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A FLAGELAÇÃO DAS
BOLSINHAS DE CAMURÇA
seguido de
UM OUTRO
KRATKI-BASCHIK
tradução
7
Verão de 196 8, um conjunto de trabalhos dedicados
ao escritor austríaco numa secção especial com o
título «A Symposium on Heimito von Doderer», no
qual também me foi dado colaborar com um peque
no estudo intitulado «The Short Stories of Heimito
von Doderer», em que, no entanto, considerei apenas
o volume Die Peinigung der Lederbeutelchen (A F/,age
/,ação das Bolsinhas de Camurça), do qual foram ex
traídos os dois contos que neste volume se publicam.
Gostaria de acrescentar ainda que o conhecimento
que travei com Heimito von Doderer foi para mim
de grande importância, pois aumentou em larga me
dida o interesse que já tinha pela sua obra e desper
tou-me a ideia de a estudar com mais profundidade e
sobre ela escrever um trabalho. Esse projecto demorou
alguns anos, mas acabei por o levar a cabo e o estudo
que realizei sobre o tema Humor e Grotesco na Obra
de Reimito von Doderer constituiu a minha tese de
doutoramento na Universidade de Viena.
Espero que a publicação dos dois contos que
figuram neste volume possa ser um primeiro passo
para a divulgação da obra de Heimito von Doderer
em Portugal, em especial dos seus romances, que se
contam, sem dúvida, entre os mais notáveis da litera
tura austríaca nos meados do século XX.
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UM OUTRO KRATKl-BASCHIK
Ü s sacrifícios ao deus do Verão, o grande Pã,
fazem-se na cidade com cânfora e naftalina: é o aro
ma fresco da solidão nas habitações abandonadas e
meio escurecidas, aroma que circula como um espí
rito delicado em volta dos móveis tapados, enquanto
os habitantes desses aposentos passeiam nos bosques
reais ou se detêm em jardins, em estreitos caminhos
de cascalho entre canteiros com globos de vidro colo
ridos. Os bosques escuros vêem-se ao longe, estirados
como uma roupagem que se tivesse deixado cair no
sopé das altas montanhas, que, com penhascos já nus,
brilham, numa suavidade leitosa, no alto céu estival,
.
tendo ainda aqui e além o acento branco de um cam
po de neve.
A cidade afundou-se abaixo do horizonte. Ela
afunda-se em si mesma com o calor e fica deserta,
porque tanta gente a abandonou, e fica mais deserta
sobre o asfalto a exalar vapores, embora centenas de
milhares de pessoas ainda aí circulem, de carro ou a
pé. A cidade tende para a meditação. Tem muitos
espaços vazios, cavernas, cavidades: são as que estão
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protegidas por cortinas, pela frescura da cânfora. Fi
nalmente os móveis têm também uma vez a sua vida
própria. As meditações da cidade não se efectuam,
porém, só nesses espaços fechados. Diante de um
pequeno restaurante, «Zur Stadt Paris», há mesas no
passeio de uma rua transversal. Vêem-se aí copos
brilhantes de cerveja. Do restaurante vem um cheiro
um pouco fresco, de cave, talvez a tonéis, tonéis de
vinho, tonéis de cerveja. Só então se repara que a Lua
apareceu por cima da rua. A noite permanece muito
quente.
Para os donos dos restaurantes nas ruas calmosas,
o Verão não é em Viena o melhor período, embora
o calor faça correr mais a cerveja, quando há seis ca
necas à sombra, como por vezes aqui se diz: é que,
terminado o trabalho e mais ainda no fim-de-semana,
toda a gente vai para fora; os bosques de Viena rou
bam à cidade a sua população e as pessoas gostam
de se sentar no arejado das esplanadas dispersas pelas
colinas, onde a vinha cresce em torno dos caraman
chões e a lua brilha nas suas folhas dentadas, de modo
a fazê-las parecer como que recortadas com a tesoura
de papel, ou até de uma solidez metálica, como se
fossem de chapa.
Toda a gente sai. Depois a cidade começa também
a meditar nas salas vazias dos restaurantes e lá fora,
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no passeio, onde se encontram as mesas e talvez al
guns loureiros em vasos.
O jovem proprietário do restaurante «Zur Stadt
Paris» e a mulher pensavam fazer de novo prosperar
o negócio, depois de uma tão longa série de dias de
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frequência se encontra nas vienenses um andar gra
cioso - uma tal união é quase característica das
mulheres da nossa cidade - e rodopiava, portanto,
pelo restaurante, apressada e alegre.
Conheciam quase toda a gente. Mais do que
isso: acabavam por adquirir, mais cedo ou mais tarde,
sobre cada pessoa um conhecimento em geral bas
tante profundo; conheciam, por exemplo, exactamen
te a estrutura de um par de noivos, cujo elemento
feminino usava, segundo a moda, o cabelo pintado
de ruivo, calças compridas e uma camisa desportiva,
enquanto o outro elemento, calmo e doce, aparecia
sempre com o· mesmo fato decente, que, no entanto,
não assentava bem, um empregado, que dedicava
quase todo o seu tempo livre a uma arte pacífica,
designadamente a apicultura; e isto já quer dizer, na
verdade, que este jovem era um cismador. Ela, ao
invés, teria preferido andar numa moto e pertencia,
mesmo sem isso, àquele grupo de pessoas que acom
panha a sua época, o que consiste essencialmente na
disposição para fazer barulho, seja com que apare
lhagens for.
- Como é que ela deu precisamente com este
rapaz?
- Os contrários atraem-se - opinou Frau Elly.
- Agora já o apanhou e de mais a mais vê-se como
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manda nele. É claro que isso é coisa que ela não
quer perder.
- Provavelmente ele tem muito dinheiro e ela
sabe disso - disse o dono do restaurante.
Vê-se logo que era bem firme a sua opinião sobre
as motivações humanas. Pelo contrário, Frau Elly, que
também não tinha papas na língua, era mais caute
losa, embora chegasse mais fundo. O casal só em
conjunto dava um bom psicólogo.
Assim, eles depressa ficavam ao corrente do que
se passava com cada um e cada uma, sabiam os ma
les que os afligiam ou a viva necessidade que algum
sentia de mostrar os seus belos sapatos novos ou o
retrato da tia, porque esta tinha sido viúva de um
capitão do exército real e imperial; ou quando, por
exemplo, a velha empregada do vestiário da Ópera
Imperial, já aposentada, deixava entrever a sua inti
midade e familiaridade com artistas famosos da sua
época («já não há hoje vozes como as desse tempo»),
o que acontecia logo com base em grande número
de fotografias, todas com autógrafos: sim, ali nos con
templava, através de grandes óculos com aros de ouro,
quando se entrava já em pormenores, a face do tem
po, que, mesmo quando ainda durava, por último
mais se representava a si mesma do que realmente
existia... A pequena e gorda funcionária pública com
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a cabeça nariguda como uma poupa; e a filha, tão
satisfeita com o mundo, com o seu cãozinho, um
baixote alemão, e sobretudo consigo mesma que se
tornava quase insuportável justamente para esse seu
mundo; e o engenheiro Anton Rieger, que estava
sempre sozinho e sempre um pouco triste, um ho
mem de excelente figura e cujos negócios corriam
da melhor maneira; quase se poderia dizer que era a
ele que os Blauensteiners melhor conheciam e em
pequenos sinais que nele se manifestavam cerca da
meia-noite - certos movimentos das mãos, certas
palavras que se repetiam - viam que ele nesse dia
não tomaria o caminho de casa, mas sim o de um
astro errante através da noite e dos clubes nocturnos
do centro da cidade, o que de quando em vez acon
tecia ao velho solteirão.
Vamos conhecer ainda outros clientes, mas só de
pois da sessão de ilusionismo: pois com uma tal sessão
pensavam os Blauensteiners insuflar no seu restau
rante a vida que, em virtude do calor de Julho, dele
quase havia desaparecido. Naturalmente eles tinham
também relações com aquela especialidade algo re
mota, que, no entanto, é muito apreciada em Viena e
aqui possui mesmo uma grande tradição. Com efeito,
houve na nossa cidade, por volta de 1 870 ou 80, o
Kratki-Baschik, ao qual foi fácil arabizar ou aturqui-
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zar o seu nome boémio Kratky, isto é, torná-lo um
pouco oriental pela transformação do y num i e acres
centamento da palavra ininteligível «Baschik». Em
turco há apenas uma palavra algo semelhante a esta,
mas de cujo significado muito longe aqui nos encon
tramos ... Mas que importa isso? O Kratki-Baschik
toda a gente um dia conhecera. Residia no Prater, era
prestidigitador e possuía, além disso, um gabinete de
raridades, onde havia também muita coisa conserva
da em álcool, que de outro modo mal havia oportuni
dade de ver. Ainda hoje se diz em Viena de um tipo
de certo modo horroroso: «Aquele é do Kratki-Bas
chik».
Os seus discípulos e adeptos na segunda e terceira
gerações tornaram-se entretanto numerosos e, mais
do que isso, multiplicaram-se extraordinariamente,
realizam congressos e competições; muito poucos
trabalham profissionalmente nesse campo, como ar
tistas famosos; a maior parte são amadores, muitos
deles com grande capacidade.
Blauensteiner tinha à sua disposição um desses
amadores e, no serão para isso determinado, o res
taurante «Zur Stadt Paris» depressa se encheu com
pletamente, tanto mais que não se cobrava qualquer
entrada, porque o mago se tinha prestado a mostrar as
suas artes de forma absolutamente gratuita. Poderia
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dizer-se um «ilusionista com equipamento próprio»,
como se fala, por exemplo, de um corredor de au
tomóveis com carro próprio. Aquele a que aqui nos
referimos era, de profissão, primeiro-secretário da mu
nicipalidade. A magia implica, aliás, despesas consi
deráveis - para tudo é preciso dinheiro e de o fazer
aparecer por artes mágicas nem um mago é capaz -,
devidas à aquisição de instrumentos bastante com
plexos e mesmo de grande volume. Toda a gente ficou
a olhar quando os trouxeram: cofres, tubos; e um dos
objectos parecia uma máquina electrostática já fora
de moda, com uma placa circular de vidro e peças
reluzentes de latão.
O serão foi um sucesso, não só para o dono do
restaurante, mas também para o cavalheiro que tão
amavelmente mostrou as suas habilidades e que,
durante a sessão, tinha uma pêra branca postiça.
Blauensteiner sempre designara, aliás, este freguês,
cujo nome era algo difícil de reter, por «Kratki-Bas
chik», pois em breve se lhe tornara conhecida a incli
nação do primeiro-secretário para a magia.
Em tais artes realizou aquele funcionário, logo
após o começo da sessão, coisas tão assombrosas que
o público mais não pôde que ficar com a certeza de
que afinal era tudo uma questão de destreza e de
truques bem executados. No entanto, mesmo esta
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explicação racional dos factos quase se tornou por al
guns momentos insuficiente: designadamente quando
um belo e garrido lenço de seda de um jovem cliente
e uma nota de vinte xelins de um outro foram cor
tados e rasgados em bocadinhos num dos aparelhos
-ambos os donos consideraram intimamente as suas
coisas perdidas -, para depois, com grande alvoro
ço e ruidosos aplausos, diante dos olhos de algumas
pessoas que se tinham aproximado, serem retirados,
absolutamente intactos, da opulenta e densa cabeleira
do dono do restaurante - a nota do banco - e do
colarinho da camisa- o lenço.
Toda a gente agradeceu efusivamente ao funcio
nário da municipalidade, que foi recompensado por
aplausos inteiramente merecidos. O sugestivo pro
grama, durante o qual muito se bebera também,
tinha durado bastante. O primeiro-secretário guar
dou os seus estranhos e complicados apetrechos e
chamou um táxi. E em breve se dispersou a chusma
dos clientes.
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Ópera Imperial dos bons tempos de antanho falta
vam (felizmente, somos quase levados a dizer, em
face do que se vai seguir). O «ancien régime» tam
bém não tinha deixado ficar os seus óculos de ouro,
que por vezes vinha buscar, voltando a aparecer ainda
no mesmo serão; de resto nem já se poderia falar de
serão, que a noite ia bastante avançada. No entanto,
ainda lá estava o doutor Hugo Winkler, professor
universitário aposentado, que, segundo se dizia, devia
ter mais de setenta anos, o que na verdade seria de
supor de um professor reformado; mas na sua pre
sença - e especialmente quando ele falava - não
só tal não parecia, como até se tornava inacreditável:
com a sua dialéctica e a sua teimosia teria podido
substituir dez oradores parlamentares e, com a sua
capacidade de entusiasmo, meia dúzia de estudantes
liceais. À mesa encontrava-se também um escritor, o
doutor Doblinger. É sabido que os escritores se encon
tram por toda a parte. Este, como todos os literatos,
não gostava que o tratassem com o título; essa gente
imagina que o brilho do seu nome é suficiente e que,
portanto, não precisa de título para nada.
- Ela tem razão, tem toda a razão! - gritou o
professor de forma incisiva e dirigindo-se à dona do
restaurante, que neste caso mostrava mais paciência
que verdadeiramente conformidade com as suas
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opiniões. - Ela tem absolutamente razão! (ele refe
ria-se à ruiva das calças) Só o que é extraordinário é
que faz o homem. A mulher tem de lho exigir. Seja
o que for: seja jogar o boxe ou poetar ou mostrar
habilidades de prestidigitador. Mas o que tem de ser
é extraordinário. Pois em tudo o que de importante se
consegue, o que está em jogo é ... só a mulher, só a
mulher, mais nada, absolutamente mais nada. Não
há outros ideais. Podem-me dizer o que quiserem!
Não é verdade, senhor engenheiro? A mulher está
por detrás de cada objectivo, e mais nada!
- Dê-me licença, senhor professor, - disse o
doutor Dêiblinger com ar ponderado - mas tenho
de fazer um reparo e aduzir contra isso um argu
mento ...
- De maneira nenhuma, de maneira nenhuma!
- interrompeu o professor com veemência, levan-
tando, num movimento rápido, a cabecinha calva,
como uma toninha acima da água. - Para mim não
há argumentos nem reparos! Aqui a verdade é bem
evidente. É só preciso querer vê-la ...
Enquanto o doutor Doblinger, perante uma tal
dialéctica, se calava imediatamente, tornou-se notório
que o noivo e apicultor (com o seu fato de boa quali
dade e que não assentava bem) mais ainda se ensimes
mou. Deve, aliás, salientar-se que muito abonou o
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mérito do primeiro-secretário Kratki-Baschik o facto
de as suas artes terem dado origem a uma conversa
sobre o «extraordinário» e sobre obras extraordinárias!
Claro que o professor gostava de extrair de tudo o
aspecto fundamental. Com Anton Rieger era outra
coisa. Durante a sessão tinha observado de forma
penetrante, justamente como só os técnicos sabem:
e conseguira, só para si, descobrir três dos truques e
reconstruí-los em todos os seus pormenores. Mas não
disse nada. O engenheiro Rieger quase nunca dizia
nada.
Entretanto o professor já tinha saltado de novo
do que acabava de declarar de forma tão apodíctica
e passara para o meramente ditirâmbico:
- Não a viu? Ela estava no espectáculo! Senhor
engenheiro: só lhe digo, uma mulher magnífica! A
mulher mais bonita que já vi! Na terceira mesa da
esquerda . . .
Até este ponto chegou a conversa. Depois fez-se
um pouco de silêncio. O apicultor estava visivel
mente absorto e metido consigo mesmo. Sabe-se lá
por que regiões da fantasia o pobre rapaz se arrastava!
A sua ruiva afastava dele a vista, não lhe concedendo
sequer um olhar. Estava excitada (talvez devido às
conversas do professor) e ia de vento em popa, com
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a proa bem levantada, à volta da qual, aliás, não ha
via ondulação; era a própria proa do navio do seu
futuro que paradoxalmente ondeava.
Pelas duas portas escancaradas do restaurante não
entrava fresco nenhum. A noite continuava quente.
Quando o primeiro relâmpago fuzilou, não caíra
ainda um pingo de chuva e mal se levantara sopro de
vento que lá dentro se fizesse sentir em qualquer cor
rente de ar. Mas ao clarão azulado seguiu-se quase
imediatamente um forte trovão.
Ao mesmo tempo entrou na sala da frente, que,
não contando as pessoas sentadas à mesa do dono,
estava vazia, um cliente tardio. Era um homem bem
vestido, de rosto largo e liso, no qual - como logo
se viu, especialmente depois de ele ter tirado o cha
péu - os olhos se situavam em posição algo oblí
qua, sob uma fronte que se podia dizer espaçosa.
O novo cliente perguntou de forma delicada e
numa voz baixa se, apesar da hora tardia, ainda lhe
poderiam servir alguma coisa de comer, mesmo que
fosse só um pouco de queijo e manteiga. Amável, a
dona do restaurante atravessou lesta a sala, dirigindo
-se ao balcão, e o hóspede instalou-se na mesa vizinha.
Para beber pediu unicamente soda e sumo de maçã.
Mas, como acontece quando alguém chega tar
de a um restaurante onde só já estão poucas pessoas
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sentadas num grupo: facilmente se dirige a palavra
de mesa para mesa. A conversa voltara, do ponto em
que antes a deixámos, em virtude de qualquer expres
são ocasional, ao Kratki-Baschik; este tema pareceu
interessar o novo freguês, se bem que apenas aciden
talmente; em todo o caso, era evidente que ele se
guia a conversa, em que agora participava também a
ruiva, que por algum tempo observou o estranho,
com interesse até e nem sequer discretamente, será
preciso dizer: ela observou-o de forma absolutamente
notória. Inopinadamente foi ele introduzido na con
versa pela própria dona do restaurante: esta acrescen
tou, virada para o novo cliente, alguns esclarecimentos
sobre a sessão que nessa noite ali se realizara - da
qual justamente se estava a falar - e também sobre
a excelência dos números apresentados. A dona do
restaurante perguntou então ao recém-chegado, que
se preparava para responder, se não queria vir jun
tar-se ao grupo.
Aquele aceitou o convite e veio com o copo sen
tar-se à mesa; a dona do restaurante contou-lhe ain
da, com grandes louvores, mais algumas habilidades
do secretário. E indicou nessa altura o seu nome e
condição.
- Sim, - disse o recém-chegado - eu conhe
ço-o. Um óptimo diletante.
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- Bem ... diletante ... - disse a dona do restau
rante, rindo - quem me dera ser capaz de fazer só a
vigésima parte!
- Sim, sim - disse o estranho - é muito bom,
o Blahoutek, entre os amadores um dos melhores.
- O senhor é talvez desse ramo? - perguntou
a jovem dona do restaurante, dessa vez vivamente.
- Sim, sim - respondeu o estranho.
- E em que é que consiste a diferença, pode di-
zer-me? Qual é a diferença fundamental em relação
a um amador como o senhor secretário Blahoutek?
- Bem ... os diletantes apresentam muitas vezes
truques excelentes, mesmo criados por eles próprios,
mas falta-lhes naturalmente a formação técnica ao
mais alto nível, a verdadeira capacidade.
- Ah! O senhor é artista?
- Sou - disse o desconhecido.
- Que pena o senhor secretário ter levado todos
os instrumentos! - gritou a dona do restaurante, di
vertida.- Senão podíamos pedir-lhe algum empres
tado e o senhor talvez tivesse a amabilidade de nos
apresentar um número interessante de ilusionismo!
- Para isso nem sempre são precisos instru
mentos - disse o estranho despreocupadamente e
com um ar de indiferença.
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- O senhor vem agora de algum outro lado, dum
outro restaurante ou café aqui perto? - perguntou
Elly com um ar afável.
- Não - disse o cliente. - Estive até agora
sozinho em casa.
- O quê! - exclamou a dona do restaurante.
- E só às onze horas é que saiu?
- É verdade - respondeu ele. No espírito do
doutor Doblinger fez-se luz... e fez-se através do
nariz (este pertence ao «métier» dos escritores e tem
uma preparação técnica muito especial). No momen
to em que o estranho se sentara à mesa, o escritor
vira patentear-se de súbito ao seu olhar interior, com
uma intensidade avassaladora e mesmo com uma
espécie de saudade fina e aguda, a sua casa sossegada
e vazia perto dali: as poltronas bem tapadas por causa
das traças e um grande guarda-fato reluzente, que se
fechava com a maior perfeição e onde estavam guar
dados os tapetes: daí saía, porém, de vez em quando,
para a relativa frescura do aposento, um hálito ténue
de cânfora e naftalina.
Não era de admirar, já que se estava no pino do
Verão.
Por toda a parte pairava este odor nas casas, que
se tinham virado lá bem para o fundo do seu interior,
afastando-se da rua barulhenta e escaldante. Era quase
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como se esse aroma quisesse transmitir delicada
mente uma espécie de evangelho do refúgio íntimo,
um convite para nele se penetrar ainda mais profun
damente.
Este estranho vinha também de uma dessas casas
solitárias. Era notório o cheiro da solidão.
Entretanto, tinham feito dois ou três relâmpagos
e outros tantos trovões, ainda que mais fracos que o
primeiro; e só então se ouviu cair a chuva, cujo mur
múrio em breve cessou. Mas da rua veio um ar fresco.
Franz Blauensteiner, o dono do restaurante, não
desistia facilmente de qualquer propósito; e hoje que
ria ver se o artista desconhecido seria capaz de supe
rar o secretário ... ainda por cima sem instrumentos.
Perguntou-lhe, portanto, do que é que ele precisava
para executar um número de prestidigitação.
- O mais fácil de arranjar será com certeza al
gumas cartas velhas e uma mão-cheia de pregos; seis
a oito chegam. As cartas podem ser já muito velhas
e sujas. Seria mesmo melhor assim, porque depois
caem todas para o chão.
O dono do restaurante trouxe as duas coisas. E a
expectativa de todos os circunstantes elevou-se ao
máximo. O estranho, que se encontrava no extremo
da mesa, não muito longe da parede forrada de ma
deira, entregou as cartas a Blauensteiner e à mulher,
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pedindo-lhes com um ar despreocupado que esco
lhessem uma sem mais ninguém ver, fixando-a bem,
mas deixando-a no baralho, e pusessem este diante
dele, em cima da mesa.
Depois de assim o terem feito e de o estranho ter
entrementes pago a sua pequena despesa, este pegou
nos pregos com a mão esquerda e nas cartas com a
direita e lançou, ou antes, arremessou as duas coisas
ao mesmo tempo contra a madeira que revestia a
parede. A chusma das cartas caiu e resvalou para to
dos os lados, para cima da mesa, para os joelhos das
pessoas sentadas, para o chão, e ao mesmo tempo
ouviu-se o bater dos pregos espalhados. Logo a se
guir a dona do restaurante deu um grito: mesmo na
sua frente, atravessada por um prego que a prendia
à parede e com o anverso virado para fora, estava a
carta que ela escolhera de acordo com o marido: era
o dez de espadas. Ninguém disse uma palavra. O es
tranho sorriu com afabilidade, levantou-se, pegou no
chapéu e saiu do restaurante, fazendo uma ligeira
vénia. A ruiva, agora de olhos esbugalhados e sentada
na ponta da cadeira, como que flutuava na sua di
recção, mesmo depois de ele já ter desaparecido.
Contudo, meio minuto depois da saída do es
tranho aconteceu algo ainda mais surpreendente. O
apicultor, despertando subitamente de uma sombria
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meditação, saiu também a correr, deixando o cha
péu pendurado no cabide.
Ele mesmo nos contou mais tarde que conseguira
realmente avistar ainda o estranho, no momento em
que este já ia a desaparecer na rua, e alcançá-lo numa
corrida; e referiu o que aquele ripostara às palavras
tartamudeadas que lhe havia dirigido:
- Meu caro senhor! As grandes artes não se
aprendem para qualquer finalidade especial; e muito
menos para conquistar uma rapariga; a finalidade
mata a arte. Fique sabendo!
Entretanto, nós continuávamos sentados, sem o
artista e sem o apicultor, que toda a gente esperava
regressasse sem demora. Mas tal não aconteceu. E em
breve surgiram as primeiras conjecturas e mesmo já
expressões de consolação ou, mais exactamente, de
apaziguamento, dirigidas à ruiva, que apresentava
evidentes sinais daquela cólera que facilmente nos
assalta quando chocamos contra os limites ténues,
mas inexoráveis, do nosso poder.
- Naturalmente que ele vem, - disse o profes
sor - deve estar aí a aparecer.
Mas realmente não foi muito natural o que se pas
sou. A pouco e pouco a situação começou a tornar-se
crítica e a converter-se numa ameaça de humilhação
para a ruiva (como sempre acontecia quando qual-
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quer outra pessoa se encontrava numa posição difí
cil, o engenheiro Rieger ficou com os olhos escuros
repletos de tristeza). Porém, pouco depois das pala
vras do professor tocou o telefone.
- Deve ser ele - disse o dr. Winkler.
O dono do restaurante foi atender. Era ele, com
efeito. A ruiva desapareceu na cabina. Durante a sua
longa conversa ninguém disse nada; era como se tudo
estivesse por um fio, incluindo a teoria do professor
sobre o curso natural das coisas humanas. Foi muito
longo o telefonema, mas finalmente a ruiva apareceu.
Ninguém deixou de notar a sua palidez e toda a
gente reparou também que ela agora nem sequer era
bonita e tinha mesmo um ar diferente do que pouco
antes exibia. Agora não flutuava. No entanto, a sua
cólera fez rebentar o espartilho do prestígio e o ânimo
quebrou-se-lhe perante os olhos de todos.
- É incrível! - gritou ela, ainda junto da cabina,
antes de voltar para a mesa. - Este idiota tem o des
plante de me dizer que não me quer ver mais, que já
não quer saber de mim!!
Mesmo o professor não conseguiu articular qual
quer palavra de consolação (que em todo o caso teria
ainda a sua razão de ser) e retirou-se da cena, afirn
dando-se no silêncio. A ruiva deixou o chapéu do
noivo pendurado no cabide e saiu com ares de quem
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não levava desejo de voltar (e com efeito não mais
apareceu no restaurante). Blauensteiner procurou de
novo, e mais uma vez sem êxito, tirar com a mão o
prego que estava cravado na madeira da parede, se
gurando o dez de espadas: era desagradável para to
dos ter a carta ali diante dos olhos. Por fim o dono
do restaurante foi buscar um pequeno alicate e com
ele conseguiu arrancar o prego.
- É bem feito! - disse Elly Blauensteiner, de
pois da saída da ruiva.
- Ele não a deixa - repetiu o professor, mas as
suas palavras não encontraram eco.
- Ele já não quer saber dela - replicou Rieger.
Falava pouco, é certo, mas, quando falava, era como
um livro aberto.
Nos dias que se seguiram muito se discorreu so
bre aquele dez de espadas pregado na parede - que
de alguma forma terá sido uma espécie de advertência
fatídica e só por isso, decerto, nele se voltou a falar
tantas vezes, até desse modo se diluir. Com as gran
des artes também assim acontece; há que as ir roendo
a pouco e pouco com os pequenos maxilares, até que
se desfaçam e dispensem assim a explicação; passa-se
aqui, ainda que em escala miniatural, o mesmo que
com um milagre. As artes e os milagres não podem
permanecer na vida; tornar-se-iam insuportáveis e
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seriam por fim uma mancha coagulada de um outro
mundo neste mundo, que tudo sufocaria. No nosso
caso, já noite avançada e depois de a maldita carta
ter finalmente desaparecido da parede, Franz Blauen
steiner ficou durante bastante tempo a olhar em silên
cio para a mesa, até que por último exclamou:
- Não há dúvida que era... um outro Kratki-
-Baschik.
60
PAG INAÇÃO : RITA LYNCE
ABRIL 2004
IMPRESSO NA GUIDE - ARTES GRÁFICAS, LDA.
RUA HERÓIS DE CHAIMlTE, 14
2675-374 ODIVELAS