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HISTÓRIA DA MÚSICA

BRASILEIRA
AULA 2

Prof. Alan Rafael de Medeiros


CONVERSA INICIAL

A presença da corte e o Brasil monárquico

Caro aluno, nesta aula introduziremos alguns apontamentos sobre a


prática musical recorrente ao longo do século XIX, que, como sabemos, foi
marcado inicialmente pela presença da corte portuguesa e da Coroa Real na
capital do Império, Rio de Janeiro. Essa conjuntura propiciou a ampliação da vida
musical na capital e oportunizou novos espaços de fruição musical, o que acabou
sendo traduzido em novas condições de trabalho aos compositores e musicistas,
além de uma fonte inesgotável de novas referências e influências musicais. Do
mesmo modo, o período seguinte seria marcado por certa escassez no tocante
às possibilidades de trabalho no campo da música, ao analisarmos o período
regencial. Por fim, analisaremos algumas manifestações musicais urbanas,
dentre elas o maxixe, e a mudança das relações de trabalho musical com a crise
da monarquia, ao fim do século XIX.

TEMA 1 – O PERÍODO JOANINO (1808-1821) E O PRIMEIRO REINADO


(1822-1831)

Quando pensamos nas práticas musicais do início do século XIX,


precisamos levar em conta a diversidade de conceitos existentes em relação ao
que compreendemos hoje como padrão. Quando pensamos nas casas de
espetáculo, por exemplo, devemos ter em mente que, tal como eram concebidas
no século anterior, estas não tinham como propósito efetivar um tipo específico
de prática musical, e mesmo o termo ópera nesses espaços não tinha o mesmo
significado contemporâneo. Podemos afirmar que a solidificação das práticas e
espaços de fruição musical foi efetivamente instaurada após a chegada da coroa
portuguesa para o Rio de Janeiro, trazendo consigo compositores e intérpretes
que serviam à corte, oportunizando acesso a novas reflexões sobre a arte
musical oriunda dos polos europeus em destaque no período.

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1.1 Vida musical no Rio de Janeiro durante a estadia da Corte – as
primeiras décadas do século XIX

O incremento cultural durante a estadia da Corte no Rio de Janeiro


impulsionou, como nenhum outro momento da história brasileira, a arte musical.
É possível afirmar que os musicistas e compositores brasileiros foram
amplamente influenciados por esse período no Brasil, e de maneira semelhante
a expansão das atividades musicais acabou sendo potencializada, sobretudo
pelo estabelecimento oficial das instituições da corte, em especial da Capela e
Câmara Reais, ampliando o mercado de trabalho e redefinindo a própria
atividade musical (Budasz, 2006).
A instalação da aristocracia, em conjunto com a diversidade de classes
sociais que mantinham contato direto com a Corte Real, redefiniu os costumes
de apreciação musical nos eventos sociais. A movimentação de musicistas foi
marco importante no estabelecimento de uma prática musical de corte, criando
de maneira inevitável a redefinição de um novo gosto artístico. No campo da
música, é um período marcado pela chegada de compositores renomados a
serviço da corte portuguesa, em especial Marcos Portugal (1762-1830) e
Sigismund von Neukomm (1778-1858). Esses dois compositores, cada um a seu
modo, impulsionariam o cenário respondendo às demandas musicais elitizadas
junto à corte portuguesa, contribuindo para a criação da fruição musical,
ampliando assim os espaços e a audiência em música (Monteiro, 2006).
Cada um destes compositores tinha uma função específica na Corte de
D. João VI: enquanto Marcos Portugal era peça-chave na orientação estética em
torno da ópera italiana e sua reprodução, Neukomm era o responsável direto, ao
menos na orientação estética, pela organização da produção musical
instrumental. Aqui temos uma estrutura importante a ser entendida, pois
enquanto estética, a corte portuguesa estava atrelada à ópera italiana e seus
processos de composição, e nesse campo tudo o que fosse produzido deveria
estar associado diretamente a ela. Já no campo de produção da música
instrumental, a vinculação de Neukomm era associada às obras de compositores
como Mozart e Haydn (de quem Neukomm foi aluno). Esses dois setores da
música, a ópera italiana e a música instrumental vienense, foram as grandes
marcas desse período e configuraram a influência estética sobre os
compositores brasileiros do período.

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Exemplo claro dessa realidade pode ser verificada na construção de José
Nunes Garcia (1767-1830) enquanto compositor. Recebeu influência tanto da
ópera italiana, que caíra no gosto da corte, quanto da música instrumental, e sua
organização com base nos compositores austríacos acima citados (a chamada I
Escola de Viena). Galgou o posto de mestre da capela da Sé do Rio em 1798,
tendo como obrigações a composição e regência de música para a Catedral e
às solenidades realizadas no teatro da cidade. De acordo com Castagna ([S. d.],
p. 2), com a chegada da Corte portuguesa, a partir da criação da Capela Real
em 1808, foi levado pelo Príncipe Regente D. João para assumir o posto de
mestre de capela, organista e professor, além das atribuições como compositor.
Apesar do volume de trabalho e da qualidade de suas composições, a
chegada de Marcos Portugal em 1813 fez com que este fosse nomeado, dado
seu prestígio como compositor de óperas português de maior representatividade,
para o posto de Nunes Garcia. A partir de então, o compositor brasileiro manteve
vínculo com encomendas das irmandades religiosas locais, além de lecionar
música em sua casa. Castagna ([S. d.], p. 3), indica que, no campo da influência,
a música de Nunes Garcia se assemelha ao classicismo internacional europeu
do final do séc. XVIII, especialmente a partir da contribuição austríaca. Apesar
da inventividade desse compositor, existem semelhanças entre algumas de suas
obras no Rio de Janeiro, com músicas de outros compositores representativos
no Brasil deste período em outras cidades, tais como André da Silva Gomes
(1752-1844) em São Paulo e João de Deus de Castro Lobo em Mariana (1794-
1832), todos mestres de capela da principal Catedral em suas respectivas
cidades.

Saiba mais

Aproveite a oportunidade para ouvir importante obra desse contexto, do


compositor citado anteriormente, José Maurício Nunes Garcia. Trata-se da Missa
de Santa Cecília. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Pj5pfF1tCzg>. Acesso em: 3 ago. 2020.

TEMA 2 – A CRISE DA MÚSICA NA CORTE NO PERÍODO REGENCIAL


(1831-1840)

A partir da Independência do Brasil, bem como da gradativa secularização


da sociedade brasileira, que seria possível verificar a incipiente ideia da música

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enquanto manifestação artística autônoma, transformando-se em objeto de
consumo. Assim como ocorria com a literatura e artes plásticas, a música passou
a ser entendida como um bem cultural mercantilizado por uma camada social
intermediária que se emancipava (Volpe, 1994). Trata-se de um período que
incorporou certo ideário de civilização oriundo dos modelos contemporâneos
europeus, que procurou distanciar-se das antigas práticas e do período colonial.
Apesar desse cenário de mudanças e nova consciência sobre a música e seu
papel na sociedade local, a prática musical foi sistematicamente secundarizada
pós-Primeiro Reinado, em um claro momento de desmonte dos organismos
musicais.

2.1 A secundarização da música no período regencial

O decênio 1831-1840, marcado pela abdicação de Dom Pedro I do trono


e o início do reinado de Pedro II, impactou diferentes áreas então profícuas
durante os anos anteriores. Tratou-se de um período de instabilidade política e
econômica e que, em consequência, acarretou dificuldades para o campo da
produção musical orquestral vinculada ao teatro e à Capela Imperial. No campo
da música, a redução dos organismos musicais, traduzida na dispensa de
musicistas integrantes dos corpos estáveis das orquestras da Capela Imperial foi
sintomática de que o período futuro resultaria em um arrefecimento das práticas
musicais.
O corte na Capela Imperial foi substancial. Após a redução contaria com
apenas 23 cantores, 2 organistas e somente 4 instrumentistas, todos
executantes de instrumentos graves: 2 fagotes e 2 contrabaixos, e os violinistas
despedidos. Em 1833, nova redução, agora para 21 cantores e 3 instrumentistas
de baixo, somente (Castagna, [S. d.], p. 13).
Um relato do pintor Jean-Baptiste Debret elucida a realidade então
presente no período regencial, diria ele que a música marchava em direção à
decadência em que a meteu o governo, pelo desmantelamento da música da
Capela Imperial, a única rival digna dos organismos musicais europeus em toda
a América (Cardoso, 2006, p. 250). O autor ainda ressalta que a situação
financeira e econômica precária do Império e, em adição, o ódio generalizado
pelas coisas próprias de Portugal foram essenciais para que, durante algum
tempo, o Rio de Janeiro buscasse esquecer que teve algum dia um serviço

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musical sacro com qualidade similar à dos centros europeus (Cardoso, 2006,
p. 251).
Natural imaginar que, a partir dessa realidade, os dispositivos
anteriormente praticados de obras musicais vultuosas, tais como a ópera e a
missa cantada, deixariam de funcionar com a mesma efetividade. Até 1843, não
seria encenado nenhum espetáculo lírico completo, período a partir do qual, sob
o consórcio de Dom Pedro II, o efetivo musical seria reestruturado em
semelhança ao conjunto original (Cardoso, 2006).
Entretanto, apesar da dificuldade, o movimento dos musicistas que
permaneceram indica um caminho no sentido da organização civil em torno da
estruturação de concertos em locais menores, sem, portanto, a proteção estatal.
A própria sociedade civil em momento algum deixou de encarar a música como
forma de entretenimento ou ainda atividade cultural. A proliferação dos concertos
organizados pelos próprios musicistas do período, muitas vezes chamados de
academias, foi uma resposta direta a este momento de arrefecimento por parte
do poder público.
Sem um espaço oficial amplamente patrocinado pelo poder imperial, esse
período acabou dando o pontapé inicial para as estratégias de organização civil
em torno da fruição musical. É um momento, portanto, que priorizará as
atividades de concerto em espaços alternativos, com pequena capacidade de
público, organizadas pela sociedade civil, iniciando esse cenário de concertos
públicos variados.
Em 1833, como resposta a todo esse cenário contrário à emancipação de
organismos musicais, seria dado o pontapé inicial a partir de uma congregação
de musicistas, para uma entidade cultural voltada à promoção de concertos.
Mas, para além da abertura de novas oportunidades de concertos e eventos
musicais, esta entidade teria como mote estabelecer uma associação de classe
que fortalecesse os interesses profissionais dos músicos: estava dado o pontapé
inicial para as atividades da Sociedade Beneficência Musical (Cardoso, 2006,
p. 315-316).
Esse tipo de instituição, a partir da segunda metade do século XIX, será
cada vez mais recorrente no cenário urbano brasileiro, nesse processo de
emancipação da arte musical frente ao mecenato decadente das antigas
mantenedoras (governos imperiais e a própria Igreja enquanto instituição
mantenedora de musicistas e compositores). O caminho estava aberto para

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iniciativas como a descrita acima, um cenário positivo de instituições mais ou
menos independentes que promoveriam atividades musicais a partir do
pagamento de ingressos individuais, um cenário de eventos musicais destinados
ao público anônimo distinto dos concertos privados aristocráticos, característicos
até o início do século XIX.

TEMA 3 – O SEGUNDO REINADO E A RETOMADA DA ATIVIDADES DA


CORTE

Conforme indicado anteriormente, a partir de 1834, a contratação de


novos musicistas para as atividades na Capela Imperial foi retomada, indicando
um novo marco das atividades durante o Segundo Reinado. Esse contexto
demonstra a necessidade de consolidar a nação, tendo as artes um papel
fundamental nesse processo. Será um período de surgimento de inúmeras
instituições, academias e conservatórios de música que concentrarão parte da
formação técnica e oferecimento de concertos oficiais.

3.1 As instituições de fruição musical no século XIX pós-Segundo Reinado

De acordo com Castagna ([S. d.], p. 3) apesar da ascensão da música


composta para teatro, houve notório declínio das práticas musicais vinculadas à
igreja, a essa altura sem a mesma representatividade no tocante à contratação
e manutenção de corpos musicais estáveis. Nesse momento do século XIX, a
sociedade civil parece ter maiores condições de se mobilizar e estabelecer
instituições privadas de promoção de concertos e ensino musical, voltadas a um
público pagante anônimo diferente das práticas aristocráticas anteriores.
Era um período de arrefecimento do próprio ensino oficial de música, já
que não existiu, de acordo com Castagna ([S. d.], p. 12), em nenhuma cidade
brasileira antes de 1840 qualquer vestígio de escolas públicas capazes de formar
grandes grupos de músicos profissionais, sabendo-se que a relação de ensino
se dava entre mestre e discípulo. A partir de uma iniciativa de musicistas daquele
cenário, dentre os quais se destacou Francisco Manuel da Silva (1795-1865), em
1841, o governo criou o Conservatório de Música do Rio de Janeiro, entretanto
o financiamento, dado a partir de loterias anuais, seria concretizado apenas em
1847, portanto o Conservatório acabou sendo instalado apenas em 1848.

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O fato de possuir uma escola pública e oficial de música deu maior
projeção à produção musical realizada no país, uma vez que a instituição passou
a se responsabilizar pela organização do ensino de música no país, em
alinhamento aos principais polos europeus do período (Silva, 2007, p. 56). As
bases estariam lançadas, portanto, para as atividades de instituições de ensino
e fruição de música, uma realidade cada vez mais latente ao longo da segunda
metade do século XIX.
Em 1855, como parte da Reforma Pedreira, o Conservatório foi anexado
à Academia Imperial de Belas Artes, com uma sede menos precária em relação
às instalações até então existentes. Nesse novo local, haveria a ampliação do
ensino, antes restrito aos rudimentos básicos da música, agora contando com
disciplinas de acompanhamento e órgão, instrumentos de sopro e instrumentos
de corda. De acordo com Silva (2007), esse processo remetia em certa medida
às práticas musicais antigas, com várias disciplinas ministradas por um mesmo
professor, não especialista.
Nesse movimento de criação de instituições, tais como o Conservatório
de Música, ao longo das décadas de 1840 e 1860 haveria intensa movimentação
musical, agora autônoma, envolvendo uma específica elite que incorporava,
cada vez mais, um sentimento latente de nacionalidade. Francisco Manuel da
Silva dirigiria desde 1834 a Sociedade Filarmônica, entidade que organizaria
concertos ao longo de dezoito anos, executando em sua maioria trechos de
óperas extraídos de obras de compositores estrangeiros. Podemos citar, do
mesmo modo, entidades como o Clube Mozart e o Clube Beethoven já na
segunda metade do século XIX, e o Clube Haydn em São Paulo (Binder, 2013)
incrementando a disseminação de repertório essencialmente instrumental,
alheio em certa medida às práticas operísticas.
Esse movimento indica uma mudança significativa em como a prática
musical passou a ser gerenciada pela própria comunidade musical, em
detrimento do vínculo direto ao Poder Imperial, àquela época preponderante, e
do mesmo modo à Igreja enquanto Instituição. A sociedade civil passou a se
organizar e, do mesmo modo, reivindicar novos agentes musicais, bem como
novos repertórios. Essa agitação no campo da música, ainda que tácita, é
representativa no intuito de confirmar a crise verificada no Regime Monárquico
no Brasil, que tinha suas bases em padrões ritualizados das sociabilidades
aristocráticas do Antigo Regime. Tudo o que se busca, nesse processo e

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remodelagem das estruturas sociais, é justamente o distanciamento dessas
práticas cristalizadas no tempo, com vias à criação de novas ferramentas de
distinção social, que no campo da música durante boa parte do século XIX era
traduzido na ópera e nos gêneros dramáticos (Pereira, 2013).
A emancipação da música de concerto na esfera pública é recorrente na
literatura sobre o contexto do século XIX (Augusto, 2008). Essas instituições
terão papel central na vida musical dos centros urbanos, difundindo repertórios
característicos e ampliando as fronteiras então consagradas da ópera e da
música sacra caras ao Império.

Saiba mais

Aproveite a oportunidade para conhecer um pouco mais a obra de


Francisco Manuel da Silva (reconhecido pela composição de nosso hino
nacional), importante compositor desse período. Acesso o link e aprecie o Te
Deum in te domine desse compositor, disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=9HAH8RzjKMI> Acesso em: 3 ago. 2020.

TEMA 4 – DESENVOLVIMENTO DAS DIVERSÕES URBANAS E O


SURGIMENTO DO MAXIXE

Questão relevante para a compreensão dos caminhos da música durante


o Segundo Império (1841-1889) faz-se presente na relação de modificações
sistemáticas sofridas no panorama musical brasileiro. Esse panorama de
mudanças não tem relação necessariamente com os rumos adquiridos pela
monarquia brasileira, mas se deu efetivamente a partir do avanço dos processos
de urbanização e internacionalização da cultura das elites locais (Castagna,
[S. d.], p. 1). Ao estudarmos a sociedade brasileira nesse processo de
transformações, teremos condições de verificar seus anseios e respectivamente,
os produtos artístico-musicais que passaram a representar tais interesses no
campo social.

4.1 A música popular no Brasil monárquico: a emancipação do maxixe

Enquanto a ópera dominava o cenário da segunda metade do século XIX,


e a prática musical religiosa caia em lento declínio, a música urbana era
desenvolvida entre os gêneros de canção tais como a modinha. É possível
indicar a ampliação de produções voltadas à música de salão, com gêneros que
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ganhavam espaço na sociedade, naturalmente, voltados à dança e executada
em bailes sofisticados e grandes eventos sociais. Os principais gêneros
importados da Europa seriam a quadrilha, a polca, a valsa, o schottisch e a
mazurca.
Essas danças acabaram por se tornar elemento comum nas diversões da
elite brasileira do período, que boa parte dos compositores da época passaram
a dedicar parte do seu veio composicional aos gêneros de dança, mesmo
quando se dedicavam preferencialmente aos gêneros mais sérios tais como a
ópera e a música religiosa. Esse tipo de produto musical era composto
geralmente para piano, já presente na realidade das famílias ricas dos centros
urbanos, mas também executado nos eventos sociais com pequenos conjuntos
organizados em cordas e sopros (Castagna, [S. d.], p. 1).
Ao final do século XIX, porém, esses gêneros de dança entraram em
contato com os gêneros essencialmente brasileiros de dança (como o lundu e o
maxixe), o que no entender de Castagna ([S. d.], p. 2), acabou por gerar duas
vertentes distintas de produção musical: uma ainda urbana, com apelo mais
voltado às camadas médias da sociedade, a partir das práticas de danças já
nacionalizadas; uma segunda voltada aos ambientes rurais, com gêneros de
dança sendo folclorizados e transformados em dezenas de outros gêneros de
dança de expressão local.
A polca seria primordial para o surgimento do gênero genuinamente
brasileiro, um caso comum da apropriação destes gêneros internacionais e sua
adaptação/aculturação no contexto nacional. Dança originária da Bohêmia, a
polca constitui-se de dança moderada em compasso binário de 2/4 e gracioso
em andamento allegro.
De acordo com a Enciclopédia de Música Brasileira (1977, p. 619), a polca
seria:

Originalmente dança rústica da Boêmia (...) chegou à capital Praga em


1837. Nesse ano, editou-se a primeira partitura para piano da dança
que iria espalhar-se rapidamente pela Europa. Binária de andamento
allegro, a polca apresenta melodia saltitante e configuração rítmica
baseada em colcheias e semicolcheias com pausas no segundo tempo
do binário. No Brasil foi apresentada pela primeira vez em 3 de julho
de 1845, no Teatro São Pedro, no Rio de Janeiro RJ. Tornou-se mania,
a ponto de ocasionar a formação da Sociedade Constante Polca, no
ano seguinte. Começando como dança de salão, a polca logo ganhou
teatros e ruas, tornando-se música eminentemente popular.
Praticaram-na conjuntos de choro e grandes sociedades
carnavalescas. Calado, Irineu de Almeida, Miguel Emídio Pestana,
Henrique Alves de Mesquita, Anacleto de Medeiros e Ernesto Nazaré

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compuseram polcas famosas. Fundindo-se com outros gêneros,
chegou a ser polca-lundu, polca-fadinho, polca-militar. Completando o
ciclo, ganhou a polca o mundo rural, folclorizando-se.

A fusão desses gêneros instrumentais com gêneros eminentemente


nacionais acabou por reelaborar todo um imaginário musical significativo na
emergente realidade brasileira. O cenário de produção musical beneficiou-se
neste processo de “abrasileiramento” dos gêneros musicais eminentemente
europeus.
De acordo com Tinhorão (2013, p. 58) inicia a contribuição das camadas
populares do Rio de Janeiro à música do Brasil, e poderia ser entendido como a
resultante do esforço dos músicos chorões em adaptar o ritmo das músicas de
dança, especialmente a polca, e tendências aos requebros do corpo com que
mestiços, negros e brancos do povo teimavam em complicar os passos de
danças de salão.
No entender de Sandroni (2001), o maxixe se distingue da prática do rito
da música e dança em relação a alguns outros estilos do período. No maxixe, a
dança de pares enlaçados ocorre à parte da música, que lhe é externa, ou seja,
os músicos não fazem parte da “roda” de dança, e essa mesma roda é dissolvida
em um salão de baile, caracterizando-se, portanto, como um estilo de dança
moderno, urbano, similar aos moldes internacionais.
Com a transposição das polcas dos pianos dos salões aristocráticos para
a música dos choros, à base de flauta, violão e oficleide (instrumento grave da
família dos sopros), seria possível confirmar a efetivação do maxixe enquanto
gênero. Sua execução se dava, indubitavelmente, nas festividades das camadas
mais pobres do Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, mas a
emancipação do gênero ganhou corpo tendo como veículo principal os ditos
bailes carnavalescos, e posteriormente o teatro de revista (Tinhorão, 2013,
p. 63).
Os grupos carnavalescos que surgiam em fins do século XIX seriam
agremiações fundadas por indivíduos do comércio, impulsionadas com a
ampliação da vida urbana carioca em detrimento do velho esquema de vida
patriarcal, na qual homens passaram a ter permissão para criar novas formas de
diversão fora do âmbito familiar. Os bailes dessas agremiações eram realizados
a partir das bandas similares às militares, com naipes de instrumentos de sopro
e acabou proporcionando ainda mais notoriedade ao gênero maxixe, seja do
ponto de vista musical quanto de sua coreografia de dança, a partir das

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festividades nas camadas populares ao som dos instrumentos dos chorões, seja
nesses novos redutos da diversão urbana dos homens do comércio em seus
clubes carnavalescos.
Esse cenário de fruição musical chegaria às camadas médias da
sociedade brasileira por meio das peças do teatro de revista musicadas,
entretanto, com severas ressalvas em relação ao maxixe, termo que indicava
produto de qualidade menor. Sua utilização se deu por meio de certo
mascaramento, por assim dizer, do gênero em outros subgêneros de dança
estilizados, como o tango, polca lundu, sabendo-se que a indicação em qualquer
partitura para piano de um maxixe implicava necessariamente no desagrado e
veto dos potenciais compradores (Tinhorão, 2013, p. 70). Nesse campo da
adaptação dos gêneros brasileiros da música popular, temos os nomes de
importantes compositores como Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha
Gonzaga (1847-1935), revisando e atualizando os gêneros em sua adaptação
para o piano, instrumento essencialmente elitizado da sociedade brasileira do
período.
Nesse momento, é possível visualizar as primeiras práticas no
estabelecimento dos gêneros nacionais, do ponto de vista musical. As camadas
populares reorganizam os estilos musicais então em voga dos salões
aristocráticos e ressignificam seu conteúdo com elementos oriundos da
realidade vivenciada, muitas vezes herdadas das práticas culturais dos negros
escravizados, tendo como exemplo nesse contexto o lundu e o próprio maxixe.
Como movimento de retroalimentação desse processo na sociedade,
verificamos que esse “abrasileiramento” faz com que tais gêneros retornem de
algum modo aos demais estratos sociais, seja por meio da aceitação tácita, seja
por meio da reelaboração de estratégias para sua efetivação no tecido social.

Saiba mais

Aqui, temos a oportunidade de apreciar uma obra de compositor da


música de concerto, Henrique Alves de Mesquita, aventurando-se no gênero
maxixe, prática comum à época (trânsito entre o popular e a música de concerto).
Conheça a música Quebra quebra, minha gente e perceba as nuances
melódicas e harmônicas do gênero. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=7uOVMmXBsWU>. Acesso em:
3 ago. 2020.

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TEMA 5 – A CRISE NA MONARQUIA E AS TRANSFORMAÇÕES NA VIDA
MUSICAL

A monarquia brasileira financiou musicistas e compositores durante a


segunda metade do século XIX, seguindo a tradição do modelo internacional de
amparo e incentivo à carreira de potenciais compositores, em momento marcado
pela crise do patronato musical e as restrições orçamentárias da Corte, bem
como pelo crescimento dos concertos públicos realizados por instituições
privadas. É um período singular iniciado pelo processo de modernização urbana
do Brasil que tenciona a sociedade em gostos cada vez mais heterogêneos em
relação às práticas do Antigo Regime e pelos interesses estéticos distintos,
apontando cada vez mais para a música instrumental em detrimento da ópera.

5.1 O cenário da música de concerto em fins do século XIX

Ao passo que a monarquia ainda entendia a ópera como prática musical


de mais alto grau de elaboração, lembremos que simultaneamente a classe
burguesa que ascendia buscava novas formas de fruição musical,
estabelecendo entidades privadas de promoção de concerto a associados em
eventos realizados em pequenos espaços. Essas entidades passaram a
vislumbrar na música instrumental um ideário potencial, calcado nas mesmas
preocupações da intelectualidade da época em sua busca por modelos
avançados de civilidade e progresso que, mais tarde, culminaria nas reflexões
sobre a República.
Em certa medida, as práticas vinculadas ao Antigo Regime permaneciam
com toda sua pompa e viés aristocrático, e mesmo na mentalidade da classe
artística, este era um modelo viável de construção da cultura brasileira. É nesse
sentido que podemos visualizar as tentativas de estabelecimento da ópera
nacional, não apenas do ponto de vista pragmático, como demanda de trabalho
aos profissionais do teatro (dramaturgos e atores), da música (compositores,
maestros, musicistas), da literatura (libretistas), além de figurinistas, cenógrafos,
mas como um claro interesse no estabelecimento, em solo nacional, de uma
instituição de fomento a este tipo de gênero dramático e musical.
A partir da incorporação do Conservatório de Música pela Academia
Imperial de Belas Artes em seu espaço físico, Manoel de Araújo Porto Alegre
(1806-1879), representativo pintor, escritor, crítico de arte, um entusiasta da
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ideia de uma arte nacional, propõe a criação de um corpo estável intitulado
Ópera Lírica Nacional. Como mote primordial do projeto, percebe-se o interesse
de criação de postos de trabalhos para os artistas nacionais, especialmente para
alunos e profissionais que sairiam dos quadros da Academia Imperial das Belas-
Artes. Trata-se de um projeto entendido como ferramenta no movimento de
ampliação dos postos de trabalho nas belas artes da Corte (Silva, 2007, p.101).
Dentro dessa estrutura de pensamento, para a concretização do projeto
da Ópera Nacional, ficou estabelecido que a Academia deveria formar artistas
nacionais, as aulas necessárias e, em segundo lugar, dar concertos e
representações de canto em língua nacional, quando houvesse teatro próprio.
Entre as inúmeras dificuldades financeiras do Conservatório de Música do Rio
de Janeiro, anexado à Academia Imperial de Belas Artes, um dos objetivos
centrais residia na educação a partir do sustento de quatro a oito alunos por
conta da Academia em países predefinidos (Silva, 2007, p. 109).
Um dos alunos premiados pelo programa de custeio foi Henrique Alves de
Mesquita (1830-1906), graduado em 1857 e que obteve a medalha de ouro. De
acordo com Castagna ([S. d.], p. 15), recebeu viagem à Franca e a respectiva
pensão como premiação, tendo estudado harmonia e composto obras religiosas,
óperas, operetas, aberturas sinfônicas e obras para piano. A representatividade
de suas obras, quando retornou ao Brasil, se deu no campo das operetas, peças
mais curtas e leves que a ópera.
O compositor voltou ao país em 1866, tendo se tornado maestro da
orquestra do teatro Fênix Dramática, encenando operetas suas. Por fim, entre
1872 e 1886, foi organista da Igreja de São Pedro e entre 1872 e 1904 trabalhou
como professor de solfejo e instrumentos de metal no Conservatório de Música
(Castagna, [S. d.], p. 15).
Outro compositor representativo desse contexto vinculado ao
Conservatório foi Antônio Carlos Gomes (1836-1896), reconhecido compositor
brasileiro internacionalmente. Ao ingressar no Conservatório, chamou a atenção
de Francisco Manuel da Silva, que lhe encomendou uma Cantata ao Imperador,
que acabou lhe rendendo a nomeação como regente da Empresa de Ópera
Nacional. Após essa primeira grande oportunidade em 1861, teve sua ópera
Joana de Flandres premiada, em 1863, com uma pensão do Governo Imperial
para aperfeiçoamento e estudos, formando-se nos três anos seguintes no
Conservatório de Milão.

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Para prestar contas de sua estadia, compôs entre 1865 e 1868 sua ópera
mais famosa, O Guarani, tendo a temática brasileira (o indígena) como fundo
dessa prestação de contas. Ao retornar ao Rio de Janeiro, é recebido como herói
nacional, mas permaneceu em constantes viagens à Itália, onde estabeleceu
residência, criando novas óperas em solo internacional (Fosca, Salvator Rosa,
Maria Tudor, Lo Schiavo, Condor).
Carlos Gomes é um representante desse momento em que a ópera, em
um primeiro momento, representava o mais alto ponto da cultura musical do
Brasil Império, mas que, já ao fim da vida, era visto como representante de uma
corrente musical associada ao Antigo Regime decadente. De acordo com
Castagna ([S. d.], p. 16), o compositor pleiteava a direção do Conservatório, o
que não se concretizou, tendo em vista a preferência, àquela época, pela música
instrumental de estética germânica, às vésperas da proclamação da República.
Durante o Império houve forte associação com as correntes então em
voga, caracterizadas pela escola italiana de ópera, entretanto com o
estabelecimento da República, esse projeto estético era entendido como um
modelo “conservador”. Nesse momento, o Instituto Nacional de Música (antigo
Conservatório) voltou seu alinhamento para tendências “progressistas”,
identificadas nas escolas alemã e francesa. Nesse cenário, é compreensível que
a tentativa de Carlos Gomes, compositor associado indubitavelmente à estética
operística italiana, tenha sido frustrada. Sua frase célebre ilustra esta conjuntura:
“no Rio de Janeiro não me querem nem para porteiro do Conservatório” (Pereira,
2007, p. 65).
A realidade de Carlos Gomes, exímio compositor brasileiro da tradição
operística italiana e sua trajetória demonstram, por fim, a mudança de
paradigmas no campo da apreciação musical nos espaços artísticos, bem como
as ambições estéticas dos agentes inseridos no projeto de construção musical.
Enquanto as entidades privadas passaram gradativamente a se distinguir das
práticas musicais associadas ao passado, esta mesma premissa começou a
tomar corpo no ideário da intelectualidade brasileira do período, e os
compositores passaram cada vez mais a se associar com modelos de
composição distintos da realidade do Império. Essa conjuntura de elementos
demonstra o poder da mudança das estruturas musicais no cenário social, a
ponto de fazer um compositor de prestígio internacional como Carlos Gomes ter
poucas alternativas frente às suas opções de alinhamento estético.

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Saiba mais

Aproveite para conhecer um pouco da obra de Carlos Gomes e a vertente


italiana que permeou grande parte de sua obra. Aprecie o Prelúdio de sua ópera
Maria Tudor.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=m3PEuwZ9HdY>.


Acesso em: 3 ago. 2020.

NA PRÁTICA

A apreciação crítica é de extrema importância para a formação do músico


e do educador musical. Vamos apreciar exemplos de obras vinculadas à música
popular urbana e tentar identificar possíveis pontos comuns/específicos.

1. Ao ouvir a polca, quais caraterísticas musicais são mais evidentes?


2. Ao ouvir o maxixe, quais características musicais são reveladas?
a) Existem semelhanças entre os gêneros de dança? Enumere-as.
b) Existem diferenças, do mesmo modo?
c) Como se organiza o contorno melódico do maxixe? Ele é marcado
convencionalmente como a polca ou existem pontuações rítmicas
específicas?

FINALIZANDO

Nesta aula, tivemos a oportunidade de abordar alguns tópicos relevantes


para a compreensão da música produzida durante o século XIX. Verificamos a
importância das estruturas políticas e econômicas na organização da vida social,
na estruturação da cultura e consequentemente nas estratégias de efetivação da
prática musical. Verificamos que a chegada da Corte, em 1808, propiciou o
incremento da cultura musical a partir do contato dos musicistas brasileiros, com
personalidades representativas da ópera italiana, bem como da música
instrumental vienense, sobretudo. De maneira semelhante, vimos que o período
regencial dilapidou em certa medida os corpos musicais estáveis, iniciando
gradativamente um processo de novas estruturas musicais no tecido social, a
partir da necessidade dos músicos de estabelecerem novas formas de atividade
profissional. A partir do reestabelecimento do Segundo Reinado e,
consequentemente, de um cenário musical mais favorável, as instituições de

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fomento à arte continuaram desempenhando papel representativo para além da
estrutura governamental oficial, ampliando o leque de possibilidades de atuação
profissional e mesmo da fruição por parte de um público anônimo crescente.
Nesse sentido, verificamos o surgimento de liceus de ensino musical e
Conservatórios oficiais, que contribuíram sistematicamente para a formação do
músico profissional, assim como potencializaram a formação de compositores
de prestígio em polos europeus com estéticas específicas. Por fim, verificamos
algumas manifestações musicais urbanas emancipadas com o crescimento das
cidades e a urbanização dos principais centros brasileiros, no intuito de
compreender a apropriação de gêneros europeus de dança e sua estilização no
contexto nacional, uma espécie de abrasileiramento destes com vias à
apropriação, releitura e acomodação no cenário social.

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REFERÊNCIAS

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República (1846- 1914). 2008, 281f. Tese (Doutorado em História), Universidade
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curso História da música brasileira. SP: UNESP, [s. d.].

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camerística. Revista Música, São Paulo, v.5 nº2, p. 133-151, 1994.

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