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A coleção particular

A viagem de inverno
A COLEÇÃO PARTICULAR [História de um
quadro]
Para Antoinette e Michel Binet
“Lá pude ver telas do mais alto valor, as quais, em sua
maioria, já havia admirado nas coleções particulares da
Europa e nas exposições de pintura. As diversas escolas dos
mestres antigos eram representadas por uma Madona de
Rafael, uma Virgem de Leonardo da Vinci, uma ninfa de
Correggio, uma mulher de Ticiano, uma Adoração de
Veronese, uma Assunção de Murillo, um retrato de Holbein,
um monge de Velázquez, um mártir de Ribera, uma
quermesse de Rubens, duas paisagens flamengas de Teniers,
três pequenos quadros de gênero de Gerard Dow, de Metsu,
de Paul Potter, duas telas de Géricault e de Prud’hon,
algumas marinhas de Backuysen e de Vernet. Entre as obras
da pintura moderna, havia quadros assinados por Delacroix,
Ingres, Decamps, Troyon, Meissonier, Daubigny etc.”
Júlio Verne, Vinte mil léguas submarinas

A coleção particular de Heinrich Kürz, pintor americano de


origem alemã, foi exposta ao público pela primeira vez em
1913, em Pittsburgh, na Pensilvânia, integrando a série de
manifestações culturais organizadas pela comunidade alemã
local por ocasião do vigésimo-quinto aniversário do reinado
do imperador Guilherme IX. Por vários meses, sob os tríplices
auspícios do jornal Das Vaterland, da Amerikanische Kunst
Gesellschaft e da Câmara de Comércio Germano-Americana,
balés, concertos, desfiles de moda, semanas comerciais e
gastronômicas, feiras industriais, exibições de ginastas,
exposições artísticas, peças de teatro, óperas, operetas,
espetáculos de variedades, conferências, bailes e banquetes
oficiais se sucederam sem interrupção, oferecendo aos
germanófilos que acorreram imediatamente dos quatro
cantos do continente norte-americano a fina flor de
espetáculos sempre mais ambiciosos, cujos três pontos altos
foram sem dúvida uma representação integral ao ar livre do
Segundo Fausto (que a chuva veio infelizmente interromper
ao cabo de sete horas e meia), a estreia mundial do oratório
de Manfred B. Gottlieb, Amerika, cuja interpretação exigiu
duzentos e vinte e cinco músicos, onze solistas e oitocentas
vozes corais, e a estreia em Pittsburgh de Das Gelingen,
espantosa opereta especialmente importada de Munique
junto com seus dois célebres criadores, Theo Schuppen e
Maritza Schellenbube.
Em meio a essas produções colossais, cuja publicidade
estrondosa cobria páginas inteiras das revistas, a exposição
de pinturas que se realizou de abril a outubro nos salões do
Hotel Bavária por pouco não passou despercebida. Os jornais
de Pittsburgh falaram bem menos dos quadros e dos artistas
que das personalidades presentes no dia da abertura: o
senador Lindemann, o juiz Taviello, o magnata do aço
Kellogg O’Brien, o milionário Barry O. Fugger, proprietário e
diretor dos grandes magazines Fugger, e os quarenta e três
membros da delegação alemã, presidida pelo dr. Ulrich
Schultze, primeiro subsecretário da Chancelaria Imperial e
enviado extraordinário de Sua Majestade. Os críticos de arte
dos jornais americanos de língua alemã contentaram-se
geralmente em arrolar alguns nomes de artistas e títulos de
quadros, fazendo-os seguir às vezes de breves comentários
convencionais: “Na seção ‘Naturezas-mortas’, pudemos
admirar O bule de chá na mesa, de Garten, cuja palheta
domina admiravelmente todas as tonalidades do azul; uma
Compoteira, de grande elegância, devida ao forte pincel do
saudoso Sigmund Becker, e A bancada, de James Zapfen,
que parece ter conseguido amenizar com secreta ternura o
seu realismo um tanto forte etc”.
Nesse contexto pouco propício, a obra de Kürz foi pouco
mais bem tratada que a dos outros, ainda que hoje se possa
constatar, com o recuo do tempo, que se beneficiou de
citações quase sempre elogiosas: Anton Zweig, no Chicago
Tagblatt, descreveu-a como “uma obra estranha, edgar-
poesca, que ainda fará correr muita tinta”; Walter
Bannetrager, na breve nota que deu no New York Zeitung,
lamentou “não poder mencionar senão de passagem [esse]
retrato de um simbolismo sutil, cuja inspiração, altamente
metafísica, decerto põe em causa várias ideias largamente
admitidas sobre o que é o Belo em Arte”; Christian von
Muschelsohn, do Morgenstern de Milwaukee, viu nele “uma
oculta exaltação dos novos valores nietzschianos
reinvestindo a totalidade do mundo visível e invisível”. Por
sua vez, o artigo do Vaterland, cujo autor, Thadeus
Doppelgleisner, era um dos responsáveis pela exposição, foi
nitidamente mais desenvolvido (talvez porque o proprietário
do quadro, Hermann Raffke, das cervejarias Raffke, houvesse
emprestado várias obras e generosamente financiado a
exposição), mas cingia-se deliberadamente ao domínio das
generalidades e dos fatos curiosos: Nosso eminente
conterrâneo, Hermann Raffke, de Lübeck, não é célebre
apenas pela excelente qualidade da cerveja que produz com
sucesso em nossa cidade há cerca de cinquenta anos; é
igualmente um esclarecido e dinâmico amante das artes,
bem conhecido das mostras e ateliês de ambos os lados do
Oceano. Por ocasião de suas inumeráveis viagens pela
Europa, Hermann Raffke soube reunir com discernimento
eclético e seguro um conjunto de obras de arte antigas e
modernas que muitos museus do Velho Continente se
orgulhariam de possuir e que até o presente não tem igual
em nosso jovem país, a despeito das coleções dos srs.
Mellon, Kress, Duveen e outros Johnson. Além do mais,
Hermann Raffke sempre fez questão de favorecer o
desenvolvimento da pintura americana, e numerosos são
aqueles que, hoje reconhecidos — os Thomas Harrison, os
Kitzenjammer, os Wyckoff, os Betkowski e tantos outros —,
foram a princípio apoiados por esse mecenas benévolo e
discreto. Mas foi precisamente por ocasião desta exposição
que Hermann Raffke soube nos dar a prova mais marcante
de seu triplo envolvimento com a pintura, a nossa cidade e a
Alemanha, encomendando ao jovem pintor Heinrich Kürz (de
quem nos orgulhamos em precisar que nasceu em Pittsburgh
de pais würtemburgueses) o retrato que o representa,
sentado em seu estúdio de colecionador, diante de alguns de
seus quadros preferidos. E é escusado dizer que, entre eles,
numerosos são os que procedem do nosso belo país etc.

Poucos dias depois da inauguração, e a despeito dos


prognósticos a bem dizer pessimistas dos organizadores, a
exposição começou a desfrutar de um sucesso que não iria
mais esmorecer e de que o quadro de Heinrich Kürz foi
certamente a causa. Não resta dúvida de que essa
consagração da obra — e, através dela, da exposição como
um todo — deu-se por meio de um boca a boca cujos efeitos
são sempre difíceis de avaliar, mas é igualmente possível
encontrar um princípio de explicação para tal entusiasmo na
longa nota anônima publicada no catálogo: A tela representa
uma vasta peça retangular, sem portas nem janelas
aparentes, cujas três paredes visíveis estão totalmente
cobertas de quadros.
Em primeiro plano, à esquerda, ao lado de uma
mesinha de centro coberta por uma toalha de renda,
sobre a qual estão colocados uma garrafa de cristal
lapidado e um copo de pé, um homem está sentado
numa poltrona forrada de couro verde-escuro, três
quartos de costas em relação ao espectador. É um
homem idoso, de abundante cabeleira branca e nariz
fino, encimado por óculos de armação de aço. Antes
se imaginam do que de fato se veem os traços de
seu rosto, o pômulo estriado de acne, o bigode
espesso que ultrapassa longamente o lábio superior,
o queixo ossudo e voluntarioso. Veste um roupão
cinzento, cuja gola em manta está ornada de um fino
debrum vermelho. Um grande cão de pelo curto e
ruivo, em parte oculto pelo braço da poltrona e pela
mesinha de centro, está deitado a seus pés,
aparentemente dormindo.
Mais de cem quadros estão reunidos nessa única
tela, reproduzidos com uma fidelidade e uma
minúcia tais que não nos é possível descrever a
todos com precisão. A simples enumeração dos
títulos e autores não apenas seria fastidiosa como
ultrapassaria grandemente os limites desta nota.
Bastará dizer que todos os gêneros e todas as
escolas de arte da Europa e da jovem pintura
americana estão aí admiravelmente representados,
os temas religiosos bem como as cenas de gênero,
tanto os retratos como as naturezas-mortas,
paisagens, marinhas etc, deixando aos visitantes o
prazer de descobrir, de reconhecer, de identificar o
Longhi ou o Delacroix, o Della Notte ou o Vernet, o
Holbein ou o Mattei, e outras obras-primas, dignas
dos mais importantes museus da Europa, que o
amador Raffke, inteligentemente aconselhado por
eminentes peritos, conseguiu descobrir em suas
viagens.
Contudo, sem entrar mais a fundo nos detalhes,
gostaríamos de chamar a atenção do visitante para
três obras que, segundo nos parece, dão prova tanto
da felicidade que Raffke demonstrou em sua escolha
como do talento com que Heinrich Kürz soube
apresentá-las.
A primeira, na parede à esquerda, acima da
cabeça do colecionador, é uma Visitação que, de
nossa parte, atribuiríamos de bom grado a um Paris
Bordone, a um Lorenzo Lotto ou a um Sebastiano Del
Piombo: no centro de uma pequena praça ornada de
altas colunas, entre as quais estão estendidas
tapeçarias ricamente bordadas, a Virgem, trajando
uma roupagem verde-escura recoberta amplamente
por um véu vermelho, ajoelha-se diante de Santa
Isabel que veio a seu encontro, já velha e um tanto
trêmula, amparada por duas servas. Em primeiro
plano, à direita, estão três anciões inteiramente
vestidos de preto; dois estão de pé, mostrando-se
quase de frente; o primeiro exibe uma folha de
pergaminho desdobrada a meio, na qual está
desenhado com fino traço azul o plano de uma
cidade fortificada, que o segundo homem designa
com um dedo descarnado; o terceiro está sentado
num tamborete de madeira dourada, de pés
trançados, recoberto por uma almofada verde; volta
quase completamente as costas aos companheiros e
parece contemplar o fundo da cena, uma vasta
esplanada onde aguarda o séquito de Maria: uma
liteira fechada por cortinas de couro, puxada por dois
cavalos brancos que dois pajens, trajando librés
vermelhas e cinzentas, seguram pela rédea, e um
cavaleiro de armadura cuja lança está ornada por
uma longa bandeirola dourada. No horizonte
descobre-se uma paisagem de colmas, bosques e, à
distância, as torres brumosas de uma vila.
O segundo quadro está pendurado na parede da
direita. É uma pequena natureza-morta de Chardin,
intitulada Os preparativos do almoço: numa mesa de
pedra, entre diversos utensílios de copa e cozinha —
um almofariz, uma concha de sopa, uma
escumadeira —, estão um presunto envolto num
pano branco, uma jarra cheia de leite, uma tigela
contendo pêssegos maduros e uma grande fatia de
salmão, descansando sobre um prato emborcado.
Acima, um pato morto está suspenso do teto por um
fino cordão amarrado à pata direita. Raramente,
parece-nos, o frescor, a simplicidade e o natural de
Chardin foram mostrados com tal felicidade, e poder-
se-ia perguntar longamente o que mais admirar aqui,
se o gênio do pintor francês ou a vigorosa
transposição que Kürz logrou.
Por fim, seria lamentável evocar esse conjunto
único de obras de arte sem mencionar um quadro
disposto, não em uma das paredes, mas sobre um
cavalete postado no ângulo direito do estúdio. Trata-
se do Retrato de Bronco McGinnis, esse que se
julgava “O homem mais tatuado do mundo” e que se
exibia como tal na Exposição Internacional de
Chicago (após sua morte, em 1902, soube-se que se
tratava de um bretão de nome Marech’ e que só as
tatuagens do peito eram autênticas). O retrato é
obra de um nosso compatriota, Adolphus Kleidrost,
cuja carreira, iniciada em Colônia, prosseguiu
brilhantemente em Cleveland. O quadro figura de
fato em nossa exposição (cf. nº 95), bem como
várias outras obras da escola germano-americana
pertencentes à coleção de Hermann Raffke e por ele
emprestadas junto com esta. Serão sem dúvida
numerosos os visitantes que se demorarão em
comparar as obras originais e essas tão escrupulosas
reduções que nos oferece Heinrich Kürz. É quando
terão uma surpresa maravilhosa: pois o pintor incluiu
o seu próprio quadro no quadro, bem como o
colecionador sentado em seu gabinete, vendo na
parede ao fundo, no eixo de seu olhar, o quadro que
o representa no ato de contemplar sua coleção de
quadros, e todos esses quadros novamente
reproduzidos, e assim por diante, sem nada perder
em precisão no primeiro, segundo, terceiro reflexo,
até não haver na tela senão ínfimos traços de pincel.
A coleção particular não é apenas a representação
anedótica de um museu privado; por meio desse
jogo de reflexos sucessivos, pelo encanto quase
mágico que essas repetições cada vez mais
minúsculas operam, a obra oscila num universo
propriamente onírico, no qual seu poder de sedução
se amplia até o infinito e no qual a precisão
exacerbada da matéria pictórica, longe de ser seu
próprio fim, deságua subitamente na Espiritualidade
do Eterno Retorno.

Desde a segunda semana, a sala em que estava exposto o


quadro de Heinrich Kürz conheceu tal afluência que os
organizadores se viram forçados a não deixar entrar senão
vinte e cinco visitantes de cada vez e a fazê-los sair ao cabo
de quinze minutos de permanência. Graças a um requinte
suplementar, o ambiente foi decorado de modo a reconstituir
com a maior fidelidade possível o gabinete de Hermann
Raffke. A coleção particular ocupava toda a parede do fundo
e o Retrato de Bronco McGinnis descansava no cavalete ao
canto direito; as outras únicas obras expostas na sala
provinham igualmente da coleção de Raffke, dispostas nas
paredes nos lugares correspondentes aos que ocupavam no
quadro de Kürz.
Ao que parece, ninguém deixava de comparar os
originais e as reduções cada vez menores de Heinrich Kürz.
Logo começaram a se entreter com cálculos, determinando
que o formato da tela era pouco menor que 3 x 2 m, que o
primeiro “quadro no quadro” tinha ainda cerca de um 1 m de
comprimento por 0.70 m de altura, que o terceiro só
alcançava 11 x 8 cm, que o quinto não chegava a ter o
formato de um selo postal, e que o sexto media no máximo 5
x 3 mm. E um dia depois que certo sujeito, munido de uma
lupa de ourives e com a ajuda de dois colegas que o
levantaram, afirmou que nele se distinguiam nitidamente o
homem sentado, o cavalete com o retrato do homem
tatuado e novamente o quadro, ainda uma vez com o
homem sentado e por fim o quadro transformado num
minúsculo traço de meio milímetro de comprimento, várias
dezenas de visitantes afluíram com toda espécie de lupas e
conta-fios, dando ensejo a uma moda que, durante vários
meses, fez a féria de todos os vendedores de artigos ópticos
da cidade.
A diversão predileta desses observadores maníacos —
que vinham várias vezes por dia examinar sistematicamente
cada centímetro quadrado da tela e lançavam mão de
tesouros de engenhosidade (ou de audaciosa acrobacia)
para tentar observar as partes superiores do quadro — era
descobrir as diferenças existentes entre as diversas versões
de cada uma das obras representadas, pelo menos em suas
três primeiras repetições, já que a partir daí a maior parte
dos detalhes deixava evidentemente de ser discernida.
Poder-se-ia pensar que o pintor tivera a cada vez a intenção
de executar cópias tão fiéis quanto possível e que as únicas
modificações perceptíveis haviam sido impostas pelos
próprios limites da técnica pictórica. Mas não se custou a
perceber que, ao contrário, ele se obrigara a jamais copiar
estritamente seus modelos e parecia encontrar um prazer
maligno em introduzir sempre uma minúscula variação; de
uma cópia a outra, personagens, detalhes desapareciam ou
mudavam de lugar ou eram substituídos por outros: o bule
de chá do quadro de Garten tornava-se uma cafeteira de
esmalte azul; um lutador de boxe, ainda vigoroso na primeira
cópia, recebia um terrível uppercut na segunda e tombava
na lona na terceira; máscaras de carnaval (Uma festa no
Palácio Quarli, de Longhi) enchiam uma piazzetta a princípio
deserta; uma mulher de véu, um burrico, um dromedário
desapareciam um após o outro numa paisagem marroquina;
um quadro representando um Esquimó descendo o rio
Hamilton, de Schonbraun, era sucessivamente substituído
pelos Pescadores de pérolas, de Dietrich Hermannstahl,
depois pelo Retrato de uma jovem casada, de R. Mutt; um
pastor, ao recolher suas ovelhas (A lição de pintura, escola
holandesa), teria contado uma dezena delas na primeira
cópia, uma vintena na segunda e nenhuma na terceira; um
tocador de alaúde transformava-se em tocador de flauta
(Cena de cabaré, escola flamenga); três homens numa
estradinha campestre passavam de um viço beirando a
obesidade a uma elegância quase inquietante etc.
Essas modificações imponderáveis e imprevisíveis, que
só afetavam, o mais das vezes, detalhes ínfimos — a pluma
um pouco machucada de um chapéu, duas fileiras de pérolas
em vez de três, a cor de uma fita, a forma de uma tigela, a
empunhadura de uma espada, o desenho de um lustre —,
excitavam ao mais alto grau a curiosidade dos visitantes,
que se esforçavam inutilmente por fazer uma enumeração
precisa ou compreender o propósito original. Não obstante
as regras estritas impostas pelos organizadores para tentar
regularizar um pouco o tempo das visitas, grupos cada vez
mais compactos, portando salvo-condutos ou cartões de livre
trânsito de toda espécie, forçavam a vigilância dos guardas e
permaneciam horas inteiras de nariz colado no quadro,
tomando notas febrilmente e refazendo vezes sem conta os
mesmos cálculos imprecisos. Quanto mais se aproximava o
fim da exposição, tanto mais difícil se tornava movê-los um
centímetro que fosse, e logo começaram a surgir rixas e
altercações, de tal forma que, na noite de 24 de outubro, a
menos de uma semana do encerramento, o inevitável
acabou acontecendo: um visitante exasperado, que esperara
a manhã inteira sem poder entrar na sala, nela irrompeu de
repente e lançou contra o quadro o conteúdo de um grande
frasco de tinta nanquim, conseguindo empreender fuga
antes que o linchassem.
No dia seguinte, a sala estava vazia. Um cartaz
pendurado no lugar do quadro explicava que, a pedido
expresso do sr. Hermann Raffke, A coleção particular e todas
as outras telas de sua coleção haviam sido retiradas da
mostra.

Algumas semanas após esse incidente, que a imprensa


unânime classificou de grotesco e que deslustrou os últimos
dias da exposição (a maior parte dos artistas retiraram seus
trabalhos em sinal de solidariedade para com “o
colecionador e o artista injuriado”, e a cerimônia de entrega
dos prêmios teve de ser cancelada), apareceu um longo
estudo sobre o quadro de Kürz, numa revista de estética
passavelmente confidencial, o Bulletin of the Ohio School of
Arts. O autor, um certo Lester K. Nowak, intitulava o artigo
“Art and Reflection”. “Toda obra é o espelho de uma outra”,
adiantava no preâmbulo: um número considerável de
quadros, se não todos, só assumem seu verdadeiro
significado em função de obras anteriores que nele estão ou
apenas reproduzidas, integral ou parcialmente, ou ainda, de
forma bastante mais alusiva, codificadas. Nessa perspectiva,
convinha conceder especial atenção a esse tipo de pintura
que se chamava comumente “coleção particular”
(Kunstkammer) e cuja tradição, nascida na Antuérpia em fins
do século XVI, perpetuou-se ininterruptamente através das
principais escolas europeias até meados do século XIX. A par
da própria noção de museu e, com certeza, de quadro como
valor venal, o princípio inicial da “coleção particular”
fundava o ato de pintar numa “dinâmica reflexiva” que
hauria suas forças na pintura alheia.
Em apoio a sua teoria, enunciada maciçamente nas seis
páginas da introdução, o autor descrevia algumas das mais
célebres “coleções particulares”: Cristo na casa de Marta e
de Maria, de Abel Grimmer, em que se veem uma Torre de
Babel de Pieter Brueghel o Velho, as séries ditas “dos cinco
sentidos”, de Jan Brueghel “de Veludo”, e ainda Rubens, Van
Noort, Snyders, Seghers e Brueghel “de Veludo”; as
inumeráveis “coleções” da dinastia dos Francken, em que
estão representadas todas as especialidades dos pintores da
Antuérpia, os interiores de igreja de Pieter Neefs, as
paisagens alpestres de Josse de Momper, os incêndios de
Mostaert, as marinhas de Adam Willaerts, os buquês de
Brueghel “de Veludo”, as cenas de cabaré de Brouwer, as
naturezas-mortas de Snyders, os troféus de caça de Jan Fyt
etc; A coleção particular de Cornelis van der Geest por
ocasião da visita dos arquiduques Alberto e Elizabete, de Van
der Haecht, em que, entre os personagens, se encontram o
rei da Polônia, Ladislas Sigismond, e o burgomestre Nicolas
Rockox, e Rubens, e Van Dyck, Pieter Stevens, Jan Wildens,
Frans Snyders e o próprio Van Haecht, jovem de aspecto
melancólico no ato de subir alguns degraus que conduzem à
galeria do mecenas de quem ele reproduz cerca de quarenta
quadros, entre os quais uma Mulher se adornando, de Jan
van Eyck, hoje desaparecida; a série das Galerias
arquiducais de Leopoldo-Guilherme, de David Teniers o
Moço, que hoje, em sua maior parte, está em Viena; As
coleções particulares de Gian Paolo Pannini; A galeria de
Gersaint, em que Watteau, cônscio de que esse quadro seria
o seu “testamento artístico”, optou por reproduzir as obras
que mais admirava; O colecionador Jan Gildemeester em sua
galeria de quadros, de Adrien de Lelie etc.
Lester Nowak empreende em seguida uma análise
pormenorizada do quadro de Heinrich Kürz, mostrando como
o jovem pintor havia, para atender a uma encomenda
particular de Hermann Raffke, elaborado uma obra que era
em si mesma uma verdadeira “história da pintura”, de
Pisanello a Turner, de Cranach a Corot, de Rubens a
Cézanne; como havia oposto à continuidade da tradição
europeia seu próprio itinerário, fazendo figurar na tela
diversas obras da escola americana (e germano-americana)
da qual diretamente saíra; e como, enfim e sobretudo, havia
duplamente declarado a importância estética desse método
reflexivo sobre sua situação de pintor: por um lado,
representando no centro da tela o próprio quadro que lhe
haviam encomendado (como se Hermann Raffke,
contemplando sua coleção, nela visse o quadro que o
representava no ato de contemplar a sua coleção, ou antes
como se ele, Heinrich Kürz, pintando um quadro que
representava uma coleção de quadros, nele visse o quadro
que estava no ato de pintar, ao mesmo tempo fim e começo,
quadro no quadro e quadro do quadro), “trabalho de
espelhismo ao infinito em que, como nas Meninas ou no
Autorretrato de Rigaud, conservado no museu de Perpignan,
o contemplado e o contemplador não cessam de se
defrontar e de se confrontar”; e, por outro lado,
incorporando no interior desses reflexos, até o segundo,
terceiro, enésimo grau, dois outros de seus próprios quadros,
um, obra da juventude, que Raffke lhe havia adquirido
alguns anos antes, outro, um trabalho há muito tempo em
gestação mas ainda em estado de esboço, e cuja
“reprodução fictícia”, “em miniatura”, era como “a
antecipação de sua realização futura”.
Muito mais que a simples habilidade técnica do pintor,
essa colocação em perspectiva não apenas espacial, mas
temporal, havia suscitado o fascínio quase mórbido de que a
obra tinha sido objeto. Pois, concluía Lester Nowak, não
podia haver engano: a obra era uma imagem da morte da
arte, uma reflexão especular desse mundo condenado à
repetição infinita de seus próprios modelos. E essas
variações minúsculas, de cópia a cópia, que tanto haviam
exacerbado os visitantes, eram talvez a expressão última da
melancolia do artista: como se, pintando a própria história
de suas obras através da história das obras alheias, tivesse
conseguido, por um instante, contrariar a “ordem
estabelecida” da arte e reencontrar a invenção além da
enumeração, a manifestação espontânea além da citação, a
liberdade mais além da memória. E talvez não houvesse
nada de mais pungente e de mais risível nessa obra do que o
retrato desse homem monstruosamente tatuado, esse corpo
pintado que parecia montar guarda diante de cada retomada
do quadro: homem tornado pintura sob o olhar do
colecionador, símbolo nostálgico e zombeteiro, irônico e
desabusado desse “criador” espoliado do direito de pintar,
doravante entregue a contemplar e a oferecer em
espetáculo a única proeza de uma superfície integralmente
pintada.
Na manhã de quinta-feira, 2 de abril de 1914, Hermann
Raffke foi encontrado morto. As exéquias realizaram-se oito
dias mais tarde, segundo um protocolo que fora especificado
com precisão no testamento e que ampliava de forma um
tanto macabra certas análises feitas por Lester Nowak. O
corpo, embalsamado pelo melhor taxidermista da época, que
mandaram vir expressamente do México, foi vestido com o
roupão cinzento de debrum vermelho que ele usava no
quadro de Kürz e colocado na mesma cadeira em que ele se
sentara para posar. O cadáver e a cadeira foram descidos
então para um jazigo que reproduzia com fidelidade, mas em
escala sensivelmente reduzida, a sala em que Raffke havia
pendurado suas telas preferidas. O grande quadro de
Heinrich Kürz ocupava toda a parede do fundo. O morto foi
colocado de frente para o quadro numa posição muitíssimo
semelhante àquela que ocupava nele. À direita do quadro,
no local correspondente ao retrato de Bronco McGinnis,
colocou-se num cavalete o retrato de corpo inteiro do próprio
Hermann Raffke, executado uns quarenta anos antes,
quando o cervejeiro viajava pelo Egito, mostrando-o contra
um fundo de oásis, num traje de flanela impecavelmente
branco, as panturrilhas metidas em polainas de lona cáqui,
trazendo à cabeça um capacete colonial. Depois o jazigo foi
selado.

O primeiro leilão das obras de Raffke realizou-se alguns


meses após a morte do colecionador, na Galeria Sudelwerk,
de Pittsburgh. Os aficionados acorreram em bando,
impacientes para ver ao vivo as obras que, com exceção de
algumas telas germano-americanas igualmente
apresentadas na exposição, só conheciam pelas cópias
minuciosas da Coleção particular de Heinrich Kürz. Mas logo
se viram decepcionados: nenhum dos quadros reproduzidos
na obra de Kürz constava no catálogo do leilão. A maior
parte das peças apresentadas pertenciam à escola
americana e, embora fossem todas de boa qualidade em
comparação ao que se costumava encontrar no mercado,
não suscitaram senão um entusiasmo bastante medíocre nos
arrematadores, manifestamente muito habituados a esse
gênero de pintura e de todo frustrados por não terem podido
disputar acirradamente esta ou aquela obra-prima de algum
mestre antigo. Dos cento e dezesseis itens inscritos no
catálogo, somente oito passaram dos US$ 1.000. Cinco deles
eram quadros americanos: Nº 35: Suboficial na Guerra de
Secessão, de Daisy Burroughs; o preço relativamente
elevado (US$ 1.250) pago por essa tela de um naturalismo
bastante insípido explica-se sem dúvida pelo reduzido
número de obras deixadas pela pintora, uma das raras
mulheres que sonharam abraçar a carreira de pintor de
temas históricos. Nascida em 1840, aluna de Henry
Stringbean de 1856 a 1861, encontrava-se em 1865 em
Richmond, então assediada pelas tropas do general Grant.
Morreu com o desabamento de uma chaminé, ocasionado
por um furacão, na noite de 19 para 20 de março.

Nº 62: Poço de petróleo próximo a Forel’s Fields, de


Russell Johnson; quadro inteiramente convencional,
mas cujo tema sempre atraía uma clientela
numerosa. Foi adquirido por US$ 1.175 em nome de
um vice-presidente da Amoco Motor Oil Company.

Nº 72: Indígenas das Ilhas Salomão, de Thomas


Corbett. Adido à missão etnográfica dos irmãos
Squirrel, Thomas Corbett trouxe das Ilhas Salomão
meia centena de desenhos e aquarelas de que se
serviu em seguida para compor uma série de doze
grandes quadros oferecidos à Fundação Flora
Vierkoffer, que generosamente financiara a
expedição. No incêndio que devastou a Fundação em
1896, onze desses quadros foram inteiramente
destruídos; o décimo-segundo, muito danificado,
passou para a coleção de Hermann Raffke em
condições jamais devidamente esclarecidas. Tais
circunstâncias permitem sem dúvida compreender
por que essa obra de feitura inábil e afetada
encontrou comprador ao preço inteiramente
injustificado de US$ 7.200.

Nº 73: Charles M. Murphy batendo o recorde da milha


em 30 de junho de 1899, por Bernie Bickford.
Nascido em Buffalo, onde o pai exercia a profissão de
gravurista, Bernie Bickford distinguiu-se por sua
extrema precocidade; tinha apenas dezesseis anos
quando pintou esse quadro. Na época da venda,
encontrava-se na Europa, trabalhando no ateliê de
Bonnat. Anos mais tarde, a bordo do navio que o
trazia de volta aos Estados Unidos, conheceu o
notório gângster Angelo Merisi, que o tomou sob sua
proteção, com o que não tardou em se tornar o
retratista titular do submundo nova-iorquino. Dois de
seus retratos raríssimos podem ser vistos hoje no
Police Academy Museum, de Brooklyn: o de Bunny
Salvatori e o de um dos lugares-tenentes de Al
Capone, Silvano Fiorentini.

Nº 76: A Squaw, de Walter Greentale. Das cerca de


vinte e cinco obras que tratam de assuntos
indígenas na coleção de Hermann Raffke, esta era a
única a apresentar valor artístico. Posta à venda por
US$ 300, atingiu rapidamente os US$ 1.200,
confirmando a cotação fortemente em alta do pintor.
O quadro representava uma jovem viúva índia
sentada junto ao mastro de guerra em que estão
suspensos os troféus do esposo, e não deixava de
oferecer várias semelhanças com a célebre tela de
Joseph Wright of Derby sobre o mesmo tema.
As três outras obras eram as únicas a provir da Europa e
foram objeto de licitações bastante mais animadas.
A primeira — nº 8 do catálogo — era mais uma
curiosidade que uma obra de arte: uma paisagem a
manivela, que sem dúvida fora pintada para servir como
pano de fundo num teatro de marionetes. Apresentava-se
sob a forma de uma armação de madeira retangular, de 65 x
40 cm, munida a cada lado de tambores nos quais a tela
pintada se enrolava.
Via-se de início um canal bordejado de choupos,
passava-se por uma represa, barcaças repletas de cascalho,
filas de pescadores; depois penetrava-se numa floresta de
árvores sombrias, em meio às quais descobria-se uma
cabana feita de troncos; seguia-se depois por um caminho
que se transformava aos poucos numa rua de cidade grande,
com edifícios de vários andares e lojas de louças e ladrilhos;
em seguida, as casas se espaçavam, o céu se abria e a rua
se transformava numa vereda de uma região mais quente,
não distante de um oásis onde um árabe coberto por um
enorme chapéu de palha trotava num burrico, e de um
fortim em que um destacamento de spahis apresentava
armas; depois vinha o mar, e ao cabo de uma curta travessia
chegava-se a um grande porto e seguia-se pelos cais
brumosos antes de se chegar a um modesto café, triste e
frio.
Uma estreita faixa branca interrompia então a
continuidade do desenho, sem dúvida para assinalar uma
mudança de ato. A nova sequência de cenários começava
numa oficina de marceneiro com a parede coberta de serras
e limas, depois passava-se para a cabine luxuosamente
aparelhada de um magnífico barco de recreio e daí para o
convés, de onde se descortinava um panorama maravilhoso:
uma noite de verão perfeitamente luminosa, com um céu
resplandecente de estrelas e uma cidade brilhantemente
iluminada que cintilava no horizonte; depois a cidade se
esbatia à distância, a noite clareava, e tornava-se a uma
charneca árida, que logo dava lugar a um cemitério em
ruínas.
Havia em seguida uma nova interrupção na paisagem;
depois vinha a última série de cenários: um quarto quase
sem móveis, um salão com uma mesa redonda e um bufê
trabalhado, o terraço de um café num país muçulmano com
os garçons usando fez e curtos coletes vermelhos bordados
de ouro, o interior de um café parisiense, e enfim um grande
jardim público abaixo dos Champs-Élysées, com governantas
inglesas e babás alsacianas, as dondocas em caleches, um
pequeno teatro de marionetes e um picadeiro de tenda
amarela e azul com cavalinhos de crina estilizada e
barquinhas decoradas com um grande sol amarelo.
A nota do catálogo precisava que esse panorama
miniatural fora encontrado na França, num antiquário do
subúrbio de Belleville, em Paris, pelo próprio Hermann
Raffke. O colecionador fora seduzido principalmente pelo
caráter um tanto enigmático dos cenários apresentados e
mandara fazer demoradas pesquisas para tentar saber a que
melodrama se referiam. Segundo a hipótese mais verossímil,
tratava-se de uma série de cenários para uma daquelas
longas “charadas animadas” que faziam furor nos salões
parisienses por volta da década de 1880. Mas ninguém
soube informá-lo com maior precisão.
O preço inicial estabelecido pelos herdeiros — US$ 2.500
— causou sobressalto na sala: não obstante a qualidade do
desenho e a delicadeza do colorido, o trabalho não estava
assinado, pertencia mais ao mundo dos brinquedos ou, a
rigor, das bugigangas, do que ao mundo da arte e não
apresentava praticamente nenhum valor de mercado. Mas,
sem dúvida, o sortilégio estranho e quase inquietante que a
obra despertava e que havia logo à primeira vista atraído
Hermann Raffke acabou por atuar sobre os compradores:
após terem baixado até US$ 400, os lances dispararam numa
subida íngreme, para só se deterem nos US$ 6.000.
O segundo quadro europeu era uma obra de Hogarth
intitulada The Upsidedown Manor (A mansão ao revés), nº 83
do catálogo. O pintor retomava um tema que utilizara várias
vezes em sua série de gravuras ditas “didáticas”, com as
quais pretendia demonstrar como uma perspectiva
ligeiramente falseada pode chegar a produzir ilusões
aberrantes: um palafreneiro dando de comer a um cavalo
situado muito longe dele, por exemplo, ou um personagem
no balcão de um primeiro andar apertando a mão de outro
personagem que se encontra no andar térreo etc. No caso,
era no salão de um castelo de aparência gótica que tais
fenômenos se produziam: um lacaio acendia um candelabro
situado quase no canto oposto da peça, um outro servia
bebida a um fidalgo sentado muito acima dele, uma mulher
no alto de uma escada dava a mão a beijar a um homem
que permanecia parado ao pé dos degraus.
O prestígio da assinatura e a curiosidade do assunto
valiam sem dúvida mais do que a própria pintura, bastante
inábil no desenho, incerta nos efeitos, embaçada nas cores e
em precário estado de conservação. Na verdade, fazia
pensar numa divertida tabuleta de hospedaria, mais do que
na obra de um grande pintor. Mas isso não a impediu de
galgar alegremente o topo dos US$ 10.000.
O terceiro quadro (nº 93), de europeu, só tinha o nome
do autor. Era uma Paisagem do Tennessee executada pelo
francês Auguste Hervieu por ocasião da passagem do pintor
pelos Estados Unidos, entre 1827 e 1831. Nascido em Paris
em 1794, mas educado na Inglaterra, onde trabalhara sob a
direção de sir Thomas Lawrence, Auguste Hervieu
acompanhou a sra. Frances Trollope, mãe do célebre
romancista, quando esta tentou fazer fortuna em terras da
América. Hervieu foi por algum tempo professor de desenho
numa colônia utopista, fundada em Nashoba, perto de
Memphis, por uma amiga da sra. Trollope, a sra. Wright, e é
dessa época que datava a tela da coleção Raffke. Pouco mais
tarde, Hervieu se instalou em Cincinnati, antes de regressar
à França, onde tudo leva a crer que abandonou a pintura. Na
época do primeiro leilão das obras de Raffke, o conjunto da
produção conhecida de Auguste Hervieu se limitava a trinta
litografias (que haviam servido de ilustrações ao panfleto de
Frances Trollope, Domestic Manners of the Americans), onze
aquarelas, três cadernos de croquis e quatro telas. Uma
meia-dúzia de colecionadores fanáticos disputavam-nas
ferozmente, e essa paisagem delicada, mas um tanto piegas,
que, segundo os peritos, não merecia mais de US$ 500 ou
600, atingiu o preço recorde de US$ 7.500 ao fim de uma luta
encarniçada entre Stephen Siriel, agente da atriz de cinema
Anastasia Swanson, então no auge da glória, e o industrial C.
B. MacFarlane, diretor-presidente da Companhia Ferroviária
do Altiplano.

É difícil saber quais eram precisamente as intenções dos


herdeiros de Raffke ao final dessa primeira venda. Um cartão
que mandaram distribuir na última noite do leilão anunciava
uma segunda venda, consagrada na maior parte a obras
antigas de origem europeia, tão logo se resolvessem os
múltiplos e complexos problemas decorrentes da elaboração
do catálogo, cuja redação inicial fora confiada aos srs.
William Fleish, professor de história da arte no Carson
College de Nova York, e Gregory Feuerabends, comissário-
perito da Parke and Bennett e conselheiro de licitações do
Museu de Belas-Artes da Filadélfia.
Na verdade, vários anos se passaram: a Primeira Guerra
Mundial estourou, e talvez os herdeiros de Raffke tenham
julgado oportuno evitar que se falasse deles no momento em
que a opinião norte-americana tendia mais a manifestar
sentimentos antigermânicos, em especial nas cidades em
que as minorias de origem alemã eram fortes e organizadas.
Após a explosão do depósito de munição de Black Tom
Island, em 1916, atribuída a espiões alemães, houve
manifestações de rua em Cleveland, Milwaukee, Chicago e
Pittsburgh, e, nesta última, algumas vidraças das Cervejarias
Raffke foram quebradas; quando os Estados Unidos entraram
na guerra, mil e oitocentos súditos alemães suspeitos de
exercer atividades pangermanistas foram aprisionados em
Ellis Island; entre eles estava o redator-chefe adjunto do
Vaterland de Pittsburgh. Tudo o que pudesse, bem ou mal,
lembrar as grandes festividades germanófilas de 1913 só
faria suscitar a hostilidade das multidões e até mesmo dos
poderes públicos.
Foi somente em 1924 que teve lugar o segundo leilão.
Nesse ínterim, os herdeiros de Raffke, que tiveram a
inteligência de prever a Emenda Volstead, haviam
transferido a fábrica de cerveja para o Canadá. Ainda nesse
intervalo, haviam surgido duas obras que traziam um
considerável número de informações novas sobre a coleção
do cervejeiro, algumas das quais chegavam a constituir, ao
menos no mundo da pintura e do mercado de pintura,
verdadeiras revoluções.

O primeiro livro, publicado em 1921 pela editora Moffat and


Yard, de Nova York, era uma autobiografia de Hermann
Raffke, redigida por dois de seus filhos a partir de notas e
cadernos descobertos após sua morte. Num estilo quase
sempre bastante pomposo e empolado, o cervejeiro
começava por evocar as parcas lembranças que guardava de
sua cidade natal, Travenmunde, pequeno burgo nas
proximidades de Lübeck, onde o pai exercia a profissão de
vendedor de cavalos. Contava em seguida como, posto aos
doze anos como aprendiz junto a um fabricante de tonéis em
Hamburgo, cuja oficina dava para o porto, passava horas a
sonhar diante dos grandes veleiros vindos das cinco partes
do mundo, carregados de madeiras de lei, artigos de seda,
produtos estrangeiros. Aos dezesseis anos, embarcou como
carpinteiro num baleeiro dinamarquês, o Philoctetes, que
naufragou ao largo da Islândia; recolhido por pescadores da
Terra Nova, acabou por chegar a Portland, no estado do
Maine, onde foi contratado para trabalhar nos Grandes
Lagos. A partir daí, sua vida foi a de um autêntico self-made
man: a princípio garçom numa barcaça do lago Michigan,
ganhando um dólar por semana, tornou-se em seguida
gerente de um bar de estação nas cataratas de Niágara,
depois concessionário de vendas ambulantes no cinódromo
de Kalamazoo, e finalmente distribuidor exclusivo das
cervejas, refrigerantes e bebidas para as dezessete maiores
cantinas de Chicago, antes de fundar, com três associados
que não custou a eliminar, uma cervejaria que deveria
tornar-se a mais importante da cidade e logo do estado.
Aos quarenta e cinco anos, em 1875, havia acumulado
cerca de dez milhões de dólares e seus dois filhos mais
velhos já eram suficientemente adultos para poder substituí-
lo; deixando progressivamente a eles a direção dos
negócios, resolveu dedicar-se inteiramente à sua coleção de
quadros.
Seu gosto pela pintura vinha da época em que
trabalhava nas cataratas de Niágara. Havia arranjado um
quarto no sótão do bar e o alugava por um quarto de dólar a
noite aos artistas que vinham pintar as cataratas. Um
desses, que lá ficara quase um mês, deixou em pagamento
um quadro que se intitulava Os bebedores de uísque,
representando um bar enfumaçado num pequeno porto de
pesca; pela janela guarnecida de vidraças amarelentas e
sujas, percebia-se uma paisagem afogada na bruma, alguns
barcos e uma fileira de marinheiros com chapéus de oleado,
puxando redes para a praia: na sala, três homens rudes
sentados em torno de uma mesa de madeira tosca, diante
de três copos de vidro espesso e uma garrafa escura de bojo
arredondado.
Raffke pendurara o quadro por trás do balcão.
Reconhecia de bom grado que o desenho não era bom, que
os personagens não tinham o jeito de estarem realmente
sentados em seus tamboretes, que os braços eram muito
curtos e que faltava colorido ao conjunto. Mas cada vez que
contemplava o quadro, sentia-se contente e falava para si
mesmo que, se algum dia ficasse rico, haveria de comprar
muitos outros.
Três anos mais tarde, comprou outros quatro por ocasião
de seu casamento, quando se instalou em Kalamazoo. Os
dois primeiros, que representavam respectivamente Dois
gatinhos adormecidos e Grupo de mulheres quacres num
porto de Nantucket, foram escolhidos por sua mulher num
leilão de caridade. O terceiro chamava-se Caçada ao tigre e
mostrava um elefante carregando um palanquim, tendo nas
presas uma enorme fera que havia agarrado com a tromba.
Na luta, o palanquim havia cambado pela metade,
projetando no solo o cornaca esquelético, vestido com um
simples pano passado entre as coxas, um europeu glabro, de
espessas suíças ruivas, armado de longa carabina, e um
marajá com vestes ricamente bordadas e incrustadas de
pedras preciosas; de cada lado do elefante, indígenas
aparentemente aterrorizados haviam se jogado ao chão.
O quarto quadro intitulava-se Os garçons do café.
Representava três garçons em traje a rigor, alinhados diante
de um balcão forrado de cobre luzidio, munidos de bandejas
de prata, suportando respectivamente uma lagosta, um
pudim de uma translucidez quase perfeita e uma posta
pomposa, ornamentada com plumas de pavão. Acima do
balcão, por trás das fileiras de garrafas, alinhavam-se copos
compridos, nos quais se refletia a sala do restaurante com
seus dourados, estuques, molduras, grandes lustres,
sobremesas com desenhos tortuosos e a brilhante clientela
de fraques, saias-balão e uniformes agaloados.
Era este o que preferia, pois fazia-o lembrar um de seus
primeiros empregos e combinava bem com os Bebedores de
uísque, ao lado do qual o havia pendurado na minúscula sala
de jantar do quarto-sala que a mulher e ele haviam acabado
de arrumar.
Nos anos que se seguiram, Hermann Raffke não teve
oportunidade de aumentar a coleção. Em 1875, possuía ao
todo vinte e três quadros. Mas a partir daí teve o tempo e o
dinheiro necessários para saciar aquela paixão contida havia
tanto tempo.
As sessenta últimas páginas do livro continham
revelações mais interessantes no que diz respeito à coleção.
Apresentavam-se como relato sucinto mas detalhado das
onze viagens efetuadas na Europa entre 1875 e 1909.
Nenhum cuidado estilístico entrara na redação dessas notas,
de leitura desde logo cansativa, enumerando ao longo das
páginas o emprego do tempo nas jornadas do cervejeiro:
visitas a ateliês e galerias, consultas a peritos, contatos com
agentes, jantares com artistas e marchands, encontros com
colecionadores, restauradores, molduristas, expedidores,
banqueiros etc. Os dois filhos julgaram por bem publicar na
íntegra essas páginas de agendas e cadernos de viagens,
incluindo horários de trens, contabilidade diária e menções,
por exemplo, à obtenção de lâminas de barbear ou à
confecção de doze camisas de cambraia de linho na casa
Doucet, limitando-se a acompanhá-las de alguns
comentários explicativos, provenientes das cartas em que o
pai os informava sobre seus deslocamentos, aquisições e,
sempre brevemente, suas impressões, ou ainda das
conversas que haviam tido com ele por ocasião de seu
retorno. Vários documentos eram apresentados em anexo,
como, por exemplo, catálogos de leilões públicos nos quais o
colecionador havia assinalado os itens que o interessavam.
Hermann Raffke sabia convenientemente que não
conhecia grande coisa de pintura, fosse antiga ou moderna.
Seu gosto pessoal o levaria de bom grado a adquirir somente
quadros com motivos históricos ou cenas de gênero sobre
assuntos reconfortantes, mas desconfiava de seu gosto
pessoal, pelo menos no que respeita a constituir uma
coleção que faria empalidecer de raiva os Tompkins e os
Dillman, e por isso resolveu buscar conselho. Dos cerca de
duzentos quadros que trouxera da Europa, apenas vinte —
os que chamava de Lieblingssünden, isto é, seus pecadilhos
— foram comprados diretamente por ele e correspondiam a
suas preferências secretas.[1] Os demais foram adquiridos por
intermédio de conselheiros. “Os mais eminentes críticos, os
peritos mais escrupulosos, os historiadores de arte mais
circunspectos serão os responsáveis e os abonadores de
minha coleção, que graças a eles será uma das mais belas
dos Estados Unidos da América”, escreveu à mulher em
1875, quando cruzava pela primeira vez o Atlântico a bordo
do S. S. Kaiser Wilhelm der Grosse. E bem parece que seguiu
cegamente seus conselhos. Assim é que, no leilão Vianello
de 17 de setembro de 1895, no Palazzo Sarezino, fez a
cotação de um São João Batista, de Groziano, chegar a
duzentos mil francos,[2] antes de abandoná-lo à concorrente
(“uma corpulenta senhora francesa, acompanhada de um
jovem almofadinha”, anota ele à margem do catálogo),
simplesmente porque o perito que o acompanhava, o
professor Aldenhoven, conservador-chefe do museu Wallraf-
Richartz, de Colônia, dissera-lhe que nenhum colecionador
norte-americano possuía obra desse pintor. E só parou de
dar lances quando Aldenhoven passou a suplicar.
Cerca de trinta conselheiros guiaram Hermann Raffke em
sua escolha. Os mais reputados entre eles foram, sem
contestação, Gottlieb Heringsdorf, que então preparava sua
monumental História da arte na Itália e que acompanhou em
três oportunidades o cervejeiro a Turim e Milão; Emilio
Zannoni, conservador do museu de Florença; o marchand
berlinense Busching; e o crítico americano Thomas
Greenback, cuja monografia sobre os Carracci punha em
evidência pela primeira vez o papel decisivo desempenhado
por Ludovico. Outros, como Maxfield Parrish, Frantz Ingehalt
ou Albert Arnkle, eram então jovens professores e só anos
mais tarde deram provas de sua competência; outros ainda
não eram mais que amadores esclarecidos, como se
costumava denominá-los, e, se conheceram um dia a
celebridade, não foi nunca à crítica de arte que a deveram:
assim Alfred Blumenstich que, antes de se tornar banqueiro,
fez com Raffke uma viagem à Baviera; ou Lawrence Inglesby,
primeiro-secretário da Embaixada dos Estados Unidos em
Berna; ou Theodor Fontane, que ainda não era o romancista
de sucesso que se tornaria nos anos 1880; ou Joshua Ewett,
que Raffke veio a conhecer em Veneza quando este, jovem
arquiteto, trabalhava na restauração de Santa Maria degli
Svevi e que conta em suas memórias que foi durante o
cruzeiro pelo Mediterrâneo em companhia do cervejeiro que
concebeu o projeto da cadeia hoteleira que, anos mais tarde,
o levaria à fortuna.
A maior parte dos conselheiros era constituída de
alemães ou americanos, talvez por xenofobia ou
chauvinismo, mas provavelmente por questões de língua; na
verdade, encontramos entre eles alguns ingleses (como John
Sparkes, que redigiu o excelente catálogo da coleção de
pinturas do Dulwich College), três suíços (Reinhardt
Burckhardt, conservador do museu da Basileia, que não deve
ser confundido com seu primo distante Jakob, historiador da
arte e amigo de Nietzsche, o pintor bernense Lengacker, e o
marchand zuriquenho Anton Pfann), mas apenas dois
italianos (Zannoni e o diretor da revista Befana, Franco
Veglioni), um holandês (Ernst Moes, diretor do gabinete de
estampas do Rijksmuseum) e um francês (Henri Pontier,
então encarregado de cursos da Universidade de Aix, mas
que se tornaria, sob o apelido de La Flanelle, um cômico
itinerante extremamente apreciado: de seu tempo é que
dataria, embora esta opinião seja hoje muito controvertida, o
hábito de terminar as canções com um “tagada tsoin tsoin”).
Em todo caso, uma coisa é certa: Hermann Raffke ficava
geralmente satisfeito com os conselhos que lhe davam. Só
excepcionalmente acontecia de se lamentar. Numa carta a
seu filho mais velho, Michael, datada de 4 de setembro de
1900 e expedida de Paris, quando, a convite do comissário-
geral da representação dos Estados Unidos, Jeremy
Woodward, viera visitar a Exposição Universal, considera ter
cometido um erro ao comprar por vinte e cinco mil francos
os dois quadros modernos (A rue de l’Aveyron, de Bonnard, e
A vendedora de cigarros, de Renoir) que Busching o fizera
imperativamente adquirir; “não que sejam feios”,
acrescenta, “por menos que eu aprecie esse gênero de
pintura, mas é que estou certo de que poderia tê-los
adquirido por três vezes menos, ainda que se tenham em
conta os preços exorbitantes que estão sendo praticados
este ano em Paris”. E em outra carta, postada em Munique
em maio de 1904, informa a seu sobrinho Humbert, a quem
confiara a guarda de sua coleção em Pittsburgh, que havia
posto à venda três quadros de Menzel (A estação de Saint-
Wendel, Passagem de nível em Kissingen e O ateliê do
pintor), adquiridos uma semana antes a conselho de
Blumenstich. Mas esses são os únicos exemplos de qualquer
discordância. Na maioria das vezes, o cervejeiro comprava
com tal confiança que os conselheiros precisavam antes
refreá-lo que o encorajar. Por exemplo, pouco antes do
grande leilão Barrattini, em Roma, em 1888, Zannoni
escreveu-lhe uma longa carta (reproduzida integralmente no
livro), colocando-o em guarda contra um entusiasmo
excessivo e prematuro: [...] Tive a oportunidade de examinar
mais de perto essas obras que foram proclamadas aos
quatro ventos como as revelações do leilão e posso lhe dizer
que isto não contribuiu para amenizar as legítimas suspeitas
que a simples leitura do catálogo me havia suscitado. O
Retrato do cardeal Barberini, por Donnaiolo, está em
precário estado de conservação, e, além disso, esse pintor
não merece absolutamente os louvores que passou a ser de
bom tom lhe cumular há vinte anos; os dois Bellagamba
igualmente me decepcionaram; sem dúvida, há grandes
qualidades em sua Adoração dos pastores, ainda que a
disposição dos personagens tenha sido servilmente copiada
de Perugino e a disposição das luzes seja inteiramente
insípida; mas achei sua Conversão de São Paulo indigna da
reputação que Cannochiali lhe atribuiu; trata-se de uma tela
que foi tão canhestramente remendada, depois de ter sido
salva do incêndio de San Paolo fuori le mura, que de
Bellagamba só retém o nome. E olhe lá! Porque estou
intimamente convencido não ser de Cristofano, mas de seu
filho Domenico. Quanto ao Hércules aos pés de Onfale, que
querem fazer passar por um Guido, é uma obra de ateliê
pela qual eu não daria mais que seiscentos francos; mas
verá que ela vai chegar a mais de trinta mil. Procure evitar
essas licitações e não se deixe impressionar por tais
assinaturas de prestígio que, a meu ver, ocultam obras
menores. Por outro lado, nunca seria demais recomendar-lhe
um interesse mais próximo por três quadros cujo valor me
parece incontestável. São assinados por nomes
relativamente pouco conhecidos, mas cuja reputação
começa a firmar-se fortemente e cuja cotação, esteja
tranquilo, não deixará de subir.
O primeiro é o nº 37: Músicos dormindo, por
Arrigo Mattei, um dos melhores alunos de Crespi, e
seu tratamento do claro-escuro nada fica a dever ao
do mestre. Cautela, contudo, em relação a esse
Jogadores de dados (nº 37-bis), sobre o qual tenho
toda razão para acreditar que foi abusivamente
atribuído; já está se tornando um artifício clássico
nos leilões públicos: sob o pretexto de que as duas
telas têm o mesmo formato e a mesma moldura, os
herdeiros procuram nos convencer de que formavam
um par e vão certamente tentar vendê-las junto;
mas o senhor não tem qualquer razão para se deixar
levar.
O segundo quadro que gostaria de lhe
recomendar traz o nº 52: O saque de Troia, por Otto
Reder, um óleo sobre papel maruflado. Era
inicialmente um projeto de cenário para o prólogo do
Eneias, de Racquet, na Ópera de Lisboa. O senhor
sabe que Reder mal acabara de ser nomeado
cenarista titular quando morreu no grande terremoto
de 1755. A obra foi restaurada, mas de maneira
bastante delicada, por seu aluno Moraes Salgado; sei
que já possui vários incêndios, em especial o de Van
den Eeckhout, mas estou persuadido de que este lhe
dará plena satisfação.
O terceiro quadro, o de nº 78, deve lhe ser
particularmente caro, pois diz respeito a dois de seus
compatriotas: é o Retrato de Wilhelm von Humboldt,
pintado por Peter von Cornelius em 1806; Humboldt
era então encarregado de negócios da Prússia em
Roma, onde Cornelius trabalhava na decoração do
Palácio Barrattini; não tenho enorme estima pelo
neoclassicismo de Cornelius, que acho sempre um
tanto “contrafeito”, mas devo reconhecer que este
retrato é admirável. Assinalo, ademais, que é seu
único retrato conhecido. O senhor terá sem dúvida
Strudellhoff como concorrente, de quem soube
ontem, por ocasião de um sarau da sra.
Schwanzleben, que ele tem a missão de fazer com
que o quadro fique na posse da Embaixada. Mas ele
não irá certamente além dos US$ 1.500 ou 2.000. É
uma obra que tem lugar em sua coleção: casa-se
admiravelmente com o Bassano que o levei a
adquirir há cinco anos e com a pequena Princesa que
esse grande parvo do Veglioni lhe vendeu etc.

Raffke respeitou ponto por ponto as instruções de Zannoni.


Exigiu que os dois Mattei fossem postos à venda
separadamente e obteve ganho de causa; deixou os
compradores disputarem o Guido, o Donnaiolo e os dois
Bellagamba, que chegaram a mais de duzentos mil francos
cada, ao passo que levou seus três quadros por menos de
cem mil. Figuram atualmente na Coleção particular de
Heinrich Kürz entre as cem obras mais belas do conjunto,
das quais, nas últimas páginas do livro, ele faz uma lista
completa, precisando a data e as circunstâncias da
aquisição, e às vezes mesmo o preço pago. Basta citar as
primeiras, a propósito das quais escreve: “Estes quinze
quadros são as quinze joias que, alemão de nascença,
americano de sentimentos e colecionador por vocação,
tenho mais orgulho de ter reunido”.

Escola holandesa: Retrato de uma jovem, dito “à


portulano”, chamado igualmente de Retrato Cuijper,
por ter pertencido durante muito tempo à coleção do
historiador da arte belga Emil Cuijper. Geralmente
atribuído a Carel Fabritius de Delft. Adquirido em
março de 1896 em Berlim, do marchand Adolf
Kieseritzky.

Hans Holbein o Moço: Retrato do comerciante Martin


Baumgarten. Depois de haver percorrido o Egito, a
Arábia e a Síria no início do século XVI, Baumgarten
instalou-se em Colônia, onde trabalhou a cargo dos
irmãos Imstenraedt. Entre 1529 e 1536, dirigiu o
escritório dos dois irmãos na Stalhof de Londres. É
um dos primeiros retratos executados por Holbein na
Inglaterra, pois data do ano de sua chegada a
Londres (1532). Adquirido em Londres em 1909
(Leilão Wyndham).

Escola flamenga: O assédio de Tiro. Diante das


muralhas recortadas de uma cidade em chamas,
centenas de homens empurram plataformas
gigantescas que suportam torres estreitas,
apinhadas de arqueiros, catapultas, máquinas de
guerra. O céu está estriado por tições ardentes.
Efeitos espetaculares de incêndios empurpuram o
horizonte. Adquirido em Saint-Gall em 1901 (as
circunstâncias da venda não são precisadas).
Gaspard Ten Broeck: Paisagem da Picardia. Adquirido
de um antiquário da rue de Lille em 1875.

Escola italiana: Retrato de um cavaleiro, também


chamado O cavaleiro no banho. Adquirido em
Veneza, em outubro de 1896, do conde Fadengelb. O
quadro pertencia, no princípio do século XIX, à família
Sostegno, de Turim, que o vendeu ao colecionador
berlinense Redern, que o cedeu ao príncipe
Lichnowsky, à morte do qual o conde Fadengelb o
herdou. O cavaleiro é representado de costas,
despido diante de uma fonte na qual está para se
banhar e que lhe devolve a imagem perfeita de seu
corpo nu, visto de frente. À direita do quadro, uma
couraça de aço brunido está apoiada contra um
tronco de árvore caído, e o perfil do cavaleiro se
reflete nela com todos os detalhes, enquanto, do
outro lado, uma mulher trajando um longo vestido
branco e flutuante apresenta ao cavaleiro um grande
broquel redondo em que seu perfil esquerdo se
espelha, apenas deformado pela convexidade
brilhante do broquel. Vivas controvérsias foram
levantadas a propósito do autor deste quadro cuja
perfeição formal suscita um sentimento de
serenidade quase insuportável. Atribuído geralmente
a um pintor da escola de Brescia, seja Girolamo
Romanino, seja Moretto da Brescia, seja Girolamo
Savoldo o Bresciano. Mas alguns críticos pendem
mais em favor de um pintor de Ferrara.

Escola italiana: A Anunciação nos rochedos. Uma


paisagem escarpada e tormentosa dispõe em seu
centro de uma espécie de gruta onde a Virgem está
sentada, um livro aberto sobre os joelhos. Ela parece
não ver o arcanjo Gabriel que, com um lírio na mão,
se inclina a poucos passos dela. Ao longe, caçadores
e cães acossam um cervo. Pertenceu à coleção do dr.
Heidekind, de Hamburgo. Comprado em 1891 por
dois mil marcos por intermédio do negociante de
vinhos James Tienappel.

Chardin: Os preparativos do jantar. Assinado e


datado na borda de pedra: J. S. Chardin 17[32?].
Adquirido por mil e quinhentos francos em 9 de maio
de 1881, no leilão Beurnonville. O barão de
Beurnonville, que o obtivera de Laurent Laperlier,
atribuiu-lhe o título de A refeição rosada, por causa
dos vários tons de rosa dos alimentos representados
(salmão, pêssegos maduros, presunto etc).

Gerbrand van den Eeckhout: Eneias fugindo das


ruínas de Troia. Uma grande composição sobre o
mesmo tema é conservada em Munique. Esta, de
formato bem mais modesto (80 x 50 cm), está
centrada mais no incêndio da cidade do que nos
personagens. Sob um céu violento e crepuscular,
esbraseado por clarões de incêndio, erguem-se as
ruínas fumegantes da cidade troiana, no meio das
quais o grande Cavalo estripado parece um monstro
fabuloso. Eneias e Anquises não passam de silhuetas
esbranquecidas que fogem à distância (as
circunstâncias da aquisição não foram precisadas).

Lucas Cranach: Retrato de Jakob Ziegler. Encontrado


nas caves da cervejaria Zum Sängerhaus, em
Estrasburgo, a obra foi estudada e autenticada pelo
professor Jérôme Adrien. Foi em Wittenberg que o
pintor teve oportunidade de encontrar Ziegler, que
viera visitar Lutero antes de seguir para Estrasburgo,
onde seu Theatrum Orbis Terrarum foi publicado em
1532. Adquirido em Zurique a Anton Pfann em 1901.
Escola holandesa: Jovem lendo uma carta. Adquirido
em Bruxelas em 1904 à viúva de Stallaert, o pintor
de quadros históricos. O interesse desta pequena
composição reside no tratamento da luz que, através
de uma janela alta e estreita, um pouco entreaberta,
penetra no quarto onde está a moça. Stallaert
pensava tratar-se de uma obra de juventude de
Metsu, mas essa atribuição não foi suficientemente
documentada para adquirir crédito.

Escola de Pisanello (?): Retrato de uma princesa da


Casa d’Este. O quadro foi encontrado em 1877 por
Veglioni numa casa de penhor de Milão, cujo
proprietário se declarou incapaz de precisar a
origem. Veglioni mostrou-o ao visconde de Tauzia,
que reconheceu nele um dos quadros roubados oito
anos antes da casa do dr. Bernasconi, de Verona
(cuja rica coleção, tempos mais tarde, constituiu a
base do museu da cidade). Bernasconi o tinha por
um Pisanello autêntico, mas Tauzia demonstrou que
isso era impossível, uma vez que a princesa em
questão (Lauredana d’Este, futura esposa de Aimeri
de Gonzaga) tinha apenas três anos quando o pintor
morreu.

Escola italiana: A Visitação. Um dos raros quadros


europeus adquiridos nos Estados Unidos (Boston,
leilão Sherwood, fevereiro de 1900), onde foi
apresentado como “atribuído a Paris Bordone”. Foi
examinado pelo perito Thomas Greenback, que
chamou atenção para o fato de que as librés dos
pajens traziam as armas do cardeal de Amboise; por
conseguinte o pintor só poderia ser Andrea Solario,
que Chaumont d’Amboise trouxera para a França a
fim de executar a decoração da capela de seu
castelo de Gaillon (infelizmente destruído em 1793).
Leandro Bassano: Retrato de um embaixador. Trata-
se de Angelo da Campari, enviado plenipotenciário
da República de Veneza junto ao xá da Pérsia, Abbas
I o Grande, e depois junto ao rei da Suécia, Gustavo II
Adolfo. Adquirido por quatro mil francos em 1883,
em Roma, ao último descendente do modelo, o
poeta Gianbattista Doganieri.

Jan Vermeer de Delft: O bilhete roubado. Célebre


pela descrição que dela fez Ruskin, esta obra
contribuiu sem dúvida mais que qualquer outra para
a redescoberta do pintor. Comprada por trinta
guinéus em 1875 ao marchand londrino William
Jensen, que a anunciava como um “Van der Meer de
Haarlem, aluno de Berghem”, esteve anteriormente
na coleção do arqueólogo Simon Frehude.

Degas: Dançarinas. Adquirido ao artista por sessenta


mil francos em janeiro de 1896. O encontro entre o
pintor e o colecionador foi organizado pelo cônsul-
geral dos Estados Unidos em Paris, o sr. Gawdy. Os
srs. Gawdy e Raffke chegaram ao número 37 da rue
Victor-Macé por volta das onze da manhã, visitaram
o ateliê e, em seguida, levaram Degas para comer
ostras de Colchester na Maison Dorée.

A segunda obra, publicada em 1923 pela Editora da


Universidade Bennington, era uma tese consagrada à obra
de Heinrich Kürz: Heinrich Kürz, an American Artist, 1884-
1914. O autor não era outro senão Lester Nowak. Quando
trabalhava em seu artigo do Bulletin of the Ohio School of
Arts, Nowak conheceu Kürz, e os dois homens se tornaram
amigos. Após o brutal desaparecimento do pintor (foi uma
das vinte e três vítimas do acidente ferroviário de Long
Island em 12 de agosto de 1914), sua irmã pediu a Nowak
que a ajudasse a classificar as inúmeras anotações, esboços,
rascunhos e estudos que havia encontrado no ateliê, bem
como a redigir um catálogo raisonné. Esse catálogo,
acompanhado de um considerável aparato crítico, constitui o
essencial da tese, estando o autor, como explica na curta
introdução, “impedido de qualquer julgamento de ordem
estética, por considerar apenas os problemas técnicos
ligados a uma obra que, pela sua própria concisão, tem algo
de único e exemplar”.
Não foi a morte que interrompeu a obra de Heinrich Kürz.
Ele parou de pintar por vontade própria em fins de 1912,
depois de haver terminado A coleção particular que
Hermann Raffke lhe havia encomendado e cuja execução lhe
tomara cerca de três anos e meio. Com efeito, sua obra
inteira consiste de seis telas: duas Paisagens à beira-mar,
pintadas durante férias em Watermill, em julho de 1901; o
Retrato da srta. Fanny Bentham no papel de Camille em
“Com amor não se brinca”, no grande teatro de Pittsburgh;
um Autorretrato com efeitos de anamorfose, que ficou
inacabado; um quadro de gênero, intitulado Central Pacific,
representando dois índios a cavalo, vendo passar uma
formidável locomotiva; e A coleção particular. Mas, para este
único trabalho, fizera nada menos de 1.397 desenhos,
rascunhos e esboços diversos, e Lester Nowak precisou de
quase trezentas páginas para analisar esse prodigioso
material.
Nowak evidentemente não pôde rever o quadro em si,
inumado para a eternidade junto com seu proprietário, e a
única reprodução de conjunto que podia apresentar provinha
de uma foto medíocre, feita por um dos vigias da sala onde o
quadro fora exposto. A publicação de vários esboços em que
Kürz havia indicado esquematicamente a disposição do
modelo, do cavalete, do cão, a localização dos principais
quadros e do próprio quadro en abîme, permitia uma
reconstrução quase completa da obra, ao mesmo tempo que
tornava evidente sua difícil gênese, como se o
posicionamento desses diferentes elementos, seu jogo, sua
interação, só tivessem se imposto ao espírito do pintor ao
termo de um paciente trabalho mental. Nos primeiros
croquis, por exemplo, a galeria era tratada de forma
bastante mais verista: uma sala ampla, com portas e janelas
dando para um terraço decorado de vasos de plantas, um
grande lustre veneziano, móveis, armários com alguns
objetos e curiosidades (náutilos, esferas armilares, tiorba e
bandurra, papagaio empalhado), uma dezena de pessoas, e
somente alguns quadros; somente ao longo da sequência de
esboços é que a cena se concentra, rarefaz, adensa e
comprime, até admitir apenas os “os próprios quadros, o
dono e seus reflexos”.
(É de se notar que, no primeiro momento, Raffke pedira
a Kürz que o representasse juntamente com toda a família,
ou seja, a mulher, os cinco filhos, a filha, as três noras, o
genro, os sete netos e o sobrinho Humbert, adotado depois
da morte do irmão. Quando Kürz decidiu que só devia
colocar um único ser humano diante da coleção de quadros,
imaginou, para respeitar o desejo do cervejeiro, transformar
certas cópias de retratos da coleção em retratos de
membros da família Raffke: a sra. Raffke, passavelmente
idealizada, substitui assim o Retrato de Clara Schumann, de
Ludwig Steinbruck; os cinco filhos — o mais velho com sua
magnífica barba negra, o mais novo, que nasceu caolho, com
uma faixa negra sobre o olho — e o genro figuram na réplica
do Autorretrato com máscaras de James Ensor (bastante
próximo em sua inspiração daquele da coleção Lambotte),
adquirido em Bruxelas, na exposição da Livre Estética, em
1904, por insistência de Albert Arnkle; Anna, a única filha do
cervejeiro, é representada com os traços da Moça à
portulano, de Fabritius; as três noras são as Três Parcas de
um anônimo italiano do século XVI; os sete netos aparecem
num quadro de Boucher intitulado O enigma; e o robusto
Mefistófeles de Larry Gibson, da escola americana, dá lugar
ao plácido Humbert Raffke, cujos olhinhos sorridentes se
enrugam de prazer sob as lentes com armação de aço).
Mas o interesse principal da tese não estava aí. Ao
publicar pela primeira vez, face a face, os desenhos
preparatórios de Kürz e os originais da coleção Raffke (cujos
herdeiros haviam excepcionalmente autorizado a
reprodução), Nowak elucidava enfim o enigma das
minúsculas variações que tanto haviam intrigado os
visitantes da exposição: Não se trata, como adiantei há dez
anos em minha primeira análise da obra, de um
procedimento irônico, visando restaurar a ideia, decerto
sedutora mas fechada em si mesma, de uma “liberdade do
artista” diante desse mundo que ele está mercantilmente
encarregado de reproduzir, e muito menos de uma
perspectiva histórico-crítica atribuindo ao pintor a impossível
herança de não se sabe bem que “idade de ouro” ou
“paraíso perdido”, mas, bem ao contrário, de um processo
de incorporação, de um açambarcamento: ao mesmo tempo
projeção para o Outro e Roubo, no sentido prometeico do
termo. Sem dúvida essa atitude mais psicológica que
estética é suficientemente cônscia de seus limites para
poder, oportunamente, transformar-se em derrisão e
denunciar-se a si mesma como ilusão, como simples
exacerbação do olhar que só produz trompe-l’oeil, mas
convém principalmente ver nela a conclusão lógica do
mecanismo puramente mental que define precisamente o
trabalho do pintor: entre o Anch’io son’ pittore de Corregio e
o Aprendo a olhar de Poussin, cruzam-se as fronteiras frágeis
que constituem o campo estreito de toda criação, e cujo
desenvolvimento último só pode ser o Silêncio, esse silêncio
voluntário e autodestrutivo que Kürz se impôs após ter
concluído a obra.

A demonstração dessa teoria vinha acompanhada de um


excepcional trabalho de erudição respeitante aos quadros da
coleção Raffke, como se Nowak quisesse persuadir seus
leitores de que o que estava em jogo na Coleção particular
dizia respeito tanto às obras originais quanto às réplicas
levemente falseadas de Heinrich Kürz. Graças aos obséquios
de Humbert Raffke, que, após a morte do tio, continuava a
velar pela coleção, Nowak tivera acesso a todos os
documentos relativos às aquisições europeias do cervejeiro,
e chegou mesmo, com paciência, engenho e faro
espantosos, a reconstituir exatamente a história de quase
todos os quadros e com frequência a precisar-lhes a
atribuição. Foi assim que pôde confirmar a hipótese de
Greenback sobre a Visitação de Andrea Solario, ao levantar a
lista de todos os seus proprietários, do cardeal de Amboise
até James Sherwood: oferecida pelo cardeal a Maximiliano
quando da constituição da Liga de Cambrai, a Visitação de
Gobbo (embora o irmão, Cristoforo, é que fosse corcunda,
Andrea mesmo assim era apelidado de o Corcunda)
permaneceu cerca de um século nas coleções de Carlos V e
Filipe II, que a deu a Alberto o Pio quando este se tornou seu
genro. O quadro vai parar em seguida, sem dúvida por
intermédio da dama de honra de Isabel, Geneviève d’Urfé,
marquesa de Croy, na coleção de Charles de Croy, duque de
Arschot, e figura nessa qualidade no inventário estabelecido
pelo pintor Salomon Noveliers após a morte do duque, bem
como no anúncio do leilão dessa magnífica coleção: Faz-se
saber a quem interessar possa que entre os móveis do
falecido Senhor Duque de Arschot contam-se cerca de duas
mil peças de pinturas de toda a sorte de cores, de vários
mestres excelentes, como Albrecht Dürer, Lucas de Leyden,
Jan de Maubeuge, Hyeronimus Bosch, Florus Dayck, Longue
Pierre, Ticiano Urbano, Andrea Gobbo, Paolo Veronese e
outros. Cerca de dezoito mil medalhas, uma biblioteca de
seis mil volumes, muitos deles manuscritos, grandes
baixelas de prata branca e dourada, vasos tanto de cristal de
rocha quanto de serpentino, ágatas, âmbar, jaspe,
heliotrópios bem como outras pedras lapidadas, raridades de
toda espécie, tapeçarias. Em suma, tantos móveis preciosos
que só se poderia encontrar superiores na posse de algum
príncipe; dos quais móveis se começará a venda por ordem
dos Senhores Testamenteiros e Executores Testamentários
do dito Senhor Duque à maior oferta e último licitante, na
cidade de Bruxelas, aos quinze de julho próximo e terá
prosseguimento nos dias subsequentes até o término da
dita.

Nesse leilão, que se realizou não em Bruxelas mas na


Antuérpia, o quadro foi adquirido pelo marchand Jean
Wildens, que mandou executar duas pequenas cópias por
Erasme Quellyn e expediu uma para Londres, outra para
Viena (uma dessas cópias está hoje na coleção da princesa
Carlota no Palácio Miramar, próximo a Trieste), antes de
cedê-lo por sessenta florins a Boyer d’Arguille, conselheiro
no Parlamento da Provença; o negócio realizou-se por
intermédio de Coelmans, que Boyer d’Arguille mandara vir a
Aix para gravar sua coleção de quadros, e a gravura
representando o Solario é até hoje conservada no Gabinete
de Estampas do museu de Aix. A presença do quadro é
atestada até 1790 na capela do castelo de Arguille.
Desaparece durante o período revolucionário e é
reencontrado em 1824 na posse de um negociante de vinhos
de Moncoutant por um notário de Loches, Charles Maurepas,
que dele fornece uma belíssima descrição no Boletim das
Sociedades Científicas de Indre-et-Loire (1828, XVII, 43), mas
o atribui erroneamente a Paris Bordone. A obra passa em
leilão a Angoulême em 1851 (leilão Coignières, nº 1 do
catálogo: A Visitação, escola italiana, século XVI, atribuída a
Paris Bordone) e é adquirida por duzentos francos por um
antiquário local, que a levou consigo para os Estados Unidos
em 1885 e a repassou no mesmo ano a James Sherwood.
Precisões igualmente completas eram dadas a respeito
de A mesquita dos omíadas, de Devéria, de O Loing em
Montargis, que Nowak autenticava como uma das raras
paisagens deixadas por Girodet, dos Cavaleiros árabes, cuja
atribuição a Delacroix se fundava numa bibliografia
impecável, e do estranhíssimo Interior com peruca (ao lado
de uma pesada cadeira de madeira dourada recoberta por
uma tapeçaria de Beauvais, encontra-se uma mesa de
centro sobre a qual um tricórnio enfeitado com uma pluma
negra está ao lado de uma volumosa peruca loura colocada
sobre um suporte de madeira, esculpido em forma de
cabeça) que Nowak identificou peremptoriamente como
sendo a “insígnia” encomendada em 1681 a Rigaud por
Binet, peruqueiro do rei Luís XIV, e de cuja existência se
suspeitava apenas graças a um medíocre epigrama atribuído
a Bachaumont: Binet, peruqueiro do rei, A Rigaud
encomenda uma insígnia.
Binet fica alegre, bem sei, Que o pincel do pente
desdenha.
Se não houver, Rigaud, no entanto, Peruca em
tuas fantasias, Irá faltar-lhes todo o encanto E
ainda mais lamentarias!

As duas revelações capitais desse estudo diziam respeito à


Anunciação nos rochedos e O cavaleiro no banho. Baseando-
se em numerosas semelhanças entre a Anunciação e certos
detalhes da Visão de Santo Eustáquio da National Gallery (o
cervo, o cão malhado e o pequeno lebréu), da Lenda de São
Jorge de Santa Anastasia (os dois cães ao lado de São Jorge)
e da Anunciação de San Fermo de Verona (as asas do anjo e
o recorte da paisagem acima dele), Nowak demonstrou na
verdade que a obra podia, quase com certeza, ser atribuída
a Pisanello.
Quanto ao Cavaleiro no banho, Nowak o comparava
brilhantemente com uma obra perdida de Giorgione descrita
nas Vidas de Vasari: Para convencer os escultores da
superioridade de sua arte sobre a deles, Giorgione propôs
mostrar em pintura a frente, as costas e os dois lados em
perfil de uma única figura. Coisa que lhes transtornou a
mente. Eis como ele o fez: dispôs um nu voltado de costas
que tinha aos seus pés uma fonte de água muito límpida, na
qual Giorgione pintou o reflexo do nu, de frente; a um dos
lados, havia uma leve couraça, na qual se via o perfil
esquerdo, pois o polimento do metal mostrava todos os
detalhes; do outro lado, havia um espelho que refletia o lado
direito do nu. Era algo de inventiva e fantasia maravilhosas,
capaz de provar, de fato, que a pintura exige mais talento e
trabalho que as outras artes e pode mostrar numa única
visão ao natural mais do que pode a escultura...

Esses mesmos efeitos de superfícies refletoras encontravam-


se em outra obra perdida, um São Jorge descrito por Paolo
Pino. Mas não havia nenhum outro atestado preciso dessas
obras, e, além disso, vários pintores de Veneza, de Ferrara e
de Brescia haviam, com maior ou menor felicidade, lançado
mão desses recursos (em particular o Retrato em pé, dito de
Gaston de Foix, de Savoldo, hoje conservado no Louvre). Foi
ao procurar saber como essa obra entrara para a coleção
Sostegno que Nowak fez a descoberta capital que o levaria a
afirmar ser o quadro de Giorgione. Havia encontrado os
indícios de um quadro cuja descrição correspondia em todos
os pontos ao Cavaleiro no banho da coleção Sostegno. Esse
quadro, intitulado Vênus oferecendo a Eneias as armas de
Vulcano, fora deixado como herança por um certo Nicolò
Renieri e passara por leilão a Veneza no princípio do século
XVII. Ora, outra tela dessa mesma sucessão — “um pequeno
quadro com duas figuras da mão de Zorzon de Castelfranco”
— estava autenticado no Camerino delle Antigaglie de
Gabriele Vendramino, de 1567. É certo que essa Vênus não
figurava no catálogo desse colecionador, que havia possuído
vários Giorgione (como A tempestade, o Cristo morto
amparado por um anjo e o pequeno Tocador de flauta da
Galeria Borghese) e muito menos nas preciosas descrições
que deles fizera Marcantonio Michiel, mas a conjunção da
descrição de Vasari com a presença do quadro num conjunto
de obras parcial ou inteiramente herdadas de um notório
colecionador de Giorgione constituía um índice preciso
demais para que se pudesse recusar a possibilidade de uma
atribuição à qual não se opunha nenhum argumento
iconográfico ou estético.

A pintura americana não ocupa grande espaço no estudo de


Lester Nowak. Dos vinte e um quadros de origem americana
representados na Coleção particular, somente cinco foram
objeto de uma descrição um pouco menos resumida. Os três
primeiros são quadros de assunto histórico, nos quais o
tema, o interesse documentário e a personalidade dos
protagonistas contam bem mais do que o valor artístico ou a
notoriedade do pintor. O primeiro intitula-se A chegada de
Charles Wilkes a San Francisco em 1º de junho de 1842. O
autor, Arthur Stoessel, é um dos oficiais que participaram da
expedição. Partindo de Nova York em 1838 com a missão de
explorar o continente austral, Wilkes descobriu terras às
quais deu seu nome (mas que Dumont d’Urville já havia
parcialmente batizado com o nome de Terra Adélia),
prosseguiu até Bornéu, visitou as Ilhas Sandwich e retornou
ao longo das costas do Oregon e da Califórnia. Suas
descobertas foram quase em seguida postas em dúvida pelo
capitão inglês Ross, que pretendia não existir nada nas
latitudes e longitudes que Wilkes havia indicado, e só
recentemente, após as viagens de sir Douglas Mawson entre
1911 e 1914, é que a existência dessas terras foi
confirmada.
O segundo quadro intitula-se Perdidos no mar de Weddell
(anônimo, escola americana, século XIX) e retrata o episódio
dramático de uma expedição americana, a de Benjamin
Morrell. Entre 1823 e 1839, Benjamin Morrell completou
quatro viagens ao redor do mundo, tendo a última acabado
tragicamente nas costas de Moçambique. O episódio descrito
na tela (encontrada nas arcas de Morrell após sua morte,
mas da qual ele certamente não é o autor), é relatado no
tomo VII de seu diário: na volta de sua segunda viagem, que
o conduzira sucessivamente a Nova Guiné, Nova Caledônia,
Nova Zelândia, Tasmânia, Ilhas Kerguelen, Ilhas Crozet e
Ilhas do Príncipe Eduardo, o navio perdeu-se nas névoas
geladas do mar de Weddell, onde, ameaçado pela banquisa,
errou durante várias semanas. A tela, cujas grisalhas
esbranquiçadas teriam uma violência quase turneriana se a
singeleza do traço não lhes destruísse os efeitos, mostra a
minúscula embarcação confrontando os icebergs
gigantescos.
O terceiro quadro tem por título A morte de Juan Díaz de
Solis trucidado pelos índios e, por autor, Arnold Hosenträger.
Depois de haver descoberto o Iucatã com Pinzón, Juan Díaz
de Solis tentou aprofundar-se na baía do Rio de Janeiro, mas
caiu nas mãos de índios antropófagos que o devoraram junto
com seus companheiros. O quadro, cujo historicismo
pontilhista mal dissimula um pompierismo complacente,
mostra um grupo de índios seminus, reunidos numa clareira
bordejada por vegetação mais que exuberante. No centro,
um grande caldeirão suspenso de três troncos de árvore
dispostos em feixe; ao redor dele, os infelizes europeus
estão amarrados a postes, com exceção de um padre de
batina que, ajoelhado à extrema direita do quadro, de mãos
juntas, é massacrado a golpes de acha por dois selvagens. A
obra obteve medalha de prata no Salão de Louisville em
1888.
As duas outras obras de origem americana são de
autoria do próprio Heinrich Kürz, que cuidou de fazê-las
figurar na Coleção particular como marco de seu trabalho
passado e futuro.
A primeira, Um pequeno porto de recreio perto de
Amagansett, mostra uma longa praia branca sob um céu
quase transparente. O mar é cinza, pontilhado de
embarcações com as velas esfarrapadas. Um grupo de
pessoas, todas vestidas de negro, avança pela praia em
direção a um grande guarda-sol de gomos rosa e verde, sob
o qual uma velha vende talhadas de melancia. Foi quando
pintava essa tela que Kürz conheceu a família Raffke (são
eles os personagens de negro na praia), e ela tanto agradou
a Hermann Raffke que este a adquiriu na hora por US$ 200.
A segunda obra não existe, ou antes só existe sob a
forma de um pequeno retângulo de 2 cm de comprimento
por 1 cm de largura, no qual, com a ajuda de uma forte lupa,
consegue-se distinguir cerca de trinta homens e mulheres
precipitando-se do alto de um pontão nas águas enegrecidas
de um lago, enquanto nas margens grupos armados de
tochas correm em todas as direções. Se Heinrich Kürz, que,
conforme confidenciou um dia a Nowak, só aprendera a
pintar para um dia fazer esse quadro, não tivesse resolvido
renunciar à pintura, a obra se chamaria Os enfeitiçados do
lago Ontário, inspirada num fato acontecido em Rochester
em 1891 (Gustave Reid dele extraiu em 1907 um romance
que obteve relativo sucesso): na noite de 13 para 14 de
novembro, uma seita de fanáticos iconoclastas, fundada seis
meses antes por um empregado da Western Union, um
magarefe e um agente de seguros marítimos, resolveu
saquear sistematicamente as fábricas, os depósitos e as
lojas da Eastman-Kodak. Cerca de quatro mil câmaras-
caixotes, cinco mil chapas fotográficas e 85 km de película
de nitrocelulose foram destruídas antes que as autoridades
pudessem intervir. Perseguidos por metade da população da
cidade, os sectários preferiram atirar-se na água do que se
render. Entre as setenta e oito vítimas figurava o pai de
Heinrich Kürz.

O segundo leilão Raffke efetuou-se de 12 a 15 de maio de


1924 na Filadélfia, pela firma Parke and Bennett, na
presença de numerosa multidão, em meio à qual se
distinguiam os mais famosos colecionadores da Costa Leste,
acompanhados de seus conselheiros, e a maior parte dos
diretores dos grandes museus americanos. Os agentes
oficiais do leilão eram os srs. Moulineaux e Jonathan Cheap,
ambos vindo especialmente de Nova York, assistidos pelos
srs. Rumkoff, Baldovinetti, Feuerabends e Tumpike Jr.,
peritos. Os 358 itens do catálogo tinham sido redigidos pelos
srs. William Fleish e Humbert Raffke, com a ajuda dos peritos
mencionados e dos srs. Maxwell Parrish, Frantz Ingehalt,
Thomas Greenback e Lester Nowak.
O primeiro dia foi consagrado à pintura americana e o
primeiro quadro apresentado foi o Retrato de Bronco
McGinnis, o homem mais tatuado do mundo, por Adolphus
Kleidrost, arrematado por US$ 2.500 por conta do Barnum’s
American Museum; este, mais uma Pequena paisagem da
Flórida, de John Jasper (US$ 2.500), o Retrato de Mark Twain,
por Adam Bilston (US$ 2.000), e O velho cocheiro, de Mary
Cassatt (US$ 5.000), foram os mais altos lances do leilão;
quatro outras obras ultrapassaram os US$ 500: O trapezista,
de Jefferson Abott (US$ 825), Os imigrantes, ampla
composição de William Ripley em que se via uma multidão
matizada, carregada de fardos, alinhada no convés de um
grande navio (US$ 750), A queda da casa dos Usher, de Frank
Staircase (US$ 650), e O desembarque de Taft e dos fuzileiros
do coronel Waller em Cuba em 1906, de Walker Greentale,
que só atingiu US$ 600, embora sua Squaw tivesse sido um
dos sucessos do leilão precedente; o Porto de recreio perto
de Amagansett encontrou licitante por US$ 125, A chegada
de Wilkes alcançou US$ 98; Os dois gatos dormindo, Os
bebedores de uísque e Os garçons do café foram vendidos
os três por US$ 10; mas, em compensação, a Caça ao tigre
chegou a US$ 45.

O segundo dia foi reservado à moderna pintura europeia e


começou com a apresentação de uma vintena de obras
reagrupadas sob a etiqueta “escola neoclássica”; dela fazia
parte a maioria dos Lieblingssünden de Hermann Raffke.
Mais de dois terços não ultrapassaram os US$ 50,
testemunhando com vigor manifesto o desfavor em que esse
gênero de pintura havia caído desde o princípio do século.
Sete entre elas, contudo, foram objeto de lances bem mais
animados e ultrapassaram largamente as previsões dos
peritos: O campo da Flâmula de Ouro, de Rorret (US$ 450);
Retrato do sr. Baudoin-Dubreuil de mosqueteiro, de
Ferdinand Roybet (US$ 1.200); Lancelot, de Camille Velin-
Ravel (US$ 1.300); O colecionador de insetos, de Gervex (US$
750); O Boticário de Túnis, de Gérôme (US$ 2.000); Retrato
de um general, de Jean Gigoux (US$ 2.250), e a
surpreendente Viagem ao centro da Terra, de Eugène Riou,
uma das raras pinturas desse artista considerado
principalmente como gravurista e ilustrador (US$ 2.500).

A sessão da tarde começou de maneira assaz enfadonha,


quando foram apresentadas três obras que Raffke adquirira
por instigação de Albert Arnkle: o Autorretrato com
máscaras, de Ensor, cuja notoriedade não ultrapassava
então as fronteiras da Bélgica, não obteve senão US$ 250, e
os Três homens numa estradinha campestre, de August
Macke, ainda quase totalmente desconhecido em seu país
de origem, embora já falecido havia quase dez anos (Raffke
comprara-lhe o quadro em 1908, quando Macke trabalhava
em Berlim no ateliê de Lovis Corinth), alcançou US$ 83
depois de ser posto à venda por US$ 75; quanto ao Retrato
de um oficial austríaco, de Gustav Klimt, chegou com
dificuldade aos US$ 560. Mas o ambiente tornou-se
nitidamente mais entusiástico quando começaram a chegar
os quadros das escolas francesas cuja cotação internacional
já estava quase firmada. Quase todas as obras apresentadas
ultrapassaram os mil dólares (Utrillo, Mercado de
antiguidades da place Blanche, US$ 1.400; Vuillard, Interior
burguês, US$ 2.000; Bonnard, A rue de l’Aveyron, US$ 2.800),
e cinco dentre elas os dez mil: Delacroix obteve US$ 11.000
pelos Cavaleiros árabes, cheios de ardor, mas de feitura
bastante frouxa; Renoir chegou a US$ 13.500 com sua
Vendedora de cigarros; Cézanne a US$ 17.000 com O jogo de
dominó, robusta natureza-morta representando uma mesa
de jogo com um buquê de maravilhas e dominós à mostra;
quanto a Corot e Degas, pulverizaram as estimativas dos
peritos, Corot com uma paisagem italiana de sua primeira
fase (uma Vista de Pompeia) que atingiu US$ 55.000, e
Degas com as Dançarinas, que alcançaram o teto de US$
87.000.

O teto dos US$ 100.000 foi ultrapassado na manhã seguinte


quando se puseram à venda as obras da escola alemã; e o
mesmo aconteceria várias vezes ainda no curso das sessões
da tarde e do dia seguinte, quando, numa atmosfera cada
vez mais exaltada, foram propostos sucessivamente os
quadros das escolas francesa, flamenga, holandesa e
italiana.
Nesses dois últimos dias, dos quarenta e cinco quadros
apresentados, somente seis ficaram abaixo dos US$ 2.000. E
as cifras obtidas pelos trinta e nove outros constituíram em
sua maioria recordes absolutos na época: US$ 2.100, escola
flamenga (às vezes atribuído a Marinus van Reymerswaele):
O cambista e sua mulher (uma cópia de época do célebre
quadro de Quentin Metsys; seu interesse principal decorre
das minúsculas modificações que o copista nele introduziu,
como não haver reflexo de pessoa alguma no pequeno
espelho mágico do primeiro plano; o velho ou a velha que se
vê discutir ao fundo pela porta entreaberta não tem o dedo
levantado e o homem que o/a escuta está sem chapéu; a
miniatura do livro que a mulher do banqueiro está olhando
não representa uma Virgem com o Menino, mas um
sepultamento etc).

US$ 3.800, escola alemã, século XVI (Hamburgo):


Píramo e Tisbe (a Babilônia imaginária que ocupa
todo o fundo da tela é frequentemente citada como
exemplo desse maneirismo hamburguês do qual só
se conhecem umas poucas obras).

US$ 4.300, escola flamenga: A queda dos anjos


rebeldes (a atribuição a Bosch, proposta por
Cavastivali, não se fundamenta em qualquer
elemento sério).

US$ 5.000, Pietro Longhi: Festa no Palazzo Quarli


(adquirido pelo sr. William Randolph Hearst).

US$ 6.500, escola francesa: Monge em oração (às


vezes tido por um São Jerônimo, apesar da ausência
do leão. A história deste quadro, tal como a
conseguiu levantar Nowak, data apenas de 1793,
quando, na vigência do decreto sobre os bens do
clero, foi apreendido na igreja de São Saturnino, em
Champigny. De venda pública em venda pública, foi
sucessivamente atribuído a Valentin, a Honthorst, a
Ter Brugghen, a Guido Reni, a Manfredi, a “um aluno
de Caravaggio”, a Schalken e a Espagnolet).

US$ 7.500, Giovanni Paolo Pannini: Os arquitetos


(dois arquitetos conduzem um cardeal ao palácio
que ele mandou construir).

US$ 8.000, Louis Boilly: A viela dos músicos (numa


ruela estreita, um flautista, um violista e um
violoncelista se preparam para dar um concerto sob
os olhos de alguns simplórios). Uma versão muito
próxima, de título O jogo da barrica (porque no fundo
da cena três crianças brincam desse jogo de
destreza que consiste em se equilibrar num barril
rolante), encontra-se no museu de Saint-Germain;
esta provinha da coleção da sra. Ursula Boulou.
US$ 11.000, Gianbattista Tiepolo: Nascimento de
Vênus (antiga coleção Daddi).

US$ 11.540, escola holandesa: Jogadores de xadrez


(houve tendência a se atribuir este quadro a Karel
van Mander. Nowak conseguiu demonstrar de
maneira inteiramente original que a atribuição era
impossível, pois Mander morrera em 1606 e a
disposição das peças sobre o tabuleiro reproduz a
situação após a décima-quinta jogada das brancas
numa partida célebre disputada em 1625 por
Giocchino Greco, dito o Calabrês. É de se notar que,
em sua cópia do quadro, Kürz representou a partida
após a décima-oitava jogada, ou seja, após o mate
afogado).

US$ 12.500, Arrigo Mattei: Os músicos adormecidos


(adquirido pela Carnegie Foundation).

US$ 13.125, escola holandesa: Jovem lendo uma


carta (ao cabo de longas deliberações, os peritos
renunciaram a atribuir a obra a Metsu ou mesmo a
seu ateliê).

US$ 13.200, Gerard van Honthorst (Gherardo della


Notte): Incêndio de Sodoma (das coleções de Pedro o
Grande; Elizabeta Petrovna presenteou-o a Michel
Lépicié em agradecimento por sua decoração do
palácio Anitchkov em São Petersburgo).

US$ 14.000, Gerbrand van den Eeckhout: Eneias


fugindo das ruínas de Troia.

US$ 14.315, Joseph Vernet: A tempestade (este


quadro, muito próximo daquele do Louvre,
pertenceu, como se sabe, à coleção do visconde de
Timbert, cujo retrato pelo barão Gros ficou célebre;
mas só era conhecido até então por uma gravura de
Balechou).

US$ 15.000, Peter von Cornelius: Retrato de Wilhelm


von Humboldt.

US$ 17.200, sir Thomas Lawrence: Retrato de Nelson


(dos quatro retratos de Nelson deixados pelo pintor,
este é incontestavelmente o mais romântico, pois o
mostra, segurando com a mão única, não seu
binóculo habitual, mas um medalhão representando
lady Hamilton).

US$ 17.500, Peter Snayers: O assédio de Tiro (foi ao


encontrar uma reprodução desta pintura na coleção
de Gilles van Tilborg que Nowak pôde identificar o
autor).

US$ 17.900, Otto Reder: O saque de Troia (adquirido


pela Fundação Sherburn-Boggs por conta do
Smithsonian Athenaeum de Schenectady, Nova
York).

US$ 18.250, François Gerard: Amor e Psique (uma


versão de 1796, muito diferente da de 1798,
conservada no Louvre).

US$ 20.000, Leandro Bassano: Retrato de um


embaixador (adquirido pelo Corcoran Institute,
Providence, Rhode Island).

US$ 21.000, Jean-Baptiste Perroneau: Retrato de um


bispo (trata-se de François de Telek, bispo de
Klausenburg, que o pintor conheceu em sua viagem
à Rússia em 1781).
US$ 22.000, Gaspard Ten Broek: Paisagem da Picardia
(preço muito elevado para um pintor quase obscuro,
que se tende a confundir com Gerard Terborch ou
com Gaspard van der Brouckx).

US$ 22.000, Jan Fyt: Pavão e corbelha de frutas


(coleções Forcheville, depois Settembrini).

US$ 25.000, escola de Pisanello (?): Retrato de uma


princesa da casa d’Este (a opinião de Tauzia contra
Pisanello, foi confirmada por Rumkoff e Baldovinetti;
Maxwell Parrish estima que a obra talvez fosse de
Pietro di Castelaccia, dito Il Grossetto, mas a
hipótese, acolhida com reticência pelos outros
peritos, não vingou).

US$ 32.000, Poussin: Manlius Capitolinus (um dos


seis “temas da história romana” descritos por John
Smith em seu catálogo raisonné de 1837. A obra,
conhecida por gravuras de Massard e de Landon,
parecia perdida desde 1870. Ingehalt encontrou-a
em 1891 em Berlim, na cocheira de um proprietário
de fiacres).

US$ 37.500, Girodet-Trioson: O Loing em Montargis


(Stendhal viu o quadro em Lyon na casa do amigo
Paul Brémont, em maio de 1837, e deixou uma
descrição nas Memórias de um turista).

US$ 38.000, Jean-Baptiste Greuze: Orfeu e Eurídice


(as cenas mitológicas são raras em Greuze, que, de
modo geral, nunca as dominou bem; esta, que
constitui uma feliz exceção, é contemporânea de sua
Dânae do Salão de 1863, que foi tão criticada).

US$ 40.000, François Boucher: O enigma (este


quadro, executado, segundo se diz, por encomenda
de Catarina II, exibe três meninas vestidas “à
moscovita” ao redor de um jovem. O título, indicado
pelo pintor, jamais foi explicado de maneira
satisfatória. Na Coleção particular, Kürz tratou o
“enigma” de modo muito pessoal. A primeira cópia
reproduz estritamente o modelo, com a única
exceção de que o jovem é um esqueleto armado de
uma foice. Na segunda cópia, o mesmo cenário
recebe, não mais três crianças, porém sete, os sete
netos de Hermann Raffke; a terceira cópia
representa outro quadro de Boucher, A festa
campestre, pastoral em que dezessete dançarinos,
dançarinas e músicos evoluem num cenário de
embrechados e sobosques: um harpista junto a uma
fonte cuja bacia é uma concha gigantesca do gênero
pia batismal e a boca, uma cabeça de leão, três
dançarinas em roda, um flautista e duas jovens meio
dissimulados na folhagem, sete dançarinos e
dançarinas formando um amplo arco, e no meio um
casal de moças abraçadas pela cintura, um
rabequista e uma jovem numa gruta, ouvindo um
guitarrista sentado a seus pés. É uma das raras
obras que Hermann Raffke não pôde comprar:
anunciada no leilão Meyrat-Jasse, foi vendida de
comum acordo pelos herdeiros ao marquês de
Pibolin e retirada do leilão).

US$ 50.000, Peter Paulus Rubens: Midas e Apolo


(proveniente da antiga coleção de Anton Cornelissen,
a quem Van Dyck chamava de Pictoriae Artis Amator
Antverpiae; adquirido pela Johnson Foundation, de
Connecticut).

US$ 62.500, Andrea Solario: A Visitação (adquirido


pelo sr. Simon Rawram, de Nova York).
US$ 65.000, Jean-Baptiste Siméon Chardin: Os
preparativos do almoço (adquirido pela Sears
Roebuck Foundation, de Albany).

US$ 85.000, Jan Steen: Os médicos (menos célebre


que A visita do médico do museu de Haia, esta obra,
que provém de antigas coleções da princesa
Palatina, e da qual se encontram réplicas nos
museus de Aarhus, de Salamanca e de Praga,
apresenta interesse documentário excepcional: um
dos médicos examina a jovem doente aplicando-lhe
sobre o seio semidescoberto uma espécie de corneta
acústica análoga à que Laennec “inventou” sob o
nome de estetoscópio um século e meio mais tarde;
isto explica sem dúvida que a obra, estimada pelos
peritos em US$ 40.000, tenha sido levada a mais do
dobro de seu preço pelos licitantes do Museu de
História da Medicina da Universidade de Dartmouth).

US$ 106.000, Carel Fabritius: Jovem à portulano


(adquirido pelo museu de Hoaxville, Illinois).

US$ 112.000, Antonio Pisano, dito Pisanello: A


Anunciação (adquirido pela Associação dos Museus
da Flórida).

US$ 120.000, Hans Holbein o Moço: Retrato do


comerciante Martin Baumgarten (adquirido pelo
Instituto Budweiser de Pittsburgh).

US$ 137.000, Lucas Cranach o Velho: Retrato de


Jakob Ziegler (adquirido pela Vanderbilt Institution
for the Development of Fine Arts, Troy).

US$ 143.000, Giorgione: Vênus oferecendo a Eneias


as armas de Vulcano (a apresentação sob este título
despertou murmúrios de desaprovação na sala, e
alguém se levantou para exigir que a obra fosse
anunciada como “atribuída a Giorgione pelo
professor Nowak”; isto não impediu que fosse objeto
de lances acuradíssimos entre o Metropolitan
Museum, a Fundação Leichenhalle e o Art Institute
de Chicago, que acabou por arrematá-la).

US$ 165.000, Frans Hals: Retrato de Juste van


Ostrack e seus seis filhos (antiga coleção do duque
de Marlborough. Adquirida pelo marchand Treven
Stewart por conta de um amador nova-iorquino de
quem se soube apenas ser descendente da família).

US$ 181.275, Jan Vermeer de Delft: O bilhete roubado


(adquirido pela Fundação Edgar A. Perry, de
Baltimore).

Alguns anos mais tarde, os diretores dos organismos


públicos e privados que participaram da aquisição dos
quadros do segundo leilão Raffke receberam uma carta
assinada por Humbert Raffke, na qual se informava que a
maioria das obras que haviam adquirido eram falsas, sendo
ele próprio o verdadeiro autor.
Em 1887, enquanto seu tio se encontrava na Europa,
Humbert, então estudante da Escola de Belas-Artes de
Boston, trouxe um de seus professores para visitar a coleção,
o qual, após breve exame dos quadros que o cervejeiro havia
reunido em suas três primeiras viagens, fez-lhe saber que
eram falsos ou destituídos de valor artístico.
Posto ao corrente assim que regressou, Hermann Raffke
decidiu vingar-se. Com a ajuda dos filhos, do sobrinho, que
na ocasião revelou prodigiosos talentos de pastichador, e de
alguns comparsas e cúmplices, como Lester Nowak e Frantz
Ingehalt, montou a operação que lhe permitiria, anos mais
tarde e mesmo após sua morte, mistificar por sua vez os
colecionadores, os peritos e os marchands. Suas oito últimas
viagens à Europa foram quase inteiramente consagradas a
coletar ou a forjar provas que garantissem a autenticidade
das obras que, nesse meio tempo, Humbert Raffke, vulgo
Heinrich Kürz, tratava de executar. A pedra angular dessa
paciente encenação, cujas etapas haviam sido exatamente
calculadas, foi a realização da Coleção particular, em que os
quadros da coleção, apresentados como cópias, como
pastiches, como réplicas, teriam muito naturalmente o ar de
serem cópias, pastiches e réplicas de quadros reais. O resto
foi trabalho de falsário, a saber, velhas molduras e velhas
telas, cópias de ateliê, obras menores habilmente retocadas,
pigmentos, emboços, gretaduras.

Verificações conduzidas com diligência não custaram a


demonstrar que, de fato, a maior parte dos quadros da
coleção Raffke eram falsos, como são falsos a maioria dos
detalhes desta narrativa, concebida unicamente pelo prazer,
pelo gosto de iludir.
A VIAGEM DE INVERNO
Na última semana de agosto de 1939, enquanto os rumores
de guerra invadiam Paris, um jovem professor de letras,
Vincent Degraël, foi convidado a passar alguns dias numa
propriedade nas cercanias de Le Havre, pertencente aos pais
de um de seus colegas, Denis Borrade. Na véspera do
regresso, quando explorava a biblioteca de seus anfitriões à
procura de um desses livros que desde sempre nos
prometemos ler, mas que em geral só temos tempo de
folhear ao acaso junto ao fogo da lareira, antes de tomar
parte numa rodada de bridge, Degraël deu com um magro
volume intitulado A viagem de inverno, cujo autor, Hugo
Vernier, era-lhe totalmente desconhecido, mas cujas
primeiras páginas causaram-lhe uma impressão tão forte
que só teve tempo de se desculpar junto ao amigo e a seus
pais e subir correndo a fim de lê-lo no quarto.
A viagem de inverno era uma espécie de relato escrito
em primeira pessoa e situado num país semi-imaginário
cujos céus carregados, florestas sombrias, sinuosas colinas e
canais cortados por eclusas esverdeadas evocavam com
insistência insidiosa as paisagens de Flandres ou das
Ardenas. O livro estava dividido em duas partes. A primeira,
mais curta, descrevia em termos sibilinos uma viagem com
ares iniciáticos, de etapas que pareciam marcadas cada uma
por um fracasso, e ao fim da qual o herói anônimo, um
homem que tudo fazia crer fosse jovem, chegava à beira de
um lago imerso em bruma espessa; um barqueiro o
esperava ali, para conduzi-lo a uma ilhota escarpada, no
centro da qual se elevava uma construção alta e sombria;
mal o jovem tocava o pé no estreito pontão que constituía o
único acesso à ilha, aparecia-lhe um estranho casal: um
velho e uma velha, ambos envoltos em compridas capas
negras; pareciam surgir do nevoeiro e vinham acostar-se a
ele, tomando-lhe os cotovelos e se apertando o mais
possível a seus flancos; quase aderidos uns aos outros,
escalavam uma trilha aluída, entravam na casa, subiam por
uma escadaria de madeira e chegavam a um quarto. Ali, tão
inexplicavelmente como haviam aparecido, os velhos
sumiam, deixando o jovem sozinho no meio do cômodo.
Estava sumariamente mobiliado: uma cama recoberta por
um lençol estampado, uma mesa, uma cadeira. Uma chama
ardia na lareira. Sobre a mesa, uma refeição pronta: sopa de
favas, uma fatia de pato. Pela alta janela do quarto, o jovem
contemplava a lua cheia emergir das nuvens; depois
sentava-se à mesa e começava a comer. E com essa ceia
solitária terminava a primeira parte.
A segunda parte constituía, sozinha, quase quatro
quintos do livro, e parecia desde logo que o curto relato que
a precedia não passava de um pretexto anedótico. Era uma
longa confissão de lirismo exacerbado, entremeada de
poemas, máximas enigmáticas, sortilégios blasfematórios.
Mal começou a ler, Vincent Degraël teve uma sensação de
mal-estar que lhe foi impossível definir com precisão, mas
que se acentuava à medida que virava as páginas do
volume, com a mão cada vez mais trêmula: era como se as
frases que tinha diante dos olhos se tornassem de chofre
familiares, fazendo-o irresistivelmente lembrar alguma coisa,
como se à leitura de cada uma delas se impusesse, ou antes
superpusesse, a lembrança ao mesmo tempo precisa e
frouxa de uma frase quase idêntica que ele já lera em algum
lugar; como se aquelas palavras, mais ternas que carícias ou
mais pérfidas que venenos, aquelas palavras ora límpidas
ora herméticas, obscenas ou calorosas, fascinantes,
labirínticas, oscilando sem parar, como a agulha desvairada
de uma bússola, entre uma violência alucinada e uma
serenidade fabulosa, desenhassem uma configuração
confusa na qual se podia ver confundidos Germain Nouveau
e Tristan Corbière, Villiers e Banville, Rimbaud e Verhaeren,
Charles Cros e Léon Bloy.
Vincent Degraël, cujo campo de interesses incidia
precisamente sobre tais autores — preparava havia anos
uma tese sobre “a evolução da poesia francesa dos
parnasianos ao simbolistas” —, julgou a princípio que talvez
já tivesse lido o livro ao acaso das pesquisas; depois, com
maior verossimilhança, que talvez fosse vítima de uma
ilusão de déjà vu, pela qual — assim como o simples sabor
de um gole de chá nos transporta de repente à Inglaterra de
trinta anos atrás — bastava um nada, um som, um odor, um
gesto — talvez esse instante de hesitação que sentira antes
de retirar o livro da estante, onde estava classificado entre
Verhaeren e Vielé-Griffin, ou ainda a maneira ávida com que
percorrera as primeiras páginas — para que a lembrança
falaciosa de uma leitura anterior viesse sobrepor-se a ela,
perturbando-a até tornar impossível a leitura que estava a
ponto de fazer. Mas logo a dúvida não pôde sustentar-se e
Degraël teve que se render à evidência: talvez a memória
lhe pregasse uma peça, talvez não passasse de um acaso
que Vernier parecesse tomar emprestado a Catulle Mendès o
seu “solitário chacal assediando os sepulcros de pedra”;
talvez pudesse levar em conta os encontros fortuitos, as
influências ostensivas, as homenagens voluntárias, as cópias
inconscientes, a vontade de pastiche, o gosto das citações,
as coincidências felizes; talvez pudesse considerar que
expressões como “o voo do tempo”, “névoas do inverno”,
“obscuro horizonte”, “grutas profundas”, “fluidas fontes”,
“incertos clarões das macegas selvagens” pertencessem de
pleno direito a todos os poetas e que era perfeitamente
normal encontrá-las num parágrafo de Hugo Vernier ou nas
estâncias de Jean Moréas, mas era de todo impossível não
reconhecer, ao sabor da leitura, palavra por palavra ou
quase, aqui um fragmento de Rimbaud (“Via honestamente
uma mesquita no lugar de uma fábrica, uma escolta de
tambores formada por anjos”) ou de Mallarmé (“inverno
lúcido, estação de arte serena”), ali um de Lautréamont (“Vi
no espelho esta boca machucada pela minha própria
vontade”) ou de Gustave Kahn (“Deixa expirar a canção... a
alma chora./ Rasteja um bistre em torno à claridade./ O
silêncio subiu lentamente, apavora/ Os ruídos habituais da
íntima vacuidade”), ou, mal modificado, um de Verlaine (“no
tédio interminável da planície, luzia a neve como fosse areia.
O céu era da cor do cobre. O trem deslizava sem um só
murmúrio...”) etc.
Eram quatro horas da manhã quando Vincent Degraël
terminou a leitura da Viagem de inverno. Havia localizado
cerca de trinta empréstimos. Certamente haveria outros. O
livro de Hugo Vernier parecia uma prodigiosa compilação dos
poetas do fim do século XIX, um centão desmesurado, um
mosaico em que quase todas as peças eram obra de outrem.
Mas no exato momento em que se esforçava por imaginar
esse autor desconhecido que decidira extrair de livros
alheios a própria matéria de seu texto, quando tentava
figurar até o fim esse projeto insensato e admirável, Degraël
sentiu nascer em seu íntimo uma suspeita assustadora:
acabava de lembrar que, ao tomar o livro da estante, havia
maquinalmente observado a data, movido por esse reflexo
de jovem pesquisador que jamais consulta uma obra sem
atentar para os dados bibliográficos. Talvez se tivesse
enganado, mas achava que havia lido “1864”. Verificou a
data, o coração batendo. Lera corretamente: isso queria
dizer que Vernier havia “citado” um verso de Mallarmé com
dois anos de antecipação, plagiado Verlaine dez anos antes
de suas “Pequenas árias esquecidas”, escrito versos de
Gustave Kahn cerca de um quarto de século antes dele! Isso
queria dizer que Lautréamont, Germain Nouveau, Rimbaud,
Corbière e outros mais não passavam de copistas de um
poeta genial e desconhecido que, numa obra única, soubera
recolher a própria substância de que se nutririam em
seguida três ou quatro gerações de autores!
A menos, evidentemente, que a data de impressão que
figurava na obra estivesse errada. Mas Degraël recusava-se
a admitir essa hipótese. A descoberta era bela demais,
evidente demais, necessária demais para não ser
verdadeira, e ele já imaginava as consequências vertiginosas
que iria provocar: o escândalo prodigioso que constituiria a
revelação pública dessa “antologia premonitória”, a
amplitude de suas repercussões, o enorme questionamento
de tudo o que os críticos e historiadores da literatura haviam
imperturbavelmente professado durante anos e anos. E sua
impaciência era tal que, renunciando definitivamente ao
sono, precipitou-se para a biblioteca a fim de tentar saber
algo mais sobre esse Vernier e sua obra.
Não encontrou nada. Os poucos dicionários e livros de
referência existentes na biblioteca dos Borrade ignoravam a
existência de Hugo Vernier. Nem Denis nem seus pais
souberam dar maiores informações: o livro fora adquirido
num leilão, havia cerca de dez anos, em Honfleur; haviam-no
consultado sem prestar grande atenção.
O dia inteiro, com a ajuda de Denis, Degraël procedeu a
um exame sistemático da obra, procurando os fragmentos
revelados em dezenas de antologias e compilações;
encontraram cerca de trezentos e cinquenta, repartidos por
cerca de trinta autores: tanto os mais célebres como os mais
obscuros poetas do fim do século, e às vezes até mesmo
alguns prosadores (Léon Bloy, Ernest Hello), bem pareciam
ter feito da Viagem de inverno a bíblia de que haviam
extraído o melhor de si mesmos: Banville, Richepin,
Huysmans, Charles Cros, Leon Valade aí andavam de par
com Mallarmé e Verlaine e outros mais, hoje caídos no
esquecimento, que se chamavam Charles de Pomairols,
Hippolyte Vaillant, Maurice Rollinat (o afilhado de George
Sand), Laprade, Albert Mérat, Charles Morice ou Antony
Valabrègue.
Degraël anotou cuidadosamente num caderno a lista dos
autores e a referência de seus empréstimos, e retornou a
Paris decidido a prosseguir suas pesquisas no dia seguinte,
na Biblioteca Nacional. Mas os acontecimentos não o
permitiram. Em Paris, esperava-o a convocação para o
exército. Mobilizado em Compiègne, viu-se, antes que
tivesse tempo de compreender por que, em Saint-Jean-de-
Luz, passou para a Espanha e de lá seguiu para a Inglaterra,
donde só retornou à França em fins de 1945. Durante toda a
guerra, transportou consigo o caderno e miraculosamente
conseguiu não perdê-lo. Suas pesquisas evidentemente não
haviam avançado, mas ainda assim fizera uma descoberta
capital: no British Museum, pudera consultar o Catálogo
geral de livros franceses e a Bibliografia da França e
confirmar sua formidável hipótese: A viagem de inverno, de
Vernier (Hugo), fora mesmo editada em 1864, em
Valenciennes, pelos Irmãos Hervé, impressores-livreiros, e,
submetida ao depósito legal incidente sobre todas as obras
publicadas na França, fora depositada conformemente na
Biblioteca Nacional, onde lhe foi atribuído o número
catalográfico Z 87912.
Nomeado professor em Beauvais, Vincent Degraël
consagrou daí em diante todo o seu tempo livre à Viagem de
inverno.
Pesquisas profundas em diários íntimos e na
correspondência da maior parte dos poetas do fim do século
XIX persuadiram-no rapidamente de que Hugo Vernier gozara,
em seu tempo, da celebridade que merecia: notas como
“recebi hoje uma carta de Hugo”, ou “escrevi uma longa
carta a Hugo”, “li V. H. a noite inteira”, ou ainda o célebre
“Hugo, somente Hugo” de Valentin Havercamp não se
referiam absolutamente a “Victor” Hugo, mas a esse poeta
maldito cuja obra breve parecia ter incendiado todos aqueles
que a tiveram em mãos. Contradições espantosas que a
crítica e a história literária jamais haviam explicado
encontravam assim sua única solução lógica, e era
evidentemente pensando em Hugo Vernier e ao que deviam
à Viagem de inverno que Rimbaud escrevera “Eu é um
outro” e Lautréamont, “A poesia deve ser feita por todos e
não por um”.
Mas quanto mais realçava o lugar preponderante que
Hugo Vernier devia ocupar na história literária da França no
fim do século passado, menos ele podia fornecer provas
tangíveis a respeito: pois nunca mais conseguiu pôr a mão
num exemplar de A viagem de inverno. O que havia
consultado fora destruído — ao mesmo tempo que a cidade
— por ocasião dos bombardeios de Le Havre; o exemplar
depositado na Biblioteca Nacional não estava no lugar
quando o solicitou e somente ao cabo de longas diligências
conseguiu saber que, em 1926, o livro fora enviado a um
encadernador que jamais o recebeu. Todas as buscas que
mandou fazer junto a dezenas e centenas de bibliotecários,
arquivistas e livreiros acabaram por se revelar inúteis, e
Degraël logo se persuadiu de que os quinhentos exemplares
da edição tinham sido voluntariamente destruídos por
aqueles mesmos que se haviam inspirado neles.
Sobre a vida de Hugo Vernier, Vincent Degraël não
descobriu nada ou quase nada. Uma pequena nota
imprevista, desentranhada de uma obscura Biografia de
homens ilustres do Norte da França e da Bélgica (Verviers,
1882), dava a saber que o autor nascera em Vimy (Pas-de-
Calais), a 3 de setembro de 1836. Mas os assentamentos do
registro civil da municipalidade de Vimy haviam queimado
em 1916, ao mesmo tempo que as cópias recolhidas à
prefeitura de Arras. Não constava que qualquer certidão de
óbito tivesse sido alguma vez lavrada.
Por cerca de trinta anos, Vincent Degraël esforçou-se em
vão por coletar provas da existência do poeta e de sua obra.
Quando morreu, no hospital psiquiátrico de Verrières, alguns
de seus ex-alunos trataram de classificar a imensa pilha de
documentos e manuscritos que Degraël deixara; entre eles
figurava uma grossa agenda encadernada em percalina
preta, cuja etiqueta consignava, em letra cuidadosamente
caligrafada, A viagem de inverno: as oito primeiras páginas
descreviam a história de suas pesquisas frustradas; as
outras trezentas e noventa e duas estavam em branco.
GEORGES PEREC nasceu em Paris, em 1936, filho de judeus poloneses.
Órfão ainda menino — o pai morreu no fronte em 1940, a mãe foi deportada
em 1943 —, Perec foi criado por uma tia paterna. Após a guerra, retornou à
capital, frequentou o liceu e estudou letras na Sorbonne, sem muito método
nem sucesso. Em 1962, empregou-se como arquivista junto a um
laboratório de neurofisiologia, cargo que manteria até o final dos anos
setenta.
Perec estreou na ficção em 1965, com o romance As coisas, de sabor
flaubertiano, que logo obteve o prêmio Renaudot. Com a publicação de Um
homem que dorme, em 1967, o autor foi convidado a participar do Oulipo, o
grupo de literatura experimental de que faziam parte Raymond Queneau,
François Le Lionnais e Italo Calvino. Daí em diante, assinaria uma obra
extensa, do relato autobiográfico (W ou a memória da infância) à poesia, do
romance experimental (La Disparition e Les Revenentes) ao ensaio literário,
culminando em A vida modo de usar — romances, de 1978. A novela A
coleção particular e o conto A viagem de inverno, ambos de 1979,
pertencem à última fase de sua criação. Vítima de um câncer, Perec faleceu
em Ivry, em março de 1982.
© Cosac Naify, 2004
© Editions du Seuil, 1994 pour Un Cabinet d’amateur
© Editions du Seuil, 1993 pour Le Voyage d’hiver

Imagens da capa e da contracapa AUGUSTO C. FERRARI

Edição SAMUEL TITAN JR.


Tradução IVO BARROSO
Preparação MANUEL OLÍVIO
Revisão EUGÊNIO VINCI DE MORAES
Projeto de capa ELAINE RAMOS
Projeto de miolo JUSSARA FINO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do
Livro, SP, Brasil)

Perec, Georges, 1936-1982.


A coleção particular: Georges Perec Título original: Un cabinet
d’amateur Tradução: Ivo Barroso São Paulo: Cosac Naify, 2005
88 p.

2ª edição ISBN 85-7503-438-3


1. Ficção francesa I. Título.

04-7839 CDD-843

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção: Literatura francesa 843


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Atendimento ao professor: [55 11] 3823 6595


[1] Sete deles lhe eram de tal forma caros que pediu a Kürz que os fizesse figurar
em sua Coleção particular: O assassinato de Concini, de Julien Blévy, uma
paginação grandiosa malbaratada pelo abuso de betume; O campo da Flâmula
de Ouro, de Guillaume Rorret, que se autoqualificava de “pós-rafaelita”; A morte
da criada, de Henry Silverspoon, conhecido principalmente por sua decoração do
salão de fumar do Crystal Palace; Os trabalhos na Noruega, do dinamarquês
Dolknif Schlamperer (era filho de um marinheiro que perecera no naufrágio do
Philoctetes, e, em memória do pai, Raffke concedeu-lhe uma pensão vitalícia);
Lancelot, de Camille Velin-Ravel, uma grande e fria composição em que este
aluno de Couture e amigo de Puvis de Chavannes mostrava o Cavaleiro da
Carreta penetrando à noite no castelo do gigante Meleagante, onde Ginevra era
mantida prisioneira; O príncipe mascarado, do tirolês Horvendill Lautenmacher,
aluno medíocre de Charles Haeberlin na Academia de Stuttgart; A primeira
ascensão ao monte Cervino, do suíço Gustave Feuerstahl, que tratava com
realismo melodramático a terrível queda de Hadow, Hudson, Lord Douglas e
Michel Croz e a miraculosa sobrevivência de Edward Whymper e dos irmãos
Taugwalder. (N. do A.) [2] A Itália fazia parte então da União Latina, onde o
franco tinha curso legal. (N. do A.)
Table of Contents
Rosto
A coleção particular
A viagem de inverno
O Autor
Créditos
Notas

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