vida, cara a cara, com a mentira; dantes não sabia
que neste mundo, além das pêras doces, dos pastéis e dos relógios
caros, existem muito mais coisas que nem nome têm na língua
infantil.
GENTE DIFÍCIL

Evgraf Ivánovitch, de apelido Chiriáev, pequeno proprietário rural,


da família de um padre (o seu falecido progenitor, pope Ioann,
recebera como doação da generala Kuvchínnikova mais de
quatrocentas jeiras de terra), estava num canto defronte do lavatório
e lavava as mãos. Como de costume, tinha o ar preocupado e
sombrio, a barba desgrenhada.
— Mas que tempo! — dizia. — Isto não é tempo, é um castigo de
Deus. Outra vez a chover!
Resmungava, e toda a família, sentada à mesa, esperava que ele
acabasse de lavar as mãos para se dar início ao almoço. A mulher,
Fedóssia Semiónovna, o filho Piotr, estudante universitário, a filha já
grande, Varvara, e os três garotos mais pequenos havia muito que
estavam à mesa e esperavam. Os garotos — Kolka, Vanka e Arkhipka
—, sujos, narizes arrebitados, caras caudas e cabelos rijos que há
muito não viam tesoura, remexiam-se de impaciência nas cadeiras;
os adultos deixavam-se estar sentados, imóveis e, pelos vistos, tanto
lhes fazia — comer ou esperar...
Como que a pôr à prova a paciência deles , Chiriáev limpou
devagar as mãos, disse devagar uma oração e, sem pressas, sentou-se
à mesa. Foi imediatamente servida a sopa de repolho. Do pátio
chegava o bater das machadadas dos carpinteiros (Chiriáev construía
um barracão novo) e o riso do jornaleiro Fomka
que arremedava o peru. Najanela tamborilava a chuva rara mas
grossa.
O estudante Piotr, de óculos e um pouco curvado, comia e trocava
olhares com a mãe. Por várias vezes pousou a colher na mesa e
tossiu, preparando-se para falar, mas depois de deitar um olhar
atento ao pai desistia e voltava a comer. Por fim, já servidas as papas,
tossiu mais decidido e disse:
— Precisava de apanhar hoje o comboio nocturno. Há muito que lá
devia estar, já faltei duas semanas. As aulas começam sempre a 1 de
Setembro!
— Vai, claro — concordou Chiriáev. — De que estás à espera? Vai
com Deus.
Um minuto de silêncio.
— Ele precisa de dinheiro para a viagem, Evgraf Ivánovitch — disse
baixinho a mãe.
— Dinheiro? Claro! Sem dinheiro não se pode ir a lado ne-nhum.
Se precisas, dou-to já. Há muito que me devias ter pedi-do!
O estudante suspirou de alívio e olhou alegremente para a mãe.
Chiriáev, sem pressas, tirou a carteira do bolso lateral e pôs os
óculos.
— De quanto precisas? — perguntou.
— Só o bilhete para Moscovo são onze rublos e quarenta e dois
copeques ...
— Dinheiro, dinheiro! — suspirou o pai (suspirava sempre que via
dinheiro, mesmo a recebê-lo). — Aqui tens doze, vais precisar do
troco pelo caminho, amigo.
— Obrigado.
Passado um pouco, o estudante voltou à carga:
— No ano passado não arranjei logo explicações. Não sei como vai
ser este ano, mas tudo leva a crer que não vou arranjar trabalho tão
depressa. Precisava de mais uns quinze rublos para os primeiros
tempos, para a casa e os almoços.
Chiriáev pensou, suspirou.
— Dez chegam bem — disse. — Toma!
O estudante agradeceu. Precisava de mais algum para a roupa,
para a inscrição nas aulas, para os livros, mas, depois de ter olhado
com atenção para o pai, resolveu não incomodá-lo mais. A mãe, fraca
em política e insensata, como todas as mães, não se conteve e disse:
— Devias dar-lhe mais seis rublos para as botas, Evgraf Ivánovitch.
Olha só para isto, como pode ir para Moscovo com es-tas chancas?
— Que leve as minhas velhas. Estão como novas.
— Dá-lhe ao menos alguma coisa para as calças. Olha para esta
vergonha ...
Logo após, o presságio de tempestade que toda a família temia
pairou no ar: o pescoço curto e cevado de Chiriáev ficou de repente
vermelho como uma papoila. O vermelhão subia lentamente até às
orelhas, das orelhas às têmporas e, a pouco e pouco, inundou-lhe
toda a cara. Evgraf Ivánovitch mexeu-se na cadeira e desabotoou o
colarinho da camisa para não sufocar. Lutava, pelos vistos, contra
um sentimento que o dominava. Instalou-se um silêncio sepulcral.
As crianças retinham a respiração. Ora a Fedóssia Semiónovna,
como se não reparasse no que estava a acontecer com o marido,
continuava:
— Ele já não é nenhuma criança, já se envergonha de não ter
roupa.
Chiriáev, de repente, saltou da cadeira e arremessou com toda a
força a carteira grossa para cima da mesa, derrubando do prato uma
fatia de pão. Acendeu-se-lhe no rosto uma feia ex-pressão de ira,
ofensa, avidez - tudo junto.
— Levai tudo! — gritou fora de si. — Roubai tudo! Levai tu-do!
Matai-me!
Saiu da mesa de um pulo, deitou as mãos à cabeça e, tropeçando,
pôs-se a andar pela sala.
— Pilhai tudo até às últimas! — gritava com estridência. -
Espremei-me até às últimas ! Roubai-me tudo ! Apertai-me o
pescoço!
O estudante enrubesceu e baixou os olhos. Já não conseguia
comer. Fedóssia Semiónovna, que em vinte e cinco anos de casada
não chegara a acostumar-se ao carácter duro do marido, encolheu-se
toda e balbuciou qualquer coisa, a justificar-se. No seu rosto
definhado e bicudo como o de um pássaro, sempre entorpecido e
assustado, desenhou-se uma expressão de espanto e de medo
abrutalhado. Os garotos e a filha Varvara, adolescente feiosa e pálida,
pousaram as colheres na mesa e quedaram-se imóveis.
Chiriáev, enfurecendo-se cada vez mais, dizendo palavras cada vez
mais abomináveis, deu um salto para a mesa e pôs-se a sacudir o
dinheiro da carteira.
— Levai tudo! — murmurava, tremendo com o corpo todo. —
Comeram tudo, beberam tudo, agora que levem também o dinheiro!
Não preciso de nada! Mandai fazer botinhas novas, costurai
roupinhas para todos !
O estudante empalideceu e levantou-se.
— Oiça, paizinho — começou, ofegando. — Peço-lhe ... peço-lhe
que se acalme, porque ...
— Cala-te! — berrou-lhe o pai, e com tanta força que os óculos lhe
caíram do nariz. — Cala-te!
— Dantes ... eu dantes ainda podia suportar estas cenas, mas agora
... agora perdi-lhe o jeito. Está a entender? Perdi-lhe o jeito!
— Cala-te! — gritou o pai, batendo com os pés no chão. — Tens de
ouvir o que te digo! Eu digo o que me apetecer, e tu, ca-luda! Com a
tua idade eu já ganhava dinheiro, e tu, seu canalha, sabes por quanto
me ficas? Ponho-te no olho da rua! Parasita!
— Evgraf Ivánovitch — murmurava Fedóssia Semiónovna,
mexendo nervosamente os dedos. — É que ele ... é que o Pétia ...
— Cala-te! — gritou-lhe Chiriáev, e até lhe subiram as lágrimas aos
olhos de tanta fúria. — Tu é que os mimaste! Tu! A culpa é tua! Ele
não nos tem respeito nenhum, não reza a Deus, não ganha um tostão
para a casa! Sois dez, eu sou sozinho. Ponho-vos no olho da rua a
todos !
A filha Varvara, de boca aberta, olhou longamente para a mãe,
depois passou o olhar embotado pela janela, empalideceu e, soltando
um grito, caiu para trás sobre o espaldar da cadeira. O pai abanou a
mão, cuspiu e saiu a correr para o pátio.
Assim acabavam habitualmente as cenas de família dos Chiriáev.
Contudo, desta vez, o estudante Piotr permaneceu dominado por
uma raiva insuperável. Era de feitio irritadiço e difícil, tal como o pai
e o avô padre, que batia com um pau na cabeça dos paroquianos.
Pálido, com os punhos cerrados, aproximou-se da mãe e gritou na
mais alta tonalidade de tenor de que foi capaz:
— Para mim, essas acusações são nojentas, repugnantes! Não
quero nada de vocês! Nada! Prefiro morrer de fome a aceitar de
vocês nem que seja uma migalha! Tome lá o seu dinheiro mal-dito !
Tome !
A mãe coseu-se contra a parede a abanar as mãos, como se ti-vesse
diante dela um fantasma, e não o filho.
— Mas que culpa tenho eu? — chorou. — Que culpa?
O filho, tal e qual o pai, abanou a mão e saiu para o pátio. A casa de
Chiriáev ficava isolada, junto ao barranco que, como um sulco
comprido, atravessava a estepe estendendo-se até cerca de cinco
verstás. As beiras desta quebrada estavam cobertas de carvalhos e
amieiros novos, e no seu fundo corria um riacho. De um lado, a casa
dava para a quebrada, do outro para os campos. Não havia paliçadas
nem tapumes à volta, substituídas por todo o género de construções,
apertadas estreitamente umas contra as outras, formando em frente
da casa um espaço reduzido que era considerado o pátio e em que
chafurdavam as galinhas, os patos e os porcos.
Depois de sair, o estudante pôs-se a andar pelo caminho
lamacento através dos campos . No ar pairava a humidade
penetrante do Outono. O caminho era sujo, aqui e ali brilhavam os
charcos, da erva amarela do campo parecia espreitar o próprio
Outono: tristonho, decomposto, escuro. Ao lado direito do caminho
havia uma horta, toda cavada, sombria, onde se erguiam alguns
girassóis com as cabeças já negras, descaídas.
Piotr ia pensando que não seria mau ir para Moscovo a pé, tal
como estava, sem chapéu, com as botas rotas e sem um tostão no
bolso. À centésima verstá apanhá-lo-ia o pai, desgrenhado e
assustado, implorar-lhe-ia que voltasse e aceitasse o dinheiro, mas
nem para ele olharia, continuando sempre a andar, a andar, a
andar... Florestas despidas alternariam com campos tristonhos;
breve, a terra ficaria branca da primeira neve, os rios vidrados do
gelo ... Algures, perto de Kursk ou Sérpukhov, cairia e morreria.
Encontrariam o seu cadáver, e todos os jornais trariam a notícia: no
lugar tal sucumbiu de fome o estudante tal...
Um cão branco de rabo sujo, que vagueva pela horta à procura de
qualquer coisa, olhou para Piotr e arrastou-se atrás dele ...
Ia pelo caminho e pensava na morte, na mágoa dos familiares, no
sofrimento moral do pai e, ao mesmo tempo, imaginava aventuras de
viagem de todo o género, cada uma mais extravagante do que a
outra, lugares pitorescos, noites assustadoras, encontros
inesperados. Pintou na sua imaginação uma fila de peregrinas, uma
casinha na floresta com uma única janela a luzir distintamente na
escuridão; ele próprio debaixo da janela a pedir guarida para a noite
... deixavam-no entrar e, de repente... os bandidos. Ou, ainda melhor,
vai parar a uma grande casa senhorial em que, ao saberem quem ele
é, dão-lhe de comer e beber, tocam piano para ele, ouvem as suas
queixas, e apaixona-se por ele a bela filha do senhor.
Mergulhado na sua desgraça e em semelhantes pensamentos, o
jovem Chiriáev andava e andava ... À. frente, muito longe no pano de
fundo das nuvens cinzentas destacava-se, escura, uma estalagem;
ainda mais longe, mesmo na linha do horizonte, via-se uma pequena
elevação: era a estação do caminho-de-ferro. Aquele outeirinho fê-lo
sentir a ligação do sítio onde estava com Moscovo, a cidade onde
ardem lampiões, tilintam as carruagens e se assiste aos cursos. E por
pouco não chorou de angústia e impaciência. Esta natureza solene,
com a sua ordem e beleza, este silêncio de morte em volta... Sentiu-se
farto daquilo tudo até ao desespero, até ao ódio!
— Cuidado ! — ouviu atrás de si em voz alta.
Passou pelo estudante um landau leve e elegante transportando
uma velha proprietária rural conhecida dele. O jovem fez-lhe uma
vénia e sorriu-lhe amplamente. E logo a seguir caiu em si ao
apanhar-se a sorrir assim, o que não ligava com o seu estado de
espírito sombrio. Donde viria tal sorriso, se toda a sua alma era
desgosto e angústia?
Pôs-se então a pensar que talvez a própria natureza desse ao
homem esta capacidade de mentir para que, mesmo nos mo-mentos
penosos da tensão espiritual, ele pudesse guardar os segredos do seu
ninho, como faz a raposa ou o pato-bravo. Em cada família há
alegrias e horrores, mas, por maiores que sejam, é difícil a um olho
estranho vê-los, são segredo. Por exemplo, o pai da velha
proprietária que acabou de passar sofreu durante meia vida a ira do
czar Nicolau, por causa de uma injustiça qualquer; o seu marido era
um jogador de cartas empedernido; dos quatro filhos da senhora,
nenhum se fez alguém na vida. Era difícil imaginar quantas cenas
terríveis não se passariam no seio da sua família, quantas lágrimas
derramadas. Contudo, a velha parecia feliz, contente e respondeu
com um sorriso ao sorriso do estudante. Lembrou-se também dos
seus companheiros que falavam das respectivas famílias a
contragosto, lembrou-se da mãe que quase sempre mentia quando
tinha de falar do marido e dos filhos ...
Até ao crepúsculo, Piotr vagueou pelos caminhos, longe de casa,
entregando-se a pensamentos nada alegres. Quando começou a cair
uma chuva miudinha, meteu para casa. No caminho de volta decidiu,
custasse o que custasse, ter uma conversa com o pai, explicar-lhe, de
uma vez por todas, que era difícil e assustador viver com ele.
Em casa, esperava-o o silêncio. A irmã Varvara estava deitada por
trás do tabique e gemia baixinho com dores de cabeça. A mãe, com
uma cara de espanto e culpa, estava sentada ao pé dela na arca e
remendava as calças de Arkhipka. Evgraf Ivánovitch andava de uma
janela para a outra e carregava o cenho ao mau tempo. Via-se-lhe
pelo andar, pela tosse e até pela nuca que se sentia culpado.
— Portanto, mudaste de ideias e já não vais hoje? — perguntou.
O estudante sentiu pena dele, mas logo superou a fraqueza e
disse:
— Oiça... Preciso falar consigo a sério ... Pois, a sério ... Sempre tive
respeito por si e ... e nunca me atrevi a falar com o pai neste tom,
mas o seu comportamento ... a última cena...
O pai olhava pela janela e calava-se. O estudante, como que
procurando as palavras, esfregou a testa com a mão e continuou,
muito emocionado:
— Não há um almoço ou um chá nesta casa sem o pai armar
barulho. O seu pão fica atravessado na garganta de toda a gente ...
Não há nada mais insultuoso e humilhante do que estar sempre a
atirar à cara de alguém que está a comer o pão que lhe dão ... Embora
o senhor seja o pai, ninguém lhe dá o direito (nem Deus, nem a
natureza) de insultar, de humilhar e descarregar nos mais fracos o
seu mau estado de ânimo. O senhor secou a mãe, fê-la perder a
personalidade, o estado de embrutecimento da minha irmã é
desesperado, e eu ...
— Não és tu quem me vai dar lições — disse o pai.
— Sim, eu! Pode escarnecer de mim quanto quiser, mas deixe a
mãe em paz! Não vou admitir que torture a mãe! — continuou o
estudante, com os olhos a chispar. — O senhor ficou mal habituado
porque ainda ninguém se atreveu a fazer-lhe frente. Todos tremem,
perdem a fala quando estão à sua frente, mas agora acabou-se! O
senhor é grosseiro ... grosseiro, entende? ... difícil, empedernido! Os
mujiques também o detestam!
O estudante perdera o fio ao pensamento e era como se já não
falasse mas disparasse à toa palavras soltas. Evgraf Ivánovitch ouvia
e calava, como aturdido; mas de repente o pescoço enrubesceu-lhe, a
cor começou a subir-lhe pela cara, agitou-se.
— Caluda! — berrou.
— Muito bem! — não se calava o filho. — Não gosta de ouvir as
verdades? Óptimo! Muito bem! Ponha-se aos gritos! Óptimo!
— Caluda, ouviste? — rugiu Evgraf Ivánovitch.
À porta apareceu Fedóssia Semiónovna, o espanto no rosto, muito
pálida; queria dizer alguma coisa e não conseguia, só mexia os dedos
.
— A culpa é tua! — gritou-lhe Chiriáev. — Educaste-o assim!
— Não quero viver mais nesta casa! — gritou o estudante, a chorar
e olhando para a mãe com raiva. — Não quero viver convosco!
A filha Varvara soltou um grito atrás do tabique e desatou a
chorar. Chiriáev abanou a mão e correu para fora de casa.
O estudante dirigiu-se para a sua cama e deitou-se em silêncio. Até
à meia-noite deixou-se ficar imóvel, sem abrir os olhos. Não sentia
raiva nem vergonha, apenas uma vaga dor de alma. Não acusava o
pai, não tinha pena da mãe, não o torturavam os remorsos; para ele
era agora claro que toda a gente lá em casa estava a passar pela
mesma dor, e só Deus sabia de quem era a culpa, quem sofria mais e
quem sofria menos ...
À meia-noite acordou um criado e mandou que lhe preparasse o
cavalo para as cinco da manhã, para o levar à estação; despiu-se,
agasalhou-se no cobertor, mas não conseguiu pregar olho. Até ao
amanhecer ouviu como o pai arrastava os pés de uma janela para a
outra, sem sono, e suspirava. Ninguém dormia naquela casa; a
espaços, raros, ouvia-se alguém falar, em sussurro. Por duas vezes a
mãe passou o biombo e se aproximou da sua cama: persignava-o
muito tempo e estremecia nervosamente...
Às cinco horas, o estudante despediu-se meigamente de todos,
chorou mesmo um pouquinho. Ao passar pelo quarto do pai,
espreitou pela porta. Evgraf Ivánovitch, vestido, sem se ter ainda
deitado, estava de pé frente à janela e tamborilava na vidraça.
— Então adeus, vou-me embora — disse o filho.
— Adeus ... O dinheiro está em cima da mesinha redonda ... —
respondeu o pai sem voltar a cabeça.
Quando saiu para o levarem à estação, caía uma chuva fria, odiosa.
Os girassóis inclinavam ainda mais as cabeças, a erva parecia mais
escura.
PSIU! ...

Ivan Egórovitch Krasnúkhin, colaborador, como há muitos, de um


jornal, chega a casa já noite avançada, carrancudo, sério e com um ar
invulgarmente concentrado. Dá a impressão de quem está à espera
de uma busca da polícia ou cisma no suicídio. Depois de passear
algum tempo pelo gabinete, pára, arrepia o cabelo e diz em tom de
Laertes preparando a vingança da irmã:
— Destroçado, a alma cansada, um peso a oprimir-me o coração...
e faz o favor de te sentares e escreveres! Pode-se chamar vida a isto?
Por que é que ainda ninguém descreveu o conflito íntimo e
torturante do escritor quando está triste mas é obrigado a fazer rir a
turba, ou quando está feliz mas tem de derramar lágrimas por
encomenda? Tenho de ser brincalhão, ou in-diferente e frio, ou
espirituoso, mas imaginem que me oprime a mágoa ou, digamos, que
estou doente, me morre o filho, entra em trabalho de parto a minha
mulher!
Ao dizê-lo, agita o punho cerrado e revira os olhos ... Depois vai ao
quarto de dormir e acorda a mulher.
— Nádia - diz ele -, vou sentar-me a escrever... Por favor, que
ninguém me incomode. É impossível escrever quando as crianças
berram e as cozinheiras ressonam ... Manda também fazer chá... e
um bife, digamos ... Sabes que não posso escrever sem chá... O chá é
a única coisa que me revigora quando trabalho.
Voltando ao gabinete, tira a sobrecasaca, o colete e as botas. Fá-lo
devagar, depois comunica à fisionomia uma expressão de inocência
ofendida, senta-se à mesa de trabalho.
Nada na mesa de trabalho é fortuito, quotidiano, mas tudo, a
mínima bugiganga, se reveste do carácter de objecto bem pensado e
de um programa rigoroso. Pequenos bustos e fotografias de grandes
escritores, o montão dos rascunhos, um tomo de Belínski(7) com um
cantinho de página dobrado, um osso occipital a fazer de cinzeiro,
uma folha de jornal sabiamente do-brada à toa de modo a ficar à
vista uma passagem contornada a lápis azul com a nota à margem:
«infâmia!». E também uma dúzia de lápis recém-afiados e penas
com aparos novos, não vão as causas externas e as casualidades, do
género pena estragada, interromper por um segundo que seja o voo
livre e criador...
Krasnúkhin reclina-se no espaldar do cadeirão e, fechando os
olhos, mergulha na reflexão sobre o tema. Ouve como a mulher
arrasta os chinelos e corta cavacos de lenha para acender o samovar.
Ainda não está bem acordada, nota-se pelas achas e pela faca que
volta e meia lhe caem das mãos. Não tarda a ouvir-se o assobio do
samovar e o estrugir da carne a fritar-se. A mulher não pára de cortar
cavacos e de bater com os tapadores, as tampas e com as portinholas
do fogão. Krasnúkhin estremece de súbito, abre os olhos assustado e
põe-se a cheirar o ar.
— Meu Deus, gás carbónico! — geme, franzindo a cara com ar
sofredor. — Gás carbónico! Esta mulher insuportável quer intoxicar-
me! Digam-me, por amor de Deus, será possível escrever neste
ambiente?
Corre para a cozinha, onde se expande numa berraria dramática.
Quando um pouco mais tarde a mulher, em bicos de pés, lhe traz um
copo de chá, ele está, como antes, sentado no cadeirão, com os olhos
fechados, mergulhado no seu tema. Não mexe, tamborila levemente
com dois dedos na testa e finge não dar pela presença da mulher...
Na sua cara perdura a expressão de inocência ofendida ...
Como uma menina a quem ofereceram um leque caro, ele, antes de
escrever o título, coqueteia demoradamente consigo mesmo, exibe-
se, requebra-se ... Ora aperta as têmporas, ora se dobra e mete as
pernas para debaixo do cadeirão como se tivesse dores, ora franze
languidamente os olhos como um gato no sofá... Por fim, não sem
alguma hesitação, estende a mão para o tinteiro e, com a expressão
de quem assina uma sentença de morte, escreve o título ...
— Mamã, quero água! — ouve a voz do filho.
— Psiu! — diz a mãe. — O papá está a escrever! Psiu!.. .
O papá escreve muito depressa, sem emendas nem pausas, no
virar das folhas do caderno, mal pode esperar. Os bustos e os retratos
dos escritores famosos olham para a sua pena veloz, não se mexem,
mas é como se pensassem: «Santo Deus, que perícia atingiste,
amigo!»
— Psiu ! — range pena.
— Psiu! — emitem os escritores ao estremecerem quando a mesa,
empurrada pelo joelho, abana.
De repente Krasnúkhin endireita-se, pousa a pena e apura o
ouvido ... Escuta um sussurro monótono ... É no quarto contíguo, o
inquilino Fomá Nikoláevitch a rezar.
— Oiça! — grita Krasnúkhin. — Não me fará o favor de rezar mais
baixo? Não me deixa escrever!
— Desculpe... — responde timidamente Fomá Nikoláevitch.
— Psiu!
Acabadas de encher cinco páginas, Krasnúkhin espreguiça-se e
olha para o relógio.
— Deuses do céu, três horas! — geme. — Toda a gente a dormir, só
eu ... só eu é que tenho de trabalhar!
Destroçado, fatigado, com a cabeça a pender para o lado, vai ao
quarto de dormir, acorda a mulher e diz em voz desmaiada:
— Nádia, dá-me mais chá! Eu ... fui-me abaixo!
Escreve até às quatro, e mais escreveria, nem que fosse até às seis,
se o tema não se lhe tivesse esgotado. Galantear, requebrar-se para si
próprio e para os objectos submissos, longe dos coscuvilheiros
olhares indiscretos; espalhar o despotismo e a tirania sobre o
pequeno formigueiro que o destino lançou sob o seu poder
constituem o sal e o mel da sua existência. E que longe está este
déspota, aqui em sua casa, daquele homenzinho pequeno, humilde,
apagado e medíocre que nos habituámos a ver nas redacções !
— Estou tão cansado que acho que não vou poder dormir... — diz
ele, deitando-se. — Este nosso trabalho, este trabalho amaldiçoado,
ingrato, um trabalho de galés, mexe não tanto com o corpo mas com
a alma... Acho que devia tomar brometo de potássio ... Oh, Deus é
testemunha: se não fosse a família, ao tempo que tinha largado este
trabalho ... Escrever por encomenda! Que coisa horrível!
Dorme, até ao meio-dia ou até à uma, um sono profundo e
salutar... Ah, dormiria ainda melhor, teria sonhos ainda mais es-
pantosos, tiraria disso ainda mais capacidades, se se tomasse escritor
famoso, redactor ou, pelo menos, editor!
— Esteve toda a noite a escrever! — sussurra a mulher, fazendo
uma cara assustada. — Psiu!
Ninguém se atreve a falar, a andar, a bater. O sono dele é sagrado,
o culpado de o profanar pagará caro pela profanação!
— Psiu! — esvoaça pelo apartamento. — Psiu!
VANKA

Vanka Júkov, rapaz de nove anos, entregue ao mestre sapateiro


Aliákhin para aprendiz três meses atrás, na noite de Consoada não se
foi deitar. Quando por fim os patrões e os oficiais saíram para a
missa do galo, tirou do armário do mestre um frasco de tinta e uma
pena com aparo enferrujado e, pondo à sua frente uma folha de papel
amarrotada, resolveu-se a escrever. Antes de rabiscar a primeira
letra, passou várias vezes os olhos assustados pelas portas e janelas,
olhou de esguelha para um ícone escuro, de ambos os lados do qual
se estendiam as estantes com as formas e alargadeiras, e deu uns
suspiros entrecortados. O papel estava em cima de um banco, e
Vanka de joelhos à frente dele.
«Meu querido avô Konstantin Makáritch! - começou. - Pois
escrevo-te esta carta. Desejo-te um Natal feliz e que Deus te não falte
com nada. Não tenho pai nem mãe, só me restas tu.»
Vanka desviou os olhos para a janela escura, onde brilhava ténue o
reflexo da vela, e imaginou ao vivo o seu avô Konstantin Makáritch,
guarda da noite dos senhores Jivariov. É um velho pequenito,
franzino, mas ágil e remexido como tudo, dos seus sessenta e cinco
anos, sempre de cara risonha e olhos meio bêbedos. Dorme de dia,
na cozinha dos criados, ou chalaceia com as cozinheiras, mas de
noite, bem agasalhado num tulup amplo de pele de ovelha, faz a
ronda da quinta a estalar com a matraca. Seguem-no, de cabeças
baixas, a velha cadela Kachtanka e o cãozinho Eiró, chamado assim
pela sua cor negra e por ter um corpo comprido de doninha. Este
Eiró é extraordinariamente respeitoso e meigo, olha com o mesmo
enternecimento tanto para conhecidos como para estranhos, mas
não é digno de crédito. O seu feitio respeitoso e submisso esconde a
mais jesuítica das malícias. Ninguém como ele para se aproximar à
sorrelfa e ferrar uma perna, se introduzir na geleira dos víveres ou
roubar uma galinha ao campónio. Por mais de uma vez lhe
mancaram as patas de trás, por duas vezes esteve à morte por
enforcamento, todas as semanas o sovavam quase até à morte, mas
ressuscitava sempre.
Agora, calhando, está o avô à beira do portão, pisca os olhos para
as janelas encarniçadas da igreja da aldeia e, batendo com as botas
de feltro, chalaceia com as criadas. Matraca à cinta, deixa cair,
gaiteiro, as mãos nas ancas, encolhe-se de frio e, rindo os seus
risinhos de velho, ora belisca a criada de quarto, ora a cozinheira.
— Vai uma pitada de rapé? — diz ele, oferecendo a tabaqueira às
mulheres.
As mulheres cheiram e espirram. O avô fica indescritivelmente
enlevado, desfaz-se em casquinadas de riso alegre e grita:
— Boa vai ela, raparigas!
Também dão a cheirar o rapé aos cães. A Kachtanka espirra,
sacode o focinho e, ofendida, afasta-se. O Eiró, por deferência, não
espirra e dá ao rabo. Ora, o tempo está magnífico. O ar é calmo,
transparente e fresco. A noite é escura, mas vê-se a aldeia toda com
os seus telhados brancos e as volutas de fumo a erguerem-se das
charninés, as árvores prateadas de sincelo, os montes de neve. Todo
o céu está juncado de estrelas piscando alegremente, e a Via Láctea
distingue-se com tanta nitidez como se tivesse sido lavada e
esfregada com neve antes das festas ...
Vanka suspirou, molhou a pena e continuou escrever.
«Pois eu ontem fui puxado de rojos com sova a acompanhar. O
mestre arrastou-me para o pátio pelo cabelo e deu-me uma surra
com o tirapé, porque eu estava a embalar o berço do bebé deles e
adormeci sem querer. Também há tempos a patroa me mandou
descamar o arenque e como eu comecei pelo rabo ela pegou no
arenque e esfregou-me o focinho dele na cara. Os ofi-ciais gozam
comigo, mandam-me à taberna buscar vodka e que roube pepinos
aos patrões e o mestre bate-me com tudo o que lhe calha à mão. E
não há nadinha para comer. De manhã é pão, ao almoço papas, à
noite outra vez pão, e quanto ao chá e à sopa de repolho os patrões é
que mamam tudo sozinhos. Também me mandam ir dormir para o
vestíbulo, e quando o bebé deles chora eu não durmo nada porque
tenho de embalar o berço. Meu querido avô, por esta te peço por
Deus misericordioso que me leves daqui para fora, aí para a casa da
aldeia, que não aguento mais aqui ... Por esta te envio os meus
cumprimentos e hei-de sempre rezar a Deus por ti, tira-me daqui
senão ainda morro ...»
Vanka fez um trejeito com a boca, esfregou os olhos com o punho
surrado e soluçou.
«Pois eu é que te vou ralar o rapé — continuava — , rezar por ti e,
se fizer alguma, podes dar-me uma malha das valentes. Se achas que
não há aí trabalho para mim, pois eu vou pedir por amor de Deus ao
feitor para me deixar limpar-lhe as botas, ou vou com o pastor em
vez do Fedka. Meu querido avô, não posso mais, eu aqui estou para
morrer. Já quis ir para a aldeia a pé, mas não tenho botas e tenho
medo do frio. Quando for grande hei-de agradecer-te isto tudo, dar-
te de comer e defender-te de todos, e quando morreres rezo pela tua
alma como rezo pela mãezinha Pelagueia.
Pois Moscovo é uma cidade grande. Todas as casas são de
senhores e os cavalos são a mato, mas não há cá ovelhas e os cães são
mansos. Aqui a rapaziada não faz a ronda com a estrela, e não
deixam ninguém cantar no coro da igreja e uma ocasião vi na vidraça
de uma loja que vendem anzóis logo com fio e tudo, e para toda a
raça de peixè, muito bons mesmo, e até há um anzol que aguentava
bem um bagre de arroba. E também vi lojas onde há espingardas
como essa aí do amo, acho que a cem rublos cada uma... Ora, nos
talhos há tetrazes e perdizes, e lebres, mas em que sítios as caçam,
disso os lojistas não querem falar.
Meu querido avô, quando os amos aí fizerem a árvore de Na-tal
com prendas, tira para mim uma noz dourada e guarda-a no baú
verde. Pede-a à menina Olga Ignátievna, diz-lhe que é cá para o
Vanka.»
Vanka suspirou convulsamente e outra vez ficou com o olhar
espetado na janela. Recordava que era sempre o avô quem ia buscar
a árvore à floresta e levava consigo o neto. Tempos felizes! O avô
rascanhava da garganta, o frio de rachar como que rascanhava
também, e Vanka, olhando para eles, não deixava de os imitar. Agora
o avô, antes de cortar o abeto, fuma o cachimbo, cheira sem pressas o
rapé, brinca com o Vaniucnka transido de frio ... Os abetos novos,
cobertos de geada, estão imóveis à espera — qual deles vai morrer?
De repente, como uma flecha, voa pela neve uma lebre ... O avô,
então, grita:
— Agarra, agarra... agarra! Ah, diabo sem rabo!
A árvore derrubada era levada pelo avô para casa dos amos, e lá
punham-se a enfeitá-la... Nesse serviço, atarefava-se mais do que
todos a menina Olga Ignátievna, preferida do Vanka. Era ainda viva a
Pelagueia, mãe de Vanka, que servia em casa dos senhores como
criada de quarto, e Olga Ignátievna dava rebuçados ao Vanka e, por
capricho, ensinava-o a ler e a escrever, a contar até cem e mesmo a
dançar a quadrilha. Mas, quando Pelagueia morreu, mandaram o
órfão Vanka viver para a cozinha dos criados, com o avô, e da
cozinha para Moscovo, para o sapateiro Aliókhin...
«Anda cá buscar-me, querido avô — continuava Vanka —, peço-te
por amor de Nosso Senhor Jesus Cristo que me leves daqui. Tem
pena de mim, que sou um órfão desgraçado, todos me batem e rapo
muita fominha, e é tanta a saudade que nem sei dizer, choro sempre.
Há dias o mestre atirou-me com uma forma à cabeça, eu caí e custou
muito a voltar a mim ... A minha vida é uma vida perdida, pior do
que a de um cão... Também por esta envio os meus respeitos à
Aliona, ao Egorka zarolho e ao cocheiro e não dês a ninguém a minha
concertina. Este teu neto muito amigo que nunca te esquece e se
despede de ti, e vem buscar-me, meu querido avô.»
Vanka dobrou a folha em quatro e meteu-a no envelope, comprado
na véspera por um copeque ... Pensou um pouco, molhou a pena e
escreveu o endereço:

Para a aldeia do avô

Depois coçou a cabeça, pensou mais um bocado e acrescentou:


«Para Konstantin Makáritch». Contente por não o terem impedido
de escrever, pôs o gorro e, sem vestir a pelicinha, só em camisa,
correu para a rua ...
Os rapazes do talho, a quem tinha perguntado na véspera,
disseram-lhe que as cartas se metiam nos marcos do correio e depois
eram levadas para todo o lado pelas troikas da malaposta com
cocheiros bêbados e guizos barulhentos. Vanka correu até ao marco
mais próximo e enfiou a preciosa carta na ranhura ...
Embalado por doces esperanças, passada uma hora já dormia
profundamente ... Sonhava com o fogão. No catre do fogão está
sentado o avô, descalço, com as pernas ao pendurão, e lê a carta às
cozinheiras ... Ao lado do fogão anda o Eiró a dar ao rabo ...
SONHOS

Dois regedores de aldeia — um de barba negra, atarracado, de


pernas tão invulgarmente curtas que, visto de costas, parece que as
pernas lhe começam muito mais abaixo que as das outras pessoas; o
outro magro, alto e direito como um varapau, com uma barbicha
ruivo-escura e rala - escoltam para o centro distrital um vagabundo
sem nome nem família. O primeiro guarda bamboleia-se a andar,
olha para todos os lados, mastiga ora uma palha, ora a sua própria
manga, cantarola acompanhando-se com pancadinhas nas ancas,
tem, no geral, um ar despreocupa-do e leviano; o outro, apesar da
cara magra e dos ombros estreitos, tem um ar imponente, sério e
inteiriço, e mais parece, pela compleição e pela figura, um daqueles
popes da velha crença ortodoxa ou os guerreiros pintados nos ícones
antigos; a ele, «alargou Deus a fronte com a sabedoria», ou seja, tem
a cabeça calva, o que aumenta ainda mais a semelhança. O primeiro
chama-se Andrei Ptakha, o outro Nikandr Sapójnikov.
O homem escoltado não corresponde à noção que as gentes têm de
um vagabundo. É pequeno e franzino, fraquinho e enfermiço, com
uns traços de rosto miúdos, descorados e extremamente indefinidos.
As sobrancelhas são ralas, o olhar submisso e meigo, o bigode é
quase nenhum, apesar de já ter entrado claramente na casa dos
trinta. Caminha com insegurança, curvado, as mãos recolhidas para
as mangas. A gola do seu pobre sobretudo, que não é de camponês, é
de fazenda bastante coçada, está levantada até à orla do boné, pelo
que só o narizinho vermelhusco do homem ousa assomar-se para
este mundo de Deus. Fala num tom de tenor servil, tossicando a cada
momento. É difícil, muito difícil mesmo, ver nele o vagabundo que
oculta o seu próprio nome. Parece mais um filho de pope azarento
caído na miséria e esquecido por Deus, ou um escrivão despedido
por motivos de bebedeira, ou um filho ou sobrinho de comerciante
que investiu as suas minúsculas forças no ofício de actor e está agora
de volta a casa para representar o último acto da parábola do filho
pródigo; ou talvez, a julgar pela paciência embotada com que ataca a
lama outonal do caminho, seja um fanático — um moço de abadia
que passa a vida a arrastar-se pelos mosteiros russos na busca
persistente de uma «vida serena e sem pecado» sem a encontrar...
Os caminhantes já há muito dão à perna, mas é como se não
saíssem de um pequeno troço de caminho: estende-se-lhes pela
frente não mais de cinco braças de terra escura enlameada,
pardacenta, por atrás o mesmo, e o mais longe que a vista lhes
alcança é um muro indevassável de nevoeiro branco. Andam e
andam, mas o solo é sempre o mesmo, o muro nunca fica mais perto,
o pequeno troço de caminho em que vão metidos não há meio de
mudar. Lá surge por um instante um calhau branco e anguloso, um
montículo ou uma braçada de feno porventura caída de alguma
carroça que passou, lá brilha por curtos momentos algum charco
grande e turvo, ou lá se entrevê pela frente, fugidia, uma sombra de
contornos indefinidos; quanto mais se aproximam da sombra mais
pequena e escura fica e, ainda mais perto, lá surge aos olhos dos
caminhantes um marco do caminho, torto, com o seu número gasto,
ou uma betulazinha miserável, molhada, desnuda, que mais parece
um pedinte de estrada. A bétula balbucia qualquer coisa para si com
as suas últimas folhas, uma folha arranca-se dela e voa
preguiçosamente para baixo ... Depois, outra vez o nevoeiro, a lama,
a erva parda nas bordas do caminho. Na erva penduram-se umas
lágrimas baças, sem bondade. Não são aquelas lágrimas de meiga
alegria que a terra chora quando encontra e se despede do sol estival,
e que dá a beber na alvorada às codornizes, aos francolins e às
narcejas esbeltas de narizes compridos! Os pés dos caminhantes
afundam-se na lama pesada, peganhenta. Cada passo é custoso de
dar.
Andrei Ptakha está um tanto excitado. Passa o olhar pelo
vagabundo e esforça-se por perceber como pode uma pessoa viva e
sóbria não se lembrar do seu nome.
— Não és cristão? — pergunta.
— Sou — responde o outro resignadamente.
— Humrn! ... Quer dizer que foste baptizado?
— Claro que fui baptizado. Não sou turco nenhum. Vou à igreja,
vou à confissão, cumpro os jejuns quando é tempo deles. Cumpro a
lerigião como é de lei ...
— Então como é que te chamas?
— Chama-me como quiseres, homem.
Ptakha encolhe os ombros e dá palmadas de perplexidade nas
ancas. O outro guarda, Nikandr Sapójnikov, mantém um silêncio
imponente. Não é tão ingénuo corno Ptakha e, pelos vistos, conhece
perfeitamente as causas que levam um cristão ortodoxo a esconder
dos outros o seu nome. Mantém fria e séria a expressiva cara,
caminha um pouco afastado, não condescende naquela conversa-
fiada com os companheiros e como que tenta mostrar a todos,
mesmo ao nevoeiro, a sua seriedade e sensatez.
— Só Deus sabe o que se deve pensar de ti — Ptakha continua a
insistir com o outro. — Mujique não és, senhor também não, és um
assim-assim... Há dias estava eu a lavar peneiras no lago e apanho
um lagarto, do tamanho do meu dedo, com guelras e rabo. Primeiro
pensei que era um peixe, depois olhei e ... raios me partam se não
tinha patas! Nem peixe nem lagarto, só o diabo sabe o que era '
aquilo ... Corno tu ... De que meio és, afinal?
— Sou mujique, de família camponesa — suspira o vagabundo. — A
minha mãe era dos servos da gleba, criada de ser-vir. Não pareço
mujique, é verdade, porque tive outro destino, amigo. A minha
mãezinha estava a servir em casa dos senhores, era ama, e tinha as
regalias todas, e eu, corpo do seu corpo e sangue do seu sangue, vivia
lá com ela na casa grande. A minha mãe acarinhava-me muito, dava-
me muitos mimos e queria fazer de mim alguém, queria que eu saísse
da ralé. Eu dormia numa cama, eu comia almoços a sério, eu vestia
calças, eu calçava botas de meio cano como um fidalgote. O que a
minha mãe comia, comia eu; os senhores davam-lhe dinheiro para a
roupa dela, ela vestia-me a mim... Rica vida! Em pequeno comi tanta
doçaria que, se vendesse agora tudo junto, podia comprar um bom
cavalo. Ensinou-me a ler e a escrever, criou-me na fé e no temor a
Deus desde muito pequeno, fez de mim um homem que ainda hoje
não diz palavra nenhuma assim menos fina, de mujiques. Eu não
bebo vodka, amigo, visto roupa limpa e sei-me comportar em
sociedade como deve ser. Se a minha mãezinha ainda for viva, Deus
lhe dê saúde; se morreu, que a alminha dela descanse em paz no
reino de Deus, que é onde descansam os justos.
O vagabundo descobre a cabeça eriçada de cerdas ralas, ergue os
olhos para o céu e faz duas vezes o sinal da cruz.
— Concede-lhe, Senhor, um lugar bom, um lugar de paz! — diz ele
numa voz arrastada, mais de velho do que de homem. — Ilumina-a,
Senhor, ilumina a tua escrava Ksénia, deita-lhe a tua absolvição! Se
não fosses tu, minha mãezinha adorada, vivia eu agora como um
simples mujique, sem nenhuma sabedoria! Agora, amigo, podes
perguntar-me tudo, que eu tenho a noção de tu-do: escritos laicos,
escritos religiosos, todo o género de orações, a catequese. Vivo tal e
qual as Sagradas Escrituras mandam ... Não ofendo o meu próximo,
mantenho o corpo limpo e casto, cumpro os jejuns, faço as minhas
refeições às horas que Deus manda. Há homens que não têm outros
prazeres que não sejam a vodka e a linguagem pecaminosa, mas eu
não, eu, quando tenho tempo, sento-me num canto a ler um livro.
Leio e choro, choro ...
— E por que diabo choras?
— Estão escritos para chorar! Às vezes levam-nos cinco copeques
por um livrinho, mas é incrível como nos faz chorar e soluçar.
— O teu pai já morreu? - pergunta Ptakha.
— Não sei, homem. Não conheço o meu pai, não vale a pena estar a
mentir. Acho que sou filho ilegítimo da minha mãe. A minha mãe
sempre viveu com os amos e nunca se quis casar com um mujique ...
— Então atracou a um fidalgo — solta Ptakha uma risada.
— Não guardou a sua honra, é verdade. Era uma mulher piedosa,
temente a Deus, mas não guardou a virgindade. Pecado, sem dúvida
nenhuma, grande pecado, não há nada a dizer, em compensação
talvez eu tenha sangue fidalgo. Talvez seja mujique só por condição,
e por natureza seja nobre.
O «senhor nobre» diz tudo isto com a sua compungida voz de
tenor, baixinho, adocicadamente, franzindo a testa breve e emitindo
sons rangentes com o narizinho vermelho e gelado. Ptakha ouve ,
olha-o pelo rabo do olho e não pára de encolher os ombros.
Transcorridas umas seis verstás, guardas e vagabundo sentam-se
num montículo para descansar.
— Até um cão dá pelo nome - murmura Ptakha. - Eu chamo-me
Andriuchka, este aqui é o Nikandra, cada pessoa tem o seu nome
santo, é uma coisa que nunca se pode esquecer na vida! Nunca na
vida!
— Quem tem alguma precisão de saber o meu nome? - suspira o
vagabundo, apoiando a bochecha no punho magro. - E que me
aproveita isso a mim? Se ao menos me deixassem ir para onde eu
quisesse, mas não, ainda era pior que agora. Conheço a lei, meus
irmãos. Agora sou um vagabundo de Cristo que não conhece o nome
nem a família e, no pior dos casos, condenam-me a deportação para
a Sibéria Ocidental e a mais trinta ou quarenta chicotadas, mas se
lhes disser o meu nome verdadeiro e a minha condição, mandam-me
de volta para os trabalhos forçados. Bem não sei!
— Alguma vez estiveste nos trabalhos forçados, tu?
— Estive sim senhor, caro amigo. Quatro anos de cabeça rapada e
de ferros nos pés.
— Por que diabo de crime?
— Crime de morte, meu caro! Ainda era rapaz, tinha os meus
dezoito anos ou por aí, e a mãezinha deitou arsénio, por descuido, no
copo do amo, em vez de ácido e soda. Havia um ror de caixas na
despensa, era fácil confundir...
O vagabundo suspira, abana a cabeça e diz:
— A mãezinha era piedosa, mas vá-se lá saber, a alma humana é
uma floresta selvagem! Talvez fosse descuido, ou talvez a alma dela
não aguentasse a ofensa de o amo pegar uma criada nova para si...
Talvez lhe metesse aquilo de propósito na bebida, só Deus sabe! Eu
na altura era novo e não percebia tudo ... Mas agora lembro-me que o
amo se amigou com uma nova e a minha mãe ficou muito sentida.
Depois, durante dois anos, foi o julgamento ... A mãezinha apanhou
vinte anos de trabalhos forçados, e eu, como ainda era menor,
apanhei sete.
— E condenaram-te porquê, a ti?
— Cúmplice. Eu é que servi de beber ao amo. Era o costume: a
mãezinha preparava a soda, eu servia-a. Mas, meus irmãos, olhai que
isto é como uma confissão da Igreja, aos olhos do Senhor, não o
podeis contar a ninguém...
— Eh-eh, como se alguém nos fosse perguntar — diz Ptakha. — E
então, fugiste de lá ou quê?
— Fugi, meu caro amigo. Fugimos catorze. Esses homens fugiram
e, Deus lhes dê saúde a todos, levaram-me com eles. Agora, homem,
vê por ti: que vantagem tenho eu de me abrir quanto à minha
condição? Iam atirar comigo outra vez para os trabalhos forçados . E
que forçado posso eu ser? Sou um homem sensível, enfermiço, gosto
de comer e dormir no asseio. Quando rezo as minhas orações gosto
de acender uma lamparina ou uma vela, e que não haja barulho à
volta. Quando estou ajoelhado no chão e faço as minhas reverências
não gosto que o chão esteja cheio de lixo e todo cuspido. É que eu
faço quarenta reverências de manhã e quarenta à noite pela minha
mãezinha.
O vagabundo tira o boné e persigna-se.
— Ora bem, que me mandem para a Sibéria Oriental — continua
—, não tenho medo!
— Será melhor, lá?
— Completamente diferente! Nos trabalhos forçados estamos
como lagostins no cesto: apertados uns contra os outros, todos em
magote, o ar é abafado, mal se pode respirar, um autêntico inferno,
Deus nos livre! És bandido e tratam-te como bandido, pior que a um
cão. Não se pode comer, nem dormir, nem rezar em condições.
Quando é só exílio, a coisa é outra. Em primeiro lugar, inscrevo-me
imediatamente na comunidade, como os outros. Por lei, as
autoridades são obrigadas a dar-me a minha quota... sim senhor!
Segundo dizem, a terra lá, de farta, é como a neve: tomas quanta
quiseres! Vão dar-me lá terra para semear, homem, e para uma
horta, e para fazer a casa. Depois lavro aquilo, como faz muito boa
gente, semeio, arranjo gado e outros haveres, colmeias, ovelhas, cães
... E um gato da Sibéria para dar cabo dos ratos, não me comam as
coisas... Vou construir uma boa izbá(8) de troncos, sim senhor,
compro ícones com fartura... Se Deus quiser caso-me, tenho filhos ...
O vagabundo fala num murmúrio e não olha a direito para os
ouvintes, mas algures para o lado. Por mais ingénuos que sejam os
seus sonhos, fala deles com tanta sinceridade, tão do coração, que é
difícil não acreditar neles. A boca pequenina do vagabundo torce-se
num sorriso, toda a sua cara, os olhos, o narizinho estão imóveis,
hirtos, antegozando enlevados a felicidade futura. Os guardas ouvem
e olham para ele com seriedade, com alguma simpatia. Também
acreditam.
— Não tenho medo da Sibéria — continua a murmurar o
vagabundo. — A Sibéria também é Rússia, o Deus e o czar são os
mesmos daqui, e fala-se lá a mesma língua cristã que falamos tu e eu.
Mas há mais largueza e a gente vive com mais abastança. Lá, é tudo
melhor. Por exemplo, os rios de lá são muito melhores do que os de
cá! É um nunca acabar de peixe, de caça! Ora, para mim, meus
amigos, não há como a pesca. Para mim, ficar sentado com a cana na
mão é o melhor que há. Eu cá pesco à cana, pesco com a cana
especial para o lúcio, com a nassa, à rede, quando o gelo se quebra no
rio. Para a rede não tenho lá muita força, então arranjo um mujique
para ajudar, por quaisquer cinco copeques. Oh-oh, que bem-
aventurança é aquilo! É cá cada lota, cada mugem, parece que
apanhámos o irmão querido! E há que ver, amigos, cada qualidade
de peixe requer a sua ciência: para um a isca é um peixe pequeno,
para outro uma casca de larva, para este é a rã, para aquele o
saltarico. É preciso saber, han! Um supor, a lota. A lota não é um
peixe lá muito fino, morde a isca nem que seja de perca; o lúcio, esse,
gosta do gobião, o chi- lisper gosta da borboleta. O mugem é melhor
quando se apanha numa corrente forte! Lança-se a linha a dez braças
sem cambulho, com isca de borboleta ou escaravelho, para boiar à
tona e se poder deixar ir na correnteza, e nós temos de estar metidos
na água, sem calças, e o mugem — zás! Mas tem de ser tudo feito
com muito jeitinho, senão o malvado arranca a isca. Logo ao
primeiro esticão, é preciso fisgá-lo sem demora. É de pasmar, a
quantidade de peixe que eu já apanhei na vida! Quando andávamos a
monte, os outros deitavam-se a dormir na floresta, mas eu não podia
adormecer, ia a correr para o rio. E os rios lá são largos, correm em
cachão, as beiras são a pique, um terror! Nas beiras dos rios é só
mata selvagem. As árvores são tão altas que, se olharmos lá para
cima, até nos dá vertigens. Nunca nos dariam menos de dez rublos
por cada pinheiro, aos preços daqui.
Sob aquela afluência desordenada de devaneios, de imagens
artísticas do passado e de doces pressentimentos de felicidade, o
miserável acaba por se calar, apenas mexendo os lábios como que a
sussurrar consigo mesmo. Não lhe sai da cara o sorriso entorpecido,
deliciado. Os guardas estão calados. Ficaram pensativos e baixaram
as cabeças. No silêncio outonal, quando o nevoeiro frio e severo
erguido da terra assenta na alma; quando este nevoeiro, como um
muro prisional, se levanta à frente dos olhos e prova ao homem a
limitação da sua liberdade, é doce pensar então nos rios largos e
velozes, nas margens abruptas, nas florestas insondáveis, nas estepes
infinitas. A imaginação vai-lhe desenhando, lenta e calmamente, o
quadro de uma manhã nascente em que no céu perdura ainda o
rosado da aurora e, pela margem deserta e abrupta, passa como
mancha pequenina um homem; os seculares pinheiros-mastros
erguem-se em socalcos de ambos os lados da corrente, olham
severamente para o homem livre e resmungam sombriamente; as
raízes, as rochas e os arbustos espinhosos barram-lhe o caminho,
mas o homem tem o corpo resistente e o espírito forte, não teme os
pinheiros nem as rochas, nem a sua solidão, nem o eco retumbante
que soa a cada passo que dá.
Também os guardas desenham na sua imaginação os cenários da
vida livre que nunca viveram; talvez recordem vagamente imagens
de coisas que lhes contaram há muito, talvez guardem esta ideia de
vida livre como herança que lhes ficou, juntamente com o corpo e o
sangue, dos seus remotos antepassados livres ... só Deus sabe!
O primeiro a quebrar o silêncio é Nikandr Sapójnikov, que até ao
momento não pronunciara palavra. Terá sentido inveja da ilusória
felicidade do vagabundo? Ou então compreendeu no seu íntimo que
os sonhos de felicidade em nada se coadunavam com o nevoeiro
cinzento e a lama pardacenta; diz, olhando severo para o vagabundo:
— Pois é, tudo isso é muito bonito, amigo, só que não chegarás às
terras livres. Achas que tens forças para isso? Ao fim de andares
trezentas verstás entregas a alma a Deus. Já viste que alquebrado tu
estás! Só andaste seis verstás e nunca mais recuperas o folgo!
O vagabundo vira-se lentamente para Nikandr, e o sorriso ditoso
desaparece-lhe da cara. Olha com ar de susto e culpa para o rosto
sisudo do guarda, cai em si por se lembrar talvez de al-guma coisa e
baixa a cabeça. Cai outra vez o silêncio ... Todos os três estão
pensativos. Os guardas fazem um esforço mental para abranger com
a imaginação aquilo que talvez só Deus seja capaz de imaginar, isto é,
o espaço terrível que os separa das terras livres. Quanto ao
vagabundo, surgem-lhe ao espírito outros cenários, claros, nítidos e
mais assustadores do que aquele espaço. Erguem-se-lhe diante dos
olhos os vagares da morosidade judicial, as prisões de trânsito e os
fortes, as barcas de transporte dos presidiários, as paragens
aborrecidas pelo caminho, os invernos gelados, as doenças, as
mortes de companheiros...
Sempre com um ar de culpa, o vagabundo pestaneja, limpa com a
manga a testa onde lhe nasceram gotas minúsculas de suor, depois
resfolega como se acabasse de sair de um banho russo bem quente,
depois limpa outra vez a fronte com a outra manga e olha à volta com
medo.
— É mais que certo que não chegas lá! — concorda Ptakha. — Que
diabo de caminhante podes tu ser? Olha só para ti: pele e osso! Vais
morrer, amigo!
— Pois é claro que morre! Está mal! — reitera Nikandr. — Cá para
mim, acho que o internam logo no hospital... De certeza!
O homem sem nome nem família olha, aterrorizado, para os rostos
severos e impassíveis dos seus sinistros acompanhantes e, sem tirar
o boné, com os olhos esbugalhados, persigna-se rapidamente ...
Estremece, sacode a cabeça, contorce-se todo como uma lagarta que
pisaram ...
— Ora bem, temos de ir — diz Nikandr levantando-se. — Chega de
descanso!
Momentos depois já os caminhantes seguem pelo caminho
lamacento. O vagabundo vai ainda mais curvado e com as mãos
ainda mais recolhidas para dentro das mangas. Ptakha, agora, vai
calado.
CHAMPANHE
Relato de um vadio

Naquele ano, por onde começo o meu relato, era eu chefe de


estação num dos nossos caminhos-de-ferro do Sudoeste. Pode-se ver
que alegre ou que aborrecida era a minha vida pelo facto de, vinte
verstás em volta, não haver uma única habitação humana, uma única
mulher, uma única taberna razoável, e eu naqueles tempos ser
jovem, forte, ferveroso, estouvado e tolo. Os meus únicos
divertimentos possíveis eram as janelas dos comboios de passageiros
e mais a vodka nojenta a que os judeus adicionavam estramónio.
Acontece surgir por um instante na janela da caruagem uma
cabecinha de mulher, e eu, parado como uma estátua, nem respiro e
fico a olhar até que o comboio se transforme num ponto quase
indistinto; ou então, às vezes, bebo até não poder mais a vodka
nojenta, fico estonteado e não sinto as horas e os dias longos a
correrem. A estepe produzia em mim, homem do Norte, o efeito de
um cemitério tártaro abandonado. No Verão, a sua quietude solene
— aquele estridular monótono dos gafanhotos, o luar transparente
que não deixa ninguém esconder-se em lado nenhum — infectava-me
de uma tristeza enfadonha; e no Inverno, a brancura imaculada da
estepe, as suas vastidões frias, as noites longuíssimas e o uivo dos
lobos esmagavam-me como um pesadelo.
Viviam na estação-apeadeiro estas pessoas: eu com a minha
mulher, um telegrafista surdo e escrofuloso e três guardas.
O meu ajudante, um jovem tísico, ia muito a tratamento à cidade,
onde se deixava ficar meses a fio, passando para mim as suas
obrigações juntamente com o direito de receber o ordenado dele. Eu
não tinha filhos, visitas não apareciam nem que lhes pagassem, eu
próprio só podia fazer visitas a colegas do mesmo ramal e não mais
do que uma vez por mês. A minha vida era pois, no geral, o cúmulo
do enfado.
Uma noite de passagem de ano. Eu e a mulher estávamos à mesa,
mastigávamos preguiçosamente e ouvíamos o telegrafista surdo na
sala ao lado a matraquear monotonamente no seu aparelho. Eu já
tinha bebido cinco cálices de vodka de estramónio e, apoiando a
cabeça pesada no punho, pensava no meu aborrecimento
intransponível e sem saída; a mulher, sentada ao meu lado, não
tirava os olhos da minha cara. Olhava para mim como só pode olhar
uma mulher que não tem mais nada no mundo a não ser um marido
bem parecido. Amava-me loucamente, como escrava, e não só a
minha boa aparência e a minha alma, mas também os meus pecados,
a minha raiva, o meu tédio e, até, a minha crueldade quando, no
frenesi da bebedeira, sem saber em quem descarregar a fúria, a
torturava a ela culpando-a de tudo.
Apesar do aborrecimento que me roía, preparávamo-nos para
festejar a passagem do ano com o máximo de solenidade e
esperávamos a meia-noite com alguma impaciência. É que tínhamos
duas garrafas de champanhe guardadas, do verdadeiro, com a
etiqueta da Veuve Cliquot; ganhara eu aquele tesouro nu-ma aposta
que fizera, nesse Outono, com o chefe de sector, por ocasião de uma
festa de baptizado em casa dele. Como às vezes acontece numa aula
de matemática, quando até o ar fica gelado de aborrecimento, e entra
na sala, pela janela, uma borboleta; e os rapazes começam a agitar as
cabeças e a seguir com curiosidade o seu voo, como se aquilo não
fosse uma borboleta mas algo de estranho e extraordinário, assim
também um champanhe normal, caído por acaso no nosso
enfadonho apeadeiro, nos servia de diversão. Estávamos calados e
olhávamos de vez em quando ora para o relógio, ora para as garrafas.
Estavam os ponteiros nos cinco para a meia-noite, comecei eu a
desarrolhar lentamente a garrafa. Não sei se a vodka me caíra na
fraqueza, se a garrafa estava húmida de mais, o certo é que, quando a
rolha estrondeou disparada contra o tecto, a garrafa escorregou-me
das mãos e caiu ao chão. Derramou-se não mais do que um copo,
porque apanhei logo a garrafa e tapei-lhe o gargalo sibilante com o
dedo.
— Pois então, feliz Ano Novo! — disse eu enchendo dois copos. —
Bebamos!
A mulher pegou no seu copo e fitou-me com olhos assusta-dos , o
rosto pálido, uma expressão de horror.
— Então deixaste cair a garrafa?
— Deixei. E depois?
— Isso é mau — disse ela, pousando o copo e empalidecendo ainda
mais. — É um mau presságio. Significa que este ano nos vai
acontecer alguma desgraça.
— Mas que fêmea me saíste! — suspirei. — Mulher inteligente, sim
senhor, que disparata como uma ama-seca velha. Bebe.
— Queira Deus que sejam disparates, mas ... que vai acontecer
alguma coisa, isso vai! Verás!
Nem com os lábios tocou no copo, arredou-se para o lado e ficou
pensativa. Eu emiti umas frases velhas e relhas sobre preconceitos,
emborquei meia garrafa, andei um bocado de um lado para o outro
da sala e saí.
Fora, quedava-se com toda a sua beleza fria uma noite calma e
gelada. A lua, e duas nuvens brancas de algodão que a ladea-vam,
pendiam imóveis mesmo por cima do apeadeiro, como coladas ao
céu, parecendo que estavam ali à espera de alguma coi-sa. Vinha
delas uma luz suave e transparente que aflorava a terra branca com
meiguice, como se temesse ofender o seu pudor, mas alumiando
tudo: os montes de neve, o aterro... Era o silêncio.
Pus-me a andar ao longo do aterro.
«Estúpida mulher! — pensava, olhando para o céu semeado de
estrelas brilhantes . — Mesmo admitindo que os presságios às vezes
falam verdade, que coisas más nos poderão acontecer? As desgraças
por que passámos e por que estamos a passar agora são tamanhas
que é difícil sequer imaginar outras piores. Que mais malefícios
podem acontecer a um peixe já pescado, frito e servido com molho?»
Um álamo alto, coberto de geada, surgiu na bruma azulada como
gigante envolto na sua mortalha. Olhou para mim severo e tristonho
como se, tal como eu, estivesse consciente da sua solidão. Pus-me a
olhar demoradamente para ele.
«A minha juventude perdeu-se inutilmente como uma ponta de
cigarro — continuava eu a cogitar. — Morreram-me os pais quando
era ainda criança, expulsaram-me do liceu. Sou de família fidalga,
sim, mas não tive educação nem ensino, os meus conhecimentos não
vão além dos de um qualquer lubrificador. Não tenho um abrigo,
nem família, nem amigos, nem trabalho de que goste. Não sei fazer
nada e, na força da vida, sirvo apenas para tapar um buraco de chefe
de apeadeiro. Além de azares e de desgraças, não conheci mais nada
na vida. Que mal pode ainda acontecer-me?»
Luzes vermelhas surgiram ao longe: um comboio que vinha ao
meu encontro. A estepe dormente ouvia o seu tropel. Eram tão
amargos os meus pensamentos que pareciam falar em voz alta,
transmitir-se através do gemer do telégrafo e do barulho do comboio.
«Que mal me pode ainda acontecer? Perder a mulher? —
perguntava a mim próprio. — Não faz mal. É impossível a gente
esconder a voz da consciência: não gosto da minha mulher! Era inda
um rapazola quando casei com ela. Agora ainda estou jovem, forte, e
ela murchou, envelheceu, ficou mais estúpida, cheia de preconceitos
dos pés à cabeça. Que graça tem o seu amor adocicado, o seu peito
cavado, o seu olhar mole? Aturo-a, não a amo. O que mais pode
acontecer? A minha juventude perde-se, e nem sequer por uma
pitada de rapé, como se costuma dizer. .. As mulheres só me passam
pelos olhos nas janelas das carruagens, como estrelas cadentes ...
Amor... nunca o tive nem tenho. Vai-se perdendo a minha coragem, o
meu ânimo, o meu coração ... Tudo se perde como o lixo, o que tenho
aqui na estepe não vale um pataco.»
O comboio estrondeou veloz a meu lado e, indiferente, lançou-me
a luz das suas janelas vermelhas. Vi-o parar junto às luzes verdes do
apeadeiro, ficar lá um minuto e seguir o seu caminho. Depois de ter
andado umas duas verstás, fiz o caminho de volta. Os meus tristes
pensamentos não me abandonavam. Por maior que fosse a minha
amargura, lembro-me que me esforçava por tomar as minhas
reflexões ainda mais tristes e sombrias. Sabem que há uma coisa
curiosa: as pessoas limitadas e cheias de amor-próprio às vezes têm
momentos em que a consciência de serem infelizes lhes dá um certo
prazer e até chegam a lisonjear-se com os seus próprios sofrimentos.
Nos meus pensamentos havia muita verdade, mas também muito
absurdo e muita jactância, e um certo desafio infantil na
interrogação: «Que mais me pode ainda acontecer?»
«Sim, que mais pode acontecer? — perguntava-me eu no caminho
de volta. — Parece que já vivi tudo. Estive doente, perdi dinheiro,
todos os dias levo reprimendas dos chefes, passo fome, uma vez
entrou um lobo raivoso no pátio da estação. Que mais? Insultaram-
me, humilharam-me ... e eu também já insultei muita gente.
Digamos que apenas nunca cometi nenhum crime, mas acho que sou
incapaz de cometê-lo; quanto ao tribunal, não tenho medo dele.»
As duas nuvens já se haviam afastado da lua e estavam paradas
com ar de segredarem uma à outra alguma coisa que a lua não devia
saber. Um vento ligeiro percorria a estepe, levando consigo o tropel
do comboio que partira.
À entrada de casa saiu-me ao encontro a mulher. Riam-se-lhe os
olhos, todo o seu rosto iradiava prazer.
— Temos uma surpresa! — sussurrou-me. — Vai depressa ao
quarto e veste a sobrecasaca nova: temos visita!
— Que visita?
— A tia Natália Petrovna, chegou neste comboio.
— Que Natália Petrovna?
— A mulher do meu tio Semion Fiódoritch. Não a conheces. É
muito simpática e muito boa...
Devo ter franzido o rosto, porque a minha mulher fez uma cara
séria e pôs-se a sussurrar muito depressa:
— Claro que é estranho ela ter aparecido aqui, mas vê lá se não te
zangas e se és condescendente com ela. Porque ela é uma infeliz. O
meu tio Semion Fiódoritch é mesmo mauzinho, um déspota, é difícil
conviver com ele. Ela diz que só vai ficar dois ou três dias, até receber
carta do irmão.
A minha mulher ficou ainda a sussurrar-me uns disparates
quaisquer sobre o déspota do tio, sobre a fraqueza humana em geral
e a das esposas jovens em particular, sobre a nossa obrigação de dar
guarida a todos, mesmo aos grandes pecadores, e assim por diante.
Sem ter entendido nada, vesti a sobrecasaca nova e fui apresentar-
me à «tia».
Sentada à mesa estava uma mulher pequenina com grandes olhos
negros. A mesa, as paredes cinzentas, o divã rude... parecia que tudo,
até ao mínimo grão de pó, rejuvenescera e ficara mais alegre na
presença daquela criatura, uma novidade, jovem, exalando um
sofisticado cheiro qualquer, bonita, sem dúvida pervertida. Isso, que
era pervertida, percebi-o pelo sorriso, pelo cheiro, pela maneira
peculiar que tinha de olhar e de brincar com as pestanas, pelo tom
com que falava com a minha mulher, uma mulher decente, diga-se .
.. Nem era preciso ela contar-me que fugira ao marido, que o marido
era velho e déspota, que ela própria era boa e alegre. Vi tudo ao
primeiro olhar e, aliás, duvido que na Europa haja ainda homens que
não saibam distinguir ao primeiro relance uma mulher de
temperamento assim que tal.
— Não sabia que tinha um sobrinho tão crescidinho ! — disse a tia
estendendo-me a mão e sorrindo.
— E eu não sabia que tinha uma tia tão bonitinha! — disse eu.
Recomeçou a ceia. A rolha disparou estrondosa da segunda garafa,
e a minha tia bebeu de um trago meio copo e, quando por qualquer
razão a minha mulher saiu por momentos, a tia deixou de fazer
cerimónias e emborcou um copo cheio. Também eu estava já
embriagado, do vinho e da presença de uma mulher. Os senhores
lembram-se da romança?

Olhos negros, namorados,


Belos e abrasadores,
Olhos como eu vos amo,
Oh olhos como vos temo!

Não me recordo do que se passou a seguir. Quem quiser saber


como nasce o amor leia romances e contos longos, que eu por mim só
desvendo um pouco, com palavras da mesma romança estúpida:

Vejo que vos encontrei


Numa hora pouco azada ...

Foi tudo pr'o diabo, de cambulhão. Lembro-me de um torvelinho


terrível e louco que me fez rodopiar como uma pena. Por muito
tempo o torvelinho me rodopiou dentro dele e eliminou da face da
terra a minha mulher, a tia e, também, a minha força. Do apeadeiro
da estepe atirou-me, como vêem, para esta rua escura.
Digam-me lá agora: o que me pode ainda acontecer de pior?
MENDIGO

— Meu rico senhor! Tenha a bondade de prestar atenção a um


homem caído em desgraça e faminto. Não como há três dias ... não
tenho cinco copeques para pagar a dormida ... juro por Deus!
Durante oito anos fui professor da escola rural e perdi o lugar em
resultado de intrigas. Caí em desgraça vítima de uma denúncia. Há
um ano que estou desempregado.
O advogado público Skvortsov olhou para o sobretudo desbotado e
roto do pedinte, para os seus olhos turvos e bêbados, para as
manchas vermelhas nas suas faces, e pareceu-lhe que já tinha visto o
homem.
— Foi-me proposto agora um lugar na província de Kaluga —
continuava o pedinte —, mas não tenho os meios de ir para lá. Ajude-
me, tenha a bondade! É uma vergonha pedir, mas ... as
circunstâncias assim obrigam!
Skvortsov olhou para as galochas do homem, uma das quais era
mais alta que a outra, e de repente lembrou-se.
— Oiça, parece-me que ainda anteontem o encontrei na rua
Sadóvaia — disse. — Mas nessa altura o senhor dizia-me que era um
estudante expulso da faculdade, e não professor rural. Lembra-se?
— Nã... não, não pode ser! — murmurou o pedinte, atrapalhando-
se. — Sou professor e, se quiser, posso mostrar-lhe os papéis.
— Deixe de mentir! Fez-se passar por estudante e até me contou
por que fora expulso. Não se lembra?
A cara de Skvortsov ficou vermelha e, com uma expressão de
repugnância, afastou-se do maltrapilho.
— É uma infâmia, caro senhor! — gritou zangado. — É uma burla!
Diabo do homem, que ainda o levo à esquadra! É pobre e tem fome,
mas isso não lhe dá o direito de mentir descarada-mente , seu
desavergonhado !
O maltrapilho deitou a mão à maçaneta da porta e, confuso como
um gatuno apanhado em flagrante, passou o olhar pelo vestíbulo.
— Eu ... eu não estou a mentir... — murmurou. — Posso mostrar os
papéis.
— E quer que eu acredite nisso? — continuava Skvortsov
indignado. — Aproveitar-se das simpatias da sociedade pelos
professores rurais e pelos estudantes universitários é uma baixeza, é
uma infâmia, é uma porcaria! Revoltante!
Skvortsov exaltou-se e descompôs o pedinte do modo mais
implacável. Com a sua mentira descarada, o maltrapilho incitara nele
o nojo e a repugnância, ofendera-o naquilo que ele mais apreciava
em si mesmo, a que dava tanto valor: a bondade, um coração
sensível, a compaixão pelos desgraçados; com a sua mentira, com o
seu atentado contra a misericórdia, o sujeito como que profanara a
esmola que Skvortsov gostava de dar aos pobres do fundo do seu
coração puro. O maltrapilho bem se justificava, bem jurava por Deus,
mas acabou por se calar e, envergonhado, baixou a cabeça.
— Meu rico senhor! — disse, levando a mão ao coração. — De facto
... menti! Não sou estudante nem professor rural. In-venção minha!
Trabalhava de cantor num coro russo, e fui ex-pulso por bebedeira.
Mas . .. o que hei-de fazer? Por amor de Deus, acredite que é
impossível viver sem mentir! Quando digo a verdade, ninguém me
dá esmola. A verdade só me serve para morrer de fome e de frio, sem
um canto onde dormir! O senhor pensa com justiça, eu compreendo,
mas ... O que posso fazer?
— O que pode fazer? Está-me a perguntar o que pode fazer? —
gritou Skvortsov, aproximando-se dele. — Trabalhe, é isso que deve
fazer! É necessário trabalhar!
— Trabalhar... Eu compreendo, mas onde arranjo trabalho?
— Disparate! É jovem, é saudável, forte, se tiver mesmo essa
vontade, arranja sempre trabalho. Mas é preguiçoso, mal habituado,
bêbado! Tresanda a vodka como uma taberna! Habituou-se a mentir
e degradou-se até à medula dos ossos, só já é capaz de mendigar e
mentir! Se alguma vez lhe der para trabalhar, há-de ser num
escritório, num coro russo, ou como marcador numa sala de bilhar,
isto é, lugares onde não faria nada e receberia o seu dinheiro! Mas,
que tal começar a trabalhar fisicamente? Isso de certeza que não, não
quer ser guarda-varredor ou operário fabril! É que sua excelência
tem ambições!
— Como o senhor raciocina, francamente ... — pronunciou o
pedinte com um risinho amargo. — Onde arranjo trabalho físi-co?
Como empregado de balcão, já é tarde para mim, porque no
comércio é preciso começar-se como moço de recados; lugar de
guarda-varredor ninguém mo dá, porque não se me pode tratar por
tu ... Numa fábrica também não me admitem, porque é preciso
conhecer o ofício, e eu não conheço nada.
— Disparate! Há-de encontrar sempre uma justificação! Por
exemplo, aceitaria rachar lenha?
— Não me recuso, mas hoje em dia até os rachadores de ofício não
ganham o seu pão.
— Pois é, todos os parasitas raciocinam assim. Se eu lhe oferecer
trabalho, recusa-o, de certeza. Não quer rachar a minha lenha, por
exemplo?
— Está bem, racho .. .
— Óptimo, veremos ... Excelente ... Veremos!
Skvortsov animou-se e, com uma certa malícia, esfregou as mãos,
chamou a cozinheira.
— Olga — disse-lhe —, leva este senhor ao barracão, que corte lá a
lenha.
O maltrapilho encolheu os ombros, como que perplexo, e seguiu
com indecisão a cozinheira. Pelo andar dele se via que concordara
em rachar a lenha não porque estivesse com fome e quisesse ganhar
alguma coisa, mas apenas por amor-pró- prio e vergonha, por,
digamos, lhe terem pegado na palavra. Também era visível que a
vodka o depauperara muito, que estava mal-disposto e que não
sentia vontade nenhuma de trabalhar.
Skvortsov apressou-se para a sala de jantar. De lá, pelas janelas
que davam para o pátio, via-se bem o barracão da lenha e tudo o que
se passava no pátio. De pé à janela, Skvortsov viu a cozinheira e o
maltrapilho saírem pela porta de serviço para o pátio e dirigirem-se
pela neve suja até ao baracão. Olga, exa-minando com maus modos o
seu acompanhante e espetando os cotovelos para os lados, abriu o
barracão e bateu a porta com raiva.
«Pelos vistos, não deixámos a mulher tomar o café sossegada —
pensou Skvortsov. — Que criatura mais mazinha!»
A seguir viu o pseudoprofessor e pseudo-estudante a sentar-se
num tronco e, apoiando nos punhos as bochechas vermelhas , cair
em reflexão. A criada atirou-lhe aos pés o machado, cuspiu com raiva
e, a julgar pelo movimento dos lábios, começou a injuriá-lo forte e
feio. O maltrapilho puxou para si, indeciso, uma acha, pô-la entre os
joelhos e, timidamente, deu-lhe com o machado. A acha oscilou e
caiu. O maltrapilho pegou-lhe outra vez, soprou para as mãos
geladas e voltou a bater nela com tanto cuidado como se tivesse
medo de atingir a galocha ou cortar os dedos. A acha voltou a cair.
A ira de Skvortsov desvaneceu-se e sentiu certa vergonha por ter
obrigado um homem frágil, bêbado e talvez doente a fazer debaixo de
gelo aquele trabalho braçal.
«Não importa, que faça ... — pensava quando saía da sala de jantar
para o gabinete. — É para bem dele.»
Passada uma hora, Olga veio informar que a lenha estava par-tida.
— Toma, dá-lhe cinquenta copeques — disse Skvortsov. — Se ele
quiser, que venha no primeiro de cada mês rachar lenha... Haverá
sempre trabalho.
No dia um, o maltrapilho apareceu e voltou a ganhar cinquenta
copeques, embora mal se aguentasse nas pernas. A partir daí
começou a aparecer muitas vezes, e arranjavam-lhe sempre que
fazer: ora juntava a neve em montões, ora arrumava o barracão, ora
batia os tapetes e os colchões. Lá recebia os seus vinte a quarenta
copeques de cada vez, e houve uma ocasião em que até ganhou umas
calças velhas.
Quando Skvortsov mudou de casa, contratou-o para ajudar na
mudança. Desta vez o maltrapilho estava sóbrio, carrancudo e
taciturno; quase não tocava nos móveis, caminhava cabisbaixo atrás
das carroças e nem sequer tentava parecer activo, limitando-se a
encolher-se de frio e a envergonhar-se quando os carroceiros
zombavam da sua mandriice, da sua fraqueza e do seu sobretudo
roto de fidalgo. Terminada a mudança, Skvortsov mandou-o chamar.
— Estou a ver que as minhas palavras surtiram efeito — disse,
entregando-lhe um rublo. — Tome isto pelo seu trabalho. Vejo que
está sóbrio e com vontade de trabalhar. Como se chama?
— Luchkov.
— Então, Luchkov, agora já lhe posso propor um trabalho mais
limpo. Sabe escrever bem?
— Sei.
— Nesse caso, vá amanhã com esta carta a um colega meu, que lhe
dará cópias para fazer. Trabalhe, não beba, não se esqueça do que lhe
disse. Adeus!
Skvortsov, contente por ter mostrado a um homem o caminho da
verdade, deu-lhe umas palmadinhas carinhosas no ombro e até lhe
estendeu a mão à despedida. Luchkov pegou na carta, saiu e nunca
mais ali apareceu à procura de trabalho.
Passaram dois anos. Uma vez, ao pagar a sua entrada na bilheteira
do teatro, Skvortsov viu a seu lado um homenzinho com gola de pele
de ovelha e um gorro coçado de otária. O homenzinho pediu
timidamente na bilheteira uma entrada para as galerias e pagou com
cobres.
— Luchkov, é você? — perguntou Skvortsov reconhecendo o seu
antigo rachador de lenha. — Então, como está? O que faz? Como vai
a vida?
— Não estou mal ... Trabalho agora no escritório de um notá-rio,
estou com trinta e cinco rublos mensais.
— Muito bem, graças a Deus. Óptimo! Fico muito contente por si.
Muito, muito contente, Luchkov! Você, em certo sentido, é meu
afilhado. Porque fui eu quem o empurrou para o verda-deiro
caminho. Lembra-se dos sermões que eu lhe fazia? Na altura, por
pouco não morreu de vergonha. E agradeço-lhe, meu caro, por não se
ter esquecido das minhas palavras.
— Também lhe agradeço — disse Luchkov. — Se não tivesse ido a
sua casa, ainda hoje me andava a fazer passar por professor ou
estudante. Foi em sua casa que me salvei, que escapei do abismo.
— Folgo muito em sabê-lo, muito.
— Obrigado pelas suas palavras simpáticas e pela sua ajuda.
Agradeço-lhe muito, e também à sua cozinheira, que Deus dê saúde a
essa mulher boa e generosa. O senhor nessa altura falou
maravilhosamente, fico seu devedor até ao fim dos meus dias, mas
quem de facto me salvou foi a sua cozinheira Olga.
— E de que maneira o salvou?
— Da maneira seguinte: ia eu para cortar a lenha e logo ela: «Ah,
bebedolas! Homem perdido! Raios te partissem!» Mas depois senta-
se em frente de mim, compadece-se, olha para a minha cara e põe-se
a lastimar-me: «Que diabo infeliz tu és! Não tens alegria neste
mundo nem no outro, seu bebedolas, vais arder nas profundas dos
infernos! Malfadado!» E assim por diante, neste sentido. O que ela se
agastava, quantas lágrimas derramava por minha causa, nem dá para
contar. Mas o principal é que rachava a lenha por mim! Eu, meu
senhor, não parti uma única acha em sua casa, foi ela! Mas por que
essa mulher me salvou, por que mudei só de olhar para ela e por que
deixei de beber, isso não sei explicar-lhe. Só sei que as palavras dela e
as acções generosas dela me mudaram a alma, ela corrigiu-me, essa
mulher, nunca me hei-de esquecer disso. Então com licença, já estão
a chamar para a entrada.
Luchkov fez uma vénia e foi para as galerias.
INIMIGOS

Passava das nove de uma noite escura de Setembro quando


morreu de difteria o Andrei, de seis anos, filho único do médico da
administração rural doutor Kirílov. Quando a mulher do doutor caiu
de joelhos frente à caminha da criança morta e se apoderou dela o
primeiro acesso de desespero, soou brusca-mente no vestíbulo a
campainha.
Por causa da difteria, todos os criados tinham sido mandados para
fora ainda de manhã. Kirílov, tal como andava por casa, sem
sobretudo, com o colete desabotoado, sem limpar a cara molhada
nem as mãos queimadas pelo ácido carbólico, foi abrir. Estava escuro
no vestíbulo, pelo que só se podia distinguir do homem que entrou
que era de estatura média, tinha um cachecol branco e uma cara
grande, muita pálida, tão pálida que o vestíbulo, com a entrada dele,
pareceu ter ficado mais alumiado...
— O doutor está? — perguntou rapidamente o visitante.
— Estou — respondeu Kirílov. — O que deseja?
— Ah, é o próprio! Que bom! — alegrou-se o visitante e pôs-se à
procura da mão do doutor no escuro do vestíbulo, encontrou-a,
apertou-a entre as suas com força. — É bom ... muito bom! Já nos
conhecemos!.. . Sou Abóguin ... Tive o prazer de encontrar o doutor
este Verão, em casa de Gnútchev. Ainda bem que o apanhei... Tem de
vir comigo, por amor de Deus ... A minha mulher está muito mal...
Tenho ali a carruagem ...
Pela voz e movimentos do visitante era visível que estava muito
exaltado. Como que assustado com um incêndio ou por um cão
raivoso, continha a custo a respiração acelerada e falava
rapidamente, a tremer, e havia na sua voz alguma coisa de
autenticamente sincero, de fragilidade infantil. Como toda a gente
assustada ou aturdida, falava com frases curtas, entrecortadas, dizia
muita coisa inútil, sem nada a ver com o assunto.
— Estava com medo de não o encontrar em casa — continuou. —
No caminho para aqui, o que o meu coração sofreu ... Vista-se e
vamos, por amor de Deus ... Aconteceu o seguinte: foi visitar-me
Aleksandr Semiónovitch Paptchínski, o doutor conhece-o...
Conversámos um pouco, depois sentámo-nos para tomar chá; de
repente a minha mulher solta um grito, leva a mão ao coração e cai
sobre o espaldar da cadeira. Levámo-la para a cama e ... esfreguei-lhe
as têmporas com amoníaco, borrifei-a com água... nada, estava como
morta... Tenho medo que seja um aneurisma... Vamos ... É que o pai
dela morreu de aneurisma...
Kirílov ouvia e calava-se, como se não compreendesse a língua
russa.
Quando Abóguin voltou a mencionar Paptchínski e o pai da sua
mulher, e a procurar na penumbra a mão do doutor, este sacudiu a
cabeça e disse arrastando apaticamente cada palavra:
— Desculpe, não posso ir... Morreu-me o filho, há uns cinco
minutos ...
— Não me diga! — sussurrou Abóguin, dando um passo atrás. —
Meu Deus, em que má hora eu vim! Um dia indizivelmente triste...
indizivelmente! Coincidência... como se fosse de propósito!
Abóguin deitou a mão à maçaneta da porta e baixou cabeça,
pensativo. Hesitava, não sabia o que dizer: ir-se embora ou continuar
a convencer o doutor.
— Oiça — disse com ardor agarrando Kirílov pela manga —,
compreendo perfeitamente a sua situação! Deus é testemunha, até
tenho vergonha de, num momento destes, tentar captar a sua
atenção, mas o que hei-de fazer? A quem mais recorrer?
Além do doutor, não há aqui mais nenhum médico. Venha, por
amor de Deus! Não lho peço por mim... Não sou eu quem está doente
!
Caiu o silêncio. Kirílov virou as costas a Abóguin, ficou algum
tempo imóvel, depois encaminhou-se lentamente do vestíbulo para a
sala. A julgar pelo seu andar inseguro e maquinal, pelo extremo
cuidado com que endireitou na sala o quebra-luz felpudo do
candeeiro apagado e parou o olhar no livro grosso em cima da mesa,
o doutor, nesses momentos, não tinha vontades nem desejos, não
pensava em nada, já não se lembrava porventura que deixara um
homem estranho no vestíbulo. A penumbra e o silêncio da sala terão
aumentado, pelos vistos, o seu aturdimento. Ao encaminhar-se agora
da sala para o seu gabinete, levantava a perna direita mais do que era
preciso, procurava com as mãos as ombreiras das portas, e em toda a
sua figura transparecia o pasmo, como se tivesse ido parar a um
apartamento alheio ou se tivesse embebedado pela primeira vez na
vida e, perplexo, se entregasse à nova sensação. Por uma das paredes
do gabinete, através dos armários dos livros, estendia-se uma larga
faixa de luz; misturada com o cheiro pesado e sufocante do ácido
carbólico e do éter, essa luz vinha da porta entreaberta que dava para
o quarto de dormir... O doutor sentou-se no cadeirão em frente da
mesa; por um minuto ficou a olhar para os livros iluminados, depois
levantou-se e dirigiu-se para o quarto.
No quarto de dormir reinava uma paz morta. Tudo descansava
agora, e tudo, até ao último pormenor, falava com eloquência da
tempestade, do cansaço de há pouco. Uma vela sobre o banco, numa
densa multidão de frascos, caixinhas e vidros, e um grande candeeiro
em cima da cómoda iluminavam claramente todo o quarto. Na cama,
junto à janela, estava deitado o menino com os olhos abertos e o
espanto no rosto. Não mexia, mas parecia que os seus olhos abertos
escureciam a cada instante e se afundavam para dentro das órbitras.
De joelhos, com as mãos no corpinho dele e escondendo o rosto nas
pregas da roupa da cama, a mãe. Como o menino dela, não mexia,
mas quanto movimento vivo naquela curvatura do corpo, naquelas
mãos! Agarrava-se à cama com todo o ser, com força e avidez, como
se temesse estragar a posição cómoda e sossegada que tinha
finalmente encontrado para o seu corpo extenuado. Cobertores,
trapos, alguidares, charcos no chão, pincéis e colheres espalhados a
toda a volta, uma garrafa grande de água de cal, o próprio ar, pesado
e sufocante — tudo se quedara imóvel e parecia mergulhado no
sossego.
O doutor parou ao pé da mulher, meteu as mãos nos bolsos das
calças e, pondo a cabeça de lado, fitou o olhar no filho. Na cara dele,
a indiferença, apenas o orvalho a brilhar-lhe na barba mostrava que
chorara havia pouco.
Aquele horror feio em que se pensa sempre quando se fala da
morte, estava ausente do quarto. Na petrificação geral, na figura da
mãe, na indiferença do rosto do doutor, havia algo de atraente, de
enternecedor, havia aquela beleza fina, quase imperceptível, da
desgraça humana que não poderá ser captada e descrita ainda
durante muito tempo, que só a música, ao que parece, sabe
transmitir. Também o silêncio sombrio respirava be-leza; Kirflov e a
mulher calavam-se, não choravam, como se, além do pesar da perda,
consciencializassem também todo o lirismo da sua situação: como a
seu tempo passara a juventude deles, assim agora, no apagar daquele
menino, se apagava para sempre, para a eternidade, o seu direito de
terem filhos! O doutor tinha quarenta e quatro anos, o cabelo já
branco, aspecto de velho; a mulher, mirrada e doente, tinha trinta e
cinco. Andrei não fora só o filho único, mas também o último.
Ao contrário da mulher, o doutor era daquelas pessoas que nos
momentos de dor espiritual sentem a necessidade de movimento.
Esteve cinco minutos parado ao lado da mulher, depois, levantando
muito a perna direita, passou do quarto de dormir para uma saleta
pequena, metade da qual era ocupada por um sofá comprido e largo;
daqui, foi para a cozinha... Deu uns passos ao lado do fogão e da
cama da cozinheira, dobrou-se e, através de uma portinhola baixa,
passou para o vestíbulo.
Aqui, de novo se lhe deparou o cachecol branco e a cara pálida.
— Até que enfim! — suspirou Abóguin, deitando a mão à maçaneta
da porta. — Vamos, por favor!
O doutor estremeceu, olhou para ele e lembrou-se.
— Oiça, já lhe disse que não posso ir! — disse, como que voltando a
si. — Que coisa!
— Doutor, eu não sou uma estátua de pedra, compreendo
perfeitamente a sua situação ... e compartilho a sua dor! — disse
numa voz suplicante Abóguin, levando a mão ao cachecol. — Mas
não é por mim que estou a pedir... É a minha mulher que está a
morrer! Se o doutor tivesse ouvido aquele grito, se tivesse visto o
rosto dela, já compreendia a minha insistência! Meu Deus, e eu que
pensava que o doutor se tinha ido vestir! Está o tempo a passar!
Vamos, doutor, peço-lhe!
— Não posso! — disse Kirílov pausadamente, e deu uma grande
passada na direcção da sala.
Abóguin foi atrás dele e agarrou-o pela manga.
— Aconteceu-lhe uma grande desgraça, eu compreendo, mas não
estou a chamá-lo para uma dor de dentes ou uma rotina, é para
salvar uma vida humana! — continuava Abóguin a implorar como
um mendigo. — Uma vida humana tem mais valor do que qualquer
desgraça pessoal. Pronto, bem sei que lhe estou a exigir muita
coragem, uma autêntica façanha! Mas é em nome do humanismo!
— O humanismo é uma espada de dois gumes — disse irritado
Kirílov. — Em nome do mesmo humanismo, peço-lhe que não insista
em que eu vá. Mas que coisa, juro por Deus! Mal me aguento de pé, e
está o senhor a querer assustar-me com o humanismo! Agora não
sirvo para nada... não vou e não vou, e também, com quem deixava a
minha mulher? Não e não ...
Kirílov abanou com as mãos e deu um passo atrás.
— Não ... não me peça isso! — continuou, como assustado. —
Desculpe-me ... De acordo com o décimo terceiro tomo das leis do
Estado, não me posso negar, o senhor tem o direito de me arrastar
pelos colarinhos ... Faz favor, arraste, mas ... estou imprestável...
Nem falar posso ... Desculpe ...
— Não tem que falar comigo nesse tom, doutor! — disse Abóguin
voltando a pegar na manga de Kirílov. — Que vá para o diabo, o
décimo terceiro tomo! Não tenho o direito de obrigá-lo contra a sua
vontade. Só vem se quiser e, se não quiser, que Deus lhe perdoe, só
que não estou a apelar à sua vontade, mas ao seu sentimento. Há
uma mulher jovem que está a morrer! Argumenta com a morte do
seu filho, então quem mais está em condições de compreender como
estou apavorado senão o doutor?
A voz de Abóguin tremia de emoção; no tremor e no tom daquela
voz havia mais persuasão do que nas palavras. Abóguin estava a ser
sincero mas, coisa curiosa: dissesse o que dissesse, as frases saíam-
lhe banais, sem alma, descabidamente floridas e pareciam, até,
insultuosas para o ar do apartamento do doutor e para aquela
mulher que estava, algures, à beira da morte. O próprio Abóguin
sentia isso, pelos vistos, porque, com medo de ser mal
compreendido, aplicava todas as forças em transmitir à voz uma
suavidade e uma ternura que conquistassem o médico; à míngua das
palavras certas, jogava com a sinceridade do tom. É que uma frase,
por mais bela e profunda que seja, apenas surte efeito nos
indiferentes, e nem sempre satisfaz quem esteja feliz ou infeliz; por
isso, a máxima expressão da felicidade ou da infelicidade é, na
maioria das vezes, o silêncio; os namorados compreendem-se melhor
um ao outro quando estão calados; um discurso fúnebre
temperamental e fervoroso só comove os estranhos e parece frio e
mesquinho à viúva e aos filhos do de-funto.
Kirílov continuava calado. Quando Abóguin pronunciou mais
algumas frases sobre o sublime que é a vocação do médico, sobre
auto-sacrifício, etc., o doutor perguntou, sombrio:
— É longe daqui?
— Umas treze ou catorze verstás. Tenho cavalos excelentes,
doutor! Dou-lhe a minha palavra de honra que o levo e trago de volta
numa hora. É só uma hora!
Estas últimas palavras decidiram o doutor, mais do que todo o
humanismo ou a vocação médica. Pensou, suspirou:
— Está bem, vamos lá!
Apressadamente, já com o andar seguro, dirigiu-se ao seu gabinete
e não demorou a sair vestindo a sobrecasaca comprida. Trotando ao
seu lado e arrastando os pés, aliviadíssimo, Abóguin ajudou-o a
vestir o casacão; saíram juntos de casa.
Na rua estava escuro, embora menos que no vestíbulo. Destacava-
se nitidamente na escuridão o vulto alto e um pouco curvado do
doutor, o recorte da barba estreita e comprida, o nariz aquilino.
Quanto a Abóguin, além do brilho do rosto pálido, distinguia-se-lhe a
cabeça grande e uma chapeleta de estudante que mal lhe cobria o
cocuruto. O branco do cachecol só se notava de frente, por trás estava
escondido pela cabeleira comprida.
— Acredite, sei dar valor à sua generosidade — murmurava
Abóguin quando ajudava o doutor a subir para a caleche. —
Chegamos lá num instante. E tu, Luká, meu querido, aperta o mais
que puderes ! Por favor!
A caleche corria velozmente. Primeiro por uma fila de construções
desengraçadas que se estendiam ao longo do pátio do hospital; era
escuro por todo o lado, apenas penetrava no fundo do pátio, através
da cerca, a luz forte vinda de um janela; também três janelas do
andar superior do edifício hospitalar pareciam destacar-se num
brilho pálido. Depois, o coche entrou nas trevas espessas; cheirava a
humidade de cogumelos e ouvia-se o sussurrar das árvores; as
gralhas, acordadas com o barulho das rodas , restolhavam no interior
das copas e erguiam uma gritaria alarmada e lamurienta, como se
soubessem que o doutor perdera o filho e Abóguin tinha a mulher
doente. Agora o coche já só rasa por árvores solitárias, arbustos;
brilha soturnamente um pequeno lago onde dormem grandes
sombras negras e, logo, o coche roda pela planície. O grito das
gralhas ficou para trás, abafado, longínquo e, breve, se calou de todo.
Kirílov e Abóguin foram calados quase todo o caminho. Só uma vez
Abóguin suspirou fundo e murmurou:
— É uma tortura! Nunca gostamos tanto dos nossos como no
momento em que nos arriscamos a perdê-los.
Também Kirílov, quando atravessavam devagar o rio, deu um
estremeção repentino, como se o marulho da água o tivesse
assustado, e agitou-se:
— Oiça, deixe-me voltar — disse com angústia. — Eu vou lá depois.
Só preciso de mandar um enfermeiro para junto da minha mulher.
Está sozinha!
Abóguin ficou calado. A caleche, baloiçando e matraqueando nas
pedras, atravessou a margem arenosa e seguiu. Um aperto de
angústia desassossegou Kirílov, pôs-se a girar a cabeça à volta. Atrás
mal se entrevia, através da luz escassa das estrelas, o caminho e os
salgueiros ribeirinhos a dissolverem-se na escuridão. À direita era a
planície, lisa e infinita como o céu, em que ardiam de onde a onde,
talvez nas turfeiras, umas luzinhas fracas. À esquerda, paralelamente
ao caminho, estendia-se uma colina encaracolada de arbustos
miúdos, e por sobre a colina pespegava-se a meia-lua grande,
vermelha, levemente enevoada e rodeada de nuvenzinhas que
pareciam examiná-la e vigiá-la de todos os lados para que não
fugisse.
Sentia-se alguma coisa de desesperado em toda a natureza, de
enfermiço; a terra, como mulher perdida sozinha num quarto escuro
e que tenta não pensar no passado, atormentava-se com as
recordações da Primavera e do Verão, e esperava, sucumbi-da, o
Inverno iminente. Caísse onde caísse o olhar, a natureza lembrava
um fosso escuro, ilimitadamente profundo e frio, donde não era
possível escaparem nem Kirílov, nem Abóguin, nem a meia-lua
vermelha...
Quanto mais a caleche se aproximava do seu destino, mais
impaciente se tomava Abóguin. Remexia-se, saltitava no lugar,
espreitava por cima do ombro do cocheiro. Quando por fim a caleche
parou à entrada da casa, com uns degraus lindamente cobertos com
uma passadeira de lona listrada, e quando Abóguin olhou para as
janelas iluminadas do primeiro andar, a sua respiração tremente era
bem audível.
— Se aconteceu alguma coisa... não sobrevivo — disse, entrando
com o doutor no vestíbulo e esfregando nervosamente as mãos. —
Mas não se ouve azáfama nenhuma, quer dizer que por enquanto
está tudo bem — acrescentou escutando o silêncio.
No vestíbulo não se ouviam vozes nem passos, toda a casa parecia
adormecida, apesar da forte iluminação. Agora, o doutor e Abóguin,
tanto tempo habituados ao escuro, podiam ver-se bem um ao outro.
O doutor era alto, um pouco curvado, tinha uma cara feia e vestia
com desalinho. Uns lábios grossos como de africano, um nariz
adunco, um olhar mole e indiferente exprimiam algo de
desagradavelmente brusco, antipático e severo. O cabelo
desgrenhado, as têmporas cavadas, as brancas prematuras nos pêlos
da barba comprida e afilada, através da qual transparecia o queixo, a
cor cinzento-pálida da pele e as maneiras angulosas e descuidadas —
tudo isso, na sua rudeza, deixava adivinhar a pobreza em que vivera
outrora, a infelicidade, o cansaço da vida e das pessoas. Olhando
para esta figura seca era difícil acreditar que o homem pudesse ter
mulher, pudesse chorar a morte de um filho. Ora, Abóguin era
diferente. Um loiro corpulento e imponente de cabeça volumosa e
traços fisionómicos graúdos mas suaves, vestido com elegância,
respeitando a última moda. O seu porte, a sobrecasaca bem
abotoada, aquela juba, o rosto sugeriam fidalguia, alguma coisa de
leonino; caminhava com a cabeça bem levantada e o peito inchado,
falava numa agradável voz de barítono, e do modo como tirava o
cachecol ou ajeitava os cabelos transparecia uma elegância fina quase
feminina. Até a palidez e o medo infantil com que, enquanto despia
os agasalhos, lançava olhares para o cimo das escadas, lhe não
estragavam a postura nem diminuíam o ar de fartura, saúde e
sobranceria que emanava de toda a sua figura.
— Não aparece ninguém nem se ouve nada — disse, começando a
subir as escadas. — Não há agitação nenhuma. Oxalá esteja bem!
Levou o doutor, através do vestíbulo, até uma sala grande onde
estava um piano de cauda escuro e pendia do tecto um lustre coberto
com um pano branco; dali passaram para uma pequena sala de estar,
acolhedora e bonita, envolta numa penumbra rosada.
— Espere aqui um pouco, doutor — disse Abóguin —, que eu ... já
volto. Vou ver como ela está e avisá-la.
Kirílov ficou sozinho. O luxo da sala de estar, a agradável
penumbra e mesmo a sua presença numa casa estranha,
desconhecida, com um toque de aventura, pelos vistos não o
impressionavam. Sentou-se numa poltrona, observando as mãos
queimadas pelo ácido carbólico. Só por instantes reparou no quebra-
luz avermelhado, no estojo de violoncelo e, olhando num soslaio
rápido para o lado onde tiquetaqueava o relógio, num lobo
empalhado farto e imponente como o próprio Abóguin.
Era o silêncio ... Algures ao longe, nos quartos vizinhos, alguém
pronunciou em voz alta o som «a-a!», uma porta envidraçada
tilintou, pelos vistos de um armário, e o silêncio caiu outra vez.
Depois de esperar mais cinco minutos, Kirílov deixou de observar as
mãos e levantou os olhos para a porta por onde tinha desaparecido o
Abóguin.
À soleira estava o próprio Abóguin, mas não o Abóguin que saíra.
A expressão farta e de elegância fina tinham desaparecido dele, a
cara, as mãos, a pose desfiguravam-se numa outra de terror e
abominação, quiçá de torturante dor física. O nariz, os lábios, o
bigode, tudo no semblante se mexia, como se tentasse desprender-
se-lhe da cara; de dor, os olhos pareciam rir. ..
Abóguin deu uma passada larga e pesada para o centro da sala,
curvou-se, gemeu e sacudiu os punhos.
— Enganou-me! — gritou ele, acentuando com força a sílaba
«nou». — Enganou-me! Fugiu! Adoeceu e mandou-me buscar o
médico só para fugir com esse palhaço do Paptchínski ! Santo Deus!
Abóguin deu mais um passo pesado na direcção do doutor, pôs-lhe
à cara os punhos brancos e macios e, agitando-os, continuou aos
berros:
— Foi-se embora!! Enganou-me! Para quê esta traição?! Meu
Deus! Meu Deus! Para quê este truque sujo, esta trapacice, este jogo
de víbora, diabólico? O que lhe fiz eu? Fugiu!
Jorravam-lhe as lágrimas dos olhos. Rodou sobre um pé e deitou a
andar pela sala. Agora, com a sobrecasaca curta, as cal-ças estreitas à
moda, que lhe faziam as pernas muito magras em comparação com o
resto do corpo, com a cabeça volumosa e a juba, assemelhava-se
ainda mais a um leão. No rosto indiferente do doutor acendeu-se
uma curiosidade. Levantou-se e pôs-se a observar Abóguin .
— Desculpe, onde está a doente? — perguntou.
— Doente! Doente! — gritou Abóguin, rindo, chorando,
continuando a sacudir os punhos. — Doente nenhuma, uma maldita!
Que baixeza! Uma infâmia, nem o próprio Satanás poderia inventar
coisa mais nojenta! Mandou-me para fora de casa para fugir à
vontade, para fugir com um palhaço daqueles, um bufão estúpido,
um chulo! Oh, meu Deus, ainda era melhor ela morrer! Não vou
aguentar! Não vou aguentar!
O doutor endireitou-se. Os olhos pestanejaram-lhe, encheram-se
de lágrimas, a barba afilada moveu-se-lhe de um lado para o outro,
ao ritmo da mandíbula.
— Desculpe, como é possível? — perguntou, olhando à volta com
espanto. — Morreu-me o filho, a minha mulher está desesperada,
sozinha em casa... eu próprio mal me aguento nas pernas, há três
noites sem dormir... e agora obrigam-me a fazer um papel nesta
comédia ordinária, uma figura triste! Nã... não compreendo !
Abóguin abriu um punho, atirou para o chão um bilhete
amarrotado e pisou-o como quem esmaga um insecto.
— E eu ... e eu que não vi nada, que não percebi! — dizia ele entre
dentes brandindo o punho rente à sua própria cara, com a expressão
de lhe terem pisado um calo. — Não reparei por que vinha ele todos
os dias cá a casa, não reparei que hoje tinha vindo de coche! Para que
precisava ele do coche? Não vi nada! Burro!
— Nã...não compreendo! — murmurava o doutor. — Afinal o que é
isto? Isto é escarnecer da pessoa humana, é gozar com o sofrimento
humano! É inadmissível... é a primeira vez que vejo semelhante coisa
na vida!
O doutor, com aquele pasmo entorpecido da pessoa que percebe
ter sido gravemente ofendida, encolheu os ombros, abriu os braços e,
sem saber o que mais dizer, deixou-se cair extenuado na poltrona.
— Está bem, deixou de me amar, apaixonou-se por outro ... pois vá
com Deus, mas para quê uma coisa destas, este truque ignóbil,
traiçoeiro? — continuava em voz chorosa Abóguin. — Para quê? E
qual é a minha culpa? O que te fiz eu? Oiça, doutor — disse com
fervor, aproximando-se de Kinlov. — O senhor é testemunha
involuntária da minha desgraça, e não vou esconder-lhe a verdade.
Juro que amava essa mulher, amava-a religiosamente, como um
escravo! Sacrifiquei tudo por ela: entrei em conflito com a minha
família, abandonei o serviço e a música, perdoei-lhe coisas que nem à
minha mãe ou à minha irmã teria perdoado ... Nem uma única vez a
olhei com maus olhos ... nunca lhe dei motivo nenhum! Porquê então
uma mentira destas, qual é a minha culpa? Não lhe posso exigir
amor, mas porquê este embuste ignóbil? Não me amas, pois dilo
frontalmente, com honestidade, até porque, ainda por cima,
conheces as minhas convicções a este respeito ...
Com lágrimas nos olhos, o corpo todo a tremer, Abóguin
desabafou sinceramente com o doutor. Falava com fervor, apertando
ambas as mãos contra o coração, revelava os segredos da família sem
a mínima hesitação, parecia mesmo contente por tais segredos
poderem sair-lhe finalmente do peito. Se pudesse falar assim uma
hora ou duas, se desabafasse tudo, com certeza se sentiria aliviado.
Se o doutor aceitasse ouvi-lo, se exprimisse uma compaixão
amigável, talvez, como acontece tantas vezes, Abóguin se
conformasse com a sua desgraça sem grandes protestos, sem fazer
asneiras inúteis ... Mas não foi assim. Enquanto Abóguin falava, ia-se
produzindo no ofendido doutor uma mudança visível. A indiferença
e o espanto foram cedendo lugar, no rosto dele, a uma expressão de
ofensa amarga, de indignação, de rancor. Os traços do seu rosto
tornaram-se ainda mais ríspidos, mais secos e desagradáveis.
Quando Abóguin aproximou dos olhos do doutor uma fotografia da
esposa, uma mulher jovem, de rosto bonito, mas seco e inexpressivo
como o de uma freira, e perguntou se era possível, olhando para
aquele rosto, admitir que exprimisse mentira, o doutor saltou de
repente do seu lugar e, com os olhos a chispar, disse, acentuando
grosseiramente cada palavra:
— Por que me está a dizer tudo isso? Não quero ouvir! Não quero!
— gritou e bateu com o punho na mesa. — Não preciso para nada dos
vossos segredos reles, para o diabo com isso! Não se atreva a contar-
me essas baixezas! Ou acha que ainda não fui suficientemente
insultado? Que sou um lacaio que se pode insultar até ao fim? Acha?
Abóguin recuou e fitou nele os olhos espantados.
— Por que me trouxe cá? — gritava o doutor com a barba a tremer.
— Se os senhores sofrem de fartura, casam por fartura, fazem
asneiras por fartura e chafurdam nos melodramas, o que tenho eu a
ver com isso? O que tenho eu em comum com os vossos romances?
Deixem-me em paz! Façam as vossas brigas de fidalgos, exibam as
vossas ideias humanistas, toquem (o doutor entortou os olhos para o
estojo de violoncelo), toquem ' contrabaixo, toquem trombone,
engordem como capões, mas não se atrevam a escarnecer da pessoa
humana! Já que não sabem respeitá-la, ao menos livrem-na das
vossas atenções!
— Desculpe, o que significa tudo isto? — perguntou Abóguin
corando.
— Significa que é uma infâmia e uma baixeza brincar assim com
seres humanos! Sou médico, e se acham que os médicos e os
trabalhadores em geral, que não cheiram a perfume nem a
prostituição, são vossos lacaios e gente de mauvais ton, muito bem,
continuem a achar, mas ninguém lhes deu o direito de fazerem de
uma pessoa em sofrimento um adereço teatral!
— Como se atreve a falar-me assim? — perguntou baixinho
Abóguin, e a sua cara tremeu, desta vez de pura indignação.
— Sim, como é que o senhor, sabendo que estou a passar por uma
desgraça, se atreve a trazer-me aqui para ouvir essas torpidades? —
gritou o doutor, e voltou a assentar um murro na mesa. — Quem lhe
deu o direito de escarnecer da desgraça alheia?
— Está doido! — gritou Abóguin. — O senhor não tem
generosidade ! Eu próprio me sinto agora profundamente infeliz e ...
e ...
— Infeliz! — o doutor soltou uma risada desdenhosa. — Não toque
nessa palavra, que não tem nada a ver consigo. Os parasitas que não
conseguem arranjar dinheiro a troco de uma letra também se
consideram a si próprios desgraçados. Um capão oprimido pela
gordura também é infeliz! Inúteis!
— Meu caro senhor, atente nos seus modos ! — guinchou Abóguin.
— Palavras dessas dão direito a ... bengaladas! Compreende?
Abóguin meteu apressadamente a mão no bolso, extraiu a carteira
e atirou duas notas para cima da mesa.
— Tome pela sua visita! — disse, com as narinas trementes. — Está
pago!
— Não se atreva a achincalhar-me com dinheiro! — gritou o doutor
e varreu as notas da mesa para o chão. — O insulto não se paga com
dinheiro !
Abóguin e o doutor estavam cara a cara e continuavam, fu-riosos, a
lançar insultos imerecidos um contra o outro. Talvez nunca na vida,
nem mesmo em estado de delírio, tenham dito, um e outro, tanta
coisa injusta, cruel e absurda. Vingava, em ambos, o egoísmo dos
desgraçados. As pessoas em desgraça ficam egoístas, más, injustas,
cruéis, menos capazes de se compreenderem umas às outras do que o
mais estúpido dos homens. A desgraça não une, antes desune as
pessoas, e mesmo quando parece que as pessoas devem estar unidas
pela desgraça comum, acontece entre elas mais injustiça e crueldade
do que entre as que estão livres de desgraça.
— Faça o favor de me mandar levar a casa! — gritou o doutor,
ofegando.
Abóguin tocou a campainha com brusquidão. Como ninguém
aparecesse à primeira chamada, voltou a badalar a sineta e atirou-a,
com fúria, para o chão; a sineta emitiu, de encontro ao chão, um
gemido lamentoso, como que agónico. Entrou um la-caio.
— Onde se meteram, raio que vos parta a todos! — atirou-se a ele o
senhor, cerrando os punhos. — Onde estavas metido? Vai, manda
atrelar a caleche para este senhor e o coche para mim! Espera! —
gritou quando o lacaio se virava para sair. — Amanhã não quero ver
nem um traidor em minha casa! Todos para o olho da rua! Arranjo
outros! Víboras!
Enquanto esperavam pelas carruagens, Abóguin e o doutor
calavam-se. O primeiro já recuperara o ar farto e a elegância fina.
Andava pela sala, sacudia elegantemente a cabeça e, pelos vistos,
maquinava alguma coisa. A sua raiva ainda não arrefecera, mas
tentava fingir que nem reparava na presença do seu inimigo ...
Quanto ao doutor, continuava de pé, apoiando-se com uma mão na
borda da mesa e olhava para Abóguin com aquele desprezo
profundo, um tanto cínico, com que só a desgraça e a infelicidade
sabem olhar quando têm à frente a fartura e a elegância.
Quando, um pouco mais tarde, o doutor subiu para a caleche e
partiu, dos olhos dele chispava ainda o desprezo. Estava escuro,
muito mais escuro do que uma hora atrás. A meia-lua vermelha já se
escondera por trás da colina, e as nuvens que a guardavam jaziam
agora, como nódoas escuras, ao lado das estrelas. Um coche com
luzes vermelhas apareceu a tamborilar pelo caminho e ultrapassou o
doutor. Era Abóguin que ia protestar, fazer das suas ...
Durante todo o caminho, o doutor não pensava na mulher nem em
Andrei , apenas em Abóguin e nas pessoas que viviam na casa donde
acabara de sair. Os pensamentos dele eram injustos e
desumanamente cruéis. Votou à condenação o Abóguin, a mulher do
Abóguin e Paptchínski, e toda a gente que vivia nas penumbras
rosadas e cheirava a perfume, e durante todo o caminho não parou
de os desprezar e odiar a todos, até lhe doer o coração. Na sua mente
gravou-se uma convicção firme no to-cante a toda essa gente.
Passará o tempo, passará também a dor de Kirílov, mas tal in-justa
convicção, indigna do coração humano, não passará e ficará gravada
no espírito do doutor até ao túmulo.
COISA-RUIM

— Quem é?
Não há resposta. O guarda não vê nada, mas por entre o barulho
do vento e o ramalhar das árvores sente perfeitamente que anda
alguém a calcorrear a álea à frente dele. A noite de Março, cerrada e
nevoenta, envolve a terra, e parece ao guarda que a terra, o céu e ele
próprio mais os seus pensamentos se fundiram numa coisa única,
enorme, impenetravelmente negra. Só às palpadelas se pode andar.
— Quem é? — repete o guarda, e parece-lhe ouvir um sussurro e
um riso contido. — Quem está aí?
— Sou eu, paizinho ... — responde uma voz de velho.
— Tu , quem?
— Eu ... um caminheiro de Cristo.
— Caminheiro? — diz o guarda num grito zangado, mas a sua voz
gritada é mais para disfarçar o medo. — Andas por on-de não és
chamado! Esta agora, diabo do homem a passear-se à noite no
cemitério!
— Então aqui é o cemitério?
— Que mais havia de ser? O cemitério, pois! Não vês?
— Ooooh ... Nossa Senhora que estais no céu! — ouve-se num
suspiro senil. — Não vejo nada, paizinho, nadinha... Irra, está escuro,
que escuridão. Escuro como breu, paizinho. Ooooh ...
— Mas quem és tu?
— Um peregrino, paizinho, um homem que anda pelo mundo de
Deus.
— Diabos de moinantes da noite ... Peregrinos, dizem eles!
Bêbados ... — murmura o guarda, sossegado com o tom e os suspiros
do homem. — Até baralham a gente ... Andam na borracheira dias
seguidos, depois à noite é o mafarrico que os puxa para cá. Quer-me
parecer que não estás sozinho, ó tu, sois dois ou três.
— Estou sozinho, meu senhor, sozinho. Só eu ... Ooooh, vida
desgraçada...
O guarda esbarra com o homem e pára.
— Como vieste parar aqui? — pergunta.
— Perdi-me, amigo. Ia para o moinho Mítrievskaia e perdi-me.
— Irra ! Então por aqui é que se vai para o moinho Mítrievskaia,
seu cabeça de chibo? Para o moinho Mítrievskaia é muito mais pela
esquerda; vindo da estrada da cidade é sempre a direito. Bebesses
menos, já não fazias três verstás em vão. Andaste nos copos na
cidade, não foi?
— Pequei, paizinho, é verdade ... Verdade verdadinha, não vou
mentir. Mas como é que vou agora para lá?
— Então agora é sempre em frente por este talhão até esbarrares
num beco que não tem saída, aí viras logo à esquerda e se-gues até ao
fim do cemitério, até à cancela. Há-de haver lá uma cancela . .. Abre-
a e vai com Deus. Vê lá se cais na valeta. Passando o cemitério metes
pelo campo, sempre pelo campo fora, até desembocares na estrada
pública.
— Bem hajas, paizinho, Deus te dê saúde. Nossa Senhora que está
no céu te proteja. Olha, amigo, não podias vir comigo? Faz-me esse
favor, leva-me até à cancela!
— Achas que não tenho mais que fazer? Vai sozinho!
— Por caridade, suplico-te que sejas misericordioso, que eu peço
por ti a Deus nas minhas orações. Não vejo nem a palma da minha
mão, paizinho ... Está tão escuro, ah, esta escuridão! Leva-me lá, meu
senhor!
— Tenho lá tempo para passeatas! Se vou fazer a vontade a cada
qual, isto nunca mais acaba.
— Ajuda-me, por amor de Cristo. Não vejo nada e arreceio-me de
andar sozinho num cemitério. Tenho medo, amigo, muito medo.
— Era só o que me faltava — suspira o guarda. — Está bem, vamos
lá!
O guarda e o romeiro põem-se a caminho. Juntos, ombro com
ombro, calados. O vento húmido, acutilante, bate-lhes na cara, e as
árvores invisíveis, ramalhando crepitantes, despejam por cima deles
salpicos grossos. A álea é, quase toda, uma sucessão de charcos.
— Só uma coisa me faz espécie — diz o guarda depois de um longo
silêncio —, como é que entraste? É que o portão está fechado a
cadeado. Subiste à cerca, foi? Mas olha que saltar por cima da cerca
não é coisa para velhos!
— Não sei, paizinho, não sei nada. Eu próprio não sei como vim
parar cá dentro. Foi coisa má. Um castigo de Deus. Verdade
verdadinha, foi coisa má, o maligno trocou-me as voltas. Então tu,
paizinho, és guarda aqui?
— Sou.
— Só um, para o cemitério todo?
A resistência do vento é tão forte que ambos param um momento.
O guarda, esperando até que a rabanada de vento abrande, responde:
— Não, somos três, mas um está de cama com as febres, e o outro
está a dormir. Trabalhamos por turnos, eu e ele.
— Pois, pois, paizinho, pois ... Que ventania, mas que ventania! Até
os mortos a devem ouvir! Uiva como uma fera... Ooooh ...
— E tu donde és , homem?
— Sou de longe, paizinho. Das terras do fim do mundo, de
Vólogda. Ando pelos lugares santos a rezar pela gente boa. Que Deus
nos ampare.
O guarda pára para acender o cachimbo. Põe-se de cócoras atrás
do peregrino e risca vários fósforos. A luz do primeiro fósforo alumia
por um instante um bocado da álea, à direita, um monumento
branco com um anjo e uma cruz escura; o clarão do segundo fósforo,
que se acende com um estalido e se apaga logo, desliza como um raio
pelo lado esquerdo, e da escuridão apenas se destaca o ângulo de
uma grade; o terceiro fósforo alumia a direita e a esquerda, o
monumento branco, a cruz negra e a grade à volta do túmulo de uma
criança.
— Dormem os fiéis-defuntos, os nossos queridos mortos dormem!
— murmura o peregrino suspirando ruidosamente. — Dormem os
ricos e os pobres, os sábios e os ignorantes, os bons e os malvados.
Valem todos a mesma coisa. E dormirão até que soe a voz da
trombeta. Que descansem em paz no reino dos céus.
— Agora vamos aqui a andar, mas chegará o dia em que também
nós estaremos ali estendidos — diz o guarda.
— Nem mais. Todos, todos vamos parar ali. Todos havemos de
morrer. Ooooh. Atrozes acções as nossas, intenções malvadas!
Pecado, tudo é pecado! Oh, minha alma maldita, insaciável, ventre
voraz! Pequei contra o Senhor e não haverá salvação para mim, nem
neste mundo nem no outro. Afundei-me no pecado como um verme
da terra.
— Pois é, e mais a mais à morte não se escapa.
— Nem mais, não se escapa.
— Calhando, para o peregrino é mais fácil morrer do que para a
gente como nós ... — diz o guarda.
— Há peregrinos e peregrinos. Há os verdadeiros, fiéis a Deus, que
cuidam da salvação da sua alma, e há os que andam à noite pelos
cemitérios para consolação do demónio ... Si-im! Ele há peregrinos
que às tantas, se lhes der na gana, espetam-te c'o machado na cabeça
e esticas o pernil num instante.
— Que conversa é essa?
— Conversa nenhuma ... Olha, parece que é a cancela. É ela toda,
não falha. Abre-a lá, paizinho!
O guarda abre a cancela às apalpadelas, leva o peregrino para fora
pela manga e diz:
— Acaba aqui o cemitério. Agora metes a direito pelo campo fora
até chegares à estrada. Mas cautela, que há uma valeta, não vás cair
lá dentro... Quando chegares à estrada mete à direita e depois é
sempre em frente até ao moinho ...
— Ooooh ... — suspira o peregrino, após um silêncio. — Agora me
lembro que não tenho nada que ir para o moinho Mítrievskaia... Que
diabo vou lá fazer? Olha, querido amigo, é melhor eu ficar aqui à tua
beira...
— E para que ficarias à minha beira?
— Por nada ... é mais divertido.
— Ah , então agora também sou divertimento? Estou a ver,
peregrino, que gostas da brincadeira...
— Gosto, claro! — diz o caminheiro, casquinando uns risinhos
roucos. — Ai, querido amigo, caríssimo! Ainda te hás-de lembrar por
muito tempo cá do peregrino!
— Por que houvera de me lembrar de ti?
— Porque sim, porque foste bem levado ... Que peregrino julgas
que sou? Raio de peregrino nenhum.
— Quem és então?
— Sou um morto... Saí há bocado do caixão ... Lembras-te do
serralheiro Gubariov que se enforcou no Entrudo? Aqui me tens ...
— Vá lá, tretas !
O guarda não acredita, claro, mas sente por todo o corpo um medo
tão frio e pesado que arranca de ao pé do outro e deita nervosamente
a mão à cancela.
— Espera, aonde achas que vais? — diz o caminheiro agarrando a
mão do guarda. — Eeh, olha só como tu és! Por que queres
abandonar o pobrezinho?
— Larga-me! — grita o guarda tentando libertar mão.
— Quieto! Já te mandei estar quietinho e ... que não bulisses daqui
... Não mexe, cão merdoso! Se queres continuar vivo, quieto e caluda,
faz o que te digo ... Não me apetece derramar sangue, senão há muito
que já eras uma carcaça, seu tinhoso . .. Quieto !
O guarda sente os joelhos a dobrarem-se. Fecha os olhos, cheio de
medo, todo o corpo lhe treme, aperta-se contra a cerca. Tem vontade
de gritar, mas sabe que os gritos não chegarão às habitações ... A seu
lado o caminheiro, segurando-o pela mão ... Assim passam uns três
minutos, em silêncio.
— Um está com as febres, outro a dormir, e o terceiro guia os
peregrinos — murmura o caminheiro. — Belos guardas, merecem
bem o salário que ganham! Nã-ão, amigo, os ladrões toda a vida hão-
de ser mais espertos que os guardas! Quieto, quietinho, não mexe ...
Passam cinco, dez minutos de silêncio. De repente, o vento traz um
assobio.
— Agora, podes ir — diz o caminheiro largando a mão do guarda.
— Vai e dá graças a Deus por saíres daqui vivo.
O caminheiro também assobia, afasta-se a correr da cancela e
ouve-se o barulho dele a saltar a valeta.
Com um mau pressentimento e ainda a tremer, o guarda abre a
cancela e, indeciso, de olhos fechados, corre no caminho in-verso ...
Na viragem para a álea grande, ouve passos afobados e uma voz
sibilante a perguntar-lhe:
— És tu, Timofei? E onde está o Mitka?
Quando, sempre a correr, chega ao fim da álea grande, entrevê na
escuridão uma luzinha pequena e pálida. Quanto mais se aproxima
da luzinha, mais intenso e terrível se toma o mau pressentimento.
«Parece que a luz vem da igreja — pensa. — Como é que pode
haver lá luz? Valha-me Nossa Senhora! É mesmo isso!»
Por um longo minuto, o guarda fica parado em frente da janela
partida e olha, aterrorizado, para o altar. A pequena vela de cera que
os ladrões se esqueceram de apagar tremelica ao vento que entra pela
janela e lança manchas vermelhas opacas sobre as molduras dos
ícones espalhadas, sobre o armariozinho derrubado, sobre as muitas
pegadas ao lado da mesa e da pedra do altar...
Passa mais algum tempo e, por fim, acompanhado pelo uivo do
vento, ressoa pelo cemitério o toque do sino a rebate ...
VOLÓDIA

Num domingo de Verão, pelas cinco da tarde, Volódia, de


dezassete anos, feio, enfermiço e tímido, estava sentado no pavilhão
da casa de campo dos Chumíkhin e aborrecia-se. Os seus
pensamentos nada alegres corriam em três direcções. Primeiro,
amanhã, segunda-feira, tinha um exame escrito de matemática e
sabia que, se não passasse, seria expulso, porque já tinha repetido o
sexto ano e tinha a nota de 2 e 3/4 em álgebra. Segundo, a sua estada
em casa dos Chumíkhin, gente rica e com pretensões a aristocrata,
causava uma dor permanente ao seu amor-próprio. Parecia-lhe que
Madame Chumíkhina e as sobrinhas olhavam para ele e para a
maman como para parentes pobres e comensais, que não
respeitavam a maman e se riam dela. Uma vez escutara, por acaso,
como Madame Chumíkhina dizia no terraço à sua prima Ana
Fiódorovna que a maman ainda continuava a fazer-se passar por
jovem e a maquilhar-se, que nunca pagava o que perdia ao jogo e
tinha atracção pelos sapatos alheios e pelo tabaco alheio. Todos os
dias Volódia suplicava à maman que deixasse de visitar os
Chumíkhin, fazia-lhe ver o papel humilhante que ela desempenhava
em casa desses senhores, tentava convencê-la, era até malcriado com
a mãe, mas esta, leviana, mimada, tendo desbaratado duas fortunas
— a dela e a do marido —, sempre com a mania da alta sociedade,
não o queria ouvir e, duas vezes por semana, Volódia era obrigado a
acompanhá-la àquela casa de campo odiosa.
Em terceiro lugar, o jovem não conseguia livrar-se, por um minuto
que fosse, de um sentimento estranho e desagradável,
completamente novo para ele ... Parecia-lhe que estava apaixonado
por Arma Fiódorovna, prima e hóspede dos Chumíkhin. Era uma
senhora remexida, altifalante e amiga de rir, dos seus trinta anos,
respirando saúde, forte, rosada, de ombros curvos, queixo gorducho
redondo e um sorriso permanente nos lábios finos. Não era nenhuma
lindeza, nenhuma jovenzinha - Volódia sabia-o perfeitamente, mas,
por qualquer razão, não podia deixar de pensar nela, de olhar para
ela quando a senhora, jogando o croquet, encolhia os ombros
redondos e remexia as costas lisas, ou, depois de ter rido muito ou
ter corrido pelas escadas, se deixava cair na poltrona e, franzindo os
olhos e ofegando, fingia ter uma opressão no peito. Era casada. O
marido dela, um arquitecto imponente, vinha uma vez por semana à
casa de campo, dormia excelentemente e regressava à cidade. O tal
estranho sentimento meteu-se em Volódia quando, sem motivo, se
viu a odiar o arquitecto e a sentir-se contente quando ele partia para
a cidade.
Agora, no pavilhão, pensando no exame do dia seguinte e na sua
maman como objecto de gozo, sentia um desejo forte de ver Niuta
(assim chamavam os Chumíkhin a Anna Fiódorovna), de ouvir o seu
riso, o roçagar do seu vestido ... Era um desejo que nada tinha a ver
com aquele amor imaculado e poético que conhecia dos romances e
com que sonhava todas as noites na cama; era um desejo estranho,
incompreensível, tinha vergonha e medo dele como de coisa má e
impura, difícil de confessar mesmo a si próprio ...
— Não é amor - dizia de si para si. - Ninguém se apaixona por
trintonas casadas ... É só uma paixoneta ... Sim, uma paixoneta...
Pensando na paixoneta, ia pensando também naquela sua timidez,
na ausência de bigode, nas sardas, nos olhos estreitos, imaginava-se
ao lado de Niuta - e o que via era um par impossível; então
apressava-se a imaginar-se um bonitão, corajoso, espirituoso, vestido
à última moda ...
No auge dos seus devaneios, estava ele sentado no cantinho escuro
do pavilhão, todo curvado e a olhar para o chão, quando soaram
passos leves. Alguém andava sem pressas pela álea. Breve os passos
se calaram e à entrada apareceu uma coisa branca.
— Está aqui alguém? - perguntou uma voz feminina.
Volódia reconheceu a voz e ergueu, assustado, a cabeça.
— Quem está? - perguntou Niuta entrando no pavilhão. - Ah, é
você, Volódia? O que está aqui a fazer? A pensar? Sempre a pensar, a
pensar, a pensar... Assim até se pode endoidecer!
Volódia levantou-se e ficou a olhar, embaraçado, para Niuta. Esta
vinha de nadar. Sobre os ombros trazia um lençol e uma toalha
felpuda, debaixo do lenço via-se-lhe o cabelo molhado colado à testa.
Emanava dela um cheirinho húmido e fresco a banho e sabonete de
amêndoa. Ofegava, por ter vindo depressa. O botão de cima da blusa
estava desabotoado, e o jovem via-lhe o pescoço e o peito.
— Por que está tão calado? - perguntou Niuta, observando Volódia.
- Não é de boa educação ficar calado quando uma senhora fala
consigo. Que molengão, francamente! Sempre sentado, sempre
calado, sempre a pensar, armado em filósofo. Não há vida nenhuma
em si, não tem chispa! É um aborrecido, francamente ... Na sua idade
é preciso viver, saltar, tagarelar, namorar as mulheres, apaixonar-se.
Volódia olhava para o lençol seguro pela mão branca e
rechonchuda e pensava ...
— E continua calado! - admirava-se Niuta. - Chega a ser esquisito
... Oiça, seja homem! Sorria, ao menos! Fu, que filosofão antipático! -
riu-se. - Sabe por que é assim tão molenga, Volódia? É porque não
namora as mulheres! Por que não as na-mora? É verdade que aqui
não há meninas, mas nada o impede de cortejar as damas! Por
exemplo, por que não me faz a corte, a mim?
Volódia ouvia e, mergulhado nas suas reflexões pesadas e tensas,
coçava a têmpora.
— Só não fala e gosta da solidão quem é muito orgulhoso —
continuava Niuta, sacudindo a mão dele da têmpora. — É um
orgulhoso, Volódia. Por que está a olhar de lado? Faça favor de me
olhar a direito para a cara! Vá lá, seu molengão!
Volódia decidiu-se a falar. Tentando sorrir, contorceu o lábio
inferior, pestanejou e voltou a pôr a mão na têmpora.
— Eu ... amo-a! — conseguiu articular.
Niuta ergueu as sobrancelhas, surpreendida, e riu-se.
— O que estarei a ouvir? — cantou ela, como cantam os actores de
ópera quando ouvem alguma coisa terrível. — Como? O que disse?
Repita, repita ...
— Eu ... amo-a! — repetiu Volódia.
E, sem qualquer participação da sua vontade, sem compreender
nada nem reflectir em nada, deu meio passo na direcção de Niuta e
pegou-lhe no braço acima do pulso. Os olhos dele turvaram-se,
encheram-se de lágrimas, todo o mundo se transformou para ele
numa grande toalha de felpo cheirando a banho.
— Bravo, bravo! — ouviu num riso alegre. — Então, por que se cala
agora? Quero que fale! Então?
Vendo que não lhe fora impedido pegar no braço dela, Volódia
olhou para a cara risonha de Niuta e, desajeitado,
desconfortavelmente, envolveu-lhe com ambos os braços a cintura,
de modo que as suas mãos se cruzaram nas costas dela. Segurava-a
assim pela cintura, enquanto ela, levando as mãos à nuca e
mostrando as covinhas do cotovelo, ajustava o cabelo debaixo do
lenço e dizia em voz calma:
— Volódia, é necessário ser hábil, simpático, querido, mas isso só é
possível com o convívio das mulheres. Irra, que má cara ... que
raivoso. É preciso saber falar, rir. .. Sim, Volódia, não seja
carrancudo, é jovem, ainda tem muito tempo à sua frente para as
filosofias. Vá, agora largue-me, vou-me embora! Largue-me!
Libertou sem esforço a cintura das mãos dele e, cantarolando
qualquer coisa, saiu do pavilhão. Volódia ficou sozinho. Alisou o
cabelo, sorriu, por três vezes foi de um canto ao outro, depois sentou-
se no banco e voltou a sorrir. Estava insuportavelmente
envergonhado, até se admirou que a vergonha humana pudesse
atingir aquela agudeza e aquela força. Sorria mas de vergonha,
sussurrava palavras desconexas, gesticulava.
Sentia tanta vergonha porque tinham acabado de tratá-lo como a
um garoto, vergonha por ser tímido e, sobretudo, vergonha por se ter
atrevido a abraçar pela cintura uma mulher decente e casada quando
não tinha direito nenhum para tal, segundo lhe parecia, quer pela
sua idade, quer pelo seu aspecto físico, quer pela sua condição social.
Levantou-se de um pulo, saiu do pavilhão e, sem olhar para trás,
dirigiu-se para o fundo do jardim, o mais longe possível da casa.
«Ah, quem me dera desaparecer daqui o mais rápido possível! -
pensava, levando as mãos à cabeça. - Meu Deus, o mais depressa
possível!»
O comboio em que devia ir com a maman partia às oito e
quarenta. Faltavam três horas, mas ele não se importava de ir agora
mesmo, sem esperar pela maman.
Já passava das sete, aproximou-se da casa. Toda a sua figura
exprimia firmeza: o que for, será! Decidiu-se a entrar corajosamente,
a olhar com frontalidade, a falar alto, acontecesse o que acontecesse.
Atravessou o terraço, a sala grande, a sala de estar (nesta parou
para recuperar o fôlego). Do sítio onde estava, ouvia que na sala de
jantar contígua estavam a tomar chá. Madame Chumíkhina, a
maman e Niuta tomavam chá e riam muito de alguma coisa.
Volódia aguçou o ouvido.
— Palavra de honra! - dizia Niuta. - Eu nem queria acreditar nos
meus olhos! Quando se declarou e, imaginem, até me abraçou pela
cintura, nem o reconheci! E, sabem, tem jeito! Quando disse que
estava apaixonado por mim tinha qualquer coisa de animalesco na
cara, como um circassiano!
— Não me diga! - espantou-se a maman, desfazendo-se num riso
arrastado. - Não me diga! Como me lembra o pai dele!
Volódia já não entrou e correu de volta para o ar livre.
«Como podem elas falar disso em voz alta? - atormentava-se,
erguendo as mãos e olhando aterrorizado para o céu. - Fa-lam disso
em voz alta, a sangue-frio ... E a maman a rir-se ... a maman! Meu
Deus, por que me deste uma mãe assim? Porquê?»
Mas era preciso entrar, por mais custoso que fosse. Fez três vezes a
álea, acalmou-se um pouco e entrou na casa.
— Por que não chegou a tempo para o chá? - perguntou
severamente Madame Chumíkhina.
— Desculpe, são horas ... são horas de apanhar o comboio -
murmurou Volódia sem levantar os olhos. - Maman,já são oito!
— Vai sozinho, querido - disse com languidez a maman. - Eu
durmo cá. Adeus, amigo ... Deixa-me persignar-te ...
Fez o sinal da cruz ao filho e disse em francês, dirigindo-se a Niuta:
— Tem algumas parecenças com Lérmontov... não tem?
Volódia, depois de despedir-se atabalhoadamente sem olhar
para nenhum rosto, saiu da sala de jantar. Dez minutos depois já
estava a caminho da estação e sentia-se contente por isso. Já não
estava apavorado, nem envergonhado, respirava fácil e livre-mente.
A meia verstá da estação sentou-se numa pedra à beira do
caminho e pôs-se a olhar para o sol meio escondido por trás do
aterro. Na estação já se tinham acendido algumas luzes e cintilava
um brilhozinho verde-pálido, mas ainda não se via o comboio.
Volódia sentia-se bem sentado e quieto, escutando os sons do
anoitecer. A penumbra do pavilhão, os passos, o cheiro a banho, o
riso, a cintura - tudo, com uma nitidez impressionante, lhe surgiu na
imaginação e já não era tão significativo nem assustador como
antes...
«Não tem importância ... Não sacudiu a minha mão e ria-se
quando eu a agarrava pela cintura - pensava ele - , quer dizer que
gostou. Se tivesse repugnância, tinha-se zangado ...»
Agora Volódia sentia-se frustrado por não ter tido no pavilhão a
ousadia bastante. Tinha pena de se ir embora assim, estupidamente,
e tinha a certeza de que, se a ocasião se repetisse, seria mais corajoso
e enfrentaria as coisas de modo mais simples.
Ora, não era difícil repetir-se a ocasião. Em casa dos Chumíkhin,
depois do jantar, toda a gente dava longos passeios. Se calhasse ao
Volódia passear pelo jardim escuro com Niuta, pronto, aí estava a
ocasião!
«Vou voltar - pensava - e apanho o comboio da manhã... Digo que
perdi o comboio.»
E voltou ... Madame Chumíkhina, a maman, Niuta e uma das
sobrinhas estavam no terraço a jogar às cartas. Quando Volódia lhes
mentiu dizendo que tinha perdido o comboio, ficaram preocupadas,
que não se atrasasse amanhã para o exame, disseram, aconselharam-
no a levantar-se mais cedo. As senhoras jogavam, Volódia sentava-se
ao lado, observava avidamente Niuta e esperava. Já tinha pronto na
cabeça o plano: aproximava-se dela no escuro, pegava-lhe na mão,
depois abraçava-a, não dizia nada, estaria tudo claro sem palavras.
Depois do jantar, porém, as senhoras não foram passear para o
jardim, continuaram o jogo de cartas. Jogaram até à uma da manhã,
depois foram-se deitar.
«Que estupidez isto tudo! - pensava Volódia desgostoso, ao deitar-
se. - Não faz mal, espero até amanhã ... E amanhã, outra vez no
pavilhão ... Não faz mal...»
Não tentava sequer adormecer. Sentou-se na cama, abraçando os
joelhos, a pensar. Pensar no exame era um nojo. Aliás, já decidira
deixar que o expulsassem e que não era assim tão horrível ser
expulso. Pelo contrário, ainda bem. Amanhã seria livre como um
passarinho, não vestiria mais o uniforme, fumaria abertamente, viria
à casa de campo cortejar Niuta quando muito bem lhe apetecesse; e
já não seria um colegial mas um «caro jovem». O resto, aquilo a que
se chama careira e futuro, estava resolvido: alistava-se no exército
como voluntário, ou inscrevia-se no telégrafo, ou, em último caso,
trabalharia numa farmácia, onde poderia chegar a ajudante de
farmacêutico ... Haverá assim tão poucos trabalhos? Passou uma
hora, passou outra, e ele ainda sentado, a pensar...
Já depois das duas da madrugada, despontava a luz, a porta
rangeu devagarinho e entrou a maman.
— Não dormes? — perguntou num bocejo. — Dorme, dor-me,
passei só para aqui ... buscar as gotas ...
— Para quê?
— A pobre da Lili voltou a ter os espasmos. Dorme, filho, amanhã
tens exame ...
Tirou um frasco do armariozinho, aproximou-se da janela, leu a
etiqueta e saiu.
— Mária Leóntievna, não são estas gotas! — ouviu Volódia uma voz
feminina, um minuto depois. — Isto é convalarina, e a Lili pede a
morfina. O seu filho já está a dormir? Peça-lhe que procure ...
Era a voz de Niuta. Volódia gelou. Vestiu rapidamente as calças,
lançou o capote aos ombros e foi para trás da porta.
— Está a perceber? Morfina! — explicava Niuta num sussurro. —
Deve estar escrito no frasco em latim. Acorde o Volódia, que ele
encontra.
A maman abriu a porta, e Volódia viu Niuta. Estava com a mesma
blusa com que fora nadar. Tinha o cabelo despenteado, caído pelos
ombros, o rosto sonolento, mais escuro na penumbra ...
— O Volódia não está ainda a dormir... — disse ela. — Volódia,
querido, procure no armário a morfina! Esta Lili é um castigo ...
Acontece-lhe sempre alguma coisa.
A maman murmurou qualquer coisa, bocejou e foi-se embora.
— Vá, procure — disse Niuta. — Por que está aí especado?
Volódia foi ao armário, pôs-se de cócoras e começou a pro-curar
entre os frascos e as caixinhas de medicamentos. As mãos tremiam-
lhe, tinha a sensação de que lhe passavam no peito e no ventre ondas
frias por todos os órgãos. O cheiro a éter, a ácido carbólico e a ervas
em que pegava sem qualquer necessidade com as mãos trementes e
que por isso se espalhavam, abafava-o e provocava-lhe vertigens.
«Parece que a maman se foi embora — pensava. — Muito bem...
muito bem ...»
— Então? - perguntou Niuta arrastando a voz.
— Espere ... Parece que isto é morfina ... - disse Volódia ao ler
qualquer coisa «morph ...» numa etiqueta. - Está aqui!
Niuta estava à porta, com um pé no corredor e outro dentro do
quarto. Ajeitava o cabelo, que era difícil de ajeitar - de tão espesso e
comprido! - e olhava distraidamente para Volódia. Sonolenta, a blusa
larga, o cabelo solto, à luz escassa que entrava pela janela vinda do
céu claro mas ainda sem sol, Niuta pareceu a Volódia encantadora,
luxuosa... Enfeitiçado, o corpo todo a tremer, lembrando-se com
deleite de como abraçara aquele corpo divino no pavilhão, estendeu-
lhe as gotas e disse:
— Que coisa, a senhora ...
— O quê?
Niuta entrou no quarto.
— O quê? - perguntou a sorrir.
Volódia calava-se e olhava para ela, depois, como daquela vez no
pavilhão, pegou-lhe na mão pelo pulso ... Niuta olhava para ele,
sorria e esperava: o que irá sair daqui?
— Amo-a... - sussurrou ele.
Ela deixou de sorrir, ar de quem pensa, e disse:
— Espere, parece que vem alguém. Oh, estes colegiais! - dizia a
meia voz indo à porta e espreitando para o corredor. - Não, não é
ninguém...
Voltou ...
Pareceu então a Volódia que o quarto, Niuta, o amanhecer e ele
próprio se fundiam numa sensação de felicidade violenta,
extraordinária, nunca vista, digna de se dar a vida por ela, de se
entregar ao suplício eterno por ela, mas, nem meio minuto após,
tudo se apagou num ápice. Volódia tinha agora à frente dele um
rosto cheio e feio, desfigurado por um trejeito de asco, e foi também
asco o que ele próprio sentiu pelo que acabara de suceder.
— Pronto, tenho de ir - disse Niuta examinando Volódia com
repugnância. - Tão feio, tão reles... fu, patinho feio!
Que monstruosos pareciam agora a Volódia os cabelos compridos
da mulher, a blusa larga, as passadas dela, aquela voz!...
«Patinho feio ... - pensava ele quando Niuta desapareceu. -
Realmente, sou horrível... É tudo horrível.»
Lá fora já se erguia o sol, já cantavam sonoros os pássaros, ouvia-
se o ranger do carrinho de mão do jardineiro no jardim... Não tardou
a ouvir-se o mugir das vacas e a flauta do pastor. O sol a raiar e
aquela toada bucólica diziam que havia, algures neste mundo, uma
vida pura, delicada, poética. Mas onde? Nunca lha pintaram a
maman nem todos os que o rodeavam.
Quando o criado o foi acordar para que pudesse apanhar o
comboio da manhã, fingiu que dormia...
«Que se amole, não quero saber!» - pensava.
Levantou-se já passava das dez. Quando se penteava ao espelho e
olhava para aquela cara feia, lívida depois de uma noite em branco,
pensou:
«Exactamente ... Patinho feio.»
Quando a maman deu de caras com ele e ficou horrorizada por ele
ter faltado ao exame, disse Volódia:
— Não acordei a horas, maman... Mas não se preocupe, posso
sempre apresentar um atestado médico.
Madame Chumíkhina e Niuta acordaram já depois do meio-dia.
Volódia ouviu como Madame Chumíkhina abria a janela do seu
quarto com fragor e como Niuta respondia à sua voz grosseira com
um riso estrondoso. Viu a porta abrir-se e, alongando-se desde a sala
de estar até à mesa do pequeno-almoço, uma fila de sobrinhas e
hóspedes (entre estes, também a maman), viu aparecer na fila o
rosto risonho, lavado de Niuta e, ao lado do seu rosto, as
sobrancelhas e a barba negras do arquitecto acabado de chegar.
Niuta estava em trajo ucraniano que não lhe ficava nada bem,
dava-lhe um ar desajeitado; o arquitecto dizia piadas ordinárias e
banais; as almôndegas que serviram tinham cebola a mais: assim
pareceu tudo a Volódia. Também lhe quis parecer que Niuta ria às
gargalhadas de modo propositadamente aparatoso acompanhadas de
olhares para os lados dele, como que a querer dizer que a recordação
da noite lhe era indiferente e que a presença ali do patinho feio em
nada a afectava.
Volódia e a maman foram de coche para a estação, já depois das
três. As feias recordações, a noite em claro, a expulsão iminente do
liceu, os remorsos - tudo isso acumulava agora nele uma raiva
pesada e sombria. Olhava para o perfil descarnado da maman, para
o seu narizinho pequeno, para o impermeável dela, oferta de Niuta, e
murmurava-lhe:
— Para que põe pó-de-arroz? Não é para a sua idade! Maquilha-se,
não paga o que perde ao jogo, fuma o tabaco dos outros ... é
repugnante! Não gosto de si . .. não gosto!
Insultava-a, e ela movia assustada os olhinhos, abanava as
mãozinhas e sussurrava com terror:
— O que dizes, filho? Meu Deus, olha que o cocheiro ouve! Cala-te,
o cocheiro ouve! Ouve-se tudo!
— Não gosto ... não gosto! - continuava ele, ofegante. - É uma
imoral, uma desalmada... Nunca mais vista este impermeável! Está a
ouvir? Senão rasgo-o aos bocados ...
— Tem juízo, meu filho! - choramingava a maman. - O cocheiro vai
ouvir!
— E onde está a fortuna do meu pai? E o seu dinheiro? Desbaratou
tudo! Não tenho vergonha de ser pobre, tenho vergonha é de ter uma
mãe como a senhora ... Quando os meus companheiros me
perguntam por si, coro sempre ...
De comboio, as paragens até à cidade eram duas. Volódia deixou-
se ficar sempre no varandim, todo a tremer, e não quis entrar para
dentro da carruagem: estava lá a mãe, que odiava. Odiava-se também
a si próprio, aos revisores do comboio, ao fumo da locomotiva, ao
frio que o fazia tremer, pensava ele ... E quanto mais peso sentia na
alma, mais lhe parecia que havia algures neste mundo gente com
uma vida pura, nobre, quente, delicada, cheia de amor, de carinho,
de alegria, de liberdade ... Sentia-o e amargurava-se tanto que um
dos passageiros, ao olhar com atenção para a cara dele, perguntou:
— Doem-lhe os dentes?
A maman e Volódia moravam, na cidade, em casa de Mária
Petrovna, senhora nobre que tinha uma casa grande alugada que
por sua vez subalugava a inquilinos. Ocupavam dois quartos: num,
com janelas, uma cama e dois quadros com molduras douradas nas
paredes, vivia a maman; no outro, contíguo, pequeno e escuro, vivia
Volódia. No quarto de Volódia havia um divã onde ele dormia e, além
do divã, mais nenhuns móveis; o quarto estava atulhado com cestos
de vime com roupa, caixas de cartolina para os chapéus e todo o
género de tralha que a maman, sabe-se lá porquê, gostava de
guardar. Volódia fazia os trabalhos de casa no quarto da mãe ou na
«sala comum» — assim se chamava uma sala grande onde se
reuniam todos os inquilinos ao almoço e à noite.
Chegado a casa, Volódia deitou-se no divã e agasalhou-se com o
cobertor, a ver se lhe passavam as tremuras. As caixas dos chapéus,
os cestos e a tralha lembraram-lhe que não tinha o seu próprio
quarto, não tinha um abrigo onde pudesse esconder-se da maman,
dos convidados da maman e das vozes que lhe chegavam agora da
«sala comum»; a mochila e os livros espalhados pelos cantos
lembraram-lhe o exame a que faltara ... Por qualquer razão, nada a
propósito, veio-lhe à memória Menton onde vivera quando tinha sete
anos com o falecido pai; lembrou-se de Biarritz e de duas meninas
inglesas com quem corria pela areia da praia ... Apeteceu-lhe muito
reconstituir na memória a cor do céu e do oceano, a altura das ondas
e o seu estado de espírito nesse tempo, mas não foi capaz; as
meninas inglesas passaram-lhe diante dos olhos como ao vivo, tudo o
resto se lhe embaralhava, se dissolvia na desordem...
«Não, está frio aqui» — pensou Volódia; levantou-se, vestiu o
capote e foi para a «comum».
Tomava-se chá, na «comum». Ao lado do samovar, três pessoas: a
maman, a velhinha professora de música sempre com a sua luneta
de tartaruga, e Augustin Mikháilitch, um francês idoso, muito gordo,
que trabalhava numa fábrica de perfumes.
— Ainda não almocei hoje — dizia a maman. — Tenho de mandar a
criada de quartos ao pão.
— Duniach! - gritou o francês.
Verificou-se que a criada fora mandada a qualquer outro lado pela
senhoria.
— Oh, não faz mal - ofereceu-se o francês com um grande sorriso. -
Eu próprio vou ao pão. Oh, não faz mal, não faz mal!
Colocou o charuto forte e fedorento num lugar à vista, pôs o
chapéu e saiu. A maman começou logo a contar à professora de
música que estivera de visita aos Chumíkhin e como fora tão bem
recebida lá em casa.
— É que a Lili Chumfkhina ainda é minha parente ... - dizia. - O
falecido marido dela, general Chumíkhin, era primo do meu marido.
Ora, ela própria, baronesa Kolb em solteira...
— Maman, não é verdade! - intrometeu-se Volódia com irritação. -
Por que há-de mentir?
Sabia perfeitamente que a mãe falava verdade; mas mesmo assim,
aquilo do general Chumíkhin, da baronesa Kolb em solteira, mesmo
sendo verdade, dava a Volódia a sensação de que a mãe estava a
mentir. A falsidade vinha da sua maneira de falar, da expressão do
rosto, do olhar, de tudo.
— Mente! - repetiu Volódia, e bateu com o punho na mesa com
tanta força que toda a loiça tremeu e da chávena da maman
derramou-se algum chá. - Por que conta essas tretas de generais e
baronesas? Isso é tudo mentira!
A professora de música embaraçou-se e tossiu para o lenço,
fingindo que se tinha engasgado, a maman desatou a chorar.
«Para onde posso ir?» - pensou Volódia.
Já tinha estado na rua; tinha vergonha de ir a casa de algum
colega.
Outra vez, a despropósito, lhe vieram à memória as duas meninas
inglesas ... Pôs-se a andar de um lado ao outro da «sala comum»,
entrou no quarto de Augustin Mikháilitch. No quarto do francês
cheirava muito a óleos essenciais e a sabonete de glicerina. A mesa,
os peitoris das janelas, até as cadeiras, estavam cheios de frascos,
frasquinhos, copos e cálices com líquidos coloridos. Volódia pegou
no jornal que estava em cima da mesa, abriu-o e leu: «Figaro» ... Do
jornal emanava um cheiro forte e agradável. Depois, pegou no
revólver de cima da mesa...
— Deixe lá, não dê importância a isso! - na sala ao lado, a
professora de música consolava a maman. - É ainda muito jovem! Na
idade dele, os jovens excedem-se sempre. É preciso ter paciência.
— Não, Evguénia Andréevna, está demasiado estragado! - dizia, na
sua voz cantante, a maman. - Não sente nenhuma autoridade, e eu
sou fraca e não posso fazer nada. Não, Evguénia Andréevna, sou
muito infeliz!
Volódia meteu o cano do revólver na boca, encontrou às
apalpadelas uma coisa que lhe pareceu ser o gatilho e premiu com o
dedo ... Depois, apalpou outra saliência e voltou a premir. Tirou o
cano da boca, limpou-o com a aba do capote e examinou a culatra;
nunca antes tivera uma arma nas mãos ...
— Parece que é preciso levantar isto ... - reflectia. - Sim, parece que
é isso...
Augustin Mikháilitch entrou na «sala comum» e, rindo, pôs-se a
contar qualquer coisa. Volódia voltou a meter o cano na boca,
apertou-o com os dentes e premiu o gatilho com um dedo. Soou um
tiro. Bateu-lhe uma coisa na nuca com uma força terrível, e ele caiu
para cima da mesa de cara contra os cálices e os frascos. Depois viu o
pai de cartola, com uma fita larga de luto por uma senhora de
Menton, a abraçá-lo com os dois braços, e ambos a caírem num
precipício muito fundo, muito fundo e escuro ...
Depois tudo se confundiu e desapareceu ...
A BOA ESTRELA
Dedicado a Ia. P. Polónski

À beira de um caminho largo ao longo da estepe, a que chamam


«grande szlach»(9) , pernoitava um rebanho de ovelhas, guardado
por dois pastores. Um deles, velho de oitenta anos, desdentado, a
cara sempre aos tremores, estava deitado de bruços mesmo ao rés do
caminho, com os cotovelos espetados na cama poeirenta de folhas de
tanchagem; o outro, rapaz ainda novo, de sobrancelhas espessas e
negras, sem bigode, metido em roupa feita da serapilheira dos sacos
baratos, estava deitado de costas, com as mãos debaixo da nuca, a
olhar para o céu onde, mesmo por cima da sua cara, se alongava a
Via Láctea e dormitavam estrelas.
Os pastores não estavam sozinhos. Perto, a uma braça deles, no
crepúsculo da manhã que cobria o caminho, via-se como mancha
escura um cavalo selado e, de pé ao lado do cavalo, apoiando-se na
sela, um homem de botas grandes, cafetã curto, e tudo nele
evidenciava o guarda rondista de terras senhoriais. A julgar pela sua
figura, direita e imóvel, pelas maneiras, pela forma de tratar os
pastores e o cavalo, era um homem sério, atinado e cônscio do valor
que tinha; mesmo na penumbra, notavam-se nele vestígios do porte
militar e aquela expressão majestosa e condescendente de quem lida
muito com amos e feitores.
As ovelhas dormiam. No pano de fundo da aurora que já começava
a cobrir o nascente do céu, destacavam-se aqui e ali silhuetas de
ovelhas que não dormiam; estavam de pé, cabisbaixas, como se
pensassem nalguma coisa. Decerto que os seus pensamentos,
demorados, langorosos, provocados apenas pelas imagens da estepe
vasta e do céu, pelo correr dos dias e das noites, as aturdiam e
oprimiam até à perda do sentido das coisas, e então, imóveis como
ídolos, não reparavam na presença de um estranho nem na
inquietação dos cães.
No ar parado, sonolento, pairava um rumor monótono, que a noite
estival da estepe não dispensa; estridulavam sem parar os
gafanhotos, cantavam as codornizes, e mais adiante, a uma verstá do
rebanho, no barranco onde corria um riacho e cresciam salgueiros,
assobiavam preguiçosamente os rouxinóis novos.
O guarda tinha parado para pedir aos pastores lume para o
cachimbo. Acendeu o cachimbo em silêncio e fumou-o até ao fim,
depois, sem dizer palavra, apoiou o cotovelo na sela e quedou-se,
pensativo. O pastor mais novo não lhe deu atenção nenhuma,
continuava deitado a olhar para o céu; ora o velho, esse observava
longamente o guarda, até que perguntou:
— Não serás o Pantelei da fazenda Makárovskaia?
— Eu mesmo.
— Estou a ver. Não te conheci à primeira, sinal de que enriqueces.
Donde vens tu?
— Dos campos de Kovili.
— Vens de longe. Arrendais lá os campos ao alqueire?
— De toda a maneira. Ao alqueire, em espécies, à seara para
meloais. Mas eu passei por lá para ir ao moinho.
Um grande e velho cão pastor felpudo de cor branco-suja, com
tufos de pêlo à roda dos olhos e do nariz, tentando mostrar-se
indiferente à presença dos estranhos, rondou calmamente por três
vezes o cavalo e de repente, numa rouquidão raivosa e senil, atirou-
se por trás ao guarda; os outros cães não aguentaram e saltaram dos
lugares.
— Pchiu!, malvado - gritou o velho soerguendo-se sobre um
cotovelo. - Diabos te levem, possesso dum raio!
Acalmados os cães, o velho voltou à posição anterior e disse numa
voz sossegada:
— Foi em Kovili, no próprio dia da Ascensão, que morreu o Efim
Jménia. Nem é bom falar disso ainda de noite, até é pecado lembrar
gente dessa; só te digo que o velho era um velhaco. Se calhar ouviste
falar dele.
— Não, não ouvi.
— Efim Jménia, tio do ferreiro Stiopka. Por aí todos o conhecem.
Uuui, que velho maldito! Conheci-o há-de haver ses-senta anos ou
coisa assim, no tempo em que levavam o czar Alexandre - esse que
correu com os franceses - deitado nos carros, de Taganrog para
Moscovo(10). Então vamos juntos ver o czar defunto a passar; ora
bem, na altura o grande szlach não deitava para Bakhmut, ia de
Essaúlovka até Gorodiche, e onde agora é Kovili havia ninhos de
abetardas - a cada passada havia um ninho. Já aí eu reparo que o
Jménia tinha vendido a alma e trazia dentro dele coisa ruim. Eu vejo
as coisas assim: se um homem cá dos mujiques anda sempre calado,
passa a vida metido nas coisas das velhas e tanto se lhe dá viver
desacompanhado, isso não é coisa boa; ora o Efimka, bem me
lembro, desde rapaz parecia mudo, sempre calado como um rato, a
olhar de esguelha e a arrufar-se, a inchar-se todo, tal qual um galo a
arrentar à galinha. Ir à igreja ou para a rua, folgar com a rapaziada
ou ir à taberna - ná, essas modas não são com ele, sempre sozinho e a
cochichar com as velhas. Ainda rapazola e já arran-ja trabalho nas
colmeias ou no meloal. Calha a gente ir ao meloal — os melões e as
melancias dele assobiam. Uma ocasião pescou um lúcio, à frente de
outros, e vai o lúcio põe-se a rir - ah-ah-ah - às gargalhadas.
— Isso acontece — diz Pantelei.
O pastor novo virou-se de lado e, com as sobrancelhas muito
levantadas, pôs-se a olhar fixamente para o velho.
— E vossemecê ouviu as melancias a assobiarem?
— Ouvir não ouvi , Deus livrou-me disso - suspirou - , mas há
gente que conta. De mais a mais, isso não é vantagem nenhuma ... Se
o demónio quiser, até as pedras assobiam. Houve uma ocasião, ainda
não nos tinham dado a alforria(11), três dias e três noites andou por aí
um pedregulho a badalar. Isso, eu próprio ouvi. E o lúcio riu-se
porquê? Porque o Jménia, em vez de um lúcio, apanhou um diabo.
Nisto, o velho lembrou-se de qualquer coisa. Pôs-se muito
depressa de joelhos e, encolhendo-se como que de frio e metendo
nervosamente as mãos para dentro das mangas, balbuciou, fanhoso,
metralhando as palavras à moda das mulheres:
— Deus Nosso Senhor nos guarde, guarde-nos Deus Nosso Senhor!
Ia eu uma ocasião pela ribeira para Novopávlovka. Vinha lá uma
trovoada, uma tempestade que Deus nos livre ... Eu desunho-me
para ir o mais depressa que posso quando vejo que por um carreiro,
no meio dos abrunheiros-bravos — nessa altura estavam em flor —
vai um boi todo branco a andar. Penso cá para mim: de quem será o
boi? Por que dianho veio parar aqui? E o boi a andar, a bater com o
rabo, muuu! Eu vou indo, chego-me ao pé dele e, olha!, não é boi
nenhum, é o Jménia. Vade retro! Faço o sinal da cruz, e ele com
aqueles olhos esbugalhados espetados em mim e a rosnear baixinho.
Meteu-se-me cá um medo, Deus do céu! Deitamo-nos ao caminho,
eu ao lado dele, e até tenho medo de abrir a boca ... sempre a toar, os
relampos a alumiar o céu, os salgueiros dobram-se até à água ... de
repente, irmãos - Deus me castigue se minto, que morra sem
confissão -, uma lebre deita a correr ao rés do caminho ... vai a
correr, pára e diz em língua de gente: «Viva lá, mujiques!» Fora
daqui, maldito! - gritou o velho ao cão felpudo que recomeçara a
rondar o cavalo. - Rais te partissem!
— Isso acontece - disse o guarda, ainda apoiado na sela, imóvel;
disse-o com uma voz insonora, surda, como falam as pessoas
mergulhadas nos seus pensamentos.
— Isso acontece - repetiu compenetrada e convictamente.
— Uui, que peçonhento de velho aquele! - continuava o pastor já
com menos fervor. - Coisa de cinco anos depois da lei da alforria,
deram-lhe uma surra valente na casa da junta, por sentença do povo,
e vai ele então, de raivoso que ficou, deitou as artes a todos de Kovili,
a doença da garganta. Morreu gente em barda, muita gente, como
nos tempos da peste ...
— Mas como é que ele deitou as artes? - perguntou o pastor jovem
após um silêncio.
— Já se sabe como. Para isso não é preciso grande sabedoria, basta
querer. O Jménia tolhia as pessoas com a banha da víbora. Aquilo é
cá uma peçonha que a gente nem precisa da banha, morre só do
cheiro.
— É verdade - concordou Pantelei.
— Na altura, a rapaziada queria matá-lo, mas os velhos não
deixaram. Não se podia matá-lo, disseram, que ele conhece os
lugares dos tesouros. Tirante ele, mais nenhum ser vivo sabia dos
lugares. Os tesouros que há por aí são embruxados, nem que se tope
neles não se vêem, mas ele via. Às vezes vai o homem a andar pela
ribeira ou pela mata, e debaixo dos arbustos e das pedras é só
luzinhas, luzinhas, luzinhas ... Uns luzeiros a modos que de enxofre.
Vi com os meus próprios olhos. E toda a gente à espera que o Jménia
dissesse os sítios a alguém ou que ele mesmo os escavasse, mas o
homem - que é como quem diz, o cão não come nem deixa comer -
morreu sem dizer nada, e sem ele próprio os desenterrar.
O guarda acendeu o cachimbo e, por um instante, alumiou o seu
bigode grande e o nariz afilado, sério, importante. As rodelas miúdas
de luz saltaram-lhe das mãos até ao boné, correram através da sela
pelo pescoço do cavalo e desapareceram na crina ao lado das orelhas.
— Nestas terras há muitos tesouros — disse.
E, tirando devagar uma baforada, olhou em volta, parou o olhar no
levante esbranquiçado e acrescentou:
— Tem de haver tesouros.
— Nem paga a pena dizê-lo — suspirou o velho. — Bem se vê que
os há, só que, irmão, não há quem os desenterre. Ninguém sabe dos
lugares certos, e também, nos tempos que correm, decerto que são
todos tesouros embruxados. Para os achar e os ver é preciso um
amuleto próprio, sem o bruxedo próprio, homem, não consegues
nada. O Jménia, lá ter os bruxedos, tinha-os. Mas dava-os a alguém,
esse belzebu careca, nem que lhe pedissem de joelhos? Guardava-os
bem guardados, que era para ninguém abichar nada.
O jovem pastor rastejou um pouco para o velho e, apoiando a
cabeça nas mãos, fitou nele um olhar imóvel. Uma expressão infantil
de medo e curiosidade acendera-se-lhe nos olhos escuros e, como
parecia naquela penumbra, esticara-lhe e aplainara-lhe os traços
graúdos da cara jovem e rude. Ouvia com uma atenção tensa.
— Os livros santos também rezam que há tesouros — continuava o
velho. — Nem paga a pena dizê-lo ... gastar palavras para quê ... A um
soldado já velho de Novopávlovsk mostraram uma ocasião em
Ivánovka um escrito, e no escrito vinha tudo escarrapachado: o sítio,
quantos puds(12) de ouro havia, a espécie de potes em que estava;
qualquer um podia ter encontrado o tesouro há muito, só que é um
tesouro embruxado, não se lhe pode chegar.
— Por que não se lhe pode chegar, avô? — perguntou o moço.
— Deve haver razão para isso, o soldado não disse. Embruxado ...
É preciso os amuletos.
O velho falava com enlevo, desabafava com o estranho. Estava
fanhoso pela falta de hábito de falar tanto e tão depressa,
tartamudeava e, sentindo esse defeito na fala, tentava compensá-lo
com gestos da cabeça, das mãos e dos ombros desceados; a cada
movimento, a sua camisa de linho enrugava-se, repuxava-se para
cima e desnudava-lhe as costas negras do sol e da velhice. Puxava-a
para baixo, mas ela tomava a subir. Por fim o velho, como perdendo
a paciência com a camisa desobediente, levantou-se rapidamente e
falou com amargura:
— Que a sorte existe, lá isso existe, mas para que serve se está
enterrada? A sorte perde-se em vão, como as alimpas ou o estrume
das ovelhas! Há por aí tanta boa sorte, rapaz, tanta que dava para
todos aqui da terra, mas ninguém a vê! Ainda um dia a hão-de
desenterrar esses senhores, ou os do governo a levam. Esses
senhores já começaram a escavar os kurgans(13)... Já andam por lá a
farejar! Têm inveja que a sorte calhe aos mujiques! Os do governo
também não dão ponto sem nó. Está escrito na lei que se algum
mujique encontrar um tesouro, tem de o entregar às autoridades.
Sim, sim, o comer está quente, mas não é para o teu dente!
O velho riu-se com desprezo e sentou-se no chão. O guarda ouvia
com atenção e concordava, mas via-se-lhe pela expressão, porte e
silêncio que tudo o que lhe contava o velho não era novo para ele,
que havia muito reflectia nisso tudo e sabia muito mais do que o
velho.
— Para falar verdade, já duas vezes na minha vida procurei o
tesouro - disse o velho, coçando-se atabalhoadamente. - Pro-curei
nos sítios verdadeiros, mas estou que me calharam sempre tesouros
embruxados. O meu pai procurou, o meu irmão procu-rou: não
acharam nadinha, morreram sem lhes tocar a boa sorte. Ao meu
irmão Iliá, Deus lhe dê o eterno descanso, foi um monge que se abriu
com ele: que era um segredo, mas que havia qualquer coisa em
Taganrog, na fortaleza, num sítio assim e assim, debaixo de três
pedras, mas que era um tesouro embruxado, e naquele tempo,
lembro-me bem, foi no ano trinta e oito, vivia em Matvéev Kurgan
um arménio que vendia os amuletos. O Iliá compra o bruxedo,
chama dois rapazes com ele e toca de ir a Taganrog. Chega ao dito
lugar na fortaleza e, mesmo em cima do dito lugar, está um soldado
com a espingarda.
Pelo ar sossegado, espalhando-se pela estepe, voa um barulho.
Soara, terrível, um estrondo longínquo que bateu contra a rocha e
agora ecoava pela estepe fazendo tá-tá-tá-tá! Quando o som
esmoreceu, o velho olhou interrogativamente para o imóvel e
impassível Pantelei.
— É das minas, caiu um balde - decidiu o pastor moço, depois de
reflectir.
Clareava a manhã. A Via Láctea empalidecia e, pouco a pouco, foi-
se derretendo como neve, foi perdendo os contornos. O céu tomava-
se sombrio, turvo, impossível saber se estava limpo ou todo ele
recoberto de nuvens; só pela faixa clara e lustrosa do levante e
algumas estrelas de onde se podia perceber alguma coisa.
A primeira brisa matinal, afagando com cautelas, sem restolhar, os
troviscos e os caules altos e pardos das ervas do ano passado, correu
ao longo do caminho.
O guarda como que despertou, saindo dos seus pensamentos,
abanando a cabeça. Sacudiu a sela com as duas mãos, apalpou a
ventrilha e, como se não se atrevesse a montar, quedou-se outra vez
pensativo.
— Sim - disse -, bem perto está o cotovelo, mas não podes mordê-
lo ... Que ele há uma boa estrela, isso há, mas não há cabeça para
encontrá-la.
E voltou a cara para os pastores. O rosto sisudo dele estava triste e
irónico, como o de um desencantado da vida.
— Pois, morremos assim, sem vermos a boa estrela, sem sabermos
como ela é ... - disse pausadamente, levantando a perna esquerda
para o estribo. - Quem for novo, talvez chegue a saber, para nós já é
tempo de deixar de pensar nela.
Alisando o bigode comprido, recamado de orvalho, montou
pesadamente o cavalo e, com ar de quem se esqueceu de alguma
coisa ou de dizer alguma coisa, franziu os olhos espreitando o
horizonte. No longe azulado, onde a última colina visível se fundia
com a neblina, não mexia nada; os kurgans de guarda e tumulares,
elevando-se aqui e ali no horizonte por sobre a estepe infinita,
pareciam severos e mortos; da sua imobilidade e silêncio
transpareciam os séculos e uma completa indiferença pelo homem;
passarão ainda mil anos, morrerão milhares de milhões de pessoas, e
ainda eles se erguerão como agora, sem qualquer compaixão pelos
mortos, sem interesse pelos vivos, e nenhum ser vivo saberá por que
estão ali e que segredo da estepe se esconde debaixo deles.
As gralhas acabadas de acordar voavam silenciosa e solitariamente
sobre a terra. Nem no voo preguiçoso destas aves macróbias, nem no
amanhecer que se repete meticulosamente to-das as vinte e quatro
horas, nem no infinito da estepe, em nada parecia haver sentido. O
guarda soltou uma risada e disse:
— Que vastidão, meu Deus do céu! Esbarrar aqui com a sorte,
como? Aqui - continuou, baixando a voz e fazendo uma cara séria —,
aqui estão com certeza enterrados dois tesouros. Os senhores não
sabem deles, mas os mujiques antigos, sobretudo os soldados,
sabem-no até bem de mais. Antigamente, aqui, em qualquer lado aí
por esses outeiros (o guarda apontou com o látego para um lado), os
bandidos atacaram uma caravana carregada de ouro; traziam o ouro
de Petersburgo para o imperador Pedro, que estava a construir a
frota em Vorónej. Os bandidos mataram os carroceiros e enterraram
o ouro, mas depois perderam-lhe o rasto. O outro tesouro foi
enterrado pelos nossos cossacos do Don. No ano doze tomaram aos
franceses muita coisa, prata e ouro sem fim. Quando tomavam a casa
foram avisados pelo caminho que as autoridades lhes queriam levar
o ouro e a prata toda. Aquilo era gente brava e, para não entregarem
assim uma fortuna de mão beijada, enterraram tudo, para que ao
menos os filhos a aproveitassem; mas onde ... ninguém sabe.
— Ouvi falar desses tesouros — murmurou sombriamente o velho.
— Pois — voltou a ficar pensativo Pantelei. — É assim...
Caiu o silêncio. O guarda olhou para o horizonte, soltou uma
risada e tocou as rédeas com o mesmo jeito de quem se esque-ceu de
alguma coisa ou não acabou de exprimir uma ideia. O cavalo
começou a andar a contragosto. Depois de uns passos, Pantelei
sacudiu a cabeça com decisão, como caindo em si, açoitou o cavalo e
meteu-o a trote.
Os pastores ficaram sós.
— É o Pantelei da fazenda Makárovskaia — disse o velho. — Recebe
cento e cinquenta por ano, comidos e dormidos. Homem instruído ...
As ovelhas acordadas — eram cerca de três mil — começaram, sem
vontade, por não terem mais nada que fazer, a tosar a erva baixa,
pisada. O sol ainda não nascera, mas já se distinguiam todos os
kurgans e até o longínquo Túmulo de Saur(14), mais semelhante a
uma nuvem, com o seu cume pontiagudo. Quem subir ao alto deste
Túmulo poderá ver a planície, lisa e infinita como o céu, as herdades
senhoriais, os casarios dos alemães e dos molokanes(15), as aldeias, e
um calmuque de vista aguçada verá mesmo a cidade e os comboios
ferroviários. Só dessa altura se vê que neste mundo, além da estepe e
dos kurgans seculares, há também outra vida, indiferente à boa
estrela enterrada e aos pensamentos das ovelhas.
O velho encontrou, às apalpadelas, o seu cajado comprido e
recurvo na ponta e levantou-se. Calava-se e pensava. A expressão
infantil de medo e curiosidade ainda não abandonara a cara do
moço. Estava sob o efeito do que acabara de ouvir e esperava com
impaciência uma continuação.
— Avô - perguntou levantando-se também e pegando no cajado -,
então o que fez o teu irmão Iliá com aquele soldado?
O velho não ouviu a pergunta. Olhou distraído para o rapaz e
respondeu, depois de, por um bocado, mexer em falso os lábios.
— Não me sai da ideia, Sanka, aquele escrito que mostraram ao
soldado velho em Ivánovka. Não o disse ao Pantelei, Deus o
acompanhe, mas o sítio marcado no escrito até uma mulher é capaz
de o encontrar. Sabes onde é? Em Bogátaia Balótchka, no sítio onde
o barranco grande, sabes, se separa em três barrancos pequenos
como uma pata de ganso; então, é no do meio.
— E então, vais lá escavar?
— Vou tentar a minha sorte...
— Avô, e o que vais fazer com o tesouro quando o encontrares?
— O quê? - sorriu o velho. - Humm! ... O principal é encontrá-lo, e
então ... deixa que eu bem mostrava a todos como é ... Humm! ...
Bem sei o que havia de fazer...
Ora, o velho não conseguia responder o que faria com o tesouro
caso o encontrasse. Pelos vistos tinha sido apenas esta manhã, pela
primeira vez na vida, que a questão se lhe pusera, e via-se-lhe pela
expressão do rosto, frívola e indiferente, que não lhe parecia
importante e digna de reflexão. Na cabeça de Sanka, por seu lado,
remexia mais um problema incompreensível: por que razão só quem
está com os pés para a cova tem a mania da sorte na terra? Sanka não
atinava, porém, na maneira de fazer desta incompreensão uma
pergunta, e também era pouco provável que o velho soubesse
responder.
Rodeado por uma poalha levezinha de bruma, o sol rompeu,
enorme. As faixas largas de luz, ainda frias, banhando-se no orvalho
das ervas, estirando-se alegremente, como se quisessem mostrar que
nunca se fartavam disso, começaram a deitar-se sobre a terra. O
absinto prateado, as flores azul-claras do cebolinho bravo, a colza
amarela, as centáureas azuis - tudo coloria alegremente a terra,
tomando a luz do sol pelo seu próprio sorriso.
O velho e Sanka foram cada um para seu lado e puseram-se às
extremas do rebanho. Ambos especados sem mexer, como postes,
olhando para o chão, pensando. Ao velho não o deixava sossegar a
ideia da boa sorte, o moço matutava na conversa da noite; não o
interessava tanto a boa sorte, desnecessária e in-compreensível para
ele, mas o fantástico e o fabuloso da sorte humana.
Umas cem ovelhas suspiraram e, num terror incompreensível,
como obedecendo a um sinal, deitaram a correr para um la-do,
afastando-se do rebanho. Então o Sanka, como se os pensamentos
das ovelhas, demorados e langorosos, por um instante o tivessem
agarrado, atirou-se também para um lado com o mesmo medo
indefinido e animal, mas logo caiu em si e berrou:
— Ei, ei, malucas! Estais c'o diabo no corpo, desvairadas dum raio
!
Quando o sol, prometendo para o dia um calor prolongado e
invencível, começou a aquecer a terra, tudo o que era vivo, tudo o
que de noite mexia e restolhava, mergulhou na modorra. O velho e
Sanka, com os seus cajados, postavam-se cada um na sua ponta do
rebanho, imóveis como faquires em oração, concentrados nos seus
pensamentos. Já não ligavam um ao outro, cada um vivia a sua
própria vida. Também as ovelhas se quedavam a pensar...
DRAMA

— Pável Vassílievitch, está ali uma senhora, a perguntar por si -


anunciou Luká. - Há uma hora que está à espera...
Pável Vassílievitch acabava de tomar o pequeno-almoço. Ao ouvir
da senhora, franziu a cara e disse:
— A senhora que vá p'ro diabo! Diz-lhe que estou ocupado.
— Já é a quinta vez que ela vem, Pável Vassílievitch. Diz que
precisa mesmo de vê-lo ... Quase chora.
— Humm ... Está bem, manda-a entrar para o gabinete.
Pável Vassílievitch, sem pressas, vestiu a sobrecasaca e, nu-ma
mão a caneta e na outra um livro, para fingir que estava ocupado,
entrou no gabinete. Já lá estava à espera a visitante - uma senhora
corpulenta de cara vermelha e carnuda, óculos, ar bastante
respeitável e vestida de modo mais do que decente (tinha uma
tournure de quatro cintos e um chapeuzinho alto ornado com uma
ave ruiva). Ao ver o dono da casa revirou os olhos até à testa e cruzou
as mãos num gesto de oração.
— O senhor com certeza não se lembra de mim - começou numa
voz de tenor macho, notavelmente emocionada. - Tive ... tive o prazer
de o conhecer em casa dos Khrutskói ... Sou Muráchkina ...
— Aaah ... mmm ... Sente-se! Em que lhe posso ser útil?
— Está a ver, eu ... eu ... - continuou a senhora sentando-se e
emocionando-se ainda mais. - Não se lembra de mim ... Sou
Muráchkina... Está a ver, sou uma grande admiradora do seu ta-
lento e leio sempre os seus artigos com prazer... Não pense que estou
a lisonjeá-lo, Deus me livre!, só lhe dou o devido valor... Leio os seus
trabalhos sempre, sempre! E, em parte, também eu não sou estranha
ao trabalho criador, isto é, claro ... não me atrevo a chamar-me
escritora, mas ... mesmo assim, digamos, também há na colmeia a
minha gota de mel. Publiquei, em ocasiões diversas, três contos para
crianças — que o senhor não leu, suponho —, tenho traduzido muito
e ... o meu falecido irmão trabalhava na revista Dielo.
— Pois ... haaan ... Em que que lhe posso ser útil?
— Está a ver. .. (Muráchkina baixou os olhos e corou.) Conheço o
seu talento ... as suas convicções, Pável Vassflievitch, e gostaria de
saber a sua opinião, ou melhor... pedir o seu conselho. É que eu,
tenho de lhe dizer, pardon pour l'expression, dei à luz um drama e
gostaria, antes de o enviar para a censura, de saber a sua opinião.
Muráchkina, nervosamente, com ar de pássaro capturado,
procurou entre as pregas do vestido e tirou um grosso, um enorme
caderno.
Pável Vassílievitch apreciava apenas os seus próprios escritos,
sendo que os dos outros, que fosse obrigado a ler ou a ou-vir,
produziam nele o efeito de um canhão disparado contra a sua
própria fisionomia. Ao ver o caderno, assustou-se e apressou-se a
dizer:
— Está bem, deixe ficar... vou lê-lo.
— Pável Vassílievitch! — disse com languidez Muráchkina,
juntando as mãos num gesto de prece. — Sei que está muito ocupado
... que não pode perder nem um minuto, e sei que agora, neste
preciso momento, está a mandar-me mentalmente para o diabo, mas
... por favor, deixe-me ler-lhe o meu drama agora ... Seja simpático!
— Teria o maior prazer nisso... — titubeou Pável Vassílievitch —,
mas, minha senhora, estou... estou ocupado ... Tenho ... tenho de sair
agora mesmo.
— Pável Vassílievitch! - gemeu a senhora, e os olhos dela
marejaram-se de lágrimas. — Sei que lhe peço um sacrifício! Sou
uma descarada, sou impertinente, mas seja magnânimo! Amanhã
parto para Kazan, e preciso de saber a sua opinião hoje. Conceda-me
meia-hora da sua atenção ... só meia hora! Imploro-lhe!
Pável Vassílievitch era, no fundo, um fraco, não sabia recusar.
Quando lhe pareceu que a senhora se preparava para chorar e se
ajoelhar, embaraçou-se e murmurou, desconcertado:
— Está bem, faça o favor... sou todo ouvidos ... Uma meia-hora
está muito bem.
Muráchkina soltou um grito de felicidade, tirou o chapeuzinho da
cabeça e, acomodando-se, começou a ler. Primeiro leu sobre um
lacaio e uma criada de quarto que, arrumando uma sala de estar
luxuosa, conversavam demoradamente sobre a menina Anna
Serguéevna, a qual construíra na aldeia uma escola e um hospital.
Quando o lacaio saiu, a criada de quarto pronunciou um monólogo
sobre como os estudos são luz e a falta de estudos é trevas; depois,
Muráchkina chamou de novo o lacaio à sala de estar e fê-lo dizer um
longo monólogo sobre o amo dele, general, que não aturava as
convicções da filha, queria casá-la com um Kammerjunker rico e
achava que a salvação do povo residia na ignorância total. Depois,
saídos os criados, entrou a própria menina e declarou ao espectador
que não tinha dormido nada toda a noite, a pensar no Valentin
Ivánovitch, filho de um pobre mestre-escola, e que ele ajudava
desinteressadamente o seu pai doente. Valentin domina todas as
ciências, mas não tem fé na amizade nem no amor, não tem um
objectivo na vida e anseia pela morte, e por isso ela, a menina, tem de
salvá-lo.
Pável Vassílievitch ouvia e recordava, com saudade, o seu sofá.
Observava raivosamente Muráchkina, sentia como tamborilava pelos
seus tímpanos adentro o tenor masculino da Muráchkina, não
compreendia nada e pensava:
«Foi algum demónio que te trouxe ... Só me faltava ter de aturar a
tua lengalenga!.. . Que culpa tenho eu, diz lá, de que tenhas escrito
um drama? Meu Deus, que caderno tão grosso! Isto é castigo!»
Pável Vassílievitch olhou para o espaço entre as janelas, onde
estava pendurado o retrato da sua mulher, e lembrou-se que a
mulher lhe pedira que comprasse e levasse para a casa de campo
dezasseis palmos de nastro, uma libra de queijo e pó dentífrico.
«Não perder a amostra do nastro - pensava. - Onde é que a meti?
Acho que no casaco azul... As velhacas das moscas sal-picaram o
retrato da mulher de pontinhos negros. Tenho de mandar a Olga
lavar o vidro ... Já vai na XII cena, quer dizer que, não tarda, é o fim
do 1 acto. Será possível que, com este calor e esta corpulência de
vaca, pode haver inspiração nesta mulher? Em vez de escrever
dramas, era melhor para ela comer sopa fria e dormir na cave ...»
— Não acha este monólogo um pouco longo? - perguntou de
repente Muráchkina, erguendo os olhos.
Pável Vassílievitch não ouvira o monólogo. Atrapalhou-se e disse,
com um ar tão culpado como se não fosse a senhora mas ele próprio
que tivesse escrito o monólogo:
— Não, não, de modo nenhum ... Muito conseguido ...
Muráchkina, radiante de felicidade, continuou a leitura:
— «Anna. É vítima da análise. Deixou demasiado cedo de viver
com o coração e confiou na razão. Valentin. O que é o coração? É
uma noção anatómica. Como termo convencional daquilo a que se
chama sentimentos, não o reconheço. Anna (embaraçada). E o
amor? Será que o amor também é um produto da associação de
ideias? Diga-me sinceramente: alguma vez amou? Valentin (com
amargura). Não toquemos nas feridas antigas, que ainda não
sararam (pausa). Em que está a pensar? Anna. Sinto que é infeliz.»
No decorrer da XVI cena, Pável Vassílievitch bocejou e, sem
querer, produziu com os dentes o barulho que produzem os cães
quando apanham moscas. Assustou-se com o som indecente e, para
disfarçá-lo, comunicou à cara uma expressão de atenção enternecida.
«XVII cena ... Quando chegará isto ao fim? - pensava. - Se esta
tortura continuar por mais dez minutos, chamo por socorro ...
Insuportável!»
Por fim, sentiu que a leitura da senhora se acelerava e subia de
tom, subia cada vez mais de tom, até que a senhora leu: «Cai o pano

Pável Vassílievitch suspirou de alívio e quis levantar-se, mas
Muráchkina virou logo a página, muito depressa, e continuou a ler:
«II acto. O cenário representa uma rua de aldeia. À direita a
escola, à esquerda o hospital. Nos degraus deste, estão sentados
aldeões e aldeãs.»
— Perdão ... - interrompeu Pável Vassílievitch. - Quantos actos são
ao todo?
— Cinco - respondeu Muráchkina e logo, como temendo que o
ouvinte fugisse, continuou rapidamente: - «Da janela da escola olha
Valentin. Vê-se como, no fundo do palco, os aldeões levam os seus
bens para a taberna.»
Como um condenado à morte convencido da impossibilidade de
indulto, Pável Vassílievitch já não tinha esperança que aquilo
chegasse ao fim, não tinha esperança em nada, apenas tentava que as
suas pálpebras não se colassem e que a expressão atenta não lhe
abandonasse o rosto ... O futuro, contado a partir da altura em que a
senhora acabasse o drama e saísse, parecia-lhe tão longínquo que
nem sequer pensava nele.
— Tru-tu-tu-tu ... - ressoava nos seus ouvidos a voz de
Muráchkina. - Tru-tu-tu-tu ... Z-z-z-z . ..
«Esqueci-me de tomar soda... - passou-lhe pela cabeça. - Em que
estava a pensar? Ah, sim, na soda ... Pelos vistos tenho catarro de
estômago ... Incrível, o Smimóvski emborca vodka dias a fio e até
hoje nunca apanhou catarro ... Olha, um passari-nho pousou na
janela ... Um pardal...»
Pável Vassílievitch fez um esforço para levantar as pálpebras
pesadas e coladas, bocejou sem abrir a boca e olhou para
Muráchkina. Esta enevoava-se, ondulava-lhe nos olhos, tomava-se
tricéfala e encostava as cabeças contra o tecto ...
— «Valentin. Não, deixe-me partir... Anna (assustada). Porquê?
Valentin (para o lado). Como ela empalideceu! (Para ela). Não me
obrigue a explicar-lhe os motivos. Antes morrer do que deixar que
saiba os motivos. Anna (após uma pausa). Não pode partir...»
Muráchkina começa a inchar, a inchar, a inchar até ficar uma
gigante e se fundir com o ar cinzento do gabinete; apenas se lhe via a
boca a mexer; depois, de repente, tomou-se pequena como uma
garrafa, oscilou e, juntamente com a mesa, flutuou para o fundo da
sala ...
— «Valentin (abraçando Anna). Ressuscitaste-me, indicaste-me o
objectivo da vida! Renovaste-me, como a chuva primaveril renova a
terra despertada! Mas ... é tarde, é tarde! Uma doença incurável me
rói o peito ... »
Pável Vassílievitch estremeceu e cravou os olhos turvos, de peixe
morto, na Muráchkina; durante um minuto olhou imóvel, como se
não estivesse a compreender nada ...
— «Cena XI. Os mesmos, o barão e o chefe da polícia com as
testemunhas ... Valentin. Levem-me! Anna. Sou dele, pertenço-lhe!
Levem-me também! Sim, levem-me também! Amo-o, amo-o mais do
que à vida! Barão. Anna Serguéevna, não esqueça que com isso está
a causar a perdição do seu pai...»
Muráchkina começou outra vez a inflar-se ... Olhando loucamente
à volta, Pável Vassílievitch soergueu-se, soltou do peito um grito
antinatural, agarrou de cima da mesa um pesa-papéis maciço e, fora
de si, assestou com toda a força um golpe na cabeça de Muráchkina...
— As cordas, matei-a! — disse passado um minuto, estendendo os
pulsos aos criados que tinham irrompido no gabinete.
Os jurados absolveram-no.
CANTO DE SEREIA

Depois de uma das sessões do conselho do juízo de paz, os juízes


reuniram-se na sala de consultas para se desfardarem, descansarem
um pouco e irem para casa almoçar. O presidente do colectivo,
homem bem apessoado com suíças felpudas, que num dos casos
julgados opinara com «declaração de voto», estava à mesa e tinha
pressa em escrever a sua opinião. O juiz de paz Mílkin, jovem
cavalheiro de cara lânguida, melancólica, com fama de filósofo
descontente com a sociedade e à procura do sentido da vida, estava à
janela e olhava tristemente para fora. Outro juiz e um dos juízes
honorários já tinham saído. O segundo honorário, um gordo obeso
com dispneia, e o procurador suplente,jovem alemão com cara de
enjoo, estavam sentados no pequeno divã e esperavam que o
presidente acabasse de escrever para irem todos almoçar juntos. Em
frente deles estava de pé o secretário do juízo Jílin, homenzinho com
suíças minúsculas ao lado das orelhas e com uma doçura estampada
na cara. Sorrindo melifluamente e olhando para o gordo, dizia a meia
voz: - Acho que todos nós, agora, queremos é comer, porque estamos
cansados e já passa das três, mas isso, meu caro Grigóri Sávvitch,
não é o verdadeiro apetite. O verdadeiro apetite, o apetite de lobo,
quando até parece que estamos capazes de comer o próprio pai, só
aparece depois do exercício físico, por exemplo, depois de uma
caçada com matilha, ou depois de uma viagem de coche de cem
verstás sem paragens. A imaginação também conta, e muito. Se o
senhor, por exemplo, estiver de regresso a casa depois da caçada e
desejar almoçar com apetite, nunca pense em coisas sérias; as coisas
sérias e as coisas científicas dão cabo do apetite. Sabe com certeza
que os filósofos e os cientistas, no que se refere a comer, são da mais
baixa categoria e pior do que eles a comer, com sua licença, nem
sequer os porcos. No regresso a casa é necessário que a cabeça pense
apenas na garrafinha e no petisco. Aconteceu-me uma vez, pelo
caminho, fechar os olhos e pôr-me a fantasiar o leitãozinho com
rábano azedo e, só lhe digo, tive um ataque de histeria de tanto
apetite. Depois, quando estiver a entrar no seu quintal, é necessário
que da cozinha lhe chegue logo o cheiro, um cheirinho desses, sabe ...
— Os mestres de cheiro, para mim, são os gansos assados — disse o
juiz de paz honorário, ofegando.
— Não me diga uma coisa dessas, Grigóri Sávvitch, o pato ou a
galinhola podem dar dez pontos de vantagem ao ganso. No bouquet
do ganso não há ternura nem delicadeza. O cheiro mais excitante é o
da cebola nova quando começa a aloirar, sabe como é, e depois se
põe a estrugir, está a ver, a malvada, que até se ouve por toda a casa.
Ora bem, quando se entra em casa, a mesa já deve estar posta, é só
sentar, pôr o guardanapo ao pescoço e depois, sem pressa, deitar a
mão à garrafinha da vodka. Depois verte-se a mãezinha vodka, mas
não num cálice e sim num copinho antediluviano dos nossos avós, de
prata, ou num assim barrigudinho, daqueles que têm a gravação «até
os monjes apreciam», mas não se bebe logo; primeiro suspira-se,
esfrega-se as mãos, olha-se com indiferença para o tecto e depois,
devagarinho, leva-se a mãezinha vodka aos lábios e, num ápice,
saltam as chispas do estômago pelo corpo todo ...
O secretário exprimiu na cara melíflua uma beatitude.
— Chispas ... - repetiu, franzindo os olhos. - Mal se bebeu, é
preciso abafar com um petisco.
— Oiça - disse o presidente erguendo os olhos para o secretá-rio. -
Fale mais baixo! Já é a segunda folha que me faz estragar.
— Oh, desculpe, Piotr Nikoláitch! Eu falo baixinho - disse o
secretário, e continuou num meio sussurro: - Ora bem, meu caro
Grigóri Sávvitch, escolher o acompanhamento também é uma
ciência. É preciso saber muito bem com que acompanhar a vodka. A
melhor iguaria para isso, fique sabendo, é o arenque. Logo depois de
engolir um pedacinho, com cebola e molho de mostarda, então meu
querido senhor, quando ainda está a sentir as chispas no ventre,
pode meter à boca caviar, simples ou, se preferir, com uns salpicos de
limãozinho, depois nabo simples com sal, depois outra vez o
arenque, mas o melhor de tudo, meu querido, são as sanchas
salgadas, bem picadinhas, como caviar e, note, com cebola e azeite a
condimentar... uma delícia! Ora, o fígado de lota... é uma tragédia!
— Mmm, sim ... - concordou o honorário, franzindo os olhos. -
Como acompanhamento também são bons... esses... os boletos em
vinagre.
— Sim, sim, sim ... com cebola, pois, e louro, especiarias variadas .
Abre-se a caçarola, sai o vapor e expande-se aquele cheirinho a
cogumelos ... até nos vêm as lágrimas aos olhos! Ora bem, mal
tragam o empadão da cozinha, é preciso tomar sem demora o
segundo copo.
— Ivan Gúriitch! - disse em voz chorosa o presidente. - Acabei de
estragar a terceira folha, por culpa sua!
— Que diabo, só pensam na comida! - resmungou o filósofo
Mílkin, fazendo uma careta desdenhosa. - Será que, além dos
cogumelos e do empadão, não há outros interesses na vida?
— Como ia dizendo, antes do empadão bebe-se um copinho -
continuava o secretário a meia voz; ficara tão entusiasmado que,
como um rouxinol, não ouvia mais nada além da própria voz. - O
empadão tem de ser apetitoso, em toda a sua nudez,
desavergonhado, direi, para que haja sedução. Piscamos-lhe um
olho, cortamos uma fatia deste tamanho ... e mexemos os dedos por
cima dele, sem tocarmos, assim, assim, de sentimento a transbordar.
Levamo-lo à boca e cai o suco dele, como lágrimas, o recheio é gordo,
sumarento, com ovos, com miúdos, com cebola ...
O secretário revirou os olhos e entortou a boca até à orelha. O juiz
honorário pigarreou e, pelos vistos a imaginar o empadão, mexeu os
dedos.
— Só o diabo sabe o que isso é ... - resmungou o juiz de paz
afastando-se para a outra janela.
— Comem-se duas fatias e a terceira guarda-se para acompanhar o
chi(16) - continuava o secretário com inspiração. - Mal acabe o
empadão, mande logo trazer o chi... O chi tem de ser quente, a
escaldar. Mas o melhor de tudo, meu querido, é o borch(17) de
beterraba à ucraniana, com presunto e salsichas. Vem servido com
natas azedas, salsa e funcho frescos. O rassólnik(18) de miúdos e rins
de rezes novas também é magnífico, mas no tocante a sopas, as
melhores são as de legumes: cenoura, espargos, couve-flor e toda a
respectiva jurisprudência.
— Sim, é uma coisa divinal... - suspirou o presidente despegando
os olhos do papel, mas logo voltou a si e gemeu: - Por amor de Deus!
Assim nem até à noite escrevo a minha declaração! Já é a quarta
folha que estrago!
— Não volto a fazê-lo! Desculpe! - desculpou-se o secretário e
continuou num sussurro: - Comida a sopa ou o borch, mande servir o
prato de peixe, meu querido. Entre os afónicos peixes, o melhor é a
carpa frita com natas azedas, mas, para não cheirar à vasa, e ter um
sabor delicado, é preciso mantê-la viva em leite durante vinte e
quatro horas.
— O esturjão enrolado às tiras também não é mau - disse o juiz
honorário, fechando os olhos, mas logo a seguir, inesperadamente,
saltou do lugar, fez uma cara feroz e berrou na direcção do
presidente: - Piotr Nikoláitch, vai demorar muito? Não posso esperar
mais! Não posso!
— Deixe-me acabar!
— Então vou sozinho! Vá pr'o diabo!
O gordo agitou a mão, pegou no chapéu e, sem se despedir, saiu a
correr. O secretário suspirou e, inclinando-se para o ouvi-do do
procurador suplente, continuou a meia voz:
— A perca e a carpa também são boas com molho de tomate e
cogumelos. Mas peixe não puxa carroça, Stepan Franzitch; é uma
comida sem substância, a alma de um almoço não são os peixes nem
os molhos, mas os pratos de carne. Quanto às aves, de que gosta
mais?
O procurador suplente fez uma careta azeda e disse com um
suspiro:
— Infelizmente, não posso honrá-las: sofro de catarro estomacal.
— Deixe-se disso, caro senhor! O catarro de estômago é uma
invenção dos médicos. É uma doença originada mais pelo livre-
pensamento e pelo orgulho do que por outra coisa. Ignore. Imagine
que não tem apetite ou está enjoado: ignore e coma. Se, por exemplo,
lhe apresentarem como prato de carne um par de narcejas, ou
melhor ainda, uma perdiz e um par de codornizes gordinhas,
esquecerá todo e qualquer catarro estomacal, palavra de honra. E o
peru assado? Branquinho, gordo, sumarento, uma espécie de ninfa...
— Sim, decerto é saboroso — disse o procurador tristemente. —
Talvez eu coma o peru.
— Deuses do céu, e o pato? Se tomarmos um pato jovenzinho, mal
desperto ainda pelos primeiros frios de Inverno, e o assarmos na
assadeira na companhia das batatinhas pequenas, e que as ditas se
aloirem, se impregnem da gordura do pato, e que ...
O filósofo Mílkin fez uma careta feroz e pareceu querer dizer
alguma coisa, mas de repente estalou os lábios, imaginando pelos
vistos o pato assado, e sem dizer palavra, arrastado por uma força
misteriosa, pegou no chapéu e saiu a correr.
— Sim, talvez eu coma também o pato ... — suspirou o pro-curador
suplente.
O presidente levantou-se, deu alguns passos pela sala, voltou a
sentar-se.
— Depois do prato de carne, um cristão fica farto e entra num
eclipse delicioso - continuava o secretário. - É o momento em que o
corpo está bem consigo mesmo e a alma enternecida. Para adocicar,
pode tomar três cálices de zapekanka(19).
O presidente como que grasnou e riscou a folha.
— Caramba, estraguei a sexta folha - disse, zangado. - É uma pouca
vergonha.
— Escreva, escreva, meu benfeitor! - sussurrou o secretário. - Não
o incomodo mais! Eu falo baixinho! Palavra de honra, Stepan
Franzitch - continuou num sussurro quase inaudível -, a zapekanka
caseira é melhor do que qualquer champanhe. Logo após o primeiro
cálice, toda a sua alma fica envolvida em aromas, numa espécie de
miragem, e nem lhe parece estar em sua casa, no sofá, mas algures
na Austrália, a cavalgar um avestruz macio ...
— Ah, vamos, Piotr Nikoláitch! - disse o procurador esperneando
de impaciência.
— Pois é - continuava o secretário. - É bom que acompanhe a
zapekanka com um charuto a soltar anéis de fumo, e é aí que lhe
surgem aqueles devaneios em que é generalíssimo, ou casado com a
maior beldade do mundo e que essa beldade nada todo o dia com
peixinhos dourados, numa piscina diante da sua janela. Ela nada,
nada e o senhor grita-lhe: «Meu coraçãozinho, vem cá, dá-me um
beijo!»
— Piotr Nikoláitch! - gemeu o procurador suplente.
— Pois - continuava o secretário. - Depois de fumar, apanhe as
fraldas do roupão e ... caminha! Deite-se de costas, a barriguinha
para cima e pegue num jornal. Quando os olhos começam a querer
colar-se e por todo o corpo reina a modorra, é agradável ler coisas
sobre política: aqui se vê que a Áustria cometeu um lapso, ali que a
França não agradou a alguém, acolá que o papa de Roma entrou em
conflito com este ou aquele - lemos e tudo nos dá prazer.
O presidente deu um pulo, arremessou a caneta e agarrou no
chapéu com ambas as mãos. O procurador suplente, esquecendo o
seu catarro estomacal e a estoirar de impaciência, também saltou do
lugar.
— Vamos embora! - gritou.
— Piotr Nikoláitch, e a sua declaração de voto? - assustou-se o
secretário. - Quando a vai escrever, querido? É que às seis já tem de
ir para a cidade!
O presidente abanou a mão e precipitou-se para a porta. O
procurador suplente também abanou a mão e, pegando na pasta,
desapareceu na companhia do presidente. O secretário suspirou,
lançou-lhes pelas costas um olhar de censura e pôs-se a arrumar os
papéis.
O BEIJO*

Às oito da noite do dia vinte de Maio, as seis baterias da brigada de


artilharia de reserva N., em marcha para o acampamento, fizeram
alto para pernoitar na aldeia de Mestétchki. No auge da barafunda,
enquanto uns oficiais se atarefavam em volta dos canhões e outros,
na praça, num magote encostado à cerca da igreja, se entendiam com
o quartel-mestre sobre o aboletamento, surgiu por trás da igreja um
cavaleiro à civil montado num cavalo invulgar. Era um baio malhado,
pequeno e raboto, de pescoço lindo, que não andava a direito, mas
ladeava em passinhos curtos de dança como se estivessem a
chicotear-lhe as pernas. Chegado ao pé dos oficiais, o cavaleiro
ergueu o chapéu e disse:
— Sua senhoria o tenente-general e proprietário von Rabbeck
manda convidar os senhores oficiais para tomarem chá lá em casa,
agora mesmo ...
O cavalo fez uma vénia, dançou e recuou ladeando; o cavaleiro
voltou a erguer o chapéu e, num instante, desapareceu mais o cavalo
por trás da igreja.
— Raios o partam - resmungava-se entre os oficiais, que se
puseram a caminho dos alojamentos. - Apetece é dormir, e vem este
von Rabbeck com o chá dele! Já se sabe que rico chá vai ser!
Todos os oficiais das seis baterias recordavam nitidamente um
caso do ano passado, durante as manobras, em que eles, juntamente
com os oficiais de um regimento de cossacos, tinham sido
convidados da mesma maneira para o chá, por um conde, também
proprietário rural e militar na reserva; o conde fora hospitaleiro e
simpático, serviu-lhes o jantar e bebidas e não os deixou ir para onde
estavam aboletados, fê-los dormir em sua casa. Tudo bem, até
óptimo, não fora o homem ter-se, infelizmente, alegrado de mais
com a visita dos jovens. Toda a noite falou, até ao amanhecer contou
à rapaziada os episódios do seu belo passado, passeou-os pelos
aposentos, mostrou-lhes telas caras, gravuras antigas, armas raras,
leu-lhes cartas que personalidades altamente colocadas lhe tinham
endereçado, e os oficiais extenuados ouviam, olhavam e, na ânsia de
uma cama, bocejavam à socapa nas mangas; quando, finalmente, o
anfitrião os largou já não eram horas de dormir.
Não será igual, este Rabbeck? Seja ou não seja, nada a fazer. Os
oficiais mudaram de roupa, aprontaram-se e foram em ban-do à
procura do solar do Rabbeck. Na praça, perto da igreja, tinham-lhes
dito que se podia chegar à propriedade por dois caminhos: o de baixo
— descer, por trás da igreja, até ao rio, marginá-lo até ao parque e, do
parque, qualquer alameda os levava ao destino; o de cima — a partir
da igreja, seguir a direito pelo caminho que, uns quinhentos metros
mais à frente dava para os celeiros da propriedade. Escolheram o de
cima.
— Que Rabbeck será este? — cogitavam alto enquanto andavam. —
Não é o que comandou em Plevna a divisão de cavalaria N.?
— Não, esse não era von Rabbeck, era simplesmente Rabbe, sem
von.
— Mas que rico tempo está!
Junto do primeiro celeiro da propriedade, o caminho bifurcava-se:
um ramal seguia em frente e perdia-se na bruma do crepúsculo; o
outro metia para a direita, até à casa senhorial. Os oficiais viraram à
direita e começaram a falar mais baixo...
De ambos os lados do caminho erguiam-se celeiros e mais celeiros
de pedra com telhados vermelhos, pesados e severos, um pouco
como casernas de cidade de província. Em frente luziam as janelas
do solar.
— Meus senhores, bom sinal! - informou um dos oficiais. - O nosso
setter vai à frente: fareja caça ...
O tenente Lobitko, à frente de todos, alto e forte mas imberbe
(passava dos vinte e cinco e não se lhe via um único pêlo na cara
redonda e cevada), famoso na brigada pelo seu faro e capacidade de
adivinhar à distância a presença de mulheres, virou-se e disse:
— Sim, há mulherio para estes lados, o meu instinto sente-o.
À porta de casa, foram recebidos pelo von Rabbeck em pessoa.
Andaria pelos sessenta anos, bem apessoado, trajando à paisana.
Enquanto apertava as mãos aos convidados, ia dizendo que estava
feliz e contente, mas pedia encarecidamente aos senhores oficiais,
por amor de Deus, que lhe perdoassem por não os ter convidado a
pernoitar lá em casa; é que tinham chegado de visita duas irmãs com
os filhos, mais uns irmãos e uns vizinhos, não tinha um único quarto
livre.
Pedia muitas desculpas, apertava as mãos de todos e sorria, mas
via-se-lhe pela cara que estava, de longe, menos contente com a
visita do que o conde do ano transacto e que só convidara os oficiais
porque as conveniências assim o exigiam. Os oficiais sentiam-no ao
subirem a escadaria atapetada e, à vista da criadagem em roda-viva a
acender as luzes em baixo, à entrada, e em cima, no vestíbulo,
começou a parecer-lhes que estavam ali só porque seria indelicado
não os convidarem e que introduziam naquela casa um incómodo e
uma inquietação. Numa casa em que, por um fausto de família
qualquer, se reuniam duas irmãs com os filhos, e mais uns irmãos e
uns vizinhos, alguma vez agradaria a invasão de dezanove oficiais
desconhecidos?
Em cima, à entrada da sala, os convidados foram recebidos por
uma matrona de idade, alta e esbelta, rosto para o comprido e
sobrancelhas negras, muito parecida com a imperatriz
Eugénia(20). Sorrindo com simpatia e majestade, dizia-se feliz e
contentíssima por receber os senhores em sua casa e pedia muita
desculpa por ela e o marido não poderem mesmo convidar os
senhores oficiais a pernoitarem. Pelo sorriso belo e majestoso, mas
fugaz logo que desviava deles o carão por qualquer motivo, via-se que
já na vida lhe tinham passado pelos salões muitos senhores oficiais
mas que agora não estava de alma para isso e só estavam por detrás
do convite meras exigências de educação e sociedade.
Na enorme sala de jantar para onde entraram os oficiais, nu-ma
ponta da mesa compridíssima tomavam chá, entre novos e velhos,
senhoras e cavalheiros, umas dez pessoas. Por trás das cadeiras em
que se sentavam, enevoava-se no fumo leve dos charutos um grupo
de homens; entre eles, um jovem magricela de suíças ruivas, rolando
os erres e falando alto, em inglês. Por trás do grupo vislumbrava-se,
através da porta, o clarão de um quarto mobilado em azul-claro.
— Meus senhores, são tantos que não há meio de eu fazer as
apresentações ! - disse o general erguendo a voz e tentando mostrar-
se folgazão. - Vamos lá, apresentem-se uns aos outros, meus
senhores, sem cerimónias!
Os oficiais - uns de cara muito séria, até severa, outros com
sorrisos forçados, e todos sem dúvida pouco à vontade -
multiplicaram-se em vénias, atabalhoadamente, e sentaram-se para
o chá.
O mais embaraçado de todos era o capitão Riabóvitch, um oficial
de óculos, pequenino e amarrecado, com umas suíças que lhe davam
um ar de lince. Enquanto os companheiros mantinham as caras
sérias, uns, e os sorrisos forçados, outros, o rosto dele, as suíças de
lince e os óculos como que diziam: «Sou o oficial mais tímido, o mais
modesto e o mais cinzentão de toda a brigada!» A princípio, ao
entrar na sala, ao abancar e ao começar a tomar o chá, não conseguia
fixar-se num rosto, num objecto. Caras, vestidos, frascos de cristal
talhado com conhaque, o vapor dos copos, cornijas - tudo se lhe
fundia numa impressão única e enorme que dava a Riabóvitch a
inquietação e o desejo de meter a cabeça num buraco. Tal o homem
que declama pela primeira vez em público e vê tudo o que está à sua
frente mas não percebe o que vê (é a «cegueira psíquica» dos
fisiologistas, em que o indivíduo vê mas não distingue). Com o correr
do tempo, Riabóvitch adaptou-se, recuperou a vista e pôs-se a
observar tudo. Saltou-lhe logo aos olhos, a ele, homem bisonho e
insociável, aquilo que nunca teve, ou seja, a extraordinária audácia
dos recém-conhecidos. Von Rabbeck, a mulher, duas senhoras de
idade, uma menina de vestido lilás e o jovem das suíças ruivas, afinal
o filho mais novo de Rabbeck, instalaram-se com muita habilidade
entre os oficiais, como se tivessem combinado, e desencadearam
imediatamente uma discussão ardente em que os convidados não
podiam deixar de entrar. A menina lilás começou a defender com
veemência que o pessoal de artilharia tinha uma vida muito mais
fácil do que o da cavalaria e da infantaria; Rabbeck, com as senhoras
idosas do seu lado, argumentava que não. Entrecruzou-se a conversa,
e Riabóvitch via a menina lilás a defender com ardor uma coisa
nitidamente estranha e sem interesse para ela; olhava e via a
aparecerem e a sumirem-se da cara os sorrisos insinceros da menina.
Von Rabbeck e família arrastavam com habilidade os oficiais para
a discussão, vigiando-lhes simultânea e atentamente os copos e as
bocas: se todos tinham chá, se comiam doces, por que não tocava
aquele nos biscoitos e não bebia conhaque aqueloutro. Quanto mais
Riabóvitch olhava e ouvia, mais lhe agradava aquela família pouco
sincera mas extraordinariamente disciplinada.
Depois do chá, os oficiais passaram para o salão grande. O faro não
enganara o tenente Lobitko: o recinto estava pejado de raparigas e de
senhoras jovens. O tenente-setter já estava ao lado de uma loira
muito novinha de vestido preto e, arqueando-se com audácia, como
apoiado num sabre invisível, sorria e dava garridamente de ombros.
Pelos vistos dizia alguns disparates muito interessantes, porque a
loirinha olhava condescendente para a sua cara bem nutrida e
perguntava com indiferença: «Verdade?» E o setter, se fosse
inteligente, poderia, a partir deste impassível «verdade?», concluir
que não era provável gritarem-lhe «aboca!».
Ribombou o piano; uma valsa triste esvoaçou da sala para as
janelas abertas de par em par, e toda a gente se terá lembrado que lá
fora era Primavera, uma noite de Maio. Toda gente terá sentido que
o ar cheirava a folhas novas de álamo, a rosas e lilases. Riabóvitch,
em quem, sob o poder da música, falou o conhaque bebido, olhou de
soslaio para a janela, sorriu e pôs-se a seguir os movimentos das
mulheres, já lhe parecendo que o cheiro a rosa, a álamo e a lilás não
vinha do parque, emanava dos rostos e dos vestidos delas.
O filho de Rabbeck convidou para dançar uma menina magricela
com quem fez dois tours. Lobitko, deslizando pelo parqué, voou para
a menina lilás e girou com ela pelo salão. As danças começavam ...
Riabóvitch estava perto da porta entre os que não dançavam, a olhar.
Em toda a sua vida não dançara uma única vez, nunca lhe acontecera
abraçar pela cintura uma mulher decente. E se gostava de ver um
homem, aos olhos de toda a gente, a pôr a mão na cintura da menina
e a oferecer à menina um ombro para a mão dela! Mas não podia
imaginar-se a si mesmo na situação de tal homem. Dantes, invejava a
audácia e a desenvoltura dos seus companheiros, e doía-lhe a alma;
ser tímido, corcovado, cinzento, de cintura baixa e suíças de lince
ofendia-o profundamente; agora, com a passagem dos anos, isso era
um hábito, já não invejava quem dançava e quem alçava a voz, só se
enternecia tristemente.
Quando os dançarinos atacaram a quadrilha, o jovem von Rabbeck
aproximou-se dos que não dançavam e convidou dois oficiais para
uma partida de bilhar. Aceitaram e saíram com ele do salão. Para
participar, de qualquer maneira, no movimento comum, Riabóvitch
arrastou-se atrás deles. Passaram por uma sala de estar, por uma
galeria envidraçada que desembocou noutra sala onde, à vista deles,
saltaram dos divãs três figuras sonolentas de lacaios. Por fim, depois
de mais uma série de salas, chegaram ao bilhar. Iniciou-se a partida.
Riabóvitch, que nunca tinha jogado nada a não ser cartas, estava
ali, de pé, a olhar com indiferença para os jogadores que, de casacas
desabotoadas, brandindo os tacos, andavam em volta do bilhar
gritando trocadilhos num jargão incompreensível. Não ligavam a
Riabóvitch, só de vez em quando algum deles, ao empurrá-lo com o
cotovelo ou ao tocar-lhe com o taco inadvertidamente, se voltava e
dizia: «Pardon!». Ainda a primeira partida ia a meio e já Riabóvitch
se aborrecia, que estaria ali a mais, que incomodava... Quis voltar ao
salão. Saiu.
No regresso, sucedeu-lhe uma pequena aventura. A meio caminho,
percebeu que se perdera. Lembrava-se perfeitamente que devia
passar por três figuras sonolentas de lacaios, mas, atravessadas cinco
ou seis salas, essas figuras como que tinham sido engolidas pela
terra. Ao dar-se conta do erro voltou um pouco atrás, tomou à
esquerda e foi parar a um gabinete meio às escuras que não vira de
certeza no caminho de ida para a sala de bilhar; ficou parado uns
trinta segundos, abriu decididamente a primeira porta que lhe saltou
à vista e entrou num quarto mergulhado em escuridão completa. À
frente do nariz só via uma fenda da porta donde jorrava uma nesga
de luz forte; de trás da porta vinha o surdo rumor de uma mazurca
triste. Também ali as janelas estavam abertas de par em par e
cheirava a álamo, lilás e rosas ...
Riabóvitch parou, pensativo ... Inesperadamente, sentiu uns
passos apressados e o roçagar de um vestido, e logo uma voz
ofegante e feminina a sussurrar «até que enfim!», e duas mãos
suaves, perfumadas, indubitavelmente de mulher, lhe enlaçaram o
pescoço; sentiu apertar-se-lhe à cara uma face tépida e ouviu, no
mesmo instante, o som do beijo. Mas quem lho deu já se soltava, com
um gritinho, fugindo dele num salto de repugnância, como pareceu a
Riabóvitch. Também por pouco não gritou e atirou-se para o rasgão
brilhante da nesga da porta ...
Quando voltou ao salão o coração batia-lhe com força e as mãos
tremiam-lhe tanto que se apressou a escondê-las atrás das costas.
Atormentava-o a vergonha e o medo de todo o salão poder saber que
acabava de ser abraçado e beijado por uma mulher; encolhia-se e
olhava à volta, aflito. Mas, quando viu bem que toda a gente dançava
e tagarelava despreocupadamente, entregou-se com toda a alma
àquela sensação nova, àquela coisa que nunca dantes experimentara.
Aquela coisa estranha que dentro dele se passava... O pescoço, ainda
há pouquinho abraçado por umas mãos suaves e perfumadas, era
como se estivesse untado de manteiga; na face, ao lado da guia
esquerda do bigode, onde a desconhecida lhe assestara o beijo,
tremia um friozinho leve e agradável, como gotas de menta, e quanto
mais esfregava o sítio do beijo mais o friozinho aumentava e todo ele
se arrepiava num sentimento novo e misterioso, que crescia, que
crescia... Apeteceu-lhe dançar, falar, correr pelo parque, rir
perdidamente... Esqueceu que era marranica e cinzentão, esqueceu
as suíças de lince e a «aparência indeterminada» (assim descreveram
o seu físico umas damas, numa conversa que lhe chegou por acaso
aos ouvidos). Quando passou por ele a mulher do Rabbeck, abriu-lhe
um sorriso tão largo e carinhoso que a senhora parou, olhou para ele
e ficou à espera, interrogativamente.
— Adoro a sua casa! - disse Riabóvitch ajeitando os óculos.
A generala sorriu, contou que a casa já fora do pai dela, de-pois
quis saber dos paizinhos dele, se ainda era vivos, há quanto tempo
prestava serviço, por que estava tão magro... Elucidada, seguiu o seu
caminho, e Riabóvitch ficou-se a sorrir, ainda mais carinhosamente
depois desta conversa, a pensar que estava rodeado de excelentes
pessoas ...
Durante o jantar, Riabóvitch comia automaticamente tudo o que
lhe serviam, bebia e, sem ouvir nada nem ninguém, tentava explicar
a si mesmo a aventura ainda fresca... Uma aventura misteriosa e
romanesca, mas, afinal, facilmente explicável. Pelos vistos, uma
menina ou uma senhora marcara encontro a alguém no quarto
escuro, estaria há muito tempo à espera e, de excitação nervosa,
tomou Riabóvitch pelo seu herói, situação tanto mais provável
quanto Riabóvitch, ao atravessar o quarto, parou pensativo, com ar
de quem também estava à espera ... As-sim explicava Riabóvitch,
para si, o beijo recebido.
«Quem será ela? - pensava, observando os rostos femininos. - Tem
de ser jovem, porque as velhas não vão a encontros destes. E
intelectual, sentia-se pelo roçagar do vestido, pelo cheiro, pela voz
...»
Parou o olhar na menina lilás e gostou dela; tinha ombros e braços
bonitos, um rosto inteligente, excelente voz. Riabóvitch, olhando-a,
gostaria que fosse ela a do beijo, e nenhuma outra ... Mas ela riu-se, e
a risada saiu-lhe falsa, e franziu o nariz comprido que lhe pareceu, a
ele, como de velha; transferiu então o olhar para a loira do vestido
preto. Era mais nova, mais simples e mais sincera, tinha têmporas
encantadoras e bebericava do cálice num jeito muito bonito. Agora,
Riabóvitch gostava que fosse aquela. Mas não tardou a achar-lhe o
rosto achatado e passou os olhos para a vizinha dela ...
«É difícil advinhar - devaneava - Se for buscar à de lilás apenas os
ombros e os braços, acrescentar as têmporas e a testa da loira, os
olhos da que está à esquerda do Lobitko, então ...»
Fez a adição mental e obteve a imagem da menina que o tinha
beijado, a imagem desejada, mas que não encontrava ali naquela
mesa ...
Findo o jantar, os convidados, satisfeitos e um tanto ébrios,
começaram a agradecer e a despedir-se. Os donos da casa mais uma
vez se desculparam por não poderem alojá-los nessa noite.
— Meus senhores, estou muito, mas muito feliz por terem estado
esta noite em minha casa! - dizia o general, desta vez com toda a
sinceridade (na verdade, as pessoas costumam ser infinitamente
mais sinceras e bondosas na despedida das visitas do que quando as
recebem). — Muitíssimo feliz! E serão bem-vindos no caminho de
volta! Estejam à vontade, nada de cerimónias! Para onde vão? E
querem ir pelo caminho de cima? Não, não, atravessem o parque,
vão pelo de baixo: é mais perto.
Os oficiais saíram para o parque. Depois das luzes ofuscantes e do
barulho, o jardim pareceu-lhes muito silencioso e escuro.
Caminharam calados até ao portão. Iam meio embriagados, alegres,
satisfeitos, mas o choque da escuridão e do silêncio tomou-os por um
minuto melancólicos. A cada um deles terá passado pela mente,
como a Riabóvitch, o mesmo pensamento: chegará também o tempo
de eles, quais Rabbeck, terem uma casa grande, uma família, um
parque? Poderão também eles, um dia, mesmo sem serem sinceros,
amimar as pessoas, saciá-las, emborrachá-las, alegrá-las?
Mal passaram o portão desataram a falar todos ao mesmo tempo, a
rir alto e sem motivo. Seguiam agora por uma vereda que descia para
o rio e depois corria juntinho à água, contornando arbustos
ribeirinhos, regos de água, salgueiros pendentes sobre o rio. Quase se
não via o carreiro nem a margem, e na outra banda tudo mergulhava
em trevas. Aqui e ali reflectiam-se estrelas na água escura;
tremeluziam, alastravam — único sinal de que o rio ia veloz. Tudo era
calma. Na outra margem gemiam, sonolentas, as galinholas; deste
lado, num dos arbustos, sem medo da chusma de oficiais, um
rouxinol trilava desenfreadamente. Os homens pararam ao pé do
arbusto, abanaram-no, mas o rouxinol cantava perdidamente.
— Ena! — admiraram-se ruidosamente. — Nós em cima dele e ele
não quer saber! Malandreco!
Para o fim da caminhada, o carreiro subia e,junto à igreja,
desembocava no caminho. Os oficiais pararam aqui, cansados da
subida, sentaram-se, fumaram. Na outra margem brilhou ténue um
luzeirinho vermelho, e eles, por desfastio pachorrento, tentaram
demoradamente adivinhar o que seria: uma fogueira ao longe, uma
janela alumiada, ou outra coisa... Também Riabóvitch olhava para a
luzinha, e parecia-lhe vê-la sorrir-lhe e piscar-lhe o olho como se
soubera do beijo.
Chegado ao alojamento, Riabóvitch teve pressa em despir-se e
deitar-se. Ficou na mesma izbá com Lobitko e o tenente Merzliakov,
rapaz calmo e calado, considerado pelos companheiros como oficial
culto, já que arrastava consigo para todo o lado a Véstnik Evrópi(21)
e, onde era possível, a lia. Lobitko despiu-se também, pôs-se a
calcorrear a izbá de ponta a ponta com passadas insatisfeitas e
mandou o ordenança buscar cerveja. Merzliakov deitou-se, pôs uma
vela à cabeceira e afundou-se na leitura da Véstnik Evrópi.
«Quem será ela?» - cismava Riabóvitch de olhos pregados no tecto
negro de fuligem ...
Ainda o pescoço lhe parecia untado de manteiga, ainda na beirinha
da boca sentia o arrepio das gotas de menta. Na sua imaginação
fulgiam os olhos e os braços da menina lilás, as têmporas e os olhos
sinceros da loirinha de preto, cinturas, vestidos, broches. Tentava
centrar a atenção nestas imagens, mas elas saltitavam, alastravam,
tremeluziam. Quando, no largo pano de fundo negro do fechar dos
olhos, as imagens se lhe apagavam de todo, começava a ouvir os
passos afobados, o ffalhar do vestido, o som do beijo - e uma forte
alegria sem razão se apoderava dele ... Enlevado nesta alegria, ainda
ouviu o ordenança voltar e informar que não havia cerveja. Lobitko,
indignado, recomeçou o vaivém furioso.
— Então não é idiota? - perguntava, ora parando ao pé de
Riabóvitch, ora parando ao pé de Merzliakov. - É preciso ser-se
paspalho e burro para não encontrar cerveja! Hein? Então não é um
canalha?
— Claro que é impossível arranjar cerveja num sítio destes - disse
Merzliakov sem desligar os olhos da Véstnik Evrópi.
— Ai sim? Acha? - insistia Lobitko. - Meu Deus, atirem comigo
para a Lua, que eu arranjo lá imediatamente cerveja e mulheres! E
vou arranjá-la, agora mesmo ... Podem chamar-me pulha se não
trouxer cerveja!
Vestiu-se e enfiou os pés nas botas grandes; depois acendeu em
silêncio um cigarro e foi-se.
— Rabbeck, Grabbeck, Labbeck - pôs-se a murmurar, para-do no
saguão. — Porra, não me apetece ir sozinho. Riabóvitch, não quer dar
uma promenage? A sério, não?
Como não obteve resposta, voltou, despiu-se muito devagar e
deitou-se. Merzliakov suspirou, pôs de lado a Véstnik Evrópi e
apagou a vela.
— Po-ois — murmurou Lobitko acendendo um cigarro na
escuridão.
Riabóvitch enroscou-se, cobriu a cabeça e pôs-se a debicar
imagens fugidias, tentando agarrá-las e juntá-las numa só. Não
conseguia. Breve adormeceu, embalado num último pensamento:
alguém o acarinhara muito, o enchera de exultação, pusera na sua
vida uma coisa extraordinária, estúpida, mas tão boa, tão feliz. Este
pensamento não o largou nem no sono.
Quando acordou já não tinha a sensação de manteiga no pescoço
nem de friozinho de menta na comissura dos lábios, mas a alegria
exultante, como ontem, ainda lhe ondulava no peito. Olhou com
encantamento para os caixilhos das janelas dourados pelo sol
nascente e pôs-se a escutar o movimento da rua. Mesmo ao rés das
janelas alguém falava alto. Lebedétski, o comandante da bateria de
Riabóvitch, que acabava de alcançar a brigada, conversava em voz
altíssima — desacostumado de falar baixo - com o seu oficial às
ordens.
— E que mais? — gritava o comandante.
— Ontem, quando ferravam as bestas, saiba vossa senhoria que
aleijaram o Golúbtchik na ranilha. O físico pôs-lhe argila e vinagre.
Agora vai apartado, pelo arreio. Saiba também vossa senhoria que o
mecânico Artémiev se embebedou e o nosso tenente mandou sentá-
lo no jogo dianteiro do reparo da boca-de-fogo.
O oficial subalterno relatou ainda que o Kárpov se esquecera dos
cordões novos para os cornetins e das estacas para as tendas e que os
senhores oficiais tinham ido, ontem à noite, de visita a casa do
general von Rabbeck. A meio da conversa, a cabeça de Lebedétski
com a sua barba ruiva espreitou para dentro da izbá. Estreitou os
olhos míopes para as caras sonolentas dos oficiais e cumprimentou-
os.
— Está tudo bem convosco?
— O cavalo de varal esfolou o pescoço com a coelheira nova -
respondeu Lobitko, bocejando.
O comandante suspirou, pensou e disse em voz alta:
— Estou cá a pensar fazer uma visita à Aleksandra Evgráfovna. A
ver como ela está. Então adeus, rapazes. Lá mais para a tarde logo
vos apanho.
Meia hora depois a brigada pôs-se em marcha. Quando passava ao
longo dos celeiros senhoriais, Riabóvitch lançou a vista à direita,
para o solar. As janelas tinham as portadas fechadas, pelos vistos
ainda se dormia na casa. Dormia também a que ontem beijara
Riabóvitch. Quis imaginá-la a dormir. A janela do quarto
escancarada, os ramos verdes a quererem espreitar para dentro, a
frescura matinal, o cheiro a álamo, a lilás, a rosa, a cadeira e na
cadeira o vestido que ontem farfalhara para ele, os sa-patinhos, o
pequenino relógio sobre a mesa - a imaginação desenhava-lhe tudo
isso com muita nitidez, mas os traços do rosto, um querido sorriso
sonolento, precisamente o que importava, fugia-lhe da imaginação
como mercúrio do dedo. Passado um meio quilómetro olhou para
trás: a igreja amarela, a casa, o rio e o parque estavam banhados de
luz; que lindo o rio, com as suas margens de verde-vivo, reflectindo o
céu azul e, aqui e ali, com uns laivos prateados sob o sol. Riabóvitch
olhou pela última vez para Mestétchki e sentiu-se tão triste como se
se despedisse de alguma coisa muito íntima e muito querida.
A caminho, punham-se-lhe diante dos olhos apenas as ima-gens
batidas, nada de interesse... À direita e à esquerda, campos novos de
centeio e trigo-sarraceno, com as gralhas-calvas a saltitarem; olhasse
em frente, só poeira e nucas de homens; olhasse para trás, só poeira
e caras de homens ... À frente de todos iam quatro praças com as
chachkas(22) — é a vanguarda. Atrás deles, um grupo de cantadores,
depois os cornetins, a cavalo. A vanguarda e os cantadores, como
facheiros num cortejo fúnebre, esquecem-se de vez em quando da
distância regulamentar e adiantam-se muito ... Riabóvitch segue ao
lado da carreta da primeira boca-de-fogo da quinta bateria. À vista
dele vão as quatro que o precedem. Para um civil, a brigada em
movimento mostra-se como uma fila comprida e penosa, uma
tralhoada complexa e pouco compreensível; não perceberá por que
vai tanta gente ao lado da carreta de um canhão e por que é puxada
por tantos cavalos tão estranhamente atrelados, como se a peça fosse
uma coisa assim tão terrível e pesada. Mas, para Riabóvitch, aquilo
tudo é claro, logo sem qualquer interesse. Sabe há muito por que
razão vai à frente de cada bateria, ao lado do graduado, um oficial
subalterno de artilharia; e, nas costas deste, os boleeiros da primeira
parelha e, depois, os da média; Riabóvitch sabe também que os
cavalos da esquerda, montados por boleeiros , se chamam bestas da
sela, e os da direita, bestas da mão direita — enfim, nada de
interessante. Por trás do boleeiro segue a parelha de varal. Um dos
animais é montado por um boleeiro com poeira antiga nas costas e
um toco de pau a roçar-lhe a per-na, um raio de estadulho muito
engraçado; Riabóvitch conhece a utilidade de freio daquele toco, e
não lhe parece engraçado. Os boleeiros, todos eles, levantam
automaticamente os azorragues e, de vez em quando, soltam os
gritos da praxe. O canhão, caramba, é feio. No armão do jogo
dianteiro vão sacos de aveia cobertos de lona, e o próprio canhão está
atulhado de chaleiras, mochilas das praças, sacos e saquinhos: mais
parece um animalzinho indefeso rodeado, sabe-se lá para quê, de
homens e cavalos. De ambos os lados marcham, baloiçando os
braços, seis serventes. Atrás do canhão, mais atrelados, boleeiros,
cavalos de varal, seguidos por mais uma carreta de canhão, peça feia
e nada imponente, como a primeira. Atrás da segunda carreta roda a
terceira, depois a quarta; ao lado da quarta vai um oficial, e assim
por diante. A brigada tem seis baterias, e cada bateria tem quatro
bocas-de-fogo. A coluna estende-se por meia verstá, e o rabo dela é
um comboio de carros, ao lado do qual marcha pensativamente,
baixando a cabeça orelhuda, um personagem extremamente
simpático - o burro Magar, trazido da Turquia por um comandante
de bateria.
Riabóvitch olhava com indiferença para a frente e para trás, para
as nucas e para as caras; noutra altura dormitaria, mas agora todo
ele mergulhava nos seus novos, aprazíveis pensamentos. No
princípio, logo que a brigada se pôs em marcha, ainda quis
convencer-se de que a história do beijo não era nada, apenas uma
pequeníssima aventura, misteriosa, isso sim, mas no fundo
insignificante - pensar nela a sério era, pelo menos, estúpido; mas
depressa desistiu da lógica e se entregou ao sonho ... Ora se imagina
num salão do Rabbeck, à beira da menina misturada de lilás e loira
de vestido preto; ora fecha os olhos e se vê a tratar com outra
menina, a ninguém parecida e com um rosto de traços indefinidos;
fala-lhe com carinho, inclina-se no ombro dela, imagina que vai para
a guerra e está nas despedidas, depois o reencontro, o jantar com a
mulher, os filhos ...
— Aguentáá as bestas ! - ouvia-se a ordem sempre que o caminho
descia.
Riabóvitch também gritava «aguentáá as bestas!» e temia que o
grito lhe rasgasse os sonhos e o trouxesse à realidade ...
Ao passarem ao lado de uma grande propriedade, Riabóvitch
espreitou pelos gradis do parque. Viu uma comprida alameda, direita
como uma régua, coberta de saibro amarelo e marginada de bétulas
novinhas ... Com a ânsia de um homem levado pelos devaneios,
imaginou pequeninos pés femininos a pisarem o chão amarelo e,
num repente, desenhou-se-lhe diante dos olhos aquela que o beijara,
aquela que ontem, à mesa da ceia, só pu-dera fantasiar. A imagem
colou-se a ele e já não o abandonou.
Pelo meio-dia, vindo da retaguarda, do lado do comboio, soou um
grito:
— Atenção! Olhar à esquerda! Senhores oficiais!
Num carro puxado por uma parelha de cavalos brancos, passava o
general da brigada. Parou junto da segunda bateria e gritou qualquer
coisa que ninguém apanhou. Vários oficiais se aproximaram dele,
Riabóvitch também.
— Então? Como vai isso? - saudou o general pestanejando com os
olhos vermelhos. - Há doentes?
Depois das respostas, o general, pequeno e magro, mastigou com
os lábios, ficou a pensar e disse, por fim, a um dos oficiais:
— O seu boleeiro do cavalo de varal, da terceira peça, tirou a
joelheira e pendurou-a, o canalha, no armão dianteiro. Aplique-lhe
um castigo.
Levantou os olhos para Riabóvitch e continuou:
— Os tirantes dos seus cavalos parecem-me compridos de mais ...
Depois de mais algumas observações aborrecidas, o habitual, o
general, com um risinho, pôs os olhos em Lobitko.
— O tenente Lobitko está hoje com um ar muito triste - disse. -
Tem saudades da Lopukhova, eh? Eh, meus senhores, o tenente
Lobitko está com saudades da Lopukhova!
Lopukhova era uma senhora muito alta, assaz corpulenta, passante
há muito dos quarenta. O general, que tinha um fraquinho pelas
senhoras corpulentas, fossem de que idade fossem, suspeitava desse
fraquinho também nos seus oficiais. Os oficiais sorriram
respeitosamente. O general, satisfeito com pilhéria tão venenosa,
desatou à gargalhada, deu uma palmada nas costas do cocheiro e fez
a continência. O coche seguiu para diante ...
«Tudo o que sonho agora e se me afigura tão impossível e
extraterreno é, no fundo, bastante vulgar - pensava Riabóvitch,
olhando as nuvens de poeira que corriam atrás do coche do general. -
Sim, vulgaríssimo e vivido por todos... Este general, por exemplo, em
tempos também amou, e agora está casado e tem filhos. O capitão
Wachter também está casado e é amado, embora tenha uma nuca
vermelhusca bem feia e não tenha praticamente cintura ... O
Salmánov é bruto e demasiado tártaro, mas já teve um romance que
culminou em casamento ... Eu sou igual a todos eles e hei-de passar
pelo mesmo, mais cedo ou mais tarde ...»
A ideia de ser um homem vulgar e ter uma vida vulgar alegrou-o e
animou-o. Já a desenhava sem receios, a essa vida e às suas
felicidades, não restringindo em nada o voo da imaginação ...
Quando, pelo anoitecer, a brigada chegou ao destino e os oficiais já
descansavam nos abarracamentos, Riabóvitch, Merzliakov e Lobitko
sentavam-se em volta de uma arca e jantavam. Merzliakov comia
sem pressas e, mastigando vagarosamente, lia a Véstnik Evrópi que
equilibrava nos joelhos. Lobitko falava sem parar, sempre a encher o
copo de cerveja, e Riabóvitch, com uma neblina na cabeça por um dia
inteiro de devaneios, só se calava e bebia. Ao fim de três copos
sentiu-se embriagado e mole, com uma vontade insuperável de
partilhar com os companheiros a sensação em que vivia.
— Aconteceu-me uma coisa estranha em casa desses Rabbeck ... —
começou, tentando dar à voz um tom indiferente e irónico. - Fui até à
sala de bilhar...
Contou, em muito pormenor, a história do beijo e, um minuto
passado, já se calava... Num minuto pôde contar tudo, e ficou
terrivelmente espantado por ter precisado de tão pouco tempo.
Parecia-lhe que podia falar daquele beijo até ao amanhecer. Ou-
vindo a história, Lobitko, que mentia muito e como tal não acre-
ditava em ninguém, olhou para ele com desconfiança e soltou uma
risadinha. Merzliakov ergueu as sobrancelhas e, sem desviar os olhos
da Véstnik Evrópi, sentenciou:
— Só Deus sabe o que isso é!... Atirar-se ao pescoço de alguém sem
lhe chamar primeiro pelo nome ... Uma psicopata qualquer.
— Sim, deve ser psicopata ... - concordou Riabóvitch.
— A mim aconteceu-me uma vez o raio de um caso seme-lhante...
— disse Lobitko, fazendo olhos de susto. — Foi no ano passado, eu ia
para Kovno ... Compro bilhete de segunda clas-se... A carruagem está
cheia como um ovo, é impossível dormir. Dou cinquenta copeques ao
hospedeiro ... Ele pega-me na baga-gem e leva-me para um
compartimento ... Deito-me, cubro-me com um cobertor... Escuro
como breu, estão a ver? Então, faço um movimento com a mão e
sinto um cotovelo ... Abro os olhos e, imaginem só, é uma mulher!
Olhos negros, lábios vermelhos como salmão, do bom, as narinas a
arfarem com paixão, os seios ali, como uns ...
— Desculpe lá — interrompeu-o com calma Merzliakov —, quanto
aos peitos, muito bem, eu compreendo, mas como podia ver-lhe os
lábios se estava escuro?
Lobitko esquivou-se rindo desdenhosamente da falta de esperteza
de Merzliakov. Riabóvitch sentiu-se melindrado. Afastou-se da arca,
deitou-se e deu-se a palavra de honra de nunca mais entrar em
confidências.
Começava a vida de acampamento ... Corriam os dias, todos iguais.
E em todos esses dias de bivaque Riabóvitch se sentia, pensava e se
portava como um apaixonado. Todas as manhãs, quando o impedido
lhe trazia água fria para lavar a cara, despejava-a na cabeça e
infalivamente se lembrava de que exis-tia uma coisa boa e quente na
sua vida.
À noite, quando os companheiros entravam de conversa sobre o
amor e as mulheres, escutava atento, chegava-se a eles e fazia aquela
expressão do soldado que ouve o relato de uma batalha em que ele
próprio entrou. Nas noites em que os oficiais subalternos, já de grão
na asa, com o «setter»-Lobitko à cabeça, faziam incursões dom-
joanescas à povoação, Riabóvitch alinhava tristemente e, de cada vez,
sentia-se profundamente culpado e pedia-lhe perdão, a ela... Nas
horas de folga ou nas noites de insónia, quando lhe apetecia recordar
a infância, o pai, a mãe, enfim, tudo o que lhe era querido e familiar,
também lhe vinha à memória Mestétchki, o esquisito cavalo baio, o
von Rabbeck, a mulher dele, parecida com a imperatriz Eugénia, o
quarto escuro, o rasgão de luz na porta...
A trinta e um de Agosto deixava o acampamento, não com
abrigada, só com duas baterias. Durante todo o percurso ia em
ânsias, e a sonhar, como se estivesse a caminho da pátria. Ansiava
com paixão tomar a ver o invulgar cavalinho raboto, a igreja amarela,
a família pouco sincera dos Rabbeck, a sala escura; a «voz interior»,
que tantas vezes engana os apaixonados, sussurrava-lhe que sim, que
ia encontrá-la ... Atormentavam-no as perguntas: como encontrar-se
com ela? De que falar com ela? Terá ela esquecido o beijo ou não? No
pior dos casos, pensava, mesmo que não a encontrasse, ia ser-lhe
agradável passar pela sala escura e recordar...
Ao anoitecer surgiram no horizonte a igreja familiar e os celeiros
brancos. Bateu o coração de Riabóvitch... Nem ouvia o oficial que ao
lado lhe dizia qualquer coisa, esqueceu tudo e só espreitava
ansiosamente o rio a brilhar ao longe, o telhado de uma casa, um
pombal sobre que voejavam em círculos os pombos iluminados pelo
sol poente.
Ao aproximar-se da igreja, e depois, quando ouvia o quartel-
mestre sobre o aboletamento, esperava a cada segundo que surtisse
de trás da cerca o cavaleiro à paisana a convidar os senhores oficiais
para o chá, mas ... o relatório do quartel-mestre chegou ao fim, os
oficiais apearam-se e foram, muito devagar, para a aldeia, e o
cavaleiro não aparecia...
«Agora o Rabbeck vai ficar a saber pelos mujiques que chegámos e
vai mandar-nos chamar» - pensava Riabóvitch entrando na izbá, sem
perceber por que acendia uma vela o companheiro e os ordenanças
se apressavam a pôr os samovares...
Apoderou-se dele uma inquietação pesada. Deitou-se, depois
levantou-se e foi espreitar à janela, não viesse o cavaleiro. O cavaleiro
não chegava. Estendeu-se de novo, tomou a levantar-se meia-hora
depois e, não aguentando a inquietação, saiu para a rua e caminhou
na direcção da igreja. Na praça, junto à cerca, tudo escuro e deserto
... No declive do carreiro deparou com três praças, muito calados. Ao
darem de caras com Riabóvitch agitaram-se e saudaram. Retribuiu-
lhes a continência e pôs-se a descer pelo carreirinho familiar.
Na outra margem, todo o céu estava inundado de tinta rubra;
levantava-se a lua; duas camponesas, conversando em voz alta,
andavam pela horta a esgalhar folhas de couve; por trás da horta,
negrejavam izbás ... Na margem de cá, tudo na mesma, como em
Maio: o carreiro, os arbustos, os salgueiros debruçados para a água...
só não se ouvia o destemido rouxinol e não cheirava a álamo nem a
erva nova.
Chegado ao parque, Riabóvitch espreitou pelos gradis. No parque,
silêncio e escuridão ... Só se enxergavam os troncos brancos das
bétulas mais próximas e um bocado da alameda, o resto era uma
massa escura. Riabóvitch, que escutou e espreitou ansiosamente um
bom quarto de hora, sem chegar a ouvir o mínimo som, sem ver a
mais ténue luzinha, arrastou-se de volta...
Aproximou-se do rio. Ergueu-se-lhe pela frente o branco do
barracão de banhos do general e uns lençóis dependurados nas
guardas do pontão de madeira... Subiu ao pontão, ficou ali parado e
apalpou, por nada, um lençol. Era áspero e frio. Olhou para baixo,
para a água... O rio corria silencioso e rápido, só murmurando
imperceptivelmente em redor dos espeques do barracão. A lua
vermelha reflectia-se perto da margem esquerda; pequeninas ondas
serpenteavam por cima da imagem da lua, esticavam-na,
deformavam-na, rasgavam-na em pedaços, como se quisessem
arrastá-la com elas ...
«Que estupidez! Que estupidez! - pensava Riabóvitch olhando para
a água corredia. - Que pouco inteligente é tudo isto!»
Agora que não esperava nada, a história do beijo, a impaciência, as
vagas esperanças e a desilusão mostravam-se-lhe à luz clara. Já não
estranhava que o cavaleiro do general se não mostrasse, nem nunca
chegasse a ver a que um dia, por acaso, lhe dera um beijo destinado a
outro; ao contrário, seria estranho se alguma vez a visse ...
A água corria, sabe-se lá para onde e para quê. Assim corria em
Maio; em Maio, desaguara de um riacho para o rio grande, do rio
grande para o mar, do mar para as nuvens, nas nuvens fez-se chuva e
talvez, agora, essa mesma água corresse outra vez diante dos olhos
de Riabóvitch ... Porquê? Para quê?
E todo o mundo, toda a vida pareceram a Riabóvitch uma
brincadeira incompreensível, sem sentido ... Desviando os olhos da
água e lançando-os para o alto, voltou a lembrar-se como o destino,
na pessoa de uma mulher desconhecida, o aconchegara sem querer;
lembrou os sonhos e as imagens estivais: e a vida caiu-lhe em cima,
miserável, incrivelmente aborrecida e incolor...
Quando voltou à izbá não encontrou nenhum dos companheiros. O
ordenança informou-o que tinham ido todos a casa do «general
Fontriábkin», tinha vindo buscá-los um cavaleiro ... Por um instante,
acendeu-se no peito de Riabóvitch uma alegria. Apagou-a
imediatamente, deitou-se na cama e, para fazer pirraça ao destino,
como que para o irritar, não foi a casa do general.
DORMIR, DORMIR ...

Noite. A criadita Varka, garota de treze anos, baloiça o berço da


criança e ronrona baixinho:

Oh ró-ró, ró-ró,
Ouve esta cantiga ...

Defronte do ícone arde uma lamparina verde; atravessando o


quarto de uma ponta à outra está esticada uma corda com fraldas e
enormes calças pretas a secar. A lamparina projecta para o tecto uma
mancha grande, as fraldas e as calças lançam sombras compridas
sobre o fogão, o berço, Varka ... Quando a lamparina começa a
piscar, a mancha e as sombras avivam-se e mexem como que
movidas por um sopro de vento. O ar está abafado. Cheira a sopa de
repolho e a artigos de sapataria.
A criança chora. Há muito enrouqueceu de choro, mas ainda berra,
sabe Deus quando acalmará. Varka está morta de sono. Colam-se-lhe
os olhos, pesa-lhe a cabeça, dói-lhe o pescoço. Está incapaz de mexer
as pálpebras e os lábios, tem a sensação de que se lhe enrijou e secou
a cara, que toda a cabeça lhe diminuiu até ao tamanho de uma
cabecinha de alfinete.
— Oh ró-ró — ronrona ela —, vou fazer-te a papinha ...
Algures, no fogão, canta o grilo. Do quarto vizinho, atraves-sando a
porta, chega o ressonar do patrão e do seu ajudante Afanássi... O
ranger lastimoso do berço, o próprio ronronar de Varka — tudo se
funde numa música nocturna embaladora, tão doce de ouvir quando
a pessoa está na cama. Mas agora que dormir é proibido, esta música
modorrenta só oprime e irrita; se Varka adormecer, Deus a guarde,
os patrões batem-lhe.
A lamparina pisca. A mancha verde e as sombras põem-se em
movimento, metem-se pelos olhos semicerrados e imóveis de Varka,
formam sonhos nebulosos no seu cérebro meio adormecido. Nuvens
escuras correm-lhe na cabeça perseguindo outras nuvens escuras e
gritando como a criança. Sopra um vento, desaparecem as nuvens,
Varka vê uma estrada larga coberta de lama viscosa, arastam-se as
carroças pela estrada, arrastam-se as pessoas com trouxas às costas,
voam para trás e para a frente umas sombras; de ambos os lados,
através do nevoeiro frio e mau, vêem-se uns bosques. De repente,
pessoas e trouxas caem para a lama viscosa. «Para que foi isso?» -
pergunta Varka. «Dormir, dormir!» — respondem-lhe. E adormecem
todos como pedras, dormem docemente, enquanto as gralhas e as
pegas pousadas nos fios do telégrafo tentam acordá-los gritando
como a criança.
— Oh ró-ró, ouve esta cantiga... — ronrona Varka e já se vê numa
izbá escura, abafadiça.
No chão estrebucha o seu falecido pai Efim Stepánov. Varka não o
vê, só o ouve a rebolar-se de dores pelo chão e a gemer. «Rebentou-
lhe a hérnia», como ele costumava dizer. A dor é tão forte que é
incapaz de articular palavra, só engole o ar e bate os dentes:
— Bu-bu-bu-bu ...
A mãe, Pelagueia, correra para a herdade avisar os amos de que o
seu Efim se finava. Saíra havia muito, já devia ter voltado. Varka está
deitada no catre do fogão, sem sono, a escutar o «bu-bu-bu» do pai.
Já se ouve alguém a acercar-se da izbá. Os amos mandaram um
médico jovem da cidade, de visita em casa deles, para ver o pai. O
doutor entra na izbá; não se vê nada no escuro, mas ouve-se ele a
tossir e a fazer estalar o trinco da porta.
— Acendam uma luz - diz ele.
— Bu-bu-bu ... - responde Efim.
Pelagueia corre para o fogão e põe-se a procurar o caco onde há-de
haver uns fósforos. Passa-se um minuto em silêncio. O doutor
remexe nos bolsos, acende um fósforo dos seus.
— É para já, paizinho, é para já! - diz Pelagueia, precipita-se para
fora da izbá e volta logo com um coto de vela.
As bochechas de Efim estão cor-de-rosa, os olhos brilham e o olhar
tem uma acutilância especial, como se Efim penetrasse com os olhos
toda a izbá e o doutor.
— Então, que ideia é a tua? - diz o doutor, inclinando-se para ele. -
Irra! Há muito que tens isso?
— Isso quê? Só sei que chegou a minha hora, meu senhor. Vou
morrer...
— Deixa-te desses disparates ... Curas-te!
— Vossoria o diz, meu senhor, agradeço-lhe muito, mas eu é que
sei ... Quando ela chega, não há nada a fazer.
O doutor luta durante um quarto de hora em torno de Efim; depois
levanta-se e diz:
— Não posso fazer nada ... Precisas é de ir para o hospital, fazem-te
lá a operação. E vais já ... Sem falta! Já é tarde, está tudo a dormir no
hospital, mas eu passo-te um bilhetinho. Estás a ouvir-me?
— Mas como há-de ele ir, paizinho? - diz Pelagueia. - Não temos
cavalo.
— Deixa, eu vou pedir aos teus amos, dão-vos um cavalo.
O doutor sai, a vela apaga-se, outra vez se levanta o «bu-bu-
-bu» ... Meia hora depois alguém chega à izbá. Os amos mandavam
uma carrocinha para levar Efim ao hospital. Efim veste-se e vai ...
Agora é uma manhã linda, cheia de sol. Pelagueia não está em
casa: foi ao hospital ver do Efim. Chora algures uma criança, e Varka
ouve alguém a cantar na sua própria voz:
— Oh ró-ró, ouve esta cantiga ....
Volta Pelagueia; persigna-se e sussurra:
— De noite meteram-lhe para dentro a quebradura, de manhã
entregou a alma ao Senhor... Que descanse em paz ... Diz que já era
tarde para o salvar... Era preciso ir antes ...
Varka vai para a mata e é lá que chora, mas de repente alguém lhe
dá uma pancada tão forte na nuca que ela bate com a testa contra
uma bétula. Ergue os olhos e vê à sua frente o patrão sapateiro.
— O que fazes tu, tinhosa? — diz. — A criança a chorar e tu
dormes?
Puxa-lhe a orelha, dói, ela sacode a cabeça, embala o berço e
ronrona a cantiga. A mancha verde e as sombras das calças e das
fraldas oscilam, piscam para ela, não tardam a dominar-lhe outra vez
o cérebro. Outra vez a estrada de lama viscosa. A gente de trouxa às
costas e as sombras deitam-se outra vez a dormir profundamente. E
Varka, olhando para elas, sente um desejo insuperável de dormir;
deitava-se de bom grado, mas a mãe Pelagueia vai a seu lado e
manda-a andar, depressinha. Vão as duas à cidade arranjar trabalho.
— Uma esmolinha, por amor de Cristo! — pede a mãe aos
passantes. - Tenham misericórdia, meus ricos senhores!
— Dá cá a criança — responde-lhe uma voz conhecida. - Dá cá a
criança! — repete a mesma voz, mas já zangada e brusca. - Tu
dormes, grande traste?
Varka levanta-se de um pulo, olha à volta e percebe o que se passa:
não há estrada, não há Pelagueia, nem passantes, no meio do quarto
está a patroa que veio amamentar a criança. Enquanto a patroa,
gorda e espadaúda, dá de mamar e tenta acalmar a criança, Varka
fica-se de pé, à espera que ela acabe. Para lá da janela o ar já se toma
azul, as sombras e a mancha verde no tecto já empalidecem.
Aproxima-se a manhã.
— Pega! — diz a patroa abotoando a camisa no peito. — Não pára
de chorar. Deve ser mau olhado.
Varka pega na criança, põe-na no berço, recomeça a embalá--la. A
mancha verde e as sombras vão desaparecendo aos poucos, já nada
se mete na cabeça de Varka para lhe enevoar o cérebro. Mas continua
a ter sono, um sono horrível! Varka encosta a cabeça à borda do
berço e baloiça-o com o corpo todo, a ver se espanta o sono, mas os
olhos colam-se, a cabeça pesa.
— Varka, acende o fogão! — ouve-se do outro lado da porta a voz
do patrão.
Quer dizer, tem de se levantar, começar na lida. Varka deixa o
berço e corre a buscar lenha ao alpendre. Está contente. De pé, a
correr e a andar, não tem tanto sono como sentada. Traz a lenha,
acende o lume, sente o rosto hirto a descontrair-se, os pensamentos
mais claros.
— Varka, põe o samovar a aquecer! — grita a patroa.
Varka corta os cavacos e, mal tem tempo de os acender e me-ter no
tubo do samovar, já ouve nova ordem:
— Varka, limpa as galochas do patrão!
Senta-se no chão, limpa as galochas e pensa: que bom meter a
cabeça dentro da galocha larga e funda e dormitar um pouco. Então a
galocha cresce, infla-se, enche o quarto todo, Varka deixa cair a
escova, mas logo sacode a cabeça, esbugalha os olhos e tenta olhar de
maneira a que os objectos não cresçam nem se movam diante dos
seus olhos.
— Varka, lava as escadas de fora, é uma vergonha para os
fregueses!
Varka lava as escadas, arruma os quartos, depois acende o outro
fogão e corre à venda. O trabalho é muito, não há um momento livre.
Mas nada mais difícil do que estar encostada à mesa da cozinha, de
pé, a descascar as batatas. As batatas saltitam-lhe à frente dos olhos,
a cabeça pende-lhe para a mesa, a faca cai-lhe das mãos, a patroa,
gorda e de mangas arregaçadas, fala tão alto ao seu lado que lhe
atroa nos ouvidos. Também é uma tortura servir à mesa, lavar a
roupa, costurar. Há instantes em que, aconteça o que acontecer
depois, não se importa de cair redonda no chão e dormir.
O dia passa. Ao ver como escurecem as janelas, Varka aperta as
têmporas empedernidas e sorri, sem saber por que sorri.
A bruma noctuma acaricia os seus olhos colados e promete-lhe um
sono profundo, não tarda. Mas à noite há visitas em casa.
— Varka, põe o samovar a aquecer! - grita a patroa.
O samovar dos patrões é pequeno e, antes de os convidados se
fartarem de beber chá, é preciso aquecê-lo cinco vezes. De-pois do
chá, Varka de pé durante uma hora, no mesmo lugar, olha para os
convidados e aguarda as ordens.
— Varka, vai comprar três garrafas de cerveja, depressinha!
Vai, e tenta correr o mais que pode para espantar o sono.
— Varka, vai buscar vodka! Varka, onde está o saca-rolhas? Varka,
amanha um arenque!
Por fim, os convidados saem; apagam-se as luzes, os patrões vão
para a cama.
— Varka, embala o menino! - soa a última ordem.
No fogão canta o grilo; a mancha verde no tecto e as sombras das
calças e das fraldas voltam a meter-se pelos olhos semicer-rados de
Varka, a piscar para ela, a enevoar-lhe a cabeça.
— Oh ró-ró - ronrona ela — ouve esta cantiga ...
A criança berra, desfaz-se em berros. Varka vê a estrada
lamacenta, os caminhantes com as trouxas, Pelagueia, o pai Efim.
Compreende tudo, reconhece toda a gente, apenas, através da
modorra, nunca mais consegue identificar aquela força que lhe
prende as mãos e as pernas, a oprime, a não deixa viver. Olha à volta,
procura que força será aquela para poder livrar-se dela, mas não a
encontra. Por fim, extenuada, mobiliza até aos seus últimos alentos,
força a vista, olha para cima, para a mancha verde a piscar e,
atentando nos berros, descobre o inimigo que a não deixa viver.
O inimigo é a criança.
Varka ri. Está espantada: como não compreendeu antes uma coisa
tão simples? A mancha verde, as sombras e o grilo pare-cem rir
também, e espantar-se.
É dominada por uma ideia equívoca. Levanta-se do banco e, com
um grande sorriso na cara, sem pestanejar, passeia pelo quarto.
Sente um prazer, umas cócegas boas só de pensar que, agora mesmo,
se vai livrar da criança que a prende pelas mãos e pelas pernas ...
Acabar com a criança e depois dormir, dormir, dormir...
Sempre a rir, piscando o olho para a mancha verde e ameaçando-a
com o dedo, Varka aproxima-se sorrateiramente do berço e inclina-
se sobre a criança. Depois de a estrangular, deita-se muito depressa
no chão, ri da felicidade de poder ir dormir e, um minuto depois,
dorme como morta ...
KACHTANKA

Capítulo 1
Mal comportada

Uma cachorra ruiva, mistura de baixote com rafeira, focinho de


raposa, corria para a frente e para trás pelo passeio e olhava
preocupada para os lados. De vez em quando parava e, chorando,
levantava ora uma pata, ora outra, tentava perceber: como era
possível ter-se perdido?
Lembrava-se perfeitamente como passara o dia e como acabara
por achar-se ali, naquele passeio desconhecido.
O dia começou com o dono dela, o marceneiro Luká Aleksándritch,
a pôr o gorro na cabeça, a pegar numa coisa de madeira embrulhada
num pano vermelho e a gritar:
— Kachtanka, embora!
Ao ouvir o seu nome, o misto de baixote e rafeira saiu de bai-xo do
banco de carpinteiro, onde tinha dormido nas aparas, esticou-se
docemente e correu atrás do dono. Os fregueses de Luká
Aleksándritch viviam muitíssimo longe, portanto, antes de chegar a
casa de cada um deles, o marceneiro tinha necessidade de entrar em
várias tabernas para se reconfortar. Kachtanka lembrava-se de se ter
comportado bastante mal pelo caminho. Feliz por ter sido levada a
passear, saltava, atirava-se aos latidos contra as carruagens do
«americano»(23) ,entrava nos pátios e desafiava os outros cães para
corridas. O marceneiro, volta e meia, perdia-a de vista, parava e
gritava-lhe zangado. Uma vez até lhe agarrou, raivoso, na orelha,
puxou-lha e pronunciou marteladamente:
— Di-a-bos te le-vem pes-te mal-di-ta!
Depois de ter visitado todos os fregueses, Luká Aleksándritch
passou por um instantinho por casa da irmã, onde bebeu e
merendou; da irmã foi ver um encadernador seu conhecido, do
encadernador seguiu para a taberna, da taberna para o compadre,
etc. Numa palavra, quando Kachtanka se viu sozinha no passeio
desconhecido já anoitecia e o marceneiro já estava borracho como
um sapateiro. Abanava as mãos e, suspirando fundo, resmoneava:
— Com o pecado do seu ventre me pariu a minha mãe! Oh,
pecados, pecados meus! Vamos muito bem pela rua fora a olhar para
os lampiões e, olhai só, morremos e vamos arder nas pro-fundas dos
infernos ...
Ou então caía no tom benevolente, chamava a Kachtanka e dizia-
lhe:
— Tu, Kachtanka, és uma criatura insecta e nada mais ...
Comparada ao homem, és a mesma coisa que o carpinteiro com-
parado ao marceneiro ...
Estava a falar nestes termos com ela quando ribombou, de súbito,
a música. Kachtanka virou a cabeça e viu que pela rua, directamente
ao seu encontro, marchava um regimento militar. Como Kachtanka
não suportava música, que lhe mexia com os nervos, desvairou-se e
pôs-se a uivar. Para sua surpresa, o marceneiro, em vez de se
assustar, ganir e latir, esboçou um sorriso largo, tomou a posição de
sentido e levou os cinco dedos à testa numa continência. Vendo pois
que o dono não se impunha, Kachtanka uivou ainda mais alto e, fora
de si, atravessou precipitadamente a rua para o passeio oposto.
Quando se recompôs, já a música não tocava e o regimento
desaparecera. Voltou a atravessar para o sítio onde deixara o dono,
mas, desgraça! — o marceneiro já não estava. Correu desvairada para
trás, para a frente, voltou a atravessar a rua, mas era como se a terra
tivesse engolido o marceneiro ... Kachtanka iniciou um farejo
sistemático do passeio contando encontrá-lo pelo cheiro das
pegadas, mas já um canalha qualquer tivera tempo de passar por ali
com umas galochas novas de borracha, de maneira que todos os
cheiros subtis se misturavam agora com o fedor agudo do cauchu e
era impossível seguir qualquer rasto.
Kachtanka corria numa fona para a frente e para trás, mas na-da
de encontrar vestígios do dono; na rua já escurecia. De ambos os
lados acenderam-se os lampiões, brilhavam luzes nas janelas. Caía
neve em grandes flocos felpudos, branqueando a calçada, as crinas
dos cavalos, os gorros dos cocheiros, e quanto mais escuro se tomava
o ar mais brancas eram as coisas. Passavam constantemente por
Kachtanka, tapando-lhe a vista e dando-lhe pontapés, em ambas as
direcções, fregueses desconhecidos. (Para Kachtanka, todo o género
humano se dividia em duas categorias muito desiguais: donos e
fregueses; a diferença entre eles era substancial: os primeiros tinham
o direito de lhe bater impunemente, aos segundos tinha ela o direito
de ferrar os dentes nas barrigas das pernas.) Os fregueses tinham
pressa e não lhe prestavam qualquer atenção.
Quando escureceu por completo, o terror e o desespero tomaram
conta de Kachtanka. Encostou-se a uma porta de entrada e chorou
amargamente. Uma viagem de dia inteiro com Luká Aleksándritch
fatigara-a muito, as orelhas e as patas tinham-lhe gelado, sentia uma
fome alucinante. Em todo o dia só tinha conseguido desjejuar duas
vezes: petiscou um bocado de grude na oficina do encadernador e,
mais tarde, uma pele de chouriço que encontrou numa taberna,junto
ao balcão — mais nada. Fosse ela um ser humano e talvez pensasse:
«Não, é impossível viver assim! Vou dar um tiro na cabeça!»

Capítulo 2
Um misterioso desconhecido

Mas não pensava em nada a Kachtanka, apenas chorava. Quando a


neve macia e algodoada lhe cobriu completamente a cabeça e as
costas, e ela, extenuada, mergulhou numa modorra pesarosa, a porta
de entrada estalou de repente, chiou e bateu-lhe nas costelas. Deu
um pulo. Da porta saiu um homem, da classe dos fregueses. Como
Kachtanka ganisse e lhe ficasse debaixo dos pés, o freguês não podia
deixar de reparar nela. Inclinou-se e perguntou:
— Cadelinha, donde vens tu? Magoei-te? Oh, coitada, coita-da...
Pronto, pronto, não te zangues ... Peço desculpa.
Kachtanka olhou para o desconhecido através dos flocos de neve
que tinha pregados nas pestanas e viu à sua frente um homenzinho
pequeno e gorducho com uma cara rapada e rechonchuda, de chapéu
alto e peliça desabotoada.
— Então, por que estás tu a ganir? — continuava ele, sacu-dindo
com um dedo a neve das costas dela. - Onde está o teu dono?
Perdeste-te, foi? Ah, coitadinho do bicho! Que vamos fazer agora?
Detectando na voz do desconhecido uma nota calorosa e cordial,
Kachtanka lambeu-lhe a mão e ganiu ainda mais lastimosamente.
— Sabes, és uma querida, és engraçada! - disse o desconhecido. -
Tal qual uma raposa! Pronto, nada a fazer, vens comigo! A ver se
serves para alguma coisa! Anda, fi-iu! — assobiou.
Fez um som de beijo com os lábios e um gesto com a mão que só
podiam significar uma coisa: «Vem!» Kachtanka foi.
Meia hora depois, não mais, já estava muito bem sentadinha no
chão, numa sala grande e clara e, de cabeça à banda, olhava
enternecida e curiosa para o desconhecido, que estava sentado à
mesa a comer. Almoçava e atirava-lhe bocadinhos ... Primeiro deu-
lhe pão e uma casca verde de queijo, depois um cibinho de carne,
metade de um pastel, ossinho de frango, mas Kachtanka, de tanta
fome, comia tudo tão depressa que nem conseguia distinguir o sabor.
E, quanto mais comia, mais fome sentia.
— Caramba, que mal te têm alimentado os teus donos! - dizia o
desconhecido vendo a avidez feroz com que ela engolia os bocados. -
E que magrinha! Pele e osso ...
Kachtanka comeu muito mas não se fartou, apenas ficou
embriagada de tanto comer. Depois do almoço deitou-se no meio da
sala e, sentindo uma deliciosa languidez por todo o corpo, pôs-se a
remexer a cauda. Enquanto o seu novo dono, repimpado na poltrona,
fumava um charuto, ela dava ao rabo e tentava resolver um
problema: onde se estava melhor - em casa do desconhecido ou na
do marceneiro? A casa do desconhecido é pobre e feia: além das
poltronas, do sofá, do candeeiro e dos tapetes, não tem mais nada,
parece uma casa vazia; ora, a casa do marceneiro está a abarrotar de
coisas; tem uma mesa, um banco de carpinteiro, montões de aparas
de madeira, plainas, formões, serras, uma gaiola com um tentilhão,
uma selha ... Em casa do desconhecido não cheira a nada, na do
marceneiro há sempre um vapor no ar e cheira magnificamente a
cola, a verniz e a aparas de madeira. Por outro lado, o desconhecido
tem uma qualidade muito vantajosa - dá muita comida e, há que
fazer-lhe justiça, quando Kachtanka estava sentada ao lado da mesa e
olhava para ele com adulação, nenhuma vez lhe deu pontapés e
nenhuma vez lhe gritou: «Fora daqui, maldita!»
Depois de fumar o charuto, o novo dono saiu e meio minuto depois
voltou trazendo nas mãos um colchãozinho.
— Eh, tu, cadelinha, anda cá! - disse pondo o colchão num canto,
ao lado do sofá. - Deita-te aqui. Dorme!
Apagou o candeeiro e saiu. Kachtanka acomodou-se no colchão e
fechou os olhos; da rua chegou um latido, a que ela quis responder,
mas de repente foi dominada por uma tristeza invencível. Lembrou-
se de Luká Aleksándritch, do seu filho Fediuchka, de um lugarzinho
encantador debaixo do banco de carpinteiro ... Lembrou-se como,
nas noites longas de Inverno, quando o marceneiro aplainava as
tábuas ou lia um jornal em voz alta, Fediuchka costumava brincar
com ela... Puxava-a pelas patas de baixo do banco e fazia-lhe coisas
de que resultava ficar a ver tudo verde e com todas as articulações a
doer. Obrigava-a a andar nas patas traseiras, fazia dela «sino», isto é,
puxava-lhe com força pela cauda e ela gania e ladrava, dava-lhe a
cheirar rapé ... O mais torturante era o truque seguinte: Fediuchka
atava a um fio um pedaço de carne e dava-o a Kachtanka, depois,
quando ela engolia, puxava-lho para fora do estômago e ria-se muito.
Quanto mais nítidas eram as recordações, mais alto e tristemente
gania Kachtanka.
Breve, porém, o cansaço e o calor venceram a tristeza ... Começou
a enlevar-se no sono. Corriam pela sua imaginação cães; entre
outros, passou a correr um cão-de-água felpudo e velho que vira hoje
na rua, com albugem numa vista e umas grenhas descaídas ao lado
do nariz. Fediuchka, com um formão na mão, perseguiu o cão-de-
água, depois ficou ele próprio coberto de pêlo felpudo e deitou a
ladrar alegremente, indo pôr-se ao lado de Kachtanka. Kachtanka e
ele cheiraram, com benevolência, o nariz um do outro e correram
para a rua ...

Capítulo 3
Um novo e muito agradável conhecimento

Quando Kachtanka acordou, já clareava e da rua vinham barulhos


que só de dia se ouvem. Na sala, ninguém. Kachtanka espreguiçou-
se, bocejou e, zangada, sombria, deu uma volta pela sala. Cheirou os
cantos e os móveis, espreitou para o vestíbulo e não encontrou nada
de interessante. Além da porta que levava para o vestíbulo, havia
mais uma. Pensou um pouco, arranhou-a com as duas patas, a porta
abriu-se, e ela entrou num quarto. Numa cama, debaixo do cobertor,
dormia um freguês em que ela reconheceu o desconhecido da
véspera.
— R-r-r... — rosnou ela, mas lembrou-se do almoço da véspera,
abanou a cauda e pôs-se a cheirar.
Cheirou a roupa e as botas do desconhecido e achou que fediam a
cavalo. No quarto de dormir havia mais uma porta, também fechada.
Kachtanka arranhou também esta porta, empurrou-a com o peito,
abriu-a e sentiu logo um cheiro estranho, muito suspeito.
Pressentindo um encontro desagradável, resmungando e olhando
para trás, Kachtanka entrou num quartinho com papel de parede
sujo e recuou, com medo. Viu uma coisa inesperada e assustadora.
Inclinando para o chão a cabeça e o pescoço, abrindo as asas e
chiando avançava contra ela um ganso cinzento. Um pouco afastado
do ganso, deitado num colchão pequeno, estava um gato branco; ao
ver Kachtanka, deu um pulo, arqueou as costas, levantou a cauda,
eriçou o pêlo e bufou. A cadela assustou-se a sério mas, não
querendo mostrar medo, ladrou alto e atirou-se ao gato ... O gato
arqueou ainda mais o lombo, bufou e deu uma patada na cabeça de
Kachtanka. Esta esquivou-se para um lado, sentou-se nas quatro
patas cosida ao chão e, esticando o focinho na direcção do gato,
desatou a ladrar com estridência; neste momento, o ganso
aproximou-se por trás e bicou-a nas costas. Kachtanka deu um salto
e atacou o ganso...
— O que se passa aqui? — ouviu-se uma voz zangada, e o
desconhecido entrou, de roupão e charuto nos dentes. — O que quer
isto dizer? Todos para os seus lugares !
Aproximou-se do gato, deu-lhe um piparote no lombo arqueado e
disse:
— Fiódor Timoféitch, o que significa isto? Armaram briga? Ah, seu
bandido! Deite-se!
E, dirigindo-se ao ganso, gritou:
— Ivan Ivánitch, para o seu lugar!
O gato deitou-se imediatamente no seu colchão e fechou os olhos.
A julgar pela expressão do seu focinho e bigode, estava descontente
consigo mesmo por se ter excedido e ter entrado na briga. Kachtanka
ganiu com ressentimento; quanto ao ganso, esticou o pescoço e pôs-
se a falar rápida, fervorosa e distinta-mente, mas numa linguagem de
todo incompreensível.
— Está bem, está bem! - disse o dono, bocejando. - É preciso
vivermos em paz e amizade. - Fez uma festinha a Kachtanka e
continuou: - E tu, minha cenourinha, não tenhas medo ... Isto é gente
boa, não te vai tratar mal. Mas, espera lá, como havemos de te
chamar? Não se pode viver sem nome, amiga.
O desconhecido pensou um pouco e disse:
— Pois bem ... És a ... Tia Tina... Percebeste? Tia Tina!
E, depois de muitos «Tia Tina, Tia Tina», saiu. Kachtanka sentou-
se e pôs-se a observar. O gato, sentado imóvel no colchão, fingia-se
adormecido. O ganso, esticando o pescoço e marcando passo,
continuava, rápida e ferverosamente, a falar de qualquer coisa. Era,
pelos vistos, um ganso muito inteligente; depois de cada longa tirada,
recuava com um ar espantado, co-mo se se admirasse com o seu
próprio discurso... Kachtanka, ouvindo-o e respondendo-lhe com uns
«r-r-r...», começou a cheirar os cantos. Num dos cantos estava uma
selha pequena com ervilhas molhadas e côdeas de pão de centeio lá
dentro. Provou as ervilhas - não gostou, provou as côdeas - pôs-se a
comer. O ganso não ficou nada ofendido por um cão desconhecido
estar a devorar a comida dele, pelo contrário, falou ainda com maior
ardor e, para mostrar que não havia rancores, aproximou-se também
da selhazinha e comeu uns grãos de ervilha.

Capítulo 4
Coisas do arco da velha

Passado um bocado voltou a aparecer o desconhecido, com um


objecto estranho na mão parecido com um portão ou um pi grego
maiúsculo. Na travessa deste Π de madeira, de fabrico bastante
tosco, estava dependurada uma sineta e atada uma pistola; presos ao
badalo da sineta e ao gatilho da pistola havia uns cordéis. O
desconhecido colocou o Π no meio do quarto, demorou um tempão a
desatar e a atar qualquer coisa, depois olhou para o ganso e disse:
— Ivan Ivánitch, faça o obséquio!
O ganso aproximou-se dele e ficou parado com ar de quem espera.
— Ora bem — disse o desconhecido —, vamos começar do
princípio. Antes de mais nada, cumprimenta com uma vénia e uma
reverência. Vai!
Ivan Ivánitch esticou o pescoço, fez umas mesuras para todos os
lados e um rapapé com a pata.
— Bravo, lindo menino ... Agora, morre!
O ganso deitou-se de costas e espetou as patas para cima. Feitos
mais alguns truques semelhantes de pouca importância, o
desconhecido deitou de repente as mãos à cabeça:
— Socorro! Fogo! Está tudo a arder!
Ivan Ivánitch correu até ao Π, pegou no fio com o bico e tocou a
sineta.
O desconhecido ficou muito contente. Afagou o pescoço do ganso e
disse:
— Muito bem, Ivan Ivánitch! Agora imagina que és um joalheiro e
negoceias em ouro e diamantes. Imagina que chegas à joalharia e
encontras lá os ladrões. O que fazes em semelhante situação?
O ganso pegou com o bico na outra corda e puxou-a, o que
provocou de imediato um disparo ensurdecedor. Kachtanka gostara
muito do badalar da sineta, mas então com o disparo
entusiasmou-se tanto que começou a correr à volta do Π e a ladrar.
— Tia Tina, volta para o teu lugar! - gritou-lhe o desconhecido. -
Caluda!
O trabalho de Ivan Ivánitch não acabou com o disparo da pistola.
Depois disso, o desconhecido exercitou o ganso a andar à roda dele
preso à corda: estalava o chicote, fazia-o saltar a barreira e passar
pelo arco, empinar-se como um cavalo, ou seja, sentar-se no rabo e
agitar as patas. Kachtanka não desviava os olhos de Ivan Ivánitch,
uivava de entusiasmo e por várias vezes desatou a correr atrás dele
latindo com força. Depois de ter cansado o ganso e a si próprio, o
desconhecido limpou o suor da fronte e gritou:
— Mária, manda entrar a Khavrónia Ivánovna!
Momentos depois ouviu-se um grunhido ... Kachtanka rosnou,
assumiu o seu ar de valentona e, para o que desse e viesse, chegou-se
para mais perto do desconhecido. Abriu-se a porta, uma velhota
espreitou para dentro do quarto e, dizendo qualquer coisa, fez entrar
uma porca negra e feiosa. Sem prestar a mínima atenção ao rosnar
de Kachtanka, a porca ergueu o nariz e grunhiu alegremente. Pelos
vistos, tinha grande prazer em ver o dono, o gato e Ivan Ivánitch.
Quando se aproximou do gato e o cumprimentou com um leve
piparote do focinho na barriga e, depois, falou de qualquer coisa com
o ganso, sentia-se tanta benevolência nos seus movimentos, na sua
voz e no tremelicar do seu rabito, que Kachtanka percebeu de
imediato que era inútil rosnar e ladrar para sujeitos como estes.
O dono arrumou o Π e gritou:
— Fiódor Timoféitch, faça o favor!
O gato levantou-se, espreguiçou-se e, de má vontade, como se
fizesse um favor, foi ter com a porca.
— Ora então, vamos começar pela pirâmide egípcia - disse o dono.
Explicou demoradamente algumas coisas, depois deu uma ordem:
«um ... dois ... três!» Ivan Ivánitch, à palavra «três», bateu as asas e
saltou para as costas da porca ... Quando, balançando as asas e o
pescoço, se estabilizou no lombo cerdoso da outra, Fiódor
Timoféitch, mole e preguiçosamente, com um nítido desprezo e um
ar de desdém pela sua arte, como se não lhe desse o valor de um
caracol, trepou também para as costas da porca e depois,
contrariado, para cima do ganso; aí, sentou-se nas patas traseiras. E
ali estava aquilo a que o desconhecido chamava «pirâmide egípcia».
Kachtanka ganiu de admiração, mas nesse momento o velho gato
bocejou e, perdendo o equilíbrio, caiu de cima do ganso. Ivan
Ivánitch, por sua vez, vacilou e também caiu. O desconhecido pôs-se
aos gritos, a abanar as mãos , e voltou a explicar qualquer coisa.
Depois de ter tratado uma hora inteira da pirâmide, o infatigável
treinador começou a ensinar Ivan Ivánitch a montar em cima do
gato, depois a ensinar o gato a fumar, e assim por diante.
O desconhecido limpou o suor da testa e saiu: terminavam as
aulas. Fiódor Timoféitch bufou com repugnância, deitou-se no
colchão e fechou os olhos. Ivan Ivánitch dirigiu-se para a selha da
comida, a porca foi levada pela velha.
Graças às imensas impressões novas, o dia, para Kachtanka,
passara-se desapercebidamente; à noite foi mudada, juntamente com
o colchão, para o quarto do papel de parede sujo e dormiu na
companhia de Fiódor Timoféitch e do ganso.

Capítulo 5
Talento! Talento!

Passou um mês.
Kachtanka já se habituara a que lhe fosse servido todas as tardes
um saboroso almoço e que lhe chamassem Tia Tina. Habituara-se ao
desconhecido e aos seus novos companheiros. A vida corria-lhe às
mil maravilhas.
Todos os dias começavam da mesma maneira. Normalmente, o
primeiro a acordar era Ivan Ivánitch, que se aproximava
imediatamente da Tia Tina ou do gato, arqueava o pescoço e se
punha a falar com fervor e convicção, mas de uma maneira, como
sempre, incompreensível. Por vezes levantava bem alto a cabeça e
proferia longos monólogos. Nos primeiros tempos, Kachtanka
pensava que o ganso falava muito porque era muito inteligente, mas
breve perdeu todo o respeito por ele; quando a abordava com os seus
discursos intermináveis, já não abanava o rabo mas ignorava-o como
a um fala-barato impertinente que não deixava dormir ninguém e,
sem cerimónias, as respostas que dava ao ganso eram «r-r-r...».
Ora, Fiódor Timoféitch era um senhor doutro género. Ao acordar,
não emitia o mínimo som, não se mexia nem sequer abria os olhos.
Aliás, de um modo geral não teria até grande prazer em acordar,
porque, como era evidente, não gostava muito da vida. Não se
interessava por nada, alardeava uma atitude indiferente e
desdenhosa para com tudo e até quando devorava o seu almoço
delicioso bufava de repugnância.
Quanto a Kachtanka, ao acordar dava uma volta pelos quartos e
cheirava tudo. Só a ela e ao gato era permitido andar por toda a casa,
já que o ganso não estava autorizado a ultrapassar o umbral do
quarto do papel de parede sujo; quanto a Khavrónia Ivánovna, vivia
algures no pátio, numa barraquinha e só ia lá a casa no horário das
aulas. O dono acordava tarde e, depois de tomar chá, começava logo
com os seus truques. Todos os dias trazia para o quarto o Π, o
chicote, os arcos, e todos os dias se trabalhava quase sempre nas
mesmas coisas. As aulas duravam umas três ou quatro horas, de
maneira que às vezes Fiódor Timoféitch começava a cambalear de
cansaço, como um bêbado, Ivan Ivánitch abria o bico e ofegava, e o
dono ficava muito vermelho e fartava-se de limpar o suor da testa.
Os estudos e o almoço tomavam os dias muito divertidos, mas os
anoiteceres eram bastante enfadonhos. Habitualmente, à noite o
dono saía e levava consigo o ganso e o gato. Sozinha, a Tia Tina
deitava-se no colchão e mergulhava em tristeza... A tristeza ia-se
metendo nela imperceptivelmente e ia-a dominando a pouco e
pouco, como o crepúsculo a encher devagarinho o quarto. Começava
tudo com o desaparecimento da vontade de ladrar, de comer, de
correr pelos quartos e até de olhar, depois surgiam-lhe na
imaginação duas figuras indefinidas - cães?, pessoas? - com
semblantes simpáticos, queridos, mas incompreensíveis; mal lhe
vinham à imaginação, a Tia Tina dava ao rabo e parecia-lhe que já
houvera uma altura da sua vida, em qualquer lugar, que as tinha
visto e que gostava delas ... Quando estava a cair no sono, sentia
sempre que essas figuras cheiravam a cola, a aparas de madeira e a
verniz.
Quando já se habituara por completo à nova vida e se
transformara, de rafeira descamada, esquelética, numa cadela bem
tratada e farta, aconteceu o dono, uma vez, fazer-lhe um festinha e
dizer:
— Já é altura de começarmos a trabalhar juntos, Tia Tina. Chega
de mandriice. Quero fazer de ti uma actriz ... Queres ser actriz?
E começou a ensinar-lhe várias ciências. Na primeira aula
aprendeu a pôr-se de pé e andar nas patas traseiras, coisa de que
gostava muito. Na segunda aula teve de aprender a saltar a pé junto
nas patas traseiras e abocanhar um cubo de açúcar que o professor
segurava bem alto. Nas aulas seguintes foi a dança, a corrida com
corda, o canto ao som da música, o tanger da sineta e o tiro à pistola;
passado um mês já era capaz de substituir com êxito Fiódor
Timoféitch na «pirâmide egípcia». Estudava com prazer e estava
contente com os seus êxitos; correr à corda com a língua de fora e
montar de um salto o velho Fiódor Timoféitch davam-lhe um prazer
enorme. Celebrava cada número bem sucedido com um latido sonoro
e entusiasmado, o dono também se entusiasmava, se espantava,
esfregava as mãos .
— Talento! Talento! - dizia ele. - Talento indubitável! Será um
êxito, de certeza!
E a Tia Tina habituou-se de tal modo à palavra «talento» que,
sempre que o dono a pronunciava, saltava do lugar e olhava pa-ra
ele, como se fosse a alcunha dela.

Capítulo 6
Uma noite inquieta

A Tia Tina teve um pesadelo canino — era perseguida por um


guarda-varredor com vassoura — e acordou assustada.
O quarto era só silêncio, escuridão, um ar abafadíssimo. As pulgas
picavam-na. Nunca antes a Tia Tina tivera medo do escuro, mas
agora estava apavorada e tinha grande vontade de ladrar. Do quarto
contíguo veio o som distinto do dono a suspirar, da barraquinha um
grunhido da porca, depois caiu de novo o silêncio. Quando pensamos
em comida, a alma fica aliviada, por isso a Tia Tina se pôs a pensar
em como tinha larapiado hoje ao Fiódor Timoféitch uma pata de
galinha e a tinha escondido na sala de estar, entre o armário e a
parede onde havia muita teia de aranha e muito pó acumulado. Não
seria má ideia ir ver: estaria ou não estaria a patinha no lugar? Era
muito possível que o dono a tivesse encontrado e comido. Mas era
proibido sair do quarto antes do amanhecer — regras são regras. Tia
Tina fechou os olhos tentando adormecer o mais depressa possível,
porque sabia por experiência que quanto mais cedo adormecemos
mais depressa chega a manhã. Mas, de repente, ouviu um grito
esquisito perto dela que a fez estremecer e, de um pulo, ficar de pé
nas quatro patas. Fora Ivan Ivánitch quem gritara, e não o seu grito
tagarela e convencido do costume, mas um grito louco, estridente,
nada natural, parecido com o ranger de um portão a abrir-se. Tia
Tina, como não conseguisse distinguir nada no escuro nem estivesse
a perceber o que se passava, sentiu um medo ainda maior e rosnou:
— R-r-r-r...
Passou bastante tempo, o mesmo que leva a roer um osso grande
até ao fim; o grito não voltou a ouvir-se. A Tia Tina foi-se acalmando
a pouco e pouco, e dormitou. Sonhou com dois cães grandes com
tufos de pêlo do ano passado nos quartos traseiros e dos lados;
comiam com avidez, de uma selha grande, uma lavagem donde se
exalava um vapor branco e um cheiro muito saboroso; de vez em
quando viravam as cabeças para a Tia Tina, arreganhavam os dentes
e rosnavam: «Não te damos nada!» Mas de dentro da casa saiu a
correr um mujique e enxotou-os à chicotada; então, a Tia Tina foi à
selha e começou a comer; mas, mal o mujique desapareceu atrás do
portão, os dois cães negros atiraram-se a ela, rugindo, e de repente
repetiu-se o grito estridente.
— Que-gue! Que-gue-gue! — gritou Ivan Ivánitch.
Tia Tina acordou, levantou-se de um salto e, sem sair do colchão,
desatou nuns latidos uivados. Parecia-lhe que não era Ivan Ivánitch a
gritar, mas outro qualquer, um estranho. E, sabe-se lá porquê,
também na barraquinha se ouviu a porca a grunhir.
Depois ouviu-se um arrastar de chinelos e entrou no quarto o
dono, de roupão, trazendo uma vela. A luz bruxuleante saltitou pelo
papel de parede sujo e pelo tecto, expulsando as trevas. Tia Tina viu
que no quarto não havia ninguém estranho. Ivan Ivánitch estava
sentado no chão e não dormia. Tinha as asas abertas e o bico
também, e o seu aspecto geral era o de quem se tinha fatigado muito
e estava com sede. O velho Fiódor Timoféitch também não dormia. O
grito também a ele acordara, pelos vistos.
— Ivan Ivánitch, o que tens tu? - perguntou o dono ao ganso. - Por
que gritas assim, estás doente?
O ganso calava-se. O dono apalpou-lhe o pescoço, acariciou-lhe as
costas e disse:
— És um grande parvinho. Não dormes e não deixas dormir os
outros.
O dono saiu levando consigo a vela e a escuridão voltou. Tia Tina
estava com medo. O ganso agora não gritava, mas Tia Tina voltou a
ter a sensação de que estava um estranho no quarto. O mais
apavorante era não ser possível morder aquele estranho, porque era
invisível, não tinha forma. Por uma qualquer razão, pensava que
alguma coisa de muito mau devia acontecer esta noite. Fiódor
Timoféitch também estava inquieto. Tia Tina ouvia-o a remexer-se
no colchão, a bocejar e a sacudir a cabeça.
Algures na rua bateram ao portão e, na barraquinha, grunhiu a
porca. Tia Tina ganiu, esticou as patas dianteiras e deitou nelas a
cabeça. No barulho do portão, no grunhido da porca que, por
qualquer razão, não tinha sono, na escuridão e no silêncio, pressentia
Tia Tina algo de tão angustiante e terrível como no grito de Ivan
Ivánitch. Tudo era alarme e inquietação, mas por-quê? Quem era
aquele estranho invisível? Ao lado de Tia Tina raiaram, por um
instante, duas faíscas verde-pálidas. Era o Fiódor Timoféitch, que,
pela primeira vez desde que se conheciam, se aproximava dela. O que
quereria ele? Tia Tina lambeu-lhe a pata e, sem lhe perguntar por
que se tinha ele achegado, uivou baixinho em várias tonalidades.
— Que-gue! - gritou Ivan Ivánitch. — Que-gue-gue!
De novo se abriu a porta e entrou o dono com a vela. O ganso
mantinha a mesma posição: o bico e as asas abertos. Tinha os olhos
fechados.
— Ivan Ivánitch! — chamou o dono.
O ganso não se mexeu. O dono sentou-se no chão à frente dele,
olhou-o em silêncio durante um minuto e disse:
— Ivan Ivánitch! O que se passa contigo? Estarás a morrer-me ou
quê? Ah, já me lembro, agora me lembro! - exclamou e deitou as
mãos à cabeça. - Já sei o que é! Foste hoje pisado por um cavalo!
Meu Deus, meu Deus!
Tia Tina não alcançava entender o que dizia o dono, mas via pela
sua cara que também ele pressentia algo de terrível. Esticou o
focinho para a janela escura, onde lhe pareceu que alguém
desconhecido estava a espreitar, e uivou.
— Ele está a morrer, Tia Tina! - disse o dono agitando os braços. -
Sim, Tia Tina, está a morrer! Chegou a morte ao vosso quarto ! O que
vamos fazer?
O dono, pálido e preocupado, suspirando e meneando a cabeça,
voltou para o seu quarto. Tia Tina tinha medo de ficar sozinha no
escuro e foi atrás dele. O dono sentou-se na cama e repetiu várias
vezes:
— Deus do céu, o que vamos nós fazer?
Tia Tina pôs-se a andar para trás e para a frente junto aos pés dele
e, sem compreender aquela mágoa que se metera dentro de-la e por
que razão estava toda a gente tão preocupada, ansiando por
compreender, seguia cada movimento do dono. Fiódor Timoféitch,
que raramente abandonava o seu colchão, também entrou no quarto
do dono e foi esfregar-se nas pernas dele. Sacudia a cabeça, como se
quisesse sacudir dela pensamentos penosos, e espreitava suspeitoso
para debaixo da cama.
O dono pegou num pires, encheu-o com água da torneira e foi
outra vez para junto do ganso.
— Bebe, Ivan Ivánitch! - disse com ternura, pondo-lhe o pires à
frente. - Bebe, querido.
Mas Ivan Ivánitch não mexia nem abria os olhos. O dono inclinou-
lhe a cabeça até ao pires e mergulhou-lhe o bico na água, mas o
ganso não bebeu, abriu ainda mais as asas e deixou a cabeça deitada
no pires.
— Não se pode fazer nada! - suspirou o dono. - Acabou-se!
Chegaste ao fim, Ivan Ivánitch!
E pelas suas faces abaixo rolaram gotinhas brilhantes, como as da
chuva na vidraça. Sem compreenderem o que se passava, Tia Tina e
Fiódor Timoféitch apertavam-se contra ele e olhavam, aterrorizados,
para o ganso.
— Coitado do Ivan Ivánitch! - dizia o dono num suspiro triste. - E
eu que sonhava levar-te na Primavera para a casa de campo e passear
contigo na erva verde. Ah, meu querido bichinho, meu amiguinho,já
cá não estarás! Como vou agora passar sem ti?
Parecia à Tia Tina que também com ela aconteceria a mesma coisa,
que também ela fecharia os olhos, esticaria as patas, arreganharia os
dentes e toda a gente ficaria a olhar para ela com medo. Pelos vistos,
as mesmas ideias vagueavam pela cabeça de Fiódor Timoféitch.
Nunca antes o velho gato se mostrara tão sorumbático e sombrio
como agora.
Rompia a manhã e já não se sentia no quarto a presença do
estranho invisível que toda a noite assombrara Tia Tina. Quando
amanheceu de todo, veio o guarda-portão, agarrou no ganso pelas
patas e levou-o. Um pouco mais tarde apareceu a velhota e levou a
selha.
Tia Tina foi para a sala de estar e espreitou para trás do armá-rio:
o dono, afinal, não comera a pata de galinha, estava no mesmo sítio,
embrulhada em teias de aranha e pó. Mas o quebranto e a tristeza de
Tia Tina eram tão grandes que nem cheirou a pata e só lhe apetecia
chorar. Meteu-se debaixo do sofá, sentou-se e começou a ganir
baixinho, com uma voz muito fininha: — Ui-ui-ui ...

Capítulo 7
Uma estreia mal sucedida

Numa bela noite, o dono entrou no quarto do papel de parede sujo


e, esfregando as mãos, disse:
— Ora bem...
Queria dizer mais alguma coisa, mas não disse e saiu. Tia Tina,
que, das aulas, já lhe conhecia perfeitamente a cara e a entoação,
percebeu que estava emocionado, preocupado e, ao que parecia,
zangado. Um pouco depois o dono voltou e disse:
— Quem vai comigo hoje é a Tia Tina e o Fiódor Timoféitch. Tu,
Tia Tina, vais substituir o Ivan Ivánitch na pirâmide egípcia. Diabos
me levem se sei como é que vai correr! Nada preparado, nada sabido
de cor, poucos ensaios! Vamos cobrir-nos de vergonha, fazer figuras
de ursos!
Depois saiu outra vez e outra vez voltou, passado um minuto, de
peliça vestida e cartola na cabeça. Aproximou-se do gato, pegou nele
pelas patas dianteiras e escondeu-o no peito por baixo da peliça;
Fiódor Timoféitch, como sempre indiferentíssimo, nem sequer se
dignou abrir os olhos. Pelos vistos, tanto lhe fazia: ficar deitado ou
ser pegado pelas patas, preguiçar no colchão ou descansar
encostadinho ao peito do dono debaixo da peliça...
— Tia Tina, vamos - disse o dono.
Sem compreender nada e dando ao rabo, Tia Tina foi atrás dele.
Um minuto depois já estava sentada no trenó, aos pés do dono, e
ouvia ele a murmurar, encolhendo-se de frio e de nervo-sismo:
— Cobrir-nos de vergonha! Fazer figuras de ursos!
O trenó parou em frente de uma casa grande e estranha, mais
parecida com uma terrina da sopa posta de boca para baixo. A
entrada larga da casa, com três portas envidraçadas, brilhava com a
luz de uma dúzia de lampiões. As portas abriam-se, tilintavam e,
como bocarras, engoliam as pessoas que enxameavam pela entrada.
Havia muita gente, também se viam muitos cavalos a correr, mas
cães não se viam.
O dono pegou na Tia Tina e meteu-a debaixo da peliça, onde já
estava Fiódor Timoféitch. Era escuro, ali, e abafado, mas quentinho.
Por um breve instante raiaram duas faíscas verde-pálidas - o gato,
incomodado pelas patas rijas e frias da intrusa, tinha aberto os olhos.
Tia Tina lambeu-lhe a orelha e, para se acomodar o melhor possível,
mexia-se desinquieta e pisava-o com as patas frias; sem querer,
assomou a cabeça para fora da peliça e logo resmungou com zanga e
a mergulhou bem para dentro. Pareceu-lhe ver uma sala enorme, mal
iluminada, cheia de monstros; por trás dos tabiques e das grades ao
longo dos dois lados da sala espreitavam focinhos assustadores: uns
de cavalos, outros com cornos, outro com orelhas compridas e
focinho gordo, gigantesco, com uma cauda em vez de nariz e dois
ossos compridos, bem limpos de carne, a saírem-lhe da boca.
O gato miou roufenho debaixo das patas da Tia Tina, mas nesse
instante a peliça abriu-se, o dono disse: «hop!» e Fiódor Timoféitch e
Tia Tina saltaram para o chão. Agora já estavam numa sala pequena
e com paredes de tábuas cinzentas; além de uma mesinha com
espelho, um banco e trapos pendurados nos cantos, não havia aqui
mais nenhuns móveis, e em vez de candeeiro ou vela ardia uma luz
forte em forma de leque, preso a um tubinho pregado na parede.
Fiódor Timoféitch lambeu a sua própria peliça, amarrotada pela Tia
Tina, foi para debaixo do banco e deitou-se. O dono, ainda enervado
e sem parar de esfregar as mãos, começou a despir-se... Despiu-se tal
e qual fazia em casa quando se preparava para se enfiar debaixo do
cobertor de flanela, ou seja, tirou tudo menos a roupa interior,
depois sentou-se no banco e, olhando-se no espelho, deu-lhe para
fazer com a cara dele coisas espantosas. Primeiro pôs na cabeça uma
peruca com risca ao meio e dois tufos para o lado que mais pareciam
cornos, depois espalhou na cara uma camada espessa de uma coisa
branca e, por cima, ainda pintou sobrancelhas, bigode e umas
bochechas coradas. As esquisitices dele não ficaram por aqui. Depois
de sujar a cara e o pescoço começou a vestir-se: um fato fora do
vulgar, absurdo, que não se parecia com nada e que a Tia Tina nunca
tinha visto em lado nenhum, nem em casas nem na rua. Imaginem
umas pantalonas larguíssimas de chita às flores enormes, utilizadas
normalmente nas casas pequeno-burguesas para as cortinas e os
forros dos móveis, pantalonas essas que chegavam até debaixo dos
sovacos; metade das calças em chita castanha, a outra metade em
chita amarela-clara. Depois de se enfiar dentro daquilo, o dono ainda
vestiu um casaquinho de chita com uma grande gola rendilhada e
uma estrela dourada nas costas, calçou umas meias às riscas de todas
as cores e uns sapatos verdes...
Nos olhos e na alma de Tia Tina saltitavam pontinhos multi-cores.
Aquela figura desajeitada cheirava a dono, a voz também era a
conhecida voz do dono, mas havia momentos em que as dúvidas
atormentavam a Tia Tina, e quando assim era apetecia-lhe fugir da
figura colorida e ladrar-lhe. O lugar novo, a luzinha em forma de
leque, o cheiro, a metamorfose do dono - tudo isso alojava dentro
dela o medo e o pressentimento indefinidos de que não poderia
escapar ao encontro com um terror qualquer, do género daquele
focinho gordo com cauda em vez de nariz. Ainda por cima, algures
por trás da parede tocavam a música odiosa e ouvia-se, de vez em
quando, um rugido incompreensível. Só uma coisa a tranquilizava - o
ar imperturbável de Fiódor Timoféitch, que dormitava na maior das
calmas debaixo do banco e nem quando o banco se mexia abria os
olhos.
Um homem de casaca e colete branco espreitou para o quartinho e
disse:
— É agora o número de Miss Arabella. A seguir entra o senhor.
O dono não respondeu. Tirou de baixo da mesa uma maleta,
sentou-se e ficou à espera. Via-se-lhe pelos lábios e pelas mãos que
estava nervoso, Tia Tina ouvia mesmo a respiração dele a tremelicar.
— Monsieur Georges, é agora! - gritou alguém atrás da porta.
O dono levantou-se e persignou-se três vezes, depois tirou de baixo
do banco o gato e meteu-o na mala.
— Vem cá, Tia Tina! - disse baixinho.
Tia Tina, sem perceber nada, chegou-se às mãos dele; o dono deu-
lhe um beijo na cabeça e pô-la ao lado de Fiódor Timoféitch. A
seguir, as trevas ... Tia Tina pisava o gato, arranhava as paredes da
maleta e, de tanto terror, não conseguia emitir qual-quer som, e a
maleta baloiçava como em cima das ondas e tremia.
— Cheguei! - gritou altíssimo o dono. - Já cheguei, minha gente !
Logo a seguir aos gritos, Tia Tina sentiu a maleta a bater contra
alguma coisa dura e a parar de baloiçar. Ouvia um rugido alto e
espesso, palmas - dariam palmadas a alguém, talvez ao focinho com
cauda em vez de nariz, e esse alguém rugia e ria tanto que até os
fechos da maleta tremiam? Como resposta ao rugido, soou uma
risada penetrante, estridente do dono, risada que ele em casa nunca
soltava.
— Agh! — berrou ele tentando superar o rugido. — Estimadíssimo
público, acabo de chegar da estação de comboios! A minha avozinha
esticou o pernil e deixou-me uma herança! Nesta mala está uma
coisa muito pesada ... pelos vistos, ouro ... Ha-ha! E se estiver um
milhão cá dentro? Vamos abrir, a ver...
Estalou a fechadura da maleta. A luz forte chicoteou Tia Tina nos
olhos; saltou para fora da maleta e, ensurdecida pelo rugido, deitou a
correr como doida à volta do dono e desatou a ladrar.
— Ah! — gritou o dono. — É o meu querido tio Fiódor Timoféitch!
Oh, a minha querida Tia Tina! Meus parentes adora-dos, para o
diabo que vos carregue!
Deixou-se cair de barriga na areia, agarrou no gato e na Tia Tina e
pôs-se a abraçá-los. Tia Tina, enquanto ele a apertava nos braços,
deitou o rabo do olho ao mundo para onde o destino a tinha atirado
e, espantada com a sua grandiosidade, ficou por um momento
imobilizada de surpresa e entusiasmo, depois, libertando-se dos
abraços do dono, desatou a rodopiar como um pião, possessa pelas
impressões fortes; o olhar dela, pousasse onde pousasse, só via
rostos, rostos, rostos e mais nada.
— Tia Tina, sente-se por favor! — gritou o dono.
Lembrando-se bem do que ele queria dizer com isso, Tia Tina
saltou para cima da cadeira e sentou-se. Olhou para o dono. Os olhos
deste, como sempre, eram sérios e carinhosos, mas a cara, sobretudo
a boca e os dentes, estava desfigurada por um amplo sorriso imóvel.
Ria à gargalhada, pulava, sacudia os ombros e fazia de conta que
estava muito alegre na presença daqueles milhares de rostos. Tia
Tina acreditou na alegria dele, sentiu de repente com todo o seu
corpo que aqueles milhares de rostos também estavam a olhar para
ela, levantou o focinho raposino e uivou com êxtase.
— A senhora agora, Tia Tina, descanse — disse-lhe o dono —, e
nós, eu e o querido tio, vamos dançar a «Kamárinskaia».
Fiódor Timoféitch, já à espera que o fossem obrigar a fazer
asneiras, estava muito quieto e olhava em volta com indiferença.
Dançava com preguiça, descuidadamente, sombrio, e via-se-lhe pelos
movimentos, pela cauda e pelo bigode que desprezava
profundamente a multidão, a luz forte, o dono, a si próprio ... Depois
de dançar o que havia para dançar, bocejou e sentou-se.
— Ora bem, Tia Tina - disse o dono —, agora, primeiro vamos
cantar, depois dançar. De acordo, Tia Tina?
Tirou do bolso um pífaro e pôs-se a tocar. Tia Tina, que não
suportava música, mexeu-se nervosamente em cima da cadeira e
desatou a uivar. De todos os lados se ouvia o rugido e os aplausos. O
dono fez uma vénia e, quando tudo se calou, recomeçou a tocar... No
momento de uma nota bem alta, alguém, em cima, soltou um «ah!».
— Pai! - gritou uma voz infantil. — É a Kachtanka!
— É mesmo, é a Kachtanka! - confirmou uma vozinha de tenor
bêbada e tremente. — Kachtanka! Fediúchka, Deus me castigue se
não é a Kachtanka! Fi-iu!
Alguém assobiava das galerias, e duas vozes — uma infantil, outra
masculina — chamavam em altos gritos:
— Kachtanka! Kachtanka!
Tia Tina estremeceu e olhou para o sítio donde vinham os gri-tos.
Dois rostos — um barbudo, bêbado e festivo, o outro rechonchudo,
corado e assustado - como que chicotearam Tia Tina nos olhos, tal
como antes aquela luz forte ... Lembrou-se de tudo, trambolhou da
cadeira e rebolou pela areia, depois saltou e, com um ganido feliz,
precipitou-se para os dois rostos. Soou um rugido ensurdecedor,
cortado de assobios, e sobressaiu um gritinho infantil, estridente:
— Kachtanka! Kachtanka!
Tia Tina saltou por cima da barreira, depois por cima do ombro de
alguém e foi parar a um camarote. Dos primeiros camarotes para os
segundos era preciso saltar um muro alto. Tia Tina saltou, mas
falhou e escorregou a arranhar com as unhas o muro alto . A seguir
foi passada de mão em mão para cima, ia lambendo caras e mãos,
cada vez mais para cima, até que chegou à galeria...
Meia hora depois já Kachtank:a caminhava pela rua fora atrás do
cheiro a cola e verniz daquelas duas pessoas. Luká Aleksándritch ia
aos barrancos e, instintivamente, ensinado também pela experiência,
cambaleava o mais longe possível da vala.
— Aqui jaz neste abismo pecaminoso a minha carne pecaminosa...
— murmurava ele. - E tu, Kachtanka, és a modos que um
desconchavo. Comparada com o ser humano, és a mesma coisa que o
carpinteiro comparado ao marceneiro.
Ao lado de Luká Aleksándritch caminhava Fediuchka com o boné
do pai. Kachtanka olhava para as costas deles, e parecia-lhe que
desde sempre andara assim atrás deles, toda contente por a vida dela
não ter sido interrompida por um minuto sequer.
Recordou o quarto do papel de parede sujo, o ganso, Fiódor
Timoféitch, os almoços saborosos, os estudos, o circo, mas tudo isso
morava agora apenas na sua imaginação, como um sonho comprido,
confuso, penoso ...
DIA DE ANJO

Depois do almoço de gala, com os seus oito pratos e as suas


conversas intermináveis, a mulher do aniversariante, Olga
Mikháilovna, escapou-se para o jardim. A obrigação de sorrir e de
falar sem tréguas, o tilintar da loiça, a inépcia da criadagem, os
longos intervalos no decorrer do almoço e o espartilho, que pusera
para disfarçar a gravidez, cansaram-na até ao esgotamento. Só lhe
apetecia estar o mais longe possível da casa, sentar-se à sombra e
descansar pensando no filho que nasceria dentro de dois meses.
Habituara-se a que tais pensamentos a visitassem num lugar em que
a álea grande virava à esquerda para uma vereda estreita; aqui, na
sombra espessa das ameixieiras e gingeiras, os ramos secos
arranhavam-lhe os ombros e o pescoço, as teias pegavam-se-lhe ao
rosto, e vinha-lhe então à mente a imagem de um pequenino ser de
sexo indefinido e traços imprecisos, e era como se não fossem as
teias que lhe cocegassem meigamente as faces e o pescoço, mas esse
ser pequenino; ora, quando no fim da vereda se via a sebe rala e por
trás dela as colmeias pançudas com as suas tampas de barro,
quando, no ar imóvel e saturado, começava a cheirar a feno e a mel, e
se ouvia o zumbir meigo das abelhas, a criatura pequenina
apoderava-se por completo de Olga Mikháilovna. Sentava-se então
no banquinho ao lado de uma cabana trançada em vime e punha-se a
pensar.
Também desta vez chegou ao banco, se sentou e começou a
pensar; mas agora, em vez do ser pequenino, vinham-lhe ao
pensamento pessoas graúdas, precisamente as que acabara de
deixar. Preocupava-a sem dúvida o ter abandonado os convidados,
ela, a dona de casa; lembrava-se de como, durante o almoço, o seu
marido Piotr Dmítritch e o seu tio Nikolai Nikoláitch discutiram
sobre o tribunal de jurados, a imprensa e o ensino das mulheres; o
marido, como de costume, discutia para alardear perante os
convidados o seu conservadorismo, mas sobretudo para mostrar que
não concordava com o tio, de quem não gostava; quanto ao tio,
discutia, e agarrava-se a cada palavra do opositor, para mostrar que
apesar dos seus 59 anos ainda mantinha a frescura de espírito juvenil
e a liberdade de pensamento. A própria Olga Mikháilovna, para o fim
do almoço, não aguentou mais e pôs-se a defender desajeitadamente
os cursos femininos — não o fazia porque tais cursos precisassem de
defesa, mas porque queria agastar o marido que, na opinião dela,
estava a ser injusto. Os convidados estavam cansados da discussão,
mas acharam todos que deviam participar nela e, como tal, falaram,
falaram, quando não interessava a ninguém, no fundo, o tribunal de
jurados nem o ensino feminino ...
Olga Mikháilovna estava sentada do lado de cá da sebe, perto da
cabana. O sol escondia-se por entre as nuvens, as árvores e o ar
estavam carrancudos, como antes da chuva, mesmo assim estava
calor, um calor abafado. Debaixo das árvores, o feno seco já segado
nas vésperas do S. Pedro ainda não fora enfeixado e ali estava, triste,
com as suas flores fanadas, e emanava dele um aroma pesado,
demasiado doce. Era o silêncio. Do outro lado da sebe zumbiam
monotonamente as abelhas...
De repente ouviu passos e vozes. Alguém vinha pela vereda na
direcção do colmeal.
— Está abafado! — disse uma voz feminina. — O que acha, vai
chover ou não?
— Vai chover, minha linda, mas só à noite, antes não — respondeu
com languidez uma voz masculina muito familiar. — Vai cair uma
chuvada das boas.
Olga Mikháilovna presumiu que, se se escondesse rapidamente
dentro da cabana, eles passariam ao lado sem reparar nela e já não
teria de forçar a conversa e os sorrisos. Arregaçou o vestido, dobrou-
se e meteu-se na cabana. Logo o rosto, o pescoço e os braços se lhe
envolveram de ar quente e abafado como vapor. Não fora aquele
afogo e o cheiro sufocante a pão de centeio, funcho e vime, que lhe
entrecortava a respiração, e poderia esconder-se deliciosamente dos
convidados sob o telhado de palha e, na penumbra, pensar no
pequenino. Que sítio acolhedor, que silêncio.
— Que lugarzinho bonito! — disse a voz feminina. — Vamos
sentar-nos aqui, Piotr Dmítritch.
Olga Mikháilovna espreitava pela fenda entre duas varas. Viu o
marido Piotr Dmítritch e a convidada Liúbotchka Scheller, menina
de dezassete anos que terminara havia pouco o colégio. Piotr
Dmítritch, com o chapéu para a nuca, lânguido e pregui-çoso por ter
bebido muito ao almoço, andava em passo gingado ao longo da sebe
e varria com um pé o feno, juntando-o num montão; Liúbotchka,
rosada de calor e, como sempre, bonitinha, estava parada, com as
mãos atrás das costas, e seguia os movimentos do corpo grande e
bonito dele.
Olga Mikháilovna sabia que as mulheres gostavam do seu marido e
... não lhe agradava vê-lo junto das outras mulheres. Nada havia de
especial no facto de Piotr Dmítritch juntar preguiçosamente o feno
num monte para se sentar com a Liúbotchka e tagarelarem sobre
insignificâncias; nada havia também de especial no facto de a
bonitinha Liúbotchka olhar meigamente para ele; mesmo assim,
Olga Mikháilovna sentiu-se agastada com o marido e sentia agora
medo e prazer por poder ouvir o que diziam.
— Sente-se, meu encanto — disse Piotr Dmítritch, acomodando-se
no feno e espreguiçando-se. — Isso, assim. Vá, conte-me alguma
coisa.
— Queria! Eu a contar e o senhor a adormecer.
— Adormecer, eu? Allah kerim! Poderia lá adormecer quando
estão a olhar para mim esses olhinhos?
Também nas palavras do marido e no facto de, na presença de uma
convidada, se estar a refastelar com o chapéu para a nuca nada podia
haver de especial. Era mimado pelas mulheres, sabia que gostavam
dele, e ganhara um tom especial de tratar com elas que, toda a gente
lhe dizia, lhe ficava bem. Com Liúbotchka estava a comportar-se
como com todas as outras. Mesmo assim, Olga Mikháilovna tinha
ciúmes.
— Diga-me, por favor - começou Liúbotchka depois de algum
silêncio -, é verdade o que dizem, que tem um processo judicial em
cima?
— Eu? Sim... agora faço parte do clube dos celerados, minha linda.
— Mas porquê?
— Por nada, é mais ... uma questão política do que outra coisa,
simplesmente — bocejou Piotr Dmítritch. - A luta entre a esquerda e
a direita. Eu, um obscurantista e um rotineiro, atrevi-me a utilizar
num papel oficial umas expressões contra os in-tocáveis Gladstones
que são os nossos juízes de paz Kuzmá Grigórievitch Vostriakov e
Vladímir Pávlovitch Vladímirov.
Piotr Dmítritch voltou a bocejar e continuou:
— Entretanto, no nosso sistema um indivíduo pode referir-se
negativamente ao sol, à lua, ao que quiser, mas ai de quem in-
comode os liberais! Deus nos livre! O liberal é aquela porcaria de
cogumelo seco que, quando lhe tocamos sem querer com o dedo, se
desfaz e nos sufoca com uma nuvem de poeira.
— Mas o que aconteceu?
— Nada de especial. O fogo foi ateado por uma ninharia sem
importância. Um mestre-escola, personalidade mirrada de origem
eclesiástica, apresenta a Vostriakov uma queixa contra um
taberneiro, acusando este de insulto verbal e de vias de facto num
lugar público. Por todos os indícios, tanto o mestre-escola como o
taberneiro estavam bêbados como uns sapateiros e portaram-se em
igual medida de modo muito feio. Mesmo que tenha havido insultos,
foram recíprocos. Vostriakov deveria ter multado os dois por
desacatos num lugar público e expulsá-los do gabinete ... e mais
nada. Mas, entre nós, como se passam as coisas? Entre nós, os factos
não vêm em primeiro lugar, mas sim a marca e a etiqueta. O mestre-
escola, seja o canalha que for, tem sempre razão, porque é mestre-
escola; ora, o taberneiro tem sempre culpa, porque é taberneiro e
uma sanguessuga. Vostriakov condenou o taberneiro a prisão, o
taberneiro apelou para o colectivo dos juízes de paz. O colectivo
confirmou solenemente a sentença de Vostriakov. E eu optei por
votar contra, com declaração de voto ... Excedi-me um pouco ... Mais
nada.
Piotr Dmítritch falava calmamente, com uma ironia desdenhosa.
Na realidade, o que o esperava em tribunal preocupava-o muito.
Olga Mikháilovna lembrava-se de que o marido, ao voltar da sessão
em causa, tentava por todos os meios esconder da família que se
sentia muito mal e descontente consigo próprio. Sendo um homem
inteligente, não podia deixar de sentir que a sua «declaração de
voto» fora longe de mais, e a quantas mentiras tivera de recorrer
para esconder de si e dos outros este sentimento! Quantas conversas
desnecessárias, quantos falsos resmungos e risos por causa de coisas
nada engraçadas! Ora, quando soube que lhe intentaram um
processo em tribunal, como que foi atingido de repente pelo cansaço
e pelo desânimo, começou a dormir mal, a ficar mais tempo absorto
à janela tamborilando com os dedos na vidraça. Tinha vergonha de
confessar à mulher que se sentia mal, e esta ia-se agastando ...
— Parece que acabou de fazer uma viagem à província de Poltava?
- perguntou Liúbotchka.
— Sim, estive lá - respondeu Piotr Dmítritch. - Voltei anteontem.
— Aquilo lá é bonito, suponho?
— Bonito. Muito, mesmo. Por acaso, calhou estar lá por alturas da
segado feno, que é o tempo mais poético na Ucrânia. Nós aqui temos
uma casa grande, um jardim grande, muita gente, muita confusão, e
no meio disso tudo nem sequer vemos as ceifas, tudo nos passa
despercebido. Lá, na minha granja, tenho sessenta jeiras de prados
em campo aberto: em qualquer janela que me ponha, vejo os
ceifeiros. Trabalham no prado, trabalham no jardim, não há visitas,
não há confusão, e então, mesmo sem querer, assistimos a tudo,
vemos a sega do feno, ouvimo-la, sentimo-la. No quintal e nos
quartos cheira a feno, desde o nascer ao pôr do sol ouvimos a
cegarrega das gadanhas. No geral, a Ucrânia é uma terra simpática.
Pode não acreditar, mas quando eu bebia água do poço tirada pela
cegonha ou a vodka intragável das tabernas judias, quando no
silêncio do anoitecer me chegavam aos ouvidos os sons do violino e
do pandeiro ucranianos, era possuído por uma ideia encantatória -
retirar-me para a minha granja e viver lá até ao fim dos meus dias,
longe destas sessões do tribunal, destas conversas inteligentes,
destas mulheres a filosofarem, destes almoços intermináveis...
Piotr Dmítritch não mentia. Estava de facto em baixo, apetecia-lhe
mesmo descansar de tudo. Aliás, viajara para a Poltava só para não
ver o seu gabinete, a criadagem, os amigos e conhecidos, tudo o que
lhe lembrasse o seu amor-próprio ferido e os seus erros.
De repente, Liúbotchka saltou do lugar, aterrorizada e a agitar as
mãos.
— Ai, uma abelha, uma abelha! — assustou-se. - Vai-me ferrar!
— Calma, não ferra! - disse Piotr Dmítritch. - Ora vejam lá a
medricas!
— Não, não, não! — gritou Liúbotchka, e foi-se embora
rapidamente, voltando repetidas vezes a cabeça com os olhos na
abelha.
Piotr Dmítritch ia atrás dela e olhava para a rapariga com
enternecimento e tristeza. Talvez, ao olhar assim, pensasse na sua
granja, na solidão e — quem sabe? - talvez pensasse ainda como seria
bom e docinho estar na granja com esta miúda como mulher -
jovenzinha, pura, não estragada pelos cursos femininos nem
grávida...
Quando as vozes e os passos se calaram, Olga Mikháilovna saiu da
cabana e dirigiu-se para casa. Tinha vontade de chorar, tinha muitos
ciúmes. Compreendia que Piotr Dmítritch estava cansado,
descontente consigo próprio, envergonhado, e quando estamos
envergonhados, escondemo-nos dos íntimos e abrimo-nos com os
estranhos; também era claro para ela que a Liúbotchka não
representava perigo, tal como acontecia com todas as mulheres que
estavam agora a tomar o café lá em casa. Mas, no geral, tudo lhe
parecia insondável, estúpido, assustador, e que metade de Piotr
Dmítritch já não lhe pertencia...
— Ele não tem o direito! — murmurava, tentando encontrar um
sentido para os seus ciúmes e para o desgosto que lhe causava o
marido. — Não tem esse direito. Vou dizer-lhe tudo, tudo!
Decidiu ir ter de imediato com o marido e dizer-lhe tudo na cara:
era repugnante, infinitamente repugnante que mulheres estranhas
gostassem dele e ele próprio fizesse tudo para isso, como se fosse um
maná do céu; era injusto e desonesto oferecer a estranhos aquilo que
por direito pertencia à mulher dele, esconder da mulher a sua alma e
a sua consciência para a mostrar à primeira cara linda que lhe
aparecesse à frente. Que mal lhe tem feito a mulher? De que é
culpada? Ela, afinal, há muito que está farta das suas mentiras: ele
passa a vida a exibir-se, a fazer-se de galante, a dizer o contrário do
que pensa, a tentar parecer aquilo que não é e a não ser aquilo que
deve. Porquê essa falsidade? É de homem decente? Ao mentir,
insulta-se a si mesmo e àqueles a quem mente, e não tem respeito
por aquilo sobre que mente. Ao galantear daquela maneira, ao
requebrar-se à mesa dos juízes, ao fazer discursos durante o almoço
sobre as prerrogativas do poder só para aborrecer o tio, será que não
compreende que está a desrespeitar por completo o tribunal, a si
mesmo, a todos os que o vêem e ouvem?
Ao sair para a álea grande, Olga Mikháilovna deu ao rosto a
expressão de quem terá saído para tratar de coisas da casa. No
terraço, os homens bebiam licor e debicavam bagas; um deles, juiz de
instrução gordo e idoso, galhofeiro e brincalhão, contava pelos vistos
uma anedota obscena porque, ao ver a dona de casa, levou a mão aos
lábios grossos, esbugalhou os olhos e dobrou os joelhos. Olga
Mikháilovna não gostava dos funcionários públicos distritais. Não
lhe agradavam as suas mulheres desajeitadas e cerimoniosas, os
mexericos, as visitas constantes, a maneira como lisonjeavam o
marido, a quem no fundo todos eles odiavam. Agora que eles estava
ali a beber depois do opíparo almoço e não pensavam em ir-se
embora tão cedo, sentia que a presença deles a cansava até à
angústia, mas, para se mostrar amável, sorriu com simpatia para o
juiz de instrução e ameaçou-o risonhamente com o dedo. Atravessou
o salão e a sala de estar sempre a sorrir e com ar de quem vai dar
algumas ordens e organizar qualquer coisa. «Queira Deus que
ninguém me faça parar!» - pensava, mas obrigou-se a parar a si
própria na sala de estar, por delicadeza, para ouvir um jovem que
tocava piano; passado um minuto gritou: «Bravo, bravo, Monsieur
Georges!» e, batendo duas vezes palmas, seguiu.
Foi encontrar o marido no gabinete. Estava sentado à mesa a
pensar nalguma coisa, o rosto pensativo, severo, culpado. Não era o
mesmo Piotr Dmítritch que discutira durante todo o almoço e que os
convidados conheciam, era outro homem - fatigado, culpado,
descontente consigo, o homem que só a mulher dele conhecia. Pelos
vistos, fora ao gabinete buscar cigarros. Em frente dele estava uma
cigarreira aberta, cheia, e tinha ainda uma mão metida na gaveta.
Tinha estado a tirar os cigarros e quedara-se imóvel nessa posição.
Olga Mikháilovna teve pena dele. Era claro como água que o
homem se afligia e andava por ali como uma alma penada, tal-vez em
luta consigo próprio. Olga Mikháilovna aproximou-se em silêncio da
mesa e, querendo mostrar-lhe que se tinha es-quecido da discussão
ao almoço e já não estava zangada, fechou a cigarreira e meteu-a no
bolso lateral do casaco do marido.
«O que lhe digo? - pensava. - Digo-lhe que a falsidade é como um
bosque: quanto mais nos aprofundamos nele, tanto mais difícil se
toma sair. Digo-lhe: foste levado pelo teu falso papel, foste longe de
mais; insultaste pessoas que gostavam de ti e não te fizeram mal
nenhum. Vai, pede-lhes desculpa, ri-te de ti próprio, ficarás melhor.
E, se quiseres a tal calma e solidão, então vamo-nos embora daqui,
mas juntos.»
Cruzando os olhos com os da mulher, Piotr Dmítritch imprimiu
logo no rosto a expressão com que estivera no almoço e no jardim -
indiferente e levemente irónica -, bocejou e levantou-se.
— Já passa das cinco - disse olhando para o relógio. - Nem que os
convidados condescendam em ir-se embora às onze, ainda temos de
aguentar seis horas. Engraçado, não haja dúvida!
E, assobiando qualquer coisa, saiu do gabinete devagar, com o seu
habitual andar imponente. Ouvia-se como ele, nas suas passadas
arrogantes, ia através do salão, depois da sala de estar, como soltou o
seu riso importante ao ver qualquer coisa, como disse ao jovem que
tocava piano: «Bra-o! Bra-o!» Pouco depois, deixaram de se lhe ouvir
os passos: pelos vistos saiu para o jardim. E já não eram ciúmes nem
desgosto que sentia Olga Mikháilovna, mas um verdadeiro ódio por
aquelas passadas, por aquele riso insincero, por aquela voz. Foi à
janela e olhou para o jardim. Piotr Dmítritch passeava-se pela
alameda. Com uma mão metida no bolso e dando estalidos com a
outra, empinando levemente a cabeça para trás, andava com a
mesma sobranceria, o passo gingado e um ar de estar muito satisfeito
consigo próprio, com o almoço, com a digestão, com a natureza...
Apareceram na álea grande dois pequenos colegiais, filhos da
proprietária rural Tchijévskaia, e o seu jovem preceptor, um
universitário de uniforme branco e calças muito justas. Ao chegarem
junto de Piotr Dmítritch, as crianças pararam e devem ter-lhe dado
os parabéns pelo seu dia de anjo(24). Movendo elegantemente os
ombros, Piotr Dmítritch puxou as bochechas das crianças e estendeu
com indiferença a mão ao estudante, sem olhar para ele. Pelos vistos,
o estudante falou do bom tempo e deve tê-lo comparado com o de
Petersburgo, porque Piotr Dmítritch disse muito alto e num tom
mais adequado para se dirigir a um oficial de justiça ou a uma
testemunha do que a um convidado:
— O quê? Com que então está frio na vossa Petersburgo? Pois aqui,
na nossa santa terra, paizinho, é tudo uma mistura benéfica de bons
ares e abundância de frutos terrenos. Hein? Não é?
E, metendo uma mão no bolso e dando estalidos com a outra,
seguiu o seu caminho. Antes de o marido desaparecer por trás das
aveleiras, Olga Mikháilovna, perplexa, não tirava os olhos da nuca
dele. Onde é que um homem de trinta e quatro anos arranjou aquele
andar imponente de general? Onde aprendeu ele a lançar os pés
daquele modo sólido e bonito? Donde lhe provém aquela vibração
autoritária da voz, todos aqueles «O quê?», «po-ois» e «paizinho»?
Olga Mikháilovna lembrou-se de como ela, nos primeiros meses de
casada, para não se aborrecer sozinha em casa, ia à cidade assistir às
sessões do colectivo de juízes de paz, onde Piotr Dmítritch,
substituindo o padrinho dela, conde Aleksei Petróvitch, fazia as vezes
de presidente. No cadeirão do presidente, de uniforme e colar ao
pescoço, mudava radicalmente. Os gestos majestosos, a voz
ribombante, «O quê?», «po-ois», o tom desdenhoso... Tudo o que
nele era normal e humano, familiar, tudo o que Olga Mikháilovna
estava habituada a ver nele em casa, desaparecia ali com aquele ar
majestoso, e no cadeirão não se sentava Piotr Dmítritch mas outro
sujeito qualquer a que toda a gente chamava senhor presidente. A
consciência de que era ele o poder impedia-o de ficar quieto no lugar,
achava maneira de tocar a campainha, de lançar um olhar severo
para o público, de gritar... E donde lhe vinha a surdez e a miopia
súbitas, pois começava a ouvir e a ver mal e, franzindo
majestosamente a cara, exigia que falassem mais alto e se
aproximassem mais da mesa? Da altura da sua majestade distinguia
mal os rostos e os sons, e se nesses momentos se aproximasse dele a
própria Olga Mikháilovna, seria capaz de gritar-lhe também: «O seu
nome?»
Tratava por «tu» as testemunhas camponesas, gritava ao público
de tal modo que a sua voz se ouvia na rua, e era inadmissível como se
portava com os advogados. Quando era a vez de intervir um
advogado público, Piotr Dmítritch virava-se um pouco de lado no
cadeirão, mostrando-lhe o perfil, e semicerrava os olhos postos no
tecto, querendo dizer com isso que o advogado não fazia ali falta
nenhuma e que ele, Piotr Dmítritch, não o reconhecia nem ouvia;
ora, se falava um privado mal vestido, Piotr Dmítritch era todo
ouvidos, media-o com um olhar irónico, aniquilador: vejam só que
advogados nós temos hoje em dia! «O que quer exactamente dizer
com isso?» — interrompia-o. Se um advogado pretensioso
empregava uma palavra estrangeira e, por exemplo, em vez de
«fictif» pronunciava «factice», Piotr Dmítritch animava-se de
repente e perguntava: «O quê? Como? Factice? E o que pretende
significar com isso?» Depois observava sentenciosamente: «Não
utilize palavras que não compreende.» O advogado acabava o
discurso, afastava-se da barra vermelho como uma papoila e
inundado de suor, e Piotr Dmítritch, sorrindo contente de si,
celebrando a vitória, encostava-se ao espaldar do cadeirão. Na sua
maneira de tratar os advogados imitava um pouco o conde Aleksei
Petróvitch quando este, por exemplo, dizia: «Defesa, cale-se um
bocadinho!», mas ao conde as coisas saíam de um modo
benevolentemente senil, natural, e a Piotr Dmítritch de modo
bastante grosseiro e forçado.

Ouviram-se aplausos. O jovem acabara de tocar. Olga Mikháilovna


lembrou-se dos convidados e apressou-se a entrar na sala de estar.
— Ouvi-o com imenso prazer — disse aproximando-se do piano. —
Com imenso prazer. Tem um talento admirável! Mas não acha que o
nosso piano está desafinado?
Neste momento entraram na sala de estar os colegiais e o
estudante-preceptor.
— Meu Deus, o Mítia e o Kólia! — disse Olga Mikháilovna
arrastando as palavras e indo alegremente ao encontro deles. — Que
grandes! Quase não vos reconhecia! Mas onde está a vossa mamã?
— Parabéns pelo dia do seu aniversariante — começou o estudante
sem constrangimento - , desejo-lhe toda a felicidade do mundo.
Ekateriana Andréevna manda os parabéns e pede desculpa. Está um
pouco mal disposta.
— Que má! E eu que esperei por ela todo o dia! Há muito tempo
que chegou de Petersburgo? — perguntou ao estudante.
— Como está o tempo lá? - e, sem esperar pela resposta, olhou
carinhosamente para os colegiais e repetiu: — Como cresceram!
Parece que ainda ontem vinham cá com a ama e já colegiais! O velho
envelhece, o novo cresce ... Já almoçaram?
— Ah, não se preocupe, por favor! - disse o estudante.
— Então , não almoçaram?
— Por amor de Deus, não se preocupe!
— Com certeza têm fome, não? — perguntou Olga Mikháilovna, e a
voz saiu-lhe sem querer grosseira, ríspida, impaciente, desgostosa,
mas tossiu, sorriu, corou. - Que grandes estão!
— disse meigamente.
— Não se preocupe, por favor! — repetiu o estudante.
O estudante instava-a a que não se preocupasse, os colegiais
calavam-se; todos três estariam pelos vistos com fome. Olga
Mikháilovna levou-os para a sala de jantar e mandou que Vassíli lhes
pusesse a mesa.
— Que mazona é a vossa mamã! — dizia ela, sentando-os à mesa. -
Esqueceu-se de mim. Má, má, má... Podem dizer-lhe isso. Em que
faculdade anda? - perguntou ao estudante.
— Medicina.
— Ah sim? E eu que tenho um fraquinho pelos médicos, imagine.
Tenho muita pena que o meu marido não seja médico. Olhe que é
preciso muita coragem para fazer operações, abrir
cadáveres! Que horror! Não tem medo? Eu morria de medo! Vai
beber vodka, suponho?
— Não se preocupe, por favor.
— Depois de uma viagem é necessário beber. Até eu, que sou
mulher, às vezes bebo. O Mítia e o Kólia beberão málaga. É um vinho
levezinho, não tenham medo. Oh, que grandalhões, palavra de
honra! Já se pode casá-los.
Olga Mikháilovna falava sem parar. Sabia por experiência que, no
trato com os convidados, é muito mais fácil falar do que ouvir.
Quando falamos, não precisamos de concentrar a atenção, de
inventar respostas, de mudar a expressão do rosto. Mas Olga
Mikháilovna descuidou-se, fez uma pergunta séria, e o estudante
começou a falar prolixamente, sendo ela obrigada a ouvi-lo. O
estudante sabia que ela frequentara em tempos os cursos femininos,
por isso assumia o ar sério que achava adequado para ela.
— Em que faculdade está? - perguntou ela, esquecendo-se de que
já tinha feito essa pergunta.
— Medicina.
Olga Mikháilovna lembrou-se de repente de que já há muito tempo
não dava atenção às senhoras.
— Sim? Vai então ser doutor! — disse, levantando-se. - Ainda bem.
Eu própria lamento não ter feito o curso de medicina. Muito bem,
estejam à vontade meus senhores, almocem e depois vão até ao
jardim, que eu apresento-lhes as meninas.
Saiu e olhou para o relógio: admirou-se por o tempo correr tão
devagar, pensando horrorizada que ainda faltavam seis horas para a
meia-noite, hora a que os convidados se despediriam. Como matar
tanto tempo? Que frases pronunciar? Como tratar o marido?
Não estava ninguém no terraço nem na sala de estar. Todos os
convidados se espalhavam pelo jardim.
«Será preciso propor-lhes um passeio pela mata de bétulas ou um
passeio de barco - pensava Olga Mikháilovna, alargando o passo para
o campo de croquet, donde vinham vozes e risos. — E os velhos que
joguem às cartas ...»
Do campo de croquet vinha o lacaio Grigóri com garrafas vazias
nas mãos.
— Onde estão as senhoras? — perguntou-lhe ela.
— Nas framboesas. O amo também.
— Mas, deuses do céu! — gritava alguém com raiva no campo de
croquet. — Já lhe disse mil vezes que para conhecer os búlgaros é
preciso vê-los! Não se pode julgá-los pelos jornais!
Fossem aqueles gritos, fosse qualquer outra coisa, o certo é que
Olga Mikháilovna sentiu de repente uma espécie de fraqueza em
todo o corpo, sobretudo nas pernas e nos ombros. De repente,
invadiu-a o desejo de não falar, não ouvir, não mexer.
— Grigóri - disse debilmente e com esforço —, quando servir o chá
ou outra coisa qualquer, por favor não se dirija a mim, não me faça
perguntas, não me fale de nada... Faça tudo sozinho e ... não bata
com os pés. Peço-lhe ... É que não posso, porque...
Não acabou a frase e seguiu na direcção do campo de croquet, mas,
como pelo caminho se lembrasse das senhoras, desviou para o
framboeseiro. O céu, o ar e as árvores continuavam carrancudos e
prometiam chuva; estava calor, o ar sufocante; grandes bandos de
gralhas, pressentindo tempestade, voavam aos gritos por cima do
jardim. Quanto mais perto da horta, mais desarranjadas, escuras e
estreitas se tomavam as áleas; numa delas, escondida entre o maciço
espesso de pereiras e macieiras bravas, carvalhotos e lúpulo, nuvens
de minúsculas moscas pretas rodearam Olga Mikháilovna; tapou o
rosto com as mãos e começou a forçar a imaginação na pequenina
criatura... E no que imaginava entravam Grigóri, Mítia, Kólia, as
caras dos mujiques que tinham vindo de manhã apresentar os
parabéns ao amo...
Ouviu passos, abriu os olhos. Vinha ao seu encontro, em passo
rápido, o tio Nikolai Nikoláitch.
— És tu, querida? Ainda bem ... - começou o tio, resfolegando. - Só
te quero dizer duas palavras... - Limpou o queixo vermelho e rapado
com o lenço, depois deu de repente um passo atrás, abanou os braços
e esbugalhou os olhos. — Diz-me, mãezinha, até quando vai isto
continuar? - falava muito de-pressa, ofegante. — Pergunto-te eu:
haverá limites para isto? Já sem falar de que as convicções policiais
dele desmoralizam a sociedade, de que ofende em mim e em
qualquer pessoa que pense tudo o que é sagrado, tudo o que há de
melhor, já sem fa-lar disso, ao menos que seja bem-educado! Mas o
que é isto? Ele berra, ele rosna, ele requebra-se todo, faz figura de
Bonaparte, não deixa ninguém dizer uma palavra ... Mas que diabo é
isso? E depois aqueles gestos majestosos, o riso de general, o tom
condescendente! Mas, permita-se-me a pergunta, quem é ele?
Pergunto-te: quem é ele? O marido da sua mulher, um pequenino
conselheiro titular que teve a sorte de se casar com uma rica!
Junkers e arrivistas há-os por aí aos pontapés! É um personagem-
tipo das obras de Chedrin(25)! Juro por Deus que, das duas, uma: ou
ele sofre de megalomania, ou então quem tem razão é essa velha
ratazana, esse cheché do conde Aleksei Petróvitch, quando diz que
hoje em dia as crianças e os jovens se tornam adultos muito tarde e
brincam aos cocheiros e aos generais até aos quarenta anos!
— É verdade, é bem verdade ... — concordou Olga Mikháilovna. —
Deixa-me passar.
— Agora pensa bem, tu, aonde isto vai parar! — continuou o tio
barrando-lhe o caminho. — Como vai acabar este jogo ao
conservadorismo e aos generais? Já tem um processo em cima! Um
processo! Até estou contente! Gritou e desvairou-se tanto que foi
parar ao banco dos réus. E não é um tribunal de comarca qualquer, é
a câmara judicial! Parece impossível! Não se pode inventar nada
pior! E, depois, estragou as relações com todos! Hoje é o dia de anjo
dele, e vê lá se apareceram o Vostriakov e o Iákhontov, o Vladímirov,
o Chevud, o conde... E quer-me parecer que não há ninguém mais
conservador do que o conde Aleksei Petróvitch, mas olha, nem ele
veio. E nunca mais virá. Vais ver que não aparece cá mais!
— Ah, meu Deus, mas o que tenho eu a ver com isso? - perguntou
Olga Mikháilovna.
— O que tens a ver? És a mulher dele! És inteligente, fizeste um
curso superior, podes fazer dele um funcionário honesto!
— Nos cursos não ensinam a maneira de influenciar pessoas
difíceis. Além disso, parece que agora tenho de pedir desculpa a
todos vós por ter estudado nos cursos! - disse bruscamente Olga
Mikháilovna. - Ouve, tio, se alguém, dias a fio, tocar ao pé de ti as
mesmas notas, não aguentas e foges. Pois eu, durante um ano
inteiro, ouço dias a fio a mesma música, a mesma conversa. Tenham
piedade de mim, senhores, francamente!
O tio pôs uma cara muito séria, depois olhou perscrutadoramente
para ela e entortou a boca num sorriso irónico.
— Ah, é assim! - cantarolou a arremedar uma velha. - Peço
desculpa! - disse ele, e fez uma vénia cerimoniosa. - Se tu própria
caíste sob a influência dele e mudaste de convicções, já podias ter
dito. Peço desculpa!
— Sim, mudei de convicções! - gritou ela. - Estás contente?
— Peço desculpa!
O tio fez uma última vénia cerimoniosa, um pouco torta, e,
encolhendo-se todo, fez um rapapé e foi-se.
«Parvo - pensou Olga Mikháilovna. - Para casa é que ele devia ir.»
Encontrou as senhoras e os jovens na horta e junto às
framboeseiras. Uns comiam framboesas, outros, já fartos de
framboesas, vaguevam pelos canteiros de morangos ou procuravam
ervilhas. Um pouco afastado das framboesas, ao lado de uma
macieira ramalhuda com suportes a toda a volta feitos de estacas de
uma cerca antiga, Piotr Dmítritch segava erva. O cabelo caía-lhe para
a testa, a gravata tinha-se desatado, a corrente do relógio soltara-se
da presilha. Cada passo dele e cada gadanhada mostravam
habilidade e grande força física. Ao lado dele estavam Liúbotchka e
as filhas do vizinho, o coronel Bukréev, Natália e Valentina, ou, como
toda a gente lhes chamava, Nata e Vata, loiras anémicas e
doentiamente gordas, dos seus dezasseis e dezassete anos, vestidas
de branco, incrivelmente parecidas uma com a outra. Piotr Dmítritch
ensinava-as a segar com a gadanha.
— É muito fácil... - dizia ele. - O essencial é saber pegar na gadanha
e não se entusiasmar, quer dizer, não aplicar mais força do que a
necessária. Assim... Não quer experimentar? - sugeriu a Liúbotchka.
- Vamos lá a ver!
Liúbotchka pegou desajeitadamente na gadanha, corou de repente
e riu-se.
— Não se acanhe, Liubov Aleksándrovna! - gritou Olga
Mikháilovna bastante alto, para que a pudessem ouvir todas as
senhoras e soubessem que estava com elas. - Não se acanhe! É
preciso aprender! Se se casar com um adepto de Tolstói(26), ele vai
obrigá-la a segar o feno.
Liúbotchka levantou a gadanha, mas voltou a dar-lhe o riso e, sem
forças por causa do riso, deixou-a baixar. Sentia vergonha e prazer
por falarem com ela como com uma adulta. Nata, sem sorrir e sem se
envergonhar, com a cara muito séria e fria, pegou na gadanha e
emaranhou-a na erva; Vata, também sem sorrir, séria e fria como a
irmã, pegou silenciosamente na gadanha e espetou-a na terra. Depois
desta façanha, as irmãs deram-se as mãos uma à outra e, caladas,
foram-se para as framboesas.
Piotr Dmítritch ria e brincava como um garoto, e este estado de
espírito infantil e traquinas tomava-o bondoso e ficava-lhe melhor do
que qualquer outro. Olga Mikháilovna gostava dele assim. Mas as
suas rapaziadas duravam pouco. Também desta vez, depois de ter
brincado com a gadanha, achou necessário dar à brincadeira um
toque de seriedade.
— Quando corto o feno, a sério que me sinto mais saudável e mais
normal - disse. - Se me obrigassem a viver apenas uma vida
intelectual, acho que enlouquecia. Sinto que não nasci homem culto!
Para mim, o melhor seria ceifar, lavrar, tratar dos cavalos ...
E começou entre Piotr Dmítritch e as senhoras uma conversa
sobre as vantagens do trabalho físico, sobre cultivo, depois sobre a
nocividade do dinheiro, sobre a propriedade. Ouvindo o marido,
Olga Mikháilovna, por qualquer razão, lembrou-se do seu dote.
«É verdade, há-de chegar a altura — pensou ela —, em que não me
perdoará eu ser mais rica do que ele. É muito orgulhoso, tem muito
amor-próprio.É capaz de começar a odiar-me por ser tão devedor de
mim.»
Parou ao pé do coronel Bukréev, que estava a comer framboesas e
a participar também na conversa.
— Façam o favor - disse o coronel, deixando passar Olga
Mikháilovna e Piotr Dmítritch. - Estas aqui estão madurinhas ... Ora
bem, na opinião de Proudhon a propriedade é um roubo - continuou,
alçando a voz. — Mas eu, confesso, não reconheço Proudhon nem o
considero filósofo. Para mim, os franceses não são autoridade, que
vão com Deus!
— Quanto aos Proudhons e a todos esses Buckles, sou um
ignorante — disse Piotr Dmítritch. — Em tudo o que seja filosofia,
dirijam-se a ela, à minha esposa. Estudou nos cursos femininos e
aprofundou todos esses Schopenhauers e Proudhons ...
De novo, um grande enfado se apoderou de Olga Mikháilovna.
Meteu outra vez através do jardim, por um carreiro estreitinho, ao
longo de macieiras e pereiras, outra vez com o ar de quem tinha
tinha de tratar de assuntos importantes. Aqui está, a izbá do
jardineiro ... Nos degraus da soleira estava sentada Varvara, a
mulher do jardineiro e os seusquatro filhotes pequenos, todos de
grandes cabeças e cabelo rapado. Varvara também estava de
esperanças e contava parir lá pelo dia do profeta Iliá(27).
Cumprimentando-a, Olga Mikháilovna deixou-se ficar a olhar
silenciosamente para ela e para as crianças e perguntou:
— Então, sentes-te bem?
— Não estou mal...
Caiu o silêncio. As duas mulheres pareciam compreender-se uma à
outra sem conversas.
— Ter o primeiro bebé mete medo — disse Olga Mikháilovna,
depois de ter pensado um pouco. - Dá-me ideia de que não vou
aguentar, que vou morrer.
— Eu também cismava assim, mas olhe como estou aqui viva...
Pensamos cada coisa!
Varvara, uma experiente já na quinta gravidez, olhava para a
patroa um pouco de alto e falava-lhe em tom sentencioso; Olga
Mikháilovna, involuntariamente, sentia a autoridade dela; sentia
necessidade de falar com ela dos seus medos, do bebé, das sensações,
mas receava que essas coisas parecessem insignificantes e ingénuas a
Varvara. Então calava-se, à espera que fosse Varvara a falar.
— Ólia, vamos embora! - gritou-lhe do framboesal Piotr Dmítritch.
Olga Mikháilovna gostaria de ficar ali, assim calada, a olhar para
Varvara, à espera. Ficaria assim de bom grado até à noite. Mas era
preciso ir. Mal se afastou da izbá, já corriam ao seu encontro
Liúbotchka, Vata e Nata. As irmãs pararam petrificadas quando
estavam a uma braça dela; Liúbotchka chegou-se a ela e pendurou-
se-lhe ao pescoço.
— Queridinha! Lindinha! A mais preciosa! - metralhou, beijando-
lhe as faces e o pescoço. - Vamos tomar chá na ilha.
— Na ilha! Na ilha! — disseram em uníssono as iguais Vata e Nata ,
sem sorrir.
— Mas, queridas, vai chover.
— Não vai chover, não vai chover! - gritou Liúbotchka fazendo uma
careta chorosa. — Toda a gente quer! Querida, linda, vá lá!
— Toda a gente se está a preparar para tomar chá na ilha - disse
Piotr Dmítritch, aproximando-se. - Vai dar as tuas ordens ... Vamos
todos nos barcos, mas quanto aos samovares e ao resto, é preciso
mandá-los com os criados na carruagem.
Deu o braço à mulher e foram-se juntos. Olga Mikháilovna sentiu
vontade de dizer ao marido alguma coisa desagradável, cáustica,
mesmo mencionar o dote, quanto mais forte melhor. Pensou e disse:
— Por que não terá vindo o conde Aleksei Petróvitch? Que pena!
— Estou muito contente que não tenha vindo — mentiu Piotr
Dmítritch. — Estou farto desse bobo.
— Mas antes de almoço estavas à espera dele com tanta
impaciência!

Meia-hora depois, os convidados estavam todos ao pé das estacas a


que se atavam os barcos. Todos falavam muito, se riam e, com tanta
azáfama e burburinho, não havia meio de se acomodarem nas
embarcações. Três dos barcos já estavam a abarrotar, dois
continuavam vazios porque, destes dois, se extraviaram as chaves e
não paravam de ir mensageiros à cata delas do rio para a casa. Uns
diziam que era o Grigóri quem tinha as chaves, outros que era o
feitor, outros opinavam que se chamasse o ferreiro para rebentar os
cadeados ... Falavam todos ao mesmo tempo, interrompendo-se,
cada qual tentando gritar mais alto que os outros. Piotr Dmítritch
andava impaciente pela margem e gritava:
— Diabo de coisa esta! Já disse que as chaves têm de ficar sempre
no peitoril do vestíbulo! Quem se atreveu a tirá-las de lá? O feitor, se
quiser, pode sempre arranjar um barco só para ele!
Finalmente, acharam-se as chaves. Então, deu-se pela falta de dois
remos. Raios, grande confusão outra vez. Piotr Dmítritch, farto de
palmilhar, saltou para dentro de uma canoa estreita e comprida,
talhada de um tronco de álamo e, aos baldões, por pouco não caindo
à água, desatracou. Atrás dele começou a vogar outra embarcação,
depois outra, no meio de grandes risos e guinchos das meninas.
O céu branco de nuvens, as árvores ribeirinhas, os juncos, os
barcos, os remos e as pessoas reflectiam-se na água como num
espelho; o abismo infinito do fundo do rio, por debaixo dos bar-cos,
também era céu e voo das aves. Uma das margens, onde se erguia a
casa grande, era alta, abrupta, toda plantada de árvores; na outra,
plana, estendiam-se a lezíria verde e vasta e brilhavam enseadas. Os
barcos navegaram umas cinquenta braças rio adentro e no outro
lado, por trás dos salgueiros tristemente inclinados ao longo da
margem rasa, já se entreviam izbás, uma manada de vacas; já se
ouviam cantigas, uma gritaria bêbada, sons de concertina.
Aqui e ali passavam botes de pescadores que iam pôr as redes para
a noite. Num dos botes, músicos amadores com os seus violinos e
violoncelos de fabrico caseiro tocavam uma música pândega.
Olga Mikháilovna estava ao timão. Sorria com simpatia e, para
entreter os convidados, falava muito, não deixando de deitar o rabo
do olho para o marido . Este ia sozinho na sua canoa de tronco, à
frente de todos, de pé, remando só com um remo. A sua embarcação
levezinha de proa afiada, a que todos os convidados chamavam de
«facínora» mas a quem Piotr Dmítritch, sabe-se lá porquê, chamava
«Penderáclia», andava depressa; tinha um ar vivo e malicioso e, ao
que parecia, odiava o pesado Piotr Dmítritch e só esperava a ocasião
de lhe fugir de baixo dos pés. Olga Mikháilovna lançava olhares ao
marido e repugnava-a a boa aparência dele, tão apreciada por todos,
repugnava-a a sua nuca, aquela pose, a sua familiaridade de trato
com as senhoras, odiava todas as mulheres que iam no barco, enchia-
se de ciúmes e, ao mesmo tempo, estremecia a cada instante com
medo de que a miserável piroga se virasse e fizesse uma desgraça.
— Cuidado, Piotr! - gritava, e o coração dela desfalecia de medo. -
Senta-te! Já sabemos que és valente!
Também as pessoas que iam com ela no barco a inquietavam.
Tudo gente normal, gente boa, ela sabia, pessoas como há tan-tas,
mas agora cada uma daquelas caras lhe parecia estranha e malévola.
Em cada uma só via falsidade. «Por exemplo aquele, o jovem -
pensava - , o do cabelo castanho que vai a remar, de óculos dourados
e barbicha bonita, aquele é um menino da mamã rico, farto, sempre
feliz, a quem toda a gente considera honesto, livre pensador, homem
progressista. Ainda não fez um ano que acabou a universidade e já
diz: "Nós, representantes da sociedade rural". Há-de passar mais um
ano e, como muitos outros, já se aborrecerá, fugirá para Petersburgo
e, para justificar a sua fuga, dirá por todo o lado que a administração
rural não presta e que foi enganado. Do outro barco, a jovem mulher
não tira os olhos dele e acredita que ele é mesmo um
"representante", do mesmo modo que, daqui a um ano, acreditará
que a administração rural não presta. E aquele senhor corpulento,
com a cara cuidadosamente rapada, de chapéu de palha com fita
larga e um charuto caro nos dentes. Esse gosta de dizer: "É tempo de
acabar com as fantasias e deitar mãos à obra!" Tem porcos de
Yorkshire, colmeias de acordo com o método Bútlerov(28), plantações
de colza, ananases, uma fábrica de manteiga e queijo, dupla
contabilidade italiana(29). Contudo, para ir todos os verões para a
Crimeia com a amante, vende no Outono uma parte da floresta para
corte e hipoteca as terras. E ali está também o titi Nikolai Nikoláitch,
muito zangado com Piotr Dmítritch e que mesmo assim não se vai
embora!»
Olga Mikháilovna lançava olhares para os outros barcos e também
só via lá gente esquisita mas sem graça, farsantes ou medíocres.
Lembrou-se de toda a gente que conhecia no distrito e não pôde
encontrar ninguém de quem pudesse dizer ou pensar bem. Todos lhe
pareciam privados de talento, cinzentos, medíocres, limitados, falsos,
sem coração, ninguém dizia o que pensava nem fazia o que queria. O
aborrecimento e o desespero asfixiavam-na; apetecia-lhe deixar de
repente de sorrir, levantar-se e gritar: «Estou farta de todos!» — e
depois saltar do barco e nadar até à margem.
— Meus senhores, vamos rebocar o Piotr Dmítritch! — gritou
alguém.
— A reboque! A reboque! — ecoaram os outros. — Olga
Mikháilovna, reboque o seu marido!
Para tomar a posição de reboque, Olga Mikháilovna, sentada ao
timão, tinha, sem perder um momento, de apanhar com habilidade a
Penderáclia pela corrente da proa. Quando se inclinava, Piotr
Dmítritch franziu o rosto e olhou para ela assustado.
— Vê lá, olha que apanhas frio! — disse.
«Se estás tão preocupado comigo e com o bebé, por que me
torturas?» — pensou Olga Mikháilovna.
Piotr Dmítritch rendeu-se e, não querendo ir a reboque, saltou do
Penderáclia para o barco, já sem isso superlotado, e saltou tão
desajeitadamente que o barco se inclinou e toda a gente soltou um
grito de medo.
«Saltou para impressionar as mulheres — pensou Olga
Mikháilovna. — Sabe que é bonito...»
Começavam a tremer-lhe as mãos e as pernas, pensava que por
causa do desgosto, da tensão e do desconforto que sentia. E, para
esconder dos convidados o tremor, fez um esforço para falar mais
alto, para se rir, mexer...
«Se começar a chorar — pensava — , digo que me doem os dentes
... »
Por fim, os barcos atracaram à ilha da «Boa Esperança».
Chamavam assim a uma pequena península formada pela curva em
ângulo agudo do rio, e era um sítio coberto pela velha floresta de
bétulas, carvalhos, salgueiros e álamos. Debaixo das árvores já
estavam postas as mesas, fumegavam os samovares, Vassíli e Grigóri,
de casacas e luvas brancas de malha, já se atarefavam com a baixela.
Na outra margem, em frente da «Boa Esperança», estacionavam as
carruagens que tinham transportado as coisas. Os cestos e as trouxas
descarregadas estavam agora a ser levados para a ilha num bote
muito parecido à canoa Penderáclia. No bote, a expressão dos rostos
dos lacaios, dos cocheiros e até do mujique era solene,
aniversariante, a expressão que ape-nas as crianças e os criados
costumam ter.
Enquanto Olga Mikháilovna preparava chá e enchia os primeiros
copos, os convidados regalavam-se com o licor de ginja e os doces.
Depois, começou a azáfama habitual dos piqueniques na hora de
servir o chá, tão cansativa para as anfitriãs. Ainda Grigóri e Vassíli
não tinham acabado de servir chá em volta, e já vários copos vazios
eram estendidos a Olga Mikháilovna. Um queria sem açúcar, outro
mais forte, outro mais fraco, outro agradecia. Olga Mikháilovna tinha
de lembrar-se disso tudo e depois gritar: «Ivan Petróvitch, foi o
senhor quem pediu sem açúcar?», ou «Meus senhores, quem pediu
mais fraco?» Mas quem tinha pedido mais fraco ou sem açúcar já
não se lembrava e, no entusiasmo da conversa, pegava no primeiro
copo que lhe calhava. Um pouco mais longe das mesas vagueavam,
como sombras, figuras tristonhas que fingiam procurar cogumelos
ou ler as etiquetas das caixas — eram aqueles para quem tinham
faltado copos. «Já tomou chá»? — perguntava Olga Mikháilovna, e o
interpelado respondia que não se preocupasse e acrescentava: «Eu
espero», quando para a anfitriã seria melhor que os convidados não
esperassem, antes se despachassem.
Uns, embrenhados em conversas, tomavam chá devagar, retendo
os copos uma boa meia-hora; outros, sobretudo os que tinham
bebido muito ao almoço, não se afastavam da mesa e emborcavam
copo atrás de copo, e Olga Mikháilovna mal tinha tempo de lhos
encher. Um jovem brincalhão tomava chá trincando os cubinhos de
açúcar e não parava de dizer: «Por mal dos meus pecados, gosto de
regalar-me com a erva chinesa.» Volta e meia, suspirando fundo,
pedia: «Por favor, mais uma tigelinha!» Bebia muitíssimo chá,
trincava o açúcar com ruído e achava-se engraçado e original, achava
que imitava bem os comerciantes. Ninguém notava que todas as
insignificâncias da tomada do chá eram torturantes para a anfitriã,
aliás, era difícil notá-lo, porque Olga Mikháilovna não deixava de
sorrir com simpatia e de tagarelar.
Ora, sentia-se realmente mal ... Irritavam-na a multidão, os risos,
as perguntas, o brincalhão, os lacaios aturdidos que não tinham
mãos a medir, as crianças a incomodarem à volta da mesa; irritava-a
Vata ser parecida com Nata, Kólia com Mítia, sendo já impossível
saber quem destes tomava chá, quem não tomava. Sentia que o seu
forçado sorriso simpático estava a transformar-se numa expressão
raivosa, e a cada momento parecia-lhe que ia chorar.
— Meus senhores, vem aí chuva! — gritou alguém.
Todos olharam para o céu.
— Sim, realmente, vai chover... — confirmou Piotr Dmítritch, e
limpou a bochecha.
O céu deixou pingar umas gotas, ainda não era a chuva a sé-rio,
mas os convidados largaram o chá e apressaram-se. Primeiro,
queriam ir de carruagem, mas mudaram de ideias e foram para os
barcos. Olga Mikháilovna, com o pretexto de ter de ir mais depressa
para dar umas ordens para o jantar, escusou-se por abandonar a
companhia e ir de carruagem para casa.
Na caleche, deixou, antes de mais, que o rosto lhe descansasse do
sorriso. Atravessou a aldeia com uma expressão raivosa na cara e
com a mesma expressão respondeu às vénias dos mujiques. Chegada
a casa, entrou pela escada de serviço directamente para o seu quarto
e deitou-se na cama do marido.
— Deus do céu - sussurrava — , para que me servem estes
trabalhos forçados. Por que anda aqui esta chusma de gente a fingir
que se diverte? Por que sorrio e minto? Não percebo, não percebo!
Ouviram-se passos e vozes. Tinham chegado os convidados.
«Não quero saber — pensou Olga Mikháilovna. — Vou ficar
deitada um bocado.»
Mas logo entrou no quarto uma criada que disse:
— Minha senhora, Mária Grigórievna quer despedir-se!
Olga Mikháilovna levantou-se de um salto, compôs o penteado e
apressou-se a sair do quarto.
— Mas o que se passa, Mária Grigórievna? — começou, com um
ralho na voz, indo ao encontro de Mária Grigórievna. — Porquê esta
pressa?
— Não posso, querida, não posso! Até já demorei de mais. Tenho
os filhos à espera em casa.
— Sua má! Por que não trouxe as crianças?
— Querida, se não se importar, trago-os cá para a semana, mas
hoje ...
— Ah, claro - interrompeu-a Olga Mikháilovna -, terei muito
prazer! São tão queridos, os seus filhos! Dê-lhes muitos beijinhos, a
todos ... Mas, francamente, olhe que até fico ofendida! Não
compreendo essa pressa toda!
— Não posso, não posso ... Adeus querida. Cuide de si. Ago-ra, no
seu estado...
Beijaram-se. Depois de ter acompanhado a convidada até à
carruagem, Olga Mikháilovna foi para a sala de estar, onde estavam
as senhoras. Já estavam as luzes acesas e os homens sentavam-se
para jogar cartas.

Os convidados começaram a debandar por volta da meia-noite e


um quarto, depois do jantar. À saída estava Olga Mikháilovna, e ia
dizendo:
— Realmente, olhe que devia pôr um xaile! Está a ficar frescote !
Pode apanhar frio!
— Não se preocupe, Olga Mikháilovna! - respondiam os
convidados, acomodando-se. - Adeus! Não se esqueça, fica-mos à
vossa espera! Não falte!
— Xó! - o cocheiro tinha mão nos cavalos.
— Anda, Denis! Adeus, Olga Mikháilovna!
— Dê beijinhos aos miúdos!
A caleche partia e logo desaparecia na escuridão. No círculo
vermelho formado pelo candeeiro dos degraus do patamar de
entrada sobre o caminho, aparecia uma nova parelha ou troika de
cavalos impacientes e a silhueta do cocheiro com os braços
estendidos para a frente. Recomeçavam os beijos, os ralhos
amigáveis, o pedido de aparecer mais vezes ou de levar um xaile.
Piotr Dmítritch saía a correr do vestíbulo e ajudava as senhoras a
sentar-se na caleche.
— Agora vais direito a Efrémovchina - ensinava ao cocheiro. - Por
Mánkino é mais perto, mas o caminho é pior. Podes tombar a
caleche, Deus te livre ... Adeus, meu amor! Mille com- pliments ao
vosso pintor!
— Adeus, querida Olga Mikháilovna! Vá para dentro, que apanha
frio! Está húmido!
— Xó ! Quietos!
— Que cavalos são estes? — perguntava Piotr Dmítritch.
— Compraram-nos ao Khaidárov por alturas da Quaresma —
respondia o cocheiro.
— Belas estampas ...
E Piotr Dmítritch dava uma palmada na garupa do cavalo lateral.
— Vai! Boa viagem!
Por fim, partiu o último convidado. O círculo vermelho no
caminho oscilou, flutuou para um lado, reduziu-se, apagou-se -
Vassíli levava o candeeiro para dentro. Dantes, quando os
convidados se iam todos embora, Piotr Dmítritch e Olga Mikháilovna
começavam aos saltos no salão, batiam palmas e can-tavam:
«Foram-se embora! Foram-se embora!» Desta vez, porém, Olga
Mikháilovna não estava para isso. Foi para o quarto, despiu-se e
deitou-se.
Pensava que adormeceria de imediato e ia dormir como uma
pedra. Tinha uma dolência surda nas pernas e nos ombros, a cabeça
pesada das conversas, um qualquer desconforto por todo o corpo.
Depois de puxar o cobertor sobre a cabeça ficou deitada uns três
minutos, depois espreitou de sob o cobertor para a lamparina,
escutou o silêncio e sorriu:
— Que bom, que bom ... — sussurrou dobrando as pernas, que
sentia até mais compridas de tanto ter andado. - Dormir, dormir...
Mas as pernas não se acomodavam, o desconforto continuava,
virou-se para o outro lado. Pelo quarto zumbia uma varejeira e batia
intranquila contra o tecto. Ouvia Grigóri e Vassíli a andar na sala,
levantando as mesas; parecia a Olga Mikháilovna que só sentiria
outra vez conforto e adormeceria quando aqueles sons se calassem.
Tomou a virar-se, com impaciência, para o outro lado.
Da sala de estar vinha a voz do marido. Pelos vistos, alguém ficara
para dormir, porque Piotr Dmítritch falava com alguém, dizendo em
voz alta:
— Não diria que o conde Aleksei Petróvitch seja um homem falso.
Mas, involuntariamente, parece sê-lo, porque todos vocês, meus
senhores, tentam ver nele uma coisa diferente do que ele é na
realidade. Nas palhaçadas dele vêem um espírito original, na
maneira familiar que ele tem de tratar as pessoas vêem bondade, na
sua ausência completa de convicções vêem conservadorismo.
Admitamos que, de facto, é um conservador dos maiores. Mas o que
é, na essência, o conservadorismo?
Piotr Dmítritch, zangado com o conde Aleksei Petróvitch, com os
convidados e consigo próprio, desabafava. Injuriava o conde, os
outros convidados e, descontente consigo, estava pronto a exprimir e
a pregar fosse o que fosse. Deu as boas-noites ao convidado, passeou
um pouco de um canto ao outro da sala de estar, depois pela sala de
jantar, pelo corredor, pelo gabinete, outra vez pela sala de estar e,
por fim, entrou no quarto de dormir. Olga Mikháilovna estava
deitada de costas, com o cobertor puxado apenas até à cintura (agora
já lhe parecia que tinha calor) e seguia de semblante zangado a
varejeira que batia contra o tecto.
— Ficou cá alguém a dormir?
— O Egórov.
Piotr Dmítritch despiu-se e deitou-se na sua cama. Acendeu um
cigarro em silêncio e também se pôs a observar a varejeira. Estava
com um olhar severo e inquieto. Olga Mikháilovna ficou uns bons
cinco minutos a olhar para o seu perfil bonito. Pensava que se o
marido se voltasse de repente para ela e dissesse: «Ólia, estou em
baixo!», ela de certeza choraria, ou riria, e sentir-se-ia melhor.
Doíam-lhe as pernas, e aquele desconforto a espalhar-se por todo o
corpo atribuía-o à tensão que tinha na alma.
— Piotr, em que estás a pensar? — perguntou.
— Em nada ... - respondeu o marido.
— Ultimamente começaste a ter segredos para mim. Está mal.
— Está mal porquê? - disse Piotr Dmítritch secamente e não de
imediato. - Cada um tem a sua vida pessoal, por isso também pode
ter os seus segredos.
— A sua vida pessoal, os seus segredos ... tudo isso não passa de
palavras! Tens de compreender que estás a ofender-me! - disse Olga
Mikháilovna, levantando-se e sentando-se na cama. - Se estás em
baixo, por que o escondes de mim e achas mais conveniente abrires-
te com mulheres estranhas e não com a tua própria mulher? Bem
ouvi como tu, hoje, no colmeal, desabafavas com a Liúbotchka.
— Então parabéns. Fico muito contente por teres ouvido.
Tal significava: deixa-me em paz, não queiras impedir-me de
pensar! Olga Mikháilovna indignou-se. O desgosto, o ódio e a raiva
que se vinham acumulando nela ao longo do dia como que
espumaram de repente para fora; tinha vontade de, agora mesmo,
sem adiar para o dia seguinte, dizer tudo ao marido, insultá--lo,
vingar-se ... Fazendo um esforço para não gritar, disse:
— Pois fica sabendo que eu acho isto tudo um nojo, um nojo, um
nojo! Hoje tive-te ódio durante todo o dia... vê o que fizeste !
Piotr Dmítritch também se sentou na cama.
— Um nojo, um nojo, um nojo! - continuava Olga Mikháilovna,
com o corpo todo a tremer. — Não me venhas com isso de parabéns.
Olha, parabéns para ti próprio! Que falta de vergo-nha na cara! Há
tanta mentira na tua vida que chegaste ao ponto de teres problemas
em ficar a sós com a tua própria mulher!
És um falso ! E eu vejo muito bem como tu és e percebo muito bem
cada passo que dás!
— Ólia, quando vires que estás de mau humor, por favor avisa-me.
Nesse caso durmo no gabinete.
Dizendo isto, Piotr Dmítritch pegou na almofada e saiu do quarto.
Olga Mikháilovna não estava à espera daquilo. Ficou uns minutos
calada, com a boca aberta, toda a tremer, a olhar para a porta por
onde o marido desaparecera. Tentava compreender o que significava
aquilo. Seria um dos truques a que recorrem as pessoas falsas
quando não têm razão nas discussões, ou seria um insulto bem
pensado para ferir o amor-próprio dela? Como interpretar aquilo?
Veio-lhe à memória um primo seu, oficial do exército e homem
divertido, que lhe contava em tom de pilhéria que, à noite, quando «a
patroa começava a serraziná-lo», pegava na almofada e, a assobiar,
mudava-se para o gabinete, deixando a mulher numa situação
estúpida e ridícula. Esse oficial estava casado com uma mulher rica,
caprichosa e estúpida que ele se limitava a suportar.
Olga Mikháilovna saltou da cama. Era de opinião que só tinha uma
coisa a fazer: vestir-se rapidamente e abandonar esta casa para
sempre. A casa era dela: tanto pior para Piotr Dmítritch. Sem
reflectir na necessidade do que ia fazer, foi rapidamente para o
gabinete a fim de comunicar ao marido a sua decisão («lógica
feminina!» - cintilou-lhe na cabeça) e lhe dizer à despedida mais
alguma coisa insultuosa e cáustica...
Piotr Dmítritch estava deitado no sofá e fingia ler o jornal. A seu
lado, na cadeira, ardia a vela. Por trás do jornal não se lhe via o rosto.
— Pode dignar-se explicar-me o que significa isto? Estou a
perguntar ao senhor!
— Ao senhor... — imitou-a Piotr Dmítritch sem mostrar ainda a
cara. - Olga, estou farto! Palavra de honra, estou cansado, não estou
para isto ... Amanhã falamos.
— Não, eu sei muito bem! - continuava Olga Mikháilovna. -
Odeias-me! Sim, sim! Odeias-me porque sou mais rica do que tu!
Nunca me vais perdoar isso, hás-de sempre mentir-me! («lógica
feminina!» - voltou a cintilar-lhe na cabeça.) Bem sei que agora te ris
de mim ... Até sei que casaste comigo para teres o censo(30) e esses
malditos cavalos ... Oh, que desgraçada eu sou!
Piotr Dmítritch largou o jornal e soergueu-se no sofá. O insulto
inesperado deixou-o aturdido. Sorriu de jeito infantil, desprotegido,
olhou embaraçado para a mulher e, como que a defender-se de
pancadas, estendeu as mãos para ela e disse numa súplica:
— Ólia!
E, como que à espera de mais alguma coisa demolidora da parte
dela, apertou-se contra o espaldar do sofá, e toda a sua figura grande
começou a parecer tão infantil e desprotegida como o sorriso.
— Ólia, como foste capaz de dizer uma coisa dessas?
Olga Mikháilovna caiu em si. Sentiu de repente o seu amor
louco por aquele homem, lembrou-se de que ele, Piotr Dmítritch,
era o homem dela e que não podia viver um único dia sem ele, e que
também ele a amava loucamente. Desatou num choro ruidoso, deitou
as mãos à cabeça, transtornada, e voltou a correr para o quarto.
Deixou-se cair em cima da cama, e o quarto encheu-se de soluços
miúdos, histéricos, que lhe cortavam a respiração e lhe espalhavam
cãibras pelos braços e pernas. Lembrando-se que a três ou quatro
salas do quarto dormia um convidado, escondeu a cabeça debaixo da
almofada para abafar os soluços, mas a almofada caiu ao chão e ela
própria por pouco não caiu quando se inclinava para apanhá-la;
puxou o cobertor para a cara, mas as mãos não lhe obedeciam e
repuxavam convulsamente tudo a que se agarrava.
Parecia-lhe que estava tudo perdido, que a mentira que acabara de
atirar à cara do marido para o ofender estilhaçara toda a vida dela.
Ele não lhe perdoaria. O insulto que lhe dissera era tal
que nenhuns carinhos, nenhuns juramentos poderiam repará-lo ...
Como poderia convencer o marido de que ela própria não acreditava
no que lhe tinha dito?
— Acabou, acabou-se tudo! — gritava sem reparar que a almofada
voltara a cair no chão. — Por amor de Deus, por amor Deus!
Já os seus gritos teriam porventura acordado o convidado e a
criadagem; amanhã todo o distrito iria saber que ela teve um ataque
de histeria e acusar disso Piotr Dmítritch. Fazia grande esforço para
se conter, mas o choro tomava-se cada vez mais ruidoso.
— Por amor de Deus! — gritava enlouquecida, sem compreeender
por que gritava assim. — Por amor de Deus!
Parecia-lhe que a cama se afundara debaixo dela, que os pés se lhe
atolavam no cobertor. Piotr Dmítritch, de roupão e vela na mão,
entrou no quarto.
— Ólia, já chega! — disse.
Ela levantou-se e, de joelhos na cama, piscando os olhos por causa
da luz da vela, articulou por entre o choro:
— Tens de compreender... tens de compreender...
Gostaria de lhe dizer que as visitas a tinham extenuado, a falsidade
dele também, a sua própria falsidade, que se acumulara tudo, mas
apenas conseguia articular:
— Tens de compreender... tens de compreender!
— Toma, bebe! — disse ele dando-lhe um copo de água.
Pegou obedientemente no copo e começou a beber, mas a água
derramou-se, verteu-se-lhe para as mãos, o peito, os joelhos... «Devo
estar horrivelmente feia agora!» — pensou ela. Piotr Dmítritch, em
silêncio, deitou-a na cama, cobriu-a com o cobertor, pegou na vela,
saiu.
— Por amor de Deus! — voltou a gritar Olga Mikháilovna. — Piotr,
tens de compreender, tens de compreender!
De repente, alguma coisa lhe apertou o baixo ventre e a zona
lombar com tanta força que lhe cortou cerce o choro e a fez morder a
almofada de dor. Mas a dor desapareceu tão depressa como tinha
vindo, e ela voltou a chorar.
Entrou a criada de quarto e, ajeitando-lhe o cobertor, perguntou
preocupada:
— Senhora, o que tem, minha alminha?
— Saia daqui! — disse severamente Piotr Dmítritch, aproximando-
se da cama.
— Tens de compreender, tens de compreender... - voltou a repetir
Olga Mikháilovna.
— Ólia, peço-te, acalma-te! - pediu ele. - Não quis ofender-te. Se
soubesse que ias ficar assim, não tinha saído do quarto. É que estava
muito em baixo, mais nada. Digo-to sinceramente ...
— Tens de compreender... Mentiste tu, menti eu. ..
— Eu compreendo, eu compreendo ... Pronto, pronto, já chega! Eu
compreendo ... - dizia Piotr Dmítritch com ternura, sentando-se na
cama dela. - Disseste aquilo sem pensar... Juro por Deus, amo-te
mais que a tudo no mundo e, quando me casei contigo, não estava a
pensar se eras rica ou não. Amava-te até ao infinito, mais nada...
Acredita em mim. Nunca tive problemas de dinheiro e nunca soube o
valor que tem o dinheiro, por isso não sinto a diferença entre a tua
fortuna e a minha. Sempre me pareceu que éramos igualmente ricos.
Quanto a eu ser falso nas pequenas coisas, pois bem ... é verdade,
claro. A minha vida está organizada de maneira tão frívola que, não
sei explicar porquê, tem-me sido impossível passar sem as pequenas
mentiras. Agora, eu próprio me sinto mal com isso. Mas deixemos
esta conversa, por amor de Deus!.. .
Olga Mikháilovna voltou a sentir uma dor aguda e agarrou-se à
manga do marido.
— Ai, dói-me, dói, dói ... - disse rapidamente. - Ah, que dor!
— P'ro diabo que os carregue, esses convidados todos! —
murmurou Piotr Dmítritch. — Não devias ter ido à ilha! - gritou. —
Que estúpido fui em não to proibir! Meu Deus do céu!
Coçou a cabeça com irritação, abanou com a mão e saiu do quarto.
Depois, várias vezes entrava, se sentava na cama dela e falava
muito, ora com ternura, logo com zanga, mas ela mal o ouvia.
Alternavam as dores lancinantes com o choro e, de cada vez que a
atacava a dor, era sempre mais forte e prolongada. Quando a atacava,
ela sustinha a respiração e mordia a almofada, mas depois já não
continha os gritos descompostos, lacerantes. Num dos acessos,
vendo o marido ao lado, lembrou-se que o insultara e, sem atinar se
era um fruto do delírio ou era o verdadeiro Piotr Dmítritch quem ali
estava, agarrou-lhe nas mãos e pôs-se a beijar-lhas.
— Mentiste tu, menti eu ... — começou a desculpar-se. - Tens de
compreender, tens de compreender... Levaram-me ao esgotamento,
perdi o tino ...
— Ólia, não estamos sós! - disse Piotr Dmítritch.
Olga Mikháilovna ergueu a cabeça e viu a Varvara de joelhos junto
à cómoda, a abrir a gaveta de baixo. As de cima já estavam abertas.
Depois de abrir a cómoda, Varvara levantou-se e, vermelha do
esforço, com uma cara fria e solene, foi abrir o cofre das jóias.
— Mária, não consigo! — disse em sussurro. — Experimenta tu.
A criada de quarto Mária esgaravatava o orifício do castiçal a fim
de colocar uma vela nova; aproximou-se de Varvara e ajudou-a abrir
o escrínio.
— Não pode ficar nada fechado ... — murmurava Varvara. - Abre
também esta caixinha, menina. — O meu amo — dirigiu-se a Piotr
Dmítritch — , tem de mandar alguém ao padre Mikhail para ele abrir
também o gradil do altar-mor! É preciso!
— Façam o que quiserem - disse Piotr Dmítritch, ofegante —, mas,
por amor de Deus, tragam cá o doutor ou a parteira, de-pressa! O
Vassíli já foi? Manda mais alguém. Manda o teu homem!
«Estou a ter o bebé» — percebeu de repente Olga Mikháilovna. —
Varvara — gemeu -, não vai nascer vivo!
— Pronto, pronto, minha ama ... — sussurrou Varvara. — Se Deus
quiser, há-de sair vivo. Há-de sair vivo.
Chegou a um ponto em que Olga Mikháilovna, ao recuperar de
cada acesso de dores, já não chorava nem se contorcia, ape-nas
gemia. Não conseguia conter os gemidos, sequer nos intervalos das
dores. As velas ainda ardiam mas pelas persianas já penetrava a luz
matinal. Seriam cinco da manhã. No quarto, sentada junto à mesinha
redonda, estava uma desconhecida de avental branco e cara modesta.
Tinha ar de quem já ali estava há muito tempo. Olga Mikháilovna
adivinhou que era a parteira.
— Ainda falta muito? — perguntou, e na sua própria voz ouviu uma
nota diferente, estranha, que nunca sentira antes em si. «Pelos
vistos, estou a morrer de parto» — pensou.
Piotr Dmítritch entrou com mil cuidados no quarto, vestido como
de dia, e foi pôr-se à janela, de costas para a mulher.
— Que chuva! — disse.
— Que horas são? — perguntou Olga Mikháilovna para voltar a
ouvir na sua voz a nota desconhecida.
— Um quarto para as seis — respondeu a parteira.
«E se estou realmente a morrer? — pensou Olga Mikháilovna,
olhando para a cabeça do marido e para as vidraças onde a chuva
batia. — Como vai ele viver sem mim? Com quem vai to-mar chá,
almoçar, falar à noite, dormir?»
E o marido pareceu-lhe pequeno, órfão; sentiu tanta pena dele que
quis dizer-lhe alguma coisa boa, carinhosa, consoladora. Lembrou-se
de que ele, na Primavera, quisera comprar a matilha de raposeiros e
ela, vendo a caça como um divertimento cruel e perigoso, o impedira.
— Piotr, compra os raposeiros! — gemeu.
Piotr Dmítritch correu a persiana e aproximou-se da cama, ia a
falar mas, de repente, Olga Mikháilovna voltou a ter as dores e soltou
um grito descomposto, lacerante.
Estava entorpecida do choro, das dores e dos gemidos constantes.
Ouvia, via, às vezes falava, mas percebia mal o que se passava, só
sabia que ora tinha as dores, ora ficava à espera de mais dores. O dia
de anjo parecia-lhe já muito longe, e não da véspera, como se tivesse
passado havia um ano, e parecia-lhe que a sua nova vida de dores
vinha também de longe, de mais longe que a infância, os estudos no
colégio, os cursos, o casamento, e que continuaria
interminavelmente. Viu trazerem chá à parteira, chamarem-na para
o pequeno-almoço, depois para o almoço; via como Piotr Dmítritch
já ganhara o hábito de entrar, ficar longamente parado à janela e
sair, como já tinham criado o hábito de entrar e sair uns homens que
andavam por ali, a criada de quarto, Varvara ... Varvara só dizia «há-
de sair vivo, há-de» e zangava-se quando alguém fechava as gavetas
da cómoda. Olga Mikháilovna assistia à mudança da luz nas janelas:
crepuscular, embaciada como nevoeiro, por fim clara, a luz do dia, tal
qual a luz que havia na véspera ao almoço, outra vez crepuscular...
Cada mudança durava tanto quanto a infância, o colégio, o curso ...
Ao anoitecer, dois médicos — um ossudo, careca, de larga barba
ruiva, o outro de cara judaica, moreno, óculos baratos — submetiam
Olga Mikháilovna a uma operação. Era-lhe completamente
indiferente que homens alheios lhe devassassem o corpo. Já não
tinha vergonha, nem vontade, e cada um podia fazer com ela o que
lhe apetecesse. Se alguém se atirasse a ela com uma faca, ou
insultasse Piotr Dmítritch, ou a privasse do direito de ter o ser
pequenino, não diria palavra.
Tinham-na cloroformizado para a operação. Quando mais tarde
acordou, as dores continuavam, insuportáveis. Era a noite. E Olga
Mikháilovna lembrou-se que uma noite tal qual esta, com o mesmo
silêncio, a mesma lamparina, a mesma parteira sentada imóvel junto
à cama, com o mesmo Piotr Dmítritch parado à janela, já acontecera
antes, só que muito, muito tempo atrás ...

«Não morri»... — pensou Olga Mikháilovna quando deu acordo de


si, começou a ver tudo à volta e deixou de ter dores.
Pelas duas janelas do quarto, abertas de par em par, entrava o
claro dia de Verão; para lá das janelas, sem se calarem um segundo,
gritavam no jardim os pardais e as pegas.
As gavetas da cómoda já estavam fechadas, a cama do marido
feita. Já não havia parteira, nem Varvara, nem criada; apenas Piotr
Dmítritch continuava imóvel à janela, olhando para o jardim. Não se
ouvia o choro da criança, ninguém a felicitava nem rejubilava: pelos
vistos, a criatura pequenina não nascera viva.
— Piotr! - Olga Mikháilovna chamou o marido.
Piotr Dmítritch virou a cabeça para ela. Talvez, desde o momento
em que se fora o último convidado e Olga Mikháilovna insultara o
marido, se tivesse passado muito, muitíssimo tempo, porque Piotr
Dmítritch tinha ficado visivelmente macilento e magro.
— Então? — perguntou, aproximando-se da cama.
Olhava para os lados, mexia os lábios e sorria de jeito infantil, o ar
desprotegido.
— Já acabou tudo? - perguntou Olga Mikháilovna.
Piotr Dmítritch quis responder, mas os lábios tremeram-lhe e a
boca torceu-se-lhe como a de um velho, como a do tio desdentado
Nikolai Nikoláitch.
— Ólia! - disse torcendo muito as mãos e com lágrimas grandes a
correrem-lhe repentinamente. - Ólia! Não preciso do teu censo nem
das sessões judiciais (soluçou) ... nem de declarações de voto, nem
desses convidados, nem do teu dote ... não é de nada disso que
preciso! Por que não velámos pelo nosso filho? Ah, falar para quê!
Abanou com a mão e saiu do quarto.
Quanto a Olga Mikháilovna, já tudo lhe era indiferente. Ainda
tinha toda a cabeça numa névoa por causa do clorofórmio, toda a
alma vazia ... A indiferença embotada em que mergulhara quando os
dois médicos a operavam ainda não a abandonara.
GÚSSEV

Já escurecia, daí a nada seria noite.


Gússev, soldado raso desmobilizado, soergue-se no catre e diz a
meia voz:
— Estás a ouvir, Pável Ivánitch? Contou-me um soldado em
Sutchan que o navio deles, quando estavam no alto mar, atropelou
um peixe e ficou com o fundo todo partido.
O homem de condição social indefinida a quem Gússev se dirige, e
a quem toda a gente na enfermaria de bordo trata por Pável Ivánitch,
cala-se como se não estivesse a ouvir.
Instala-se outra vez o silêncio ... O vento passeia-se pelos
cordames, o hélice toca, as ondas fustigam, rangem os catres, mas o
ouvido há muito se habituou a isso, tudo em volta parece silêncio e
parece dormir. Tédio. Aqueles três doentes - dois sol-dados e um
marinheiro - que passaram todo o dia a jogar às cartas, já dormem e
deliram.
Parece que começa outra vez o balanço. O catre debaixo de Gússev
sobe e desce lentamente, como se suspirasse - uma vez, outra vez,
outra... Qualquer coisa bateu no chão e tilintou: talvez uma caneca
que caiu.
— O vento arranca-se das correntes ... - diz Gússev, à escuta.
Desta vez, Pável Ivánitch tosse e responde, irritado:
— Dizes cada coisa: ou é o navio que atropela um peixe, ou é o
vento que se solta das correntes ... como se o vento estivesse preso
como um animal qualquer!
— É assim que dizem os nativos convertidos.
— Os convertidos são os mesmíssimos ignorantes que tu és. ..
Dizeis cada coisa... e depois? É preciso ter cabeça própria, saber
raciocinar. Seu cabeça de burro.
Pável Ivánitch sofre de enjoo de mar. Quando mareia, fica zangado
e irrita-se por tudo e por nada. Ora, na opinião de Gússev, não há
absolutamente motivos para zanga. O que há de esquisito ou de
complicado, por exemplo, nisso do peixe ou do vento desembestado?
Suponhamos que o peixe é do tamanho de um monte, com os lombos
duros como os do esturjão; suponha-mos também que lá, onde é o
fim do mundo, há umas muralhas muito grandes de pedra e estão lá
presos com as correntes os ventos malvados ... Se não rebentaram
com as correntes, então por que deitam a correr por cima do mar e se
atiram como cães? Se não os prendem, então onde é que se metem
durante a calmaria?
Gússev pensa longamente em peixes do tamanho de um monte e
nas correntes grossas e enferrujadas, depois aborrece-se e começa a
pensar na santa terrinha, para onde regressa agora depois de ter feito
cinco anos de tropa no Extremo Oriente. Vem-lhe à imaginação um
lago enorme coberto de neve ... Numa margem é a fábrica de loiça,
cor de tijolo, com a chaminé alta a deitar fumos pretos; do outro
lado, a aldeia ... Do quintal, o quinto a contar da ponta, sai de trenó o
irmão Aleksei; atrás estão o rapazinho dele, Vanka, de botas de feltro
grandes, e a filha Akulka, também com botas de feltro. O Aleksei está
borracho, Vanka ri, a carita de Akulka está escondida — agasalhou-
se.
«Queira Deus que não deixe regelar as crianças ...» — pensa
Gússev. — Senhor meu Deus — sussurra —, dá-lhes juízo e razão, que
sejam respeitadores e não se façam de espertos com pai e mãe ...
— Aqui é preciso deitar meias-solas novas - delira em baixo o
marujo doente. - Sim, sim!
Os pensamentos de Gússev cortam-se, ao lago substitui-se sem
transição, de repente, uma grande cabeça de touro, sem olhos, e o
cavalo e o trenó já não correm, rodopiam no fumo ne-gro. Mesmo
assim, está contente por ter visitado a família. A alegria corta-lhe a
respiração, percorre-lhe o corpo como um formigueiro, treme-lhe
nos dedos.
— Deus Nosso Senhor me fez a graça de os ver! - delira, mas logo
abre os olhos e procura a água no escuro.
Bebe e deita-se, de novo vai o trenó a correr, depois outra vez o
touro sem olhos, fumo, nuvens ... E assim até ao amanhecer.

2
Primeiro, destaca-se na escuridão uma rodela azul - a vigia
redonda; depois Gússev, a pouco e pouco, vai distinguindo o vizinho,
Pável Ivánitch. Pável Ivánitch dorme sentado, porque deitado falta-
lhe o ar. A cara dele é cinzenta, o nariz comprido e afilado, os olhos,
de tão magro, ficaram-lhe enormes; as têmporas cavaram-se-lhe, a
barba é rala, o cabelo comprido ... Pela cara, é impossível dizer de
que condição é: fidalgo, comerciante, mujique? Pela expressão do
rosto, pelo cabelo, parece um jejuador, noviço de um mosteiro, mas,
pela fala que tem, monge é que não é. Ficou esgotado do balanço, do
ar abafado, da doença, respira a custo e mexe os lábios ressequidos.
Reparando que Gússev está a olhar para ele, vira-lhe a cara e diz:
— Começo a adivinhar... Sim ... Agora percebo perfeitamente.
— O que é que percebe, Pável Ivánitch?
— O que percebo?... Bem me pareceu esquisito que a vós, doentes
graves, em vez de vos porem em sossego, vos tenham atirado aqui
para o vapor, onde é só afogo, calor, o enjoo, numa palavra, onde
tudo vos faz correr risco de morte, mas agora percebi tudo ... Pois ...
Os vossos médicos entregaram-vos para transporte no vapor para se
desfazerem de vós. Fartos de ter trabalho convosco, gado ... Não lhes
pagam para isso, dais muito trabalho e, com as vossas mortes,
estragais os relatórios deles: portanto, sois gado! Ora bem, desfazer-
se de vós também não é difícil... Para isso, em primeiro lugar o que é
preciso é não ter moral nem humanidade nenhuma e, em segundo,
enganar as autoridades do vapor. Da primeira condição nem é
preciso falar, nesse aspecto somos uns artistas, e a segunda é sempre
possível com alguma habilidade. Entre uma chusma de quatrocentos
soldados e marinheiros saudáveis, cinco doentes nem se notam;
ajuntaram-vos no vapor, misturaram-vos com os saudáveis,
contaram-vos a todos à pressa e, no meio da azáfama, não repararam
em nada de mal, só quando o vapor saiu para o mar é que viram:
estão estendidos no convés uns paralisados e tísicos terminais ...
Gússev não compreende Pável Ivánitch; acha que está a censurá-lo
e diz, justificando-se:
— Fiquei deitado no convés porque não tinha forças; quando nos
desembarcavam do batelão para o vapor rapei muito frio.
— Revoltante! - continua Pável Ivánitch. - O pior é que eles sabem
perfeitamente que vós não aguentais esta longa travessia, e mesmo
assim enfiam-vos cá para dentro! Digamos que até ao Oceano síndico

É
ainda chegais, mas depois? Até mete medo pensar nisso ... É esta a
paga pelos honrosos e leais serviços!
Pável Ivánitch faz uns olhos maus, franze a cara com repugnância
e diz, ofegando:
— Que bom seria arrasá-los nos jornais, que nem os ossos deles se
aproveitassem!
Os dois soldados e o marujo doentes já acordaram e já jogam às
cartas. O marinheiro está meio deitado no catre, os soldados estão
sentados ao lado dele no chão em posições muito incómodas . Um
dos soldados tem a mão direita embrulhada numa ligadura do
tamanho de um chapéu, por isso segura as cartas de-baixo do sovaco
direito ou na dobra do cotovelo, e joga com a mão esquerda. Mareia
agora muito. Impossível levantar-se, beber chá, tomar os
medicamentos.
— Foste ordenança? — pergunta Pável Ivánitch a Gússev.
— Ordenança, pois.
— Meu Deus, meu Deus! — diz Pável Ivánitch e abana triste-mente
a cabeça. — Arrancar uma pessoa do ninho materno, arrastá-la
quinze mil verstás, depois levá-la à tísica e ... para que é tudo isso,
pergunto eu? Para fazer dela um ordenança de algum capitão
Kopéikin ou aspirante da marinha Dirka(31). Grande lógica!
— Não é um trabalho difícil, Pável Ivánitch. Levantar de manhã,
limpar as botas, aquecer o samovar, limpar os quartos, e depois mais
nada para fazer. O meu tenente passava o dia a desenhar as plantas,
e eu, se quisesse, rezava a Deus, se quisesse lia livros, ou, se quisesse,
ia até à rua. Quem não gosta de ter uma vida assim?
— Sim sim, uma vida muito boa! O tenente a desenhar plantas e tu
metido o dia todo na cozinha com saudades da terra ... Plantas ...
Não são as plantas que importam, mas a vida humana! A vida não se
repete, é preciso poupá-la.
— Lá isso é verdade, Pável Ivánitch, a um homem mau ninguém o
poupa, nem em casa, nem no serviço, mas se vivermos como justos,
com obediência, quem tem necessidade de nos tratar mal? Os amos
são cultos, eles compreendem... Em cinco anos nem uma vez estive
na cadeia, e baterem-me, se não me engano, só uma vez...
— Porquê?
— Por uma briga. Eu tenho a mão pesada, Pável Ivánitch.
Entraram no nosso quintal quatro manzas(32), a trazer-nos lenha,
parece, não me lembro bem. Ora eu, que estava aborrecido como
tudo, pronto, dei-lhes cabo das costelas, e um deles ainda começou a
sangrar do nariz, o maldito ... O meu tenente viu tudo pela janela,
zangou-se e deu-me um murro no ouvido.
— Estúpido, miserável... — sussurra Pável Ivánitch. — Não
percebes nada.
Extenuado pelo gingar do barco, fechou os olhos; a cabeça ora se
lhe empina para trás, ora lhe tomba para o peito. Por várias vezes
tenta deitar-se, mas não adianta: a asfixia não o deixa.
— Mas por que raio espancaste os quatro manzas? — pergunta,
passado um pouco.
— Por nada. Entrais no quintal? Levais.
Cai o silêncio ... Os outros jogam às cartas já lá vão duas horas,
com arrebatamentos e pragas, mas o balanço do mar também os
cansa; largam as cartas e deitam-se. Outra vez se desenha na cabeça
de Gússev o lago grande, a fábrica, a aldeia... Outra vez corre o trenó,
ri o Vanka, a parvinha da Akulka abre a peliça e mostra as pernas: ó
boa gente, olha as minhas botas, não são como as do Vanka, as
minhas são novas ...
— Já tens cinco aninhos, mas juízo não tens nenhum — delira
Gússev. — Em vez de mostrares as pernas, ias buscar água para o teu
tio soldadinho. Dava-te uma prenda.
Lá vai o Andron com a espingarda de pederneira ao ombro, que
caçou uma lebre e a leva, e atrás dele o caduco do judeu Issáitchik,
que lha quer trocar por um sabão; lá está a vitela preta no quinteiro,
e a Domna a costurar uma camisa e a chorar sabe-se lá porquê, e
outra vez a cabeça de touro sem olhos, o fumo preto ...
Em cima, alguém gritou alto, vários marinheiros a correrem,
parece qualquer coisa volumosa a ser arrastada, qualquer coisa a
rachar-se. Outra vez correrias. Aconteceu alguma desgraça? Gússev
estica a cabeça, escuta, verifica: os dois soldados e o marujo voltaram
ao jogo das cartas; Pável Ivánitch está sentado, a mexer os lábios.
Um afogo, impossível respirar, sede, mas a água está morna, um nojo
... O marear não abranda.
De repente, uma coisa estranha acontece com um dos solda-dos
que joga... Chama ouros às copas, confunde a contagem, deixa cair as
cartas, depois sorri, um sorriso estúpido e assusta-do, passa os olhos
por todas as caras.
— Esperem lá, irmãos ... - diz e deita-se no chão.
Estranheza geral. Chamam-no, não dá acordo.
— Stepan, estás bem? Eh? - pergunta o soldado da ligadura na
mão. — E se chamássemos o padre? Eh?
— Stepan, bebe uma pinga de água... — diz o marujo. — To-ma lá,
mano, bebe.
— Pára de lhe martelar com a caneca nos dentes! — zanga-se
Gússev. — Não estás a ver, cabeça de pau?
— O quê?
— O quê! — arremeda-o Gússev. - Não respira, morreu! Já
percebeste o quê? Gente mais estúpida, meu Deus!.. .

Já não mareia, e Pável Ivánitch anima-se. Já não está zangado.


Está de semblante jactancioso, provocante, irónico, como quem tem
vontade de dizer: «Sim, agora vou dizer-vos uma coisa que vos fará
rebentar de riso.» A vigia redonda está aberta, sopra para Pável
Ivánitch uma brisa suave. Ouvem-se vozes, o chapinhar de remos ...
Por baixo da vigia alguém uiva numa voz fininha e desagradável:
algum chinês a cantar.
— Pois é, já estamos no porto de abrigo — diz Pável Ivánitch,
sorrindo com ironia. — Mais um mês e estamos na Rússia. Pois é,
estimadíssimos senhores, brava soldadesca. Chego a Odessa e, de
Odessa, direito a Khárkov. Em Khárkov tenho um companheiro
literato. Vou ter com ele e digo-lhe: ouve lá, amigo, deixa por
enquanto os teus temas nojentos sobre os namoros femininos e a
beleza da natureza, e toca a desmascarar os porcos de duas pernas ...
Aqui tens os temas ...
Por um minuto pensa em alguma coisa, depois diz:
— Gússev, queres saber como os aldrabei?
— A quem, Pável Ivánitch?
— Àqueles ... Aqui no vapor, estás a entender, só há primeira classe
e terceira classe, sendo que a terceira só é permitida aos
mujiques, ou seja, à ralé. Ora, quem vestir um fatinho e parecer
pouco mais ou menos um senhor ou um burguês, faça favor de viajar
em primeira classe. Que se arranje como quiser, mas tem de
desembolsar quinhentos rublos. Para quê, pergunto-lhes eu,
montaram este sistema? Será para aumentar o prestígio dos
intelectuais russos? «Nada disso. Não os queremos na terceira
porque uma pessoa decente não pode andar em terceira classe: é suja
de mais, asquerosa.» Ai sim? Então muito obrigado por se
preocuparem tanto com as pessoas decentes. De qualquer maneira,
asqueroso ou impecável, o certo é que não tenho quinhentos rublos.
Não roubei dinheiros públicos, não explorei os aborígenes, não
açoitei ninguém até à morte, por isso façam o vosso juízo: terei eu o
direito de me acomodar na primeira classe, ou, melhor ainda, de me
incluir no rol da intelectualidade russa? Mas eles não vão lá com a
lógica ... Foi preciso recorrer a um estratagema. Vesti um cafetã,
calcei umas botifarras grandes, fiz uma careta bêbada e grosseira, e
cheguei-me ao pé do agente: «Era um bilhetinho, meu senhor, bem
haja vosselência... »
— Mas o senhor de que condição é afinal? - pergunta o ma-rujo.
— Clero. O meu pai era um padre honrado. Dizia sempre a verdade
na cara aos grandes deste mundo, e por isso sofreu muito.
Pável Ivánitch fatigou-se muito a falar, está ofegante. Mas
continua:
— Sim, digo sempre verdade na cara... Não tenho medo de nada
nem de ninguém. Neste sentido, a diferença entre mim e vós é
abismal. Sois gente ignorante, cega, embrutecida, não vedes um boi à
frente, e o que vedes não compreendeis ... Dizem-vos que o vento
rebenta com as correntes, que sois gado, bárbaros, e acreditais; dão-
vos um soco no pescoço, beijais-lhes as mãos; uma besta qualquer de
casaco de pele de raposa rouba-vos e atira-vos com uma esmola de
quinze copeques, e vós: «Deixe, meu senhor, que lhe beije a mão.»
Sois párias, gente miserável... Mas eu sou outra coisa. Vivo com
consciência e vejo tudo, como a águia ou o gavião quando voam por
cima da terra, e compreendo tudo. Eu sou a encarnação do protesto.
Vejo a arbitrariedade: protesto; vejo um hipócrita: protesto; vejo um
porco triunfante: protesto. E sou invencível, nenhuma inquisição
espanhola me faz calar... Sim... Cortem-me a língua: protesto com a
mímica; emparedem-me numa cave: berro de lá tanto que me hão-de
ouvir à distância de uma verstá, ou então mato-me à fome para que
na consciência deles fique mais um peso de arroba; matem-me: hei-
de aparecer-lhes como fantasma. Toda a gente que me conhece me
diz: «É um tipo mais insuportável, Pável Ivánitch!» Orgulho-me
dessa reputação. Servi no Extremo Oriente durante três anos, mas
deixei lá recordações minhas para mais de cem anos: rompi com toda
a gente. Os amigos escrevem-me da Rússia: «Não venhas.» Mas eu
É
vou, doa a quem doer... Pois ... A vida é isso. É a isso que se pode
chamar vida.
Gússev não ouve e espreita pela vigia. Na água transparente, de
uma suave cor de turquesa, toda banhada de sol quente, baloiça um
barco. Dentro, chineses nus erguem ao alto gaiolas com canários e
gritam:
— Canta! Canta!
Neste barco tocou outro, passou uma lancha a vapor. E mais um
barco ainda: está sentado nele um chinês gordo a comer arroz com os
pauzinhos. A água ondula preguiçosa, ao rés da água voam
preguiçosamente gaivotas brancas.
«Era bom dar dois socos no pescoço desse monte de banha...» —
pensa Gússev, olhando para o chinês gordo e bocejando.
Dormita, e parece-lhe que toda a natureza está a dormitar. O
tempo corre depressa, o dia passa desapercebido,
desapercebidamente escurece ... O vapor não pára, navega, navega...

Passam dois dias. Pável Ivánitch já não se senta, fica sempre


deitado, de olhos fechados, o nariz cada vez mais afilado, parece.
— Pável Ivánitch! — chama-o Gússev. — Eh, Pável Ivánitch!
Pável Ivánitch abre os olhos e mexe os lábios.
— Não se sente bem?
— Não é nada... — responde Pável Ivánitch, ofegando. — Não me
sinto mal, pelo contrário ... estou melhor... Estás a ver, até já me
posso deitar... Melhorei .. .
— Ainda bem, graças a Deus, Pável Ivánitch.
— Ponho-me a comparar-me convosco e meteis-me pena ...
coitados. Os meus pulmões estão bem, a tosse vem-me do estômago
... Sou capaz de aguentar o inferno, quanto mais o Mar Vermelho!
Além disso, sou crítico relativamente aos medicamentos e à minha
doença. E vós ... vós sois ignorantes... É duro para vós, muito duro!
Parou de marear, é a calmaria, mas o ar está abafado e quente
como na sauna; não é só difícil falar, também ouvir. Gússev abraçou-
se aos joelhos, pousou neles a cabeça e pensa na terra. Meu Deus,
com este afogo é tão bom pensar na neve e no frio! Vamos de trenó,
de repente os cavalos assustam-se e deitam a galope ... Sem darem
pelos barrancos, pelas valas, pelos caminhos, sem darem por onde
vão, correm como doidos por toda a aldeia, atravessam o lago, vão ao
rés da fábrica, depois pelos campos fora... «Segura! — berram a
plenos pulmões os da fábrica, berra quem passa. — Segura!» Segurar
para quê? Que o vento gelado corte a cara, morda as mãos, que a
neve levantada pelos cascos caia em cima do gorro, se enfie para
dentro da gola, do pescoço, do peito, que chiem os patins e se
rasguem os tirantes, deixa correr! E que delícia quando o trenó se
vira e a gente voa de escantilhão para o monte de neve, de cara para a
neve, e depois se levanta todo branquinho, o bigode espetado de
gelo; quais luvas, quais gorro, o cinto desatado ... E toda a gente
numa barrigada de riso, os cães a ladrarem ...
Pável Ivánitch entreabre um olho, olha para Gússev e pergunta
baixinho:
— Gússev, o teu comandante roubava?
— Quem sabe se roubava, Pável Ivánitch? Essas coisas não chegam
até nós, nós nunca sabemos.
Passa-se muito tempo, em silêncio. Gússev pensa, delira, volta e
meia bebe água. Custa-lhe falar, custa-lhe ouvir, tem medo que
comecem a falar com ele. Passa uma hora, duas, três; cai a tarde,
anoitece, mas não dá por isso, deixa-se ficar sentado a pensar no frio
invernal.
Parece que entrou alguém na enfermaria, ouvem-se vozes, cinco
minutos depois volta o silêncio.
— Descanse na paz do Senhor no reino dos céus - diz o soldado da
ligadura na mão. - Era um homem cheio de aflição.
— O quê? - pergunta Gússev. - Quem?
— Morreu. Levaram-no agora para cima.
— Pois ... - murmura Gússev, bocejando. - Que descanse em paz.
— O que dizes, Gússev? - pergunta depois de um silêncio o soldado
da ligadura. - Foi para o reino dos céus ou não foi para o reino dos
céus?
— De quem estás a falar?
— Do Pável Ivánitch.
— Estou que sim ... passou muito. Também, como é da família dos
padres e os padres têm famílias grandes ... com tanta reza lá
conseguem.
O soldado da ligadura senta-se no catre de Gússev e diz a meia voz:
— Tu, Gússev, também já não vais longe. Não chegas à Rússia.
— Disse-te o doutor ou o enfermeiro, foi? — pergunta Gússev.
— Nem foi preciso, vê-se ... Vê-se logo quando um homem está às
portas da morte. Não comes, não bebes, magro como um cão ... mete
medo olhar para ti. A tísica, e está tudo dito. Não digo isto para te
afligir, mas podes querer comungar, a extrema-unção. E, se tiveres
dinheiro, para o entregares ao oficial superior.
— Não escrevi para casa ... - suspira Gússev. - Quando morrer, não
vão saber.
— Vêm a saber - diz em voz de baixo o marujo doente. - Quando
morreres registam-te no livro de bordo como defunto, e em Odessa
entregam uma cópia ao chefe do departamento militar, e dali lá a
mandam para o distrito, sei lá...
Esta conversa apavora Gússev, e começa a moê-lo um desejo vago.
Bebe água - não é isso; estica-se para a vigia e engole o ar quente e
húmido - não é isso; tenta pensar na terra, no frio - não é isso...
Parece-lhe que, se ficar metido na enfermaria mais um minuto que
seja, sufoca de vez.
— Estou muito mal, irmãos ... - diz. - Tenho de ir para cima.
Levem-me, por amor de Cristo, levem-me lá para cima!
— Está bem — concorda o soldado da ligadura. - Sozinho não
chegas lá, eu levo-te. Agarra-te ao meu pescoço.
Gússev abraça o soldado pelo pescoço, este cinge-o com a mão
sadia e carrega-o para cima. No convés dormem espalha-dos pelo
chão os soldados e marinheiros desmobilizados; são tantos que é
difícil passar.
— Põe-te no chão - diz baixinho o soldado da ligadura. — Anda
atrás de mim devagarinho, agarra-te à minha camisa...
Está escuro. Não há luzes no convés nem nos mastros, nem no mar
em volta. Na proa, imóvel como uma estátua, está uma sentinela, e é
como se também dormisse. Parece que o vapor, abandonado à sua
própria sorte, vai à deriva.
— Agora vão atirar o Pável Ivánitch ao mar... - diz o soldado da
ligadura. - Metem-nos no saco e, pumba!, para dentro de água.
— Pois. É a regra.
— Ora, sempre é melhor em casa, ir para debaixo da terra. Sempre
há uma mãe que ao menos vai ver a campa, chora.
— Pois.
Cheira a estrume e feno. Cabisbaixos, os touros estão junto à
amurada. Um, dois, três ... oito touros. Olha, um cavalinho pequeno.
Gússev estende a mão para lhe fazer uma festa, mas ele sacode a
cabeça, arreganha os dentes e quer mordê-lo na manga.
— Ma-aldito bicho ... — zanga-se Gússev.
Ele e o soldado vão penetrando devagarinho até à proa, põem-se à
amurada e olham em silêncio ora para cima, logo para baixo. Em
cima, o céu profundo, estrelas claras, paz e silêncio - tal qual em
casa, na aldeia; mas em baixo, escuridão e desordem. E sabe-se lá
por que estrondeiam as ondas altas: seja qual for a onda para que se
olhe, quer levantar-se mais alto do que as outras, e empurra, enxota
a outra, mas vem uma terceira contra ela, igualmente feroz e
monstruosa, brilhando com a sua crina branca.
O mar não tem juízo nem compaixão. Fosse o vapor mais pequeno
e não fosse de ferro espesso, as ondas parti-lo-iam e devorariam toda
a gente sem excepção — santos e pecadores. O vapor também tem
uma expressão apalermada e cruel, de monstro narigudo que carrega
em frente e corta pelo caminho milhões de ondas; não tem medo da
escuridão nem do vento, nem do espaço, nem da solidão, não se
importa com nada e, se o oceano tivesse gente, este monstro também
a atropelaria sem excepção, fossem santos ou pecadores.
— Onde estamos agora? — pergunta Gússev.
— Não sei. Acho que no mar oceano.
— Não se vê terra ...
— Natural! Diz que só daqui a sete dias.
Ambos os soldados olham para a espuma branca com reflexos
fosfóreos, se calam e pensam. Gússev é o primeiro a quebrar o
silêncio.
— Bem vistas as coisas, não há nada assustador — diz. - Mete
pavor, é verdade, como se estivéssemos numa mata escura, mas se, é
um supor, descessem agora um bote à água e o ofi-cial me mandasse
ir pelo mar fora pescar, a cem verstás: eu ia. Ou se, é um supor,
caísse agora à água um convertido, eu saltava atrás dele. Um alemão
ou um manza não, não salvava, um convertido sim.
— E morrer mete-te medo?
— Faz medo. Tenho pena da minha casa. O meu irmão, sabes como
é, não é certo: um bêbado, bate na mulher por tudo e por nada, não
respeita pai nem mãe. Se eu não deito a mão àquilo, os velhos ficam
sem nada e têm de viver de esmolas, Deus nos guarde. Ouve, irmão,
não me aguento nas pernas, e aqui também abafo ... Vamos dormir...
5

Gússev volta para a enfermaria e deita-se no catre. Continua a


oprimi-lo um desejo incerto, mas não consegue perceber o que quer.
Tem no peito um aperto, a cabeça palpita-lhe, na boca tem tanta
secura que lhe é penoso mexer a língua. Dormita e delira e, esgotado
pelos pesadelos, pelo sufoco e pela tosse, adormece profundamente
ao amanhecer. Sonha que acabaram de cozer o pão no forno da
caserna e ele se meteu dentro do forno e toma lá banho de vapor
fustigando-se com ramos de bétula. Dorme dois dias e, ao terceiro,
vêm dois marinheiros de cima e levam-no da enfermaria.
Embrulham-no na lona e, para fazer peso, metem duas grades de
ferro dentro, depois cosem a lona. Dentro da lona parece uma
cenoura ou um nabo: largo na cabeça, estreito nos pés ... Antes de o
sol se pôr levam-no para o convés e põem-no em cima de uma
prancha assente na amurada, uma ponta, e numa caixa em cima de
um banco, a outra ponta. À volta os desmobilizados e a tripulação,
todos sem chapéu.
— Abençoado seja Nosso Senhor — começa o padre —, agora e
para sempre, e por todos os séculos dos séculos!
— Amén! — cantam três marinheiros.
Os desmobilizados e a tripulação persignam-se e lançam olhares
de viés para as ondas. Estranho que um homem seja embrulhado
numa lona e atirado às ondas. Será possível que possa acontecer a
qualquer um?
O padre deita terra em cima de Gússev e faz a reverência. É
cantada a «memória eterna».
O marinheiro de quarto ergue a extremidade da prancha e Gússev
desliza por ela, cai de cabeça para baixo, dá uma volta no ar e - zás! -
a espuma cobre-o, por um instante parece envolto em rendas, passa
outro instante — desaparece nas ondas.
Afunda-se rapidamente. Chegará ao fundo? Até ao fundo, dizem, é
quase uma légua. Ao cabo de oito ou dez braças começa a descer
mais devagar, baloiçando compassadamente, como que a reflectir, e,
arrastado por uma corrente, desliza mais para o lado do que desce ao
fundo.
Agora encontra pelo caminho um cardume de peixes a que
chamam pilotos. Ao verem um corpo escuro, os peixes estacam
petrificados e, todos ao mesmo tempo, dão meia volta e
desaparecem. Não passa um minuto e já eles, velozes como flechas,
voltam a arremessar-se contra Gússev e começam a cortar em
ziguezagues a água à volta dele ...
Depois aparece outro corpo escuro. Um tubarão. Com uma
imponência vagarosa, indiferente, como se não reparasse em Gússev,
nada para debaixo dele, e ele desce sobre as costas do tubarão; o
tubarão vira-se de barriga para cima, refastelado na água tépida e
transparente, e abre preguiçosamente as fauces com duas fieiras de
dentes. Os pilotos estão entusiasmados; param e olham, curiosos
com o que virá a seguir. Depois de brincar um pouco com o corpo, o
tubarão, lasso, toca-o ligeiramente com os dentes e a lona rasga-se a
todo o comprido, da cabeça aos pés; uma grelha solta-se e,
assustando os pilotos e batendo de lado no tubarão, vai rapidamente
ao fundo.
Neste momento, em cima, do lado onde se põe o sol, apertam-se as
nuvens; uma assemelha-se a um arco de triunfo, a outra a um leão, a
terceira a uma tesoura ... De trás das nuvens sai um raio largo e verde
que se estende até meio do céu; logo após, ao lado do raio verde
estende-se um raio violeta, a seguir um dourado, depois um rosado...
O céu toma-se cor de lilás temo. Olhando para este céu magnífico,
encantatório, o oceano fica, a princípio, carrancudo, mas breve
adquire ele próprio umas cores meigas, alegres, apaixonadas, a que é
difícil arranjar nomes na língua humana.
LAVANDISCA

Ao casamento de Olga Ivánovna não faltou nenhum amigo ou


conhecido dela.
— Olhem para ele: então não há qualquer coisa nele? - dizia ela aos
amigos, acenando na direcção do marido e como desejando explicar
por que se casara com um homem tão simples, tão vulgar, tão pouco
vistoso.
O marido, Óssip Stepánitch Dímov, era médico e tinha a patente
social de conselheiro titular. Prestava serviço em dois hospitais:
num, como interno extranumerário, noutro, como
anatomopatologista. Todos os dias, das nove ao meio-dia, dava
consultas e fazia tratamentos aos doentes no seu serviço, à tarde ia
de «americano» para outro hospital, onde fazia autópsias. Fazia
também alguma clínica privada, insignificante, donde não tirava
mais de quinhentos rublos por ano. E mais nada. O que mais se
podia dizer dele? Entretanto, Olga Ivánovna e os amigos e
conhecidos eram pessoas nada vulgares. Cada qual, a seu modo, era
uma pessoa notável e mais ou menos famosa, já com nome firmado e
já vista como celebridade ou, então, ainda sem fama mas
prometendo muito. Um era actor dramático, um grande talento
havia muito reconhecido, homem elegante, inteligente e modesto, e
ainda excelente declamador, que ensinava Olga Ivánovna a recitar;
outro, gordo bonacheirão, era cantor de ópera, e garantia a Olga
Ivánovna, suspirando, que ela desperdiçava o seu talento: se não
mandriasse e fizesse um esforço, dava uma excelente cantora; depois
havia vários pintores, encabeçados pelo pintor de género, animalista
e paisagista Riabóvski, jovem loiro e muito bonito, dos seus vinte e
cinco anos, com grande êxito nas exposições e que vendera o seu
último quadro por quinhentos rublos; este emendava os estudos de
Olga Ivánovna e dizia que talvez ela ainda viesse a fazer alguma coisa
de jeito; depois, havia um violoncelista, que fazia chorar o
instrumento e que confessava sinceramente que, de todas as
mulheres que conhecia, só uma sabia acompanhá-lo ao piano: Olga
Ivánovna; depois, um literato jovem mas já conhecido, autor de
novelas, peças teatrais e contos. Quem mais? Ah, sim, ainda Vassíli
Vassílitch, um senhor proprietário rural, ilustrador e vinhetista
diletante, com forte sensibilidade para o estilo antigo russo, para as
gestas e obras épicas; no papel, na porcelana e nos pratos
enegrecidos de fumo produzia, literalmente, milagres. No meio desta
companhia artística, livre e mimada pelo destino, embora, verdade
seja dita, delicada e modesta, que só se lembrava da existência dos
médicos em caso de doença e para a qual o nome Dímov soava tão
impessoal como Sídorov ou Tarássov, pois bem, no meio desta
companhia Dímov parecia alheio, estranho e pequeno, apesar de alto
e espadaúdo. Parecia que a casaca que vestia era emprestada e usava
uma barbicha à empregado de balcão. Fosse ele porém escritor ou
pintor, diriam que com aquela barbicha lembrava Zola.
O actor dizia a Olga Ivánovna que ela, com aquele cabelo cor de
estriga e o vestido de noiva, parecia uma gingeira nova e esbelta
quando, na Primavera, se cobre de temas flores brancas.
— Não, oiça! - dizia-lhe Olga Ivánovna, pegando-lhe na mão. -
Como foi possível isto acontecer? Então oiça, oiça ... Deve saber que
o meu pai trabalhava no mesmo hospital que o Dímov. Quando o
pobre do meu pai adoeceu, o Dímov não saía da cabeceira da cama
dele, dia e noite. Tanto sacrifício de si mesmo! Oiça, Riabóvski ... E
você, o escritor, oiça também, que isto é muito curioso. Venha aqui
para mais perto. Tanto sacrifício de si, uma preocupação tão sincera!
Eu, claro, também não pregava olho à noite, sempre à cabeceira do
meu pai e, de repente, vejam lá, venci o homem! O meu Dímov
apaixonou-se por mim como um louco. Palavra, o destino às vezes é
tão estranho. Ora bem, depois da morte do meu pai, ele passou a
visitar-me, às vezes encontrávamo-nos na rua, e uma bela noite —
zás! — propôs-me casamento ... foi como raio caído de um céu sem
nuvens ... Chorei toda a noite e também me apaixonei terrivelmente.
E pronto, tomei-me a esposa dele, como estão a ver. Não é verdade
que há nele alguma coisa de forte, de potente, de ursino? Bem, a cara
dele agora está voltada para nós a três quartos, mal alumiada, mas
quando virar a cabeça, olhem bem para a fronte dele. Riabóvski, o
que me diz daquela fronte? Dímov, estamos a falar de ti! — gritou
para o marido. — Vem cá. Estende a tua mão honrada ao Riabóvski
... Assim mesmo. Sejam amigos.
Dímov, sorrindo bondosa e ingenuamente, estendeu a mão a
Riabóvski e disse:
— Muito prazer. Também acabou o curso comigo um Riabóvski.
Não será seu parente?

Olga Ivánovna tinha vinte e dois anos, Dímov trinta e um. Depois
do casamento, iniciaram uma vida maravilhosa. Olga Ivánovna
cobriu todas as paredes da sala de estar com os estudos dela e de
outros, com molduras e sem molduras, e ao lado do piano de cauda e
junto dos móveis instalou arranjos bonitos de guarda-sóis chineses,
cavaletes, paninhos multicores, pu-nhais, pequenos bustos,
fotografias... Na sala de jantar colou às paredes quadros de lubok(33),
pendurou láptis(34) e foices, pôs num canto uma gadanha e um
ancinho, e assim recriou uma sala de jantar à moda russa. No quarto
de dormir, para o tomar parecido com uma caverna, forrou o tecto e
as paredes com pano escuro, pendurou por cima das camas uma
lanterna veneziana, e à porta colocou uma figura com alabarda. Toda
a gente achava encantador o ninho do jovem casal.
Todos os dias, ao levantar-se da cama por volta das onze, Olga
Ivánovna tocava piano ou, se estivesse sol, pintava um pouco a óleo.
Depois do meio-dia ia a casa da modista. Como ela e Dímov tinham
pouco dinheiro, apenas para o indispensável, Olga Ivánovna e a
modista eram obrigadas a usar de astúcia para ela aparecer em
sociedade sempre com roupa nova. Não raro, de um vestido velho
tingido, de retalhos de tule, renda, pelúcia e seda sem qualquer valor
resultavam milagres, coisas encantadoras, vestidos de sonho. De casa
da modista, Olga Ivánovna costumava ir de visita a alguma actriz
conhecida para saber notícias teatrais e, a propósito, tratar dos
bilhetes para a estreia de uma peça nova ou de um espectáculo de
beneficência. Da casa de actriz ia a casa do pintor ou a uma exposição
de pintura, depois ia visitar alguma celebridade - para a convidar
para sua casa, ou retribuir uma visita, ou, simplesmente, tagarelar.
Por todo o lado a recebiam com agrado e amizade e lhe reafirmavam
que era linda, simpática, uma coisinha rara ... Os chamados famosos
e grandes recebiam-na como a uma igual e prediziam-lhe, em
uníssono, que com os seus talentos, gosto e intelecto, se não se
dispersasse, iria longe na criação de alguma coisa de valor. Cantava,
tocava piano, pintava, esculpia, representava em espectáculos
amadores, não de qualquer maneira, mas com talento; fizesse ela
lanternas para a iluminação, ataviasse-se, atasse ela a gravata de
alguém - tudo lhe saía incrivelmente artístico, gracioso, bonito. O
verdadeiro talento dela, porém, era a capacidade de conhecer muito
rapidamente pessoas famosas e de travar com elas uma amizade
íntima. Bastava alguém ficar célebre, poucochinho que fosse, desde
que se falasse nele, e já ela lhe era apresentada, se tomava sua amiga
e o convidava no mesmo dia para sua casa. Cada novo conhecimento
era para ela uma verdadeira festa. Divinizava os famosos, orgulhava-
se deles e todas as noites sonhava com eles. Ansiava por eles e nunca
fartava a sede que tinha deles. Desapareciam e caíam no
esquecimento os antigos, arranjava novos; os novos depressa lhe
entravam no hábito ou a desiludiam, procurava avidamente outros
novos e grandes homens, encontrava-os, voltava a procurar. Para
quê?
Depois das quatro, almoçava em casa com o marido. A
simplicidade, o senso comum, a bondade dele enchiam Olga
Ivánovna de enternecimento e entusiasmo. Volta e meia saltava do
lugar, abraçava impetuosamente a cabeça dele e cobria-lha de beijos.
— Tu , Dímov, és um homem nobre e inteligente — dizia — , mas
tens um defeito muito grave. Não te interessas pelas coisas da arte.
Negas a música e a pintura.
— Não percebo nada disso — respondia o marido com resignação.
— Toda a vida agarrado às ciências naturais e à medicina, que tempo
tinha para as artes?
— Mas isso é horrível, Dímov!
— Porquê? Os teus amigos não conhecem as ciências naturais nem
a medicina, mas tu não lho censuras. Cada qual no seu ramo. Eu não
entendo de paisagens nem de óperas, mas penso assim: se há
pessoas inteligentes que lhes dedicam uma vida inteira e há outras
pessoas inteligentes que pagam fortunas por elas, então é porque são
necessárias. Eu não as compreendo, mas não compreender não é
negar.
— Deixa-me apertar a tua mão honrada!
Depois do almoço, Olga Ivánovna ia visitar amigos, a seguir ao
teatro ou ao concerto, voltando para casa depois da meia-noite. E
assim todos os dias.
Às quartas, recebia. Eram serões em que anfitriã e convidados não
jogavam às cartas nem dançavam mas se entretinham nas artes. O
actor dramático recitava, o cantor cantava, os pintores desenhavam
nos álbuns que Olga Ivánovna possuía em profusão, o violoncelista
tocava, a anfitriã desenhava, esculpia, cantava e acompanhava ao
piano. Nos intervalos da recitação, da música e do canto, falava-se,
discutia-se: literatura, teatro, pintura. Não havia senhoras porque,
para Olga Ivánovna, todas as senhoras com excepção das actrizes e
da sua modista, eram aborrecidas e vulgares. Não passava um serão
sem que a anfitriã não estremecesse a cada toque de campainha e
não dissesse, de cara triunfal: «É ele!», subentendendo-se por «ele»
alguma nova celebridade convidada. Dímov nunca estava presente
na sala de estar, nem ninguém se lembrava da sua existência. Porém,
às onze e meia em ponto, a porta que dava para a sala de jantar
abria-se e aparecia Dímov com o seu sorriso bondoso e meigo, que
anunciava, esfregando as mãos:
— Meus senhores, por favor, são horas de comer alguma coisa.
Todos passavam à sala de jantar e deparavam sempre com a
mesma coisa na mesa: uma pratada de ostras, presunto ou vitela,
sardinhas, queijos, caviar, cogumelos salgados, vodka e dois jarros de
vinho.
— Meu querido maitre d'hôtel dizia Olga Ivánovna abanando as
mãos de admiração. - És um querido encantador! Meus senhores,
olhem para a fronte dele! Dímov, vira-te de perfil. Meus senhores,
olhem: cara de tigre de Bengala, mas a expressão querida e bondosa
do veado. Aah, querido!
Os convidados comiam e, olhando para Dímov, diziam para
consigo: «realmente, muito simpático», mas logo se esqueciam dele
e continuavam a falar de teatro, de música, de pintura.
O jovem casal era feliz, a vida corria-lhes às mil maravilhas. Isto
embora a terceira semana da lua-de-mel não tenha corrido muito
bem, podendo até dizer-se que foi triste. Dímov apanhou erisipela no
hospital, por contágio, tendo ficado de cama seis dias e sendo
obrigado a rapar o seu bonito cabelo preto. Olga Ivánovna sentava-se
à cabeceira dele a chorar amargamente, mas, quando começou a ver
melhoras nele, atou-lhe um lenço branco na cabeça rapada e
começou a retratá-lo no papel de beduíno. E ambos se divertiam
muito. Três dias depois de recuperado e já no hospital, novo sarilho
aconteceu.
— Tenho pouca sorte, mamã! — disse ao almoço. — Hoje tive
quatro autópsias, e cortei-me, logo em dois dedos. Só reparei nisso
em casa.
Olga Ivánovna assustou-se. Dímov sorriu e disse que não era nada,
o que mais lhe acontecia era cortar-se nas mãos quando autopsiava.
— Entusiasmo-me, mamã, e depois não tenho cuidado.
Olga Ivánovna, alarmada, temia a infecção pela ptomaína e,
pelas noites, fartava-se de rezar a Deus. Felizmente, tudo acabou
bem. De novo a vida retomou o seu curso calmo e feliz, sem grandes
tristezas nem preocupações. O presente era maravilhoso e não
tardaria a dar lugar à Primavera que se aproximava, a sorrir de longe
e com promessas de mil alegrias. Então, seria a felicidade perfeita!
Em Abril, Maio e Junho, a casa de campo bem longe da cidade, os
passeios, os estudos de pintura, a pesca, os rouxinóis; de Julho até ao
Outono, uma viagem dos pintores ao Volga na qual, como membro
imprescindível da société, Olga Ivánovna também participaria. Já
mandara fazer dois fatos de viagem em linho, comprara tintas,
pincéis, telas e uma paleta nova. Quase todos os dias Riabóvski ia ver
que progressos ela fizera na pintura. Olhava para os trabalhos, com
as mãos enterradas no fundo dos bolsos, apertava os lábios, fungava
e dizia:
— Pois ... Esta sua nuvem berra; a luz que a alumia não é a do
entardecer. O primeiro plano está desbotado, e há aqui qualquer
coisa, percebe, que não bate certo ... E esta sua casinha engasgou-se
com alguma coisa e está a lamuriar-se ... seria preciso fazer este
canto aqui mais escuro. Mas, no geral, não está mau... Parabéns.
E quanto mais incompreensíveis eram as palavras de Riabóvski,
melhor Olga Ivánovna o compreendia.

No dia a seguir à Trindade, depois do almoço, Dímov comprou


petiscos e doces e foi à casa de campo ver a mulher. Não a via há
duas semanas e tinha muitas saudades. Sentado na carruagem do
comboio e, depois, quando procurava no meio da grande floresta a
sua casa de campo, Dímov, cansado e esfomeado, só pensava em
jantar em sossego com a mulher e depois cair na cama, dormir. E era
para ele uma alegria olhar para o embrulho com caviar, queijo e
salmão que levava.
Já se punha o sol quando encontrou a casa e a reconheceu. A velha
criada disse-lhe que a senhora não estava mas que não devia
demorar. A casa de campo, bastante desengraçada, com tectos baixos
forrada a papel almaço e um chão irregular cheio de fendas, constava
apenas de três assoalhadas. Numa estava a cama; noutra, espalhados
pelas cadeiras e pelos peitoris das janelas, pincéis, telas, papel
ensebado, casacos e chapéus de homem; na terceira, Dímov deparou
com três homens que não conhecia. Dois eram morenos e com
barbichas, o terceiro era gordo, com a cabeça e o rosto rapados, pelos
vistos um actor. Em cima da mesa, fervia o samovar.
— O que deseja? - perguntou o actor em voz de baixo, ao mesmo
tempo que examinava, insociável, Dímov. - Procura Olga Ivánovna?
Espere, que ela já vem.
Dímov -sentou-se à espera. Um dos morenos, lançando-lhe olhares
moles e sonolentos, serviu-se de chá e perguntou:
— Quer chá?
Dímov estava cheio de fome e de sede, mas recusou o chá, para
não estragar o apetite. Não tardou a ouvir passos e risos familiares; a
porta bateu, logo a seguir entrou a correr no quarto Olga Ivánovna,
de chapéu de abas largas e uma caixa na mão, e logo atrás,
carregando com um chapéu de sol grande e uma cadeira
desdobrável, entrou Riabóvski, alegre, de faces rosadas.
— Dímov! - exclamou Olga Ivánovna e corou de alegria. — Dímov!
— repetiu, pondo-lhe no peito a cabeça e as mãos. - Tu! Por que
demoraste tanto tempo a vir? Porquê?
— Como é que podia, mamã? Estou sempre ocupado e, quando
tenho algum tempo livre, o horário dos comboios nunca dá.
— Estou tão feliz por te ver! Sonhei toda a noite contigo, toda a
santa noite, e estava com medo que tivesses adoecido. Ah, se
soubesses o querido que tu és e como chegaste a propósito! Vais ser a
minha salvação! Só tu, só tu é que me podes salvar! Amanhã vai
haver aqui um casamento, mas um casamento originalíssimo —
continuava ela, rindo-se e compondo-lhe o nó da gravata. — Casa-se
um jovem, o telegrafista da estação dos comboios, um tal
Tchikeldéev. Um rapaz bem apessoado, nada estúpido e, sabes, tem
na cara qualquer coisa de forte, de ursino... Podia-se utilizá-lo como
modelo para um jovem viquingue. Todos os veraneantes daqui
querem ser simpáticos com ele, e nós demos-lhe a palavra de honra
que íamos ao casamento dele ... É um homem de poucos recursos,
solitário, tímido e, estás a ver, até era pecado recusar-lhe a nossa
atenção. Imagina o casamento, a seguir à missa, depois toda a gente
a pé, até à casa da noiva... estás a imaginar, a floresta, o trinado dos
pássaros, os reflexos do sol na relva, e nós todos, como manchas de
cores num fundo verde-vivo ... tão original, ao gosto dos
impressionistas franceses. Mas, Dímov, estás a ver, o que vou vestir
para ir à igreja? — disse Olga Ivánovna e fez uma cara de choro. —
Não tenho aqui nada, literalmente nada! Nem vesti-dos, nem flores,
nem luvas ... Tens de me salvar. Se vieste, foi porque o próprio
destino te enviou para me salvares. Pega nas chaves, querido, vai a
casa e procura no guarda-roupa o meu vestido cor-de-rosa, estás a
ver, é logo o primeiro que está pendurado ... Depois, no chão da
despensa, do lado direito, estão duas caixas de cartolina. Abres a de
cima, vês logo tule, tule, tule, uns retalhos, e em baixo as flores. Tira
as flores todas com cuidado, tenta não as estragares, meu anjo,
depois eu escolho ... E compra-me luvas.
— Está bem — disse Dímov. — Amanhã vou e mando-te isso tudo.
— Amanhã? — espantou-se Olga Ivánovna. — Como é que ias ter
tempo? O primeiro comboio é às nove e o casamento é às onze. Não,
querido, tens de ir hoje, sem falta! Se amanhã não puderes vir,
manda um estafeta. Vai, vai ... Deve estar o comboio a chegar. Não
me percas o comboio, alminha.
— Está bem.
— Ah, que pena me faz deixar-te ir assim embora - disse Olga
Ivánovna, e as lágrimas marejaram-lhe os olhos. - Fui parva, não
devia ter dado a minha palavra ao telegrafista.
Dímov bebeu rapidamente um copo de chá, pegou numa rosca e,
sorrindo meigamente, foi para a estação. O caviar, o queijo e o
salmão foram comidos por dois homens morenos e um actor gordo.

Numa noite calma e luarenta de Julho, Olga Ivánovna estava no


convés do vapor do Volga e olhava ora a água, ora as margens
aprazíveis. A seu lado estava Riabóvski e dizia-lhe que as sombras
negras na água não são sombras, mas sonhos, que à vista desta água-
bruxa com seu brilho fantástico, à vista deste céu sem fundo e das
margens tristes e pensativas que nos falam da vaidade da vida e nos
dizem da existência de alguma coisa superior, eterna, beatífica, seria
bom adormecer, morrer, tornar-se lembrança. O passado é vulgar,
sem interesse, o futuro é insignificante, e esta noite divina, única em
toda uma vida, acaba depressa, funde-se com a eternidade - então,
para quê viver?
Olga Ivánovna escutava ora a voz de Riabóvski, ora o silêncio da
noite, e pensava que não morreria nunca, ela, achava-se imortal. O
azul-turquesa da água, que nunca antes vira, o céu, as margens, as
sombras negras e a felicidade inconsciente que lhe enchia a alma
diziam-lhe que daria uma grande pintora e que algures, para lá do
horizonte, atrás da noite luarenta, a esperavam no espaço infinito o
êxito, a fama, o amor do povo ... Quando, sem pestanejar, olhava o
longe demoradamente, surgiam na sua imaginação multidões, luzes,
sons sonolentos da música, gritos de entusiasmo, ela de vestido
branco e as flores em catadupa a caírem-lhe em cima de todo o lado.
Pensava que também agora, ali a seu lado, com os cotovelos apoiados
na amurada, estava um verdadeiro grande homem, um génio, um
eleito de Deus ... Tudo o que ele criara até ao momento era
maravilhoso, novo e invulgar, e tudo o que criaria no futuro, quando
se lhe consolidasse com a maturidade o talento raro, seria espantoso,
inatingível de elevado, e isso via-se-lhe no rosto, na maneira de falar,
no seu trato com a natureza. Falava das sombras, dos tons do
crepúsculo, do brilho do luar de um modo único, numa linguagem
própria, e sentia-se involuntariamente o encanto do seu poder sobre
a natureza. É um homem belo, original, tem a vida de um pássaro,
independente, livre, alheia a todo o quotidiano.
— Está a ficar fresco - disse Olga Ivánovna e estremeceu.
Riabóvski agasalhou-a com a sua capa e disse com tristeza:
— Sinto-me em seu poder. Seu escravo. Por que está hoje tão
encantadora?
Não tirava os olhos dela, e eram assustadores aqueles olhos, ela
tinha medo de o olhar na cara.
— Amo-a loucamente ... - sussurrava Riabóvski respirando-lhe
para a face. - Diga uma só palavra e deixo de viver, abandono a arte...
- murmurava, muito emocionado. - Ah, se me amasse ...
— Não fale assim — disse Olga Ivánovna, fechando os olhos. - Até
mete medo. E Dímov?
— Que Dímov? Porquê Dímov? O que me interessa o Dímov? O
Volga, a lua, esta beleza, o meu amor, o meu êxtase, e deixa de existir
qualquer Dímov... Ah, não sei, não sei nada ... Rejeito o passado, dê-
me este instante ... este momento!
Bateu-lhe forte o coração, a Olga Ivánovna. Bem queria pensar no
marido, mas todo o seu passado de casada, de Dímov e dos serões lhe
parecia insignificante, baço, inútil e, sobretudo, tão longínquo ...
Realmente: que Dímov? Porquê o Dímov? O que lhe interessa o
Dímov? De resto, existirá o Dímov na natureza, não será apenas um
sonho?
«A ele, homem simples e vulgar, já lhe basta a felicidade que teve -
pensava ela tapando a cara com as mãos. - Que me censurem lá, que
me amaldiçoem, mas eu, contra tudo e contra todos, vou para a
perdição, vou mesmo para a perdição ... É necessário experimentar
tudo na vida. Meu Deus, que terrível e que bom!»
— Então? Então? — murmurava o pintor abraçando-a e beijando-
lhe com avidez as mãos com que ela tentava tenuemente afastá-lo de
si. - Amas-me? Sim? Sim? Oh, que noite! Noite divina!
— Sim, que noite! — sussurrou ela, olhando-o nos olhos brilhantes
de lágrimas, depois olhou rapidamente para trás, abraçou-o e beijou-
o na boca.
— Estamos a chegar a Kínechma! - disse alguém no outro lado do
convés.
Ouviram-se passos pesados. Era um empregado do bufete a
passar.
— Oiça — disse-lhe Olga Ivánovna, rindo e chorando de felicidade
-, traga-nos vinho.
O pintor, pálido da emoção, sentou-se no banco, olhou Olga
Ivánovna com olhos a transbordar de adoração e reconhecimento,
depois fechou-os e disse sorrindo languidamente:
— Estou cansado.
E apoiou a cabeça na amurada.

5
O dia 2 de Setembro corria tépido e calmo, mas sombrio. De
manhã cedo vogava sobre o Volga uma neblina leve, depois das nove
começou a chuviscar. Não havia esperanças de o céu se desanuviar.
Quando tomavam chá, Riabóvski dizia a Olga Ivánovna que a pintura
era a mais enfadonha e ingrata das artes, que ele não era pintor
nenhum, que só os parvos pensavam que ele tinha talento, e num
gesto repentino pegou na faca e arranhou com ela o seu melhor
estudo, assim, sem mais. Depois do chá foi sentar-se à janela,
carrancudo, a olhar para o Volga. O Volga perdera o brilho, ia baço,
opaco, arrepiado de frio. Tudo, tudo lembrava que o tristonho e
sombrio Outono se aproximava. Parecia que a natureza já tirara ao
Volga os luxuosos tapetes verdes das margens, os reflexos
diamantinos dos raios, o horizonte azul e transparente, e tudo o que
era roupa elegante e garrida, tudo o que era de gala, arrumara-o nas
arcas até à próxima Primavera, e que as gralhas voavam à beira do
Volga e gozavam com ele: «Estás nu! Estás nu!» Riabóvski ouvia os
grasnidos das gralhas e pensava como já se exaurira e perdera a
chama do talento, como tudo no mundo era convencional e estúpido,
e que não deveria ter-se deixado prender por esta mulher... Numa
palavra, estava de mau humor, a puxar para o hipocondríaco ...
Olga Ivánovna estava sentada na cama colocada por trás de um
tabique e, passando os olhos pelo seu maravilhoso cabelo cor de
linho, imaginava-se ora na sua sala de estar, ora no quarto de
dormir, ora no gabinete do marido; a imaginação levava-a ao teatro,
à modista, aos amigos de renome. O que estarão a fazer neste
momento? Lembrar-se-ão dela? Começara a temporada, era altura
de pensar em receber de novo. E o Dímov? Querido Dímov! Que
meiguice e que súplica infantil ao pedir-lhe nas cartas para voltar o
mais depressa possível para casa! Todos os meses lhe mandava
setenta e cinco rublos e, quando ela lhe escreveu a dizer que devia
cem rublos aos pintores,' enviou-lhe também esses cem. Que homem
bondoso, magnânimo! A viagem já cansara Olga Ivánovna,
aborrecia-se, apetecia-lhe fugir o mais depressa possível destes
mujiques, do cheiro húmido do rio, livrar-se desta sensação de
impureza física que não a largava, vivendo nas izbás dos camponeses
e errando de aldeia em aldeia. Se Riabóvski não tivesse dado aos
pintores a sua palavra de honra de que ficaria com eles até 20 de
Setembro, poderiam partir hoje mesmo. E que bom seria!
— Meu Deus! — gemeu Riabóvski. — Quando haverá finalmente
sol? Como posso avançar com a paisagem de sol sem sol? ...
— Mas também tens um estudo com céu nublado - disse Olga
Ivánovna, saindo de trás do tabique. — Lembras-te? À direita a
floresta, à esquerda uma manada de vacas e gansos. Podias
aproveitar para acabá-lo.
— Eeh lá! — franziu a cara o pintor. - Acabá-lo! E a senhora acha
que eu sou assim tão parvo que não saiba o que hei-de fazer?
— Como mudaste para comigo! — suspirou Olga Ivánovna.
— Ainda bem.
O rosto de Olga Ivánovna tremeu. Afastou-se para junto do fogão e
chorou.
— Pronto, só cá faltavam as lágrimas. Deixe-se disso! Tenho
milhares de razões para chorar e não choro.
— Milhares de razões! - soluçou Olga Ivánovna. - A razão principal
é que eu já começo a ser um fardo pesado para si. Sim! - disse ela, e
redobrou de choro. - Se quer saber toda a verdade, acho que tem
vergonha do nosso amor. Faz tudo para que os pintores não notem
nada, embora isso seja impossível e eles já saibam tudo há muito.
— Olga, só lhe peço uma coisa - disse o pintor, suplicante e levando
uma mão ao coração -, só uma coisa: não me torture! Não quero mais
nada de si!
— Mas jure que ainda me ama!
— Isto é um tormento! - disse entre dentes o pintor, erguendo-se
de um salto. - Se isto continua assim, atiro-me ao Volga ou
enlouqueço! Deixe-me em paz!
— Então mate-me, mate-me! - gritou Olga Ivánovna. — Mate-me !
Desatou outra vez a chorar e refugiou-se atrás do tabique. No
telhado de palha restolhava a chuva. Riabóvski agarrou-se à cabeça e
pôs-se a andar de um canto ao outro do quarto, depois, com uma
cara decidida, como se quisesse provar alguma coisa a alguém, pôs o
boné, lançou ao ombro a espingarda e saiu da izbá.
Ao ficar sozinha, Olga Ivánovna estendeu-se na cama e chorou
muito. Primeiro, pensou que seria bom envenenar-se para que
Riabóvski, ao voltar, a encontrasse morta; depois, os pensamentos
levaram-na para a sua sala de estar, para o gabinete do marido, e
imaginou-se sentada muito quieta, ao lado de Dímov, deliciando-se
com o sossego físico e o asseio, e depois, à noite, a ouvir Masini(35) no
teatro. Apertou-lhe o coração a saudade da civilização, o barulho da
cidade e a falta dos famosos. A campónia que os alojava entrou na
izbá e começou, sem pressas, a acender o fogão para preparar o
almoço. Espalhou-se um cheiro a fuligem, o ar ficou azul de fumo.
Entravam pintores, de botas altas e enlameadas, os rostos vermelhos
da chuva, e punham-se a apreciar os estudos dizendo, para se
consolar, que até durante o mau tempo o Volga tinha a sua graça. E o
relógio barato na parede: tiquetaque, tiquetaque ... As moscas,
tolhidas de frio, amontoavam-se ao lado do ícone e zumbiam, as
baratas farfalhavam debaixo dos bancos, nas pastas grossas dos
desenhos ...
Riabóvski voltou a casa ao pôr do sol. Atirou com o boné para cima
da mesa e, pálido, extenuado, com as botas sujas, sentou-se no banco
e fechou os olhos.
— Estou cansado ... — disse ele, e erguia as sobrancelhas, tentando
manter os olhos abertos.
Com vontade de o acalentar e para lhe mostrar que não estava
ressentida, Olga Ivánovna aproximou-se dele, beijou-o em silêncio e
passou-lhe o pente pelo cabelo loiro. Apeteceu-lhe penteá-lo.
— O que é isto? - estremeceu Riabóvski, como se lhe tivessem
tocado com alguma coisa fria, e abriu os olhos. — O que quer? Deixe-
me em paz, por favor.
Arredou-a com as mãos e levantou-se, detectando Olga Ivánovna
alguma repugnância e desgosto no rosto dele. Neste momento, a
campónia trazia para ele um prato de sopa de repolho, pegando-lhe
com todo o cuidado com as duas mãos, e Olga Ivánovna viu que a
mulher metera os dois polegares dentro da sopa. Aquela campónia
suja com a barriga grande cingida, a sopa de repolho que Riabóvski
devorava com avidez, e toda aquela vida de que, a princípio, gostara
tanto pela sua simplicidade e uma certa desordem artística,
pareciam-lhe agora tenebrosas. Sentiu-se de repente insultada e
disse com frieza:
— Precisamos de nos separar por algum tempo, senão, com este
tédio aqui, somos capazes de nos zangar a sério. Estou farta disto.
Vou-me embora hoje.
— E como vais? Montada num pau?
— Hoje é quinta, às nove e meia chega o vapor.
— Sim? Pois, pois ... Está bem, então vai ... — disse Riabóvski
meigamente, limpando os lábios com uma toalha em vez do
guardanapo. — Aborreces-te aqui, não tens nada que fazer, seria
egoísmo da minha parte estar a reter-te. Vai, vemo-nos depois do dia
vinte.
Olga Ivánovna fazia as malas com alegria, até com as faces
incendiadas de prazer. A sério, perguntava-se ela, que daqui a pouco
vai pintar na sala de estar, dormir no quarto e almoçar a uma mesa
com toalha? Sentiu um alívio tão grande que se lhe dissipou o rancor
contra Riabóvski.
— Deixo-te as tintas e os pincéis, Riabucha — dizia. — O que
sobrar, levas ... Agora vê lá, sem mim, se começas a mandriar; não
faças isso, trabalha. És o meu lindo menino, Riabucha.
Às nove, à despedida, Riabóvski deu-lhe um beijo, para não ter de
a beijar — pensava ela — ao pé do vapor, na presença dos pintores.
Acompanhou-a ao cais. Pouco depois chegou o vapor e levou-a.
Chegou a casa dois dias e meio depois. Sem tirar o chapéu nem o
impermeável, ofegante de emoção, entrou pela sala de estar adentro
e de lá passou à sala de jantar. Dímov, sem sobrecasaca, com o colete
desabotoado, estava à mesa e afiava a faca no garfo; tinha à frente
um prato com uma perdiz. Olga Ivánovna, ao entrar no apartamento,
levava a firme convicção de que era preciso esconder tudo do marido
e de que teria para isso a capacidade e a força, mas agora, ao ver o
sorriso largo, meigo e feliz de Dímov, e os seus olhos a brilharem de
alegria, sentiu que enganar um homem daqueles era tão ignóbil,
abominável e impossível, tão fora das suas capacidades, como
caluniar, roubar ou matar; decidiu, no instante, contar-lhe tudo.
Depois de deixar que ele a beijasse e abraçasse, pôs-se de joelhos
diante dele e tapou a cara com as mãos.
— O que é isso, o que é isso, mamã? — perguntou ele com ternura.
— Tiveste saudades?
Ela ergueu o rosto, vermelho de vergonha, e ficou-se a olhar para
ele, culpada, suplicante; mas o medo e a vergonha impediram-na de
dizer a verdade.
— Não é nada... — disse. — Nada...
— Senta-te — disse ele, levantando-se e sentando-a à mesa. —
Assim mesmo ... Come a perdiz. Tens fome, coitadinha.
Ela inspirava com avidez o ar familiar e comia a perdiz, e o marido
olhava para ela, enternecido, e ria, todo feliz.

6
Pelos vistos, foi nos meados do Inverno que Dímov começou a
perceber que era enganado. Como se tivesse um peso na consciência,
já não podia olhar a mulher nos olhos, já não sorria feliz quando a via
e, para ficar menos tempo a sós com ela, trazia muitas vezes a
almoçar o colega Korosteliov, homenzinho de cabelo curto e uma
cara devastada que, quando falava com Olga Ivánovna, desabotoava
por atrapalhação todos os botões do casaco e depois começava a
beliscar com a mão direita o bigode esquerdo. Ao almoço, os dois
médicos falavam de que, derivado à posição demasiado alta do
diafragma, acontecia muitas vezes uma arritmia do coração, ou de
que, ultimamente, as nevrites múltiplas eram muito frequentes, ou
de que, no dia anterior, Dímov, ao abrir um cadáver com o
diagnóstico «anemia maligna», descobrira cancro do pâncreas. E
parecia que aquela conversa profissional se destinava apenas a
permitir que Olga
Ivánovna ficasse calada, ou seja, não mentisse. Depois do almoço,
Korosteliov sentava-se ao piano, Dímov suspirava e dizia-lhe:
— Eh, amigo! Pois . .. Ouve, toca alguma coisa triste.
Levantando os ombros e abrindo muito os dedos, tirava uns
acordes e começava a cantar em tenor: «Mostra-me um retiro onde
não gema o mujique russo...»(36), e Dímov voltava a suspirar, apoiava
a cabeça no punho e ficava pensativo.
Ultimamente, Olga Ivánovna portava-se com extrema
imprudência. Acordava todas as manhãs de muito mau humor e com
a ideia de que já não gostava de Riabóvski e que, graças a Deus, já
acabara tudo. Mas, depois de tomar café, lembrava-se que Riabóvski
fora o culpado de ela perder o marido e que agora estava sem marido
e sem Riabóvski; depois, lembrava-se das conversas dos amigos
sobre a preparação para uma exposição qualquer de um quadro de
Riabóvski, uma coisa espantosa, uma mistura de paisagem e pintura
de género, algo ao estilo de Polénov(37), que tem deixado pasmados
todos os visitantes do seu atelier; mas isso, pensava ela, criou-o ele
por influência dela, Olga Ivánovna, e, de uma maneira geral, se ele
mudou para melhor foi graças a ela. Tal influência é tão substancial e
benéfica que, se ela o deixar, Riabóvski fica perdido. Vinha-lhe
também à cabeça o Riabóvski na última vez que a visitara, com uma
sobrecasaca cinzenta mosqueada e uma gravata nova, perguntando-
lhe languidamente: «Até sou bonito, não?» De facto, assim elegante,
com aqueles caracóis compridos e aquele olho azul, ele estava muito
bonito (ou talvez assim lhe parecesse) e foi carinhoso com ela.
Lembrando-se de tanta coisa e tirando as respectivas conclusões,
Olga Ivánovna vestia-se e, a ferver de emoção, ia de coche ao atelier-
de Riabóvski. Encontrava-o de bom humor, a admirar o seu próprio
quadro, realmente maravilhoso; dava pulos, fazia palhaçadas e
respondia com brincadeiras às perguntas sérias. Olga Ivánovna tinha
ciúmes do quadro, odiava o quadro; mas, por delicadeza, ficava cinco
minutos frente à obra e, suspirando como diante de uma relíquia,
dizia em voz baixa:
— É verdade, nunca tinhas feito nada igual. Sabes, até assusta.
Depois começava a implorar-lhe que a amasse, que não a
abandonasse, que tivesse pena dela, pobre coitada. Chorava,
beijava-lhe as mãos, exigia que lhe jurasse o seu amor, demonstrava-
lhe que, sem a influência benéfica dela, ele ia desencaminhar-se e
acabar. Por fim, tendo estragado a boa disposição dele e sentindo-se
humilhada, ia a casa da modista ou de alguma actriz conhecida para
arranjar bilhete.
Quando não o apanhava no atelier, deixava-lhe uma carta onde
jurava que, se ele não aparecesse hoje, ela se envenenava. Riabóvski
acobardava-se, aparecia, ficava para almoçar. Sem escrúpulos na
presença do marido, dizia a Olga Ivánovna coisas insultuosas, esta
pagava-lhe na mesma moeda. Ambos sentiam que se atavam um ao
outro pelas mãos, que ambos eram déspotas e inimigos, e
enraiveciam-se, e tomados dessa raiva não notavam que estavam a
ser indecentes e que mesmo o Korosteliov de cabelo curto percebia
tudo. Findo o almoço, Riabóvski apressava-se a despedir-se e a
partir.
— Onde vai o senhor? — perguntava-lhe Olga Ivánovna no
vestíbulo, olhando para ele com ódio.
Riabóvski, enrugando a cara e franzindo os olhos, mencionava
uma senhora qualquer, amiga comum, e via-se que gozava com os
ciúmes dela e queria espicaçá-la. Olga Ivánovna ia para o quarto dela
e deitava-se na cama; por ciúmes, desgosto, humilhação e vergonha,
mordia a almofada e chorava alto. Dímov deixava Korosteliov na sala
de estar, ia ao quarto e, confuso, embaraçado, dizia baixinho:
— Não chores tanto, mamã... Para quê? É preciso calar isso... Fazer
de conta... O que aconteceu, aconteceu.
Incapaz de dominar os ciúmes torturantes, que lhe davam até uma
dor espetada nas têmporas, e julgando que era ainda possível
melhorar as coisas, lavava a cara, cobria de pó-de-arroz as faces
inchadas de chorar e corria a casa de uma conhecida sua. Não vendo
lá Riabóvski, ia a casa de outra, depois de outra... A princípio ainda
tinha vergonha dessas visitas, depois habituou-se e, de casa em casa,
chegava a visitar numa noite todas as mulheres que conhecia, à
procura de Riabóvski, o que toda a gente percebia.
Uma vez disse a Riabóvski, sobre o marido:
— Esse homem oprime-me com tanta magnanimidade !
Gostou tanto da frase que, quando se encontrava com o grupo dos
pintores, todos a par do seu romance com Riabóvski, dizia, sempre
que falava do marido, com um gesto enérgico:
— Esse homem oprime-me com tanta magnanimidade!
O seu modo de vida era o mesmo do ano anterior. Às quartas,
recebia. O actor recitava, os pintores desenhavam, o violoncelista
tocava, o cantor cantava e, infalivelmente, às onze e meia abria-se a
porta da sala de jantar e Dímov, sorrindo, dizia:
— Meus senhores, são horas de comer alguma coisa.
Como antes, Olga Ivánovna continuava na sua busca de grandes
homens, encontrava-os, não a satisfaziam, voltava a procurar. Como
antes, voltava para casa a altas horas da noite, mas Dímov agora já
não dormia, como antes, e estava sempre no seu gabinete a
trabalhar. Deitava-se às três e levantava-se às oito.
Um fim de tarde, preparando-se ela para ir ao teatro, diante do
espelho do tremó, entrou no quarto Dímov de casaca e gravata
branca. Sorria com meiguice e, como antigamente, olhou a mulher
nos olhos. Estava com uma cara radiante.
— Acabo de defender a tese - disse, sentando-se e afagando os
joelhos.
— Defender a tese? - perguntou Olga Ivánovna.
— Oh-oh! - riu-se ele, e esticou o pescoço para ver no espelho o
rosto da mulher, que continuava de costas para ele, a arranjar o
penteado. — Oh-oh! - repetiu. - Sabes, é muito possível que me
proponham o cargo de docente extraordinário na cátedra de
patologia geral. Cheira-me que sim.
Pela cara ditosa, pelo ar radiante, via-se que se acaso Olga
Ivánovna partilhasse com ele a alegria daquele êxito, ele lhe
perdoava tudo, o presente e o futuro, esquecia tudo, mas ela não
percebia o que significava docente extraordinário e patologia geral,
além de que tinha medo de chegar atrasada ao teatro, e não disse
nada.
Dímov ficou sentado ainda dois minutos, sorriu com ar culpado e
saiu.

Um dia muito inquieto.


Dímov tinha dores de cabeça muito fortes; de manhã não quis
tomar chá nem foi para o hospital, ficou deitado no divã turco do seu
gabinete. Olga Ivánovna, como sempre, foi visitar Riabóvski depois
do meio-dia para lhe mostrar um estudo de natureza-morta e lhe
perguntar por que não tinha aparecido no dia anterior. O estudo até
a ela parecia fraco, e pintara-o apenas como pretexto para ir ver o
pintor.
Entrou em casa dele sem tocar à campainha e, quando tirava as
galochas no vestíbulo, pareceu-lhe ouvir no atelier o roçagar da
roupa de alguém a correr; foi espreitar muito depressa e ainda viu
uma ponta de saia castanha, que logo desapareceu por trás de uma
tela grande coberta até ao chão de pano negro, juntamente com o
cavalete. Não havia dúvida, era uma mulher a esconder-se. A própria
Olga Ivánovna tantas vezes encontrara esconderijo atrás daquela
tela! Riabóvski, atrapalhado, fingiu surpresa pela visita dela,
estendeu-lhe ambas as mãos, fez um sorriso forçado:
— Olá! Que prazer vê-la por cá! Diga!
Os olhos de Olga Ivánovna encheram-se de lágrimas. Sentia
vergonha e amargura e nem por um milhão falaria na presença de
uma mulher estranha, uma rival, uma mentirosa que estava agora
escondida por trás da tela e talvez se estivesse a rir de maldade.
— Trouxe-lhe um estudo — disse timidamente, numa voz fininha,
os lábios a tremerem-lhe -, uma natureza-morta.
— Ah ... um estudo?
O pintor pegou no estudo e, examinando-o, passou como que
maquinalmente para outra sala.
Olga Ivánovna seguia-o, submissa.
— Natureza-morta ... primeira porta - murmurava Riabóvski,
procurando rima -, horta... torta ... comporta...
No atelier ouviram-se passos apressados a afastarem-se e o
roçagar de roupa. Portanto, a outra saíra. A Olga Ivánovna só
apetecia berrar, bater no pintor com qualquer coisa pesada na cabeça
e sair, mas não via nada através das lágrimas, estava esmagada pela
vergonha e já não se sentia Olga Ivánovna nem pintora, mas um
bichinho minúsculo.
— Estou cansado ... - pronunciou com moleza o pintor, olhando
para o estudo e sacudindo a cabeça para vencer a modorra. - É lindo,
claro, mas hoje um estudo, no ano passado um estudo, daqui a um
mês mais um estudo ... Não está farta disso? No seu lugar, esquecia a
pintura e dedicava-me a sério à música ou a outra coisa qualquer. É
que a senhora é talvez música, não é pintora. Aliás, sabe, estou
cansado! Vou mandar que nos sirvam o chá... Está bem?
Saiu da sala, e Olga Ivánovna ouviu-o a dar ordens ao lacaio. Para
evitar despedir-se e para fugir aos esclarecimentos, mas sobretudo
para não se desfazer em lágrimas, correu para o vestíbulo, calçou as
galochas e, antes de Riabóvski voltar, saiu para a rua. Na rua
respirou de alívio e sentiu-se livre para sempre de Riabóvski, da
pintura e da vergonha terrível que a esmagava no atelier. Acabara
tudo!
Foi a casa da modista, depois foi visitar Barnay(38), que chegara
apenas na véspera, do Barnay foi a uma loja de pautas, e tudo isso
sempre a pensar na carta que escreveria a Riabóvski, fria, rígida,
cheia de dignidade; e como iria na Primavera ou no Verão com o
Dímov para a Crimeia e, lá, se veria definitivamente livre do passado
e pronta a recomeçar uma vida nova.
Voltou para casa já a noite ia adiantada, e sentou-se na sala de
estar, sem mudar de roupa, para escrever a carta. Não lhe dissera o
Riabóvski que ela não era pintora? Pois bem, por vingança ia
escrever-lhe agora mesmo que ele, durante todos aqueles anos,
pintava sempre a mesma coisa, dizia todos os dias a mesma coisa,
estagnara e não iria mais longe do que aonde já chegara. Tinha
também de lhe dizer que devia tudo à influência dela, e que era por
causa de a influência dela já não se fazer sentir que o comportamento
dele era agora vergonhoso, e isso graças a certas pessoas ambíguas
do género daquela que se escondera hoje por trás da tela.
— Mamã! - chamou Dímov do gabinete sem abrir a porta.
— Mamã!
— O que queres?
É
— Mamã, não entres, aproxima-te só da porta. É assim ... Eu
anteontem apanhei difteria no hospital, e agora ... não estou nada
bem. Manda alguém chamar o Korosteliov, o mais depressa possível.
Olga Ivánovna tratava sempre o marido, como aliás todos os
homens que conhecia, não pelo nome próprio, mas pelo apelido.
Óssip, o nome dele, não lhe agradava porque lhe lembrava uma
personagem de Gógol e um trocadilho. Mas desta vez ex-clamou:
— Óssip, como é possível?
— Manda alguém, já! Estou mal... - disse atrás da porta Dímov, e
ela ouviu-o a afastar-se e a deitar-se no divã. - Manda, já! - ouviu-lhe
ainda a voz abafada.
«O que é isso? - pensou Olga Ivánovna, gelando de medo.
— É perigoso!»
Pegou, sem qualquer necessidade, numa vela e foi para o seu
quarto, onde, a matutar no que devia fazer, olhou sem querer para o
espelho. Aquele rosto lívido e assustado, o casaquinho de mangas
tufadas nos ombros, os folhos amarelos no peito, as riscas
extravagantes na saia fizeram-na parecer a si mesma repugnante,
horrível. Sentiu um baque, até à dor, de tanta pena por Dímov, pena
do seu amor ilimitado por ela, da vida jovem dele e, até, daquela
cama órfã em que o marido havia muito não dormia, e passou-lhe
diante dos olhos o sorriso meigo dele. Chorou amargamente e
escreveu a Korosteliov uma carta suplicante. Eram duas da manhã.

Quando, já passava das sete da manhã, Olga Ivánovna, com a


cabeça pesada depois da noite em branco, despenteada, feia e com
uma expressão de culpa no rosto, saía do quarto, passou por ela a
caminho do vestíbulo um senhor de barba negra, pelos vistos
médico. Cheirava a medicamentos. À porta do gabinete estava
Korosteliov a torcer o bigode esquerdo com a mão direita.
— Desculpe, não a deixo entrar — disse sombriamente a Olga
Ivánovna. — Pode apanhar a doença. Também não ia lá fazer nada.
Ele está a delirar.
— É mesmo uma difteria a sério? — perguntou Olga Ivánovna num
sussurro.
— A sério deviam mas é ser julgadas as pessoas que se ex-põem
tanto — murmurou Korosteliov sem responder à pergunta. — Sabe
por que se contaminou? Na terça-feira passada sugou pelo tubo
películas diftéricas a um garoto. Para quê? Já era inútil... Foi um
estúpido ...
— É perigoso? Mesmo? — perguntou Olga Ivánovna.
— Sim, é uma forma de difteria grave, dizem. Seria melhor mandar
chamar o Schreck.
Iam lá a casa um pequeno, ruivo, de nariz comprido e sotaque
judaico, depois um alto, curvado, de cabelo desgrenhado, que mais
parecia um arquidiácono, depois um jovem, muito corpulento, cara
vermelha, óculos. Eram os médicos que vinham velar o colega, por
turnos. Quanto a Korosteliov, findo o seu turno não se ia embora,
vagueava como uma sombra por toda a casa. A criada servia chá aos
médicos e andava numa fona para a farmácia, pelo que não havia
quem arrumasse as salas. Tudo era silêncio e tristeza.
Olga Ivánovna, sentada no seu quarto, pensava que era Deus quem
a castigava por ter enganado o marido. Ali, no seu divã, sem
queixumes, sofria em silêncio uma criatura tacituma, resignada,
incompreendida, despersonalizada pela sua meiguice, sem carácter,
fraca por excesso de bondade. Se se queixasse, nem que fosse em
delírio, os médicos que o velavam ficariam a saber que, no caso, a
culpa não era só da difteria. Poderiam perguntar a Korosteliov: esse
sabia de tudo, e não era por acaso que olhava para a mulher do seu
amigo como se ela fosse a principal e verdadeira celerada, e a difteria
apenas a sua cúmplice. Olga Ivánovna já não se lembrava das noites
luarentas no Volga, nem da declaração de amor, nem da vida poética
na izbá, lembrava-se apenas que, por mero capricho, por
divertimento, toda ela se sujara, dos pés à cabeça, com qualquer
coisa porca, peganhenta, de que nunca mais conseguiria limpar-se ...
«Ah, de que maneira horrível eu mentia! - pensava ela ao recordar
o seu romance inquieto com Riabóvski. - Maldito seja tudo aquilo!...
»
Às quatro, almoçava com Korosteliov. Este não comia nada,
limitava-se a beber vinho tinto e a franzir a cara. Ela também não
comia. Ora rezava em silêncio, fazendo a Deus a promessa de que, se
Dímov se curasse, o amaria de novo e seria uma esposa fiel. Ora,
esquecida por um instante da desgraça, olhava para Korosteliov e
pensava: «Não será aborrecido ser assim um simples, sem qualquer
destaque, desconhecido, e ainda por cima com esta cara
desengraçada e estes modos grosseiros?» Ora lhe parecia que Deus ia
matá-la a qualquer momento por não ter entrado nenhuma vez, com
medo do contágio, no gabinete do marido. Mas o seu estado geral era
um entorpecimento tristonho e a certeza de que a sua vida já estava
estragada e nada poderia corrigi-la...
Depois do almoço, caiu o crepúsculo. Quando Olga Ivánovna
entrou na sala de estar, Korosteliov dormia no canapé, com uma
almofada de seda bordada a fio de ouro debaixo da cabeça. «Ghi-i-
pua... — ressonava -, ghi-i-pua».
Os médicos que vinham fazer o seu turno e depois se iam embora
eram indiferentes a toda esta desordem. Um estranho a dormir na
sala e a ressonar, os estudos de pintura nas paredes, a decoração
bizarra, a dona de casa despenteada e vestida descuidadamente —
nada disso lhes provocava o mínimo interesse. Um dos médicos, sem
querer, riu-se de qualquer coisa, e o seu riso soou estranho e tímido,
assustador.
Quando Olga Ivánovna voltou a entrar na sala, Korosteliov já não
dormia, estava sentado a fumar.
— Tem difteria da cavidade nasal - disse a meia voz. — O coração já
começa a falhar. Para falar verdade, a coisa está mal.
— Mande buscar o Schreck - disse Olga Ivánovna.
— Já cá esteve. Foi ele quem disse que a difteria já passou para o
nariz. Eh-eh, o Schreck, o Schreck... E depois? E depois nada. Ele é o
Schreck, eu sou o Korosteliov... e depois?
O tempo arrastava-se com terrível lentidão. Olga Ivánovna,
vestida, estava deitada na cama por fazer desde manhã e dormitava.
Parecia-lhe que todo o apartamento, do chão ao tecto, estava
recheado por uma massa de ferro enorme e que bastava tirar para
fora o ferro para toda a gente ficar feliz e respirar aliviada. Quando
deu acordo de si, viu que não era ferro, mas a doença de Dímov.
«Natureza morta, porta ... - pensava voltando a cair em modorra
—, comporta... conforta... E o Schreck? Schreck, leque, vreque ...
dreque. Onde estão agora os meus amigos? Saberão da nossa
desgraça? Meu Deus, ajuda-me, salva-me... Schreck, leque...»
E outra vez o ferro ... O tempo arrastava-se lentamente, mas o
relógio no andar de baixo tocava com frequência. A cada momento se
ouvia a campainha de entrada, eram os médicos que vinham...
Entrou a criada com um copo vazio na bandeja e perguntou:
— A senhora não quer que lhe faça a cama?
Ao não receber resposta, saiu. Bateu o relógio em baixo; sonhou
com a chuva no Volga; alguém entrou outra vez no quarto, parecia
um estranho. Olga Ivánovna levantou-se de um salto e reconheceu
Korosteliov.
— Que horas são? — perguntou ela.
— Umas três.
— Então?
— Então... Vim dizer-lhe que se está a finar...
Soluçou, sentou-se nacama ao lado dela e limpou as lágrimas com
a manga. No primeiro momento, ela não percebeu, mas gelou toda e
começou a persignar-se lentamente.
— Está a finar-se ... — repetiu Korosteliov numa voz fina, e voltou a
soluçar. — Morre porque se sacrificou ... Que perda para a ciência! —
disse com amargura. — Comparado com todos nós, era um grande
homem, um homem extraordinário! Que talentos! O que prometia!
— continuava Korosteliov, torcendo as mãos. — Meu Deus, era um
cientista como já não se vê hoje em dia! Osska Dímov, Osska Dímov,
o que foste fazer? Ai-ai, meu Deus!
Korosteliov, desesperado, tapou a cara com ambas as mãos e
abanou a cabeça.
— E que força moral! — continuava, enraivecendo-se
progressivamente contra alguém. — Uma alma boa, pura, afectuosa...
um homem cristalino! Serviu a ciência e morreu pela ciência.
Trabalhava como um boi, dia e noite, ninguém o poupava... E o
jovem cientista, o futuro professor catedrático, ainda tinha de
exercer clínica privada e fazer traduções à noite para pagar estes ...
trapos!
Korosteliov olhou com ódio para Olga Ivánovna, agarou-se ao
lençol com as duas mãos e puxou-o com raiva, como se o lençol
tivesse culpa.
— Não se preocupava consigo próprio, e os outros também não o
poupavam. Eh-eh, para quê gastar mais palavras!
— Sim, um homem raro! - disse alguém em baixo, na sala de estar.
Olga Ivánovna lembrou-se de toda a sua vida com ele, do princípio
ao fim, em todos os pormenores, e de repente compreendeu que ...
sim, ele era realmente um homem extraordinário, um homem raro e,
comparado com todos os conhecidos dela, um grande homem.
Recordou também como o seu falecido pai e todos os colegas
médicos consideravam Dímov e compreendeu que todos viam nele
uma futura celebridade. As paredes, o tecto, o candeeiro e o tapete do
chão piscavam-lhe ironicamente, como que a dizerem: «Deixaste-o
escapar! Deixaste-o escapar!» Precipitou-se a chorar para fora do
quarto, rasou a correr por um desconhecido na sala e irrompeu no
gabinete do marido. Dímov estava imóvel no divã turco, coberto até à
cintura com um cobertor. Tinha as faces terrivelmente cavadas,
emagrecidas e de um amarelo-acinzentado, cor que nunca se vê nos
vivos; só pela fronte, pelas sobrancelhas negras e pelo sorriso
familiar se podia adivinhar que era Dímov. Olga Ivánovna apalpou-
lhe rapidamente o peito, a testa, as mãos. O peito ainda estava
quente mas, a testa e as mãos, desagradavelmente frias . E os olhos
semiabertos não olhavam para Olga Ivánovna, mas para o cobertor.
— Dímov! - chamou-o em voz alta. - Dímov!
Queria explicar-lhe que era um erro, que nem tudo estava ainda
perdido, que a vida ainda podia ser maravilhosa e feliz, que ele era
um homem raro, extraordinário, um grande homem, uma
celebridade, e que ela o ia venerar toda a vida, divinizá-lo, respeitá-lo
religiosamente ...
— Dímov ! - chamava, sacudindo-o pelo ombro e não que-rendo
acreditar que ele nunca mais acordaria. — Dímov! Dí- mov, ouve-me
!
Na sala de estar, Korosteliov dizia à criada:
— Não tem nada que saber. Vai ter com o guarda da igreja e
pergunta-lhe pelas velhas do asilo. Elas lavam o corpo, vestem-no,
tratam de tudo o que for preciso.
Notas
(1) Em russo, petch. Trata-se do fogão típico russo, para cozinhar e
de aquecimento, feito de tijolos e comportando por cima um espaço
que serve de cama. (N. T.)
(2) Tulup — peliça comprida, com o pêlo para dentro e sem forro de
pano por fora. (N. T.)
(3) Medida de comprimento russa antiga, equivalente a 1,067 km.
(N. T.)
(4) Carruagem puxada por três cavalos. (N. T.)
(5) Diminutivos de Sófia. (N. T.)
(6) «Popular» (na tradução aqui adoptada) corresponde a «não
nobre» ou «plebeu». Na muito estratificada hierarquia da sociedade
russa do século XIX — inícios do século XX, era, logo a seguir aos
camponeses (mujiques), a classe mais baixa. Os funcionários, mesmo
os de escalão mais baixo, já tinham um dos muitos graus honoríficos
em que se dividia a sociedade russa. (N. T.)
(7) Belínski, Vissarion (1811-1848) — crítico literário, publicista,
filósofo materialista russo. (N. T.)
(8) izbá - casa típica dos camponeses russos, feita de troncos. (N.
T.)
(9) Szlach (polaco) — caminho da estepe nas zonas fronteiriças do
Sul da Rússia dos séculos XVI-XVII. (N. T.)
(10) Trata-se do czar Alexandre 1 (1777-1825), que morreu na
cidade de Taganrog. (N. T.)
(11) A servidão foi abolida na Rússia em 1861. (N. T.)
(12) Pud — antiga medida de peso russa equivalente a 16 kg. (N. T.)
(13) Kurgan (turc.) - montículo de terra ou de pedras, normalmente
em forma semiesférica ou cónica; muitas vezes, encontram-se sobre
túmulos antigos. (N. T.)
(14) Túmulo de Saur - um kurgan na parte norte da circunscrição
de Taganrog onde, de acordo com a lenda, está enterrado o guerreiro
Saur. (N. T.)
(15) Molokanes — membros de uma seita religiosa (surgida na
Rússia na segunda metade do século xvm), que rejeitam os ritos da
Igreja cristã, os ícones, o poder laico e o serviço militar, e em geral
qualquer derramamento de sangue, não comendo por isso carne e
apenas bebendo leite (daí o seu nome, da palavra molokó, leite em
russo). (N. T.)
(16) Chi — sopa russa tradicional, à base de repolho. (N. T.)
(17) Borch — sopa tradicional ucraniana. (N. T.)
(18) Rassólnik — sopa tradicional russa com carne ou peixe e
pepinos salgados. (N. T.)
(19) Zapekanka — vodka com mel e especiarias, preparada num
recipiente hermeticamente fechado, dentro do forno. (N. T.)
(20) Eugénia Maria de Montijo de Gusmán, condessa de Teba,
mulher de Napoleão m; imperatriz dos Franceses de 1853 a 1870,
nasceu em Granada, em 1826, e morreu em Madrid em 1920. (N. T.)
(21) Véstnik Evrópi («Noticiário da Europa») — revista mensal
político-literária, editada em S. Petersburgo de 1866 a 1918. (N. T.)
(22) Antigas adagas cossacas. A chachka cossaca, lâmina conhecida
pelos turcos como yataghan, esteve na origem da adaga-de-orelhas,
que veio a ser associada em larga escala à realeza. (N. T.)
(23) Adoptou-se aqui a designação antiga de um carro (ou mais,
atrelados) puxado a mulas sobre carris de ferro, precursor do carro
eléctrico. (N. T.)
(24) Festa pessoal de alguém, no dia em que a Igreja celebra a
memória do santo correspondente ao seu nome. (N. T.)
(25) Saltikov-Chedrin, Mikhail (1826-1889) - escritor satírico russo,
publicista. Criou uma série de imagens grotescas da função pública
russa. (N. T.)
(26) Ou seja, os participantes de um movimento social da segunda
metade do século XIX — inícios do século XX, seguidores da
doutrina de Lev Tolstói sobre a transformação da sociedade através
do auto-aperfeiçoamento moral e religioso; tentavam criar comunas
de produção. (N. T.)
(27) Dia 20 de Julho, pelo velho calendário. (N. T.)
(28) Bútlerov, Aleksandr (1828-1886) - conhecido cientista russo,
especialista em química orgânica, autor de várias obras sobre
agricultura e apicultura. (N. T.)
(29) Sistema de registo contabilístico elaborado e utilizado pela
primeira vez em Itália. (N. T.)
(30) Rendimento que serve de base ao exercício de certos direitos.
(N. T.)
(31) Capitão Kopéikin — personagem da «História do Capitão
Kopéikin», incluída por Nikolai Gógol em Almas Mortas; aspirante
da marinha Dirka — exemplo de nome engraçado na comédia O
Casamento de Gógol. (N. T.)
(32) Manzas — os russos chamavam assim aos Nivkhos, a
população aborígene da Ilha Sacalina. (N. T.)
(33) Lubok — tábua de tília em que se gravava uma imagem para
impressão; os quadros de lubok, uma espécie de criação artística
artesanal, sofreram grande degradação e tomaram-se sinónimo de
mau gosto. (N. T.)
(34) Láptis — uma espécie de alpargatas, trançadas de entrecasca
de tília. (N. T.)
(35) Masini, Angelo (1844-1926) — tenor italiano que fazia
digressões à Rússia. (N. T.)
(36) Citação de uns versos do poeta russo Nikolai Nekrássov (1821-
1877), que a partir da década de 1860 se tomaram versos de uma
canção popular entre os intelectuais democráticos. (N. T.)
(37) Polénov, Vassíli (1844-1927) — pintor russo. (N. T.)
(38) Barnay, Ludwig (1842-1924) — actor alemão. (N. T.)
* A tradução deste conto foi cedida por cortesia da revista Ficções.

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