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BRASILEIRA
AULA 2
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1.1 Vida musical no Rio de Janeiro durante a estadia da Corte – as
primeiras décadas do século XIX
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Exemplo claro dessa realidade pode ser verificada na construção de José
Nunes Garcia (1767-1830) enquanto compositor. Recebeu influência tanto da
ópera italiana, que caíra no gosto da corte, quanto da música instrumental, e sua
organização com base nos compositores austríacos acima citados (a chamada I
Escola de Viena). Galgou o posto de mestre da capela da Sé do Rio em 1798,
tendo como obrigações a composição e regência de música para a Catedral e
às solenidades realizadas no teatro da cidade. De acordo com Castagna ([S. d.],
p. 2), com a chegada da Corte portuguesa, a partir da criação da Capela Real
em 1808, foi levado pelo Príncipe Regente D. João para assumir o posto de
mestre de capela, organista e professor, além das atribuições como compositor.
Apesar do volume de trabalho e da qualidade de suas composições, a
chegada de Marcos Portugal em 1813 fez com que este fosse nomeado, dado
seu prestígio como compositor de óperas português de maior representatividade,
para o posto de Nunes Garcia. A partir de então, o compositor brasileiro manteve
vínculo com encomendas das irmandades religiosas locais, além de lecionar
música em sua casa. Castagna ([S. d.], p. 3), indica que, no campo da influência,
a música de Nunes Garcia se assemelha ao classicismo internacional europeu
do final do séc. XVIII, especialmente a partir da contribuição austríaca. Apesar
da inventividade desse compositor, existem semelhanças entre algumas de suas
obras no Rio de Janeiro, com músicas de outros compositores representativos
no Brasil deste período em outras cidades, tais como André da Silva Gomes
(1752-1844) em São Paulo e João de Deus de Castro Lobo em Mariana (1794-
1832), todos mestres de capela da principal Catedral em suas respectivas
cidades.
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enquanto manifestação artística autônoma, transformando-se em objeto de
consumo. Assim como ocorria com a literatura e artes plásticas, a música passou
a ser entendida como um bem cultural mercantilizado por uma camada social
intermediária que se emancipava (Volpe, 1994). Trata-se de um período que
incorporou certo ideário de civilização oriundo dos modelos contemporâneos
europeus, que procurou distanciar-se das antigas práticas e do período colonial.
Apesar desse cenário de mudanças e nova consciência sobre a música e seu
papel na sociedade local, a prática musical foi sistematicamente secundarizada
pós-Primeiro Reinado, em um claro momento de desmonte dos organismos
musicais.
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musical sacro com qualidade similar à dos centros europeus (Cardoso, 2006,
p. 251).
Natural imaginar que, a partir dessa realidade, os dispositivos
anteriormente praticados de obras musicais vultuosas, tais como a ópera e a
missa cantada, deixariam de funcionar com a mesma efetividade. Até 1843, não
seria encenado nenhum espetáculo lírico completo, período a partir do qual, sob
o consórcio de Dom Pedro II, o efetivo musical seria reestruturado em
semelhança ao conjunto original (Cardoso, 2006).
Entretanto, apesar da dificuldade, o movimento dos musicistas que
permaneceram indica um caminho no sentido da organização civil em torno da
estruturação de concertos em locais menores, sem, portanto, a proteção estatal.
A própria sociedade civil em momento algum deixou de encarar a música como
forma de entretenimento ou ainda atividade cultural. A proliferação dos concertos
organizados pelos próprios musicistas do período, muitas vezes chamados de
academias, foi uma resposta direta a este momento de arrefecimento por parte
do poder público.
Sem um espaço oficial amplamente patrocinado pelo poder imperial, esse
período acabou dando o pontapé inicial para as estratégias de organização civil
em torno da fruição musical. É um momento, portanto, que priorizará as
atividades de concerto em espaços alternativos, com pequena capacidade de
público, organizadas pela sociedade civil, iniciando esse cenário de concertos
públicos variados.
Em 1833, como resposta a todo esse cenário contrário à emancipação de
organismos musicais, seria dado o pontapé inicial a partir de uma congregação
de musicistas, para uma entidade cultural voltada à promoção de concertos.
Mas, para além da abertura de novas oportunidades de concertos e eventos
musicais, esta entidade teria como mote estabelecer uma associação de classe
que fortalecesse os interesses profissionais dos músicos: estava dado o pontapé
inicial para as atividades da Sociedade Beneficência Musical (Cardoso, 2006,
p. 315-316).
Esse tipo de instituição, a partir da segunda metade do século XIX, será
cada vez mais recorrente no cenário urbano brasileiro, nesse processo de
emancipação da arte musical frente ao mecenato decadente das antigas
mantenedoras (governos imperiais e a própria Igreja enquanto instituição
mantenedora de musicistas e compositores). O caminho estava aberto para
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iniciativas como a descrita acima, um cenário positivo de instituições mais ou
menos independentes que promoveriam atividades musicais a partir do
pagamento de ingressos individuais, um cenário de eventos musicais destinados
ao público anônimo distinto dos concertos privados aristocráticos, característicos
até o início do século XIX.
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O fato de possuir uma escola pública e oficial de música deu maior
projeção à produção musical realizada no país, uma vez que a instituição passou
a se responsabilizar pela organização do ensino de música no país, em
alinhamento aos principais polos europeus do período (Silva, 2007, p. 56). As
bases estariam lançadas, portanto, para as atividades de instituições de ensino
e fruição de música, uma realidade cada vez mais latente ao longo da segunda
metade do século XIX.
Em 1855, como parte da Reforma Pedreira, o Conservatório foi anexado
à Academia Imperial de Belas Artes, com uma sede menos precária em relação
às instalações até então existentes. Nesse novo local, haveria a ampliação do
ensino, antes restrito aos rudimentos básicos da música, agora contando com
disciplinas de acompanhamento e órgão, instrumentos de sopro e instrumentos
de corda. De acordo com Silva (2007), esse processo remetia em certa medida
às práticas musicais antigas, com várias disciplinas ministradas por um mesmo
professor, não especialista.
Nesse movimento de criação de instituições, tais como o Conservatório
de Música, ao longo das décadas de 1840 e 1860 haveria intensa movimentação
musical, agora autônoma, envolvendo uma específica elite que incorporava,
cada vez mais, um sentimento latente de nacionalidade. Francisco Manuel da
Silva dirigiria desde 1834 a Sociedade Filarmônica, entidade que organizaria
concertos ao longo de dezoito anos, executando em sua maioria trechos de
óperas extraídos de obras de compositores estrangeiros. Podemos citar, do
mesmo modo, entidades como o Clube Mozart e o Clube Beethoven já na
segunda metade do século XIX, e o Clube Haydn em São Paulo (Binder, 2013)
incrementando a disseminação de repertório essencialmente instrumental,
alheio em certa medida às práticas operísticas.
Esse movimento indica uma mudança significativa em como a prática
musical passou a ser gerenciada pela própria comunidade musical, em
detrimento do vínculo direto ao Poder Imperial, àquela época preponderante, e
do mesmo modo à Igreja enquanto Instituição. A sociedade civil passou a se
organizar e, do mesmo modo, reivindicar novos agentes musicais, bem como
novos repertórios. Essa agitação no campo da música, ainda que tácita, é
representativa no intuito de confirmar a crise verificada no Regime Monárquico
no Brasil, que tinha suas bases em padrões ritualizados das sociabilidades
aristocráticas do Antigo Regime. Tudo o que se busca, nesse processo e
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remodelagem das estruturas sociais, é justamente o distanciamento dessas
práticas cristalizadas no tempo, com vias à criação de novas ferramentas de
distinção social, que no campo da música durante boa parte do século XIX era
traduzido na ópera e nos gêneros dramáticos (Pereira, 2013).
A emancipação da música de concerto na esfera pública é recorrente na
literatura sobre o contexto do século XIX (Augusto, 2008). Essas instituições
terão papel central na vida musical dos centros urbanos, difundindo repertórios
característicos e ampliando as fronteiras então consagradas da ópera e da
música sacra caras ao Império.
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compuseram polcas famosas. Fundindo-se com outros gêneros,
chegou a ser polca-lundu, polca-fadinho, polca-militar. Completando o
ciclo, ganhou a polca o mundo rural, folclorizando-se.
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festividades nas camadas populares ao som dos instrumentos dos chorões, seja
nesses novos redutos da diversão urbana dos homens do comércio em seus
clubes carnavalescos.
Esse cenário de fruição musical chegaria às camadas médias da
sociedade brasileira por meio das peças do teatro de revista musicadas,
entretanto, com severas ressalvas em relação ao maxixe, termo que indicava
produto de qualidade menor. Sua utilização se deu por meio de certo
mascaramento, por assim dizer, do gênero em outros subgêneros de dança
estilizados, como o tango, polca lundu, sabendo-se que a indicação em qualquer
partitura para piano de um maxixe implicava necessariamente no desagrado e
veto dos potenciais compradores (Tinhorão, 2013, p. 70). Nesse campo da
adaptação dos gêneros brasileiros da música popular, temos os nomes de
importantes compositores como Ernesto Nazareth (1863-1934) e Chiquinha
Gonzaga (1847-1935), revisando e atualizando os gêneros em sua adaptação
para o piano, instrumento essencialmente elitizado da sociedade brasileira do
período.
Nesse momento, é possível visualizar as primeiras práticas no
estabelecimento dos gêneros nacionais, do ponto de vista musical. As camadas
populares reorganizam os estilos musicais então em voga dos salões
aristocráticos e ressignificam seu conteúdo com elementos oriundos da
realidade vivenciada, muitas vezes herdadas das práticas culturais dos negros
escravizados, tendo como exemplo nesse contexto o lundu e o próprio maxixe.
Como movimento de retroalimentação desse processo na sociedade,
verificamos que esse “abrasileiramento” faz com que tais gêneros retornem de
algum modo aos demais estratos sociais, seja por meio da aceitação tácita, seja
por meio da reelaboração de estratégias para sua efetivação no tecido social.
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TEMA 5 – A CRISE NA MONARQUIA E AS TRANSFORMAÇÕES NA VIDA
MUSICAL
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Para prestar contas de sua estadia, compôs entre 1865 e 1868 sua ópera
mais famosa, O Guarani, tendo a temática brasileira (o indígena) como fundo
dessa prestação de contas. Ao retornar ao Rio de Janeiro, é recebido como herói
nacional, mas permaneceu em constantes viagens à Itália, onde estabeleceu
residência, criando novas óperas em solo internacional (Fosca, Salvator Rosa,
Maria Tudor, Lo Schiavo, Condor).
Carlos Gomes é um representante desse momento em que a ópera, em
um primeiro momento, representava o mais alto ponto da cultura musical do
Brasil Império, mas que, já ao fim da vida, era visto como representante de uma
corrente musical associada ao Antigo Regime decadente. De acordo com
Castagna ([S. d.], p. 16), o compositor pleiteava a direção do Conservatório, o
que não se concretizou, tendo em vista a preferência, àquela época, pela música
instrumental de estética germânica, às vésperas da proclamação da República.
Durante o Império houve forte associação com as correntes então em
voga, caracterizadas pela escola italiana de ópera, entretanto com o
estabelecimento da República, esse projeto estético era entendido como um
modelo “conservador”. Nesse momento, o Instituto Nacional de Música (antigo
Conservatório) voltou seu alinhamento para tendências “progressistas”,
identificadas nas escolas alemã e francesa. Nesse cenário, é compreensível que
a tentativa de Carlos Gomes, compositor associado indubitavelmente à estética
operística italiana, tenha sido frustrada. Sua frase célebre ilustra esta conjuntura:
“no Rio de Janeiro não me querem nem para porteiro do Conservatório” (Pereira,
2007, p. 65).
A realidade de Carlos Gomes, exímio compositor brasileiro da tradição
operística italiana e sua trajetória demonstram, por fim, a mudança de
paradigmas no campo da apreciação musical nos espaços artísticos, bem como
as ambições estéticas dos agentes inseridos no projeto de construção musical.
Enquanto as entidades privadas passaram gradativamente a se distinguir das
práticas musicais associadas ao passado, esta mesma premissa começou a
tomar corpo no ideário da intelectualidade brasileira do período, e os
compositores passaram cada vez mais a se associar com modelos de
composição distintos da realidade do Império. Essa conjuntura de elementos
demonstra o poder da mudança das estruturas musicais no cenário social, a
ponto de fazer um compositor de prestígio internacional como Carlos Gomes ter
poucas alternativas frente às suas opções de alinhamento estético.
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NA PRÁTICA
FINALIZANDO
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fomento à arte continuaram desempenhando papel representativo para além da
estrutura governamental oficial, ampliando o leque de possibilidades de atuação
profissional e mesmo da fruição por parte de um público anônimo crescente.
Nesse sentido, verificamos o surgimento de liceus de ensino musical e
Conservatórios oficiais, que contribuíram sistematicamente para a formação do
músico profissional, assim como potencializaram a formação de compositores
de prestígio em polos europeus com estéticas específicas. Por fim, verificamos
algumas manifestações musicais urbanas emancipadas com o crescimento das
cidades e a urbanização dos principais centros brasileiros, no intuito de
compreender a apropriação de gêneros europeus de dança e sua estilização no
contexto nacional, uma espécie de abrasileiramento destes com vias à
apropriação, releitura e acomodação no cenário social.
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REFERÊNCIAS
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VOLPE, M. A. Período romântico brasileiro: alguns aspectos da produção
camerística. Revista Música, São Paulo, v.5 nº2, p. 133-151, 1994.
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