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A Luz Inebriante de Vermeer

Numa das caminhadas de fim de tarde, sentei-me nos arrecifes da praia para um
intervalo antes de voltar a casa. Nuvens magníficas em suas bases cinza contra um
céu onde se alinhavam todos os azuis possíveis numa mesma palheta, o que me
remeteu imediatamente à ‘Vista de Delft’ de Vermeer. Fiquei ali respirando aquela
atmosfera com o pensamento no milagre de sorte que foi essa viagem a Amsterdam.
Decidi que seria a partir do sentimento evocado naquele instante de luz que
começaria a escrever a você. Um dia perdido nos confins da eternidade sempre alerta!
Novamente as milhagens de Ora estavam para estourar e ainda no ano passado ela me
perguntou se eu gostaria de viajar. Mas nada me passava pela cabeça, não tinha
qualquer interesse em lugar algum. Muito vagamente Veneza, pela beleza e
principalmente Tintoretto. E Amsterdam por Vincent e Rembrandt. Naquela altura
nada sobre a exposição de Vermeer fora ventilado na imprensa. Amsterdam poderia
ser uma viagem legal… Ela também achou a ideia maravilhosa e fez as reservas.
Pouco tempo depois eu soube da mostra. A maior exibição das pinturas de Vermeer!
28 das 35 que se conhece. E a última semana coincidia com nossa estadia em
Amsterdam. Como pode? A conspiração do universo! Eita universo esse!!!
Pedi que Ora ficasse atenta com os ingressos. E eles se esgotaram nas duas primeiras
semanas de janeiro, assim que foram disponibilizados. Mas, solerte, o Rijksmuseum
ofereceu a possibilidade de que se fizesse um sponsorship annual com o bônus de
poder ver a exibição quantas vezes quiséssemos sem enfrentar as filas imensas,
entrada especial e imediata. Eles limitaram intencionalmente o número de pessoas
nas salas para não criar burburinho, tornando a visita uma experiência desagradável.
Fui três vezes, inclusive no último dia e cheguei perto de todas as pinturas que mais
queria ver e apreciei embevecido o tempo que quis.
Ora achou tão estranho esse sponsorship que nem queria fazer, Mará! Mas fez.
Demorou semanas até que o museu respondesse que recebera nosso pagamento e
outro tempão para que enviassem os códigos de barra. Só sosseguei mesmo quando
afinal enviaram, mas tinha certeza de que me avistaria com essas pinturas só pelo
desenho dos fatos. Não tinha como não, a não ser que fosse uma cilada, coisa que o
destino em sua benevolência usual, não me oferece.
Foi a partir do ano passado que comecei a prestar mais atenção em Vermeer. E calhou
com a descoberta dos videos de Paul Ingbretson (da Boston School, da qual lhe falei,
um dos alunos de Ives Gammell). Os valores que Vermeer empregou em sua pintura
são exaltados pela Boston School como um modelo, assim como Velásquez e
pouquíssimos outros artistas modernos, dentre eles John Singer Sargent, Degas e
Monet. Este empregou em praticamente todas as suas pinturas o que aprendera no
estúdio de Charles Gleyre, um mestre retirado e afastado do burburinho do mercado
de arte e que ensinou pessoas como Jean-Léon Gérôme, Renoir e Sisley dentre
outros. Foi com Jean-Léon Gérôme que uma das três cabeças da Boston School – o
americano William McGregor Paxton – estudou quando foi para Paris. Gérôme
manteve em seu trabalho um estilo acadêmico e participou de um movimento muito
interessante conhecido como ‘Orientalismo’. Foi um crítico ferrenho de Monet e
jamais o perdoou por ter se aventurado naquela ‘doideira’ que foi o Impressionismo.
Todo o movimento estético do início do século XX soterrou de certa forma uma
estética que amadurecera dentro de uma tradição fortemente ligada ainda ao
Renascimento e que atingiu ápices com os clássicos David, Ingres etc (que não me
interessam em nada) sem falar nos ingleses (John Constable, Turner...) e no
arrebatamento que a pintura flamenca já produzia desde 1600...
Um mistério esse Vermeer! Não se sabe com quem aprendeu a pintar, não são
conhecidos desenhos ou esboços atribuídos a ele, não teve um atelier com ajudantes e
estudantes que o auxiliassem em seu trabalho como Rembrandt e Rubens tiveram:
pintou tudo sozinho, sem apoio de ninguém! E por isso sua produção foi
quantitativamente limitada. Parecia não ter pressa, era meticuloso e pintava no
máximo três telas por ano. Utilizava materiais caríssimos (o azul ultramarino que
Vermeer manipulava era um pigmento extraído do lápis lázuli, que na época custava
mais caro que ouro). Mas o resultado depois de quase quatrocentos anos é
surpreendente. A ‘Vista de Delft’ parece ter saído do cavalete no dia anterior. Muito
do que ele pintou ficou com um colecionador que hoje não se sabe quem era mas que
pagou os preços elevadíssimos que o artista cobrava por suas preciosas telas.
Sendo assim, a pintura de Vermeer não era largamente conhecida, estava nas mãos de
um número restrito de pessoas. Ele negociava com arte também, era presidente da
Liga de São Lucas, uma espécie de sindicato dos pintores em Delft e gerenciava uma
pequena pousada junto com sua sogra. Quando morreu prematuramente aos 42 anos,
falido como toda a Holanda na época, minada economicamente por conflitos com a
França e a Inglaterra, Vermeer apagou-se na história como um raio de aurora. Toda
sua obra disponível em casa foi leiloada por sua viúva (eles tinham onze filhos!) e é
com base nesse inventário que as pesquisas elucidam o mínimo que se sabemos sobre
ele. Muitas de suas pinturas chegaram a ser atribuídas a Rembrandt. A ‘Menina lendo
uma carta à janela’ chegou a ter apagada a tela do cupido que decora a sala
representada na pintura, tudo isso para passar como um Rembrandt, que não
costumava utilizar esses temas em suas composições. Os fundos de Rembrandt
geralmente são opacos, quando não completamente escuros, amante do tenebrismo
que ele foi. A restauração é recente. Tem coisa de dois anos. Acreditou-se por muito
tempo que o próprio Vermeer tivesse apagado a imagem do cupido. Raios X
detectaram a figura do cupido em 2009. Mas novas tecnologias descobriram que a
escamoteação foi feita anos depois da morte do pintor. Desvendaram-na!
Ver todas aquelas pinturas criava um instante suspenso no ar diante de cada uma
delas. A primeira que surgia era a ‘Vista de Delft’. Ela é grande quando comparada
com a maioria das obras do artista. 115 cm x 99. É de tirar o fôlego, Mará! Os
pequenos pontos de luz (os highlights) estratégicos, um céu comovente de lindo, a
pintura parece adquirir volume diante dos olhos muitas vezes. Dava vontade de
chorar de emoção! E pensar que quando Vincent foi vê-la no Mauritshuis, se
encantou tanto com ela que ficou sendo então seu Vermeer favorito… E agora ela
estava ali, bem diante de mim! Deus… Eu menino brincando na laje de casa… Passa
um filme!
Somente por volta de 1860 Vermeer começou a ser redescoberto, quando o alemão
Gustav Friedrich Waagen, um diretor de museu, identificou em Viena a tela ‘A Arte
da Pintura’, até então atribuída a Pieter de Hooch como sendo um Vermeer. (Vale
ressaltar aqui que essa tela foi maquiavelicamente adquirida por ninguém menos que
Adolf Hitler após a anexação da Áustria durante a Segunda Guerra mundial e ficou
escondida junto com milhares de outras obras de arte roubadas pelos nazis numa
mina de sal. Os americanos recuperaram tudo!) Em 1866 Théophile Thoré-Bürger,
um apaixonado pela obra misteriosa e rara de Vermeer publicou um catálogo raisonné
que incluía 70 obras, algumas das quais ele mesmo questionava a autoria. Isso
despertou o mercado de arte a respeito. Quase duzentos anos depois de sua morte!
Não sei quais de suas telas eram conhecidas por Van Gogh, além da Vista de Delft e
‘A mulher de azul lendo uma carta’ que o impressionou bastante. ‘A rendeira’ ele
chegou a ver no Louvre junto com Théo mas disposta numa altura elevada demais
para o tamanho da pequena pintura, 24.5 cm x 21cm , a menor do artista. Théo
comenta com Vincent numa carta da mudança de sua posição, agora ao nível dos
olhos. Em 1889 Théo van Gogh também esteve envolvido num leilão histórico onde
pelo menos dois Vermeer foram vendidos a preços elevadíssimos!
A visita ao Van Gogh Museum foi um pouco frustrante. Os melhores Van Gogh estão
fora da Holanda, Mará! Algumas obras infelizmente não estavam em exibição, talvez
emprestadas a outras instituições. Mas gostei muito, impossível não se entregar
àquelas pinceladas nervosas e geniais, não importa o que se veja dele! Além do mais,
foi Vincent quem me levou até Vermeer! Quando penso nele, em tudo que produziu
nos últimos anos de vida numa febre incurável de visões que escaparam incautas por
aquelas mãos… trágicas!
É notável o quanto a estadia na França e a influência dos artistas que ali viviam e
transformavam criaram um ponto de decisão na arte de Vincent. Camille Pissaro teve
sobre ele uma influência generosa, definitiva e paternal, assim como teve sobre
Cézanne (que mudou sua forma de pintar depois de conhecer Pissarro e de quem
permaneceu amigo, justo Cézanne que era um osso duro de roer), Gauguin e tantos
outros… Pissarro é um elo entre gerações nem sempre levado em consideração com a
devida importância. Ele estudou com Corot e conhecia o que se fazia na Inglaterra
(principalmente John Constable e William Turner, que ele viu em Londres junto com
Claude Monet e que para mim delineia muito do Impressionismo).
Pensar muito em Van Gogh invariavelmente me leva às lágrimas. Somos deixados
com suas texturas, suas cores soberbas e seu repertório infindável de interpretações
eternas de um mundo perecível que ele libertou para nós do manicômio da morte…
Comprei material de pintura numa tarde especialmente reservada para isso. Descobri
uma linha de aquarelas maravilhosa chamada ‘Old Holland’. Pequenos tubos de 6ml
numa variedade incrível de matizes e transparências. Encontrei também as barrinhas
de pastel seco que procurava. Tenho feito alguns desenhos com elas, Mará! São boas
para linhas e pontos de brilho. Os Sennelier macios que tenho são maravilhosos e têm
pigmentos que são pura luz de cor nos efeitos mas borram demais para detalhes. Pena
que as imagens feitas pelo celular não traduzam com maior espectro os meios-tons
que as câmeras não conseguem reproduzir artificialmente. Filmando sai um pouco
melhor…
Fiquei profundamente tocado com a positividade que existe em Amsterdam, Mará!
Um clima de liberdade indescritível! Mas uma liberdade desfrutada e preservada, sem
tendências vândalas e vãs. Num momento tão turvo mundialmente, é um colírio para
o coração se deparar com um choque emocional dessa magnitude. A Holanda é inteira
cercada de água, campos férteis, atividade constante pelos rios e canais, um agito só!
Holandês leva água como uma coisa séria não é de hoje! Navegadores natos! Há
muita purificação ao redor! Numa noite, levantei-me com sede e não tínhamos água
no quarto. Me atrevi a tomar um gole da torneira mesmo. Incrível. Água
excepcionalmente saborosa, melhor que muitas engarrafadas!
Como lhe disse, foi a viagem mais marcante, talvez porque os milagres estivessem
mais visíveis e todo um turbilhão visual disponível! Voltei com uma turbina ligada
numa voltagem que estava hibernando fazia algum tempo. A vida é muito curta para
ser medíocre.
No final das 108 contas, conta mesmo é a companhia dos santos e dos desregrados
que jamais falham como inspiração para todos os momentos de eternidade.
Tive um sonho lindo com você a noite passada. Já estávamos na imersão dos dias de
meditação. Algumas outras almas estavam presentes com energia perceptível. Tão
presentes que nem era necessário olhar para elas! Havia pássaros também que de
alguma forma eu trazia à vida. E um corvo lindo que libertei para os céus depois de
recuperá-lo. Queria trazê-lo junto à face na despedida, como num abraço que asas não
permitem, mas ele não dava ousadia. Corvos para mim são auspiciosos. Eles têm uma
afinidade com Mahakala no Budismo Tibetano. É sempre um sinal de que até os
subterrâneos estão tomando conta! Mas estranho, ainda que goste demais de pintá-
los, em momentos onde pessoas próximas e queridas estão convalescendo, eu não me
atrevo com eles nos desenhos. Entram em hibernação...
Um processo de construção de mapas começou a tomar forma em minha mente em
relação ao que quero compartilhar com você sobre meditação. Eu penso que em uma
semana poderemos abranger o que planejo para nossas práticas. Que os budas nos
inspirem e tragam as bênçãos de suas influências! E eu penso que ao longo de nossas
vidas é tudo que eles têm feito, num milagre sempiterno. Minha própria vida é
testemunha viva de uma grandeza que não cabe dentro de mim. Quis tanta coisa na
minha infância árida e só hoje percebo que naquela laje estéril brotava em alguns
cantos um musgo verde de uma beleza que já me deixava perplexo, e assim
permaneço, estupefacto diante dessas portas que vão desvendando respostas para
perguntas que eu mesmo não teria alcance ou epifania para elaborar.
Todo meu Amor. Sempre seu. No Dharma. C.

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