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2.2. Expressionismo Alemão

O cinema expressionista ou da expressão devolveu-se no início do séc. XX na

Alemanha. Trata-se de um movimento experimental que antecedeu outros

movimentos de vanguarda como a escola soviética de montagem (ou montagista). O

expressionismo coloca-se em contraste com o impressionismo (que se focava na

impressão da natureza, um certo modo de ver ao qual a obra dava corpo). Para o

expressionismo o que interessa é trabalhar sobre essa impressão de modo a criar algo

de mais permanente que revela o mundo como território desconhecido. Nesta postura

vai contra a efemeridade do impressionismo, mas também contra qualquer ambição

naturalista. É nesse sentido que se pode interpretar a conhecida frase de Lotte Eisner

no seu livro sobre o cinema alemão dos anos 1920 e 30, O Ecrã Demoníaco: “O

expressionismo não vê, tem ‘visões’.” A visão é aqui uma forma de reorganizar as coisas,

dando-lhes uma significação e identidade inesperada, mas já latente nas próprias

coisas. É como se a estilização permitisse ir ao fundo eterno das coisas para além das

aparências.

Contexto Histórico e Aspectos Centrais

O expressionismo é, por isso, bem mais do que um movimento estético, é uma

reinvenção do mundo na sua totalidade. Os objectos surgem nas obras expressionistas

como imagens da imaginação (e não da percepção como no caso da arte

impressionista). Ou seja, imagens do espírito que desagregam a matéria na abstracção

— e é por aqui que se começa a perceber a oposição entre expressionismo e realismo


que críticos como Siegfried Kracauer e André Bazin apontaram. O expressionismo

parte do sentimento do ser humano como desligado da natureza. Portanto, se há este


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corte, esta clivagem entre o interior e o exterior, os elementos exteriores são abstraídos

do seu contexto e das suas relações orgânicas. Tudo isto está presente no texto de

Wilhelm Worringer, Abstracção e Empatia, de 1908, no qual o expressionismo como

concepção artística começa a ser teorizada. Como Wassily Kandinsky, expressionista

abstracto geométrico, diria: a arte torna-se numa expressão de uma necessidade

interior. Kandinsky entendia o artista como um profeta, alguém que anunciava um

novo mundo.

Há também outro aspecto que tem a ver com a contexto social no qual o

expressionismo surge. Há algo de político no movimento, mas não no sentido de conter

mensagens políticas. No expressionismo, o cinema assume uma dimensão política (isto

é, propõe outro sentido, outra perspectiva) que se contrapõe ao egocentrismo e auto-

satisfação de quem tem muito e só olha para si: os burgueses capitalistas. O

expressionismo vai então contra o bom-gosto instituído, recusando a tradição clássica,

a sofisticação cosmopolita, o reaccionarismo. Propõe uma arte afectiva e delirante,

mais do lado da sombra do que da luz, mais do lado da morte do que da vida. Der Golem,

wie er in die Welt kam (O Golem, 1920) é um exemplo, no qual uma estátua ganha vida e

sobe a uma cobertura confundido-se com o que o circunda. Os ângulos oblíquos dos

planos e as formas angulosas do cenário são recorrentes neste e noutros filmes do

movimento.

Esta dimensão é também social, porque o expressionismo retrata uma sociedade


sem visão nem líderes e sem capacidade de lidar com os desafios da modernidade. No

contexto particular alemão, o surgimento do expressionismo precede e depois coincide

com a Primeira Guerra Mundial, de decorreu principalmente até 1918, e com o colapso

do sonho imperial alemão (e Austro-Húngaro e Otomano), exprimindo o ambiente que

fez com que Adolf Hitler e os nazis chegassem ao poder. As obras deste movimento

reflectem este estado de espírito, na sua dimensão aterradora e atmosfera de opressão.


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Caligarismo

O filme realizado por Robert Wiene, Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari,

1920) chega já depois de 1918. Podemos dizer que este filme chegou tarde, ou melhor,

que o cinema chegou tarde ao expressionismo. O filme expõe uma sensibilidade

expressionista que é sublinhada graficamente e suportada sobretudo pelo elementos

cénicos desenhados por Hermann Warm, mas que afectam como um vírus outros

elementos expressivos: a maquilhagem marcada dos rostos, os gestos histriónicos dos

actores, por exemplo. As personagens do filme espelham o negrume socio-político da

época: especialmente através da figura sem vontade de Cesare, um sonâmbulo

controlado pelo Dr. Caligari, e na deste último, um manipulador amoral. O filme é

muitas vezes preterido em favor de obras de grandes cineastas como F. W. Murnau ou

Fritz Lang, mas pode ser entendido como um protótipo, um modelo formal e narrativo

do cinema expressionista, a partir do qual poderiam ser feitos outros filmes

expressionistas. Por isso, fala-se por vezes de caligarismo. Ou seja, no sentido estrito os

filmes desses outros cineastas não concretizaram o radicalismo do expressionismo no

cinema como este, que projecta uma sensação constante de inquietação, de incerteza.

As formas deformam e electrificam aquilo que seria uma pacata e monótona aldeia,

para criar um labirinto que expressa e provoca o espírito das personagens. A estrutura

narrativa, igualmente labiríntica, igualmente um jogo de espelhos e distorção, tem um


flashback que pode ser uma fantasia e um narrador que é desvendado no fim como

paciente. Wiene continuaria a explorar o expressionismo cinematográfico em filme

como Orlacs Hände (As Mãos de Orlac, 1924), sem a mesma carga gráfica, mas

intensificando a expressividade dos actores e dos cenários realistas.

Murnau e Lang, Outras Abordagens ao Expressionismo


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Há outra abordagem expressionista cujos maiores representantes são as obras de

Murnau e Lang da década de 1920. Estes cineastas apostam na criação de uma

atmosfera estranha, difícil de definir ou atribuir a elementos cinematográficos

precisos, mas que nasce da conjunção de todos eles. Ao contrário de Das Cabinet des Dr.

Caligari, Nosferatu, eine Symphonie des Grauens (Nosferatu, o Vampiro, 1922) quase não foi

rodado em estúdio, mas em cenários naturais. Aqui, o cinema domina a paisagem e o

tempo da natureza através dos seus meios de composição e transforma espaço e tempo

em matéria expressionista. A utilização de tintagens e imagens em negativo vão contra

o naturalismo. Este registo cria uma tipologia de imagens que criam um sentido

metafísico, incorpóreo, capaz de impregnar todas componentes do filme e do seu

universo. Rudolf Kurtz, no estudo que fez sobre o expressionismo no cinema publicado

em 1926 escreve:

Murnau, que no seu filme Der letzte Mann (O Último dos Homens, 1924), com Jannings

criara uma obra-prima de estilização, tentou no seu filme de vampiros — Nosferatu

— criar a impressão inquietante da atmosfera que reina sobre os espíritos,

auxiliando-se de elementos que, não sendo ainda inteiramente expressionistas,

possuem formas que se lhe assemelham. Esta aventura arrepiante que Henryk

Galeen tinha já transmitido de forma magistral no seu manuscrito, e na qual visões

sobrepostas de ratazanas, de barcos pestíferos, de vampiros, de capelas


obscurecidas, de carruagens negras puxadas por cavalos à velocidade da luz, se

interpenetravam e entrelaçavam de forma demoníaca, escapa completamente a

qualquer interpretação naturalista. Murnau sublinhou precisamente o seu carácter

irreal: a sua mise-en-scène depende sempre de visões artisticamente elaboradas,

conseguindo traduzir essa espécie de horror inatingível pelas formas naturais.

Der letzte Mann é o mais famoso Kammerspielfilm, filme de câmara (câmara no sentido de

quarto, aposento) que deriva do termo teatral Kammerspiele, peça de câmara. Neste tipo de
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filmes, assim chamados por serem um retrato íntimo da vida familiar da classe média

baixa, todo o trabalho expressionista passa pela filmagem. A expressão e abstracção

são então parte integrante da forma cinematográfica, elementos da própria visão. Der

letzte Mann centra-se num homem que é despromovido de porteiro para ajudante de

casa de banho num hotel. O filme recorre a falsas perspectivas para ampliar o espaço

cénico, a câmara liberta-se do apoio no chão e voa ligando acções. As desfocagens, e os

fundos móveis expressam a sensação de desnorte e vertigem que a personagem sente.

A obra de Lang demonstra outras características associadas ao expressionismo: o

uso de superfícies estilizadas como em Das Cabinet des Dr. Caligari, mas também da simetria,

que o cineasta utilizou muito neste período da sua filmografia e que é do domínio da

composição, da relação entre os elementos. Na primeira parte de Die Nibelungen, Siegfried

(Os Nibelungos: A Morte de Siegfried, 1924), muitos planos são compostos a partir de

padrões geométricos regulares. Nas cenas no paço, os soldados e o cenário criam

formas que se combinam num todo. A força da simetria permite conjugar actores,

guarda-roupa, e cenário, enfatizando a composição geral. Estas imagens contrastam

com as imagens da natureza, de carácter orgânico, que preenchem o resto do filme.

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