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INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

VASCO MARIZ

DOM PEDRO II E RICHARD WAGNER

MARIZ, Vasco. DOM PEDRO II E RICHARD WAGNER. R.


IHGB, Rio de Janeiro, a. 175 (465):49-58, out./dez. 2014

Rio de Janeiro
out./dez. 2014
Dom Pedro II e Richard Wagner

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DOM PEDRO II E RICHARD WAGNER


Vasco Mariz1

O interesse de D. Pedro II pela música e a sua sensibilidade musical são


bem conhecidos e louvados. Suas atividades em favor da música e dos mú-
sicos brasileiros são mencionadas com frequência na história da música de
nosso país. Foram dezenas os músicos beneficiados pelo seu incentivo pes-
soal, que se expressou de diversas maneiras: comparecimento a concertos,
auxílios financeiros específicos, concessão de bolsas de estudos por longo
prazo e apoio político e cultural oferecido a artistas nacionais no Brasil e
no exterior, por meio de cartas de recomendação, de condecorações e outras
provas de apreço artístico que muito beneficiaram os prestigiados.
E esse mecenato se concretizou não somente em favor de indivíduos
talentosos, mas também a instituições musicais cujo êxito continuado se deve
em parte a subvenções recebidas do Imperador e à sua presença constante nas
atividades culturais que desenvolviam. No Rio de Janeiro, D. Pedro assistia
amiúde aos espetáculos da Companhia de Ópera Nacional de D. José Amat,
aos concertos do Clube Mozart e do Clube Beethoven e da Sociedade de
Concertos Clássicos.
Logo que assumiu as suas funções, D.Pedro II nomeou Francisco Ma-
nuel da Silva, o autor do Hino Nacional, mestre-compositor da Imperial Câ-
mara. Aliás, D. Pedro deu-lhe mão forte para que a Assembleia Legislativa
do Império criasse uma importante escola de música no Rio de Janeiro, o
conservatório. Em 1863, o Imperador teve papel importante no encaminha-
mento da carreira de Carlos Gomes. D.Pedro deu-lhe uma pensão do seu
próprio bolso para estudar na Europa. Lembro, porém, que o monarca, admi-
rador de Wagner, desejava enviar o compositor para a Alemanha e não para
Itália. Carlos Gomes, formado inteiramente na escola italiana, ficou assus-
tado e utilizou todos os intermediários possíveis para mudar a bolsa para a
Itália. Aliás, no decorrer da carreira de Carlos Gomes, D. Pedro II teve várias
oportunidades de premiá-lo e de socorrê-lo financeiramente.
Outros compositores brasileiros de mérito foram auxiliados por D.
Pedro II, como, por exemplo, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald e João
Gomes de Araújo. Miguez viajou para a Europa em 1882 e levou carta de
recomendação de D. Pedro II para Ambroise Thomas, então diretor do Con-
servatório de Paris e famoso compositor de óperas da época. Outro músico
consideravelmente beneficiado pelo Imperador foi o pianista e compositor
Henrique Oswald, que conheceu pessoalmente em 1871, em Florença, onde
1 –1Sócio emérito do IHGB.

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ele residia. D. Pedro II lá fora visitar a “Exposição Beatrice”pelo 550º aniver-


sário de Dante Alighieri. Na ocasião foi organizado um recital do jovem pia-
nista Henrique Oswald em sua honra, o que lhe acabou valendo uma pensão.
Outro compositor bafejado pela generosidade de D. Pedro II foi o pau-
lista de Pindamonhangaba, João Gomes de Araújo, hoje quase esquecido. No
entanto, ele parece ter sido o único compositor brasileiro que teve a honra da
presença do soberano brasileiro na representação de uma ópera no exterior, a
Carmosina, encenada no Teatro dal Verme, de Milão a 1º de maio de 1888, e
que por sinal foi um sucesso. Mas houve também casos em que o Imperador
suspendeu uma bolsa de estudos que havia anteriormente concedido. Foi o
que sucedeu com o talentoso Henrique Alves de Mesquita, bom compositor
de óperas que estudava em Paris como bolsista de Pedro II desde 1857. Me-
teu-se em complicações amorosas e acabou preso em Paris e com escândalo.
O Imperador, sempre cioso da moral, mandou interromper-lhe a bolsa de
estudos, apesar do relativo sucesso que o compositor vinha obtendo em Paris
com a sua ópera cômica La Nuit au Chateau.

Em 1988, o compositor paulista Osvaldo Lacerda escre­veu-me indagan-
do se realmente teria Wagner dedicado a ópera Tristão e Isol­da a D. Pedro II.
O músico paulistano estava intrigado com o fato de que tivera em sua posse
uma partitura do Tristão em antiga edição italiana da editora Ricordi, em
formato grande e pesadíssimo. Essa edição continha na página seguinte ao
título da obra uma dedicatória “A sua Majestade D. Pedro II, Imperador do
Brasil” e o brasão imperial do Brasil, ambos impressos. Não havia assinatura
na dedicatória, nem constava o nome de Richard Wagner. Aquela consulta
ocorreu nos idos de 1950 e, em 1967, Oswaldo Lacerda presenteou essa edi-
ção e mais outras partituras a uma associação de amadores de ópera em São
Paulo. Mas a dúvida ficou na memória do compositor, que então pedia minha
opinião a respeito. Quanto a mim, recordava-me vagamente de leitura da
autobiografia de Wagner, em edição argentina, anos atrás, que mencionava o
imperador brasileiro.
Havia, porém, uma lenda nos termos que passo a relatar: D. Pedro II,
através do cônsul brasileiro em Leipzig, en­comendara ao grande compositor
alemão, que ele já admirava há muito, uma ópera de cunho latino, de execu-
ção não muito difícil, a fim de poder ser ence­nada no Rio de Janeiro. Wag-
ner teria aceito a incumbência e mudou-se para Veneza, mas à medida que
compunha a partitura, a ópe­ra tornou-se tão complexa que Wagner decidiu
escrever ao cônsul brasileiro explicando o problema e duvidando da possibi-
lidade de um teatro sul-americano poder encená-la na época. Wagner, sempre

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tão avaro em questões de dinheiro, teria até oferecido a devolução da quantia


adiantada, mas D. Pedro II galantemente lhe respondera que estava contente
por havê-Io estimulado a criar uma obra importante, que esperava algum dia
ter a oportunidade de ouvir. Aí acabava a agradável lenda, mas a verdade era
bem outra. Eis o que pude desencavar.
A primeira fonte a que recorri foi a já citada autobio­grafia de Wagner.
Nela há duas páginas em que o mestre conta suas rela­ções com o Brasil, já
temos um esclarecimento importante. A tradução é minha do texto francês de
Ma Vie, de Richard Wagner, terceiro volume, edição Plon, de Paris, páginas
164 e 165. Ouçamos o compositor:
Na mesma época, recebi uma carta surpreendente de um indivíduo chamado
Ferreiro, que pretendia ser cônsul do Brasil em Leipzig. Esse cor­respondente
me anunciava que o Imperador do Brasil tinha uma grande sim­patia pela mi-
nha música e, como expressei algumas dúvidas na minha resposta, ele me
explicou que seu soberano apreciava a língua alemã e desejava muito rece-
ber a minha visita ao Rio de Janeiro, onde eu mesmo poderia dirigir minhas
óperas. Somente que lá só se cantava em italiano e seria então necessá­rio
fazer traduzir os textos, mas isso seria coisa fácil e mesmo vantajosa para
meus poemas. O que é curioso é que essa proposta me agradou surpreenden­
temente: parecia-me que eu conseguiria sem dificuldade compor um poema
apaixonado que cairia muito bem em italiano, e eu então pensei com mais
amor na história de Tristão e Isolda.
Para começar e para pôr à prova a gene­rosa simpatia do Imperador do Bra-
sil, expedi ao sr. Ferreiro três arranjos para piano, ricamente encadernados,
das minhas três óperas mais antigas, e esperei longamente a agradável carta
anunciando-me a recepção brilhante que haviam feito àquelas partituras no
Rio de Janeiro. Mas nunca mais ouvi falar nem das minhas músicas nem do
Imperador do Brasil, nem de seu cônsul Ferreiro.
E prossegue Wagner em sua autobiografia:
Semper (famoso arquiteto da época, construtor da belíssima Ópera de Dres-
den, a segunda da Europa em ta­manho) teve também complicações arquitetu-
rais com aquele país dos trópi­cos. A construção de uma nova ópera tinha sido
anunciada no Rio de Janeiro com a abertura de um concurso, e meu amigo
experimentou a sua chance, de­senhando planos magníficos que nos interes-
saram muito. O dr. Wille conside­rava uma novidade construir um teatro para
um público de negros. Não sei se as relações de Semper com o Brasil foram
mais satisfatórias do que as minhas, mas o certo é que ele lá não construiu
teatro algum.
Nestas páginas da autobiografia de Wagner ficam esclarecidos alguns
fatos: 1) D. Pedro II não encomendou ópera alguma a Wagner, nem escolheu

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o tema de Tristão e Isolda, que já interessava o compositor com anteriori-


dade. Entretanto, a carta do cônsul Ferreiro “agradou surpreendentemente”
a Wagner, o qual pas­sou a pensar “com mais amor do que nunca” naquela
história romântica, tema não-germânico, um “poema apaixonado que cairia
muito bem em italiano”. 2. Portanto, indiretamente D. Pedro II, através das
cartas tão ousadas e irresponsá­veis do dito cônsul Ferreiro, muito contribuiu
para que o músico alemão se deci­disse a iniciar a composição da ópera Tristão
e Isolda. 3. Wagner aceitou plena­mente a ideia de vir apresentar essa ópera, e
talvez outras mais, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro.
Nessa época, Wagner estava exilado em Zurique, após haver-se compro­
metido em tramas políticas republicanas na Alemanha, e portanto teria tido
tempo para passar alguns meses no Brasil e aqui arrecadar polpuda renda
com o patrocínio do Imperador. Os meandros da verdade são curiosos. Antes
de tudo, convém sublinhar que, de acordo com aquele parágrafo da autobio-
grafia alusivo ao arquiteto Gottfried Semper, o compositor tinha uma ideia
muito vaga do Rio de Janeiro e do Brasil. Wagner e seu amigo Dr. Wille
julgavam que o arquiteto Semper iria “cons­truir um teatro para um público
negro”. Talvez até ele pensasse que o Im­perador também fosse negro! Mas
mesmo assim, a ideia de vir ao Brasil não lhe pareceu descabida e o plano
o interessou vivamente durante vários meses como se depreende pelo texto
da autobiografia. O curioso em tudo isso é que Wagner dificilmente encon-
traria no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em pleno regime da escravidão, a
presença de negros na plateia para aplaudi-lo... Possivelmente veria alguns
funcionários do teatro, que eram negros ou mulatos. Certamente ficaria admi­
rado com o elevado número de espetáculos de ópera que eram montados
regularmente no Rio de Janeiro.
As relações entre D. Pedro II e Wagner eram praticamente desconheci­
das no Brasil até que o sr. Thales Martins, em artigo em O Jornal, do Rio de
Janeiro, de 4 de março de 1923, comentou o espetáculo inaugural do Teatro
de Bayreuth, com especial referência ao nosso Imperador. Eis alguns trechos
do citado artigo:
No dia 6 de agosto chegava o rei Luís da Baviera para assis­tir aos ensaios
gerais. Na véspera da estréia, dia 13 de agosto de 1876, a cidade regurgitava
de peregrinos vindos de todas as regiões da terra. Um trem espe­cial conduzia
o Imperador da Alemanha Guilherme I e em outro vagão levava nosso D.
Pedro, segundo conta Glasenapp em sua biografia de Wagner e se mencio­na
na correspondência para o Jornal do Comércio de agosto e setembro de 1876.
( ... ) Na fila reservada aos príncipes (Fürstengalerie) viam-se os impera­
dores da Alemanha e do Brasil, representantes diplomáticos até do sultão da
Turquia e do quediva do Egito.

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Esclareço que D. Pedro assistiu somente ao Ouro do Reno, a primeira


ópera da famosa tetralogia dos Niebelungen, partindo logo depois para a Di-
namarca.
Recordo ainda que o Imperador lá chegava dos Estados Unidos, onde
fora assistir aos festejos do centenário da independência americana. Ele fora
espe­cialmente à Alemanha, desta vez para assistir à abertura do “Festspie-
lhaus” da Bayreuth. Lá certamente deve ter conversado com o compositor,
que já conhecera pessoal­mente em Berlim cinco anos antes. Com tantas per-
sonalidades presentes e a natural ceIeuma da inauguração do teatro, dificil-
mente terá havido oportunidade para D. Pedro II e Wagner trocarem mais do
que rápidas palavras de cumprimentos formais. Aliás, o musi­cólogo francês
A. Julien, em sua obra Richard Wagner, sa Vie et ses Oeuvres, escreveu que o
Imperador brasileiro teria contribuído financeiramente para a construção do
teatro de Bayreuth. Por isso, na bela série para televisão sobre a vida do com-
positor, realizada em Londres, em 1982, com o ator Richard Burton no papel
título, D. Pedro II foi mencionado duas vezes: uma em relação a Tristão e
outra por ocasião da inauguração do teatro de Bayreuth. Assim, o vínculo
entre o compositor e D.Pedro II ficou registrado em nível mundial.
Analisando a correspondência do monarca, ela revela várias vezes refe-
rências ao compositor alemão, sobretudo nas fases alusivas a suas viagens à
Europa. Os dois se teriam encontrado pela primeira vez em 1871, em Berlim,
em casa da condessa de Schleinitz, grande dama berlinense que mantinha
famoso salão na época. Não há, porém, pormenores desse en­contro, nem se
sabe com certeza se ocorreu mesmo, além de uma simples re­ferência no livro
do embaixador Heitor Lira, autor digno de fé. Lira menciona ainda que, em
carta sem data escrita no Cairo, D. Pedro II manifestava o propósito de ouvir
a “Tetralogia” em Berlim. Em outra carta, datada de Florença, lamentava não
poder ouvir As Valquírias em Berlim, mas ficaria satisfeito com assistir aos
Mes­tres Cantores. O interesse do Imperador por Wagner se mantinha muito
vivo em carta de 7 de agosto de 1876 a seu amigo Gobineau, ex-ministro
residente da França no Rio de Janeiro, na qual ele o considerava como “o
músico do futuro”. Dois anos depois, a 5 de agosto de 1878, voltava a escre­
ver àquele amigo francês de maneira queixosa: “Nada de Tannhauser, nem
mesmo o que ouvimos juntos em Estocolmo.” Em outra carta, desta vez de
Petrópolis, a 24 de fevereiro de 1879, o monarca dizia: “Acabo de receber o
jornal de Bayreuth, mas não sei quando cantarão o Parsifal. Talvez o Franz
Liszt o possa informar, se você o encontrar em casa do amável cardeal Ho-
henlohe.” E ainda outra carta do Rio de Janeiro de 15 de junho de 1879: “Que
notícias artísticas me dá? O que sabe do Parsifal?”

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O mesmo Heitor Lira, em sua biografia do Imperador (segundo volume,


1939, página 381), cita mais uma carta enviada a Gobineau, de 1881, que é
bem eloquente: “Se for a Bayreuth ouvir o Parsifal, sente-se na primeira fila
bem perto do palco, de onde ouvi o Rheingold, e pense no meu pesar por não
estar também aí.” E a preocupação de D. Pedro com a estreia de Parsifal
con­tinua: em carta datada de Petrópolis, a 7 de fevereiro de 1881, ele indaga:
“Quando escrever a Wagner, lembre-lhe a minha curta estada em Bayreuth.
Diga-lhe que estou ansioso por ler o que dizem da execução do Parsifal.”
Ou­tra vez escrevia o Imperador ao Conde Gobineau em novembro de 1881:
“Aguardo com impaciência o que me vai dizer de Bayreuth, onde certa­mente
terá expressado a Wagner a estima em que tenho o seu talento.”
Na realidade, nós teríamos de esperar até agosto de 1943, quando o sr.
Ernesto Feder publicou, em quatro artigos em O Jornal do Commercio, do
Rio de Janeiro, um exaustivo e impor­tante estudo sobre as relações entre
Wagner e D. Pedro II. Baseou-se o pesquisador em artigo do sr. C. Huns-
che, na revista do Instituto Ibero-Americano de Berlim, de outubro de 1939,
caderno 3. O sr. Feder chegou à conclusão de que D. Pedro jamais teve co-
nhecimento da ini­ciativa do falso cônsul brasileiro em Leipzig. Conclusão
errada portanto.
Primeiramente o sr. Ferreiro não era Ferreiro e sim Ferreira, o dr. Er­
nesto Ferreira França, filho do Conselheiro do mesmo nome, ex-ministro das
Relações Exteriores do Império, o qual estava na Alemanha para estudar Di-
reito e tentava obter um leitorado em universidade alemã. Ele escreveu nada
menos de seis cartas a Wagner e tentou conseguir apoio do compositor para
obter um posto na universidade de Zurique, onde morava o maestro na época.
Hunsche publicou as cartas de Ferreira e uma outra de Wagner, ao passo que
Feder reproduziu alguns trechos, onde aparece evidente a jogada esperta do
jovem brasileiro de usar a influência de Wagner em favor de seu objetivo, que
era arranjar uma leitoria em Zurique.
O que me parece bem mais importante é a citação de uma carta de Wag-
ner a Franz Liszt, datada de 8 de maio de 1857, onde se lê: “O Imperador
do Brasil acaba de convidar-me para ir ao Rio de Janeiro. Há promessas de
maravilhas. Assim, vou para o Rio de Janeiro em vez de Weimar!” Pouco
depois, a 26 de junho, escrevia nova carta a Liszt: “Tenho um projeto interes-
sante acerca de Tristão e Isolda. Penso na versão para o ita­liano e oferecerei a
estreia ao Teatro do Rio de Janeiro, onde provavelmente será precedido pelo
Tannhauser. Vou dedicá-la ao Imperador do Brasil, que ultimamente recebeu
exemplares de minhas obras mais antigas.” Depois dessa carta, não podemos
mais ter dúvidas.

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Entretanto, passaram-se os meses e Wagner nada mais ouviu do Brasil.


A ópera ficou pronta e sua primeira representação ocorreu em Munique em
1865, isto é, sete anos depois da correspondência com o suposto “cônsul”
Ferreiro. Mas já no final de 1857, escrevia o compositor em sua autobiogra-
fia: “com sorriso singular pensei na minha veleidade de escrever com esta
obra uma espécie de ópera italiana. Minha inquietação por não ouvir nada
do Brasil foi se tornando dia a dia menor”. Por aí constatamos que, du­rante
meses, Wagner sentiu considerável “inquietação” na esperança de rece­ber
notícias de D. Pedro II. Essa inquietação tinha uma ligação com a sua própria
situação financeira, bastante abalada ainda no período de Zurique. A viagem
ao Brasil vinha a calhar mesmo e ele esperava maravilhas de D. Pedro II.
Enganou-se.
Parece-me importante frisar que D. Pedro no Brasil jamais ouvira uma
única nota das óperas de Wagner, pois na época não havia discos. Ele estava
diretamente ligado ao mundo alemão porque sua mãe era austríaca e falavam
alemão desde criança. D. Pedro assinava vários jornais europeus, inclusive
alemães, e estava ao corrente de tudo o que se dizia sobre Wagner, que em
1852 ainda era um compositor muito promissor, mas ainda não tão famoso
mundialmente, como seria no fim do século. É natural, pois, que ele desejasse
consultar algum músico de sua confiança, talvez Francisco Manoel, grande
compositor e diretor do Conservatório, antes de responder a Wagner. Não
chegou a fazê-lo, como sabemos. E hoje podemos imaginar que admirável
página da histó­ria geral da música teria sido a viagem de Wagner ao Rio de
Janeiro!
O longo estudo de Hunsche é bastante informativo e começa por corri­
gir, aliás erroneamente, que Ferreira França era cônsul do Brasil em Dresden
e não em Leipzig. Na realidade, não havia consulado do Brasil em Leip­zig,
nem em Dresden. Hunsche reproduziu a citada carta de Wagner a Liszt na
qual o compositor manifesta sua intenção de dedicar o Tristão ao Impera­dor
brasileiro e menciona que o trabalho lhe tomaria ainda cerca de dois anos e
espera­va utilizar cantores italianos. Ficava a aguardar o convite formal de D.
Pedro II para visitar o Brasil, convite que nunca lhe chegou às mãos.
Já o sr. Ernesto Feder, em outro artigo, agora em O Diário de Notícias,
do Rio de Janeiro, de 7 de maio de 1944, afirma que a carta e as partituras en-
viadas por Wagner não teriam chegado às mãos do Imperador. Mais uma vez
enganou-se. Quem, no entanto, nos deu a última palavra foi o dr. Américo
Jacobina Lacombe, em artigo na Revista Brasileira (vol. 9, páginas 137-141,
de 1943). O ex-presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro des-
cobriu entre os papéis pertencentes ao mordomo da Casa Imperial, o conse-
lheiro Paulo Barbosa da Silva, um bilhete a lápis de D. Pedro II àquele alto

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funcionário dizendo o seguinte: “É preciso responder ao Ricardo Wagner que


recebi as suas óperas e o seu livro (?) e que, agradecen­do-lhe a oferta, não
posso desde já manifestar o apreço que faço de seus tra­balhos, pois que ainda
não houve tempo de examiná-los. Quem me mandou a carta de Wagner e os
livros foi o filho de Ernesto França, que estava em Dresden.”
Julgava Lacombe que, “conhecida a minúcia e a atividade proverbiais
do mordomo, a resposta deve ter sido expedida”. Entretanto, se assim foi fei-
to, nada chegou às mãos do compositor, que aguardava ansioso uma resposta
do Brasil. Ficou claro também que D. Pedro estava a par da estada de Ferreira
França na Alemanha, onde se formara em Direito pela Universidade de Lei-
pzig e passou temporadas em Dresden e Jena, local de onde foram datadas
algumas de suas cartas a Wagner.
Agora é a minha vez de especular: não se tratava de uma crise nos meios
operísticos do Rio de Janeiro, pois justamente nesse período de 1857 a 1863
a companhia de ópera nacional de D. José Amat estava no auge e ence­nou
nada menos de 75 óperas no Rio deJaneiro. Américo Jacobina Lacombe ar-
rematou dizendo que
terão sido provavelmente temores de incompreensão por parte do públi­co,
acostumado ao gênero italiano e que talvez não recebesse cordialmente um
grande inovador, o que aliás nada teria de estranhável, dada a reação desperta­
da nos grandes centros musicais da Europa.
Podemos então concluir que não há dúvida que D. Pedro II efetivamen­te
recebeu a carta e as partituras enviadas por Wagner das mãos do seu ex-mi­
nistro Ernesto França, pai do jovem brasileiro que iniciara os contatos com o
compositor. O monarca rabiscou uma interlocutória ao mordomo do Paço e
resolveu pensar no assunto com mais calma. Afinal, ele não entendia profun­
damente do assunto e hesitou diante da notícia das vaias que recebera Wag-
ner em Paris com o seu Tannhauser. É provável também que o Imperador
desejasse deba­ter a possibilidade da vinda do compositor ao Brasil com algu-
ma autoridade musical de sua confiança. Outra eventualidade é que, em en-
trevista posterior com o mordomo, tenham julgado mais prudente dar como
não recebida a mensagem de Wagner. O correio da época era muito precário.
Assim, o Imperador, que sempre foi tão pressuroso em auxiliar artistas de
talento, perdeu uma notável oportunidade de figurar com des­taque na história
da música mundial, mas deixou-a escapar talvez por excesso de prudência ou
por haver sido mal aconselhado.
Finalmente, o dr. Lacombe, em outro artigo mais recente (Jornal do
Commércio, dezembro de 1986), dá crédito à informação de Thales Martins
de que D. Pedro II foi um dos que contribuíram para a construção do Tea-

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tro de Bayreuth. Entretanto, nada pôde oferecer como prova. Pessoalmente,


creio que o Imperador doou mil marcos ouro, que era a quota mínima fixada
aos membros da Sociedade dos Amigos de Richard Wagner para a inaugura-
ção do teatro.
O professor Lacombe julgava, no entanto, que “no arquivo da Casa Im­
perial, hoje no Museu Imperial de Petrópolis, deve estar a carta de Wagner
enviando as partituras das óperas. Onde estará o arquivo do ministro Ernesto
França? Aí estarão as respostas de Wagner ao jovem estudante brasileiro.”
Posso ainda fazer uma última especulação: Sua contribuição financeira
(simbólica apenas) para a construção do teatro de Bayreuth não seria também
uma espécie de penitência? A realidade é que entre 1857 e 1876, data da
inauguração do nosso teatro, a personalidade e o prestígio musical de Wagner
cresceram desmesuradamente, a ponto de tornar-se um dos maiores nomes
mundiais do fim do século XIX. Mas nem por isso nós devemos demonstrar
menor compreensão com a decisão do monarca: afinal, arriscar fazer gastos
consideráveis, com a possibilidade de tudo ter­minar em fracasso e muitos
aborrecimentos?
Finalmente, lembro que, a 19 de setembro de 1883, foi encenada no
Teatro Lírico do Rio de Janeiro (obviamente com o beneplácito imperial) a
ópera Lohengrin cantada em italiano. Os comentários da imprensa carioca na
época levam-me a reavaliar a decisão de D. Pedro II em 1857, 25 anos antes.
O primeiro ato foi fortemente aplaudido. Depois, as “melodias de Wagner
parecem ter fatigado o público, pois ele se manteve muito frio”. Então, pode­
mos concluir: se uma ópera relativamente fácil como o Lohengrin não foi
bem compreendida pelo público carioca em 1883, uma première de Tristão e
Isolda no Rio de Janeiro, nos anos 60, vinte anos antes, teria tido uma aceita-
ção bem mais difícil. Assim, D. Pedro II, como sábio governante, parece ter
agido com prudência, em 1857, ao procrastinar uma resposta afirmativa, ou
até mesmo a deixar sem resposta a carta de Wagner.
O maestro Lutero Rodrigues recorda-se bem de que viu essas partituras
em casa de Lacerda. E agora me pergunto: seria essa partitura em italiano de
Tristão encontrada em São Paulo por Osvaldo Lacerda, com dedicatória e
brasão imperial impressos, uma cortesia especial de Wagner ao Imperador?
Afinal de contas, só mesmo o próprio compositor poderia ter autorizado o
editor a fazer a impres­são daquela dedicatória. Aí está um bom tema para um
pesquisador paciente nos arquivos de Bayreuth, da Casa Riccordi em Milão
e do Museu Imperial de Petrópolis.

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