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Título: Contos
Autor: Anton Tchékhov
Tradução (do russo): Nina Guerra e Filipe Guerra
Prefácio de Vladimir Nabokov
Capa: Fernando Mateus sobre foto do autor
Fonte: da edição A. P. TCHÉKHOV/ colecção em 12 tomos, com fixação de texto de M. Eriómin e anotada por P.
Eriómin, Editora Pravda, Moscovo, 1985, Colecção «Biblioteca Ogoniok / Obras Clássicas Nacionais».
Contos
Volume I
Clássicos
Prefácio
É
— É a nossa beldade ... — disse a mãezinha. — Arranjaram este
casamento ao Fiódor nos arrabaldes da cidade ... a cem verstás daqui
...
Nem todos chamariam Tatiana Ivánovna de beldade. Era uma
mulher pequenina, gorducha, dos seus vinte anos, costas direitas,
sobrancelhas negras, sempre rosada, bonitinha mas sem qualquer
traço ousado a realçar-lhe o rosto e onde se pudesse parar o olhar,
como se tivesse faltado a inspiração e a segurança à natureza quando
estava a concebê-la. Tatiana Ivánovna era tímida, envergonhada e
bem comportada, tinha um andar leve e fluido, falava pouco,
raramente ria, toda a vida dela era tão monótona e rasa como o seu
rosto e o seu cabelo bem alisado. O tio franzia os olhos para as costas
dela e sorria. A mãezinha olhou-lhe perscrutadoramente para a cara
sorridente e fez-se séria.
— O mano, afinal, nunca chegou a casar! — suspirou.
— Não, não casei...
— Porquê? — perguntou baixinho a minha mãe.
— Como explicar-te? Foi a vida. Quando era jovem trabalhava de
mais, não tinha tempo para tratar da vida; quando quis finalmente
viver, caí em mim e vi que já tinha cinquenta anos às costas. Não tive
tempo. Aliás, falar disso é um tédio.
A mãezinha e o tio suspiraram ao mesmo tempo e seguiram; eu
larguei-os e corri à procura do meu preceptor para partilhar com ele
as minhas impressões. Pobedímski estava imóvel no meio do pátio a
olhar majestosamente para o céu.
— Vê-se logo que é um homem desenvolvido — disse meneando a
cabeça. — Espero bem que encontremos uma linguagem comum.
Passada uma hora veio ter connosco a mãezinha.
— Uma desgraça, meus queridos! — começou, resfolegando. — É
que o mano trouxe o lacaio, e o lacaio é de tal género que, Deus me
perdoe, não se pode metê-lo na cozinha ou no vestíbulo, é preciso
dar-lhe um quarto à parte. Anda-me a cabeça à roda, o que hei-de
fazer? Só podemos fazer uma coisa, queridinhos: não podíeis mudar
por enquanto para o Fiódor, para a casa dos fundos? E pomos o
homem no vosso quarto, está bem?
Resposta positiva da nossa parte, e com toda a prontidão, já que
morar na casa dos fundos proporcionava muito mais liberdade do
que ficar em casa, debaixo de olho da mãezinha.
— Outra desgraça! — continuou a mãezinha. — O mano diz que
não almoça ao meio-dia, mas só depois das seis, à moda da capital.
Até me anda a cabeça à roda! É que o almoço metido no forno até às
sete fica em papas. Palavra, os homens têm grande intelecto mas não
percebem nada da lida da casa. Vai ser preciso fazer dois almoços,
para mal dos meus pecados! Vós, queridinhos, almoçais ao meio-dia,
como sempre, e eu, velha que sou, vou aguentar até às sete à espera
do querido mano.
A mãezinha suspirou profundamente, ordenou que eu fizesse por
agradar ao tio, que Deus o tinha mandado para bem da mi-nha
felicidade, e foi a correr para a cozinha. Nesse mesmo dia, eu e
Pobedímski passámos a viver na casa dos fundos. Alojaram-nos num
quarto de passagem entre o vestíbulo e o quarto de dormir do feitor.
Apesar da chegada do tio e da nossa mudança de casa, a vida,
contra o que seria de esperar, continuou na mesma, preguiçosa e
monótona. Ficámos, enquanto durasse a visita, dispensados dos
estudos. Pobedímski, que nunca lia nem fazia fosse o que fosse,
ficava sentado na cama, passava o nariz comprido pelo ar e pensava
sabe-se lá no quê. De vez em quando levantava-se, experimentava o
fato novo e voltava a sentar-se, para poder estar cala-do e pensar. A
única coisa que o preocupava eram as moscas, a quem dava
palmadas implacáveis. Depois do almoço costumava «descansar»,
atormentando toda a quinta com o seu ressonar. Quanto a mim,
corria de manhã à noite pelo jardim, ou ficava no meu quarto dos
fundos a fazer papagaios. Nas primeiras duas ou três semanas
poucas vezes vimos o tio. Metia-se dias a fio no quarto a trabalhar,
apesar das moscas e do calor. A sua capacidade extraordinária de
ficar sentado, pregado à mesa, produzia-nos o efeito de uma
prestidigitação inexplicável. Para nós, mandriões que não sabíamos o
que era um trabalho regular, a sua diligência era um milagre.
Acordava por volta das nove da manhã, sentava-se à mesa e não se
levantava até ao almoço; depois do almoço voltava ao trabalho - e
sempre assim, até alta noite. Quando eu espreitava pela fechadura
para o quarto dele, via sempre a mesma coisa: o tio sentado à mesa a
trabalhar. O trabalho dele consistia em escrever com uma mão e em
folhear um livro com a outra; e, coisa estranha, todo ele se remexia:
baloiçava uma perna como um pêndulo, assobiava e abanava a
cabeça a compasso. Em todo este processo, o ar dele era distraído e
frívolo, como se não estivesse a trabalhar mas a jogar às cruzes. De
cada vez que eu espreitava via que tinha sempre vestido um casaco
curto todo janota e uma gravata atada num nó afoito, e, de cada vez,
mesmo através do buraco da fechadura cheirava a perfume fino de
senhora. Só saía do quarto para almoçar, mas almoçava mal.
— Não compreendo o meu irmão ! - queixava-se a mãezinha. -
Todos os dias matamos uma perua e pombos de propósito para ele,
eu própria lhe faço calda de fruta cozida, e ele come um pratinho de
canja e um bocadinho de carne do tamanho de um dedo e levanta-se
logo da mesa. Suplico-lhe que coma mais e ele então lá volta à mesa e
bebe leite. Mas que proveito tem o leite? O mesmo que lavadura!
Com uma alimentação assim pode-se morrer... Tento convencê-lo,
mas só se ri, brinca... Não, o meu querido mano não gosta da nossa
cozinha!
As noites eram muito mais alegres do que os dias. Quando o sol se
punha e se estendiam pelo pátio umas sombras compridas, nós, ou
seja, Tatiana Ivánovna, Pobedímski e eu, sentávamo-nos nos degraus
de entrada da casa dos fundos e ficávamos calados até que chegasse a
escuridão. Também, de que falaría-mos se já tínhamos dito tudo?
Sim, havia uma novidade — a chegada do tio — , mas também esse
tema se esgotou rapida-mente. O preceptor não desviava os olhos da
cara de Tatiana Ivánovna e suspirava fundo ... Naquela altura eu não
percebia o sentido daqueles suspiros nem o procurava, mas agora
são-me explicação para muita coisa.
Quando as sombras no chão se fundiam numa sombra única,
voltava da caça ou do campo o feitor Fiódor. Este Fiódor produzia
em mim a impressão de homem selvagem e, até, de homem
medonho. Era filho de um cigano russificado da cidade de Izium,
moreno, com grandes olhos negros, cabelo encaracolado, barba
desgrenhada, os nossos camponeses de Kotchúevo não lhe
chamavam outra coisa a não ser «diabo». De facto, havia nele muito
do cigano, para além do aspecto físico. Não conseguia parar em casa
e, dias a fio, andava pelos campos ou ia à caça. Era sombrio, bilioso,
taciturno, não tinha medo de ninguém nem reconhecia o poder de
ninguém sobre a sua pessoa. Era malcriado com a mãezinha, a mim
tratava-me por «tu» e ao Pobedímski desprezava-lhe a cultura.
Perdoávamos-lhe tudo isso, lançando-o à conta da sua condição de
homem irritadiço e doentio. Quanto à minha mãe, gostava dele
porque o homem, apesar da sua natureza cigana, era um ideal de
honestidade e trabalho. Amava a sua Tatiana Ivánovna
apaixonadamente, como cigano que era, mas esse amor revelava-se
sombrio, como que sofrido. Na nossa presença nunca acarinhava a
mulher, apenas esbugalhava raivosamente os olhos para ela e
entortava a boca.
Chegado dos campos, arrumava com estardalhaço e raiva a
espingarda na casa dos fundos, saía para a soleira onde já está-vamos
e sentava-se ao lado da mulher. Recuperava o fôlego e fazia à mulher
algumas perguntas relativas à lida da casa e mergulhava no silêncio.
— Vamos cantar — sugeria eu.
O preceptor afinava a viola e atacava, num baixo espesso, à
maneira de um sacristão, «No meio dos vales planos». Começava o
canto. O preceptor cantava, pois, em voz de baixo, Fiódor num tenor
quase inaudível, e eu em tiple, a mesma voz de Tatiana Ivánovna.
Quando todo o céu se cobria de estrelas e se calavam as rãs,
traziam-nos o jantar da cozinha. O preceptor e o cigano tinham um
comer ávido, rilhado, e era difícil dizer se aquele roedoiro era dos
ossos ou das mandíbulas deles; eu e Tatiana mal tínha-mos tempo de
acabar os nossos pratos. Depois do jantar, a casa dos fundos
mergulhava num sono profundo.
Uma vez, já em fins de Maio, estávamos sentados nos de-graus da
soleira e esperávamos pelo jantar. De repente passou um sombra e,
como que saído de dentro da terra, surgiu à nossa frente o
Gundássov. Olhou demoradamente para nós, depois pôs-se a agitar
os braços e a rir alegremente.
— Idílico! — disse. — Cantam e sonham olhando para a lua!
Encantador, juro por Deus! Posso sentar-me convosco e sonhar
também?
Calámo-nos, trocando olhares. O tio sentou-se no degrau inferior,
bocejou e olhou para o céu. Caiu o silêncio. Pobedímski , que havia
muito se preparava para falar com um homem fresco, entusiasmou-
se com a ocasião e foi o primeiro a quebrar o silêncio. Para as
conversas inteligentes tinha apenas um tema: epizootias. Tal como,
quando acontece ficarmos no meio de uma multidão de milhares de
fisionomias, se nos grava na memória apenas uma, e por muito
tempo, também Pobedímski, de tudo o que conseguiu ouvir na
faculdade de veterinária durante aquele meio ano, apenas se
lembrava de um fragmento:
«As epizootias causam grandes prejuízos à economia nacional. No
seu combate, a sociedade deve andar de mãos dadas com o governo.»
Antes de o pronunciar, o meu preceptor aclarou por três vezes a
garganta e por várias vezes se agasalhou com a capa. Ao ouvir aquilo
das epizootias, o tio pôs-se a olhar fixamente para o preceptor e
emitiu um som de riso pelo nariz.
— Juro por Deus, é lindo ... — murmurou examinando-nos como a
manequins. — É precisamente isso que se chama vida ... É assim que,
na essência, deve ser a realidade. E por que está tão calada, Pelagueia
Ivánovna? — dirigiu-se a Tatiana Ivánovna.
Esta envergonhou-se e tossiu.
— Falem, meus senhores, cantem ... brinquem! Não desperdicem o
tempo. É que o safado do tempo corre, não espera! Juro por Deus
que não terão tempo de abrir a boca para dizer «ah!» e já a velhice
bate à porta... Mas então já será tarde para viver! É assim, Pelagueia
Ivánovna... Não vale a pena ficarmos parados e calados ...
Nisto, trouxeram o jantar da cozinha. O tio entrou connosco para a
casa dos fundos e fez-nos companhia comendo cinco bolos de
requeijão e uma asinha de pato. Comia e olhava para nós. Todos lhe
provocávamos entusiasmo e ternura. Qualquer que fosse a parvoíce
emitida pelo meu inesquecível preceptor, fizes-se o que fizesse
Tatiana Ivánovna, achava tudo lindo e maravilhoso. Quando, depois
do jantar, Tatiana Ivánovna se sentou quietinha num canto a fazer
malha, o tio não tirava os olhos dos dedinhos dela e tagarelava sem
parar.
— Tenham pressa de viver, meus amigos ... — dizia. — Deus os
livre de sacrificarem o presente em prol do futuro! No presente é que
está a juventude, a saúde, o ardor, o futuro é só engano, é fumo! Mal
completem os vinte anos, comecem de imediato a viver.
Tatiana Ivánovna deixou cair uma agulha. O tio saltou do lugar,
apanhou a agulha e entregou-a com uma vénia a Tatiana Ivánovna, e
foi aí que fiquei a saber que existem no mundo pessoas mais finas do
que Pobedímski.
— Sim ... — continuava o tio. — Amem, casem-se ... façam asneiras.
A estupidez é mais cheia de vida e mais saudável do que todos os
nossos esforços inúteis e a nossa perseguição de uma vida com
sentido.
O tio falava muito e prolongadamente, a tal ponto que ficá-mos
fartos dele, e eu, sentado em cima de uma arca, ouvia a voz dele e
dormitava. Atormentava-me o facto de nem uma única vez naquele
tempo todo ele me ter dado a núnima atenção. Saiu da casa dos
fundos às duas da madrugada quando eu, vencido pelo sono, já
dormia como uma pedra.
Desde então começou a visitar a nossa casa dos fundos todas as
noites. Cantava connosco, jantava e ficava sempre até às duas,
tagarelando sem parar, sempre das mesmas coisas. Os seus trabalhos
do anoitecer e nocturnos foram abandonados e, pelos fins de Junho,
quando o conselheiro privado aprendeu a comer os perus e a fruta
cozida da mãezinha, foram abandonados também os trabalhos
diurnos. O tio desligou-se da mesa de trabalho e mergulhou na
«vida». De dia andava pelo jardim, assobiava e estorvava o trabalho
dos jornaleiros, obrigando-os a contarem-lhe histórias. Quando
punha a vista em Tatiana Ivánovna corria ao seu encontro e, se ela
transportasse alguma coisa com ela, oferecia-lhe ajuda, o que a
embaraçava terrivelmente.
Quanto mais se entrava no Verão, mais leviano, faceto e distraído
se tomava o meu tio. Pobedímski ficou completamente desiludido
com ele.
— É um homem demasiado unilateral... — dizia. — Não se nota
nada nele, nadinha, que pertença aos estratos superiores da
hierarquia. Nem falar sabe. Cada palavra, cada «juro por Deus».
Não, não gosto dele!
Desde que o tio começou a visitar a nossa casa dos fundos, deu-se
em Fiódor e no meu preceptor uma mudança visível. Fiódor deixou
de ir à caça, voltava para casa cedo, tomou-se ainda mais taciturno e
arregalava os olhos à mulher com uma raiva especial. Quanto ao
preceptor, deixou de falar de epizootias na presença do tio, carregava
o sobrolho e até sorria sarcasticamente.
— Aí vem o nosso garanhão das dúzias ! — resmungou uma vez,
quando o tio se aproximava da casa dos fundos.
A explicação que eu dava a mim próprio desta mudança era a de
que estariam ressentidos com o tio. O distraído do homem enganava-
se no nome deles, ficou sem saber, até ao dia de se ir embora, qual
dos dois era o preceptor e qual o marido de Tatiana Ivánovna, a esta
ora chamava Nastássia, ora Pelagueia, ora Evdokia. Nós
entemecíamo-lo, causávamos-lhe admiração, mas ele ria-se e tratava
connosco como quem lida com crianças pequenas ... Tudo coisas,
decerto, susceptíveis de ofender homens novos. Mas o problema,
afinal, não era de ressentimento, mas, como vejo agora, de
sentimentos mais delicados .
Lembro-me que numa das noites estava eu sentado na arca e
lutava contra a modorra. Nos olhos, cola viscosa, e o corpo, cansado
das corridas de todo o dia, cedia para o lado. Mas continuava a lutar
contra o sono e esforçava-me por olhar. Era quase meia-noite.
Tatiana Ivánovna, rosada e submissa como sempre, sentada à
mesinha pequena, costurava uma camisa para o marido. De um
canto, esbugalhava-lhe os olhos Fiódor, sombrio e carrancudo;
noutro canto estava Pobedímski, com a cabeça afundada nos
colarinhos altos da sua camisa, fungando com irritação. O tio andava
de um canto para outro, a pensar. Reinava o silêncio, só se ouvia o
roçar do tecido nas mãos de Tatiana Ivánovna. De repente, o tio
parou à frente dela e disse:
— Todos tão novos, tão frescos, tão bons, a vossa vida nesta
calmaria é tão serena que tenho inveja de vós. Afeiçoei-me a esta
vossa vida, só de me lembrar que tenho de ir embora daqui dá-me
um aperto no coração ... Acreditai na minha sinceridade !
A modorra cerrava-me os olhos, adormeci. Quando uma pancada
qualquer me acordou, estava o tio à frente de Tatiana Ivá- novna e a
olhar para ela com ternura. As faces dele ardiam.
— Perdi a minha vida — dizia. — Não vivi! O seu rosto jovem
lembra-me a minha felicidade perdida, e não me importava de ficar
aqui sentado a olhar para si até à morte. Levava-a comigo para
Petersburgo com prazer.
— E para quê? — perguntou Fiódor em voz rouca.
— Punha-a dentro de uma redoma em cima da minha mesa de
trabalho e ficava a admirá-la, mostrava-a aos outros. Sabe, Pelagueia
Ivánovna, não há lá ninguém como você. Temos lá ri-queza,
fidalguia, às vezes beleza, mas não esta verdade da vi-da... esta calma
salutar...
O tio sentou-se à frente de Tatiana Ivánovna e pegou-lhe na mão.
— Então, não quer ir comigo para Petersburgo? — riu-se. — Ao
menos deixe-me levar comigo a sua mãozinha... Esta mãozinha
encantadora! Não deixa? Sua avarenta, ao menos deixe-me beijá-la
...
Nisto, ouviu-se um ranger de madeira. Era o Fiódor que saltava da
cadeira e, em passadas rígidas e cadenciadas, se aproximava da
mulher. A cara dele estava de uma palidez cinzenta. Assentou o
punho na mesa com toda a força e disse numa voz abafada:
— Não admito !
Ao mesmo tempo que ele, pulara da cadeira Pobedímski. Também
pálido e raivoso, aproximou-se de Tatiana Ivánovna e bateu também
com o punho na mesinha...
— Eu ... não admito!
— O quê? O que se passa? — surpreendeu-se o tio.
— Não admito ! — repetiu Fiódor assentando outro murro na
mesa.
O tio levantou-se de um pulo e pestanejou, acobardado. Quis falar,
mas, por espanto e susto, não lhe saiu palavra; sorriu confuso e
trotou a passo de ancião para fora da casa dos fundos. Quando,
passado um pouco, chegou a mãezinha a correr, alarmada, Fiódor e
Pobedímski ainda batiam, como ferreiros os martelos, com os
punhos na mesa e diziam: «Não admito!»
— O que aconteceu aqui? — perguntou a mãezinha. — Por que é
que o mano se sentiu mal? O que se passa?
Bastou-lhe olhar para a cara pálida e assustada de Tatiana
Ivánovna, e para o marido enraivecido, para adivinhar o que
acontecera. Suspirou e abanou a cabeça.
— Chega de martelar na mesa! — disse ela. — Pára com isso,
Fiódor! E o senhor, Egor Alekséevitch, por que está para aí às
punhadas? O que tem a ver com isto?
Pobedímski caiu em si e atrapalhou-se. Fiódor olhou muito fixo
para ele, depois para a mulher, depois pôs-se a medir o quarto às
passadas. Mal a mãezinha saiu, assisti a uma coisa que, durante
muito tempo, pensei ser um sonho. Vi o Fiódor a agarrar no meu
preceptor, a erguê-lo no ar e a arremessá-lo pela porta...
Quando acordei de manhã, a cama do preceptor estava vazia. À
minha pergunta de onde estava o preceptor, respondeu-me a ama
num sussurro que o tinham levado de manhã cedo ao hospital com
um braço partido. A notícia entristeceu-me e, recordando o
escândalo da véspera, saí para o pátio. Apanhou-me um tempo
sombrio. O céu cobrira-se de nuvens, o vento corria rente ao chão
levantando poeira, papéis, penas ... Sentia-se a aproximação da
chuva. O enfado do tempo pintava-se também nas pessoas e nos
animais. Quando voltei para casa, disseram-me para não bater com
os pés, porque a mãezinha estava deitada, com a enxaqueca. O que
fazer? Passei o portão, sentei-me lá ao lado num banco e comecei a
procurar o sentido do que tinha visto e ouvido na véspera. Do nosso
portão saía um caminho que, contornando a casa da forja e um
charco que nunca secava, ia desembocar no caminho grande da
posta... Pus-me a olhar para os postes telegráficos, em volta dosquais
giravam nuvens de poeira, para os pássaros sonolentos pousados nos
fios, e de repente senti-me tão entediado que chorei.
Pelo caminho da posta passou uma diligência poeirenta a
abarrotar de gente da cidade, pelos vistos em romaria. Mal a
diligência me desapareceu da vista, esboçou-se na poeirada uma
traquitana ligeira de dois cavalos. Dentro, em pé, vinha o chefe da
polícia local, Akim Nikítitch, agarrado ao cinto do cocheiro. Para
meu grande espanto, a traquitana virou para o nosso caminho e
rasou por mim passando o portão. Enquanto tentava perceber por
que nos viria visitar o chefe da polícia, ouviu-se um barulho e
apareceu no caminho uma troika(4). Trazia o comandante da polícia
distrital, de pé no carro e apontando o nosso portão ao cocheiro.
«E este que virá cá fazer? — pensava eu observando o comandante
coberto de poeira. — Às tantas o Pobedímski fez queixa do Fiódor e
vieram prendê-lo.»
Mas o mistério não era assim tão fácil de desvendar. O chefe local
e o comandante distrital eram apenas os batedores, porque nem
cinco minutos tinham passado e já entrava no nosso pátio um coche.
Passou tão veloz ao meu lado que, ao espreitar pela janela, apenas
distingui uma barba ruiva.
Perdido em conjecturas e pressentindo qualquer coisa má, corri
para casa. Vi logo a mãezinha, no vestíbulo. Estava branca e olhava
aterrorizada para a porta, de trás da qual vinha um vozear
masculino. Os convidados tinham-na apanhado de surpresa, no auge
da enxaqueca.
— Quem é que veio, mamã? — perguntei.
— Irmã! - ouviu-se a voz do meu tio. - Prepara aí uns petiscos, para
nós e para o governador!
— É fácil dizer: petiscos! — sussurrou a mãezinha, a desfalecer de
terror. — O que terei tempo de lhes preparar? Cobrem a pobre velha
de vergonha!
A mãezinha deitou as mãos à cabeça e correu para a cozinha. A
chegada inesperada do governador alvoroçou e aturdiu toda a quinta.
Deu-se início a uma matança encarniçada. Uma dezena de frangos,
cinco peruas e oito patos foram mortos e, na confusão, pereceu
decapitado o ganso velho, patriarca fundador do nosso bando de
gansos e favorito da mãe. Os cocheiros e o cozinheiro pareciam
doidos e matavam as aves sem sentido, sem olharem à idade nem à
espécie. Perdi, para um molho qualquer, um casal de pombos-
mariolas caríssimos de que gostava tanto como a mãezinha gostava
do velho ganso. Durante muito tempo eu não iria perdoar ao
governador a morte dos meus pombos.
Ao anoitecer, quando o governador e comitiva, depois de farto
almoço, se sentaram nas carruagens e partiram, entrei em casa para
ver os destroços do banquete. Espreitando do vestíbulo, vi o tio e a
mãezinha na sala. O tio, com as mãos atrás das costas, andava
nervosamente para trás e para a frente, rente às paredes, e encolhia
os ombros. A mãezinha, desfeita e até mais magra, sentava-se no
canapé e seguia com olhos enfermiços os vaivéns do irmão.
— Desculpa, irmã, mas assim não pode ser... — resmungava o tio,
franzindo o rosto. — Apresento-te o governador e nem lhe estendes a
mão! Envergonhaste-o, coitado! Não, assim não dá... A simplicidade
é uma boa coisa, sim, mas deve ter os seus limites ... juro por Deus ...
E também, este almoço! Admite-se apresentar um almoço destes?
Que paparoca era aquela, por exemplo, servida como quarto prato?
— Era o pato com molho doce ... — respondeu baixinho a minha
mãe.
— O pato ... Desculpa, irmã, mas ... olha que até tenho azia! Fiquei
doente!
O tio fez uma cara azeda, chorosa e continuou:
— Diabos carreguem o governador e mais a visita! Só cá me faltava
a visita dele! Puff... que azia! Não posso dormir, não posso
trabalhar... Estou completamente destrambelhado ... E uma coisa
que eu não percebo é como podem vocês viver aqui sem trabalhar...
nesta pasmaceira! Pronto, só cá me faltava esta dor no epigastro !.. .
O tio carregou o sobrolho e pôs-se a andar mais depressa.
— Mano — perguntou baixinho a minha mãe — , por quanto fica ir
ao estrangeiro?
— Três mil , nunca menos — respondeu o tio em voz queixosa. —
Eu ia de bom grado, mas onde arranjo o dinheiro? Não tenho um
tostão! Puff... que azia!
Caiu o silêncio ... A mãezinha olhou demoradamente para o ícone,
matutando, depois disse a choramingar:
— Eu dou-lhe os três mil, mano ...
Três dias depois as malas majestosas eram levadas para a estação
e, após as malas, partiu também o conselheiro privado. Ao despedir-
se da mãezinha chorava e durante um bom pedaço não podia
despegar os lábios da mão dela; ora, quando se sentou na carruagem,
iluminou-se-lhe o rosto numa alegria infantil... Feliz, radiante,
acomodou-se, fez à minha mãe um gesto de despedida com a
mãozinha e, de repente, o olhar dele pousou em mim. Mudou-se-lhe
a cara para um grande espanto.
— Quem é este rapaz? - perguntou.
A mãezinha, que afirmara que Deus nos enviara o tio para minha
felicidade, ficou muito ressentida com a pergunta. Quanto a mim,
ignorei-a. Olhava para a cara feliz do tio e, sabe-se lá porquê, tinha
muita pena dele. Não me contive, subi à carruagem e abracei com
ardor aquele homem fraco e leviano, como toda a gente. Olhei-o nos
olhos e, querendo dizer-lhe alguma coisa agradável, perguntei:
— O tio já alguma vez andou na guerra?
— Ah, diabo do rapaz ... — riu-se o tio e beijou-me —, que-rido
menino, juro por Deus. Tão natural, tão cheio de vida isto tudo ...
juro por Deus.
A caleche partiu ... Eu via-a a afastar-se e, por muito tempo ainda,
ouvi aquele «juro por Deus».
UMA DESGRAÇA
É
caro levares todos os dias. És pobre e não se enxerga o fim da tua
pobreza! Eu dou, dou, e não lhe vejo o final.
O compadre suspirou e passou a mão pela cara vermelha.
— Francamente, mais valia que Deus te levasse! — disse. — Vives e
não sabes para que vives ... Sinceramente! Ou então, se o Senhor não
te quer levar ainda, entra para um asilo ou um albergue para os
pobres.
— Porquê? Tenho família ... Tenho uma neta ...
E Zótov pôs-se a contar demoradamente que, algures num casal,
vivia a sobrinha-neta Glacha, filha da sobrinha Katerina.
— Tem obrigação de me sustentar! — disse. — Quando eu morrer,
a casa fica para ela, então que me sustente! Vou para lá e pronto! É a
Glacha, não sei se estás a ver, filha da Kátia, aquela que, lembras-te,
era enteada do meu irmão Pantelei ... Estás a ver quem é? Ela é que
vai ficar com a minha casa... Então que me sustente !
— Acho bem, por que não? Há muito que devias ter ido para casa
dela, escusavas de andar para aí a viver da caridade por amor de
Cristo.
— E vou. Deus me castigue se não vou. Tem obrigação!
Quando, uma hora depois, os compadres beberam um copo
da rija, Zótov pôs-se no meio da venda a falar com animação:
— Há muito que ando para ir ter com ela! Vou já hoje!
— Acho bem! Sempre é melhor ires lá para o casal do que andares
para aí à toa e a morrer de fome.
— Vou agora mesmo. Chego lá e digo: ficas com a minha casa e, a
mim, dás-me de comer e respeitas-me. Tem obrigação! E se não
quiseres, nem casa nem bênção! Adeus, Ivánitch!
Zótov bebeu mais um copo e, inspirado pela nova ideia, apressou-
se a ir para casa... A vodka amolecera-o, andava-lhe a cabeça à roda,
mas não se deitou, fez uma trouxa com a roupa toda que tinha, rezou
uma oração, pegou num bordão e partiu. Sem olhar para trás,
murmurando e batendo com o pau nas pedras, passou todo o
caminho e saiu para os campos. Até ao casal eram dez a doze verstás.
Andava pelo carreiro seco, olhava para o gado da vila a mastigar
preguiçosamente a erva amarela e pensava naquela viragem brusca
da sua vida, que estava a fazer com tanta ousadia. Pensava também
nesses parasitas, os seus papa-jantares. Quando saiu de casa não
fechou a cancela, concedendo-lhes assim a liberdade de irem para
onde quisessem.
Ainda nem uma verstá percorrera pelos campos quando ouviu
passos atrás de si. O velho voltou a cabeça e logo fez um gesto de
irritação com os braços: atrás dele, cabisbaixos e com os rabos entre
as pernas, vinham muito devagar o cavalo e a Lisska.
— Tomai para trás! — abanou as mãos.
Os dois bichos pararam, olharam um para o outro, olharam para
ele. O velho seguiu, e eles sempre atrás. Então, o homem parou e
pôs-se a pensar. Era impossível ir para casa da mal conhecida neta
Glacha com aquelas criaturas, voltar para casa e fechá-las não queria,
até porque não podia fechá-los, a cancela estava estragada.
«Iam morrer fechados no barracão — pensava Zótov. — Afi-nal,
não será melhor ir ao Ignat?»
A casa de Ignat era ao lado do pasto, a cem passos da barreira.
Zótov, que ainda não tomara uma decisão definitiva nem sabia o que
fazer, avançou para a casa. Tinha vertigens, uma névoa nos olhos ...
Pouca coisa recorda do que aconteceu no pátio do esfolador Ignat.
Lembra-se, isso sim, do cheiro pesado e abominável a peles, lembra-
se do vapor saboroso da sopa de repolho que Ignat estava a comer
quando ele entrou. Como num sonho, passava-lhe pelos olhos como
Ignat, depois de tê-lo feito esperar duas horas, preparava
demoradamente qualquer coisa, mudava de roupa, falava com uma
mulher sobre não sei quê de calomelanos; lembra-se como o cavalo
foi ajeitado no tronco de abate, como depois ouviu duas pancadas
surdas, uma no crânio, a outra do barulho de um corpo grande a cair.
Quando a Lisska , ao ver a morte do amigo, se atirou com um ganido
ao Ignat, ouviu-se o terceiro golpe, que silenciou bruscamente o
ganido. A seguir Zótov lembra-se que, ao ver os dois cadáveres,
zonzo e como um tolo, foi direito ao tronco e meteu lá a própria
cabeça...
Depois, até à noite, os olhos dele ficaram toldados por uma névoa
escura, e nem os próprios dedos era capaz de ver.
INSIGNIFICÂNCIAS DA VIDA
— Quem é?
Não há resposta. O guarda não vê nada, mas por entre o barulho
do vento e o ramalhar das árvores sente perfeitamente que anda
alguém a calcorrear a álea à frente dele. A noite de Março, cerrada e
nevoenta, envolve a terra, e parece ao guarda que a terra, o céu e ele
próprio mais os seus pensamentos se fundiram numa coisa única,
enorme, impenetravelmente negra. Só às palpadelas se pode andar.
— Quem é? — repete o guarda, e parece-lhe ouvir um sussurro e
um riso contido. — Quem está aí?
— Sou eu, paizinho ... — responde uma voz de velho.
— Tu , quem?
— Eu ... um caminheiro de Cristo.
— Caminheiro? — diz o guarda num grito zangado, mas a sua voz
gritada é mais para disfarçar o medo. — Andas por on-de não és
chamado! Esta agora, diabo do homem a passear-se à noite no
cemitério!
— Então aqui é o cemitério?
— Que mais havia de ser? O cemitério, pois! Não vês?
— Ooooh ... Nossa Senhora que estais no céu! — ouve-se num
suspiro senil. — Não vejo nada, paizinho, nadinha... Irra, está escuro,
que escuridão. Escuro como breu, paizinho. Ooooh ...
— Mas quem és tu?
— Um peregrino, paizinho, um homem que anda pelo mundo de
Deus.
— Diabos de moinantes da noite ... Peregrinos, dizem eles!
Bêbados ... — murmura o guarda, sossegado com o tom e os suspiros
do homem. — Até baralham a gente ... Andam na borracheira dias
seguidos, depois à noite é o mafarrico que os puxa para cá. Quer-me
parecer que não estás sozinho, ó tu, sois dois ou três.
— Estou sozinho, meu senhor, sozinho. Só eu ... Ooooh, vida
desgraçada...
O guarda esbarra com o homem e pára.
— Como vieste parar aqui? — pergunta.
— Perdi-me, amigo. Ia para o moinho Mítrievskaia e perdi-me.
— Irra ! Então por aqui é que se vai para o moinho Mítrievskaia,
seu cabeça de chibo? Para o moinho Mítrievskaia é muito mais pela
esquerda; vindo da estrada da cidade é sempre a direito. Bebesses
menos, já não fazias três verstás em vão. Andaste nos copos na
cidade, não foi?
— Pequei, paizinho, é verdade ... Verdade verdadinha, não vou
mentir. Mas como é que vou agora para lá?
— Então agora é sempre em frente por este talhão até esbarrares
num beco que não tem saída, aí viras logo à esquerda e se-gues até ao
fim do cemitério, até à cancela. Há-de haver lá uma cancela . .. Abre-
a e vai com Deus. Vê lá se cais na valeta. Passando o cemitério metes
pelo campo, sempre pelo campo fora, até desembocares na estrada
pública.
— Bem hajas, paizinho, Deus te dê saúde. Nossa Senhora que está
no céu te proteja. Olha, amigo, não podias vir comigo? Faz-me esse
favor, leva-me até à cancela!
— Achas que não tenho mais que fazer? Vai sozinho!
— Por caridade, suplico-te que sejas misericordioso, que eu peço
por ti a Deus nas minhas orações. Não vejo nem a palma da minha
mão, paizinho ... Está tão escuro, ah, esta escuridão! Leva-me lá, meu
senhor!
— Tenho lá tempo para passeatas! Se vou fazer a vontade a cada
qual, isto nunca mais acaba.
— Ajuda-me, por amor de Cristo. Não vejo nada e arreceio-me de
andar sozinho num cemitério. Tenho medo, amigo, muito medo.
— Era só o que me faltava — suspira o guarda. — Está bem, vamos
lá!
O guarda e o romeiro põem-se a caminho. Juntos, ombro com
ombro, calados. O vento húmido, acutilante, bate-lhes na cara, e as
árvores invisíveis, ramalhando crepitantes, despejam por cima deles
salpicos grossos. A álea é, quase toda, uma sucessão de charcos.
— Só uma coisa me faz espécie — diz o guarda depois de um longo
silêncio —, como é que entraste? É que o portão está fechado a
cadeado. Subiste à cerca, foi? Mas olha que saltar por cima da cerca
não é coisa para velhos!
— Não sei, paizinho, não sei nada. Eu próprio não sei como vim
parar cá dentro. Foi coisa má. Um castigo de Deus. Verdade
verdadinha, foi coisa má, o maligno trocou-me as voltas. Então tu,
paizinho, és guarda aqui?
— Sou.
— Só um, para o cemitério todo?
A resistência do vento é tão forte que ambos param um momento.
O guarda, esperando até que a rabanada de vento abrande, responde:
— Não, somos três, mas um está de cama com as febres, e o outro
está a dormir. Trabalhamos por turnos, eu e ele.
— Pois, pois, paizinho, pois ... Que ventania, mas que ventania! Até
os mortos a devem ouvir! Uiva como uma fera... Ooooh ...
— E tu donde és , homem?
— Sou de longe, paizinho. Das terras do fim do mundo, de
Vólogda. Ando pelos lugares santos a rezar pela gente boa. Que Deus
nos ampare.
O guarda pára para acender o cachimbo. Põe-se de cócoras atrás
do peregrino e risca vários fósforos. A luz do primeiro fósforo alumia
por um instante um bocado da álea, à direita, um monumento
branco com um anjo e uma cruz escura; o clarão do segundo fósforo,
que se acende com um estalido e se apaga logo, desliza como um raio
pelo lado esquerdo, e da escuridão apenas se destaca o ângulo de
uma grade; o terceiro fósforo alumia a direita e a esquerda, o
monumento branco, a cruz negra e a grade à volta do túmulo de uma
criança.
— Dormem os fiéis-defuntos, os nossos queridos mortos dormem!
— murmura o peregrino suspirando ruidosamente. — Dormem os
ricos e os pobres, os sábios e os ignorantes, os bons e os malvados.
Valem todos a mesma coisa. E dormirão até que soe a voz da
trombeta. Que descansem em paz no reino dos céus.
— Agora vamos aqui a andar, mas chegará o dia em que também
nós estaremos ali estendidos — diz o guarda.
— Nem mais. Todos, todos vamos parar ali. Todos havemos de
morrer. Ooooh. Atrozes acções as nossas, intenções malvadas!
Pecado, tudo é pecado! Oh, minha alma maldita, insaciável, ventre
voraz! Pequei contra o Senhor e não haverá salvação para mim, nem
neste mundo nem no outro. Afundei-me no pecado como um verme
da terra.
— Pois é, e mais a mais à morte não se escapa.
— Nem mais, não se escapa.
— Calhando, para o peregrino é mais fácil morrer do que para a
gente como nós ... — diz o guarda.
— Há peregrinos e peregrinos. Há os verdadeiros, fiéis a Deus, que
cuidam da salvação da sua alma, e há os que andam à noite pelos
cemitérios para consolação do demónio ... Si-im! Ele há peregrinos
que às tantas, se lhes der na gana, espetam-te c'o machado na cabeça
e esticas o pernil num instante.
— Que conversa é essa?
— Conversa nenhuma ... Olha, parece que é a cancela. É ela toda,
não falha. Abre-a lá, paizinho!
O guarda abre a cancela às apalpadelas, leva o peregrino para fora
pela manga e diz:
— Acaba aqui o cemitério. Agora metes a direito pelo campo fora
até chegares à estrada. Mas cautela, que há uma valeta, não vás cair
lá dentro... Quando chegares à estrada mete à direita e depois é
sempre em frente até ao moinho ...
— Ooooh ... — suspira o peregrino, após um silêncio. — Agora me
lembro que não tenho nada que ir para o moinho Mítrievskaia... Que
diabo vou lá fazer? Olha, querido amigo, é melhor eu ficar aqui à tua
beira...
— E para que ficarias à minha beira?
— Por nada ... é mais divertido.
— Ah , então agora também sou divertimento? Estou a ver,
peregrino, que gostas da brincadeira...
— Gosto, claro! — diz o caminheiro, casquinando uns risinhos
roucos. — Ai, querido amigo, caríssimo! Ainda te hás-de lembrar por
muito tempo cá do peregrino!
— Por que houvera de me lembrar de ti?
— Porque sim, porque foste bem levado ... Que peregrino julgas
que sou? Raio de peregrino nenhum.
— Quem és então?
— Sou um morto... Saí há bocado do caixão ... Lembras-te do
serralheiro Gubariov que se enforcou no Entrudo? Aqui me tens ...
— Vá lá, tretas !
O guarda não acredita, claro, mas sente por todo o corpo um medo
tão frio e pesado que arranca de ao pé do outro e deita nervosamente
a mão à cancela.
— Espera, aonde achas que vais? — diz o caminheiro agarrando a
mão do guarda. — Eeh, olha só como tu és! Por que queres
abandonar o pobrezinho?
— Larga-me! — grita o guarda tentando libertar mão.
— Quieto! Já te mandei estar quietinho e ... que não bulisses daqui
... Não mexe, cão merdoso! Se queres continuar vivo, quieto e caluda,
faz o que te digo ... Não me apetece derramar sangue, senão há muito
que já eras uma carcaça, seu tinhoso . .. Quieto !
O guarda sente os joelhos a dobrarem-se. Fecha os olhos, cheio de
medo, todo o corpo lhe treme, aperta-se contra a cerca. Tem vontade
de gritar, mas sabe que os gritos não chegarão às habitações ... A seu
lado o caminheiro, segurando-o pela mão ... Assim passam uns três
minutos, em silêncio.
— Um está com as febres, outro a dormir, e o terceiro guia os
peregrinos — murmura o caminheiro. — Belos guardas, merecem
bem o salário que ganham! Nã-ão, amigo, os ladrões toda a vida hão-
de ser mais espertos que os guardas! Quieto, quietinho, não mexe ...
Passam cinco, dez minutos de silêncio. De repente, o vento traz um
assobio.
— Agora, podes ir — diz o caminheiro largando a mão do guarda.
— Vai e dá graças a Deus por saíres daqui vivo.
O caminheiro também assobia, afasta-se a correr da cancela e
ouve-se o barulho dele a saltar a valeta.
Com um mau pressentimento e ainda a tremer, o guarda abre a
cancela e, indeciso, de olhos fechados, corre no caminho in-verso ...
Na viragem para a álea grande, ouve passos afobados e uma voz
sibilante a perguntar-lhe:
— És tu, Timofei? E onde está o Mitka?
Quando, sempre a correr, chega ao fim da álea grande, entrevê na
escuridão uma luzinha pequena e pálida. Quanto mais se aproxima
da luzinha, mais intenso e terrível se toma o mau pressentimento.
«Parece que a luz vem da igreja — pensa. — Como é que pode
haver lá luz? Valha-me Nossa Senhora! É mesmo isso!»
Por um longo minuto, o guarda fica parado em frente da janela
partida e olha, aterrorizado, para o altar. A pequena vela de cera que
os ladrões se esqueceram de apagar tremelica ao vento que entra pela
janela e lança manchas vermelhas opacas sobre as molduras dos
ícones espalhadas, sobre o armariozinho derrubado, sobre as muitas
pegadas ao lado da mesa e da pedra do altar...
Passa mais algum tempo e, por fim, acompanhado pelo uivo do
vento, ressoa pelo cemitério o toque do sino a rebate ...
VOLÓDIA
Oh ró-ró, ró-ró,
Ouve esta cantiga ...
Capítulo 1
Mal comportada
Capítulo 2
Um misterioso desconhecido
Capítulo 3
Um novo e muito agradável conhecimento
Capítulo 4
Coisas do arco da velha
Capítulo 5
Talento! Talento!
Passou um mês.
Kachtanka já se habituara a que lhe fosse servido todas as tardes
um saboroso almoço e que lhe chamassem Tia Tina. Habituara-se ao
desconhecido e aos seus novos companheiros. A vida corria-lhe às
mil maravilhas.
Todos os dias começavam da mesma maneira. Normalmente, o
primeiro a acordar era Ivan Ivánitch, que se aproximava
imediatamente da Tia Tina ou do gato, arqueava o pescoço e se
punha a falar com fervor e convicção, mas de uma maneira, como
sempre, incompreensível. Por vezes levantava bem alto a cabeça e
proferia longos monólogos. Nos primeiros tempos, Kachtanka
pensava que o ganso falava muito porque era muito inteligente, mas
breve perdeu todo o respeito por ele; quando a abordava com os seus
discursos intermináveis, já não abanava o rabo mas ignorava-o como
a um fala-barato impertinente que não deixava dormir ninguém e,
sem cerimónias, as respostas que dava ao ganso eram «r-r-r...».
Ora, Fiódor Timoféitch era um senhor doutro género. Ao acordar,
não emitia o mínimo som, não se mexia nem sequer abria os olhos.
Aliás, de um modo geral não teria até grande prazer em acordar,
porque, como era evidente, não gostava muito da vida. Não se
interessava por nada, alardeava uma atitude indiferente e
desdenhosa para com tudo e até quando devorava o seu almoço
delicioso bufava de repugnância.
Quanto a Kachtanka, ao acordar dava uma volta pelos quartos e
cheirava tudo. Só a ela e ao gato era permitido andar por toda a casa,
já que o ganso não estava autorizado a ultrapassar o umbral do
quarto do papel de parede sujo; quanto a Khavrónia Ivánovna, vivia
algures no pátio, numa barraquinha e só ia lá a casa no horário das
aulas. O dono acordava tarde e, depois de tomar chá, começava logo
com os seus truques. Todos os dias trazia para o quarto o Π, o
chicote, os arcos, e todos os dias se trabalhava quase sempre nas
mesmas coisas. As aulas duravam umas três ou quatro horas, de
maneira que às vezes Fiódor Timoféitch começava a cambalear de
cansaço, como um bêbado, Ivan Ivánitch abria o bico e ofegava, e o
dono ficava muito vermelho e fartava-se de limpar o suor da testa.
Os estudos e o almoço tomavam os dias muito divertidos, mas os
anoiteceres eram bastante enfadonhos. Habitualmente, à noite o
dono saía e levava consigo o ganso e o gato. Sozinha, a Tia Tina
deitava-se no colchão e mergulhava em tristeza... A tristeza ia-se
metendo nela imperceptivelmente e ia-a dominando a pouco e
pouco, como o crepúsculo a encher devagarinho o quarto. Começava
tudo com o desaparecimento da vontade de ladrar, de comer, de
correr pelos quartos e até de olhar, depois surgiam-lhe na
imaginação duas figuras indefinidas - cães?, pessoas? - com
semblantes simpáticos, queridos, mas incompreensíveis; mal lhe
vinham à imaginação, a Tia Tina dava ao rabo e parecia-lhe que já
houvera uma altura da sua vida, em qualquer lugar, que as tinha
visto e que gostava delas ... Quando estava a cair no sono, sentia
sempre que essas figuras cheiravam a cola, a aparas de madeira e a
verniz.
Quando já se habituara por completo à nova vida e se
transformara, de rafeira descamada, esquelética, numa cadela bem
tratada e farta, aconteceu o dono, uma vez, fazer-lhe um festinha e
dizer:
— Já é altura de começarmos a trabalhar juntos, Tia Tina. Chega
de mandriice. Quero fazer de ti uma actriz ... Queres ser actriz?
E começou a ensinar-lhe várias ciências. Na primeira aula
aprendeu a pôr-se de pé e andar nas patas traseiras, coisa de que
gostava muito. Na segunda aula teve de aprender a saltar a pé junto
nas patas traseiras e abocanhar um cubo de açúcar que o professor
segurava bem alto. Nas aulas seguintes foi a dança, a corrida com
corda, o canto ao som da música, o tanger da sineta e o tiro à pistola;
passado um mês já era capaz de substituir com êxito Fiódor
Timoféitch na «pirâmide egípcia». Estudava com prazer e estava
contente com os seus êxitos; correr à corda com a língua de fora e
montar de um salto o velho Fiódor Timoféitch davam-lhe um prazer
enorme. Celebrava cada número bem sucedido com um latido sonoro
e entusiasmado, o dono também se entusiasmava, se espantava,
esfregava as mãos .
— Talento! Talento! - dizia ele. - Talento indubitável! Será um
êxito, de certeza!
E a Tia Tina habituou-se de tal modo à palavra «talento» que,
sempre que o dono a pronunciava, saltava do lugar e olhava pa-ra
ele, como se fosse a alcunha dela.
Capítulo 6
Uma noite inquieta
Capítulo 7
Uma estreia mal sucedida
2
Primeiro, destaca-se na escuridão uma rodela azul - a vigia
redonda; depois Gússev, a pouco e pouco, vai distinguindo o vizinho,
Pável Ivánitch. Pável Ivánitch dorme sentado, porque deitado falta-
lhe o ar. A cara dele é cinzenta, o nariz comprido e afilado, os olhos,
de tão magro, ficaram-lhe enormes; as têmporas cavaram-se-lhe, a
barba é rala, o cabelo comprido ... Pela cara, é impossível dizer de
que condição é: fidalgo, comerciante, mujique? Pela expressão do
rosto, pelo cabelo, parece um jejuador, noviço de um mosteiro, mas,
pela fala que tem, monge é que não é. Ficou esgotado do balanço, do
ar abafado, da doença, respira a custo e mexe os lábios ressequidos.
Reparando que Gússev está a olhar para ele, vira-lhe a cara e diz:
— Começo a adivinhar... Sim ... Agora percebo perfeitamente.
— O que é que percebe, Pável Ivánitch?
— O que percebo?... Bem me pareceu esquisito que a vós, doentes
graves, em vez de vos porem em sossego, vos tenham atirado aqui
para o vapor, onde é só afogo, calor, o enjoo, numa palavra, onde
tudo vos faz correr risco de morte, mas agora percebi tudo ... Pois ...
Os vossos médicos entregaram-vos para transporte no vapor para se
desfazerem de vós. Fartos de ter trabalho convosco, gado ... Não lhes
pagam para isso, dais muito trabalho e, com as vossas mortes,
estragais os relatórios deles: portanto, sois gado! Ora bem, desfazer-
se de vós também não é difícil... Para isso, em primeiro lugar o que é
preciso é não ter moral nem humanidade nenhuma e, em segundo,
enganar as autoridades do vapor. Da primeira condição nem é
preciso falar, nesse aspecto somos uns artistas, e a segunda é sempre
possível com alguma habilidade. Entre uma chusma de quatrocentos
soldados e marinheiros saudáveis, cinco doentes nem se notam;
ajuntaram-vos no vapor, misturaram-vos com os saudáveis,
contaram-vos a todos à pressa e, no meio da azáfama, não repararam
em nada de mal, só quando o vapor saiu para o mar é que viram:
estão estendidos no convés uns paralisados e tísicos terminais ...
Gússev não compreende Pável Ivánitch; acha que está a censurá-lo
e diz, justificando-se:
— Fiquei deitado no convés porque não tinha forças; quando nos
desembarcavam do batelão para o vapor rapei muito frio.
— Revoltante! - continua Pável Ivánitch. - O pior é que eles sabem
perfeitamente que vós não aguentais esta longa travessia, e mesmo
assim enfiam-vos cá para dentro! Digamos que até ao Oceano síndico
É
ainda chegais, mas depois? Até mete medo pensar nisso ... É esta a
paga pelos honrosos e leais serviços!
Pável Ivánitch faz uns olhos maus, franze a cara com repugnância
e diz, ofegando:
— Que bom seria arrasá-los nos jornais, que nem os ossos deles se
aproveitassem!
Os dois soldados e o marujo doentes já acordaram e já jogam às
cartas. O marinheiro está meio deitado no catre, os soldados estão
sentados ao lado dele no chão em posições muito incómodas . Um
dos soldados tem a mão direita embrulhada numa ligadura do
tamanho de um chapéu, por isso segura as cartas de-baixo do sovaco
direito ou na dobra do cotovelo, e joga com a mão esquerda. Mareia
agora muito. Impossível levantar-se, beber chá, tomar os
medicamentos.
— Foste ordenança? — pergunta Pável Ivánitch a Gússev.
— Ordenança, pois.
— Meu Deus, meu Deus! — diz Pável Ivánitch e abana triste-mente
a cabeça. — Arrancar uma pessoa do ninho materno, arrastá-la
quinze mil verstás, depois levá-la à tísica e ... para que é tudo isso,
pergunto eu? Para fazer dela um ordenança de algum capitão
Kopéikin ou aspirante da marinha Dirka(31). Grande lógica!
— Não é um trabalho difícil, Pável Ivánitch. Levantar de manhã,
limpar as botas, aquecer o samovar, limpar os quartos, e depois mais
nada para fazer. O meu tenente passava o dia a desenhar as plantas,
e eu, se quisesse, rezava a Deus, se quisesse lia livros, ou, se quisesse,
ia até à rua. Quem não gosta de ter uma vida assim?
— Sim sim, uma vida muito boa! O tenente a desenhar plantas e tu
metido o dia todo na cozinha com saudades da terra ... Plantas ...
Não são as plantas que importam, mas a vida humana! A vida não se
repete, é preciso poupá-la.
— Lá isso é verdade, Pável Ivánitch, a um homem mau ninguém o
poupa, nem em casa, nem no serviço, mas se vivermos como justos,
com obediência, quem tem necessidade de nos tratar mal? Os amos
são cultos, eles compreendem... Em cinco anos nem uma vez estive
na cadeia, e baterem-me, se não me engano, só uma vez...
— Porquê?
— Por uma briga. Eu tenho a mão pesada, Pável Ivánitch.
Entraram no nosso quintal quatro manzas(32), a trazer-nos lenha,
parece, não me lembro bem. Ora eu, que estava aborrecido como
tudo, pronto, dei-lhes cabo das costelas, e um deles ainda começou a
sangrar do nariz, o maldito ... O meu tenente viu tudo pela janela,
zangou-se e deu-me um murro no ouvido.
— Estúpido, miserável... — sussurra Pável Ivánitch. — Não
percebes nada.
Extenuado pelo gingar do barco, fechou os olhos; a cabeça ora se
lhe empina para trás, ora lhe tomba para o peito. Por várias vezes
tenta deitar-se, mas não adianta: a asfixia não o deixa.
— Mas por que raio espancaste os quatro manzas? — pergunta,
passado um pouco.
— Por nada. Entrais no quintal? Levais.
Cai o silêncio ... Os outros jogam às cartas já lá vão duas horas,
com arrebatamentos e pragas, mas o balanço do mar também os
cansa; largam as cartas e deitam-se. Outra vez se desenha na cabeça
de Gússev o lago grande, a fábrica, a aldeia... Outra vez corre o trenó,
ri o Vanka, a parvinha da Akulka abre a peliça e mostra as pernas: ó
boa gente, olha as minhas botas, não são como as do Vanka, as
minhas são novas ...
— Já tens cinco aninhos, mas juízo não tens nenhum — delira
Gússev. — Em vez de mostrares as pernas, ias buscar água para o teu
tio soldadinho. Dava-te uma prenda.
Lá vai o Andron com a espingarda de pederneira ao ombro, que
caçou uma lebre e a leva, e atrás dele o caduco do judeu Issáitchik,
que lha quer trocar por um sabão; lá está a vitela preta no quinteiro,
e a Domna a costurar uma camisa e a chorar sabe-se lá porquê, e
outra vez a cabeça de touro sem olhos, o fumo preto ...
Em cima, alguém gritou alto, vários marinheiros a correrem,
parece qualquer coisa volumosa a ser arrastada, qualquer coisa a
rachar-se. Outra vez correrias. Aconteceu alguma desgraça? Gússev
estica a cabeça, escuta, verifica: os dois soldados e o marujo voltaram
ao jogo das cartas; Pável Ivánitch está sentado, a mexer os lábios.
Um afogo, impossível respirar, sede, mas a água está morna, um nojo
... O marear não abranda.
De repente, uma coisa estranha acontece com um dos solda-dos
que joga... Chama ouros às copas, confunde a contagem, deixa cair as
cartas, depois sorri, um sorriso estúpido e assusta-do, passa os olhos
por todas as caras.
— Esperem lá, irmãos ... - diz e deita-se no chão.
Estranheza geral. Chamam-no, não dá acordo.
— Stepan, estás bem? Eh? - pergunta o soldado da ligadura na
mão. — E se chamássemos o padre? Eh?
— Stepan, bebe uma pinga de água... — diz o marujo. — To-ma lá,
mano, bebe.
— Pára de lhe martelar com a caneca nos dentes! — zanga-se
Gússev. — Não estás a ver, cabeça de pau?
— O quê?
— O quê! — arremeda-o Gússev. - Não respira, morreu! Já
percebeste o quê? Gente mais estúpida, meu Deus!.. .
Olga Ivánovna tinha vinte e dois anos, Dímov trinta e um. Depois
do casamento, iniciaram uma vida maravilhosa. Olga Ivánovna
cobriu todas as paredes da sala de estar com os estudos dela e de
outros, com molduras e sem molduras, e ao lado do piano de cauda e
junto dos móveis instalou arranjos bonitos de guarda-sóis chineses,
cavaletes, paninhos multicores, pu-nhais, pequenos bustos,
fotografias... Na sala de jantar colou às paredes quadros de lubok(33),
pendurou láptis(34) e foices, pôs num canto uma gadanha e um
ancinho, e assim recriou uma sala de jantar à moda russa. No quarto
de dormir, para o tomar parecido com uma caverna, forrou o tecto e
as paredes com pano escuro, pendurou por cima das camas uma
lanterna veneziana, e à porta colocou uma figura com alabarda. Toda
a gente achava encantador o ninho do jovem casal.
Todos os dias, ao levantar-se da cama por volta das onze, Olga
Ivánovna tocava piano ou, se estivesse sol, pintava um pouco a óleo.
Depois do meio-dia ia a casa da modista. Como ela e Dímov tinham
pouco dinheiro, apenas para o indispensável, Olga Ivánovna e a
modista eram obrigadas a usar de astúcia para ela aparecer em
sociedade sempre com roupa nova. Não raro, de um vestido velho
tingido, de retalhos de tule, renda, pelúcia e seda sem qualquer valor
resultavam milagres, coisas encantadoras, vestidos de sonho. De casa
da modista, Olga Ivánovna costumava ir de visita a alguma actriz
conhecida para saber notícias teatrais e, a propósito, tratar dos
bilhetes para a estreia de uma peça nova ou de um espectáculo de
beneficência. Da casa de actriz ia a casa do pintor ou a uma exposição
de pintura, depois ia visitar alguma celebridade - para a convidar
para sua casa, ou retribuir uma visita, ou, simplesmente, tagarelar.
Por todo o lado a recebiam com agrado e amizade e lhe reafirmavam
que era linda, simpática, uma coisinha rara ... Os chamados famosos
e grandes recebiam-na como a uma igual e prediziam-lhe, em
uníssono, que com os seus talentos, gosto e intelecto, se não se
dispersasse, iria longe na criação de alguma coisa de valor. Cantava,
tocava piano, pintava, esculpia, representava em espectáculos
amadores, não de qualquer maneira, mas com talento; fizesse ela
lanternas para a iluminação, ataviasse-se, atasse ela a gravata de
alguém - tudo lhe saía incrivelmente artístico, gracioso, bonito. O
verdadeiro talento dela, porém, era a capacidade de conhecer muito
rapidamente pessoas famosas e de travar com elas uma amizade
íntima. Bastava alguém ficar célebre, poucochinho que fosse, desde
que se falasse nele, e já ela lhe era apresentada, se tomava sua amiga
e o convidava no mesmo dia para sua casa. Cada novo conhecimento
era para ela uma verdadeira festa. Divinizava os famosos, orgulhava-
se deles e todas as noites sonhava com eles. Ansiava por eles e nunca
fartava a sede que tinha deles. Desapareciam e caíam no
esquecimento os antigos, arranjava novos; os novos depressa lhe
entravam no hábito ou a desiludiam, procurava avidamente outros
novos e grandes homens, encontrava-os, voltava a procurar. Para
quê?
Depois das quatro, almoçava em casa com o marido. A
simplicidade, o senso comum, a bondade dele enchiam Olga
Ivánovna de enternecimento e entusiasmo. Volta e meia saltava do
lugar, abraçava impetuosamente a cabeça dele e cobria-lha de beijos.
— Tu , Dímov, és um homem nobre e inteligente — dizia — , mas
tens um defeito muito grave. Não te interessas pelas coisas da arte.
Negas a música e a pintura.
— Não percebo nada disso — respondia o marido com resignação.
— Toda a vida agarrado às ciências naturais e à medicina, que tempo
tinha para as artes?
— Mas isso é horrível, Dímov!
— Porquê? Os teus amigos não conhecem as ciências naturais nem
a medicina, mas tu não lho censuras. Cada qual no seu ramo. Eu não
entendo de paisagens nem de óperas, mas penso assim: se há
pessoas inteligentes que lhes dedicam uma vida inteira e há outras
pessoas inteligentes que pagam fortunas por elas, então é porque são
necessárias. Eu não as compreendo, mas não compreender não é
negar.
— Deixa-me apertar a tua mão honrada!
Depois do almoço, Olga Ivánovna ia visitar amigos, a seguir ao
teatro ou ao concerto, voltando para casa depois da meia-noite. E
assim todos os dias.
Às quartas, recebia. Eram serões em que anfitriã e convidados não
jogavam às cartas nem dançavam mas se entretinham nas artes. O
actor dramático recitava, o cantor cantava, os pintores desenhavam
nos álbuns que Olga Ivánovna possuía em profusão, o violoncelista
tocava, a anfitriã desenhava, esculpia, cantava e acompanhava ao
piano. Nos intervalos da recitação, da música e do canto, falava-se,
discutia-se: literatura, teatro, pintura. Não havia senhoras porque,
para Olga Ivánovna, todas as senhoras com excepção das actrizes e
da sua modista, eram aborrecidas e vulgares. Não passava um serão
sem que a anfitriã não estremecesse a cada toque de campainha e
não dissesse, de cara triunfal: «É ele!», subentendendo-se por «ele»
alguma nova celebridade convidada. Dímov nunca estava presente
na sala de estar, nem ninguém se lembrava da sua existência. Porém,
às onze e meia em ponto, a porta que dava para a sala de jantar
abria-se e aparecia Dímov com o seu sorriso bondoso e meigo, que
anunciava, esfregando as mãos:
— Meus senhores, por favor, são horas de comer alguma coisa.
Todos passavam à sala de jantar e deparavam sempre com a
mesma coisa na mesa: uma pratada de ostras, presunto ou vitela,
sardinhas, queijos, caviar, cogumelos salgados, vodka e dois jarros de
vinho.
— Meu querido maitre d'hôtel dizia Olga Ivánovna abanando as
mãos de admiração. - És um querido encantador! Meus senhores,
olhem para a fronte dele! Dímov, vira-te de perfil. Meus senhores,
olhem: cara de tigre de Bengala, mas a expressão querida e bondosa
do veado. Aah, querido!
Os convidados comiam e, olhando para Dímov, diziam para
consigo: «realmente, muito simpático», mas logo se esqueciam dele
e continuavam a falar de teatro, de música, de pintura.
O jovem casal era feliz, a vida corria-lhes às mil maravilhas. Isto
embora a terceira semana da lua-de-mel não tenha corrido muito
bem, podendo até dizer-se que foi triste. Dímov apanhou erisipela no
hospital, por contágio, tendo ficado de cama seis dias e sendo
obrigado a rapar o seu bonito cabelo preto. Olga Ivánovna sentava-se
à cabeceira dele a chorar amargamente, mas, quando começou a ver
melhoras nele, atou-lhe um lenço branco na cabeça rapada e
começou a retratá-lo no papel de beduíno. E ambos se divertiam
muito. Três dias depois de recuperado e já no hospital, novo sarilho
aconteceu.
— Tenho pouca sorte, mamã! — disse ao almoço. — Hoje tive
quatro autópsias, e cortei-me, logo em dois dedos. Só reparei nisso
em casa.
Olga Ivánovna assustou-se. Dímov sorriu e disse que não era nada,
o que mais lhe acontecia era cortar-se nas mãos quando autopsiava.
— Entusiasmo-me, mamã, e depois não tenho cuidado.
Olga Ivánovna, alarmada, temia a infecção pela ptomaína e,
pelas noites, fartava-se de rezar a Deus. Felizmente, tudo acabou
bem. De novo a vida retomou o seu curso calmo e feliz, sem grandes
tristezas nem preocupações. O presente era maravilhoso e não
tardaria a dar lugar à Primavera que se aproximava, a sorrir de longe
e com promessas de mil alegrias. Então, seria a felicidade perfeita!
Em Abril, Maio e Junho, a casa de campo bem longe da cidade, os
passeios, os estudos de pintura, a pesca, os rouxinóis; de Julho até ao
Outono, uma viagem dos pintores ao Volga na qual, como membro
imprescindível da société, Olga Ivánovna também participaria. Já
mandara fazer dois fatos de viagem em linho, comprara tintas,
pincéis, telas e uma paleta nova. Quase todos os dias Riabóvski ia ver
que progressos ela fizera na pintura. Olhava para os trabalhos, com
as mãos enterradas no fundo dos bolsos, apertava os lábios, fungava
e dizia:
— Pois ... Esta sua nuvem berra; a luz que a alumia não é a do
entardecer. O primeiro plano está desbotado, e há aqui qualquer
coisa, percebe, que não bate certo ... E esta sua casinha engasgou-se
com alguma coisa e está a lamuriar-se ... seria preciso fazer este
canto aqui mais escuro. Mas, no geral, não está mau... Parabéns.
E quanto mais incompreensíveis eram as palavras de Riabóvski,
melhor Olga Ivánovna o compreendia.
5
O dia 2 de Setembro corria tépido e calmo, mas sombrio. De
manhã cedo vogava sobre o Volga uma neblina leve, depois das nove
começou a chuviscar. Não havia esperanças de o céu se desanuviar.
Quando tomavam chá, Riabóvski dizia a Olga Ivánovna que a pintura
era a mais enfadonha e ingrata das artes, que ele não era pintor
nenhum, que só os parvos pensavam que ele tinha talento, e num
gesto repentino pegou na faca e arranhou com ela o seu melhor
estudo, assim, sem mais. Depois do chá foi sentar-se à janela,
carrancudo, a olhar para o Volga. O Volga perdera o brilho, ia baço,
opaco, arrepiado de frio. Tudo, tudo lembrava que o tristonho e
sombrio Outono se aproximava. Parecia que a natureza já tirara ao
Volga os luxuosos tapetes verdes das margens, os reflexos
diamantinos dos raios, o horizonte azul e transparente, e tudo o que
era roupa elegante e garrida, tudo o que era de gala, arrumara-o nas
arcas até à próxima Primavera, e que as gralhas voavam à beira do
Volga e gozavam com ele: «Estás nu! Estás nu!» Riabóvski ouvia os
grasnidos das gralhas e pensava como já se exaurira e perdera a
chama do talento, como tudo no mundo era convencional e estúpido,
e que não deveria ter-se deixado prender por esta mulher... Numa
palavra, estava de mau humor, a puxar para o hipocondríaco ...
Olga Ivánovna estava sentada na cama colocada por trás de um
tabique e, passando os olhos pelo seu maravilhoso cabelo cor de
linho, imaginava-se ora na sua sala de estar, ora no quarto de
dormir, ora no gabinete do marido; a imaginação levava-a ao teatro,
à modista, aos amigos de renome. O que estarão a fazer neste
momento? Lembrar-se-ão dela? Começara a temporada, era altura
de pensar em receber de novo. E o Dímov? Querido Dímov! Que
meiguice e que súplica infantil ao pedir-lhe nas cartas para voltar o
mais depressa possível para casa! Todos os meses lhe mandava
setenta e cinco rublos e, quando ela lhe escreveu a dizer que devia
cem rublos aos pintores,' enviou-lhe também esses cem. Que homem
bondoso, magnânimo! A viagem já cansara Olga Ivánovna,
aborrecia-se, apetecia-lhe fugir o mais depressa possível destes
mujiques, do cheiro húmido do rio, livrar-se desta sensação de
impureza física que não a largava, vivendo nas izbás dos camponeses
e errando de aldeia em aldeia. Se Riabóvski não tivesse dado aos
pintores a sua palavra de honra de que ficaria com eles até 20 de
Setembro, poderiam partir hoje mesmo. E que bom seria!
— Meu Deus! — gemeu Riabóvski. — Quando haverá finalmente
sol? Como posso avançar com a paisagem de sol sem sol? ...
— Mas também tens um estudo com céu nublado - disse Olga
Ivánovna, saindo de trás do tabique. — Lembras-te? À direita a
floresta, à esquerda uma manada de vacas e gansos. Podias
aproveitar para acabá-lo.
— Eeh lá! — franziu a cara o pintor. - Acabá-lo! E a senhora acha
que eu sou assim tão parvo que não saiba o que hei-de fazer?
— Como mudaste para comigo! — suspirou Olga Ivánovna.
— Ainda bem.
O rosto de Olga Ivánovna tremeu. Afastou-se para junto do fogão e
chorou.
— Pronto, só cá faltavam as lágrimas. Deixe-se disso! Tenho
milhares de razões para chorar e não choro.
— Milhares de razões! - soluçou Olga Ivánovna. - A razão principal
é que eu já começo a ser um fardo pesado para si. Sim! - disse ela, e
redobrou de choro. - Se quer saber toda a verdade, acho que tem
vergonha do nosso amor. Faz tudo para que os pintores não notem
nada, embora isso seja impossível e eles já saibam tudo há muito.
— Olga, só lhe peço uma coisa - disse o pintor, suplicante e levando
uma mão ao coração -, só uma coisa: não me torture! Não quero mais
nada de si!
— Mas jure que ainda me ama!
— Isto é um tormento! - disse entre dentes o pintor, erguendo-se
de um salto. - Se isto continua assim, atiro-me ao Volga ou
enlouqueço! Deixe-me em paz!
— Então mate-me, mate-me! - gritou Olga Ivánovna. — Mate-me !
Desatou outra vez a chorar e refugiou-se atrás do tabique. No
telhado de palha restolhava a chuva. Riabóvski agarrou-se à cabeça e
pôs-se a andar de um canto ao outro do quarto, depois, com uma
cara decidida, como se quisesse provar alguma coisa a alguém, pôs o
boné, lançou ao ombro a espingarda e saiu da izbá.
Ao ficar sozinha, Olga Ivánovna estendeu-se na cama e chorou
muito. Primeiro, pensou que seria bom envenenar-se para que
Riabóvski, ao voltar, a encontrasse morta; depois, os pensamentos
levaram-na para a sua sala de estar, para o gabinete do marido, e
imaginou-se sentada muito quieta, ao lado de Dímov, deliciando-se
com o sossego físico e o asseio, e depois, à noite, a ouvir Masini(35) no
teatro. Apertou-lhe o coração a saudade da civilização, o barulho da
cidade e a falta dos famosos. A campónia que os alojava entrou na
izbá e começou, sem pressas, a acender o fogão para preparar o
almoço. Espalhou-se um cheiro a fuligem, o ar ficou azul de fumo.
Entravam pintores, de botas altas e enlameadas, os rostos vermelhos
da chuva, e punham-se a apreciar os estudos dizendo, para se
consolar, que até durante o mau tempo o Volga tinha a sua graça. E o
relógio barato na parede: tiquetaque, tiquetaque ... As moscas,
tolhidas de frio, amontoavam-se ao lado do ícone e zumbiam, as
baratas farfalhavam debaixo dos bancos, nas pastas grossas dos
desenhos ...
Riabóvski voltou a casa ao pôr do sol. Atirou com o boné para cima
da mesa e, pálido, extenuado, com as botas sujas, sentou-se no banco
e fechou os olhos.
— Estou cansado ... — disse ele, e erguia as sobrancelhas, tentando
manter os olhos abertos.
Com vontade de o acalentar e para lhe mostrar que não estava
ressentida, Olga Ivánovna aproximou-se dele, beijou-o em silêncio e
passou-lhe o pente pelo cabelo loiro. Apeteceu-lhe penteá-lo.
— O que é isto? - estremeceu Riabóvski, como se lhe tivessem
tocado com alguma coisa fria, e abriu os olhos. — O que quer? Deixe-
me em paz, por favor.
Arredou-a com as mãos e levantou-se, detectando Olga Ivánovna
alguma repugnância e desgosto no rosto dele. Neste momento, a
campónia trazia para ele um prato de sopa de repolho, pegando-lhe
com todo o cuidado com as duas mãos, e Olga Ivánovna viu que a
mulher metera os dois polegares dentro da sopa. Aquela campónia
suja com a barriga grande cingida, a sopa de repolho que Riabóvski
devorava com avidez, e toda aquela vida de que, a princípio, gostara
tanto pela sua simplicidade e uma certa desordem artística,
pareciam-lhe agora tenebrosas. Sentiu-se de repente insultada e
disse com frieza:
— Precisamos de nos separar por algum tempo, senão, com este
tédio aqui, somos capazes de nos zangar a sério. Estou farta disto.
Vou-me embora hoje.
— E como vais? Montada num pau?
— Hoje é quinta, às nove e meia chega o vapor.
— Sim? Pois, pois ... Está bem, então vai ... — disse Riabóvski
meigamente, limpando os lábios com uma toalha em vez do
guardanapo. — Aborreces-te aqui, não tens nada que fazer, seria
egoísmo da minha parte estar a reter-te. Vai, vemo-nos depois do dia
vinte.
Olga Ivánovna fazia as malas com alegria, até com as faces
incendiadas de prazer. A sério, perguntava-se ela, que daqui a pouco
vai pintar na sala de estar, dormir no quarto e almoçar a uma mesa
com toalha? Sentiu um alívio tão grande que se lhe dissipou o rancor
contra Riabóvski.
— Deixo-te as tintas e os pincéis, Riabucha — dizia. — O que
sobrar, levas ... Agora vê lá, sem mim, se começas a mandriar; não
faças isso, trabalha. És o meu lindo menino, Riabucha.
Às nove, à despedida, Riabóvski deu-lhe um beijo, para não ter de
a beijar — pensava ela — ao pé do vapor, na presença dos pintores.
Acompanhou-a ao cais. Pouco depois chegou o vapor e levou-a.
Chegou a casa dois dias e meio depois. Sem tirar o chapéu nem o
impermeável, ofegante de emoção, entrou pela sala de estar adentro
e de lá passou à sala de jantar. Dímov, sem sobrecasaca, com o colete
desabotoado, estava à mesa e afiava a faca no garfo; tinha à frente
um prato com uma perdiz. Olga Ivánovna, ao entrar no apartamento,
levava a firme convicção de que era preciso esconder tudo do marido
e de que teria para isso a capacidade e a força, mas agora, ao ver o
sorriso largo, meigo e feliz de Dímov, e os seus olhos a brilharem de
alegria, sentiu que enganar um homem daqueles era tão ignóbil,
abominável e impossível, tão fora das suas capacidades, como
caluniar, roubar ou matar; decidiu, no instante, contar-lhe tudo.
Depois de deixar que ele a beijasse e abraçasse, pôs-se de joelhos
diante dele e tapou a cara com as mãos.
— O que é isso, o que é isso, mamã? — perguntou ele com ternura.
— Tiveste saudades?
Ela ergueu o rosto, vermelho de vergonha, e ficou-se a olhar para
ele, culpada, suplicante; mas o medo e a vergonha impediram-na de
dizer a verdade.
— Não é nada... — disse. — Nada...
— Senta-te — disse ele, levantando-se e sentando-a à mesa. —
Assim mesmo ... Come a perdiz. Tens fome, coitadinha.
Ela inspirava com avidez o ar familiar e comia a perdiz, e o marido
olhava para ela, enternecido, e ria, todo feliz.
6
Pelos vistos, foi nos meados do Inverno que Dímov começou a
perceber que era enganado. Como se tivesse um peso na consciência,
já não podia olhar a mulher nos olhos, já não sorria feliz quando a via
e, para ficar menos tempo a sós com ela, trazia muitas vezes a
almoçar o colega Korosteliov, homenzinho de cabelo curto e uma
cara devastada que, quando falava com Olga Ivánovna, desabotoava
por atrapalhação todos os botões do casaco e depois começava a
beliscar com a mão direita o bigode esquerdo. Ao almoço, os dois
médicos falavam de que, derivado à posição demasiado alta do
diafragma, acontecia muitas vezes uma arritmia do coração, ou de
que, ultimamente, as nevrites múltiplas eram muito frequentes, ou
de que, no dia anterior, Dímov, ao abrir um cadáver com o
diagnóstico «anemia maligna», descobrira cancro do pâncreas. E
parecia que aquela conversa profissional se destinava apenas a
permitir que Olga
Ivánovna ficasse calada, ou seja, não mentisse. Depois do almoço,
Korosteliov sentava-se ao piano, Dímov suspirava e dizia-lhe:
— Eh, amigo! Pois . .. Ouve, toca alguma coisa triste.
Levantando os ombros e abrindo muito os dedos, tirava uns
acordes e começava a cantar em tenor: «Mostra-me um retiro onde
não gema o mujique russo...»(36), e Dímov voltava a suspirar, apoiava
a cabeça no punho e ficava pensativo.
Ultimamente, Olga Ivánovna portava-se com extrema
imprudência. Acordava todas as manhãs de muito mau humor e com
a ideia de que já não gostava de Riabóvski e que, graças a Deus, já
acabara tudo. Mas, depois de tomar café, lembrava-se que Riabóvski
fora o culpado de ela perder o marido e que agora estava sem marido
e sem Riabóvski; depois, lembrava-se das conversas dos amigos
sobre a preparação para uma exposição qualquer de um quadro de
Riabóvski, uma coisa espantosa, uma mistura de paisagem e pintura
de género, algo ao estilo de Polénov(37), que tem deixado pasmados
todos os visitantes do seu atelier; mas isso, pensava ela, criou-o ele
por influência dela, Olga Ivánovna, e, de uma maneira geral, se ele
mudou para melhor foi graças a ela. Tal influência é tão substancial e
benéfica que, se ela o deixar, Riabóvski fica perdido. Vinha-lhe
também à cabeça o Riabóvski na última vez que a visitara, com uma
sobrecasaca cinzenta mosqueada e uma gravata nova, perguntando-
lhe languidamente: «Até sou bonito, não?» De facto, assim elegante,
com aqueles caracóis compridos e aquele olho azul, ele estava muito
bonito (ou talvez assim lhe parecesse) e foi carinhoso com ela.
Lembrando-se de tanta coisa e tirando as respectivas conclusões,
Olga Ivánovna vestia-se e, a ferver de emoção, ia de coche ao atelier-
de Riabóvski. Encontrava-o de bom humor, a admirar o seu próprio
quadro, realmente maravilhoso; dava pulos, fazia palhaçadas e
respondia com brincadeiras às perguntas sérias. Olga Ivánovna tinha
ciúmes do quadro, odiava o quadro; mas, por delicadeza, ficava cinco
minutos frente à obra e, suspirando como diante de uma relíquia,
dizia em voz baixa:
— É verdade, nunca tinhas feito nada igual. Sabes, até assusta.
Depois começava a implorar-lhe que a amasse, que não a
abandonasse, que tivesse pena dela, pobre coitada. Chorava,
beijava-lhe as mãos, exigia que lhe jurasse o seu amor, demonstrava-
lhe que, sem a influência benéfica dela, ele ia desencaminhar-se e
acabar. Por fim, tendo estragado a boa disposição dele e sentindo-se
humilhada, ia a casa da modista ou de alguma actriz conhecida para
arranjar bilhete.
Quando não o apanhava no atelier, deixava-lhe uma carta onde
jurava que, se ele não aparecesse hoje, ela se envenenava. Riabóvski
acobardava-se, aparecia, ficava para almoçar. Sem escrúpulos na
presença do marido, dizia a Olga Ivánovna coisas insultuosas, esta
pagava-lhe na mesma moeda. Ambos sentiam que se atavam um ao
outro pelas mãos, que ambos eram déspotas e inimigos, e
enraiveciam-se, e tomados dessa raiva não notavam que estavam a
ser indecentes e que mesmo o Korosteliov de cabelo curto percebia
tudo. Findo o almoço, Riabóvski apressava-se a despedir-se e a
partir.
— Onde vai o senhor? — perguntava-lhe Olga Ivánovna no
vestíbulo, olhando para ele com ódio.
Riabóvski, enrugando a cara e franzindo os olhos, mencionava
uma senhora qualquer, amiga comum, e via-se que gozava com os
ciúmes dela e queria espicaçá-la. Olga Ivánovna ia para o quarto dela
e deitava-se na cama; por ciúmes, desgosto, humilhação e vergonha,
mordia a almofada e chorava alto. Dímov deixava Korosteliov na sala
de estar, ia ao quarto e, confuso, embaraçado, dizia baixinho:
— Não chores tanto, mamã... Para quê? É preciso calar isso... Fazer
de conta... O que aconteceu, aconteceu.
Incapaz de dominar os ciúmes torturantes, que lhe davam até uma
dor espetada nas têmporas, e julgando que era ainda possível
melhorar as coisas, lavava a cara, cobria de pó-de-arroz as faces
inchadas de chorar e corria a casa de uma conhecida sua. Não vendo
lá Riabóvski, ia a casa de outra, depois de outra... A princípio ainda
tinha vergonha dessas visitas, depois habituou-se e, de casa em casa,
chegava a visitar numa noite todas as mulheres que conhecia, à
procura de Riabóvski, o que toda a gente percebia.
Uma vez disse a Riabóvski, sobre o marido:
— Esse homem oprime-me com tanta magnanimidade !
Gostou tanto da frase que, quando se encontrava com o grupo dos
pintores, todos a par do seu romance com Riabóvski, dizia, sempre
que falava do marido, com um gesto enérgico:
— Esse homem oprime-me com tanta magnanimidade!
O seu modo de vida era o mesmo do ano anterior. Às quartas,
recebia. O actor recitava, os pintores desenhavam, o violoncelista
tocava, o cantor cantava e, infalivelmente, às onze e meia abria-se a
porta da sala de jantar e Dímov, sorrindo, dizia:
— Meus senhores, são horas de comer alguma coisa.
Como antes, Olga Ivánovna continuava na sua busca de grandes
homens, encontrava-os, não a satisfaziam, voltava a procurar. Como
antes, voltava para casa a altas horas da noite, mas Dímov agora já
não dormia, como antes, e estava sempre no seu gabinete a
trabalhar. Deitava-se às três e levantava-se às oito.
Um fim de tarde, preparando-se ela para ir ao teatro, diante do
espelho do tremó, entrou no quarto Dímov de casaca e gravata
branca. Sorria com meiguice e, como antigamente, olhou a mulher
nos olhos. Estava com uma cara radiante.
— Acabo de defender a tese - disse, sentando-se e afagando os
joelhos.
— Defender a tese? - perguntou Olga Ivánovna.
— Oh-oh! - riu-se ele, e esticou o pescoço para ver no espelho o
rosto da mulher, que continuava de costas para ele, a arranjar o
penteado. — Oh-oh! - repetiu. - Sabes, é muito possível que me
proponham o cargo de docente extraordinário na cátedra de
patologia geral. Cheira-me que sim.
Pela cara ditosa, pelo ar radiante, via-se que se acaso Olga
Ivánovna partilhasse com ele a alegria daquele êxito, ele lhe
perdoava tudo, o presente e o futuro, esquecia tudo, mas ela não
percebia o que significava docente extraordinário e patologia geral,
além de que tinha medo de chegar atrasada ao teatro, e não disse
nada.
Dímov ficou sentado ainda dois minutos, sorriu com ar culpado e
saiu.