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TEXTO 1
Pedaços de ternura
Saio de casa cedo. Entro na leitaria da esquina, peço a meia de leite e a empada. É sábado,
o dia veste de azul e oiro, gente passa de calção e toalha, na gula da praia que se despede. Mas
ainda cheira a Verão: há que aproveitá-lo.
Enquanto trinco o salgado, os olhos prendem-me no letreiro defronte: Tabacaria Nónó. É
isso: sem que a gente tenha a consciência exacta do que se está a passar, acontece que Lisboa
se foi enchendo de dísticos como aquele, de nomes naquela linha. Leitarias Mimi, Tabacarias
Lulu, Filó, Mariazinha, Snacks Ó Julinho, Olh'a Fifi, o Manecas, Bares Géninha, Momocas.
Um nunca acabar de espantos.
No primeiro instante, a gente olha, lê, e sorri para dentro. «Meu Deus! Que piroseira!».
Mas não será tanto. No fundo, a ânsia natural e quase comovente de quem sabe que não vai
ficar na História e tem necessidade de, pelo menos enquanto vivo, sentir que todos, muitos,
alguns, lhe repetem o nome(zinho). Ou a necessidade de se gritar ao vento aquele sentimento
terno, e doce que nos aquece o coração, numa homenagem amorosa ao neto, à companheira
de toda uma vida, ao mais-que-tudo, à filha que só agora começou a aprender a ler. “Estás a
ver? O papá pôs o teu nome à entrada. Lê lá, para a mamã ouvir…” E o monstrozinho, gordo
de sopa, a soletrar, com um esforço, uma concentração que toda a família, à volta, segue com
unção: “Ca…ca…café Dó…dori…Café Dórinha…”
No fundo, a reacção natural e instintiva dos anónimos à selva desumanizada e violenta que
os rodeia. Pedaços de ternura tremelicando, a medo, num céu de treva densa.
Guilherme de Melo, Diário de Notícias
IGrupo I
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1. Classifique, justificadamente, o texto jornalístico apresentado.
2.1. Delimite, no texto, a generalização feita pelo autor a partir do motivo referido em dois.
3.1. Aponte as razões encontradas pelo autor para explicar o fenómeno observado.
TEXTO 2
SOU LISBOETA. O que é que querem que eu saiba de Lisboa? Ninguém conhece bem a
própria nuca. Devo ter ido umas três vezes na vida ao Museu Nacional de Arte Antiga e a
única em que fui ao Museu dos Coches já tinha idade para estar morto. Até confundo Carnide
e Carnaxide. Fujo das multidões e do social-acidental, dos estádios, dos transportes e das
bichas: o que é que eu sei da psicologia coletiva desta tribo tão amável que passa tão bem sem
mim? Olho o Tejo e tanto me comovo em êxtase e nostalgias de golfinhos, como faço contas
ao valor perdido da pobre nafta que maternalmente lhe aconchega as margens.
Apenas sei, ou intuo, que só me resta uma convicção inútil: a de que há mais Lisboas do
que lisboetas e ainda mais do que os nossos visitantes nos roubam na avidez do seu olhar
rapace. Pergunto-me até se o turista alguma vez apreende a alma do povo que observa, pois
duvido que ela resida no very typical massificado. As regras aproximam, mais do que
apartam, as civilizações. Não será então a infração o que melhor retrata um povo? (...)
A minha indefinível Lisboa não é melhor ou pior do que as alheias. É apenas tão pessoal,
tão íntima e até tão mutilada como as demais. É um privativo presépio, com figuras sem rosto
e talhadas no barro bruto da minha impartilhável memória. Mas eu aceito-a assim e apego-me
a ela com a fanática emoção de que são feitas outras irracionalidades, como o patriotismo
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mais acrítico: my city, right or wrong. Afinal, cada lisboeta caminha pisando a sombra do
outro. O que tanto quer dizer segui-lo como negá-lo. (...)
Há nela muito mais alma do que pedra. É um labirinto de lugar e tempo que me fez, para o
bem e para o mal.
Como os outros, caminho pisando sombras que não vejo nem conheço. E, ao fazê-lo, deixo
as minhas sombras na calçada para que outrem as pise, seguindo-as e negando-as.
Quero prolongar e reinventar na
transgressão o espaço que me foi confiado
para fazer e viver a minha liberdade.
Quero que se não perca a herança dos
homens do deserto fazedores de grandes
religiões. Quero conhecer trilhos sortidos
na areia, pois só assim posso ir ajudando a
fazer-me. Mas só os trilhos. Porque
conhecer o deserto é perdê-lo.
Se o homem faz a cidade, a cidade faz o homem. E há Lisboas incumpridas, cidades que
em nós se fazem.
Grupo I
1. O autor do texto é lisboeta e afirma não conhecer bem Lisboa tanto na vertente física como
na social.
1.1. Refira um exemplo da ausência de conhecimento do espaço físico.
1.2. Transcreva uma expressão elucidativa do seu fraco conhecimento relativamente ao
espaço social.
2. “Olho o Tejo e tanto me comovo em êxtase e nostalgia de golfinhos, como faço contas ao
valor perdido da pobre nafta que maternalmente lhe aconchega as margens,” (linhas 6 -8)
2.1.Que pretende o autor criticar através do período acima transcrito?
3. Explique o sentido da expressão E um privativo presépio, com figuras sem rosto...)) (linhas
16 e 17)
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4. «Se o homem faz a cidade, a cidade faz o homem.» (linha 34)
4.1. Esclareça o significado desta afirmação.
5. «Mas eu aceito-a assim e apego-me a ela com a fanática emoção de que são feitas outras
irracionalidades...» (linhas 18-19)
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