Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
VASCO MARIZ
Rio de Janeiro
out./dez. 2013
A música no Rio de Janeiro no tempo de D. João VI
235
Logo após o desembarque, foi formado o cortejo real, saindo todos a pé,
lentamente, tomando as atuais ruas 1º de Março e do Rosário até chegarem
à modesta igreja catedral. Os sinos de todas as igrejas da cidade repicavam
alegremente e as ruas do centro da capital estavam pavimentadas de flores,
com tapeçarias e colchas nas janelas das residências.
Uma vez instaladas na catedral todas as pessoas importantes, os músi-
cos interpretaram um Te Deum laudamus e O Beate Sebastiane, em homena-
gem ao patrono da cidade. Lá estava o padre José Maurício, mestre de capela
da catedral, que dirigiu o conjunto de cantores e instrumentistas em bela
exibição de um seleto repertório sacro, o que surpreendeu agradavelmente
o monarca.
penho foi muito louvado pelos viajantes de passagem pelo Rio de Janeiro,
que ressaltaram, sobretudo, “as partes vocais admiravelmente executadas”.
O cargo de organista da Capela Real foi a princípio ocupado pelo padre
José Maurício. Viera com D. João o organista português Antônio José de
Araújo, que logo fez amizade com o sacerdote e ambos conseguiram montar
o complexo órgão que chegara de Portugal. Portanto, não é um exagero afir-
mar que quase tudo o que se fazia na Capela Real nos anos de 1808 a 1810
era organizado, dirigido e até interpretado pelo padre-mestre. Considerando
que havia 81 cerimônias previstas anualmente, em nível de quatro ordens,
pode-se calcular em cerca de cem funções, de maior ou menor grandeza, que
eram realizadas na Capela Real do Rio de Janeiro.
O repertório que habitualmente se interpretava na Capela Real mudou
muito após a chegada da família real e dos artistas italianos. José Maurício
gostava de apresentar um repertório clássico e conservador, mas depois da
chegada da Corte à capital, ele teve de se adaptar ao gosto do novo público,
a quem tinha o dever de agradar. Era uma música brilhante, apropriada para
lisonjear a vaidade dos cantores e o mau gosto do público, o que obviamente
perturbava o clima do ofício divino. De qualquer modo, isso era inelutável e
José Maurício teve de ceder e baixar o nível das obras que eram habitualmen-
te interpretadas na Capela. Foram mestres de capela José Maurício Nunes
Garcia (a partir de 2 de julho de 1798), Marcos Antônio Portugal (a partir de
23 de junho de 1811) e Fortunato Mazziotti (a partir de 4 de julho de 1816).
Os mais bem pagos eram os castrati italianos, sendo que o sopranista Fac-
ciotti ganhava mais do que os mestres de capela. Como escreveu Ayres de
Andrade,
a música de Marcos Portugal tinha de agradar mais. Prestava-se à virtuosida-
de vocal, que era o regalo para os ouvidos do público da época, habituado a
freqüentar o teatro lírico, que não podia dispensar. As composições de José
Maurício não tinham nada disso. Sua grande força estava na grande massa
coral e esta é uma agente de expressão musical que, por sua própria natureza,
é rebelde a piruetas vocais. Por isso a música do padre-mestre há de ter pare-
cido demasiado simplória.2
Acrescentaria que José Maurício era demasiado modesto e até submis-
so. Ele não quis enfrentar e competir com Marcos Portugal e se conformou
com uma posição subalterna. Por isso na relação dos grandes acontecimentos
na Capela Real do Rio de Janeiro a música era sempre de Marcos Portugal.
Assim José Maurício, depois da chegada de Marcos, passou de mestre de ca-
pela que antes tudo decidia, para um mero maestro substituto, que só assumia
3 – FREYCINET, Louis. Voyage autour du monde, Éditions Pillot, Paris, 1825, p. 216.
4 – LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil tomadas duran-
te uma estada de dez anos nesse país”, Editora Martins, São Paulo, 1942, p. 43.