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COLETÂNEA

DE

DOCUMENTOS,

NOTAS SOLTAS
E

ENSAIOS INÉDITOS
PARA A

HISTÓRIA
DE

MOÇAMBIQUE
por

ANTÓNIO RITA-FERREIRA
I

Agradecimentos e alguns lamentos


(14/9/2011)

A “coletânea” que finaliza esta apresentação pessoal no “site” da INTERNET, deve a


sua génese – e grande parte do seu conteúdo – à clarividente iniciativa, tomada em meados de
1983, pela Dra. Inês Nogueira da Costa (adiante Inês), pouco depois de ser empossada no
exigente cargo de diretora do Arquivo Histórico de Moçambique (adiante A. H. M.). Merece
inicial destaque o facto da plena concretização se tornou possível mercê do generoso apoio
financeiro que, em boa hora, foi concedido por uma prestigiosa instituição cultural sueca, a
“Swedish Agency for Research Cooperation with Developing Countries” (SAREC). Ao difícil
empreendimento foi dado o seguinte título oficial: “Projeto de microfilmagem de
documentação sobre Moçambique existente em Portugal” (adiante “projeto”).
Havia acabado de atingir o pesaroso sexagésimo aniversário quando Inês me
surpreendeu com um formal convite para participar, em tempo inteiro, nesse projeto cujo
interesse histórico logo considerei indiscutível.
Não me faltaram hesitações baseadas em realidades tão nuas como cruas: as fatigantes
quatro horas diárias, com ida e volta, em apinhados autocarros, comboios e metros; os
cansaços e desconfortos agravados por refeições parcas e apressadas; as doenças das vias
respiratórias causadas pelos invernos álgidos e encharcados, que tanto afetam quem viveu nos
trópicos africanos; os ambientes poeirentos e mesmo de duvidosa limpeza dos arquivos a
estudar e a microfilmar, nunca dispondo de sistemas de aquecimento ou de ar condicionado;
etc., etc. Pior ainda: no meu domicílio de Bicesse era forçado, sem alternativa, a cuidar da
esposa e do filho adulto quer um quer outro exigindo frequentes cuidados médicos.
Perguntava a mim mesmo: os desgastes derivados da idade, das doenças debilitantes
contraídas nos sertões moçambicanos tão perigosos nos meados do século, dos três
esgotamentos cuja causa foi medicamente atribuída a excesso de trabalho, das licenças
disciplinares negadas “por fazer falta ao serviço”, iriam permitir que me sobrassem reservas
físicas e psíquicas capazes de me manter com suficiente lucidez e dinamismo.
Acabei por aceitar. E aceitei por ter reconhecido que à Inês não faltavam esses ideais,
essa força de vontade, essa ânsia pela descoberta da verdade histórica, enfim, essas qualidades
de excelência que deviam inspirar os moçambicanos mais conscientes, no sentido de criarem
de raiz todas essas instituições modernas e mais eficazes que iriam ser indispensáveis à nação
que agora desabrochava.
Essa perceção precoce da singularidade da Inês surgiu quase de súbito quando, no
vetusto edifício da Direção dos Correios, presenciei casualmente esta cena: a tímida e quase
desconhecida jovem, no meio do público rumoroso, agachada no soalho, cercada por alguns
estudantes, manuseando, limpando e empacotando com sapiência, desenvoltura e dedicação,
os livros que o nosso comum amigo e mestre, Alexandre Lobato, já tão doente e debilitado,
pretendia enviar para Lisboa!
Atravessava conjuntura bem angustiosa essa “burguesia colonial”, execrada pelos
marxistas-leninistas que, no entender dos vencedores, devia ser aniquilada. Não admira que, a
par e passo, fossem dificultando, tributando e até proibindo a exportação do recheio das
moradias dos que pretendessem deixar Moçambique. Completos inventários datilografados
deviam ser submetidos ao parecer da Comissão do Controlo das Exportações das Pessoas
Singulares. Tal exigia longas e demoradas fileiras de peticionários, ao ar livre, desde
madrugada até à noite, com os desconfortos que se podem imaginar. Acresce que o conteúdo
dos contentores a exportar deveria ser submetido a uma segunda verificação, na altura do
II
embarque, ficando todo e qualquer equipamento sujeito a confiscação imediata caso
mostrasse sinais evidentes de que nunca havia sido usado.
Entretanto correu o boato de que continuava em funcionamento o Serviço dos Correios
que permitia a exportação de objetos de uso corrente como os livros ditos “não científicos”,
caracterizados por “só conterem letras”. Num salão do conhecido edifício, em plena cidade
baixa, os interessados podiam proceder ao empacotamento, no soalho, desde que trouxessem
os apetrechos necessários. Os vigilantes ambulatórios verificavam, aqui e ali, se haveria
abusos com bens de exportação proibida. Foram estas condições tensas, confusas e ruidosas
que pude observar. Contudo, aquela amostra de liberdade foi bem curta. Um dos vigilantes
veio a apanhar em flagrante delito alguém que, sub-repticiamente, tentava esconder (parece
que jóias) nos seus pacotes de livros. As altas patentes, considerando-a também perigosa,
mandaram imediatamente encerrar aquela via postal.
Mas a imagem da Inês em tal conjuntura e com aquele propósito generoso, permanecerá
bem nítida no meu espírito. Não errei na avaliação quase instintiva que me inspirou. Durante
os anos que dirigiu o A.H.U. realizou a obra notável que consta do “apontamento” que
publicou no primeiro número do periódico ARQUIVO. O simples facto deste último ter
ascendido ao nível de qualidade científica que atingiu é prova cabal do talento e da dedicação
daquela luso-moçambicana. Também digna de admiração foi a coragem que demonstrou por
ocasião da sua precoce viuvez e da decisão que tomou de optar pela nacionalidade
moçambicana.

***

Antes de referir os trabalhos de inventariação que iniciei em julho 1983, seja-me


permitido que introduza ligeiras correções na legislação citada na página 4 do nº 1 do
periódico Arquivo (abril 1987). A Portaria que criou o A.H.M. tem, na minha sinopse, o nº
2.267 e não 2.207. Um de nós errou. O Diploma Legislativo que o organizou e colocou
provisoriamente a cargo da Repartição Central de Estatística, tem o nº 635 e foi publicado no
B.O. 16/1939. Caetano Montez deve ter sido nomeado pouco depois como seu “encarregado”,
porque assim aparece no “António Fernandes”, de 1940. Porém, escaparam a Inês duas
disposições importantes:
a) A Portaria 5.104 (B.O. 16/1943) determinando que “a inutilização dos documentos
não podia ser feita sem se consultar o A.H.M.”;
b) O Aviso publicado na 2ª série do B.O. 21/1948, contendo a “relação dos documentos
que deviam ser remetidos ao A.H.M.”.
Com este assunto aconteceu o mesmo do que com muitos outros de superior
envergadura. Sem dúvida que, com boas intenções, os altos funcionários de todos os
quadrantes, vivendo no conforto das suas cidades, gabinetes e poltronas, multiplicavam-se em
legislação aparentemente indispensável mas que, na prática, era impossível de executar. Em
todas as administrações onde servi, encontrei montões de documentação oficial, no soalho de
compartimentos anexos à secretaria, sem qualquer arrumação nem defesa contra os insetos, as
larvas e outros parasitas bibliófagos. Na cidade da Beira, o rés-do-chão do edifício do governo
de Distrito estava atulhado com caixotes pejados e pregados.
Foi-me dada a explicação de que, nos termos das leis vigentes, toda essa documentação
antiga deveria ser remetida ao Arquivo Histórico de Moçambique. Todavia, sempre que este
organismo era contactado, respondia invariavelmente que não dispunha de meios, nem de
instalações e ainda menos de pessoal qualificado capaz de inventariar e de proteger a
documentação antiga. Como exemplo concreto, cito dois documentos excecionais que me
III
ocorreu salvar num anexo da Administração de Homoíne, amontoados com centenas de
outros. O maior constitui o relatório da Circunscrição Civil de Homoíne referente a gerência
do ano 1927, incluindo já o território e a população da Maxixe, circunscrição extinta no ano
anterior. É composto por 28 densas páginas datilografadas e de 21 grandes e minuciosos
mapas. O de menor dimensão tem por título “Circunscrição Civil Homoíne – Estatística
demográfica”. Ambos são da autoria do administrador Joaquim Nunes que gozava de
merecido prestígio e que publicou obras da sua autoria tanto no Boletim de Sociedade de
Estudos de Moçambique como no da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Revelo, pela primeira vez que, logo em julho 1975, não hesitei em chamar a atenção do
Reitor da Universidade Eduardo Mondlane para a existência dessas incalculáveis toneladas de
documentação oficial portuguesa, dispersas por tantos serviços públicos, em todo o território
de Moçambique. Realcei sobretudo o valor da correspondência confidencial e secreta. Duvido
que a tenham encontrado intacta.

***

Durante os cinco anos ocupados com a inventariação e microfilmagem, fiz da Sociedade


de Geografia a minha base em Lisboa. Havia sido admitido como seu sócio no ano de 1954.
Ali ainda tive o gosto de conhecer pessoalmente Gago Coutinho. E ali me encontrava, não
raro, com outras figuras bem conhecidas que tinham estudado e publicado obras sobre as
possessões ultramarinas. Foi com a sua ajuda, que iniciei o conhecimento direto de múltiplos
e mal conhecidos arquivos. Entre essas figuras eruditas encontravam-se os professores Jorge
Dias e Luís Albuquerque, o vice-almirante Teixeira da Mota e o meu colega oriundo das
colónias da África Ocidental, António Carreira, pai do conhecido economista a quem deu o
nome de Medina.
Foram unânimes em sugerir que desse primazia à inventariação do excecional acervo de
Reservados da Sociedade de Geografia. Com efeito, iniciei a tarefa a 1 julho 1983. Logo
deparei com os originais não publicados relativos à “Expedição de Serpa Pinto e Augusto
Cardoso do Ibo ao Niassa, com nove cartas, de 1885”, documento primário de alguma
relevância porque o segundo daqueles exploradores nunca procurou publicar a conferência
que pronunciou a pedido da S.G., no teatro de S. Carlos, na noite de 11 dezembro 1886,
apesar de ter sido ele quem efetivamente concretizou os objetivos da expedição devido à
precoce doença do primeiro. Nada descobri sobre o reencontro que teve com Serpa Pinto, em
Quelimane, a 16 maio 1886, reencontro que a documentação oficial britânica garante ter sido
tão conflituoso que chegarem ao ponto de, em público, se desafiarem para duelo. Este caso
exigiu a intervenção do governador.
No seu artigo de abril 1987, Inês prestou a seguinte informação: “Porque falamos da
nossa preocupação com a grande quantidade de documentação que temos fora de
Moçambique, é bom dizer que, desde 1983, temos a funcionar um projeto de “Recolha da
Documentação Existente em Portugal”. Neste momento uma equipa de investigadores e
técnicos de arquivo trabalham no projeto, com duas empresas de microfilmagem, e fazem um
trabalho em simultâneo em diversos arquivos e instituições portuguesas. O projeto é
totalmente pago pela SAREC e é orientado por nós, à distância, com uma visita semestral para
balanço e planificação de trabalho”.
Por razões que ignoro, Inês não aludiu ao facto de ter deixado como seu representante
em Lisboa, o Prof. José Fialho, docente do Instituto Social do Trabalho e das Empresas
(ISCTE). Calhou que, por decisão sua, me fosse distribuída a pior das máquinas de
microfilmar. Além de enorme dimensão, provocando protestos gerais, era possivelmente de
modelo antiquado, sujeita a constantes avarias. Estas eram corrigidas com alguma rapidez
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pelo próprio marido da operadora que trabalhava na mesma empresa. Por outro acaso também
infeliz essa operadora faltava durante períodos mais ou menos longos, alegando motivos de
doença. Essas prejudiciais avarias e faltas encontram-se referidas nos meus relatórios mensais.
A inventariação dos Reservados teve de ser interrompida porque a biblioteca foi dotada
de novas e melhores estantes. Naturalmente que o pessoal foi desviado para esta tarefa.
Aproveitei esse intervalo para conhecer o Arquivo Histórico do Ministério das Finanças
que António Carreira me garantira conter material importante. Ocupava vinte salões de um
antigo convento situado em S. Marta. Entre muita outra alheia ao Ultramar, deparei com a
documentação sobre as Companhias Pombalinas. Por circunstâncias de diversa ordem este
acervo não foi incluído na inventariação. Assim sendo tornou-se inútil gastar tempo.
Este Arquivo proporcionou-me uma agradável surpresa pessoal. Apurei que a minha
terra natal, aldeia de Mata de Lobos, teve outrora alguma importância. Constava já do
“Cadastro da população do Reino em 1527”, com 192 moradores. Nos Alvarás subscritos pelo
Marquês de Pombal no “livro de registo de decretos e ordens” (1761/64) consta, além dos
outros títulos, o de Comendador de Santa Marinha de Mata de Lobos. Em outros locais se
podem consultar os autos de posse relativos aos anos de 1656, 1681, 1689, 1707, 1711, 1750,
1753, 1782, 1791, 1808 e 1812.
Também não pôde ser microfilmado o Arquivo Histórico do Tribunal de Contas, mais
conhecido por Erário Régio, criado pelo Marquês de Pombal. Basta referir que era bem
conhecido e frequentado por historiadores brasileiros. Ocupava uma grande cave situada na
baixa pombalina e os seus enormes códices tinham quase um metro quadrado. Conclui não ser
passível de microfilmagem.
Desloquei-me então a outro crucial arquivo situado na Praça do Comércio, sob a tutela
do Ministério das Obras Públicas (depois Equipamento Social) Continha os Fundos do
Ministério do Reino e da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação (1755 a
1833). Exigiu 6.009 imagens.
Julgo ter aqui descoberto que, outrora, lhe foi atribuída a competência para conceder
nacionalidades portuguesas a imigrantes que a requeressem. Este atributo não se encontra
mencionado no Dicionário de Historia de Portugal, de Joel Serrão.
Por simples acaso, vimos, entre centenas de naturalizações concedidas, aquela a que se
refere a Narcy Banchor, capitão-mor do Corpo de Baneanes do Presídio de Moçambique,
natural de Diu. É datada de 21 fevereiro 1792.
São bem conhecidas as circunstâncias que levaram à formação, na Ilha de Moçambique,
de uma numerosa e importante corporação de mercadores hindus, popularmente conhecidos
por «baneanes» (forma aportuguesada do plural de «vanyia», designação da respetiva casta).
Sendo assim, limito-me aqui e agora a pedir atenção para as condições invulgares em que
aquela naturalização parece ter sido concedida. Na verdade, as centenas de registos que
consultámos obedecem a uma longa e estereotipada fórmula, na qual se acentuam os longos
anos de residência em Portugal, o exercício honesto de uma profissão bem definida e, com
frequência, o casamento com mulher portuguesa. Pois no caso de Narcy Banchor tal fórmula
não foi empregada. Pelo próprio cargo que desempenhava se conclui que não residia em
Lisboa. Tão-pouco estaria casado com mulher portuguesa. Pode aventar-se a hipótese da
naturalização ter sido juridicamente indispensável para que esse dirigente defendesse os
interesses corporativos dos seus correligionários perante as autoridades lisboetas, durante
qualquer missão de serviço. Todavia é muito anterior àquela data, mais precisamente 1776, o
registo que menciona os tecidos que se achavam na Casa da Índia por conta dos «Negociantes
Gentios (i.e. hindus) de Goa.
V
Também foi objeto de atenção um outro serviço público de origem pombalina: o
Arquivo da Alfândega de Lisboa, cujo acervo foi estudado em 1975, pelo historiador
brasileiro Caio César Boschi. É dos poucos que se salvaram do terramoto e do incêndio de
1755. Guardava sessenta e dois códices salvados do espólio da Casa da Índia. Continha tantas
e tão preciosas informações sobre Moçambique que sugeri a sua microfilmagem na totalidade.
Tal não foi possível. No meu relatório de outubro 1987 consta o seguinte: “Manuela Branco,
sob minha orientação, datilografou em duplicado as fichas deste Arquivo que já entreguei ao
Dr. José Fialho”.
Consultei igualmente documentos de imenso valor para a historiografia de Moçambique
que se encontram no “Catálogo de manuscritos respeitantes ao Ultramar da Academia de
Ciências de Lisboa – Série azul”. Também não puderam ser microfilmados.
O grosso do material microfilmado obteve-se no Arquivo da Marinha (105.000
imagens) e na antiga sede da Companhia da Zambézia. O acervo deste último era enorme
(mais de 600.000 imagens). Nunca fora objeto de quaisquer investigações por se tratar de uma
empresa privada. Juntamente com todo o recheio do edifício foi mandado destruir pela
gerência moçambicana. Esta destruição súbita, brutal e ilegal, parece não ter sido compensada
pelo estudo sistemático dos microfilmes. Isto explica a razão por que tomei a decisão de lhe
dar maior atenção e espaço nesta Coletânea. Tal decisão pode justificar-se pelo secretismo,
arrumo e qualidade da documentação, pelo longo tempo de existência (1892-1930), pelos
poderes e pela vastidão dos “prazos” concedidos.

***

Tirei proveito das numerosas e inéditas fontes consultadas para elaborar três dos meus
estudos, para cuja bibliografia peço a atenção dos interessados:

1º – Alguns documentos inéditos sobre os bens sequestrados a Baltasar Pereira do


Lago, governador de Moçambique de 1765 a 1779. “Factos & Ideias: Revista do Centro de
Estudos de Relações Internacionais” (Braga), ano III, 4-5, 1987, pp. 103-117.
Este estudo é precedido da seguinte dedicatória a Alexandre Lobato:

Pouco antes do seu falecimento, sugeriu o ilustre historiador que, nos arquivos que pretendia
pesquisar, procurasse elementos relacionados com o sequestro dos bens do governador citado no
título. É que, durante os longos anos que dedicara a historiografia de Moçambique, com conhecimento
impar da documentação primária, nada conseguira descobrir sobre esse assunto. Quis a sorte que,
durante as investigações, tivesse efectivamente deparado com alguns registos suficientemente
significativos.

2º – A Índia em alguns arquivos portugueses. “Studia” (Lisboa), 48, 1989, pp.


101/22.

Este número do periódico foi reservado para as comunicações apresentadas ao IV Seminário de


História Indo-Portuguesa, realizado em outubro do ano anterior.

3º – Ilha de Moçambique: cidade de um Oceano. “Oceanos” (Lisboa), Comissão


Nacional Comemorações Descobrimentos Portugueses, 25, janeiro/março 1996, pp. 30-44.
VI
***

Para terminar, julgo ser possível elaborar uma síntese válida sobre um caso precoce do
que hoje se designa por “economia global”, caso que envolvia simultaneamente quatro
continentes: A Europa, a Ásia, a África e a América do Sul.
Refiro-me à política económica pombalina, de protecionismo declarado aos
monopólios, sobretudo ultramarinos, dominados pela burguesia lisboeta. Refiro-me a todas
aquelas medidas legislativas que aboliram a liberdade de navegação para os portos da Ásia,
além do Cabo da Boa Esperança, liberdade concedida pela Lei de 10 setembro 1765.
Essa liberalidade degenerou em abusos de diversa ordem. Por tal motivo foi
determinado que, de futuro, ninguém pudesse navegar para os portos da Ásia, sem autorização
da Junta do Comércio. Tempos depois o Alvará de 19 junho 1772 proibiu os navios partidos
do Índico de escalarem o Brasil. Termina por ordenar que das naus provenientes da Índia “não
pudessem desembarcar fazendas da Ásia nos portos de Angola”. No seu preâmbulo ficou
definido, sem quaisquer equívocos, o direito de ser centralizado em Lisboa o comércio de e
para as possessões ultramarinas: “… da Metrópole Dominante é que se deve fazer o Comércio
e Navegações para as Colónias e não as Colónias entre si.”
No preâmbulo de outro alvará de 12 dezembro do mesmo ano, foram expostos, com
peregrina clareza, os prejuízos que, para os interesses do governo central e dos grandes
monopolistas e comerciantes de Lisboa, advinham dos contactos comerciais diretos entre a
Índia, Moçambique e o Brasil. Critica o facto de alguns negociantes brasileiros mandarem
carregar escravos a Moçambique comprados por preços rebaixados. Esta prática causava
grandes prejuízos ao comércio e à navegação de Lisboa. Por esses motivos determinou que
todos os navios que frequentassem os portos do Índico fossem obrigados a regressar em
viagem direta para Lisboa, fazendo apenas escala em Luanda mas proibidos de ali
descarregarem fazendas. Não repugna a hipótese de que a publicação destas e de outras
disposições visavam, sobretudo, proteger os interesses de duas companhias monopolistas,
afastando os concorrentes que conseguissem introduzir no Brasil escravos da África Oriental,
a preços competitivos, utilizando, para tanto, os tecidos indianos.
É fácil compreender a razão pela qual até 1794 os escravos moçambicanos destinados à
exportação tivessem como destino as ilhas francesas do Índico e das Caraíbas e, em menor
número, a costa da Índia. É que na sua compra predominavam os tecidos indianos importados,
praticamente em regime de monopólio, pelos comerciantes hindus (vulgo “baneanes”)
concentrados na Ilha de Moçambique.

***

Mesmo após 1808, apesar da corte se haver fixado no Brasil, os negociantes da praça de
Lisboa conseguiram assegurar uma posição dominante no tráfico negreiro da África para o
Brasil. Os circuitos comerciais aparecem quantificados e qualificados nos registos e
documentos avulsos da Casa de Índia, da Junta do Comércio, do Erário Régio e em outros
núcleos.
Apresentamos a seguir dois exemplos desses circuitos que exigem aturado estudo
econométrico: a) o escravo negro era indispensável à produção de tabaco no Brasil; parte
deste era enviado para Goa a troco do salitre consumido na Real Fábrica de Barcarena; a
pólvora aqui produzida era vendida aos negociantes que a despachavam para o Brasil e costa
de África com a finalidade de se conseguirem mais escravos e mais marfim; b) a indústria
açucareira e a extração e transporte de pau-brasil não podiam funcionar sem a mão-de-obra
VII
africana; através de Lisboa eram essas produções exportadas para a Alemanha, Flandres e
Países Baixos, regiões consideravelmente mais industrializadas do que Portugal. Os milhares
de armas de fogo e mesmo de armas brancas (terçados) nelas adquiridas pelos «Negociantes
da Praça de Lisboa» (entre os quais se notam muitos nomes germânicos) eram remetidas para
o Brasil e para a costa de África com a finalidade acima referida.
Malgrado a concorrência dos têxteis britânicos, facilitada pelo Tratado de 1810,
continuou a ser significativa a importação de tecidos indianos e chineses destinados ao tráfico
negreiro. É bem elucidativa a Relação dos Negociantes de Fazendas da China e da Ásia. Se
estes beneficiaram ou não da publicação do Alvará de 4 fevereiro 1811, que procurou
defender o comércio com a Índia, é questão que também merece ser aprofundada. Um parecer
da Junta do Comércio de 1814 louva «as providentes regulações com que até agora muito
sabiamente se tem procurado concentrar nesta capital (Lisboa) o negócio da Ásia a favor da
navegação portuguesa».
Pode afirmar-se que, pelo menos, até à independência do Brasil, as fazendas indianas
tiveram importância preponderante no tráfico escravagista. Nessa mesma data foi determinado
pelo Decreto 169, de 2 maio 1822, que podiam «ser admitidas a despacho fazendas dos Portos
d’Além Cabo da Boa Esperança, carregadas em navio português, ainda que de construção
estrangeira».
Pela leitura dos Livros de Registo com a cota MR 3 conclui-se que a Junta do
Comércio concedeu, nas primeiras décadas do Séc. XIX, grande número de pareceres
favoráveis em requerimentos de armadores que pretendiam enviar os seus navios para
comerciar na Índia e em Macau. Os «Negociantes Capitalistas dos Portos da Ásia», como a si
próprios se chamavam ainda em 1826 constituíam, sem dúvida, um grupo de pressão,
havendo suficientes provas de que se encontravam paralelamente envolvidos no tráfico
escravistas entre a costa Oriental de África e os portos brasileiros, tráfico que prosseguiu após
1822, já envolvendo, como é obvio, negreiros e navios da nova nacionalidade.

***

Julgo ser conveniente que todos os interessados por esta matéria tenham conhecimento
de que a minha intervenção na microfilmagem se prolongou de julho 1983 a maio 1988.
Foram 58 os relatórios efetuados. Necessitaram de 124 páginas datilografadas em A4, sem
espaços entre as linhas e com um espaço entre os parágrafos. A consulta destes relatórios é
indispensável para quem pretenda aprofundar os seus conhecimentos quer sobre os
microfilmes quer sobre a documentação microfilmada.
Estarei á disposição dos interessados que pretendam esclarecer legítimas dúvidas
durante as suas investigações.
IX
DESPEDIDA

Recentemente, vasculhando e escolhendo entre montículos de rascunhos, apontamentos


e recordações, deparei com o espantoso texto que se segue, escrito por um procero do Estado
Novo cujo nome não tive a precaução de apontar:
“Só nós soubemos concretizar plenamente a formação de um tipo humano universal por
meio de fusões somáticas e espirituais entre as etnias mais díspares. Sim, só nós! A energia
morfogénica do sentimento e a assimilação cândida e espontânea desse humanismo integral
foi traduzida de modo completo, sem restrições de ordem espiritual ou sanguínea. O nosso
comportamento específico não encontra explicação cabal em teses ou juízos materialistas,
antes se radica numa predisposição anímica, numa conceção inteligente do Mundo e da
Humanidade, numa autêntica vocação inata e irreprimível. É que, entre nós, os fatores
humanos prevaleceram sempre sobre os económicos, jamais eliminando brutalmente a sede
natural do Absoluto que palpita em todos os corações, mas instilando com prudência novos
valores morais e sociais, entre os quais rutila, como puro diamante, o respeito pelas liberdades
e pelas personalidades. No adoçamento da barbárie entrámos armados de fatores relevantes e
inigualáveis, de radicadas energias, que nos levaram a aprender hábitos e ideais dos mais
diversos ambientes e latitudes sem que por isso viéssemos a perder as visões supremas que
nos honram e nos distinguem. Baseámo-nos sempre no entendimento cordial e na justa
repartição de interesses, sem deixarmos de incutir os superiores esquemas morais, sociais,
políticos e religiosos que tão caros nos são. O fenómeno que é estruturado numa ordem de
valores diversos dos da força e onde se observa uma iniludível e evidente elegância moral de
princípios conducentes à dignificação, deve-se, em meu entender, a uma característica altitude
de espírito. Escusadamente se podem procurar no restante orbe terráqueo princípios mais
belos e mais nobres de aglutinação, por isso que, em prolongadas e inúmeras experiências,
forjámos uma psicologia com particularidades sui generis, verdadeiramente indefiníveis e
inimitáveis. Visámos sempre criar sólidas metáteses, com o mais ativo repúdio por
intransponíveis barreiras biológicas. E isto é, quanto a mim, o mais belo e persuasivo exemplo
de colaboração étnica e de existência pacífica que o Homem até hoje contemplou. O que, para
resumir, nos distingue dos outros é, senhores, termos uma consciência coletiva de missão”.
Este tipo de retórica era mais comum do que se pode imaginar. O Director da Escola da
Artes e Ofícios da Moamba, escreveu em 1938: … “(o filho do Império Português) poderá
nascer em plena selva, no mais recôndito do sertão, em primitiva choupana de capim, mas
assim mesmo, essa criança, esse filho de Portugal, branco, amarelo ou preto, se os fados o
houverem marcado com as qualidades que vencem, de grau em grau subirá ou poderá subir a
culminâncias que nenhuma lei ou preconceito lhe interdizem ou sequer dificultam”.
Em Moçambique foi Braga Paixão o mais típico representante desta delirante retórica
que pretendia fortalecer a unidade imperial por meio de elaborações mitológicas. O trecho que
se segue é sintomático: “Mas a nossa ação junto das populações indígenas é de civilização e
de nacionalização. Não trilhámos os mares, nem implantámos a nossa soberania em terras
distantes por intuitos de torpe ganância ou de ambição material. Acercámo-nos dos indígenas
para fazermos deles outros portugueses… A nossa vida é a emanação de uma alma e a
realização de uma fé. Temos que a transmitir aos povos que queremos trazer até nós. Essa
comunicação da nossa vida é a mais nobre característica da obra de amor que pretendemos
efetivar”.
Compulsando, mais uma vez, a documentação da época, apurei que a mais sólida
contestação com que se podiam desfazer esses pomposos apelos dos patriotas
fundamentalistas, pode ser encontrada nos numerosos discursos que Samora Machel proferiu,
a partir do Rovuma, ao iniciar a longa peregrinação que o conduziu à capital, durante quase
X
um mês, para coincidir com a data da independência. Proferiu muitos e inflamados improvisos
que, devido à rapidez da sua oratória e à impossibilidade de usar interpretes, mal puderam ser
compreendidos pelas multidões que o escutavam. Os trechos que apresentamos foram
recolhidos e publicados pelos jornalistas que o acompanhavam.
Exprimia insistentemente o seu rancor contra o colonialismo português que classificava
de ignaro, racista, violento e opressor, causa de todos os males e sofrimentos do povo
moçambicano. Eis um exemplo:
“Moçambique é mais rico, vinte ou quarenta vezes, que Portugal. Quinhentos anos, o
que há disso? Miséria, doença, fome, crime, humilhação, violações, falta de respeito, a
sociedade moçambicana destruída, a cultura moçambicana destruída. É por isso que nós
temos ódio, ódio profundo, que vive na nossa carne, contra o colonialismo português. Esse
ninguém nos tira”.
……………………………………………………………………………………………
“Assim, entrámos na fase de transição, da ocupação das cidades e vilas e dos quartéis
deixados pelo inimigo: tarefa difícil porque tivemos que atravessar a linha de demarcação
entre a nossa zona e a zona do inimigo. Viemos para as cidades onde os vícios, a corrupção
moral e material e todos os vestígios coloniais estão fortemente implantados. Mesmo assim, a
luta para nos impermeabilizarmos contra estas armas do inimigo está sendo realizada para que
sejamos implacáveis contra o gosto decadente do inimigo”.
……………………………………………………………………………………………
“Aqui, a Beira é o centro da discriminação racial… Desde crianças conhecemos a Beira
como satélite do «apartheid», do racismo da Rodésia e da África do Sul… Falar da Beira é
falar do crime contra a humanidade”.
……………………………………………………………………………………………
“A única cultura portuguesa que eu conheço são os bailes, que são feitos de noite nos
bares… Essa cultura diziam que era civilizadora. Nunca foi condenada essa cultura aqui em
Moçambique, como uma cultura imoral. É uma cultura que começa às nove horas da noite e
termina às quatro horas da manhã…

***

Sem dúvida que Aquino Bragança sentia por mim singular simpatia. Samora Machel
considerava este ilustre goês como seu braço direito e junto dele pereceu no célebre acidente
aeronáutico. Foi ele que insistiu em apresentar-me a Marcelino dos Santos, durante o primeiro
jantar oficial oferecido pelo Governo. Este dirigente limitou-se a estender-me a mão de modo
sacudido e, sempre mudo e mal-encarado, olhou-me fixamente e com visível rancor.
Aquino, possivelmente enredado na diplomacia secreta, veio algumas vezes a Lisboa e
teve a gentileza de me convidar para almoçar na Sociedade de Geografia. Falámos de Goa,
essa jóia do Oriente. Criticámos duramente as opiniões obtusas de Salazar, origem da
catástrofe que destruiu séculos de História.
Certo dia falando do comportamento da Frelimo, ousei acentuar: “Os vencedores
cometeram muitos erros. Pode compreender-se que hostilizassem os odiosos colonos, como
me classificavam. Mas é inaceitável que hajam hostilizado os nossos filhos, esses milhares de
jovens altamente qualificados, que se consideravam moçambicanos, que repudiaram o
passaporte português, que receberam a FRELIMO com entusiasmo delirante!
XI
Aquino, cabisbaixo, deu a explicação certa para os numerosos sintomas da governação
menos sensata que veio a desencadear a longa, sangrenta e destrutiva guerra civil: «Nós não
sabíamos …».
Tempos houve, em pleno Governo de Transição, em que a concessão de licenças pelo
Departamento do Turismo fosse gravemente prejudicada pelas sucessivas alterações do elenco
ministerial. Face a esta instabilidade, os Ministros evitavam exarar despachos alegando que
não dispunham de tempo suficiente para estudarem cada um dos assuntos. De facto, ao
saberem que iriam ser substituídos, devolviam em caixotes a numerosa documentação que
continuava pendente.
Foi com geral aplauso que, finalmente, surgiu um Ministro que sabia o que queria! Era
do conhecimento geral que importantes empresários (entre os quais se contava
Champalimoux) tinham já requerido a abertura de modernos casinos em ilhas e baías com
acesso marítimo. O seu objetivo consistia em captar endinheirados turistas da África do Sul e
de outros países sob influência britânica. Os processos iam-se arrastando sem solução.
Foi com geral apoio e admiração que um dos ministros referidos, julgo que o Dr. Jaime
Rebelo, lançou sobre o volumoso lote o seguinte despacho coletivo: “Arquive-se. Não está na
política da FRELIMO fomentar jogos de fortuna e azar”.
É com amargura que termino esta despedida exaltando a figura de um dos principais e
mais antigos defensores de uma “pátria moçambicana”: o Prof. Luís Polanah, que foi vítima
de um ato traiçoeiro praticado por alguém que tinha o dever de o defender. Este caso funesto,
junto com o sucedido com o do Pastor das Testemunhas de Jeová, Francisco Xavier Dengo,
bastariam para que rejeitasse a nacionalidade moçambicana, apesar de ali ter vivido e
trabalhado mais de meio século.
L. A. Domingues Polanah (adiante Polanah), nasceu no Chinde em junho 1921. Seu pai
era mauríciano e fora contratado pela Sena Sugar como perito provador. Após conclusão do
ensino secundário, Polanah ingressou no quadro dos Correios, Telégrafos e Telefones, onde
permaneceu de 1941-51. Desde esta última data até 1959 foi funcionário da Câmara
Municipal de Lourenço Marques, mais precisamente como encarregado do seu Bairro Social.
Entre 1950-58 participou em várias exposições artísticas promovidas pela “Casa da
Metrópole” e pelo “Núcleo de Arte” com desenhos, aguarelas, monotipias e óleos. Entre
1955-59 escreveu para o semanário “O Brado Africano” e em outras duas publicações,
numerosos artigos em defesa dos direitos da população indígena. Graças ao seu talento
artístico obteve uma bolsa que lhe permitiu concluir em 1963 o curso Geral de Pintura pela
Escola Superior de Belas Artes em Lisboa.
Logo a seguir ingressou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina
de Lisboa e em janeiro 1966 foi-lhe concedida uma licenciatura, com excelente classificação.
Até 1968, efetuou um estágio no Centro de Estudos de Antropologia Cultural e Museu
de Etnologia do Ultramar, sob a direção do Prof. Jorge Dias. Auxiliou também o professor
americano Donald Pierson, na tradução de textos clássicos da sociologia americana. Ao
contrário do que julgava esta atividade artística, literária e administrativa veio a transformar-
se em sério obstáculo no que respeita ao seu regresso a Moçambique. Tinha sido objecto de
uma acusação de atividades subversivas, acusação que oportunamente o levou à barra dos
tribunais onde foi absolvido. Todavia o Ministério do Ultramar, tornou bem claro que, caso
desejasse regressar ao Ultramar teria que escolher qualquer outra província alternativa.
Foi esta obstrução que o decidiu a optar por Angola, partindo para Luanda em dezembro
1968, onde tomou pose do cargo de Técnico de 1ª classe da Junta Provincial de Povoamento
de Angola. Realizou um trabalho brilhante e internacionalmente conhecido em prol das
populações rurais de Angola.
XII
Após o golpe de estado de 25 de Abril, pede a sua colocação, em comissão de serviço,
como Assistente da Universidade de Luanda, na Secção de Letras da cidade de Sá da
Bandeira (Lubango).
Contudo, a situação militar veio a agravar-se de tal maneira que foi obrigado a
abandonar o cargo para partir no último avião. Levando apenas alguma roupa e a
documentação indispensável, conseguiu atingir L. Marques, onde viviam suas tias. Entre
1975-76 foi admitido como assistente na Universidade de Eduardo Mondlane. Mas a
ignorância ou perversidade de qualquer subalterno ligado à Universidade, expulsou de
Moçambique, para sempre, o mais antigo, o mais valoroso, o mais humano, direi mesmo, o
mais ilustre de todos os moçambicanos. Aquele criminoso ilicitamente evocara a Resolução
do Comité Político Permanente – Decreto nº 15/77 (BRM nº 47, de 26/4/1977).
Na “Lição de Vida” da sua Jubilação, onde estive, a 27 Maio 1994, escreveu:
“Quando em 1976, procedente do Maputo me desloquei a Lisboa para tratar do
meu tempo de serviço durante o período colonial, o regime de Samora Machel
despediu-me sem qualquer justificação. Fiquei desempregado em Lisboa com três mil
escudos na algibeira, uma maleta de roupa para uma estância de quinze dias”.
3
“Muito do que escrevi precisaria de ser corrigido. A história é
sempre inacabada! Tudo quanto se escreve corresponde a um
estádio da investigação. A história é uma ciência viva, que se faz e
refaz. Há sempre equívocos e novas interpretações. Preciso é que
haja material e talento para a atualizar… Em história, temos de
utilizar todos os documentos e não só alguns.
José Mattoso, Expresso (Lisboa)
20 Março 2010”


DOCUMENTO
Os “Quatrocentos” que salvaram o cristianismo monofisita da Etiópia

Justus Strandes (1) sintetizou a intervenção portuguesa no Preste João de maneira que se
afigura desprovida de simpatia e até de veracidade:

“The route to Abyssinia via the Red Sea and Massawa had then been
known to the Portuguese for a long time, but was now again barred to them by
the Turks. Four hundred Portuguese, under Dom Christovão da Gama had been
sent, in a typically bold and chivalrous gesture, to the Abyssinian Christians
as reinforcements and had remained in the country, and it was this which
caused thought to be given again to establishing the overland route… After the
occupation of Mombassa in 1593, orders were repeatedly sent from Lisbon and
Goa to open up a route from Mombassa, Malindi or Barawa… But that the
route was now closed because of the Galla…”

Resumiremos a seguir os elementos que parecem ter maior interesse para objetiva
compreensão. Como se sabe, as determinações oficiais do Concílio de Calcedónia sobre a
dupla natureza de Cristo (divina e humana) não foram aceites na Palestina, na Síria e no
Egito. Isso deu origem a várias igrejas de tipo separatista, na sua generalidade designadas por
“monofísitas”: arménia, jacobita, copta, etc. Entre outras distinções, representavam Cristo
sentado em tronos mas nunca pregado em cruzes porquanto não possuía natureza humana. O
copta era o idioma que nessa altura se falava no Egito, sobretudo em Alexandria,
reconhecendo-se como simples derivação do milenar idioma vernáculo dito faraónico. Possuía
um alfabeto próprio, baseado no Grego e era defendido por um movimento ideológico e
monástico bastante vigoroso que subindo o Nilo Azul – talvez para fugir a perseguições –
conseguiu encontrar refúgio nas enormes escarpas da Etiópia Alta.
A casa reinante que aqui se formou guardava uma sólida tradição que a ligava às épocas
gloriosas de Israel. Salomão teria sido oficialmente visitado pela rainha de Sabá a quem
concedera hospedagem. Esta, após o seu regresso, dera à luz um filho do grande monarca
hebraico. Salomão reconheceu o recém-nascido como seu herdeiro, atribuiu-lhe o nome de
Menelique e o cognome de “Leão de Judá”. Este, já adulto, fora visitar seu pai. No regresso
conseguira, misteriosamente, trazer para a Etiópia a célebre Arca da Aliança que guardava as
fundamentais tábuas dos Dez Mandamentos que, no Monte Sinai, foram entregues por Jeová a
Moisés. Daí os Etíopes respeitarem preceitos judaicos como a circuncisão no sétimo dia, o
respeito pelo Sábado e a abstenção da carne de porcinos.
4
Chamava-se Ezana o grande monarca que, durante o Séc. IV, foi convertido ao
cristianismo monofisita por S. Frumêncio. Mais tarde, Ezana expandiu-se para ocidente e
chegou a conquistar Meroe. O reino assumita que se seguiu teve existência comprovada até
700 d.C. Ficou isolado do resto da cristandade após a conquista islâmica do Egito. Foi o rei
Lalibela, durante o Séc. XIII, que aproveitou a perícia dos canteiros que sabiam talhar estelas
em pedras rochosas, para confecionarem mais de dez igrejas monolíticas que, ao presente,
mereceram ser incluídas entre os mais belos monumentos da Humanidade.
Francis Robinson (2) acentuou a rápida expansão do império otomano a partir de 1500,
tanto em direção ocidental como meridional. Esta última foi motivada pela hegemonia
portuguesa no Oceano Índico, hegemonia considerada como ameaçadora para o comércio
islâmico e para as rotas dos peregrinos que se dirigiam a Meca. Inicialmente os Otomanos
procuraram resolver o problema recorrendo aos Mamelucos instalados no Egito. Constatada a
inépcia desta fação religiosa, impuseram-se no Egito em 1517 e, logo a seguir, em Meca e no
Iémen. Aconteceu que, à entrada do Mar Vermelho, os Etíopes tinham pouco a pouco
subjugado pequenas tribos já de confissão islâmica que vieram a ser designadas pelo
etnónimo de Adal.
Deve notar-se que o P.e Francisco Álvares (3) reservou o seu capítulo CXIV para
descrever em pormenor “a batalha que o Preste houve com El-Rei de Adel e de como
desbaratou o Mafamede capitão”.
Sendo assim, este outro dirigente islâmico pode considerar-se como um dos precursores
da hostilidade coletiva contra os cristãos etíopes. Na fase final, o glorioso Mafamede desafiou
para combate singular qualquer um dos cavaleiros inimigos. Foi um frade com o nome
italiano (?) de Gabriel Andreas que aceitou o desafio. Este não só conseguira vencer mas até
decapitar o cruel fundamentalista. Depois ofereceu a cabeça ao jovem Negus reinante. Em
recompensa foi nomeado “pessoa muito honrada e fidalgo de muito grandes rendas”. Era
“amigo dos Portugueses e entendia bem cousas da Igreja”. Os especialistas têm a
possibilidade de datar este decisivo frente a frente. O autor cita o mês de julho mas não o dia
nem o ano. Garante, contudo, que coincidiu exatamente com o êxito alcançado pelo vice-rei
Lopo Soares quando conquistou, destruiu e incendiou a importante cidade portuária de Zeila,
nessa entrada do Mar Vermelho.
Para abreviar, tentarei recapitular outros acontecimentos mencionados pelo mesmo
sacerdote que participou ativamente na primeira embaixada enviada pelo vice-rei, em 1520,
sob o comando de D. Rodrigo de Lima. Por felicidade ainda encontrou Pero da Covilhã não
só com satisfatória saúde mas também com invejável memória. Dele ouviu os seguintes
pormenores da viagem de exploração que, sob o disfarce de pacífica atividade mercantil, tinha
efetuado com Afonso de Paiva, por ordem direta de D. Manuel – ainda duque. Partiram de
Santarém a 7 maio 1487. Note-se a referência à África Oriental e, em especial, a Sofala.

“… E daí (Alexandria) compraram outras mercadorias e se foram ao


Cairo e aí estiveram até que acharam mouros mogarábis (mercadores) de Fez e
de Tremezém que iam para Adem e se foram com eles ao Toro e aí embarcaram
e foram ter a Suaquém que é na costa de Abexim e daí foram a Adem e porque
era tempo de monção se apartaram os companheiros e Afonso de Paiva fora por
terra de Etiópia e Pero de Covilhã por a Índia, ficando que a um tempo certo se
ajuntassem ambos no Cairo para virem dar conta a El-Rei do que achavam. E
daqui se partiu Pero de Covilhã e foi ter a Cananor e daí a Calecut e daí tornou
a Goa e foi a Ormuz e tornou ao Toro e ao Cairo em busca de seu companheiro
e achou que era morto. E estando para se partir, via de Portugal, houve nova
como aí eram dois judeus portugueses que andavam em sua busca e por grande
5
manha souberam uns dos outros e sendo juntos, lhe deram cartas d’El-Rei de
Portugal. Estes judeus, um se chamava Rabi Abraão e era natural de Beja, e
outro havia nome José e era natural de Lamego e era sapateiro. Este sapateiro
estivera em Babilónia e ouvira novas ou notícia da cidade de Ormuz e o dissera
a El-Rei D. João, com a qual nova dizia que El-Rei que folgara muito. E que
Rabi Abraão jurara a El-Rei que não tornaria a Portugal sem ver Ormuz com
seus olhos e dadas e lidas as ditas cartas continha-se em elas que se todas as
cousas a que vieram eram vistas e achadas e sabidas, que se fossem em boa
hora e lhes faria muitas mercês, e, se todas não eram achadas e descobertas, das
achadas lhe mandassem recado e por saber tudo trabalhassem e principalmente
fossem ver e saber do grande Rei Preste João e mostrar a cidade de Ormuz ao
Rabi Abraão. E além das ditas cartas os ditos judeus fizeram requerimentos ao
dito Pero de Covilhã que fosse saber do Preste João e mostrar a cidade de
Ormuz ao Rabi Abraão. E logo aí escreveu pelo judeu sapateiro de Lamego em
como tinha descoberto a canela e pimenta na cidade de Calecut e que o cravo
vinha de fora, mas que tudo se ali haveria e que fora nas ditas cidades de
Cananor e Calecut e Goa tudo em costa e que para isso se poderia bem navegar
pela sua costa e mares de Guiné vindo demandar a costa de Sofala em que ele
também fora, ou uma grande ilha a que os mouros chamam a Ilha da Lua
(Madagáscar). Dizem que tem trezentas léguas de costa e que de cada uma
destas terras se poderia tomar a costa de Calecut. E mandado este recado a El-
Rei pelo judeu de Lamego, se fora o Pero de Covilhã com o outro judeu de Beja
até Adem e daí a Ormuz e o deixou aí, e, daí tornou-se e veio ver Judá, e Meca,
e Medina, onde jaz o sançarrão (depreciativo de Mahomet) e, daí a Monte
Sinai. E tudo bem visto tornou a embarcar no Toro e foi até fora do estreito da
cidade de Zeila e daí caminhou por terra até chegar ao Preste João que lhe é
muito perto, e, chegou à corte e deu suas cartas a El-Rei Alexandre que então
reinava e diz que as recebeu com muito prazer e alegria, dizendo que o
mandaria à sua terra com muita honra. E neste tempo morreu e reinou seu
irmão Nahu, que o assim recebeu com muita graça e pedindo licença não lha
quis dar. E morreu Nahu e reinou seu filho David que ora reina e assim diz
pedir-lhe licença e não lha quis dar. Dizendo que não viera no seu tempo e que
seus antecessores lhe deram terras e senhorios, que as regesse e lograsse, que a
licença não lha podia dar. Este Pero de Covilhã é homem que todas as línguas
sabe… assim de cristãos como de mouros e gentios e que todas as cousas a que
o mandaram soube e assim delas dá conta como que as tivesse presente”.

***

Quase vinte anos depois, precisamente no ano de 1541, o governador da Índia D.


Estêvão da Gama, filho segundo de Vasco da Gama, penetrou no Mar Vermelho até Suez com
o propósito deliberado de neutralizar a esquadra turca que mais uma vez se preparava para
desafiar a hegemonia portuguesa no Índico. Ora, no regresso, aportou a Massaua e aqui, com
geral surpresa, foi intercetado por uma embaixada etíope enviada pela própria mãe do
imperador Claudius. Solicitava-lhe, em profundo desespero, rápido auxílio militar contra um
chefe mouro denominado Granhe que, após declarar “guerra santa” contra os cristãos, vinha
nos últimos catorze anos assolando o país inteiro cometendo toda a espécie de pilhagens,
massacres e destruições de mosteiros e igrejas. A maioria da população decidira abandonar
povoações, gados e terras cultivadas para se refugiar nas mais seguras montanhas onde
sobrevivia mergulhada em dificuldades.
Estêvão da Gama decidiu convocar um conselho geral, constituído pelos capitães e
fidalgos, a fim de ser discutida e tomada a decisão final. Concluiu-se, por unanimidade, que se
devia atender o pedido porque se tratava não só de um país cristão como também de satisfazer
6
os interesses da coroa portuguesa. Muitos dos presentes se ofereceram, declarando-se prontos
a enfrentar no terreno as forças invasoras. O governador incumbiu o seu próprio irmão
Cristóvão, de chefiar uma força de quatrocentos homens de armas, enquadrada por seis
capitães: João da Fonseca, Francisco Velho e dois pares de irmãos: Manuel e Vicente da
Cunha; Onofre e Francisco de Abreu. Seguiria também o patriarca D. João Bermudes
acompanhado por outro sacerdote. Concentraram na praia os equipamentos e as armas
necessárias. Como os etíopes dispusessem apenas de algumas mulas e camelos, os soldados e
seus oficiais – com Cristóvão da Gama a dar exemplo – decidiram transportar as cargas e
subir penosamente as serranias durante seis dias. Atingiram por fim Debaruá, capital da
província de Bahar Nagais. No mosteiro local foi organizada uma procissão que empunhava
as cruzes apropriadas. Os soldados solicitaram misericórdia e a especial proteção divina para
com D. Cristóvão. Trezentos homens foram distribuídos pelos capitães. Cem de entre eles
ficaram reservados para a guarda da bandeira real.
O relato dos acontecimentos ocorridos no desconhecido interior etíope ultrapassa os
propósitos desta coletânea. Limitar-me-ei a garantir que impressionam todos aqueles que
admirem o empenho desinteressado desses homens indómitos e generosos capazes de
empunhar armas e de arriscar a vida para proteger as vítimas indefesas do fanatismo político
ou religioso. É com alguma amargura que se relê a opinião tão afastada da verdade histórica
que formulou Oliveira Marques sobre aquele heroico cometimento (4):

“Seguiram-se outras embaixadas; a mais famosa foi a de 1541, chefiada


por Cristóvão da Gama (filho de Vasco da Gama) que alcançou destino trágico,
visto ter acabado às mãos dos invasores Somalis muçulmanos, que
massacraram a maior parte dos seus quatrocentos homens”.

Tenha-se em mente que esses homens não se limitaram a defender um credo religioso.
Eles defenderam a única nação dos imensos sertões africanos que desenvolveu uma
civilização milenária, sempre independente e dispondo de escrita própria. Da única nação
africana que soube desvendar, domesticar e expandir a planta que produz esse apreciado
estimulante que se espalhou por toda a Humanidade: o café dito arábica. Da única nação
africana que pela primeira vez, em 1896, conseguiu resistir e vencer uma potência europeia,
mais precisamente a famosa expedição militar italiana constituída por dezassete mil homens.
A literatura nacional e internacional sobre a Etiópia excede todas as expectativas, talvez
devido às célebres igrejas de Lalibela, esculpidas com grande engenho em enormes penhascos
graças ao uso apropriado de picões. Por ter sido reeditada em 1989 – e por os factos terem
sido confirmados pela documentação islâmica – limitar-me-ei a mencionar a compilação
organizada pelo P.e Baltasar Teles, mas sugerindo ao leitor que, para melhor elucidação, leia
de início o conciso e meritório comentário final redigido pelo Prof. Luís de Albuquerque, esse
sábio inesquecível que até ao final da sua vida dedicou corpo e alma a investigações sobre a
história da nossa expansão ultramarina (5).

***

Merece ser meditado este trecho da compilação (6):

“Esta é a verdadeira história da entrada de Dom Cristóvão da Gama com


os quatrocentos portugueses em Etiópia, por meio dos quais foi Deus servido
7
dar as vitórias passadas com tão admiráveis sucessos como temos visto, os
quais na verdade podem entrar no número das mais ilustres façanhas que no
mundo obraram as mui aventurosas armas lusitanas, pois só quatrocentos
portugueses bastaram para recuperar um império tão grande, tirando-o das
garras de um tão bravo leão que quase o tinha despedaçado e devorado; e
ficando só vivos coisa de cento e cinquenta portugueses, se houveram com tais
brios e valentia que eles foram os que mataram o Granhe e nos mais mouros
vingaram bem as mortes, assim do seu ilustríssimo capitão como dos mais
companheiros; e com serem tais estes serviços que fizeram em honra de sua
pátria e por mandado de seu rei, foram tão mal premiados que não houve em
Portugal nem na Índia quem desse ouvidos a seus gemidos com que por tantos
anos pediram que em satisfação de tão gentis serviços os tirassem de Etiópia,
porque se viam cativos daqueles mesmos a quem deram liberdade; isto ainda
adiante choraremos, agora nos alegremos com os que alcançaram tão nobre
vitória. Bem se deixa, pois, ver quão excessiva seria a alegria do imperador
quando alcançou a última vitória de tanta importância. Depois de dar muitas
graças a Deus, descendo dos altos de Oinadagá, assentou aquele dia seu arraial
perto de uma lagoa a que chamam mar de Dambeá, da qual dei já notícia
bastante”.

Francis Robinson (7) apresentou no seu sintético Atlas uma elucidativa representação
cartográfica na qual constam estes dados fundamentais:
a) A expansão otomana até ao Iémen;
b) O trajeto seguido por Ahmad Gran, que iniciou a guerra santa em 1531;
c) O auxílio que lhe foi prestado em 1541 pelas hostes otomanas que já dispunham de
armas de fogo e até mesmo de artilharia;
d) O local da batalha de Woina Dega onde em 1543 os portugueses sobreviventes se
bateram com tal vigor e coragem que derrotaram os invasores, como já foi mencionado. Os
otomanos bateram em retirada abandonando para sempre as inóspitas serranias da Etiópia,
onde nasce o Nilo Azul. A guerra santa perdeu o seu ímpeto e a velha nação conseguiu
sobreviver até ao presente.
Mais tarde os jesuítas vieram a dedicar-lhe especial atenção e tentaram até mesmo
impor a sua específica interpretação religiosa àqueles adeptos do monofisismo. Acabaram por
ser executados ou pelo menos expulsos. A propósito desta conversão frustrada, Oliveira
Marques escreveu o seguinte comentário judicioso (8):

“Na Etiópia, Portugal assegurou a sua influência mediante embaixadas,


ajuda militar e missões religiosas. Foram estas últimas, porém – não obstante os
conhecimentos geográficos que implicaram – as principais causadoras do
declínio da presença portuguesa na região. Tal como na China e no Japão,
embora num grau menos virulento, os Etíopes possuíam uma longa tradição de
cultura e uma religião profundamente enraizada. Jesuítas e demais missionários
sentiam pouco respeito e menos tolerância para com «hereges» e «cismáticos»,
como consideravam os Etíopes. Nem mesmo a Contra-Reforma aceitaria
compromissos. Dessa intolerância veio a gerar-se uma reação indígena contra
os missionários e contra todos os Portugueses em geral. Depois de muitos altos
e baixos na história das relações entre os dois países, os Portugueses viriam
finalmente a ser expulsos em 1634, encerrando-se, uma vez mais, a Etiópia
num isolacionismo feroz”.
8
Bibliografia

1) STRANDES, Justus (1971). The Portuguese Period in East African…. Nairobi, Quénia, E. Afr. lit.
Bureau, p. 275.
2) ROBINSON, Francis (1991). Atlas of the Islamic World since 1500. Amsterdão, Time-Life Books, p.
72.
3) ALVARES, P.e Francisco (1974). Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias.
Lisboa, Agência do Ultramar, pp. 317-321.
4) MARQUES, A. H. de Oliveira (1974). História de Portugal. Das Origens às Revoluções Liberais.
Lisboa, Palas Editores, Vol. I, p. 321.
5) Como oportunamente mencionarei, o Prof. Luís de Albuquerque afirmava-se competente para “ler
qualquer documento”. Testemunhei, no Arquivo Histórico Ultramarino, as dificuldades que a paleografia
levantava a esse dedicado investigador do Zimbabué que foi S. I. G. Mudenge.
6) TELES, P.e Baltasar (1989). História da Etiópia. Lisboa, Publicações Alfa/Biblioteca da Expansão
Portuguesa, 22, pp. 206/7.
7) ROBINSON, Francis (1991). Idem, p. 95.
8) MARQUES, A. H. de Oliveira (1974). Idem, p. 458.
9


DOCUMENTO
Novas sugestões para a retificação dos itinerários de António
Fernandes (Sofala)

Merece, logo de início, ser mencionado e elogiado o exemplo de um grande historiador


sul-africano que se dedicou a investigar o passado de Moçambique: Eric Axelson. Como se
sabe, cedo se distinguiu com as quase cento e vinte eruditas notas de pé-de-página que
facilitaram a compreensão desse valioso relato elaborado pelo jesuíta António Gomes, relato
concluído em Goa no ano de 1648. Oito anos depois voltou a notabilizar-se com o seu estudo
sobre as reações de Portugal durante a célebre contenda pela posse de territórios africanos, em
que se enredaram as diversas potências coloniais. Por fim publicou duas obras relevantes
sobre a formação de Moçambique desde 1488 a 1700.
Aconteceu que, no primeiro semestre de 1939, se deslocou a Durban para contactar com
o musicólogo Hugh Tracey que posteriormente ganhou projeção internacional com o estudo e
a divulgação do excecional talento musical revelado pelas orquestras de xilofones (as famosas
timbilas) do grupo étnico a que os invasores angunes do Séc. XIX aplicaram o etnónimo de
Chope.
Axelson era movido pelo propósito específico de se esclarecer sobre um documento que
tinha descoberto nos arquivos lisboetas e que conseguira traduzir para inglês. Ele lhe pareceu
obscuro porque havia falhado na sua coerente interpretação. Esperava encontrar dados
elucidativos consultando a coleção de antigos mapas da África Oriental que Tracey
conseguira reunir. Este, logo fascinado e com a devida autorização, resolveu dedicar-se em
pessoa a desvendar o misterioso conteúdo. De facto, veio mais tarde a publicar na África do
Sul as conclusões a que chegara.
Esse estudo pioneiro impressionou o investigador Caetano Montez, dirigente do
Arquivo Histórico de Moçambique. Verteu o documento para português corrente e facilitou a
sua leitura e compreensão com numerosas notas e sugestões cartográficas baseadas nos
amplos conhecimentos que tinha do passado moçambicano. A publicação consequente surgiu
com magnífica apresentação gráfica por, em 1940, ter sido integrada nos Centenários da
Fundação e da Restauração de Portugal. Melhorou em profundidade as hipóteses de Tracey.
Mais. Elogiou e resumiu as pragmáticas sugestões que Fernandes apresentara aos seus
superiores hierárquicos para se conquistar a colaboração dos proto-colonizadores islâmicos, já
suficientemente familiarizados quer com o litoral quer com o interior profundo. Sabe-se hoje
que já aí marcavam a sua presença pelo menos desde 900 d.C., isto é, seis séculos antes de
Vasco da Gama.
Eis, de forma simplificada, algumas considerações de Caetano Montez (1):

“A julgar, porém, pela carta de Almada, datada de 1516 (outro


documento descoberto em Lisboa por Axelson e do qual neste texto são
transcritos alguns dados) Fernandes deveria ter já percorrido mais
frequentemente o mato, ser um familiar dos sertões. Só assim se compreende
que os indígenas «o adorassem como a um deus» e que ele gozasse de tanto
prestígio «que onde ele vá, ainda que haja guerras, por amor dele logo são
apagadas». Naturalmente, ganhara já esse prestígio quando o «mandaram a
descobrir o Monomutapa». A sua missão de reconhecimento das rotas que
10
conduziam à corte do senhor das Minas não teve consequências e não foi
considerado o seu conselho de estabelecer uma posição de modo a cortar a
corrente de tráfico que os árabes desviavam de Sofala em face da concorrência
dos portugueses. Pelo contrário, os portugueses seguiram as pistas dos árabes e
Sofala cedeu o passo a Sena e Tete como via comercial do ouro. António
Fernandes foi esquecido. E é com surpresa comovida que, quatro séculos
passados, vemos surgir a sua figura de sertanejo e aventureiro – homem rude e,
provavelmente, analfabeto, degredado, talvez com morte de homem às costas,
valente e decidido, astuto – e o visionamos calcorreando o sertão, seguido pela
cáfila de carregadores, afrontando perigos e febres, vivendo por aí fora à cafre –
a serviço de El-Rei de Portugal! Pouco sabemos dele. Veio para a África na
armada do Gama ou na de Cabral. Descobrimo-lo, desfocadamente, em Quiloa,
no ano de 1501. Surge-nos, agora, em Sofala… Que teria sido feito dele,
depois? Ficaria por aí num canto do mato, varado de azagaias e frechas – ou
teria casado com alguma princesa, filha dum desses reis cafres que amiúde
visitava? Ignoramo-lo. Todavia, fosse como fosse, à sua memória devotamos
este livro em que o seu nome é arrancado do esquecimento de séculos e lhe é
dado, na história de Moçambique, o lugar que ele bem merece como obscuro
heroi da exploração do continente «portentoso». O destino encarregou-se de lhe
prestar uma outra homenagem: a de que a sua reentrada na história se fizesse
quando Portugal celebra os centenários da Fundação e Restauração da
Nacionalidade…”.

O historiador Alexandre Lobato também estudou a controversa matéria e introduziu


valiosas achegas nos três volumes que dedicou ao período de 1498 a 1530 (2).
Pela parte que me cabe, consegui apurar alguns dados que julgo inéditos. Acrescentei o
mais provável enquadramento sócio-económico no qual o destemido explorador teve que se
movimentar e de coligir informações preciosas (3). A presente revisão temática permitiu que,
por sorte, conseguisse localizar mais topónimos referidos por Fernandes, baseado na
comparação de coordenadas geográficas, em quatro mapas mais recentes e rigorosos (4) (5)
(6) (7).
Mas continuando. Nos princípios de 1513, acompanhado por um grupo de mulunguanas
(do suahili m’ngwana, homem livre) foi mandado seguir diretamente para o rio Zambeze, que
não pudera visitar durante a primeira viagem. É possível que o novo capitão de Sofala, Simão
Madeira, tivesse em mente não só a secular Sena mas também outra grande povoação-feira,
Tete, situada próximo da serra de Otonga, a montante da garganta de Lupata, conforme
constava de uma carta subscrita por António de Saldanha. Mas o “senhor da caravana”,
agindo de propósito, escondeu-lhe a existência desses dois principais centros. Desviou-o para
um outro centro com características semelhantes, chamado “Onhaqouro”, também na margem
direita do Zambeze mas a jusante da gigantesca garganta do Lupata.
Julgo que – embora tivesse menor importância – este centro merece as observações que
se seguem. Foi fácil descobrir a sua localização exata. Felizmente coincide com a sugestão
feita por Lobato quanto à proximidade com Tambara. Na verdade, Inhacoro foi, durante o
período dito colonial, o nome oficial da sede do extenso posto administrativo da Tambara,
pertencente à circunscrição da Chemba. Este topónimo pré-gâmico ainda foi respeitado na
“Divisão Administrativa” impressa em 1955 (8). Relatou Fernandes que o respetivo “rei”
habitava um núcleo urbanizado situado na margem de um grande rio, sendo senhor de ricas,
vastas e populosas terras. Estava a quatro dias de viagem da região produtora de ouro. Esta
antiquíssima escolha de Inhacoro como capital provincial e natural estação para o comércio a
longa distância – pode explicar-se por múltiplas e substanciais vantagens. Em primeiro lugar
era equidistante em relação à corte dos Mutapas, aos filões de Manica, aos ricos campos
11
auríferos banhados pelo Luenha e pelo seu afluente Mazoe, e, enfim, às famosas pradarias
cinegéticas da Gorongosa e de Cheringoma. Em segundo lugar, evitava a tão difícil como
perigosa garganta da Lupata. Em terceiro lugar, facilitava transportes diretos entre o Médio
Zambeze, o Luabo e o Oceano Índico, fora do alcance dos súbditos portugueses que preferiam
a barra do Cuácua, como os residentes em Quelimane. Em quarto lugar, oferecia satisfatórias
facilidades para manuseamento, armazenagem e comercialização das mercadorias
transacionáveis. Em quinto lugar estava estreitamente relacionado com Bandar, na outra
margem do rio, topónimo que em arábico significa “porto”. Entre parênteses lembro a
possibilidade da rota comercial entre Bandar e a costa seguir as etapas sugeridas por R. A.
Hamilton e W. Rangeley, em relação ao percurso seguido por Gaspar Bocarro em 1616, desde
Tete até Quilua (9).

***

Ponderando estes pormenores, não é para surpreender que o rei de Inhacoro, sem dúvida
islamita, dispusesse de embarcações próprias e de pilotos competentes e que, com claras
intenções, tenha insistido com Fernandes para que aceitasse a oferta de um confortável
retorno a Sofala, assim aproveitando tão rápida, cómoda e talvez gratuita via fluvial e
marítima. Recorde-se que, logo no primeiro contacto com o visitante, deixara bem esclarecido
que, embora a presença do estrangeiro fosse do seu agrado, não lhe podia esconder a
indignação que sentia face aos comportamentos danosos e agressivos que, segundo era voz
corrente, os portugueses vinham adotando contra os mercadores mouros que negociavam nas
suas terras. Perguntou-lhe, sem rebuço, se tal correspondia à verdade.
Deste interessante diálogo quinhentista ressalta, de imediato, a importância fundamental
dos intérpretes bilingues. Fernandes dominava bem a língua de Sofala mas não outra também
vernácula mas assaz diferente, popularmente designada por “botonga”, falada pelos habitantes
da mesma margem direita onde se situava Inhacoro. Esta marcada diferenciação linguística foi
mais tarde confirmada pelo insuspeito Fr. João dos Santos, também fluente na língua de
Sofala (10).
Valeu a Fernandes ser acompanhado pelos islamizados mulunguanas que conheciam os
povos, as línguas, os chefes, as rotas, as feiras, as minas, as águas potáveis, os vendedores de
alimentos, etc. Por nascimento local ou mestiçagem, gozavam também de maior resistência
contra as doenças tropicais. O seu conhecimento das línguas indígenas tornava-os
imprescindíveis tal como o eram, durante o período colonial, os milhares de intérpretes
oficiais que se distinguiam em muitos serviços públicos e em parte das atividades privadas.
Mas retomando à viagem de Fernandes. Por haver recebido ordens terminantes para
visitar de novo o Muene Mutapa, não pode aceitar o tentador convite. No entanto ofereceu ao
potentado que o hospedara, um arcabuz e um escravo decerto já familiarizado com o
manuseamento eficaz dessa terrífica e desconhecida arma de fogo.
Logo à partida foi de novo ludibriado pelos seus guias. Não o conduziram a Tete, como
seria lógico, mas sim a outra grande feira semanal, chamada Ynhacouce, que não produzia
ouro mas o empregava como meio de troca para todos os produtos. Julgo pertinente apresentar
algumas sugestões que poderão facilitar a localização desta feira interior.
O facto do respetivo rei ser também capitão-em-chefe do Muene Mutapa, reforça a
hipótese de que as suas terras se situassem na parte mais oriental do império. Com esta
extensão territorial os Mutapas procuraram, decerto, alcançar o oceano e dominar a margem
direita do Zambeze para poder controlar eficazmente as rotas comerciais com o mundo
ultramarino. Foi, por conseguinte, um precursor do Caronga Muzura que atuou do mesmo
12
modo e pelas mesmas razões, em meados do Séc. XVII, mas em relação à margem esquerda
do grande rio.
Aquele largo corredor foi atravessado em 1590 por Fr. João dos Santos que definiu de
modo preciso a fronteira entre o império dos Mutapas e o reino de Teve: o rio Tendaculo, cujo
nome foi mais tarde mudado como convinha para Sambazo, derivado do verbo chi-sena ku-
sambadza que significava “negociar em viajem”. Assim sendo, aquela feira e capital
provincial visitada por Fernandes, tinha alguma relação com o topónimo “Inhacoche” cuja
exata posição não consegui descobrir mas que um documento do Séc. XVII classificou como
“importante povoação e capital das terras da Gorongosa”. De facto, cerca de 1750 constituía o
centro, talvez fortificado, onde residia e dominava D. Ignez Gracias Cardozo que M. Newitt
classificou como “personalidade formidável”. E aqui abro mais uma vez parênteses para
exaltar um desses estudos baseados na imensa documentação portuguesa, estudo concretizado
pelo investigador Luís Frederico Dias Antunes (11) que em 1994 apresentou uma
comunicação de surpreendente minúcia, onde conta ter descoberto uma conspiração de
jesuítas contra essa sertaneja “mulher de armas”, mestiça natural de Goa. Esclarece que, com
efeito, ela se refugiou na sua fazenda de Inhacoche quando mobilizou fiéis guerreiros e
proclamou revolta contra as brutalidades cometidas por um ferocíssimo Telles de Menezes
com quem tinha contraído um matrimónio de conveniência que teve final desastroso. Luís
Antunes, por comunicação pessoal, confirmou que também não conseguira localizar o sítio de
Inhacoche. Sabemos, contudo, ser lugar rico em caça grossa e beneficiando de pluviosidade
elevada, situado algures na vasta região compreendida entre o oceano, o Zambeze e, ao sul
deste grande rio, um outro menor, perpendicular à costa que outrora se chamava Tendaculo.
Como já acentuámos, Fr. João dos Santos, que fez o trajeto terrestre a partir de Sofala até à
foz do Zambeze, deixou bem explícito que o então Tendaculo servia de fronteira entre o
Muene Mutapa e o reino de Quiteve. Sugiro que a feira de Inhacoche visitada por Fernandes
se situasse no local onde em tempos recentes foi construída a povoação de Inhaminga. Pode
afirmar-se que aquele topónimo é alheio à conhecida mina de ouro de Inhaoxe, situada perto
do monte Xiluvo, a cinco quilómetros do meridiano 34, local depois atravessado pela linha-
férrea da Beira. Mais ainda. Axelson errou na leitura do manuscrito quando escreveu:

“Dizem que aquela feira é tão grande como a das vir tendes e não há
outra moeda senão ouro por pesos”.

Na sua nota de pé-de-página, Caetano sugere a existência de uma determinada feira,


decerto bem conhecida no Portugal da época. Todavia, não a conseguira identificar. Lobato
consultou o manuscrito original e descobriu o verdadeiro topónimo: Virtudes. Precisou que
no Séc. XVI, esta grande feira funcionava em Aveiras de Cima, cerca de 25 km a sudoeste de
Santarém.

***

Muito recentemente – e também por acaso – deparei com a localização exata da


Inhaperapara, citada por Fernandes, após o Báruè e a Betôngua. No mapa das operações
efetuadas na última guerra do Báruè, contendo os “itinerários das diversas colunas”
encontram-se as “Terras de Inhapalapala”, no centro do quadrado formado pelas latitudes 17 e
17,5’ e as longitudes 33 e 33,5’. Há, de qualquer modo, coincidência com a localização
proposta por Tracey e por Montez. Para maior precisão acrescentarei que se situava no mesmo
paralelo do que a conhecida povoação de Chemba, na margem do Zambeze.
13
Outros documentos fornecem dados sobre a geografia económica da região e a
planificação das viagens de Fernandes. Alexandre Lobato (12) acentua ter sido António de
Saldanha o primeiro capitão que deu informações exatas sobre o comércio mourisco,
acentuando a existência de feiras no sertão onde as fazendas indianas eram trocadas por ouro
e por marfim. Saldanha apresentou por escrito em 1511 as informações que conseguira obter
sobre a utilização intensiva do Zambeze pelos islamitas que procuravam ultrapassar até
mesmo as terras dos Mutapas. Essa profunda penetração foi comprovada pelas modernas
escavações arqueológicas, sobretudo pelas provas encontradas em Igombe Ilede, no longínquo
planalto onde desagua o Cafué (13). Foi exatamente Saldanha que revelou a existência de uma
garganta (decerto a Lupata) onde o ímpeto do caudal exigia que as mercadorias fossem
desembarcadas, transportadas por carregadores e reembarcadas a montante, enquanto as
sólidas canoas monóxilas eram rebocadas à sirga. Após vinte léguas bem remadas surgia
sempre na margem direita uma montanha imponente, chamada Otonga. No espaço entre ela e
o rio encontrava-se outra povoação-feira, sem dúvida a que veio a ser designada por Tete.
Note-se que, mais tarde, aquela raiz linguística tonga passou a ser aplicada em simultâneo ao
grupo étnico, à língua vernácula e, enfim, ao próprio ouro aluvionar extraído das areias do
Luenha. Apenas a serra mudou a sua denominação para Caroeira.
Na época das viagens realizadas por Fernandes em 1511/2, vivia o potentado gentílico
Inhamunda a sudoeste de Sofala, a cinco dias de viagem do porto de Inhambibe, por
conseguinte entre a margem sul do Buzi e a margem norte do Save. Em dezembro daquele
ano, Inhamunda enviou embaixadores a Sofala, com presentes de ouro, informar J. Vaz
d’Almada de que se havia revoltado contra o distante Mutapa. Solicitou a aliança dos
Portugueses e a nomeação de representantes da Coroa. Garantiu a liberdade de trânsito às
caravanas comerciais e prometeu fornecer-lhes géneros alimentícios. Aproveitando estes
protestos de amizade, o feitor ainda mandou Fernandes comprar mantimentos a Inhambibe.
Esta diligência foi infrutífera devido à grave e generalizada carência de bens alimentares.
Mais tarde o famoso sertanejo foi nomeado representante da Coroa e mantido na corte do
Inhamunda de abril 1517 a março 1518, conseguindo aumentar o volume das trocas.
Seja como for, os dados recolhidos por Fernandes permitiram concluir que os islamitas
(os seculares “mouros” dos portugueses) continuavam a negociar como de costume não só ao
longo do litoral mas também nos mais longínquos sertões. Com os seus limitados recursos
dispersos por todo o Oceano Índico, Portugal não dispunha de poderio naval para combater
com eficácia a intensa atividade de milhares de pangaios que – como sempre haviam feito –
se ocultavam nos inúmeros abrigos, ilhotas, enseadas, ancoradouros, braços de mar, etc. Nem
mesmo lhes faltavam esses areais que a maré baixa punha a seco, permitindo o fácil
manuseamento das cargas até à flutuação ser reposta pela maré alta.
Para melhor se compreenderem as realidades sócio-económicos da região e da época,
convém relembrar as cifras que Alexandre Lobato nos forneceu sobre os anos de 1517, 1523 e
1532 durante os quais entraram na Casa da Moeda em Lisboa, nada menos do que 1.395 kg de
ouro provenientes da Costa da Mina contra apenas 47 kg oriundos de Sofala. Acrescenta que:

“Ao findar este primeiro ciclo histórico moçambicano (até c. de 1530)


estava aberta a luta que durou dois séculos e meio entre os monopólios do
Estado (incluindo os seus arrendamentos) e a liberdade comercial dos
moradores… guerra invisível que em Moçambique conteve sempre o Estado
em limites acanhados, impotente para qualquer ação de envergadura a favor da
Fazenda Real”.

E mais adiante:
14

“… De Cambaia a Sofala havia mouros ao longo de toda a costa, política,


económica e socialmente organizados, fazendo negócio pelo mesmo sistema
português, isto é, trocando panos, trazidos por mar, por ouro e marfim levados
do sertão. Nenhum dos dois grupos foi capaz de exterminar ou expulsar o outro
e… acabaram por se entender. Esse entendimento foi ao que parece, a base em
que se organizou com solidez o comércio clandestino. Mouros e portugueses,
deram-se as mãos, e como aos primeiros era impossível ou de sério risco ir a
Cambaia buscar o fato (tecidos), esperavam que os portugueses o trouxessem”.
“Esta predominância dos afro-arábicos e dos portugueses trabalhando por conta
própria – ambos contrabandistas à face da Lei – apenas nos fins do Séc. XVII
começou a ser superada pelos hindus, como grossistas e capitalistas sedentários
e, ao longo do vale do Zambeze e do planalto aurífero, pelos goeses cristãos,
como viajantes retalhistas. Os maometanos de Diu e Damão (e não da Arábia
ou do litoral arabizado ao norte do Zambeze) apenas tiveram alguma relevância
desde Sofala a Inhambane. Em qualquer dos casos, o lucro obtido com os
leoninos termos de troca (ouro e marfim por tecidos e missangas) continuou a
beneficiar incomparavelmente mais a Índia do que Portugal”.

Bibliografia

1) TRACEY, Hugh (1940). António Fernandes – Descobridor do Monomotapa, 1514-1515. L. Marques,


Arquivo Histórico de Moçambique/Centenários da Fundação e Restauração de Portugal, Tradução
portuguesa e notas por Caetano Montez, pp. 5/6.
2) LOBATO, Alexandre (1954/1960). A Expansão Portuguesa em Moçambique 1498-1530. Lisboa,
Agência Geral do Ultramar, 3 volumes.
3) RITA-FERREIRA, António (1999). African Kingdoms and Alien Settlements in Central
Mozambique (c. 15th – 17th Cent.). Universidade de Coimbra/Departamento de Antropologia.
4) BAPTISTA, J. Renato (1892). Caminho-de-ferro da Beira a Manica – Excursões e Estudos
Efectuados em 1891. Lisboa, Imprensa Nacional.
5) PAIVA d’ANDRADA, Joaquim C. (c. 1888). Mapa da região entre os paralelos 15 e 23 e os
meridianos 27 e 35, com localização das povoações, chefes, rios, montes, etc., limites do tratado
11/6/1891.
6) BEACH, David N. (1993). As origens de Moçambique e Zimbabué: Paiva d’Andrada, a Companhia
de Moçambique e a diplomacia africana, 1881-91. Maputo, Arquivo – Boletim do Arquivo Histórico
de Moçambique, 13, pp. 5 a 80, com mapas.
7) COUTINHO, João de Azevedo (1904). Relatório da Campanha do Báruè em 1902. Lisboa, s/ ed..
8) Divisão Administrativa da Província de Moçambique aprovada pelo Decreto N.º 39858 (1955). L.
Marques, Imprensa Nacional.
9) RANGELEY, W. H. J. (1954). Comments: on R. A. Hamilton’s paper. Blantyre, Nyasaland J., 7, 2, pp.
15-23.
10) SANTOS, Fr. João dos (1999). Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente.
(Introdução e notas de Manuel Lobato e Eduardo Medeiros). Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
11) ANTUNES, Luís Frederico Dias (1994). D. Ignez Gracias Cardozo: uma mulher de armas. Lisboa,
Congresso Internacional/Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres/O Rosto Feminino
da Expansão Portuguesa, pp. 789-798.
12) LOBATO, Alexandre (1964). Da Época e dos Feitos de António de Saldanha. Lisboa, Centro de
Estudos Históricos Ultramarinos.
13) PHILLIPSON, D. W. (1976). The Later Pré-History of Eastern and Southern Africa. Heineman,
London.
15


DOCUMENTO
A origem histórica das “quatro casas reais” do Império de Gaza

Foram os invasores dirigidos por Sochangana que vieram a fundar o Império a que deu
o nome de Gaza, em homenagem a um bisavô. Esse império, na sua máxima extensão,
compreendia o território entre o Zambeze e o Incomati e entre o Oceano Índico e o curso
superior do Save, a partir da sua inflexão para norte. Atingiu, por conseguinte, a maior
superfície e o mais elevado potencial demográfico entre as diversas unidades políticas que
nasceram das colossais convulsões do Séc. XIX. Certamente que, para esse notável fenómeno
de «alargamento de escala», contribuíram as superiores potencialidades que a região oferecia
ao poder central, para que pudesse acumular riqueza por meio de tributos e confiscações.
É sabido que Sochangana foi, pela primeira vez, visto e descrito por insuspeitos
europeus, no dia 8 outubro 1822. Pertenciam à guarnição de um dos barcos da Armada
Britânica que, sob o comando de William F. Owen, patrulhava o Canal de Moçambique. Um
dos seus escaleres fazia usuais reconhecimentos – dessa vez no rio Tembe que desagua na já
cartografada e nomeada “Delagoa Bay”. Distinguia-se dos seus acompanhantes por uma pena
especial espetada no cabelo encerado em forma de coroa. Era algo barbudo e, como todos,
empunhava larga azagaia e grande escudo de pele endurecida.
A irrupção desses invasores aparece, nos documentos do presídio português, datada de
julho 1821. É possível que Sochangana se haja inicialmente fixado, cerca de 1820, nas
margens do rio Maputo que atravessava as terras pertencentes a um chefe assim denominado,
mas de uma etnia subalterna, designada por “tsonga”. O grande rio era conhecido, pelas
populações meridionais – mais precisamente chamadas “angunes (Nguni)” – não pelo nome
de “Maputo” mas pelo de “Pongolo/a”.
Como foi referido, tudo prova que haja ocorrido em 1818/9 a grande batalha em que a
confederação chefiada por Chaca-Zulo venceu a sua rival que tinha sido formada por Zuíde.
Foi essa incontestável derrota que levou os vencidos “indunas” a partirem, com a sua gente e
os seus regimentos, para as desconhecidas terras nortenhas. Tal foi a origem desses violentos
conflitos e dessas grandes deslocações populacionais que chegaram a afetar as margens
orientais do lago Tanganica. Alguns propuseram para esse colossal fenómeno, de
consequências tão trágicas e sangrentas, a designação genérica de “m’fecane”.
Sochangana foi prosseguindo, lenta mas firmemente, em sucessivas deslocações para as
regiões nortenhas, em busca de condições propícias para reconstituição das manadas, para o
recrutamento de futuros guerreiros e, enfim, para captura de mulheres com melhor aparência
física. Atingiu o Limpopo cerca de 1827 e ali decidiu fundar a primeira casa real
denominada Chidoache ou Legóte, onde se fixaram definitivamente todas as viúvas de seu
pai, com os respetivos descendentes.
Talvez devido às conhecidas ofensivas de Dingane, irmão e regicida de Chaca-Zulo,
Sochangana prosseguiu a sua rota migratória atingindo o interior de Inhambane em 1834, ano
em que derrotou e massacrou a expedição militar organizada pelo próprio governador.
Continuou em direção ao rio Save que atravessou, infletindo depois para o afamado noroeste,
tão pródigo em montanhas férteis, regadas e salubres como eram as da sua natalícia
Cordilheira do Drakensberg. Em 1836/7 não tardou em atacar, derrotar e expulsar N’qaba, o
seu rival e conterrâneo então instalado no presente território do Zimbabué, perto da atual
16
fronteira. Porém, esta presença nortenha de Sochangana e da sua gente limitou-se a uns dois
anos porque foi dizimada por mortífera e incontrolável epidemia de varíola. Apaziguou os
espíritos de antepassados vingativos mudando de nome e abandonando essas terras altas.
Passou a chamar-se Manucusse e regressou sem demora ao vale do Limpopo, deixando
indunas de confiança – entre os quais seu filho Muzila – a completarem a ingente tarefa de
conquista e governação do vasto território que se estende do Save ao Zambeze. Como se sabe,
fixou-se finalmente em Chaimite. Entre 1840/5 as constantes investidas dos seus guerreiros
provocaram a partida para o Transval de algo como cem mil habitantes da etnia tsonga.
Faleceu em 1858 em Chaimite, onde ficaram as suas viúvas e descendentes. Foi assim que
nasceu a segunda casa real.

Guerra de sucessão entre Muzila e Mauheue

Por infelicidade, devido a divergentes interpretações do direito sucessório, veio a travar-


se entre os irmãos Mauheue e Muzila, a mais destrutiva e mortífera guerra civil que se
conhece na história de Moçambique. Para o penoso desfecho deste conflito vieram a
contribuir alguns súbditos portugueses.
A opinião que já formara sobre o carácter desumano de Mauheue aliou-se às excelentes
relações que mantinha com o governador Onofre, para levarem João Albasini (1) em 1862, a
recomendar-lhe, por escrito, que atendesse favoravelmente a embaixada de Muzila. Este, três
anos antes, havia procurado refúgio na região do Zoutpansberg, no Transval setentrional,
depois de derrotado por seu irmão quando travaram o primeiro confronto. Muzila chegou a L.
Marques em novembro daquele ano. Pediu ao governador que convencesse os régulos
avassalados a fornecerem gente de guerra, armas de fogo e mantimentos. Acentuou que o
exército de Mauheue era em número três vezes superior ao seu. Mesmo assim, mantinha o
firme propósito de continuar a guerra contra o irmão, por saber que ele era odiado pelos
súbditos. Garantiu que, caso saísse vitorioso, prestaria vassalagem ao Rei de Portugal.
Nessa difícil conjuntura foi fundamental a ação do coronel e governador de L. Marques,
Onofre Lourenço d’Andrade (2) residente em África há mais de trinta anos. Distinguiu-se
pelo talento diplomático, pelo modo firme mas democrático na tomada de decisões, pela
sagacidade com que conseguiu congregar os recursos e os esforços dos moradores, dos chefes
gentílicos e de outros elementos divididos por profundas rivalidades. A guarnição do presídio
era insignificante, debilitada pelas doenças e pela deficiente alimentação. Tinha só sessenta e
quatro obsoletas espingardas.
A vitória de Muzila deveu-se sobretudo às duas mil armas de fogo e à determinação e
eficiência dos caçadores de elefantes que trabalhavam por conta própria ou para diversos
sertanejos abastados, como Paiva Raposo, Diocleciano das Neves e João Albasini. O
governador fez especial elogio ao contributo do primeiro. Sem dúvida que todos eles
defendiam os seus interesses pessoais. Desejavam ter livre acesso ao território de Gaza que
compreendia uma área superior à de Portugal. Seja como for, a 23 novembro 1863, Muzila
assinou, como tinha prometido, o termo de preito e vassalagem ao Rei de Portugal.
Não é de desprezar a hipótese de que, caso Mauheue saísse vencedor da longa e
sangrenta guerra civil, a soberania portuguesa poderia, no império de Gaza, ter sido
substituída pela britânica. De facto, Mauheue esteve sempre ligado à casa real chefiada por
Mswati (de onde derivou o topónimo Suazilândia). Ali fora educado e escolhera a sua
“mulher grande”. Mauheue, durante o conflito, recebeu sempre o apoio de milhares de
17
guerreiros suazis, devidamente organizados em regimentos como determinava a orgânica
criada por Chaca. Mais ainda. Por meio da embaixada que enviou ao governador no dia 13
março 1861, Mauheue mais uma vez evidenciou sem rebuço o rancor que sentia contra os
Portugueses. Exigiu, sem contemplações, que o governador aceitasse o estatuto rebaixado de
simples tributário. Ameaçou mesmo que, em caso de recusa, os estrangeiros seriam atacados
impiedosamente. Por outro lado o governo britânico continuava a cobiçar a baía de L.
Marques (ou Delagoa em inglês) e a recorrer a medidas que, com toda a evidência, visavam
neutralizar o desenvolvimento independente dos africaners. Esta perigosa arrogância de
Mauheue deve ter sofrido um golpe decisivo após o falecimento de Mswati em 1865.
Ao contrário do que julgou Onofre de Andrade, o vencido não perdeu a vida na
sequência da derrota final. Sobre esse assunto dispomos, felizmente, de uma investigação de
nível científico, efetuada por A. C. Myburg (3) no território concedido pelo rei suazi a
Mauheue e sobre a numerosa descendência que ali deixou. Respeitando a ortografia em
inglês, diremos que o território se dividia em dois concelhos denominados Netabenezimpisi e
Nhlanguyavuka que ocupavam toda a região oriental do atual distrito de Barberton.
Estabeleceu nesse local várias capitais, sendo conhecidos os nomes de onze delas. O mesmo
investigador conseguiu identificar cinco das suas esposas e a respetiva descendência.
Mauheue parece ter falecido cerca de 1872, na povoação de Kwa-Shayaza, no distrito de
Piggs Peak. Radicam-se na sua genealogia os chefes das comunidades tribais designadas por
Mkhatjwa (de Miyomo e de Mbambiso).

O Reinado de Muzila

Após vencer seu irmão, Muzila voltou a fixar a sua capital na cordilheira montanhosa
que, ao sul do rio Buzi, se estende de ambos os lados da fronteira entre Moçambique e a
antiga Rodésia. As relações hostis com o reino suazi – que tinha acolhido seu irmão vencido –
parecem ter cessado graças ao processo drástico a que recorreram outros soberanos angunes: a
criação de uma “terra-de-ninguém”, com a largura de quatro dias de marcha, que seguia os
cursos dos rios Incomati e Sabie.
Muzila, muito ciosamente, soube manter a sua independência política, malgrado o preito
e a vassalagem que em 1863 prestara a Portugal por intermédio do governador de L. Marques.
Não é para admirar que em 1868, tenha resolvido enviar uma primeira embaixada ao
governador da colónia britânica do Natal. Mais provas de autonomia demonstrou quando,
nesse mesmo ano, fez reféns e exigiu resgates pelos militares portugueses naufragados com o
brigue “Na Sra. da Conceição”.
Eric Axelson (4) baseado em documentação oficial sul-africana, afirma que Muzila,
decorridos dois anos, tornou a enviar segunda embaixada ao Natal, solicitando que esta
colónia o aceitasse não só como “aliado, amigo e tributário” mas também como parceiro
comercial, propondo-lhe que recebesse as suas exportações de marfim e de mão-de-obra.
Sugeriu que, para discutir tais assuntos, lhe fosse enviado por via marítima um delegado que
poderia desembarcar na foz do Limpopo. Mais propôs que determinado chefe, subordinado ao
Natal mas pertencente à sua família, fosse autorizado a instalar-se com os respetivos súbditos
entre os domínios de Gaza e dos seus grandes inimigos, os Suazis. Só assim seria possível
formar uma “zona tampão” que facilitasse o mútuo intercâmbio. Sir T. Shepstone, Secretário
dos Negócios Indígenas, interrogou os elementos da embaixada sobre a suposta submissão do
Império de Gaza à Coroa de Portugal. Responderam negativamente. Referiu-se depois às
18
objeções que os Portugueses poderiam levantar contra a entrada de qualquer navio pela foz do
Limpopo e também contra os prejuízos que sofreriam com o desvio do comércio do marfim.
Pronunciaram então algumas metáforas surpreendentes:

“Muzila é o Rei; os Portugueses são mulheres”.

Muzila ficara muito impressionado com o facto do governo do Natal ter convencido os
Zulos a não atacarem os Suazis. De certo que esse governo poderia também evitar que os
Suazis atacassem os Changanas. Mais acrescentaram:

“Muzila disse: eu sou (como) uma rapariga que deseja tornar-se noiva e
vir a casar, como casaram as noivas zulos e suazis, com um marido forte e
vigoroso que seja capaz de me proteger servindo-se apenas das suas palavras”.

A isto, o tenente-governador deu pronta réplica, aceitando a oferta de amizade de


Muzila mas esclarecendo com lealdade que:

“As nações civilizadas dos brancos têm sempre cuidado em não


interferirem entre si com os direitos de cada uma delas. Ora o governo
Português de além-mar mantinha uma aliança amigável com o governo
britânico de além-mar, a quem pertencia a Colónia do Natal. Fossem quais
fossem os sentimentos de Muzila e do seu povo quanto aos representantes do
governo português, o tenente-governador do Natal deveria agir com muita
cautela para não desrespeitar os direitos que este último já havia definido como
sendo seus”.

Os dirigentes britânicos, agindo à cautela, encarregaram St. Vincent Erskine de se


deslocar até à corte de Muzila para colher em primeira-mão todas as informações possíveis.
Em tempos recentes Erskine havia explorado o curso do Baixo Limpopo. Como se sabe, esta
missão fracassou, em grande parte devido ao próprio Muzila que acolheu com grosseria o
enviado britânico, depois de o fazer esperar durante dez semanas no acampamento que
montara perto da capital real. Não admira que, após regressar pela rota planáltica que
atravessava Lydenburg, Erskine tenha fornecido a Shepstone péssimas informações sobre o
atrabiliário soberano de Gaza. Contudo, em 1878 Muzila resolveu enviar segunda embaixada
ao Natal. Foi despedida, sem alarde, com alguns presentes.
Sem dúvida que Muzila era mais favorável do que seu pai aos contactos comerciais com
o exterior. Tal explica a decisão de permitir a entrada de navios pela barra do Limpopo. Não
destruiu os raros e anémicos estabelecimentos portugueses porque tinha conveniência em
obter produtos importados, a troco de marfim e outros despojos. Mas não cedeu na decisão
que tomou de proibir a reabertura das explorações auríferas de Manica. Recorde-se a
explicação dada a St. Vincent Erskine:

«Só após o esgotamento do marfim das planícies pensaria em reabrir as


minas de ouro de Manica».
19
Esta reabertura era tão ambicionada que mereceu, a 18 fevereiro 1882, uma exposição
específica apresentada pelo então Major J. C. Paiva d’Andrada à Comissão Africana da
Sociedade de Geografia de Lisboa. Eis alguns trechos selecionados (5):

“Uma série porém de circunstâncias do mais elevado interesse, que vão


passando despercebidas, e que podem de um momento para outro ocasionar a
perda irremediável da que devemos considerar a mais interessante parte da
província de Moçambique, obrigam-me a fazer, desde hoje, uma sucinta
exposição, que será seguida de uma proposta, que entrego à solicitude da
ilustrada e muito patriótica Sociedade de Geografia de Lisboa, que tão valiosos
serviços está constantemente prestando à grande e nobre causa das nossas
colónias africanas” … “Deve desde já ficar dito que para assegurar
completamente as comunicações entre Gorongosa e Manica, é necessário
ocupar um ponto junto à confluência do Vundusi, na serra Humbe, onde se
achavam de antes os Baruistas, que exigiam pagamento aos viajantes. Passando
o Punguè nesta altura, entra-se nas terras de Manica, notavelmente férteis,
elevadas e sadias, cortadas de rios com excelente água, com grandes pastagens,
e em tudo eminentemente próprias para a colonização europeia. Uma série de
montanhas que atingem mais de 2.000 metros de altitude, separa a bacia do
Punguè da do Revuè, afluente do rio Buzi, e a bacia do Revuè da do rio Save,
onde em posição dificilmente acessível se acha, nas margens do pequeno
afluente Chiuzana, construída uma forte aringa, residência do rei Mutaça”.

Talvez mais depressa do que imaginava Muzila, o marfim começou a escassear e, com
ele, o antigo poderio dos monarcas de Gaza. A par disso prosseguiu sem demora o
desenvolvimento económico da África do Sul e, em consequência, a dispersão das libras
esterlinas trazidas pelos trabalhadores migratórios. António Maria Cardoso (6) apresentou
algumas observações pertinentes e que resumem de modo conciso a nova conjuntura:

“… As fazendas que iam de L. Marques para o território de Muzila à


busca de permutação por marfim, vão hoje com muito mais segurança para
Bilene, onde a permutação se faz por libras esterlinas… De Sofala é que ainda
vão algumas fazendas para Muzila, não há compra de marfim porque não o há,
mas ao comércio de libras… O comércio, pois, de Muzila está reduzido hoje à
venda de algumas peles aos negociantes do Transval e Natal e à troca de libras
que tributa aos seus súbditos que vêm dos portos ingleses do sul de L.
Marques”.

As formas regularizadas de intercâmbio diplomático foram assaz importantes na


manutenção de relações estáveis com o vizinho reino ocidental dos Matabeles (Ndebele). Fora
fundado cerca de 1837 por Mzilikazi, também foragido de Chaca. Sucedeu-lhe Lubengula em
1868. As respetivas esferas de influência foram rigorosamente separadas pelo rio Save no seu
curso norte-sul. É indispensável reter desde já esta fronteira natural porque veio a
revestir grande importância durante as negociações luso-britânicas efetuadas na
sequência do Ultimatum de 1890.
Sabe-se que Muzila procurou submeter e obrigar a tributos a população que habitava as
terras altas do Transval norte e Sudeste da República do Zimbabué, entre o Limpopo e o rio
dos Elefantes. Sabe-se que em 1870, os seus regimentos assolaram os habitantes dos montes
Spelonken. Também exigia tributos nos vastos territórios afetos aos conhecidos Prazos da
Coroa, atingindo até mesmo o delta do Zambeze. A trágica excursão venatória organizada em
20
1868 por jovens oficiais britânicos do Natal, deparou na Chupanga – perto dos túmulos da
esposa de Livingstone e de dois outros oficiais da esquadra do Com. te Owen – dezenas de
esqueletos de guerreiros de Gaza que tinham sido massacrados após caírem numa emboscada
preparada pelos Senas autótones. Estes especificaram que podiam duplicar as exigências de
Muzila no que concerne os tributos pagos em marfim (7).
Talvez pelos apoios prestados durante a guerra civil, Muzila sempre manteve excelentes
relações com o famoso Diocleciano Fernandes das Neves. Este não foi esquecido pelas
autoridades portuguesas, como alguns pretendem. Falecido a 24 fevereiro 1883, junto da foz
do Limpopo, logo ali surgiu a 9 março, vindo de L. Marques, um pelotão comandado pelo
alferes Pinto de Magalhães, pelotão que prestou honras militares junto da sepultura. Diz a
tradição que Muzila, residindo a quase mil quilómetros de distância, também mandou um
destacamento de guerreiros prestar homenagem ao espírito do defunto.
Há documentação escrita e até coordenadas geográficas sobre as diversas capitais que
Muzila foi construindo. À última, perto da atual Espungabera, aplicou o nome zulo de
Uduengo. Deu origem à terceira casa real do Império de Gaza.
Convém recordar que em todos os estados de origem angune se verificava que, na
capital por excelência onde residia o soberano e toda a corte, era elevada a concentração não
só dos residentes como também dos bovinos selecionados para o sacralizado curral situado no
centro, onde se resolviam os litígios, se recebiam as embaixadas, se tomavam as mais
melindrosas decisões políticas, etc. Em pouco tempo quer a poluição quer o esgotamento dos
recursos naturais exigiam o completo abandono da povoação e a sua transferência para outro
local virgem. É inaceitável a afirmação, lida algures, de que Muzila preferiu apenas a região
do Monte Selinda para construir as suas capitais. Entre a cartografia britânica – como a
publicada no Cabo, por J. C. Juta & Co., em 1889, na escala de 40 milhas por polegada –
encontra-se bem marcada a última capital e os locais de duas antecessoras. Pois a distância
entre estas últimas ultrapassa largamente os cem quilómetros.
Os desenvolvimentos históricos do reinado de Muzila podem assim resumir-se:
a) Início espontâneo da emigração de trabalhadores para a África do Sul;
b) Progressiva importância das libras esterlinas e outras receitas que substituíram as
provenientes da caça aos elefantes, cuja extinção no sul se iniciou na década de 1870;
c) Crescente presença de britânicos estabelecidos no Natal, na sua maioria
comerciantes, missionários e exploradores;
d) Maior empenho dos governantes portugueses nos contactos com o reino de Gaza;
e) Interesse do monarca e dos seus adjuntos pela aquisição de armas de fogo.

Ascende ao poder Ngungunhane, o fundador da quarta casa real

A investigação histórica proporciona, por vezes, coincidências surpreendentes. Tal


acontece, por exemplo, com essa sucessão de acontecimentos que afetaram Moçambique
durante os anos de 1884/5:
a) Em janeiro 1884 saíram de Lisboa, para concretizarem a travessia da África, os
exploradores Brito Capelo e Roberto Ivens;
b) Em fevereiro o governo central concedeu à Companhia de Ofir, fundada por Paiva
d’Andrada, direitos de exploração sobre as minas de Manica, Quiteve, Bandire e Inhaoxo;
21
c) Em junho uma portaria ministerial criou o distrito de Manica para melhor se
enfrentarem as decisões positivas ou negativas sobre a exploração aurífera;
d) Em novembro ocorreu a sessão inaugural da Conferência de Berlim que visava fixar
as normas a seguir pelas potências coloniais envolvidas na partilha territorial do continente
africano;
e) Em dezembro foi transferido para Moçambique, como Secretário-geral, o bacharel
em Direito José Joaquim de Almeida da Cunha (adiante José d’Almeida);
f) Desde 5 julho 1885 até 15 março 1889 o capitão-tenente Augusto de Castilho Barreto
e Noronha (adiante governador-geral ou Augusto de Castilho) exerceu, com exemplar
competência, o cargo para que foi nomeado.
Também teve relativa importância o decreto real que aprovou as condições de
vassalagem de Ngungunhane, decreto que foi assinado por Sua Majestade e pelo ministro
Pinheiro Chagas. Das dezassete condições consta a data de 12 outubro e as assinaturas do
coronel e ex-governador-geral Agostinho Coelho e de José Casaleiro d’Alegria Rodrigues
(adiante Alegria Rodrigues) que representava Ngungunhane juntamente com dois enviados
por este último com os nomes de Matanda-Encoce e Mapinda. De harmonia com a 16ª
condição foi concedida ao monarca de Gaza a graduação de coronel de segunda linha. Tinham
a data de 12 novembro e alongavam-se por treze alíneas as “instruções para os Residentes”.
Convém relembrar que Alegria Rodrigues, outrora diretor da extinta Alfândega de Angoche,
se havia fixado como negociante em Sofala e que sempre manteve boas relações com Muzila.
A embaixada desembarcou na Ilha de Moçambique, nos princípios de janeiro 1886. A
legislação supracitada foi reproduzida no Boletim Oficial nº 2, de 9 janeiro do mesmo ano.
Por infelicidade, este pacífico acordo – redigido com tanto cuidado – não tardou a ser
contestado, até de modo grosseiro, pela imprensa periódica lisboeta afeta à oposição, então
como agora ávida de sensacionais parangonas que atraíssem mais e mais leitores. Pinheiro
Chagas foi a principal vítima. Acusavam-no de ser crédulo em demasia e de ter caído no
embuste tramado por um oportunista sem escrúpulos. O ministro depressa reagiu ordenando
por telégrafo a Augusto de Castilho, que apurasse se, na realidade, a embaixada fora
acreditada nos termos legais. Sugeriu que seria conveniente escolher um funcionário de
confiança que acompanhasse o Alegria Rodrigues no seu regresso à capital de Gaza. Caso
concluísse que agira com honestidade, recomendou a sua imediata investidura nas funções de
Residente-chefe para em devido tempo se poder exigir o cumprimento das condições de
vassalagem. O governador-geral não encontrou qualquer voluntário entre os seus mais
próximos colaboradores. Devido às mortíferas doenças tropicais, as viagens pelo sertão eram
temidas, mesmo por homens experientes. Contudo, José d’Almeida, seu Secretário-geral,
aceitou o convite sem qualquer hesitação. Embarcou de imediato para a Ilha de Chiloane e
dali alcançou Sofala para organizar a expedição. Já lá se encontravam três indunas do
Império de Gaza recrutando as centenas de machileiros e carregadores indispensáveis.
Graças à excelente biografia publicada, no ano de 1898, pelo escritor Trindade Coelho
(8), a principal documentação que, por José d’Almeida, foi sendo remetida ao governador-
geral pode ser numerada de forma cronológica e paginada do modo como se segue:
a) Oficio nº 36, escrito em Sofala, datado de 16/4/1886, defendendo a legitimidade de
Alegria Rodrigues e dos enviados Matanda-Encoce e Mapinda (pp.74/5);
b) Oficio nº 51, na margem do rio Mossurize, datado de 6/6/1886, relatando o trajeto e
as vicissitudes da caravana de oitocentos mobilizados que, sob a bandeira portuguesa,
conseguira percorrer, sem incidentes, entre 5 e 17 maio, cerca de trezentos quilómetros (pp.
80/6);
c) Termo de posse do Residente-chefe Alegria Rodrigues, em 20/5/1886 (pp. 86/7);
22
d) Oficio nº 54, em Mossurize, de 22/5/1886, acentuando que Ngungunhane desejava
ser leal súbdito português mas recusava ceder quaisquer terras e muito menos permitir a
exploração mineira de Manica; alegava também que pertenciam ao seu império vários Prazos
da Coroa, incluindo o da Gorongoza. Esclarecidas que foram algumas dúvidas, aceitara
arvorar a bandeira nacional e acabara por pedir a José d’Almeida que levasse consigo dois
outros confidentes reais, especificamente designados para visitarem Lisboa, com o importante
objetivo de avaliarem e autenticarem as precoces informações que bastantes nobres da sua
corte tinham recebido com genuína suspeita não só por se afigurarem inacreditáveis mas
também por terem sido prestadas por plebeus de inferior extração.
O regresso de José d’Almeida à Ilha de Moçambique processou-se em circunstâncias
difíceis. Para melhor compreensão dos graves acontecimentos ocorridos mais tarde, convirá
incluir aqui algumas transcrições:

“A 23 (junho) pus-me a caminho da costa, seguindo sobre Chiloane…


(sempre) em marchas forçadas consegui chegar à praia… no dia um (de
julho)… com o fim de encontrar ainda o paquete (“Dunkeld”) que no dia três
devia fundear… para por ele poder não só telegrafar… a V. Ex.ª (Augusto de
Castilho) como também oficiar para Inhambane. Das penosas circunstâncias em
que me vi, das necessidades que a expedição sofreu e do precário estado de
saúde em que todos chegámos, nada direi aqui… De tudo o mais darei conta
verbal e detalhada a V. Ex.ª logo que me sinta mais restabelecido de forças e
menos fatigado de espírito”.

Convém desde já acentuar que o ofício nº 55, de 3 julho 1886, que dirigiu ao
governador de Inhambane é fundamental para se compreender essa tão discutida sucessão
inusitada de acontecimentos dramáticos:
a) A intromissão precoce e maligna de Cecil Rhodes e dos seus mandatários;
b) A atividade frenética de Paiva d’Andrada quer em proveito próprio quer em
obediência a diretrizes ministeriais;
c) A decisão algo inesperada que Ngungunhane tomou em 1889 de transferir a sua
capital para o delta do rio Limpopo;
d) A derrocada final do Império de Gaza.
O referido ofício teve grande importância porque, pela primeira vez, Ngungunhane
manifestou a grande hostilidade dele e dos seus conselheiros contra os régulos rebeldes que
atacavam e saqueavam os domínios de Gaza no chamado sul do Save, donde recebia tributos
em libras esterlinas e onde possuía largos milhares de cabeças de gado bovino.
Voltando a José d’Almeida. Só em 22 julho, decerto convalescente, conseguiu redigir o
ofício nº 70. Teve o mérito de nele fornecer mais pormenores interessantes sobre os
acontecimentos ocorridos na longínqua capital de Gaza. Guiuza, tio do monarca, tinha
proposto que as discordâncias entre os dirigentes fossem eliminadas graças a uma nova e mais
abrangente assembleia composta por trinta e cinco notáveis, que se efetuou no dia 14; José
d’Almeida foi convidado, dois dias depois, para nova conferência que formalizou um acordo
entre as duas partes; após longos debates aceitaram arvorar a bandeira portuguesa sendo a
cerimónia efetuada no dia 17, perante grande multidão de súbditos, com o potentado
envergando já a sua farda de coronel; quanto às minas de Manica ficou o assunto pendente,
aguardando que regressassem de Lisboa os dois confidentes de Ngungunhane, com os nomes
de Comaianga e N’Tonga.
23
Trindade Coelho intercala aqui, muito a propósito (pp. 107/9), a ata da sessão
extraordinária realizada em Chiloane, pela comissão municipal de Sofala. A ela assistiram os
moradores mais importantes. Os primeiros subscritores foram o sacerdote, o médico e o
célebre professor e historiador Guilherme Hermenegildo Ezequiel da Silva. Contavam-se por
vinte e quatro os comerciantes asiáticos. Só hindus (baneanes?) da família Salmanegy havia
cinco. O número de maometanos atingia treze. O documento foi por todos subscrito e nele
expressaram admiração e reconhecimento pelo sucesso alcançado por José d’Almeida que:

“não duvidou sacrificar a sua saúde e arriscar com a maior abnegação a


própria vida”.

Merecem ponderação e interpretação estas provas de civismo e de integração social,


racial e religiosa que espontaneamente surgiram nas povoações sitas ao longo da costa e dos
principais rios. Basta citar, a título de exemplo, as vassalagens dos régulos Metarica e
Cuirrássia, formalizadas no Ibo, a 28 julho e 13 maio 1888. Como e por que razão foram
assinadas por comerciantes como Sundardás Narangi, Agi Cassamo Adamo, Momade Jamu,
Valabudás Sundargi, Ranchordás Jadangi, Mahadene Bin Abuibo, Jean Picchetti, Edmond
Roussille, etc., etc.?
Para terminar. Pela Portaria nº 347 de 19 agosto 1886 (B. O. nº 34), o governador-geral
reconheceu que:

“… À sua inteligência, ao seu patriotismo e à sua valiosa prática de


negócios públicos coloniais se deveu o bom êxito da referida comissão, da qual
se irão sucessivamente colhendo resultados vantajosos para a gradual
consolidação e dilatação do domínio português naqueles países…”.

Foi dada por finda a comissão e prestado rasgado louvor a José d’Almeida.
Mas, pouco tempo depois, foi novamente mobilizado. Pela Port. de 18/9/1886, foi
mandado regressar às terras de Gaza mas por via de Inhambane, chefiando uma delegação
composta por diversas autoridades de Inhambane, de Manica e até de L. Marques (p. 123/4).
Esta portaria ficou sem efeito porque, entretanto, as autoridades de Sofala tiveram
conhecimento de que Ngungunhane mandara avançar para Inhambane um poderoso exército
sob o comando de Maguiguana, com o objetivo expresso de punir exemplarmente os régulos
nortenhos de Massinga, Inguana, Savanguana e Zunguza que tinham ousado atacar e saquear
as populações de Macovane, responsáveis pela manutenção das grandes manadas de bovinos
pertencentes ao monarca. Contudo M. S. Alberto e F. A. Toscano, na sua quase exaustiva
síntese cronológica (9) registaram que o monarca tinha enviado dois emissários ao governador
de Manica, emissários que, a 27 julho, lhe deram conhecimento oficial de que, dentro em
breve, seriam atacadas as terras de Inhambane. Mais tarde Paiva d’Andrada e Alegria
Rodrigues confirmaram que – face à passividade das autoridades inhambanenses –
Ngungunhane se vira forçado a ceder às pressões dos grandes que o rodeavam. No
Mossurize, a 23 setembro, ambos tinham assistido à efetiva partida de cerca de vinte mil
guerreiros agrupados em numerosos regimentos. A 16 outubro este exército já tinha
atravessado o rio Save e iniciado o ataque ao norte do distrito. Os “caçadores” – sobrenome
das forças irregulares mobilizadas apressadamente pelo governador do distrito, capitão Vital
de Sousa – tinham sido esmagados sem dificuldade na grande planície de Chicunguza. Há
24
documentação comprovativa de que esta derrota se deveu exclusivamente ao facto de se haver
esgotado a pólvora que lhes tinha sido distribuída.
O governador-geral tentou em vão acudir com um pequeno destacamento militar
embarcado na Ilha de Moçambique. Também procurou mobilizar os guerreiros de régulos
avassalados da região de Inhambane. Falhadas estas intenções, logo regressou à sua capital na
companhia de José d’Almeida. Durante este descalabro correram rumores contraditórios sobre
uma pretensa autorização que o governador-geral teria concedido ao potentado de Gaza para
lançar a ofensiva acima referida. Esta hipótese não merece crédito porque não existiam, nessa
época, meios de comunicação direta entre ambos. Nesta conjuntura esteve também envolvido
Miarios F. A. Amiel, gerente da casa Regis em Chiloane, que não hesitou em confirmar que,
juntamente com outros residentes, tinha ouvido o governador Sarmento afirmar que Augusto
de Castilho autorizara Ngungunhane a atacar os régulos insubmissos do distrito
inhambanense. O mesmo gerente esclarecera que esta informação escrita e reconhecida fora
prestada a pedido do coronel Fornasini por carta de Quelimane e data de 5 janeiro 1887.
Tendo Ngungunhane lamentado os acontecimentos de Inhambane e manifestado total
disposição para reparar os danos que causara – não por vontade própria mas agindo sob
pressão dos dignitários que o cercavam – o Secretário-geral foi mandado seguir novamente
para a capital setentrional de Gaza chefiando mais uma comissão que seria composta pelas
seguintes individualidades: tenente-coronel R. Pedro Rodrigues; tenente-coronel J. C. P. de
Moraes Sarmento, governador de Sofala; Major F. I. Gorjão Moura, governador de Manica;
Residente-chefe J. C. Alegria Rodrigues; alferes J. J. d’Almeida Pirão, oficial às ordens. Em
conclusão, voltamos à data de 14 fevereiro 1887, para se transcrever o mais importante
documento da conjuntura.

Ata da magna reunião realizada em Mossurize, próximo da Capital de


Gaza, entre seis delegados do governo Português e os representantes das
quatro casas reais

Aos catorze dias do mês de fevereiro do ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus
Cristo de mil oitocentos e oitenta e sete no vasto alpendre destinado às escolas de instrução
primária junto à Residência no Mossurize próximo do curral do Manjacaze, povoação do
régulo Ngungunhane, pelas nove horas da manhã, tendo-se reunido, em virtude da portaria do
governo-geral da Província de Moçambique número quinhentos e trinta, de onze de dezembro
último, o Secretário-geral do mesmo governo José Joaquim d’Almeida; o tenente-coronel do
quadro de comissões da guarnição da referida província Rogaciano Pedro Rodrigues; o
governador do Distrito de Sofala, tenente-coronel de Cavalaria do Exército de Portugal Jorge
Correia Pinto de Morais Sarmento; o governador interino do distrito de Manica Major do
Estado-maior de Artilharia do mesmo exército Joaquim Carlos Paiva d’Andrada; o Residente-
chefe José Casaleiro d’Alegria Rodrigues e eu João José d’Almeida Pirão, alferes de
Caçadores nº1 d’África Oriental, servindo de secretário, compareceram o régulo
Ngungunhane e os representantes das casas da família Jaméne (Dlamini); sendo da de
Manjacaze (Mandlakazi), ou de Uzio, mãe substituta do régulo, o primeiro secretário
Medumana (Modumana) e os secretários Bogôto, Manhune e Mezenha; da de Uduengo
(Nodwengu), casa ou curral do Muzila, os irmãos deste falecido régulo; – Cuio (Nkuyu),
Guiuza (Nguyuza), Mpissana (Mpissane), Guêto e Muiungo; os irmãos do atual régulo
Mpicanisso, Mgomogomo (Komokomo), Mfungo e Mafambane e secretário Cornaianga; da
casa Chaimite ou de Manucusse, pai de Muzila; os secretários Dada e Chissoie e da de
25
Chidoache ou de Legóte, pai de Manecusse, o secretário Manhangue, todos acompanhados
por grande número de Chefes e Matotas.
Mais compareceram, servindo como intérpretes da parte dos delegados do governo,
João Pinto Rodrigues, Amad Abdula e Luiz Vieira e da parte do régulo Alexandre Pinto, o
Mchica Chica, Matande Encosse e Mapuirda. Trocados os respetivos cumprimentos declarou
o Secretário-geral que desejava, antes de tudo, ser informado dos motivos que levaram o
régulo a pedir insistentemente a sua vinda aqui, quer por intermédio do Major Paiva
d’Andrada e do Residente-chefe, quer pelo vátua Ntonga mandado a Moçambique com o fim
único de reforçar esse pedido.
O primeiro secretário Medumana, em nome do régulo disse: que a chegada aqui do
Ntonga na lua de Mpaia correspondente ao mês de novembro vindo de Inhambane por
Chiloane, portador de notícias da costa, deu claro e bem frisante conhecimento ao
Ngungunhane da indignação com que tinha sido recebida pelo Rei e pelos brancos a notícia da
invasão da algumas terras de régulos de Inhambane, por forças vátuas, o que veio a confirmar
os avisos que neste sentido lhe foram feitos pelos Major Paiva e Residente, antes da guerra
marchar de Mossurize, a que não deram inteiro crédito por suporem que El-Rei só veria
nessas hostilidades (?) questões entre rapazes todos seus filhos, que ele depois castigaria
como julgasse conveniente e por acharem que não deviam mais ficar quietos quando os outros
não cessavam de os agredir. Por isso desejou o régulo a vinda do Secretário-geral afim de
poder solenemente declarar-lhe que aquela invasão não significava de forma alguma quebra
de vassalagem à soberania da coroa, e tanto que formalmente foi ordenado a Maguiguana,
primeiro chefe da guerra vátua e comandante da expedição, absoluto respeito pela pessoa e
propriedade dos brancos e que por forma alguma passasse além das terras dos régulos
coniventes nessas continuadas agressões, ordem que foi cumprida à risca. Além disto que a
marcha sobre esses régulos não tinha sido subitamente resolvida nem a ocultas dos brancos e
que já quando aqui esteve pela primeira vez o Secretário-geral, se lhe havia queixado de
correrias daquela gente contra Macumasse onde existia grande quantidade de gado. Que é
verdade ter-lhes recomendado então o Secretário-geral que eles da sua parte se abstivessem de
hostilidades até que o governo providenciasse; mas que mais tarde, porém, novos e violentos
ataques tiveram lugar contra vátuas que habitavam a sul e leste do Guvuro e que todos
pereceram, ou pela zagaia e pelo incêndio posto às povoações, ou afogados naquele profundo
rio quando precipitadamente fugiam; nascendo disto um desejo geral de pôr imediato termo
por meio das armas, a estas não motivadas mortandades. Que o régulo em vista das instâncias
e conselhos do Mafambissa e do Manhanga, nomes vátuas do Major Paiva e do Residente-
chefe, ainda procurou opor-se à partida da guerra; mas a opinião unânime dos chefes e
grandes já reunidos excitada pelas notícias que quase quotidianamente chegavam das
fronteiras fez decidir o levantar da guerra. Hoje reconhecem bem que, apesar de todos os
motivos que os levaram a proceder como fica dito, mal andaram em não aguardarem as
providências do governo como tinham prometido fazer, estando por conseguinte dispostos,
para remir tal erro, a pagar o tributo que lhes for exigido.
O próprio régulo confirmou em seguida o que em nome dele disse o primeiro secretário,
reconhecendo quanto a sua fraqueza perante os que a todo o transe queriam a guerra imediata,
o levou a cometer uma grande falta, por a qual pede humildemente perdão a El-Rei,
prometendo que jamais, em qualquer caso, sem prévio consentimento mandaria bater
indígenas que se achem sob o domínio direto de Portugal. Por esta ocasião avisou que
desejava fazer castigar Sparjana, filho do régulo Binguana que em continuas correrias
rouba gados e estraga as povoações do Bilene que lhes são vizinhos e também estender o seu
domínio mais para oeste para além das terras de Dumas, abrindo assim uma mais vasta
região à soberania efetiva dos portugueses, acrescentando que já tem ultimamente
26
distribuído grande número de bandeiras nacionais aos régulos seus tributários que se
encontram espalhados por postos muito avançados no sertão. Estará sempre pronto a fornecer
em qualquer tempo as forças que pelo Rei lhe forem pedidas para reprimir rebeliões ou
auxiliar guerras, como simples comprimento dos seus deveres de fiel vassalo.
O secretário-geral disse que a propósito do castigo que o régulo deseja dar a Sparjana
tinha a recomendar-lhe que a não fizesse sem que do governo recebesse para tal expressa
autorização pois lhe parecia estar este chefe já sujeito a Inhambane, quando ao mais que pode
asseverar que a El-Rei será agradável ter conhecimento dalgumas das declarações que ele
acaba de fazer. Que o Rei desejando a paz entre todos os seus filhos não tinha autorizado
qualquer procedimento hostil por parte da gente de Inhambane contra os vátuas desde a
nomeação dum residente junto ao régulo e estando arvorado, como está, o pavilhão português
sobre a povoação de Manjacaze. Que de facto é sabido agora que a esses lamentáveis
acontecimentos não foram estranhas as autoridades de Inhambane, e por isso contra já se
procedeu tendo sido daí retirados o governador do Distrito e o capitão-mor das terras. Que a
prova das conciliadoras intenções de Sua Majestade a tem os vátuas no conhecido facto de
pela mesma época em que daqui partiu a guerra, achar-se em Inhambane ele secretário com
outros funcionários e o próprio capitão-mor das terras hoje exonerado, prestes a largar para o
Mossurize, afim de todos reunidos aqui em conferência amigável narrarem de uma e doutra
parte factos sucedidos e porém cobro a tais contendas da melhor forma que fosse combinada e
que não pode infelizmente realizar-se por ter chegado a notícia da aproximação das forças
invasoras, na própria véspera do dia destinado para a partida.
Que vê com satisfação que o régulo reconhece tão francamente e numa reunião tão
solene, a grave falta que praticou; e que igualmente confessa o direito que a El-Rei cabe de
lhe aplicar um castigo e que portanto o seu dever agora se limita a comunicar-lhe as
exigências a que tem de satisfazer.
1º Quer o Rei que os vátuas reconheçam como sujeitos ao distrito de L. Marques os
régulos Changane, Entimane e Magude, e ao de Inhambane os régulos Meabze, Magiva
e Teuana que de há muito diligenciavam avassalar-se nestes distritos, sendo só aceites tais
avassalamentos depois da recente invasão. Não ignora o Ngungunhane que o governo sempre
recusou entregar aos referidos régulos bandeira e cabaia, pois que disso lhe deu em tempo
próprio notícia oficial o Residente-chefe e se agora se adotou diverso procedimento só de si se
devem queixar os vátuas.
2º É indispensável que acabe o erro em que os vátuas se encontram com relação à
autoridade que têm exercido nas terras situadas a norte do rio Punguè. Os prazos
Cheringoma, Gorongoza, Chupanga e todos os mais das terras de Sena foram sempre do
domínio da Coroa e como tais nunca deixaram de pagar tributo ao Rei.
Embora numa ou noutra época os vátuas tenham feito correrias a esses prazos, e
recolhido deles fazendas mesmo voluntariamente, dadas pelos habitantes com o fim de
garantirem a sua segurança e tranquilidade, embora ali haja tido por vezes, e por ventura,
ainda tenham nalguns pontos, destacamentos de forças suas, não são estas razões argumento
para prejudicar os direitos de propriedade que única e incontestavelmente ao Rei pertencem.
As terras de Manica, como os vátuas não ignoram, foram por muito tempo ocupadas
pelos portugueses; ainda aí se podem ver ruínas de uma vila e de casas que pertenceram a
avós de atuais habitantes de Sena; ainda aí se encontra uma velha fortaleza com a sua igreja
de pé atestando permanência demorada de brancos. Resolveu o Rei mandar novamente povoar
estas suas antigas terras e a isto é mister que não levante a Ngungunhane obstáculos alguns.
Respondeu o régulo que das terras que formam o vasto território em que governa,
nenhuma foi tomada aos brancos pelos seus antepassados; que Manica, como outros pontos,
27
foram atacados por forças do Muava o qual, mais tarde, por toda a parte foi vencida pelo
Manucusse que ficou por isso na posse dos países que este havia conquistado. Que já Segote e
Manucusse se consideravam portugueses; que ele Ngungunhane é do Rei e tudo que lhe
pertence, mas que havendo-se obrigado, por ocasião de suceder a seu pai, a conservar as terras
em que ele governara não pode abandonar qualquer delas; que é o chefe de todos os pretos e
não vê motivo para continuar a governar uns deixando de exercer governo noutros; que os
portugueses brancos podem transitar por toda a parte, estabelecer-se onde quiserem contanto
que os pretos se lhe conservem obedientes.
O Secretário-geral declarou que sendo assim, Ngungunhane não deveria levantar
objeção alguma a que daqui se dirigisse, segundo as instruções recebidas, a organizar em
Manica um núcleo de povoação branca.
Neste ponto foi o secretário interrompido por Cuio, o mais velho dos tios do régulo, que
dirigindo-se a seu sobrinho lhe disse que não podia consentir que os brancos (sic) sendo
apoiado com murmúrios de aprovação por todos os seus irmãos. O régulo debaixo, pois, da
mais evidente pressão da vontade dos tios declarou que, com relação ao estabelecimento dos
brancos, se referira aos pontos já ocupados por eles e a outros próximo da costa, porém não às
terras de Manica.
Notou-lhe o Secretário-geral que ponto de vista era oposto às exigências que em nome
do governo acabava de fazer-lhe e que portanto achava muito conveniente que refletissem,
discutissem entre si e dissessem depois, em nova reunião, qual a definitiva resposta a levar ao
Rei, fazendo-lhe ver igualmente, as vantagens que lhe podiam advir da sua concordância com
o que lhe era exigido.
O Ngungunhane respondeu que lhe parecia desnecessária nova conferência porque,
como já disse, não podia ceder parte das terras em que governa, que reconhece ser o Rei o
mais forte e que se lhe não pode nem deve resistir e, portanto, que se os brancos forem para
Manica não lhe mandará fazer guerra sendo-lhe porém impossível declarar que permite a
ocupação daquele país.
Afirma ser ardente vontade sua manter-se vassalo respeitoso e dedicado ao seu Rei a
quem deseja dar todas as possíveis provas de arrependimento pela grande falta ultimamente
praticada; que se soubesse escrever, ele mesmo contaria todas as circunstâncias que o
decidiram à guerra parecendo-lhe que El-Rei então o desculparia. Que o tempo mostrará a
lealdade dos seus sentimentos mas que desde já pede que lhe permitam mandar dois dos seus
nobres até à presença do monarca português aos pés dos Rei a repetirem as declarações que
nesta reunião acaba de fazer e a levarem um tributo que testemunhe a sua submissão e a
convicção do seu erro.
Disse o Secretário-geral que por se ter o régulo recusado a dar completa satisfação às
exigências que vinha incumbido de lhe apresentar, não podia considerar o Zindava (litígio)
resolvido; que os dois emissários que o Ngungunhane deseja mandar a Lisboa o podiam
acompanhar e que ali ouviriam as decisões definitivas e as ordens do Rei. Que entretanto se
compromete aqui perante todos a que durante a ausência do Mossurize dos dois indunas
enviados, nenhum procedimento hostil será empreendido contra os vátuas, não podendo
porém garantir, da mesma forma, que lhes será aceite o tributo que levarem nem concedido o
perdão que solicitam.
E depois disto se deu esta conferência por terminada sendo já doze horas do dia e dela
se lavrou a presente ata que por todos os delegados do governo vai ser assinada comigo João
José d’Almeida Pirão que a escrevi e assino como prova do que tudo assim se disse e se
passou.
Acampamento no Mossurize, 14 fevereiro 1887.
28
(Ass:) José Joaquim d’Almeida, secretário-geral, presidente; Rogaciano Pedro
Rodrigues, tenente-coronel; Jorge Correia Pinto de Morais Sarmento, tenente-coronel,
governador de Sofala; Joaquim Carlos Paiva d’Andrada, major do Estado-maior de Artilharia;
José Casaleiro d’Alegria Rodrigues, Residente-chefe; João José d’Almeida Pirão, alferes.

***

Logo no dia seguinte, José d’Almeida escreveu ao governador-geral lamentando os


medíocres resultados que tinha alcançado. São seus os seguintes comentários:

“O resultado desta conferência foi bem diferente daquele que a comissão


esperava… Duas razões prejudicam em Gaza os nossos desejos: – A primeira,
como já disse, é a oposição dos grandes; a segunda está na incerteza de que
Portugal possua os necessários elementos para lhes arrancar pelas armas aquilo
que não nos quiserem ceder… Recentemente chegaram aqui as mangas
enviadas ao sul e houve a certeza de que regressavam vitoriosas… Os tios e
mais nobreza, que estavam prontos a dobrar-se à nossa vontade… mudaram de
opinião e fizeram também mudar o régulo do bom propósito em que parecia
estar… É indispensável que dois verdadeiros vátuas, escolhidos com geral
consenso da corte, vão a Lisboa, assim como algumas fazendas são necessárias
para provar aos grandes, duma maneira bem palpável que nos deve ser
entregue: Cheringoma, Chupanga, Gorongosa, Manica, etc.”.

José d’Almeida também chamou a atenção para o facto dos dirigentes de Gaza haverem
deliberado que os súbditos portugueses não seriam proibidos de construir habitações no
Banguè ou em qualquer outro ponto da costa onde outrora tivessem morado, como na
Chupanga (pp. 136 a 140). Convém relembrar que foi nesta concessão que se baseou a
posterior fundação do comando militar do Aruangua que, no futuro, iria dar origem à atual
cidade da Beira. Na resposta que, a 6 março, enviou a José d’Almeida, o governador-geral
congratulou-se especificamente com esse compromisso categórico de Ngungunhane (p.143).
A 4 abril oficiou ao ministro da Marinha fazendo largos elogios a José d’Almeida e referindo
a sua partida para Lisboa acompanhado pelos vátuas N’Tonga e Udaca, representantes
respetivamente das casas reais de Manjacaze e Uduengo, que levavam sete magníficas pontas
de elefante como oferta de Ngungunhane a Sua Majestade. Foi julgado conveniente evitar
navios estrangeiros e, por tal motivo, seguiram no transporte da Marinha “África”. Devido à
fortíssima tempestade que enfrentaram na zona do Cabo e aterrorizou os dois vátuas,
retrocederam caminho e optaram pela rota do Canal do Suez.
Por proposta do presidente do Conselho de Ministros Henrique de Macedo, El-rei D.
Luís concedeu a José d’Almeida, pelo decreto publicado no Diário do Governo de 26 janeiro
1888, a Comenda da Ordem Militar de N.ª S.ª da Conceição de Vila Viçosa. Os vátuas foram
levados a visitar um número suficiente de instalações e dispositivos das forças armadas como
paiois, campos de tiro, fábricas de pólvora, desfiles de regimentos, artilharia pesada, cavalaria
de combate, navios de guerra, etc. Sem dúvida que ficaram fortemente impressionados com o
poderio militar de Portugal.
Entretanto surgira nova complicação em Moçambique. O Banguè fazia parte do Prazo
Cheringoma, atribuído a um irmão, talvez classificatório, do próprio Ngungunhane,
denominado Mogudo-Gudo. Este, receando que o posto militar viesse a exceder a área
autorizada, decidira enviar para o local um destacamento de guerreiros. O governador-geral
reclamou o regresso imediato de José d’Almeida. Este partiu logo para Moçambique na
29
corveta “Mindelo”, levando consigo os dois enviados vátuas. Passou por Chiloane, subiu o rio
Buzi e atingiu a capital de Gaza. Os compromissos que obteve de Ngungunhane encontram-se
minuciosamente relatados no ofício nº 229, de 20 julho 1888 (pp. 165/9) dirigido ao
MSENMU durante a ausência do governador-geral, ofício que vai ser parcialmente transcrito:

“A influência que então já tínhamos, cada vez se vem consolidando mais,


havendo para isso concorrido poderosamente a ida a Lisboa dos emissários
N’Tonga e Udaca… E, se assim não fora, não teria eu agora conseguido que
o régulo declarasse livres à nossa exploração os jazigos auríferos de
Manica, pois que ainda no ano findo, se recusou a fazê-lo… (Devido ao
grave estado de saúde em que se encontra o Residente-chefe) resolvi trazer
comigo para Moçambique este prestante funcionário que tanto tem feito pelo
aumento do nosso prestígio entre os vátuas e deixei a substitui-lo o capitão F.
A. Marques Geraldes, já muito habituado a viver no interior e a lidar com
povos do sertão… é opinião minha de que agora, mais do que nunca, nos
convêm as cordiais relações dos vátuas… há um tempo a esta parte, têm sido
frequentes as visitas ao Mossurize de ingleses, ou outros estrangeiros com eles
relacionados. Todos têm, mais ou menos, procurado combater a nossa
influência e chamar o régulo a si. Por outro lado, é de esperar que procure
alastrar-se para leste o protetorado britânico concedido aos Matabeles…”.

Para finalizar esta síntese sobre a génese, o apogeu e o colapso do chamado Império de
Gaza, ocorre citar as considerações feitas pelo missionário suíço A. Grandjean (10):

“Como foi possível ter ocorrido esta queda tão rápida? É muito simples.
Uma dinastia inteira não vive de massacres e de razias durante setenta anos sem
provocar por toda a parte profundos descontentamentos. Enquanto
Ngungunhane foi todo-poderoso esse descontentamento não ousava revelar-se;
mas logo que surgiu a esperança de que outro poder mais forte o conseguiria
vencer, tribos após tribos se foram secretamente afastando. Apenas se esperava
uma manifestação de hostilidade (contra Ngungunhane) isto é, o predomínio
dos militares portugueses para que tomassem partido a seu favor.
Ngungunhane, como dizemos, foi o último representante da raça Zulo, ao sul
do Zambeze. Quando ele caiu, a era dos Zulos terminou para sempre em toda
esta região. Essa era durou um pouco mais de setenta anos, o período da vida de
um homem. Essa duração foi curta mas necessária. Tanto sangue derramado,
tantas criaturas livres reduzidas à escravidão, tantos territórios devastados iriam
exigir que a ruína esmagasse as cabeças dos invasores e a ruína chegou,
fulminante para todos. Para Chaca, para Dingane, para Cetchuaio, para
Lubengula e para Ngungunhane.
Quer isto dizer que o poderio zulo apenas tenha trazido malefícios e que
melhor fora para a África Austral que ele nunca tivesse aparecido? Não, porque
toda e qualquer potência que se engrandeça e que passe sobre a superfície do
nosso globo, deve cumprir a missão que lhe foi providencialmente consignada
nos destinos da humanidade. Ela cumpriu a sua missão, quisesse ou não,
estivesse ou não em desacordo com a vontade soberana que regula tanto os
destinos das nações como dos indivíduos. E como a história se repete, direi que
o papel desempenhado pelo império zulo em África foi idêntico ao do império
romano na Europa. Uniu sob o mesmo ceptro de ferro raças diversas que se
odiavam ou se ignoravam; moldou essas raças para que se transformassem
numa massa única; conseguiu que tivessem dado um passo dianteiro no sentido
da civilização”.
30

A todos os que se interessam pela história geral da Humanidade, acode à reflexão o


“passo dianteiro” que constituiu a admirável decisão tomada pelos dirigentes romanos no
sentido de erradicarem para sempre as crónicas e destrutivas guerras entre as cidades-estados
que caracterizavam a civilização grega. E sobretudo do último e prolongado conflito em que
se digladiaram Atenas e Esparta.

Bibliografia

1) LOBATO, Alexandre (1961). A Invasão Vátua de Lourenço Marques em 1833. In: Quatro Estudos e uma
Evocação para a História de Lourenço Marques. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, pp.119/44.
O general Ferreira Martins, na biografia sobre João Albasini que publicou em Lisboa no ano
de 1957, não conseguiu encontrar e incluir dados verídicos sobre a origem paterna deste
célebre sertanejo. Deve-se a Alexandre Lobato a investigação documental e a publicação em
1961 da veracidade histórica. A Companhia Comercial das Feitorias de L. Marques e
Inhambane, que recebera o monopólio legal do marfim, foi fundada em Lisboa a 13 novembro
1824. Enviou a sua primeira expedição em 1826. A segunda expedição saiu em março 1832.
Levava como gerente António José Nobre, como fiscal António Albasini e como escriturário
João Albasini. Para a feitoria de Inhambane seguiu um tal Fornasini. Todos estes empregados
assistiram à trágica execução do governador Dionísio Ribeiro, ordenada em 1833 por Dingane,
fratricida e sucessor do famoso Chaca-Zulo. Por ter sido abolido em 1834/5 o monopólio de
marfim concedido à firma, António regressou a Lisboa. Seu filho João estabeleceu-se por
conta própria, casou cafrealmente com a filha de um régulo e, apenas em 1845 tomou a
decisão de emigrar sem família para o Transval. Encontrava-se estabelecido no Zoutpansberg
quando ali chegou a conhecida expedição inhambanense de 1855, dirigida pelo padre Santa
Rita Montanha.
2) ANDRADE, Onofre Lourenço de (1887). Presídio de Lourenço Marques: no Período de 24 de
novembro de 1859 a 1 de abril de 1865. Lisboa.
3) MYBURGH, A. C. (1949). The Tribes of Barbeton District. Pretoria, África do Sul, Department of Native
Affairs.
4) AXELSON, Eric (1967). Portugal in South-East Africa (1875-1878). In: “Portugal and the Scamble for
Africa (1875-1891)”. Joanesburgo, África do Sul, Witwatersrand University Press, representação
cartográfica de 1880, pp. 1-19.
5) A Manica e o Muzila. I – Parecer da commissão africana, II – Informação do sócio Paiva de Andrade,
capitão de artilharia (1982). Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 3.ª série, 1, pp. 57-64.
6) CARDOSO, António Maria (1887). Expedição às terras do Muzila (1882). Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 7.ª
série, 3, pp. 153-240.
7) HOBSON, Dick (1983). A Hunting Trip to Mozambique in 1868. Londres, Geogr. J., 149, 2, pp. 202/10.
8) COELHO, Trindade (1898). Dezoito Anos em África: Notas e Documentos para a Biografia do
Conselheiro José d’Almeida. Lisboa, Tipografia de Adolfo de Mendonça.
9) ALBERTO, M. Simões e TOSCANO, Francisco A. (1942). O Oriente Africano Português: “Síntese
Cronológica da História de Moçambique”. L. Marques, Edição da Minerva Central, pp. 175/6.
10) GRANDJEAN, A. (1899). L’Invasion des Zoulou. Neuchâtel (Suiça), Bull. Soc. neuchâtel. Géogr., 11, pp.
91/2.
31


DOCUMENTO
Três gerações de uma família de historiógrafos africanos em Sofala

No seio desta família surgiram os servidores públicos que vieram a ganhar fama por,
espontaneamente se terem dedicado a registar os acontecimentos históricos que, tanto no seu
tempo como nos tempos passados, tinham ocorrido desde o litoral até aos recônditos sertões,
nessa vasta região onde primeiro se fixaram os mandatários da coroa portuguesa. Esses
preciosos manuscritos encontravam-se dispersos e quase desconhecidos.
Para nossa vergonha coletiva foi mais uma vez um historiador estrangeiro que, no A. H.
U., se apercebeu do valor da documentação subscrita por João Julião da Silva. Chama-se
Gerhard Liesegang e, em meados de 1968, quando se deslocou ao Estoril para me conhecer e
para me mostrar a tese de doutoramento que acabara de escrever, em alemão, sobre o Império
de Gaza, não podia imaginar que aquele tímido jovem iria dedicar o resto da sua vida não
apenas à historiografia de Moçambique – especialidade em que alcançou renome
internacional – mas sobretudo à própria nação moçambicana que adotou como segunda pátria.
José Fialho Feliciano e Víctor Hugo Nicolau tomaram a iniciativa de publicar em 1998,
no âmbito das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, seis dos manuscritos
produzidos por aquela família (1). Os seus subscritores foram João Julião da Silva, seu filho
Zacarias Herculano da Silva e seu neto Guilherme Hermenegildo Ezequiel da Silva.
Esses documentos descrevem quase um século (1790-1884) das vicissitudes históricas
ocorridas na região que, a partir de Sofala, se estende para norte até ao rio Pungué, para sul
até ao paralelo do Cabo de S. Sebastião e, para oeste, até ao interior do planalto do Zimbabué.
Do espólio deixado por Guilherme, o mais novo desta família talentosa, existem dois
manuscritos na coleção de Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Só o primeiro (com a cota 145, Pasta E-19) foi incluído na compilação acima referida
com o título exato. Quanto ao segundo manuscrito, com a cota 145-E-22, nomeado Breves
noções sobre a medicina cafreal, os compiladores não cuidaram de conferir uma segunda
parte bem diferente e mal conhecida. Pelo menos não lhe fazem qualquer referência. É essa
lacuna que aqui e agora tentarei colmatar.
Os pormenores (para mim fascinantes) sobre sessenta e quatro plantas medicinais
ocupam apenas as nove primeiras páginas. Daí até à pág. 32 verso constam bastantes
elementos dispersos mas de inegável relevância histórica. Entre parênteses, convém
mencionar que, na respetiva introdução, Guilherme se refere a um caixote grande e com
muitos documentos antigos que um tal António Xavier Pereira viu em Chiquanda, a vinte dias
de Sofala, numa casa construída com blocos de pedra. Infelizmente, o régulo local não
autorizou que consultasse este acervo tão estranho e decerto precioso.
Quanto a essa segunda parte, menciono apenas alguns dos temas que transcrevi para uso
pessoal:
a) Arquipélago do Bazaruto;
b) Terras de Vuoka;
c) Raptos efetuados por corsários franceses;
d) Naufrágio de uma barca britânica em 1857;
e) Saques praticados por landins, vátuas ou mathaos;
32
f) Monarcas do império de Gaza, Manucusse, Mauheue e Muzila;
g) Lista dos régulos sujeitos a Mauherere (?) em 1857;
h) “Breve notícia” sobre a expedição que foi encarregada de ocupar as Ilhas do Bazaruto
em 1855;
i) Carta de 11/11/1804, copiada de um caderno do avô e subscrita pelo diretor da feira
de Cassange, Francisco Honorato da Costa, dirigida ao governador de Sena e Tete, por
incumbência de D. Fernando António de Noronha, governador de Angola, tratando do
problema da travessia da África pelos pombeiros Pedro João Batista e António Nogueira da
Rosa;
j) “Notável mortandade que aqui fez o inimigo selvagem Mathao nos dias 10 a 12
outubro 1836”;
k) Relações com Manucusse e ataque dos vátuas a Mambone em junho 1842;
l) Inscrição em lâmina de chumbo comemorando a visita do governador-geral a 3
novembro 1844.

Bibliografia

1) SILVA, João Julião da, et alli (1998). Memórias de Sofala – Etnografia e História… no Centro de
Moçambique, Séculos XVIII e XIX. (Edição e notas de José Fialho Feliciano e Victor Hugo Nicolau)
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
33


DOCUMENTO
Publicação oficial dos “mapas cor-de-rosa” em 1887.
Suas consequências

A ação de Paiva d’Andrada

Joaquim Carlos Paiva d’Andrada, oficial de Artilharia, desempenhou papel importante


nos acontecimentos políticos mencionados no título. Tinha já percorrido os sertões de
Moçambique e, nesta primeira fase da carreira, conseguira alcançar firme reputação. As suas
iniciativas tiveram alguma repercussão internacional. Repare-se, como exemplo, nas duas
sínteses que foram publicadas na Grã-Bretanha, baseadas nas observações e nos
levantamentos topográficos fornecidos pelas duas expedições que organizou a Manica e a
Maxinga/Mazoe em 1881 (1) (2). Por elas se constata que Andrada cedo revelou qualidades
para se transformar em dinâmico empresário ultramarino. Estranhamente essas expedições
pioneiras onde ressalta a capacidade de organização de Andrada foram ignoradas tanto por
Nowell como por Beach. Estou certo de que tenham merecido louvores e publicidade por
parte de alguns portugueses. Ressalta de modo evidente a qualidade dos peritos e o
comportamento dos participantes.
A primeira empresa que Andrada fundou foi a Compagnie Genérale de la Zambézie.
Sem dúvida que tal empreendimento ultrapassava em muito os meios que conseguira
mobilizar. Por tal razão, procurava despertar o interesse dos investidores por eventuais
dividendos.
Da expedição inicial faziam parte três engenheiros de minas: Kuss, Lapierre e Durand.
O primeiro havia trabalhado sete anos na Califórnia. Foram da sua autoria os esboços
cartográficos na escala 1:2.000.000. Lapierre ganhara larga prática na mineração carbonífera.
Contavam também com o químico Guyot, com o médico cirurgião Goffant e com o secretário
Courret. Um cavalheiro com fortuna pessoal e por simples curiosidade pelo exotismo
africano, Rigail de Lastour, ofereceu-se como fotógrafo. Participavam também três mineiros
franceses e três espanhóis.
Este rara e competentíssima equipa de peritos desembarcou em Quelimane a 13 abril
1881. Logo entre 18 e 20, iniciou a subida do Zambeze até Chemba. Daqui saíram a 2
setembro, atingindo dezanove dias depois a capital de Manica, dominada por Mutaça, perto
do rio Odzi, afluente do Save. Durante duas semanas estudaram os filões do Révuè, não longe
do meridiano 33, segundo o atlas moçambicano de 1962. No seu regresso ao litoral, atingiram
Sena a 22 outubro. Do sintético relato constam dois pormenores de muito interesse.
Desmentiram as informações publicadas por Erskine após a sua visita a Muzila (3): os
inclementes invasores ditos zulos teriam transformado todo o território num ermo de
confrangedora desolação. Tal não correspondia à verdade. Os visitantes ficaram
impressionados ao depararem com uma população pacífica e liberta de carências alimentares
e de outros típicos sofrimentos sertanejos. Mais ainda. Mutaça acentuara abertamente a
intenção de se colocar sob a proteção portuguesa.
Uma parte do grupo, chefiada por Guyot, foi explorar o rio Muareze que desagua na
margem esquerda do Zambeze, a jusante de Tete (no supracitado atlas consta como Muarázi).
Contudo foram obrigados a bater em retirada devido à atitude hostil dos rebeldes selváticos do
34
famoso Bonga. Só a presença da guarda de cinquenta sipais armados (decerto recrutados e
preparados por Andrada) evitou que fossem assaltados.
Das minas de Maxinga (ou Machinga) já havia conhecimento internacional porque
foram referidas pelo Dr. Lacerda e por Gamitto. Embora a exploração se encontrasse
abandonada, os habitantes mantinham trocas comerciais com Tete. Registou-se uma
ocorrência que provocou algum susto. O governador de Tete, com dois oficiais e alguns
sipais, tinha partido para o local mineiro no dia anterior ao de Andrada. Quando este se
aproximou da aringa de Muchena – dominada pelo membro da família Caetano Pereira,
cognominado Sacasaca – foi recebido com algazarras e tiroteios… de boas vindas. Após
alguns dias de repouso na Muchena a equipa partiu para Maxinga. A meio caminho,
atravessaram uma região desértica ocasionalmente percorrida pelos predatórios angunes do
nordeste, designados por mavitis ou landins, talvez súbditos dos monarcas da dinastia dos
Massecos. Ora aconteceu que um dos intérpretes do governador, mencionava constante e
obsessivamente um inevitável assalto noturno que iria massacrar todos os presentes. Tão
desvairada era a sua insistência que induzira à deserção grande parte dos sipais e dos
carregadores. Quando esses desertores chegaram a Tete justificaram o seu regresso com a
afirmação falsa de que a expedição tinha sido atacada e que desconheciam o paradeiro dos
restantes. A cobarde artimanha chegou a Quelimane e logo foi telegrafada e reproduzida na
imprensa europeia.
Em boa verdade, não houvera qualquer interferência dos Angonis. O governador de
Tete estava tão seguro da situação que encorajou Andrada e a sua equipa a prosseguirem com
as suas pesquisas. Recebiam diariamente bandos de mulheres transportando a farinha e os
ovinos que o Sacasaca se comprometera a fornecer.
Na sua última deslocação, prejudicada pela densidade da vegetação arbustiva, Andrada
percorreu sessenta milhas a sudoeste de Tete, até conseguir obter dados fidedignos sobre o
lendário ouro aluvionar do Mazoe (citado pelo explorador quinhentista António Fernandes)
rio cujo caudal muito aumentava durante a época pluvial indo engrossar o Luenha. Descobriu
jazigos de carvão nas margens do Mufa, afluente da margem direita do Zambeze.
O periódico londrino elogiou Andrada por ter determinado, com autoridade, a bacia
hidrográfica da região ao sul do Zambeze e também por haver provado que alguns dos antigos
mapas portugueses estavam mais próximos da realidade do que a maioria dos mapas
modernos publicados posteriormente a d’Anville. A segunda síntese foi considerada menos
interessante do que a primeira, mas não deixou de se reconhecer a importância do respetivo
levantamento topográfico, também elaborado pelo Eng.º Kuss, que indicava latitudes,
altitudes e até notas geológicas.
Não se podem compreender os motivos que levaram David Beach a ignorar a
importância que teve esta expedição. A lacuna é tanto mais grave quanto é certo que entre as
quase trezentas notas que adicionou ao seu estudo de 1993 (4) cita, naquela a que deu o n.º 66,
dois trabalhos de nível científico publicados em 1882, por H. Kuss e P. Guyot, o Eng.º de
minas e o químico que já mencionámos (5) (6).
35
Expedição a Sofala

Convém agora referir uma outra iniciativa intrigante de Andrada que conduziu à criação
inesperada, em Lisboa, de uma “Expedição de Sofala” (adiante Exp. Sofala), cuja chefia lhe
foi entregue. Seguem-se os elementos que foram encontrados sobre este assunto pouco
transparente.
Durante o tempo que permaneceu em Lisboa, Andrada escreveu, no dia 19 maio 1886,
uma carta urgente e confidencial ao secretário de Estado dos Negócios de Marinha e
Ultramar (adiante SENMU). Foi decerto esta carta que induziu este alto funcionário a enviar-
lhe dez dias depois o ofício também urgente e confidencial nº 253 no qual refere a existência
de jazigos de prata perto da junção do rio Save com o seu afluente Lundi e na lógica
conveniência em encarregar Andrada e o Major Machado de organizarem uma expedição que
fosse efetuar o reconhecimento in loco. Tudo leva a crer que estiveram envolvidos neste
assunto outras entidades oficiais porque se conhece o teor do ofício do diretor-geral da
Secretaria da Guerra, dirigido ao seu colega da Marinha, tendo como anexo uma cópia do
despacho exarado por Henrique de Macedo, no Paço, a 18 junho, nomeando Andrada para
chefiar a referida “Exp. Sofala”. Foi ele autorizado a despender até quatro milhões de reis
e também passou a ter direito a um subsídio diário de nove mil reis, a contar do
embarque. Já em Londres Andrada enviou, a 5 julho, a carta nº 1 da “Exp. Sofala” ao
Conselheiro secretário-geral do Ministério da Marinha e Ultramar (adiante CSGMMU) e ao
diretor-geral do Ultramar (adiante DGU), tendo em anexo:
a) o acordo que celebrara, no dia 29 junho, com William John Mayers;
b) a carta geográfica localizando os jazigos de prata;
c) o esboço manuscrito do referido Mayers.
A dita “Exp. Sofala” continuou as suas atividades porque o ofício nº 262, do governo-
geral de Moçambique remeteu ao SENMU, a 19 setembro, uma cópia da nota nº 78, de 7
setembro, enviada pelo governador de Sofala J. C. P. de Moraes Sarmento, dando
informações sobre a chegada e a partida dos expedicionários. Andrada, por seu lado, remeteu
no dia 25 do mesmo mês, do acampamento no Mossurize, junto à povoação do Residente, a
carta nº 5 sobre a “despedida de Mayers”, dirigida por Andrada ao Conselheiro Secretário-
geral e ao DGU. Logo no dia seguinte Andrada remeteu ao mesmo a carta nº 8, com “breves
observações acerca do país percorrido desde a Costa até ao Mossurize”. Finalmente pela carta
nº 10, de 16 outubro, denunciou as afirmações falsas de Mayers e admitiu a “pesquisa inútil
de depósitos argentíferos”.
David Beach classificou esta putativa fraude como “uma jogada muito hábil” planeada
por Andrada. Mas – como mais adiante veremos – a “Exp. Sofala” não se ficou por aqui e,
com ela, os rendosos proventos pessoais que proporcionou. Na verdade, a simples consulta da
correspondência que subscreveu permite concluir que, durante largos meses, Andrada, sempre
na qualidade de chefe daquela iniciativa oficial – e ao que parece agindo por seu livre arbítrio
– lançou-se em sucessivas iniciativas que nada tinham a ver com a vassalagem dos regulados
que ocupavam esse famoso planalto interior, tão apetecido e aproveitado pelos portugueses
dos dois primeiros séculos, planalto que ele havia percorrido e até mesmo descrito com a
designação assaz vaga de “Terras do Changamire” (7). Tudo indica que tenha conseguido
cartografar com espantosa minúcia essas vastíssimas terras altas. No Arquivo Histórico
Ultramarino deparei com uma volumosa capilha contendo esboços topográficos manuscritos
em folhas quadradas de vinte e um cm., elaborado na incrível escala de 7,7 km. por cm. Com
papel transparente consegui copiar, a custo, os abundantes dados hidrográficos, orográficos,
etnográficos, etc. entre os paralelos 24 e 28 e os meridianos 30 a 34. Talvez tenha servido de
36
base à carta nº 8, existente na Biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros (3º piso,
armário nº 11, pacote 4 da documentação da Batalha Reis, no 1 – 18). O Prof. David Beach
em pessoa garantiu-me que nem o oficialato da polícia montada nem os primeiros
mandatários a soldo de Cecil Rhodes – como o Dr. Leander Starr Jameson – dispunham de
quaisquer outros levantamentos cartográficos que se assemelhassem a esse – aparentemente
ignorado – pioneiro e meticuloso documento sobre o ambicionado planalto. Não consegui
apurar se foi exibido, nas instâncias internacionais, como prova da “ocupação efetiva” pelos
Portugueses!
Seja como for, com essas iniciativas avulsas que depois se revelaram prejudiciais ao
futuro traçado das fronteiras, Andrada conseguiu até mesmo depauperar quer o tempo quer os
recursos do célebre e patriótico sertanejo indo-português Manuel António de Sousa. A mais
desgastante dessas iniciativas – em aparência tomada com o intuito de reforçar a sua glória
pessoal – foi a pretensa guerra contra o Bonga reinante, no desfecho da qual se limitou a
proclamar uma vitória que depois se veio a revelar efémera e traiçoeira. Na verdade, as hostes
chefiadas por Andrada e por M. A. S. atacaram, no dia 13 setembro, a aringa de Massangano,
até então ocupada pelo Bonga conhecido pelo cognome de Chatara. Pouca ou nenhuma
resistência encontraram porque o grosso dos revoltosos havia feito uma retirada estratégica.
Os atacantes apenas se limitaram a incendiar as casas de habitação. Dois dias depois
aconteceu que o Chatara, devidamente manietado, foi entregue às autoridades de Tete pelo
seu próprio irmão conhecido por Motontora. No dia seguinte, os chefes de guerra
apresentaram-se pedindo para serem perdoados.
Com base neste pretenso triunfo, Andrada e M. A. S. deslocaram-se a Lisboa e foram
recebidos como heróis nacionais. Só então se extinguiu a famosa “Exp. Sofala”. Azevedo
Coutinho (8) escreveu o seguinte comentário satírico a propósito da excessiva credulidade de
Andrada nos seus contactos com os chefes tribais:

“… Muitas vezes foi enganado! Em 1887 depois da tomada da Aringa do


“Pinderire”… Andrada tomou como boa e sincera a submissão dos bongas do
Chatara, e tratou revoltosos – tão frequentemente sanguinários e ferozes
rebeldes! – com a maior brandura e a muitos distribuiu colares de missanga
especial. Aos amigos e mesmo oficialmente, declarou o país dos Bongas
definitivamente pacificado, e fez o elogio caloroso daqueles célebres bandidos
e rebeldes, chamando aos pseudo-submetidos, pobres e pacíficos pretos!”

Convém relembrar que só no ano seguinte, em 6 agosto 1888, o próprio governador-


geral Augusto de Castilho tomou a decisão de comandar em pessoa uma bem planeada e
executada ofensiva militar quando soube que o Motontora havia reocupado a aringa de
Massangano a 23 maio. Este eficiente ataque definitivo causou aos revoltosos mais de seis mil
mortos e só terminou a 29 novembro, data em que o governador-geral mandou ali arvorar a
bandeira nacional. Os temíveis e supostamente invencíveis Bongas desapareceram para
sempre.
37
Expedição aos sertões

Em meados de 1887 – após prévia aprovação nas Cortes – o ministro Barros Gomes
mandou publicar oficialmente o famoso “mapa cor-de-rosa”. O primeiro-ministro do Reino
Unido Lorde Salisbury (adiante Salisbury) não tardou em apresentar o seu formal protesto.
Foi nessa ocasião que surgiu, inesperadamente, um anónimo “João” – sem dúvida desleal mas
prestável alto funcionário lisboeta cuja identidade nunca foi apurada. A 5 junho o embaixador
britânico George Glynn Petre (adiante Petre) recebeu uma carta sua garantindo que conhecia
em pormenor planos elaborados pelas competentes autoridades portuguesas com o objetivo de
ser redobrada a resistência contra as intenções imperialistas dos súbditos britânicos que, por
moto próprio ou em obediência a mandatários, percorriam o interior da África. Também sabia
que o Major Paiva d’Andrada tinha sido escolhido para coordenar e efetivar esses planos. O
pérfido “João” insistiu que era guiado por motivos puramente ideológicos. Todavia, não lhe
repugnaria receber uma “entrada” de dez mil libras (9). Salisbury não deu importância ao
traidor mas, à cautela, recomendou maior vigilância sobre as atividades frenéticas de
Andrada.
Não interessa aqui discutir as reações britânicas contra os novos objetivos dos
governantes portugueses. Interessa saber, outrossim, que Henrique de Macedo, ministro do
Ultramar e das Colónias – embora próximo do fim do seu mandato – decidiu organizar
diversas expedições com objetivos que pretendia manter em segredo. Convocou três oficiais
prestigiados: Paiva d’Andrada, António Vítor Cordon e António Maria Cardoso, para lhes dar
conhecimento dos seus planos. Considerou como finalidade principal e imediata, a ocupação
efetiva dos territórios planálticos compreendidos entre o Zambeze e o Alto Limpopo. Seriam
assim lançadas as bases para Portugal proclamar os seus direitos quando chegasse a altura das
diversas potências iniciarem as conversações relativas aos traçados fronteiriços. No entender
do ministro, além de se aproveitar o auxílio direto de Ngungunhane e de outros chefes
situados ao longo da costa e dos principais rios, conviria que as anexações fossem
classificadas como legítimas reconquistas de regiões outrora pertencentes à Coroa Portuguesa.
Essas reconquistas deveriam atingir regiões longínquas como as banhadas pelo afluente
Sanhati que desagua na margem direita do Zambeze. Considerou preferível concentrar todos
os recursos em áreas onde a ocupação pudesse ser firmemente mantida, por meio de postos
fortificados, capazes de apoiar eficazmente os responsáveis pela manutenção da Lei e da
Ordem. Não se tratava pois de arrebatar apressadamente novos territórios mas apenas de
castigar antigos chefes que se haviam revoltado.
Os dois primeiros-oficiais ficariam a dirigir as operações no planalto situado a Leste do
vale formado pelos rios Save e Sanhati. A chefia máxima pertenceria a Paiva d’Andrada,
devido ao conhecimento mais profundo que tinha das populações e dos potentados gentílicos.
Henrique de Macedo terminou por esclarecer que as necessárias instruções já haviam
sido enviadas ao governador-geral e aos governadores de Quelimane, de Tete, de Manica e
Sofala. Caso as autoridades locais não tivessem delas conhecimento, Andrada poderia recorrer
a medidas de exceção que considerasse indispensáveis. As ordens finais do ministro foram
assinadas a 5 julho (10).
David Beach dedicou vários anos a aprofundar esta problemática. Como já referimos, as
suas conclusões foram oportunamente publicadas em português. Baseou-se nos arquivos
portugueses e nos da British South African Company, muito embora saibamos por A. J.
Hanna (11) que a grande maioria dos chamados “Rhodes Papers” desaparecera no incêndio da
sua residência no Cabo, em Groote Schuur. Também se sabe que os arquivos da sede londrina
38
da Companhia foram completamente destruídos por um dos bombardeamentos aéreos da II
Grande Guerra.
Não surpreende que Beach aponte vários erros clamorosos cometidos por Andrada. O
próprio governador-geral Augusto Castilho, aludindo à promessa que lhe fora feita por
Andrada sobre fornecimento de material de guerra para o ataque final à aringa do Bonga,
comentou (12):

“Quanto aos foguetes e às peças Hotchkiss nunca apareceram no


Zambeze até mesmo ao fim da guerra, devido à grande confusão e à falta de
ordem que parecia reinar em tudo o que dizia respeito à expedição. As armas
Snider, de que muitas estavam em mau estado, não chegaram a ser empregadas,
por os indígenas não conhecerem o seu manejo…”.

Azevedo Coutinho, o mais prestigiado entre todos, acrescentou sobre a proverbial


desorganização de Andrada (13):

“… Por toda a parte semeava, uma multidão de objetos levados da


Europa… Armas, munições, instrumentos astronómicos, objetos de bivaque, de
viagem, rancho, barracas, etc., e tudo ficava pouco menos do que abandonado,
em pseudo-depósitos, pelas povoações e de que principalmente o muchem (as
térmites), os que passavam e os próprios indígenas se aproveitavam ou
destruíam…”.

Na época, também foram notadas as críticas mordazes que lhe foram feitas, em agosto
1890, por J. D. Leotte do Rego quando Andrada defendeu a solução visionária de desmontar a
lancha-canhoneira “Marave” antes das cataratas de Cabora-Bassa, transportar milhares de
peças às costas de centenas de carregadores indígenas, para voltar a ser montada na Chicoa!
Deve-se a David Beach a redescoberta do paradeiro da vasta correspondência elaborada
por Andrada durante as Expedições de Sofala e aos Sertões. Acaba a nota 277 do seu trabalho
com a seguinte informação:

“… Depois de Axelson, Nowell e Mudenge terem visto cada um deles


alguns dos diferentes documentos nos seus arquivos originais, esses
documentos foram quase todos colocados numa nova Caixa… (com um novo
título). Foi por acaso e com a ajuda do empregado do AHU que encontrei essa
caixa em 1988…”.

No final do seu artigo honrou-me deste modo:

“Quero agradecer particularmente a António Rita-Ferreira, que não só


supervisou meticulosamente a cópia dos documentos de Andrada no AHU para
a SAREC, mas também os catalogou, efetuou para mim investigações vitais no
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros e prestou-me um apoio
generoso nas minhas visitas a Lisboa”.
Por poderem ser úteis a futuros investigadores, passarei a relatar as dificuldades
enfrentadas após assumir o supracitado compromisso. Não foi tarefa fácil. Um dos principais
problemas do AHU, residia na chamada “segunda secção”, designação eufémica de um salão
39
sobrecarregado com um enorme acervo documental, na sua maioria ainda não inventariado
e datado de anos posteriores a 1833, quando um novo governo ultraliberal, decidiu extinguir o
Conselho Ultramarino. É lamentável que setenta anos depois do general J. J. Teixeira Botelho
ter pronunciado a observação adiante transcrita, ainda se encontrasse desorganização muito
semelhante, quer no AHU quer em outros arquivos lisboetas que estudei durante o projeto de
micro-filmagem. Disse aquele autor da conhecida “Historia Militar e Política”, na sua
conferência de 9 dezembro 1919 (14):

“Nós temos, é certo, contributos preciosos, a saber, relatórios de


administração e de expedição militares, narrativas de viagens, variados estudos
e monografias, mas carecemos de obras de conjunto, que são precisamente as
que melhor se prestam à tarefa educativa que tão necessária se manifesta entre
nós. Quem quiser levar a cabo uma obra desse género, em Portugal, prepare-se
para meter ombros a uma tarefa gloriosa, sim, mas muito espinhosa, porque a
principal fonte de trabalhos desta ordem é o documento, e infelizmente os
nossos arquivos, por falta de organização, não prestam ao investigador o auxílio
que seria lícito esperar deles”.

Cronologia da documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino

1881 – Governo-geral de Moçambique: cópia do ofício do Governo do Distrito de Tete, n.º 56,
de 31 julho, sobre a “Concessão Paiva de Andrada e estado do país”.
1884 – Folha n.º 484 do Diário de Governo n.º 45, de 25 fevereiro, com o Decreto de Pinheiro
Chagas concedendo à Companhia de Ofir as minas de Manica, Quiteve, Bandir e Inhaoxo.
1885 – As primeiras provas e o manuscrito de Andrada intitulado “Relatório de uma Viagem às
Terras dos Landins”, editado em Lisboa, pela Imprensa Nacional.
– Carta a desconhecido, escrita nas “Terras de Ngungunhane”, a 11 fevereiro
– Carta ao Conselheiro Secretário-geral do Ministério da Marinha e Ultramar (CSGMMU)
e diretor-geral do Ultramar (DGU), escrita em Gouveia, a 16 março (13 fls.).
– Carta aos mesmos, enviada de Gouveia a 24 abril, tendo em anexo cópia da que lhe foi
escrita em Sofala por Alegria Rodrigues, a 21 fevereiro e a resposta que Andrada lhe enviou de
Gouveia a 6 abril. Andrada aconselha ser urgente que Ngungunhane facilite a ocupação de Manica
e do Vale do Limpopo. Inclui um recorte do “Natal Mercury” de 13 março (10 fls.).
– Parecer sobre o seu relatório de março (3 fls.).
– Carta ao mesmo, sobre “rio Aruangua e notícias de Manica”, em Gouveia, a 17 maio.
1886/7 – Carta “confidencial e urgente” ao secretário de Estado dos Negócios de Marinha e
Ultramar (adiante SENMU), escrita em Lisboa, a 19 maio.
– Ofício confidencial e urgente nº 253, de 29 maio, da 2ª Repartição da SENMU sobre a
existência de jazigos de prata perto da confluência do Save com o Lundi e a conveniência em que
Andrada e o major Machado organizassem uma missão de reconhecimento.
– Ofício do diretor-geral da secretaria da Guerra (adiante DGSG) dirigido ao seu colega
da Marinha, tendo anexa uma cópia do despacho exarado no Paço, por Henrique de Macedo, a 18
junho, nomeando Andrada para essa missão especial, sendo autorizado a despender até quatro
milhões de réis, com o abono diário de nove mil réis, a contar do embarque.
40
Sobre a “Expedição a Sofala”

– Carta nº 1, da “Exp. de Sofala”, aos mesmos, com classificação de “Reservada”,


enviada de Londres a 5 julho, tendo os seguintes anexos:
a) Acordo celebrado entre Andrada e William John Mayers, a 29 junho;
b) Carta geográfica entre os meridianos 25º e 42º Este e os paralelos 9º e 27º sul, com
marcação a tinta do local dos jazigos de prata;
c) Esboço manuscrito de Mayers (12 fls.).
– Nota nº 78, de 9 setembro, emitida pelo governador de Sofala, J. C. P. de Moraes
Sarmento, com informações sobre a chegada e a partida da expedição. Foi o governador-geral
que enviou ao Ministério cópia desta nota, a coberto do ofício nº 262, da 1ª Repartição, de 29
setembro.
– Faltam as cartas nºs 2 a 4.
– Carta nº 5, de 25 setembro, aos mesmos, no acampamento do Mossurize, junto da
povoação do Residente, tratando da despedida de Mayers, do projeto de pesquisa, das chaves
para telegramas” (5 fls.).
– Falta a carta nº 6.
– Carta nº 7 (com especificações idênticas às da carta nº 5). Remete sementes de uturo,
utilizadas pelos aborígenes para produção de veneno para flechas.
– Carta nº 8, da “Exp. de Sofala”, com “breves observações acerca do país percorrido
desde a costa até ao rio Mossurize”, ao mesmo, no Mossurize a 26 setembro, comunicando
que Ngungunhane pedira a nomeação de um Residente português no Vale do Limpopo (5
fls.).– Falta Carta nº 9.
– Carta nº 10, da “Exp. de Sofala” sobre “pesquisa infrutífera de depósitos
argentíferos”, ao mesmo, no Mossurize, a 16 outubro (3 fls.).
– Carta nº 11, da “Exp. de Sofala”, sobre “colonos agrícolas para o distrito de Sofala”,
ao mesmo, no Mossurize, a 24 outubro (3 fls.).
– Carta nº 12, no Mossurize, a 11 dezembro, sobre telegrama de Ngungunhane ao Rei (2
fls.).– Faltam as cartas nºs 13 a 25.
– Carta nº 26, no Mossurize, a 1 fevereiro, enviando fotografias da família e dos
secretários de Ngungunhane (não se encontraram estas fotografias) (6 fls.).
– Faltam as cartas nºs 27e 28.
– Carta nº 29, na povoação de Machassene, a 5 março, contendo em anexo a Ata da
reunião realizada a 14 fevereiro, na povoação real de Manjacaze; menciona inquaia realizada
a 24 fevereiro com a participação de 15.000 guerreiros (16 fls.). (É de louvar que Andrada tenha
enviado diretamente para Lisboa o texto completo da Ata – que decerto teria desaparecido devido à
sua grande importância. O texto completo foi oportunamente incluído no Documento 4).
– Carta nº 30, da “Expedição de Sofala”, sobre “Banguè” e “Punguè”, ao mesmo, na
povoação de Mucaca, a 29 março. Note-se que Andrada já estudava o local propício para um
futuro porto. Na pág. 7 comentou: “estes vastos países do Ultramar onde temos a escória de
Portugal. Na pág. 14 sugere a domesticação do búfalo” (18 fls.).
– Faltam as cartas nºs 31 e 32.
– Carta nº 33, em Gouveia, a 17 abril, transcrevendo parte da carta de Manuel A. de
Sousa sobre a guerra que moveu a Mutoco e a outros régulos (junta em anexo uma carta
41
particular do cônsul britânico O’Neill a bordo do “Courland”, no porto de Quelimane, a 1
fevereiro (15 fls.).
– Falta a carta nº 34.
– Carta nº 35, com “extrato do diário”, ao mesmo na aringa da Massanga, a 6 junho (8
fls.).– Carta nº 36, na Massanga, ao mesmo, a 10 junho, sobre “Guerra do Mutoco” (21 fls.).
– Carta nº 37, na Massanga, a 11 junho, sobre “Ignácio Jesus Xavier”, (contém
pormenores sobre a sucessão do Muene Mutapa e a importância que era dada aos
M’pondoros) (20 fls.).
– Carta nº 38, sobre “Guerra do Bonga”, ao mesmo, na Massanga, a 12 de junho, com
croquis sobre a distribuição das aringas (36 fls.).
– Faltam as cartas nºs 39 e 40.
– Carta nº 41, da “Expedição da Sofala”, sobre “Guerra do Bonga”, ao mesmo, em
Inhamacombe, a 10 julho (8 fls., escritas em ambos os lados das folhas o que torna a leitura
difícil).– Faltam as cartas nº 42 e 43
– Carta nº 44, em Inhamacombe, a 9 agosto, sobre “Guerra do Bonga” (alude à
importância política das nhanhas de Manuel António de Sousa, isto é, filhas dos chefes
tradicionais com quem casava segundo os costumes gentílicos; assim reforçando o seu poder,
graças à construção de uma aringa com a respetiva guarnição de sipais armados e dirigidos
por um capitão) (14 fls.).
– Falta a carta nº 45.
– Carta nº 46, em Inhamacombe, a 2 setembro, sobre a “Guerra do Bonga” (faz
referência a uma inovadora orgânica militar criada pelos célebres “Ferrões de Sena”, i. e. os
batalhões de mulheres jovens que, durante as operações militares, prestavam apoio logístico
aos guerreiros e aos seus capitães) (7 fls.).

Sobre a “Expedição aos sertões” (concebida pelo ministro H. de Macedo e


mobilizando três oficiais: Paiva d’Andrada, V. Cordon e A. Maria Cardoso)

– Faltam as cartas nºs 1 a 4.


– Carta nº 5, ao CSGMMU e DGU, em Inhambane, a 8 agosto, a bordo do “Courland”.
– Carta nº 6, ao mesmo, a 28 setembro, em Conceição, desembarcado do “Lion”; relato
das suas atividades durante agosto e setembro.
– Carta nº 7, sobre “Porto da Beira”, ao mesmo, a 30 setembro, a bordo do “Lion”,
pronto para sair da barra do Inhamissengo.
– Carta nº 8, ao mesmo, na Beira, a 6 outubro (cita presença de estrangeiros na corte de
Ngungunhane – incluindo uma inglesa que por razões desconhecidas abateu a tiro um dos
carregadores); condições impostas pelo monarca para a reabertura das minas de Manica.
– Carta nº 9, ao mesmo, em Mossurize, a 16 novembro, sobre o fretamento do vapor
“Lion”.
– Constatei que desapareceu a carta nº 10, em Mossurize, a 7 novembro, citada por
Charles E. Nowell; tem importância porque dela consta seguinte informação “É para
Manica e Manguende que amanhã parte a guerra”.
– Carta nº 11, em Mossurize, a 7 novembro (descreve a discussão que teve com
Ngungunhane sobre os limites entre o Império de Gaza e o reino de Ndebele (Matabele), o
42
soberano com uma vara traçou no chão o curso do rio Save e apontando com a mesma vara
declarou Andrada perentoriamente: “aqui na margem direita é a terra dos Matabeles
(Ndebele) e aqui na margem esquerda é a terra dos Vátuas” (i.e. súbditos do Império de
Gaza).
– Carta nº 12, em Mossurize, a 14 novembro (sobre atual guerra contra o régulo
Mutoco).
– Carta nº 13, ao mesmo, no Mossurize, a 16 novembro, sobre “boias para o porto da
Beira”.
– Carta nº 14, ao mesmo, no Mossurize, a 16 novembro, sobre “serviços de navegação
para a província de Moçambique”.
– Carta nº 15, em Mossurize, a 17 novembro (Andrada reafirmou que tinham sido os
Vátuas quem assegurara a soberania portuguesa).
– Falta a carta nº 16.
– Carta nº 17, em Mossurize, a 19 novembro (relata o terror inspirado por um seu criado
que envergara o traje de guerra dos Vátuas quando foi mandado comprar porcinos e caprinos
para alimentação dos membros da expedição).
– Carta nº 18, em Mossurize, a 25 novembro (inclui cópia do tratado, em afrikans, que o
presidente da República do Transval tentou a 3 março celebrar com Ngungunhane).
– Falta a carta nº 19.
1889 – Carta nº 20, em Sarmento, a 9 fevereiro, (fome em quase toda a região do
Zambeze ao Limpopo; informa que os Vátuas fracassaram na conquista do Mutassa; conta
que muitos estrangeiros tinham procurado adquirir concessões em Manica).
– Carta nº 21, ao mesmo, em Sarmento, a 16 fevereiro, junta “Memorandum de algumas
das resoluções tomadas nas conferências com Manuel António de Sousa”.
– Ofício nº 134, de 30 abril, do governo-geral de Moçambique ao MSENMU, cópia do
ofício nº 27, de 7 abril, do governo do Distrito de Manica, em que este comunicou que em 3
do mesmo mês Manuel António de Sousa tinha partido da Gorongosa com mais de mil
homens, para as terras do régulo Manguende com o objetivo de se aproximar da margem
esquerda do Sanhate e de ali se instalar para poder prestar auxílio a Paiva d’Andrada.
– Ofício nº 338, de 15 outubro, do governo-geral de Moçambique, referente ao Auto da
Inauguração da Aringa Luciano Cordeiro, redigido pelo tenente Vítor Cordon, a 19 julho.

A micro política tribal, segundo David Beach

Para melhor compreensão dos factos que adiante irão ser citados, interrompo esta
narrativa para resumir a opinião qualificada do mesmo autor sobre a desintegração ocorrida
após o colapso dos Mutapas e dos Changamires, desintegração que deu origem a numerosas
comunidades de tipo tribal. Na área compreendida entre o rio Zambeze, o Império de Gaza e o
Estado Matabele (Ndebele), existiam cerca de duzentas pequenas tribos, na sua maior parte de
origem Chona mas também com núcleos de origem Sena e Tonga. Note-se, de passagem, ser
este o número aproximado das tribos de origem Angune (Nguni) antes do espantoso
fenómeno de expansionismo militarizado, conhecido por m’fecane.
Mas continuando. As maiores das supracitadas tribos, como N’houe e Maunguè,
chegavam a ter setenta quilómetros de diâmetro, com muitas povoações; contudo as mais
43
pequenas não ultrapassavam dez a vinte quilómetros e eram compostas por menos de cinco
povoações. Sabe-se, pela antiga documentação portuguesa, que a existência de algumas delas
remontava a dois e mesmo a três séculos. Os seus chefes dispunham de menor poder do que
os monarcas angunes; mas mesmo esse poder limitado era objeto de rivalidades por parte das
famílias descendentes dos anteriores chefes, primo contra primo e irmão contra irmão. O
resultado era um quadro caleidoscópio de alianças, emulações e inimizades, que se alteravam
de tempos a tempos e que envolviam não só a dinastia reinante mas também as linhagens
dominadas, os territórios vizinhos e qualquer potentado que pudesse ser manipulado para
apoiar uma fação contra outra. Os assaltos às caravanas e o comércio a longa distância
coexistiam em maior ou menor grau. Embora muitas dessas tribos fossem antigas, com
fronteiras reconhecidas, isso não impedia os governantes ambiciosos de tentarem conquistar
terra aos seus vizinhos, muitas vezes com sucesso. Dado que a violência ou a ameaça de
violência influenciavam de modo determinante as políticas dessas sociedades tribais, não é de
admirar que o refúgio situado no topo da montanha (ou a aringa, fortificação na planície do
vale do baixo Zambeze) fosse tão importante, ou que os alienígenas de origem lemba,
mazdeista, islâmica ou cristã, que faziam o seu aparecimento, fossem tão solicitadas por
fações locais que procuravam concretizar as suas ambições pessoais. Muitos dos casos de
aberta hostilidade dos chefes indígenas e naturalmente das próprias populações, tiveram a sua
origem em intoleráveis violências e extorsões praticadas quer por súbditos portugueses quer
pelos seus descendentes e mandatários.

O caso especifico do régulo Metoco

Merece referência o caso paradigmático e de consequências tão duradouras que,


decorridas décadas, se refletiu no próprio traçado das fronteiras. Nele esteve envolvido o
famoso potentado da etnia chona, Metoco (M’toko) de seu nome, situado a sudoeste de Tete,
no atual Zimbabué. A documentação portuguesa refere que, em 1866, o monarca mandou
confiscar todo o marfim transportado por uma determinada caravana, marfim que alguns
comerciantes de Tete tinham legitimamente adquirido naquelas terras. Classificou esta sua
ordem como justificado castigo que aplicava a propósito dos roubos, sequestros e
humilhações que, anos antes, sofrera por parte de um corrupto e atrabiliário governador de
Tete que, sem explicações, mandara prender, confiscar e mesmo espancar os homens da
caravana que ele, Metoco, tinha enviado a essa localidade com o propósito normal e legítimo
de trocar o seu próprio marfim por bens de que necessitava (15). Mutoco, potentado de
invulgar longevidade, jamais esquecera tamanha afronta e, em conformidade, passara a odiar
cegamente e a tratar como seus inimigos todos e quaisquer portugueses e respetivos
serventuários. Não admira que em 1891 haja recebido com júbilo o sertanejo britânico
Frederick Courtenay Selous, que lhe atribuiu uma idade superior a cem anos. Sem dificuldade
o convenceu a firmar com os britânicos um bem formalizado tratado de vassalagem (16).
Sabemos que em 1887, Manuel António de Sousa, combinado com Paiva d’Andrada,
organizou contra Mutoco e seu poderoso filho Garupira, uma grande ofensiva cuja recordação
perdurou na tradição oral por via de um gigantesco e magicamente fortalecido tambor de
guerra, com o nome próprio de Chiuzingo (17). É com algum constrangimento que devo
retificar a informação prestada pelos autores da utilíssima e meticulosa “síntese cronológica”
(18). Afirmam textualmente, após indicarem a data de 16 março 1887:
44
“… M. A. S. ataca a gente do régulo Mutoco, aliado dos senhores de
Massangano, nas margens do rio Mazoi, defrontando-se com mais de 2.500
guerreiros, e no dia seguinte defronta-se com cerca de 5.000 guerreiros do
mesmo régulo, derrotando-os”.

O estudo melhor documentado de David Beach, aludindo à mesma batalha, apresenta


desenlace contrário:

“As forças aliadas de Mutoco confrontaram-no na colina de Gumamitzi, a


quinze quilómetros da fronteira. Depois de dois dias de combates a maior parte
dos homens de Sousa debandaram em todas as direções…”.

Na pg. 43, o mesmo investigador cita uma segunda ofensiva de M. A. S. contra Mutoco,
da qual, como anteriormente, o capitão-mor saiu vencido. Assim reposta a verdade histórica,
cabe ressaltar de novo a minúcia de Malyn Newitt (19), ao incluir este acontecimento entre os
quatro que mais influenciaram o traçado definitivo das fronteiras moçambicanas.

António Maria Cardoso e os Padres Brancos

Iremos dar algum desenvolvimento a este tema porque, inacreditavelmente, num


opúsculo de P. Ferreira Ramos (20) dedicado aos leitores interessados pela história de
Portugal o autor classificou como primaciais os seguintes acontecimentos ocorridos em 1888:

“É promulgado o Código Comercial; António Maria Cardoso realiza


uma missão de estudo no Niassa; Artur de Paiva ocupa o Bié; São editados Os
Maias, de Eça de Queirós”! O já referido ministro Henrique de Macedo
também decidiu que A. M. Cardoso não participaria na “Expedição aos
Sertões”, porque lhe tinha reservado uma tarefa especial: a implantação de uma
missão católica junto do lago Niassa, missão que serviria de base às atividades
desenvolvidas com o objetivo de «alargar a presença portuguesa na região,
tirando proveito não só da boa vontade e do respeito que auferia Portugal mas
também do rancor ou pelo menos da má vontade que muitos nativos nutriam
contra os ingleses» (sic).

Sabia decerto que Charles Lavigerie, Cardeal-arcebispo da Argélia (adiante Lavigerie)


decidira fundar em 1868 a “Société de Notre-Dame d’Afrique”, mais conhecida por Padres
Brancos. A Republica Francesa, embora mostrasse tendências anticlericais, apoiou esta
iniciativa porque coincidia com a sua política africana. Por seu lado o cardeal, com seus ideais
religiosos, vivia preocupado com o facto do protestantismo se expandir perigosamente por
todo o continente negro. As negociações solicitadas pelo governo português iniciaram-se em
Paris no mês de setembro 1888. O cardeal ali se encontrou com Serpa Pinto e Henrique de
Macedo.
Cumprindo as ordens recebidas, António Maria Cardoso (adiante A. M. Cardoso)
desembarcou na ilha de Moçambique. Foi em vão que procurou intérpretes que pudessem ser
empregados na região lacustre. Decidiu então seguir para Inhambane onde servira como
45
governador (1877/8) e onde deixara boas amizades. Em 1882 chefiara outrossim a expedição
às terras do Muzila. Imitando Serpa Pinto também contratou cinquenta guerreiros landins
como sua guarda pessoal.
Juntamente com alguns voluntários, desembarcou na barra do Chinde. Devido às
dificuldades inerentes ao delta do Zambeze, levou cerca de vinte dias para atingir o Prazo
Marral, que tinha como prestigiado arrendatário Romão de Jesus Maria (adiante Romão).
Infelizmente, este encontrava-se em desavença com o governador do distrito. Nessas
condições, não podia ausentar-se das suas terras por recear possíveis represálias. Cardoso
resolveu o problema escrevendo diretamente ao ministro, a 16 outubro 1888 (21). O
governador-geral obteve de Lisboa a 24 novembro formais garantias que confirmavam os
direitos de Romão. Também proibiu as autoridades de Quelimane de o hostilizarem. Satisfeito
com tais apoios, Romão decidiu prestar as ajudas de que Cardoso necessitava: a mais
importante era constituída pela sua própria pessoa e por uma guarda de trezentos homens bem
armados. Assim sendo a caravana contava por quase mil pessoas, nelas incluídos os landins,
duzentos e cinquenta mercenários recrutados na vizinhança e também algumas mulheres e
crianças.
A notícia de todo este aparato bélico chegou à Ilha de Moçambique e, como é natural,
aos ouvidos do Cônsul britânico O’Neil. A 8 novembro (22), comunicou telegraficamente ao
seu Ministério dos Negócios Estrangeiros o boato de que A. M. Cardoso chefiava uma
expedição composta por mil e duzentos homens armados e ainda cerca de dois mil auxiliares.
Cardoso havia recebido ordens do ministro para recrutar um sacerdote português em
Moçambique. Ninguém encontrou que possuísse suficientes qualificações. A expedição partiu
sem missionário. Os inevitáveis contratempos retardaram a saída até 4 novembro. Devido ao
medíocre ano agrícola surgiram os primeiros indícios da futura e crónica escassez de
mantimentos que todos atormentou.
Entretanto, no dia 24 dezembro, o embaixador Petre (23), solicitou uma audiência a
Barros Gomes para o interrogar, frontalmente, sobre as verdadeiras intenções de A. M.
Cardoso. O ministro, com polidez diplomática, não deu resposta satisfatória. As
desconfianças do governo britânico atingiram o grau de ser imaginada a existência de
eventuais motivações militares que integrariam a caravana de Cardoso em qualquer plano
secreto e maquiavélico tramado entre Portugal e a Alemanha. O certo é que, passados três
dias, o embaixador alemão em Londres foi convocado para ser oficialmente informado de
que:

“No caso de Portugal interferir na região do lago Niassa, a coroa britânica


seria forçada a ocupar, a título de garantia material, quaisquer possessões
portuguesas na Índia ou no Atlântico” (24).

No início do ano seguinte, após o governo lisboeta ter considerado positivos os êxitos
alcançados por Cardoso, foi finalmente assinado o acordo entre o Cônsul português e o
representante de Lavigerie. Nele se formalizou a fundação de um estabelecimento missionário
(25).
No que competia a Cardoso apenas se podem imaginar os esforços que desenvolveu
para alimentar e manter em harmonia os diversificados elementos da caravana. Convêm
acentuar, aqui e agora, que nunca foi encontrado qualquer relatório sobre as atribulações
sofridas pela denominada “Missão Civilizadora Henrique Macedo”. O pouco que se sabe
consta dos arquivos britânicos e é baseado na conferência que Cardoso pronunciou, após o seu
regresso a Lisboa, no Clube Militar e Naval. Como seria de esperar, o embaixador Petre teve a
46
meticulosidade de elaborar e de remeter a Salisbury um resumo do que se passou na
conferência, resumo que é datado de 4 maio 1890 (26).
Voltando à caravana. A. M. Cardoso tinha planeado seguir pelos contrafortes do Monte
Milange (1.542 m. de altura) atravessando desse modo as terras do chefe Matapuirre. Este era
bem conhecido como indivíduo intratável desde que, em 1886, implicara com Augusto
Cardoso. Também desta vez exigiu pesados “direitos de trânsito”. A caravana continuou na
sua rota setentrional, passando a leste do lago Chirua. Foi nesta região que Cardoso começou
a revelar os objetivos políticos de que tinha sido incumbido. Na verdade, como veio a relatar
na referida conferência lisboeta, conseguiu obter um compromisso de vassalagem por parte do
chefe Malema. Atingiu depois a margem esquerda do Chire, algo a montante das cataratas
Murchison. Em seguida procurou arduamente saber onde se situava a nova povoação do chefe
Cuirrássia, avassalado pelo seu homónimo. Conseguiu esse objetivo no dia 12 dezembro,
depois de ascender a uma montanha com 1.500 metros de altitude. Decerto que foi recebido
com júbilo. O régulo aceitou uma nova bandeira portuguesa, bem como uma garrafa de
aguardente e, para rematar, uma bela carabina Kropatschek. Ficou de tal modo satisfeito e
envaidecido que passou a noite inteira a disparar desatinadamente até esgotar as munições!
Seguiu-se um período confuso porque o potentado Macanjila considerava Cuirrássia
como simples vassalo. Felizmente que Cardoso – embora já abatido por doenças – conseguiu
concretizar uma reconciliação. Este talento diplomático abriu caminho para a vassalagem de
outros régulos da região entre os quais sobressaiu M’ponda.

***

A milhares de kms de distância, na metrópole francesa, o Cônsul de Portugal assinou


finalmente o acordo supracitado, onde ressaltavam as condições a observar para fundação
efetiva do estabelecimento missionário (27). Após a sua consagração em solene cerimónia,
partiram para o Niassa três Padres Brancos e dois irmãos laicos, ingenuamente convencidos
de que poderiam contar com o apoio de seus colegas portugueses. Chegaram à Ilha em agosto
e daí partiram para Quelimane e logo para o Marral. A caravana em que foram integrados era
chefiada por um prestigiado africano chamado Constantino. Não era secundado por qualquer
representante oficial português. A caminhada iniciou-se em 26 novembro e arrastou-se
penosamente até M’ponda onde chegou a 28 fevereiro 1890 (28).
O contacto com o régulo foi desapontador. Era da etnia ajaua (Yao), em simultâneo
instável, sanguinário, vagamente influenciado pelo islamismo, ostentando em conjunto as
bandeiras de Portugal e da Inglaterra. Tinha acabado de assassinar uma das suas mulheres.
Exigia constantes oferendas.
Hanna (29) confirma a frieza e o ostensivo desagrado com que os missionários
escoceses receberam os seus colegas franceses. Cita também mais um caso de egocêntrica
indiscrição e fanfarronice cometido por Serpa Pinto. Em entrevista concedida a um jornalista
belga admitiu serem principalmente políticos os motivos que levaram o governo português a
utilizar os Padres Brancos.
Na verdade, Nowell (30) revela que a missão de Cardoso foi, pelo governo lisboeta,
considerada como retumbante sucesso. Por telégrafo, o ministro Ressano Garcia congratulou
o convalescente A. M. Cardoso. No parlamento exaltou, entre aplausos, todos os seus êxitos
nos sertões zambezianos, êxitos confirmados pela deslocação a Quelimane de um número
significativo de régulos do planalto lacustre que vieram confirmar a sua vassalagem. Aí, o
vice-cônsul britânico A. Carnegie Ross testemunhou as cerimónias de vassalagem dos régulos
Malemia e Matapuirre que até então se tinham considerado independentes.
47
Os Padres Brancos franceses revelaram a sinceridade das suas intenções quando
decidiram continuar em M’ponda mesmo depois da retirada dos representantes portugueses.
Nada prova que soubessem ter sido usados para tortuosas finalidades políticas. Manifestaram
a sua surpresa por o local escolhido para estabelecimento missionário pertencer à zona de
influência britânica. Durante a sua permanência de dezoito meses foram-lhes negadas
quaisquer oportunidades para exercerem a sua doutrinação. Só partiram em julho 1891 no
meio de grandes dificuldades, humilhações e sofrimentos. Foram abandonados pelo governo
português que, aparentemente sem vergonha e sem remorsos, não cumpriu o tão exaltado
acordo firmado em Paris no início de 1889.
É esta a história verdadeira da “missão de estudos” despropositadamente referida por
Joel Serrão e por Ferreira Ramos. Por seu lado, os moçambicanos devem admitir que foi A.
M. Cardoso quem lhes assegurou a posse das terras fronteiriças de Milange, Molumbo,
Mecanhelas, Cuama, etc.

***

Os sentimentos que partilho com Charles E. Nowell – imérito e imparcial investigador


dos feitos cometidos pelos “varões assinalados” envolvidos na conjuntura definida no título
deste documento – foi por ele resumida nesta síntese tão séria e tão comovente que merece ser
reproduzida na língua original:

“The Rose-Colored Map men were a vailant crew, and if they


attempted the impossible and are remembered today only by a handful of
their fellow countrymen, they deserve the esteem of those who value
physical courage and patriotic endeavour” (31).
48
Bibliografia

1) Captain Paiva de Andrada’s Zambesi Expedition, 1881. (1882) Londres, Proc. roy. geogr. Soc., 4 (6), pp.
372-374.
2) Captain P. de Andrada’s Journeys to Maxinga and the Mazoe, 1881. (1882) Londres, Proc. roy. geogr.
Soc., 4, 7, pp. 417-419.
3) ERSKINE, St. Vincent (1875). Journey to Umzila’s S.-E. Africa, in 1871-72. Londres, J. roy. geogr. Soc.,
45, pp. 45-128.
4) BEACH, David N. (1993). As origens de Moçambique e Zimbabwe: Paiva de Andrada, a Companhia
de Moçambique e a diplomacia africana, 1881-91. Maputo, Moçambique, Arquivo – Boletim do Arquivo
Histórico de Moçambique, 13, abril, pp. 1-154.
5) KUSS, H. (1882). Notes sur le Geographie de Quelques Régions Voisines du Zambeze. Bull. Soc.
Geogr., VII, iii, pp. 365-383.
6) GUYOT, P. (1882). Voyage au Zambeze. Bull. Soc. Geogr. de l’Est, IV, p. 635.
7) ANDRADA, J. C. Paiva d’ (1886). Relatório de uma viagem às terras do Changamira. Lisboa, Imprensa
Nacional, p. 155.
8) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand.
9) NOWELL, E. Charles (1982). The Rose-Colored Map. Lisboa, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar/Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, p. 143.
10) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 144.
11) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford, at
the Clarendon Press, p. 143.
12) CASTILHO, Augusto (1891). Relatório da Guerra da Zambézia em 1888. Lisboa, Imprensa Nacional.
13) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Idem, p. 144.
14) BOTELHO, J. J. Teixeira (1921). Alguns pontos da história de Moçambique. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 39,
nº 7-12, p. 175.
15) An. Cons. Ultram. (Parte não Oficial) Série I, Fev. 1854 a Dez. 1858. Lisboa, Imprensa Nacional.
16) SELOUS, Frederick Courteney (1893). Travel and Adventure in South-East Africa. Londres, Rowland
Ward and Co, Ltd.
17) BRENDON, N. J. (1959). Chiuzingu. Salisburia, Rodésia do Sul, NADA, 36, pp.19-25.
18) ALBERTO, M. Simões e TOSCANO, Francisco A. (1942). O Oriente Africano Português «Síntese
Cronológica da História de Moçambique». L. Marques, Moçambique, Minerva Central, p.8.
19) NEWITT, Malyn (1995). A History of Mozambique. Londres, Hurst & Company, p. 352.
20) RAMOS, P. Ferreira (1993). As Principais Datas da História de Portugal. Lisboa, Publicações Europa-
América, p. 76. Deve ter-se inspirado na cronologia de Joel Serrão publicada vinte anos antes o qual
escreveu “A. M. Cardoso chega ao Niassa (Moçambique), onde instala a sua missão de estudo”!!!.
21) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 5.
22) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 1.
23) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 2.
24) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 3.
25) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 20.
26) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 4.
27) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 10.
28) LINDEN (1974). Mponda Mission Diary. Boston, E. U. A., Internat. J. Afr. Stud., 7, p. 297.
29) HANNA, A. J. (1956). Idem, p. 155, nota nº 2.
30) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 154.
31) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 224.
49


DOCUMENTO
A 1ª Companhia de Moçambique e o início da ocupação efetiva exigida
pelas decisões finais da Conferência de Berlim

No dia 31 outubro 1988, a diretora do Arquivo Histórico de Moçambique proferiu uma


palestra integrada nas comemorações do Centenário da Companhia de Moçambique. No
artigo publicado um ano depois (1) acentuou que tais comemorações se referiram à fundação
do que se convencionou chamar de “Primeira Companhia de Moçambique”. Quanto ao
arquivo que dirigia, acentuou não existir ali qualquer documentação sobre o assunto mas que
a bibliografia consultada se referia a essa empresa nos seguintes termos:

“… Surgiu da iniciativa particular do então capitão Paiva d’Andrada, que


para tal reuniu capitais de diversas personalidades da alta finança portuguesa”.

Informações mais pormenorizadas podem encontrar-se no magnífico relatório do


capitão Eng.º J. Renato Baptista, publicado em 1892 (2). A fundação da companhia ocorreu a
8 março 1888, compreendendo diversas concessões já feitas pelo nosso governo, tais como: a
da Sociétè des fondateurs de la compagnie génèrale du Zambeze, em 26 dezembro 1878, a da
exploração de pérolas em 5 outubro 1883, ao Sr. Jayme Couvreur, e da Companhia de Ophir
em 12 fevereiro 1884.

“No intuito de assegurar os seus trabalhos de exploração, a companhia


obteve do governo os meios necessários para evitar quaisquer impedimentos
por parte de Ngungunhane, o potentado de Gaza. Para dirigir a exploração
mineira, contratou os engenheiros Van de Putte e depois Charles Llamby, autor
de uma Planta das Regiões de Macequece e Mutari. Estabeleceu feitorias na
Beira, em Neves Ferreira, Sarmento e Macequece, e, para a navegação no
Punguè, adquiriu um pequeno vapor que cedo se avariou. No contrato
celebrado em 2 julho 1888 com o barão E. du Balen, cedeu a diversas empresas
a exploração dos filões já então descobertos. Essas concessões caducaram na
maior parte: umas por desistência dos concessionários, outras por não terem
obtido aprovação superior. A Companhia tomou então por sua conta a
exploração dos filões nas cercanias de Macequece, nos vales do Revuè, do Odzi
e do Mutari. Novos estatutos, datados de 28 dezembro 1891, confirmaram as
concessões anteriormente efetuadas e, em especial, as constantes dos decretos
de 11 fevereiro e de 1 agosto do mesmo ano”.

Terminadas estas quase desconhecidas informações prestadas pelo Eng.º Renato


Baptista, acrescentarei que a primeira Companhia explica a presença do numeroso grupo de
qualificados franceses, subordinados ao barão João de Resende, que havia mais de dois anos
se encontravam trabalhando com inteira liberdade em vários jazigos auríferos do planalto de
Manica, quando este foi ocupado pela polícia montada da majestática rodesiana. Não deixa de
surpreender que Andrada, nas suas numerosas cartas encontradas nos arquivos oficiais, não
faça referência a esse pessoal de campo contratado em França. É possível que a Companhia
tivesse conveniência em guardar algum secretismo para evitar as conhecidas invasões de
50
aventureiros sem escrúpulos e de todas as origens que, nesse tempo, acudiam logo que
circulasse a notícia de novos campos auríferos. Por outro lado, a simples presença desses
mineiros era suficiente para retirar legitimidade ao argumento britânico de que os dirigentes
portugueses nunca hajam concretizado as exigências de ocupação efetiva formuladas pela
Conferência de Berlim.
Escrito como foi por um perito independente que aos conhecimentos técnicos aliava
evidentes qualidades morais e intelectuais – perito que foi deliberada e cavilosamente
humilhado por subalternos de baixa extração, ao serviço dos mandatários de Cecil Rhodes –
considero de especial importância o ofício do Eng.º Charles de Llamby (3) que a seguir
traduzo do francês. Tenho motivos para crer que não foi aproveitado por David Beach por
desconhecer esse idioma:

Ofício do Eng. º Charles de Llamby dirigido ao administrador delegado da


Companhia de Moçambique

Senhor administrador delegado,


Em Manica, durante os três últimos meses, os acontecimentos precipitaram-se de tal
maneira que se torna necessário relatar por escrito os factos principais, tendo como último
objetivo proporcionar aos dirigentes da nossa Companhia melhor conhecimento da estranha
situação em que ela ficou colocada na sequência das atividades desenvolvidas por uma outra
majestática, a British South Africa Company.
Pela minha nacionalidade e pela natureza das minhas funções, encontro-me
completamente alheado dos problemas políticos. Apenas de modo acidental vim a ter
perceção dos diversos eventos que precederam a invasão armada da região de Manica. Assim
sendo, encontro-me impossibilitado de lhes fazer referência, a não ser que envolvam os
nossos negócios ou que me hajam afetado pessoalmente. Acresce que V. Ex.ª já recebeu do
barão João de Resende informações pormenorizadas e documentos oficiais.
No dia 17 setembro, cerca das dezasseis horas, encontrando-me no Alto Revuè, no local
conhecido por Dambarara, surgiram, a cavalo, três visitantes ingleses que pediram
informações sobre a possibilidade de atingirem Macequece antes do cair da noite. Aceitaram
o meu convite para pernoitarem. Logo que amanheceu partiram para Andrada, recente
denominação da antiga Macequece. Revelaram ter como objetivo a compra de víveres e de
tecidos de algodão no estabelecimento da Companhia de Moçambique. Mais me informaram
que vinham da Machonalândia, onde havia chegado uma coluna de seiscentos imigrantes,
apoiada em oitocentos cavalos, partida do Cabo e organizada pela referida B. S. A. C. No
decurso da conversa perguntei-lhes qual era a sua fronteira com os territórios portugueses.
Responderam-me que era o rio Save e um deles exibiu um mapa dos territórios submetidos à
influência britânica em que aquele rio estava efetivamente indicado como limite fronteiriço.
Os visitantes revelaram chamar-se Selous, Campbell e Harrison.
Ora, no mesmo dia, tinha partido de Macequece o capitão Bettencourt para levar ao Sr.
Colquhoun um protesto contra os estratagemas usados pela referida companhia majestática
para captar a vassalagem do régulo Mutassa.
No dia 12 outubro, contou-me o Sr. Moodie (representante da Sofala, Gaza Concession
Company, nossa subconcessionária) ser voz corrente que um tal Trevor, alegando ser o
residente britânico no regulado Mutassa, tinha enviado uma circular aos diferentes sindicatos
dependentes da Companhia de Moçambique, dando-lhes notícia de que o território daquele
51
regulado pertencia agora à Inglaterra, em virtude de um tratado que celebrara com Portugal.
Questionei sobre este assunto João de Resende e obtive como resposta que nada lhe fazia
supor que tais rumores tivessem algum fundamento.
Os trabalhos continuaram, por conseguinte, sem quaisquer complicações tanto para a
nossa Companhia como para os seus subconcessionários. Durante o mês de outubro corrente e
os primeiros dias de novembro estive a demarcar para eles vinte e cinco claims no filão
Resende, vinte no filão Penha Longa e vinte e cinco claims de terras aluviais na confluência
dos rios M’tari e M’Tanghesa.
Todavia as coisas não corriam sem se sentir algum mal-estar. Tanto os mineiros como
os indígenas se interrogavam sobre os rumores contraditórios que se vinham propalando.
A chegada do Sr. Paiva d’Andrada a Manica conseguiu minorar estas dúvidas porque
nos prestou informações exatas sobre o tratado anglo-português. Melhor do que isso. Com
vista a esclarecer definitivamente a situação convidou, para a entrevista que tinha programado
com o régulo Mutassa, todo o pessoal qualificado da Companhia e dos diversos sindicatos sub
concessionários.
Esta entrevista teve lugar no dia 15 novembro. Nela se encontravam presentes: os Srs.
Paiva d’Andrada, Manuel António de Sousa e João de Resende, portugueses; Ch. de Llamby,
francês; Moodie, Harrison, Campion, Harris, Harrington, ingleses; Maritz, súbdito do
Transval; Paulino Gonzales (intérprete).
A reunião tinha como finalidade dar a maior autenticidade possível ao reconhecimento
público feito por Mutassa e pelos seus chefes de uma concessão por ele feita, cerca de 1874,
da propriedade do solo de Manica a Manuel António de Sousa, a quem a Companhia de
Moçambique se propôs a adquirir direitos totais ou parciais. A questão da bandeira, resolvida
após longos anos, não devia ser discutida.
Foi idealizado um programa das questões a serem elucidadas, programa que depois foi
redigido quer em português quer em inglês, sob a forma de um processo verbal, a ser
meramente assinado depois do Mutassa ter reconhecido os factos (ver em anexo este projeto
de processo verbal).
Como já dissemos, a reunião teve lugar a 15 novembro, às 14h 30m, e foi bastante
tumultuosa, cada um dos chefes discursando desordenadamente. Mutassa evitou responder às
perguntas que lhe foram sendo feitas. Depois, ultrapassando aquilo que lhe era perguntado,
terminou com esta afirmação:

“Os ingleses chegaram e ofereceram-me treze espingardas; recebi-as com


agrado mas não fiz qualquer marca sobre um papel que eles afirmaram conter
os nomes dos chefes das povoações que lhes tinha dado e os limites que lhes
tinha fixado. De resto vós sabeis que eu sou irmão do Rei (o Rei de Portugal);
tudo o que tenho pertence ao Rei cujo pavilhão é vosso também”.

Tendo a sessão assim terminado, os ingleses pertencentes aos sindicatos retiraram-se e


eu segui o mesmo caminho. Mal regressei ao nosso acampamento, ouvi grandes tumultos e
reparei no facto das rochas no meio das quais se tinha construído a povoação, estarem
cobertas de cafres empunhando armas de fogo. Procurando compreender o que se passava,
penetrei na primeira cintura da povoação onde acabei por encontrar o intérprete Paulino
Gonzales. Este alegou nada saber e que apenas tinha visto um certo número de ingleses
invadirem o local onde a reunião se tinha realizado e onde aguardava, com o Sr. J. de
Resende, a chegada de Paiva d’Andrada e de Manuel António que se encontravam numa
palhota vizinha em conversações privadas com o Mutassa. Depois um dos ingleses, de pistola
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em punho, segurou o Sr. de Resende pelo casaco. Já tinha escapado o outro inglês que havia
arriado a bandeira portuguesa.
Na impossibilidade em que me encontrava de atravessar a povoação com as suas quatro
ou cinco sucessivas cinturas, fiquei na maior perplexidade quando me vieram dizer que o Sr.
de Resende, bem como os Srs. Paiva d’Andrada e Manuel António tinha sido feitos
prisioneiros e logo conduzidos para fora da povoação em direção ao acampamento inglês.
Logo a seguir, assisti à chegada de um militar inglês da B. S. A. C., chamado Trevor, e
perguntei-lhe o que é que tinha acontecido àqueles senhores; limitou-se a responder: “British
prisoners, sir”. Protestei contra esta violência e tentei explicar-lhe como era grande a
responsabilidade que assumia o seu chefe por permitir estas violências que tanto afetavam a
segurança dos europeus em Manica. Respondeu que tudo em Manica, de ora em diante, estava
“sob a proteção da bandeira inglesa”.
Um dos “moleques” do Sr. J. de Resende logo se veio queixar que se tinham apoderado
da sua espingarda e que, ao participar o facto ao Sr. Trevor, este lhe dera a seguinte resposta:
“mas com certeza e bem gostaria de deitar mão a todas elas!”.
Na verdade – enquanto a lápis escrevia às pressas algumas linhas ao governador de
Manica instalado na Gorongosa, para lhe relatar os últimos acontecimentos – foram
apreendidas as armas pessoais dos Srs. Rezende, Paiva e Manuel António, bem como a minha
própria e todas as que conseguiram encontrar em poder dos nossos carregadores. Estes, por
seu lado, tudo faziam para esconder em segurança as armas que lhes pertenciam.
Simultaneamente os ingleses pilharam todas as galinhas, todos os cabritos, etc. que os Srs.
Paiva e Manuel António tinham reservado para si e para os seus carregadores.
Preocupava-me com os meios que restavam para, em segurança, podermos regressar a
Andrada, distante cerca de cinquenta kms. Também tinha que velar pela segurança da mulher
(goesa) de Manuel António. Logo que soube que o Mutassa dera ordens para sermos
intercetados e desarmados no caminho, tomei providências para que a nossa partida se
verificasse na alvorada do dia seguinte. Apurei então que, para efeitos de defesa, não
dispúnhamos sequer de uma simples carga de pólvora!
Tinha também que remeter aos prisioneiros as suas bagagens mais necessárias como
tendas, provisões, etc. Era também necessário substituir o Sr. Paiva no cumprimento dos
deveres de hospitalidade para com os subconcessionários ingleses que havíamos convidado.
Só cerca das vinte horas lhes pude oferecer o jantar. Já estávamos sentados à mesa
quando reapareceu o Sr. Trevor que, depois de apertar a mão aos seus compatriotas, rodeou a
mesa para me bater no ombro e proclamar: “Vós sois meu prisioneiro”. Quando me ouviu
ordenar a um empregado que preparasse as bagagens para o dia seguinte, o Sr. Trevor logo
replicou que, de momento, tal seria inútil porque no dia seguinte deveria ser conduzido ao
acampamento inglês. Para completar, exigiu que desse a minha palavra de como não fugiria
durante a noite.
Passei pois a noite na minha tenda e escrevi três cartas: a primeira, ao Sr. Pinillos,
Engenheiro de Estado que eu sabia ter chegado a Macequece, participando que lhe confiava
os meus poderes; a segunda, ao contramestre Menant que se encontrava, com alguns
trabalhadores, no meu acampamento situado na confluência dos rios Sambi e M’tari; a
terceira, ao Sr. Pujade, vigilante dos trabalhos no nosso estabelecimento designado por Chua.
Sugeri que ponderassem as circunstâncias e que, caso julgassem oportuno, regressassem
a Macequece para receberem (novas) ordens do Sr. Pinillos.
No dia seguinte, 16 novembro, pela manhã, o Sr. Trevor veio dizer-me que aguardava
ordens superiores para me conduzir ao acampamento inglês. Isto ocorreu cerca do meio-dia e
fui então apresentado ao capitão Forbes.
53
Desde logo me participou que tinha acabado de tomar posse do país e, assim sendo,
pedia-me que reconhecesse a bandeira inglesa. Respondi-lhe deste modo: “Há cerca de dois
anos que aqui estou ao serviço de uma companhia portuguesa, a qual trabalha sob a bandeira
portuguesa; não posso pois, sem cometer uma traição, reconhecer a bandeira inglesa. Não o
faço enquanto não for desligado do meu mandato pelos próprios que mo concederam”.
“Mas ireis receber essa autorização, os vossos correios estão atrasados. É uma questão
de dias, de uma quinzena quando muito. Nesse caso ides sofrer até que venham novas ordens.
De qualquer modo, deveis reconhecer que somos os mais fortes. Quando há superioridade na
força não é possível a resistência… Sim, continuareis nosso prisioneiro, apenas vos será
permitida uma liberdade relativa, sob a condição de dar a palavra de como não procurareis
fugir, de não receber nem enviar qualquer correspondência sem que passe por minhas mãos,
enfim, de não voltar a ter qualquer relacionamento com os indígenas”.
O Sr. J. de Resende dera antes a sua palavra; eu dei então a minha.
A mulher (goesa) de Manuel António também tinha sido conduzida ao acampamento. O
Sr. de Resende e eu cedemos uma das nossas tendas. Contou-me depois que teve que defender
essa mulher contra as obsessões de um tal Sr. Doyle, o verdadeiro chefe da expedição; o Sr.
capitão Forbes não passava de um simples “braço” (agente de execução). Ignoro se aquele
assédio ocorreu nesse mesmo dia ou mais tarde, em Andrada.
Na manhã do dia seguinte, 17 novembro, redigi uma carta endereçada ao Sr. Cônsul da
França na Cidade do Cabo. Enquanto a escrevia, o Sr. Doyle, sob o pretexto de falar com o Sr.
Resende que se sentava a meu lado, olhou de esguelha para a minha carta e disse: “Sabeis que
todas as comunicações devem passar pelo capitão Forbes”.
Terminada a carta enviei-a, com envelope aberto, ao capitão Forbes que, ao tomar
conhecimento do seu conteúdo, me informou que não a poderia remeter. Seria preciso
modificar o relato em que forneci pormenores dos motivos que explicam a minha condição de
prisioneiro.
Respondi-lhe que isso era uma questão que o seu e o meu governo teriam que apreciar e
discutir. Insistiu: “mas é preciso que diga que foi feito prisioneiro porque recusou obedecer a
leis inglesas”. Pedi que deixasse escrito o que exigia de mim. A sua recusa da repetição por
escrito do atentado que tinha cometido contra o “direito das gentes”, levou-me a refletir sobre
a singularidade dos piratas que julgam poder invocar todas e quaisquer leis!
Em voz alta, os ingleses proclamavam que iam conquistar Macequece e todo o território
até à Beira e que, para se poderem apoderar desse local de aportagem, devia haver ao largo
dois navios de guerra.
A partida para Macequece ocorreu no mesmo dia, às oito horas da manhã. Eram cerca
de trinta cavaleiros ingleses que escoltavam um carro pesado, muito comum no Transval,
atrelado a oito parelhas de bovinos.
Por outro lado, nós seguimos a pé com os poucos carregadores que restavam. Fomos
obrigados a deixar as tendas e parte das nossas bagagens. Prometeram que tudo seria enviado,
mas nada voltámos a rever. A mulher (goesa) de Manuel António foi transportada em
machila.
Devido à impossibilidade da carreta arrancar, fomos obrigados a seguir pela planície e a
fazer um desvio considerável que alterou a chegada para cerca das 18 horas, tanto mais que,
devido à forte chuvada, tivemos que nos enxugar no acampamento que eu havia estabelecido
na confluência dos rios Sambi e M’tari. Foi aí que nos “autorizaram” a passar a noite na
“minha casa”. Alguns soldados lá ficaram com os seus cavalos. O resto da tropa foi abrigar-se
a cerca de um km de distância, no acampamento do Sr. Moodie, representante interino da
Sofala, Gaza Concession Company, sub concessionária da Companhia de Moçambique.
54
No dia seguinte, 18, o capitão Forbes apareceu cedo para pedir ao Sr. J. de Resende que
se aprontasse para os acompanhar até Macequece. Quanto a mim fui deixado em descanso, até
nova ordem.
Soube depois que: (1º) só chegaram a Macequece no dia seguinte; (2º) Resende e a
mulher goesa de Manuel António tinham dormido ao ar livre; (3º) os ingleses tinham entrado
no estabelecimento de Andrada sem nenhuma dificuldade porque havia sido abandonado pelo
Sr. Pinillos; (4º) tinham retirado a bandeira portuguesa; (5º) se haviam alojado nas instalações
da Companhia de Moçambique, onde ainda se encontravam quando finalmente cheguei.
Permaneci até ao dia 22 na residência que me foi destinada, cumprindo fielmente a
palavra dada e que me não fora retirada. Lá encontrei o contramestre Menant, que não quisera
abandonar o seu posto, e também três dos trabalhadores portugueses que, por falta de
carregadores, não tinham podido partir mais cedo. Três outros partiram logo que chegou a
notícia da nossa captura, notícia a que os boatos indígenas acrescentaram a aplicação de
bastonadas e de outros maus-tratos corporais. Com algumas exceções, os nossos trabalhadores
indígenas tinham resolvido desertar em massa.
Durante a minha permanência em Sambi, assisti passivamente à passagem de novos
reforços de tropas e – porque os carros não podiam prosseguir – à chegada de prospetores ou
pioneiros da B. S. A. C. São pessoas a quem a companhia outorga privilégios e concessões
sob a condição de prestarem “mão forte” e de pegarem em armas, quando isso lhes seja
requisitado.
Não sei calcular com maior exatidão quantos são os pioneiros que chegam todos os dias,
sem parar; poderei arriscar quando muito uma estimativa de seiscentos.
Durante este tempo, em Andrada, o capitão Forbes, instalado com as suas tropas nos
edifícios da (nossa) companhia, chegou a pedir ao Sr. J. de Resende que lhe vendesse
provisões e outras mercadorias em armazém. Obteve resposta negativa. Pode parecer
extraordinário que quando se rouba a alguém a sua própria casa, tenha (o ladrão) escrúpulos
em lhe saquear a despensa! Seja como for, o Sr. Maritz, sub-concessionário da Companhia,
tendo feito compras em seu nome, cedeu-lhe algumas provisões e mercadorias.
Passados dois ou três dias, o Sr. Forbes partiu com o Sr. Doyle, em direção à costa.
Eram acompanhados por um grupo de cavalaria e guiados pelos Srs. Moodie e Harrison, sub-
concessionários da nossa companhia. Logo que se desmascararam ficou publicamente
demonstrada a sua secreta e bem preparada cumplicidade nos acontecimentos ocorridos e nos
atentados cometidos.
Deve notar-se que todos esses senhores não eram mais do que simples subalternos.
Duvido que os seus chefes imediatos (neste momento ausentes de Manica) e as suas
respetivas companhias tenham, até este ponto, esquecido os termos dos contratos em que se
comprometeram a obedecer às leis portuguesas.
O Sr. J. de Resende foi liberto da sua palavra dois dias após a partida do Sr. Forbes,
quer dizer depois da expedição deste último estar suficientemente distante para não se temer a
possibilidade dos indígenas poderem ser influenciados e, a partir de então, lhes serem
levantados obstáculos.
Quanto a mim fui posto em liberdade por carta datada de 21 novembro, recebida no dia
22, à tarde, na qual o capitão Hoste, substituindo o Sr. Forbes e assinando na qualidade de
representante da B. S. A. C. em Macequece, me voltou a conceder plena liberdade para deixar
o país.
Caminhei para Andrada no dia seguinte (30 kms a pé) e encontrei lá o Sr. J. de Resende.
Conferenciámos sobre o que havia a fazer.
55
Estavam reunidos em Andrada todos os trabalhadores que não tinham podido partir
antes, entre eles os franceses que no momento da nossa prisão tinham ficado retidos em Chua.
O Sr. Pujade conseguiu um meio de transporte para o ferreiro Siffait, que tinha caído em
estado de completo idiotismo, na sequência de uma insolação e que só a catadupa de
acontecimentos havia impedido de ser conduzido até ao litoral.
Tomámos a decisão de continuar o nosso caminho até à costa. Enquanto atarefado com
os preparativos de partida, recebi a 24 novembro uma carta do Sr. Campion, empregado da
Sofala, Gaza Company, sub concessionária da nossa e mantido no cargo pelo Sr. Moodie,
durante a sua ausência. Nela me solicitava pormenores sobre os limites das concessões
“Barticel” e “Lisboa”, justificando-se com o facto da B. S. A. C. ter intimado todos os que
alegassem possuir concessões já demarcadas, a assinalar adequadamente, no prazo de três
dias, as áreas pertencentes a cada um dos “claims” a que garantiam ter direito. Caso esta
exigência não fosse cumprida, poderiam essas áreas ser legitimamente ocupadas pelos
prospetores e por outros pioneiros que iam chegando incessantemente.
Respondi ao Sr. Campion que as concessões da sua sociedade estavam em regra para
com a Companhia de Moçambique e que eu não podia interferir nos negócios feitos com a B.
S. A. C. a qual, em Manica, se arrogou ter assumido os privilégios majestáticos da nossa
Companhia. De resto já não reconhecia nem ele próprio nem sobretudo o Sr. Moodie como
representantes da sua companhia porque, ao abandonarem a bandeira portuguesa, tinham
violado os termos dos contratos efetuados.
Na manhã do dia 25 as sentinelas foram reforçadas em torno da casa da Companhia. Os
indígenas contaram-nos que, no acampamento inglês perto da povoação do próprio Mutassa,
duas mulheres haviam sido violadas e a seguir assassinadas. Uma delas era mulher do régulo
Cunhangane e a outra pertencia à povoação do régulo Catandica. O terror era generalizado.
Mutassa já se não atrevia a mandar as mulheres para os trabalhos campestres. Sabe-se que em
África estes trabalhos são feitos exclusivamente pelas mulheres.
Partimos de Macequece na manhã de 26, a pé e sem tendas, transportando apenas
víveres e as bagagens mais indispensáveis. Contudo, fomos obrigados a deixar alguns
empregados, uns doentes e incapazes de aguentar a viagem, outros a título temporário, por
falta de carregadores (foi o caso de): Siffait, doente e moribundo; a família Menjoutet que se
prontificou a cuidar dele tanto mais que a esposa estava incapaz de viajar; Labarga, doente;
Braz Bueno e Ramon del Pinto, por falta de carregadores.
Quais as razões que motivaram a nossa partida? 1ª - Porque a usurpação do território e
dos privilégios da Companhia já não nos permitia cumprir as nossas funções; 2ª - Porque
devíamos o mais depressa possível dar conta dos acontecimentos à Companhia e aos
representantes do governo.
Tínhamos planeado atingir o rio Punguè e daí seguir quer para a Gorongosa quer para o
litoral, conforme os ingleses tivessem concretizado o anunciado intento de se apoderarem da
Beira ou, na alternativa, do caminho se encontrasse livre.
Esqueço as peripécias da viagem que foi excessivamente penosa e durou onze dias.
Quando chegámos a Chimoio, território do chefe Ganda (a leste e fora dos domínios do
Mutassa) encontrámos o nosso estabelecimento ocupado pelos ingleses que haviam retirado a
bandeira da Companhia. Fomos obrigados a pedir dormida em palhotas algo afastadas da
povoação.
Tivemos que deixar em Chimoio o trabalhador Victoriano Pollan, que se sentia muito
fatigado e que teria encontrado, no resto do nosso trajeto, menores facilidades para poder
descansar.
56
Soubemos ali que os ingleses se tinham dividido. Uma parte dentre eles tinha-se
dispersado por Bandire por Quiteve, com o objetivo de apresentarem propostas aos régulos
instigando-os a separarem-se de Portugal. Outro grupo partiu em direção a Neves Ferreira.
Pouco antes da estação de Sarmento, encontrámos estes últimos acompanhando uma
coluna composta por indígenas de Sofala, contratados igualmente na costa e carregando
mercadorias trazidas da Beira por uma lancha alugada pelo comandante militar. Tanto a carga
como os homens tinham sido conduzidos até Neves Ferreira por três ingleses que haviam
desembarcado na Beira.
Assim, as autoridades portuguesas tendo conhecimento do tratado de 20 agosto e
ignorando os (últimos) acontecimentos, deram todo o seu apoio, como era previsto no mesmo
tratado, às comunicações com a costa!
Em Sarmento, onde chegámos a 4 dezembro, encontrámos o empregado ausente: o
capitão Forbes forçara-o a acompanha-lo até ao chefe Guangere. Sarmento é a primeira
estação onde a bandeira da Companhia foi respeitada. O empregado Almeida só regressou
depois do meio-dia. António foi transportado em machila. O caminho estava livre. Chegámos
a Neves Ferreira a 8 dezembro e de lá atingimos a Beira no dia 10. A quinze, já em
Quelimane, embarquei rumo à Europa. O Sr. J. de Resende, que veio comigo, ficou em
Moçambique para conferenciar com o governador.
Eis aqui Sr. administrador, o relato da nossa odisseia. Junto em anexo algumas cópias
dos documentos que ficaram em meu poder. Concentrei-me apenas no que me afetou, assim
deixando ao Sr. J. de Resende o cuidado de completar este relato com os factos em que apenas
ele esteve pessoalmente envolvido.

Notas e documentos

I – Programa das questões a serem elucidadas com o rei Mutassa:

No mesmo ano em que se registou uma epidemia de cólera na Zambézia – ano que os
residentes julgam ser 1874 – travou-se uma longa guerra na qual os chefes Macombe e
Macone se aliaram para derrotar as forças não só do rei Mutassa, mas também as enviadas por
Muzila em seu socorro. Aquele rei de Manica acabou por se refugiar na densa floresta do
monte Inhagana. Encontrando-se em tão difícil situação, Mutassa tomou a decisão de solicitar
a ajuda de Manuel António de Sousa. Obedeceu assim à vontade dos seus muzimos, isto é, os
indivíduos que nas crenças tradicionais encarnam as almas dos antepassados da realeza. Os
muzimos são consultados unicamente em situações de magna importância como as guerras e a
propriedades do solo. Mutassa enviou então àquele capitão-mor uma oferta simbólica do seu
solo por meio de uma embaixada composta por vários chefes entre os quais se destacavam
Mugudo, seu primo que residia no Báruè e, ainda, Tonto, seu irmão posteriormente falecido
com cólera. A embaixada obteve o socorro de M. A. S., sob a forma de armas de fogo,
munições e uma força de caçadores e sipais comandada pelo muzungo Agostinho já falecido e
pelo “capitão” Chitengo. Graças a este auxílio, Mutassa conseguiu expulsar os inimigos das
suas terras e a partir de então pode reinar tranquilamente. A maneira como Mutassa realizou a
cerimónia da concessão a M. A. S. da propriedade do solo de Manica foi a seguinte: enviou
para o seu luane de Inhacombe, no prazo Gorongoza, uma ponta de elefante, uma porção do
solo de Manica recolhido no soalho da palhota do muzimo Mazina, em presença dos muzimos
e dos chefes reunidos.
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II – Carta endereçada ao Sr. Cônsul da França na Cidade do Cabo. Elaborada


a 17 novembro 1890, no acampamento da B. S. A. C., situado cerca de 2 km da
povoação do chefe Mutassa, em Manica:

De início, desejo acentuar a minha cidadania francesa e a minha parcial representação


dos interesses franceses na qualidade de engenheiro-diretor da Companhia de Moçambique.
Na verdade, esta Companhia, se bem que portuguesa, não só mantêm entre o seu pessoal
cidadãos franceses, como também tem nela envolvidos capitais franceses. Assim sendo, trago
ao vosso conhecimento que desde a tarde de anteontem, dia 15 novembro, me encontro como
prisioneiro da Majestática B. S. A. C., a qual invadiu, com mão armada, as terras ocupadas
pela Companhia de Moçambique.
Solicito que proceda às diligências necessárias para que me seja concedida plena
liberdade. Simultaneamente peço-vos que mantenha todas as reservas não só quanto ao
prejuízo pessoal de que fui vítima e o que afetou outros empregados franceses, mas também
em tudo quanto possa envolver os capitais franceses aplicados na Companhia de
Moçambique.
Um dos principais acionistas e também administrador da Companhia, é o Sr. Bartissol,
deputado dos Pirinéus Orientais.
A seguir especifico quais os cidadãos franceses que entre o pessoal da Companhia
poderão ser sujeitos a diversos infortúnios, dado o estado atual das ocorrências no terreno:
Sr. Pujade, vigilante dos trabalhos; Sr. Menant, contramestre; Sr. Siffait, ferreiro-
ajustador; Srs. Menjoulet pai e filho, carpinteiros e Sr.ª Menjoulet; Srs. Goutelle e Alcouffe,
contabilistas; Srs. Guyard e Mairgues, engenheiros; Eu próprio Ch. de Llamby, engenheiro-
diretor. Seguro da sua diligência, etc. (termina com assinatura)

III – Tradução da carta que me colocou em liberdade:

21 novembro 1890.
Caro senhor, tendo sido informado pelo Barão de Resende que continua a mostrar
alguns escrúpulos em deixar a sua residência sem autorização, venho informá-lo que pode
sem impedimentos continuar os seus trabalhos em completa liberdade, bem como de circular
livremente por todo o país. Claro que nestas condições nada deverá fazer que prejudique a
minha autoridade como representante da B. S. A. C. Devo também frisar que tem plena
liberdade para isso caso escolha abandonar o país. Henry J. C. Hoste representante da B. S. A.
C. em Macequece.

IV – Em 4 dezembro quando chegamos a Sarmento, às 9h 30m encontrámos a


estação fechada e na porta vimos afixada a seguinte informação:

Tradução: Parti porque a isso fui forçado pelos ingleses. Encontro-me na povoação de
Guanjere e penso regressar dentro de algumas horas, Sarmento, 4 dezembro 1890. O chefe de
estação: J. Tomás de Almeida.
O Sr. capitão Forbes entregou ao Sr. Almeida o documento seguinte para justificar a sua
ausência.
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“Tendo sido informado que o Sr. Almeida tinha feito tentativas para levantar os
indígenas contra os Ingleses e tinha procurado intimidar o chefe de Guanjere, insisti para que
ele me acompanhasse durante a minha visita ao mesmo chefe para apurar se esta acusação era
verídica.
Eu tinha previamente concluído que o Sr. Almeida era incapaz de contar a verdade
sobre fosse o que fosse, e assim sendo, não podia pedir-lhe que me desse a sua palavra sobre
esse assunto. O Sr. Almeida ausentou-se de Sarmento durante cerca de seis horas. W. Forbes,
capitão, 4 dezembro 1890”.

Bibliografia

1) COSTA, Inês Nogueira da (1989). No centenário da Companhia de Moçambique, 1888-1988. Maputo,


Arquivo – Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, 6 Especial, pp. 65-76.
2) BAPTISTA, J. Renato (1892). Caminho de Ferro da Beira a Manica. Lisboa, Imprensa Nacional,
Excursões e estudos efetuados em 1891.
3) LLAMBY, Charles de (1891). Oficio do Engenheiro Llamby ao Administrador Delegado da
Companhia de Moçambique. In: ANDRADA, Joaquim Carlos Paiva d’, “Documentos Relativos aos
Acontecimentos de Manica – setembro a dezembro 1890”. Lisboa, Imprensa Nacional, pp. 101/10.
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DOCUMENTO
A decisão de avassalar o Alto Niassa.
As intervenções de Serpa Pinto e Augusto Cardoso

Entre a antiga documentação portuguesa sobre o arquipélago de Quirimba ressalta a


“Etiópia Oriental” de Fr. João dos Santos (1). Informou que a primeira ilha – na rota de
Moçambique para a Índia – era a das Cabras, assenhorada pelo português António Afonso. A
segunda ilha, chamada Fumbo, era propriedade de outro português, Mateus Mendes. A
terceira, cerca de duas léguas adiante, era a própria e formosa ilha de Quirimba, pertença dos
filhos de Diogo Rodrigues Correia. A quarta era designada por Ibo e tinha por dono mais
outro português. A quinta, conhecida por Matemo, era a maior em superfície e estava em
poder de Lourenço Vaz de Carvalho. Nela houvera outrora uma grande povoação de mouros.
No casario arruinado ainda se podiam ver portais e janelas com colunas de boa lavra. Aquele
missionário ainda conheceu mouros que se lembravam dos primeiros portugueses e da
crueldade com que trataram os naturais. A sexta ilha, Macoloe, pertencia a João Estácio. A
sétima tinha o nome de Xanga e era dominada por Domingos Cacela. A oitava era do mouro
Muinhe Falomé. Da nona e da décima eram proprietários Manuel Gomes e Manuel Freire. Na
derradeira, origem do célebre topónimo Cabo Delgado, mandava Jorge de Barros Botelho.
Abro um parêntese para tecer algumas considerações sobre este tipo de colonização
quase independente, na sua globalidade contrário aos interesses e às proposições da Coroa que
repudiavam a fixação de europeus entre as populações indígenas. Não surtiram efeito essas
proibições e nem mesmo a aplicação de castigos aos prevaricadores que podiam incluir penas
capitais. Proliferaram centenas de aventureiros que fugiam das naus para se estabelecerem por
conta própria. Apoderaram-se provavelmente de armas de fogo, pólvora e munições.
Apresentavam-se ao serviço dos régulos mais poderosos com cujas filhas estabeleciam com
facilidade laços matrimoniais. Teciam redes clandestinas de interesses privados que se
sobrepunham à ação da Coroa. É de admitir que neste litoral tenha ocorrido um fenómeno de
africanização semelhante ao que ocorreu na Zambézia, nos chamados Prazos da Coroa.
Na verdade esta atitude ferozmente individualista era comum entre as centenas ou já
milhares de súbditos portugueses espalhados por sertão. Fr. António da Conceição (2) presta
as seguintes informações sobre o que acontecia em Manica nos finais do Séc. XVII:

“Todas estas terras são de ouro, e em uma delas por nome Macequece,
tínhamos umas taipas, a que aqui chamam Chuambo, dentro das quais estava a
Igreja com Vigário, que era Religioso de S. Domingos, e capitão somente. Os
mais moradores moravam pelos arrabaldes distantes uns dos outros a perder de
vista, o que era grande desordem não só contra o bem comum temporal, porque
desunidos estavam mais incapazes de se defenderem, mas também contra o
bem de seu espírito, porque raro era o que morria com todos os sacramentos; e
por mais que nisto se trabalhou, nunca ouve remédio para os reduzir a viverem
juntos em modo de povoação, e a causa de o não fazerem, diziam eles, que era
por não terem guerras uns com outros, mas os de fora assentavam que era por
suas conveniências e trapaças de contratarem às furtadelas uns com os Cafres
dos outros”.
***
60
Tenho com alguma frequência acentuado que – para maior credibilidade da
interpretação histórica relativa aos sérios e bastante conhecidos atritos surgidos entre Portugal
e a Grã-Bretanha – é imperioso que o investigador estude simultaneamente a documentação
mais relevante produzida não só por súbditos destas duas potências mas também por outras
testemunhas fidedignas, eventualmente de outras nacionalidades, que, por razões de diversa
ordem, puderam manter contacto direto ou com os acontecimentos no terreno ou com os
diretórios das longínquas retaguardas.
Desde janeiro 1881 que a Comissão Africana da Sociedade de Geografia de Lisboa,
vinha pressionando o governo para a necessidade de se tomarem medidas no sentido de ser
efetuada, sem equívocos, a ocupação efetiva da região do Niassa. Por indiferença ou por falta
de recursos financeiros, a questão foi protelada até Pinheiro de Chagas assumir a pasta
ministerial da Marinha e das Colónias. Uma vez empossado no cargo, planeou não uma
medida que viesse confirmar a soberania portuguesa mas, em sua substituição, uma expedição
que embora oficial fosse na aparência movida por sublimes objetivos científicos. Temia
decerto as reações do governo londrino que já havia, em 1883, nomeado o seu primeiro cônsul
para a região do Niassa. Também pedira a Lisboa, a 11 junho 1884, que desse instruções às
autoridades locais para não hostilizarem os Macololos “muito principalmente a norte do Ruo”.
Para chefiar essa missão dita científica, tomou a decisão, que se revelou pouco acertada, de
escolher Serpa Pinto. Como não existissem, nessa ocasião, problemas fronteiriços com o
Sultanato de Zanzibar, tomou a decisão de o nomear como cônsul de Portugal junto desse
soberano de origem omanita. Com efeito, foi empossado em julho 1884.
Iniciou pouco depois as suas funções como comandante da expedição a que deu o nome
de “Pinheiro Chagas”, em homenagem ao ministro. Oportunamente embarcou para Durban –
moderno centro comercial britânico, a sul da Baía de L. Marques – com o objetivo de
proceder à aquisição de todo o equipamento considerado necessário. Para seu adjunto
convidou o jovem cadete naval Augusto Cardoso que ocasionalmente tinha conhecido em L.
Marques e a quem, depois de solicitado, ministrou lições de equitação e de manejo de armas
de infantaria.
No seu regresso à Ilha de Moçambique, passou algum tempo em Inhambane para
contratar cerca de uma centena de guerreiros que designou por landins. Devido à coesão,
eficiência e disciplina que veio a demonstrar esta força militar exclusivamente africana,
aventamos que tenha sido recrutada no reino de Macuácua, que durante longos anos foi
dirigido pelo famoso Mauntse que prestara incondicional vassalagem a Muzila e que, no seu
reino, impusera a orgânica política e militar do Império de Gaza. Devido ao papel relevante e
duradouro que a seu tempo vieram a desempenhar, passarão a ser designados por Landins de
Inhambane.
Para se compreenderem as causas verídicas de tantas decisões fantasiosas tomadas por
S. Pinto, decisões que causaram grandes sofrimentos a tantas centenas de nativos dos dois
sexos, humildes e crédulos, parece oportuno citar desde já a opinião amiga e íntegra de
Azevedo Coutinho sobre a personalidade de S. Pinto:

“… Ele foi uma extraordinária individualidade, brilhante espírito, valente


e generoso coração apesar de sofrer às vezes de alguns devaneios, produto de
uma imaginação ardente e não disciplinada” (3).

Foi essa imaginação fogosa e indisciplinada que o levou a desbaratar os recursos postos
à sua disposição. Ivens calculou entre vinte a trinta contos (conto = milhão de reis) as
despesas iniciais feitas por S. Pinto, quantia exorbitante para a época e que era muito superior
61
à que tinha sido atribuída à expedição que atravessou a África. E note-se que o trajeto entre o
litoral e o lago Niassa era pelo menos seis vezes menor do que o percorrido pelos dois
conhecidos exploradores durante a travessia do continente.
É possível que S. Pinto – quando ainda dispunha de fundos – tenha decidido recrutar os
seus carregadores no Mossuril, onde sabia que operava a Capitania-Mor das Terras Firmes.
De facto, o seu protetor, Perry da Câmara (4) governador de Cabo Delgado, nos primeiros
documentos que juntou ao artigo publicado em 1886, com a segunda parte dedicada apenas à
“Expedição Pinheiro Chagas”, informou que o chefe Mugabo lhe escrevera em arábico sobre
o fornecimento de carregadores. A este documento segue-se uma carta pessoal de S. Pinto,
escrita na Ilha de Moçambique, a 20 setembro 1884, comunicando que estava pronto para
partir. Porém, na sua segunda carta, escrita em Fernão Veloso, a 10 dezembro 1884, já deu
conhecimento que se encontrava “paralisado por carências de toda a ordem”. Tinha portanto
esgotado em apenas oitenta e dois dias os recursos financeiros postos à sua disposição. Em
outra carta relatou mais privações e dificuldades, para cúmulo sob chuva torrencial.
Utilizando a canhoneira “Quanza”, o governador conseguiu fornecer à caravana uma
quantidade significativa de mantimentos. Chegaram a Quissanga no dia 15 fevereiro. No mês
seguinte, ainda em Quissanga, deu conta de mais privações e acentuou o facto dos próprios
guerreiros landins se apresentarem esquálidos devido à fome que os afetava. Também
informou que decidira reagrupar-se no Ibo onde o comerciante Gonzaga, solicitado pelo
governador, conseguira obter na praça oito contos em créditos. S. Pinto, com a saúde afetada,
permaneceu durante algumas semanas no Ibo. A 9 maio, Perry recorreu ao Secretário-geral
solicitando um médico. Mesmo assim sofreu nova recaída. Depressa se restabeleceu porque
veio a efetuar o levantamento cartográfico da vila do Ibo, nele incluindo a identificação de
setenta e cinco moradores e destacando os diversos edifícios públicos. O documento nº 17 é
representado por outra carta desesperada de S. Pinto pedindo alimentos para setenta e quatro
acompanhantes concentrados em Quirambo. Não admira que viesse a adoecer (talvez sob
distúrbios psicossomáticos) perante as dificuldades com que deparou para substituir nada
menos do que trezentos e cinquenta carregadores que haviam desertado.
S. Pinto, algo restabelecido e de novo na Quissanga, voltou à carga a 13 junho
insistindo sempre no fornecimento de mais carregadores porque preparara cerca de
quinhentos volumes, neles incluídos nada menos do que setenta sacos de arroz. Pela carta
que escreveu a 18 junho verifica-se que, embora já se encontrasse em Montepuez, continuava
a enfrentar os problemas da alimentação de setecentos carregadores que ameaçavam desertar.
Ignora-se como conseguiu completar o trajeto até ao Medo, onde dominava o régulo Mualia,
que em julho 1878 se deslocara ao Ibo para prestar vassalagem. Das suas terras saía a maior
parte das exportações que passavam pelo Ibo. S. Pinto sofreu outra grave recaída e teve que
ser transportado em maca. A 30 agosto, já em ambiente mais urbano e mesmo cosmopolita,
reassumiu o seu cargo de Cônsul em Zanzibar. Persistiu com os habituais rasgos
imaginativos, como se pode constatar pela afirmação de que, em qualquer caso, não tinha
abandonado as responsabilidades como chefe da expedição. Assim sendo, os restantes
membros deveriam continuar sob as suas ordens.
A. Cardoso permaneceu quase dois meses no país do Medo, procurando angariar
carregadores que levassem até ao lago Niassa o restante material da expedição. Falhadas as
tentativas, limitou-se a transportar o material que os Landins pudessem carregar. Deixou
mantimentos (e, na confusão, até os imprescindíveis documentos oficiais) conservando apenas
setenta peças de algodão, trinta barris de pólvora e alguns quilos de missangas. Iniciou a
marcha a 31 outubro, servindo de guia um parente do régulo Metarica, que regressava do Ibo.
A caravana era composta por cento e quarenta pessoas. Tresmalharam-se os cabritos
destinados à alimentação.
62
Os piores momentos ocorreram mais adiante. O chefe da caravana Bakar Abdul
Madjide, decerto autorizado e acompanhado, ausentou-se por mais de duas semanas para se
dedicar à caça, alegando posteriormente que havia perdido o rumo. Logo a 14 novembro, A.
Cardoso adoeceu gravemente e teve crises de delírio durante doze dias. Foi colocado numa
maca improvisada e deixou de se alimentar. Perdeu por completo a visão. Por mero acaso
pode ser medicado pelo explorador britânico Joseph Last que, ao serviço da Sociedade de
Geografia de Londres, vinha cartografar os Montes Namuli. Também lhe valeu o contingente
disciplinado dos Landins que cumpriram a preceito as instruções que conseguia
balbuciar. Atingiram o rio Lugenda no primeiro dia de dezembro. Foi aqui que ocorreu o
providencial reencontro com o chefe da caravana B. A. Madjide. Cardoso garante que Bakar
foi:

“Guiado só pelo conhecimento de que o Lugenda ficava para a banda do


pôr-do-sol, andou naquela direção, chegando lá no mesmo dia em que eu
cheguei mas por um caminho muito diferente e traçado por ele em linha reta
através de montes e rios”.

Entre parênteses diremos que esta inoportuna ausência do chefe da caravana parece
merecer alguma atenção porque poderá, eventualmente, explicar a existência de duas grandes
pontas de elefante que Cardoso, ao ser inquirido, sempre classificou como “oferendas dos
chefes gentílicos” e que se recusou a vender aos súbditos britânicos quando, em desespero,
lhes rogou auxílio financeiro.
Mas continuando. Foram bem acolhidos pelo chefe Metarica, que forneceu suficiente
alimentação apesar das suas terras terem sido saqueadas, três meses antes, pelos Angonis
Guanguaras. O régulo deu grandes demonstrações de amizade e submissão e pediu a oferta de
uma bandeira portuguesa, acentuando as estreitas relações comerciais que mantinha com o
Ibo. A. Cardoso elaborou em 16 dezembro a respetiva Ata de Vassalagem.
Por se aproximar a época das chuvas e ser imperioso procurar recursos entre os
escoceses estabelecidos no grande lago, A. Cardoso tomou a decisão de partir com a caravana,
a 3 janeiro 1886, em direção à povoação de Cuirrássia Checapoto, irmão classificatório do
régulo Metarica. A região era bastante montanhosa o que retardou o trajeto ao longo da
margem esquerda do Lugenda. Foi no dia 20 que se realizou a cerimónia descrita mais
adiante. Foi rematada por um grande batuque de guerra em que todos participaram incluindo
os ditos landins que tiveram enorme sucesso com os seus impressionantes coros ao compasso
das habituais representações e gesticulações combativas.
Quando Bacur, comandante dos landins, comunicou que se esgotara a pólvora, as
missangas e os tecidos de algodão, o explorador tomou a decisão de se deslocar a
Livingstónia. Pediu a Cuirrássia que, a crédito, alimentasse a caravana durante a sua ausência,
com a promessa de ser largamente retribuído. Partiu acompanhado por um criado que servia
de intérprete. Revelou mais que se viu forçado a vender o único cobertor de que dispunha para
poder comprar algum milho para alimentação. Sabendo que estava para breve a chegada do
vapor Ilala, da Companhia dos Lagos, resolveu nele seguir até Blantyre e Mandala, depósito
central da African Lakes Company. Foi aqui que, pela primeira vez, se reuniu com Hawes, o
cônsul britânico. Pediu-lhe informações sobre a possibilidade da aquisição, a crédito, de
mantimentos no valor aproximado de £ 200.
Em obediência ao critério que de início deixei explícito, passarei a basear-me no estudo
que o Prof. Hanna dedicou à presença britânica na região que mais tarde veio a constituir o
63
protetorado do Niassalândia (5). O Cônsul Hawes, no seu ofício de 13 fevereiro para os
Negócios Estrangeiros, forneceu os seguintes pormenores:

“… Expliquei-lhe quais eram os procedimentos normais adotados nas


transações comerciais antes da entrega de faturas. Recomendei-lhe que
apresentasse ao gerente da Companhia a sua Carta de Crédito ou, na alternativa,
outras credenciais de validade garantida. Cardoso lamentou não ter consigo
quaisquer documentos porque haviam todos ficado nas cargas que no Medo, S.
Pinto entendera que eles tinham utilidade para si próprio. Sugeri-lhe que
apresentasse a carta em que S. Pinto lhe transmitira o comando da expedição.
Respondeu que também não dispunha desse documento”.

Perante esta situação, Hawes aconselhou o inexperiente Cardoso a suspender por algum
tempo os seus planos científicos e a deslocar-se até Quelimane para expor ao governador
esses e outros assuntos práticos e correntes. O jovem alegou que essa solução não lhe
convinha porque já havia recebido de Cuirrássia o adiantamento que lhe permitira levar a
caravana até Mandala. Caso se demorasse, esse chefe poderia apoderar-se dos seus
instrumentos e de outros objetos pessoais. Hawes, complacente, sugeriu-lhe que poderia
conduzir a sua gente diretamente até Quelimane desde que Frederick Moir, gerente da
Companhia do Lago, lhe adiantasse o que fosse necessário. Hawes convenceu então Moir a
aceitar uma declaração de crédito, a qual seria paga oportunamente pelo governador de
Quelimane. A quantia recebida seria suficiente para concentrar em Mandala todos os
membros da expedição.
O jovem tenente decidiu então regressar a Cuirrássia assim dando por terminada uma
curta mas angustiante ausência de quinze dias. Foi recebido com entusiasmo pelos “seus
landins”. Dedicou uma semana a observações astronómicas. Com o dinheiro ou os bens
emprestados por Moir pagou o que devia ao hospitaleiro chefe e partiu com a sua caravana
para Blantyre, via lago Chirua e Zomba.
Em Blantyre ocorreu um incidente algo desagradável. Quando a caravana já iniciara
preparativos para acampar nas cercanias da missão escocesa, Cardoso foi abordado pelo
reverendo Alexander Heatherwick, já conhecedor da identificação e dos objetivos dos recém-
chegados. Solicitou-lhe que não acampasse naquele local porque, existindo na missão um
internato feminino, não era conveniente que perto dele se instalasse tão temível e numeroso
contingente de “guerreiros zulos”. Sugeriu, como alternativa, outro sítio mais conveniente.
Cardoso acedeu e, a 15 fevereiro, transferiu-se para as terras de Mandala, pertencentes ao
chefe Capeni. Este, depois de solicitado e devidamente presenteado, veio a conceder a
competente autorização.
O cônsul Hawes ausentara-se em visita a um dos importantes chefes gentílicos. Só no
dia 23 teve novo encontro com Cardoso que aguardava as notícias e a assistência financeira
do governador de Quelimane. Aconteceu, entretanto, que aos ouvidos do cônsul chegaram
rumores de que o oficial português, durante a viagem, tinha recebido mulheres a título de
oferendas e que, por vezes, até havia comprado algumas delas. Julgou – e bem – que seria
preferível dar-lhe direto conhecimento destes rumores tão daninhos para o seu prestígio. De
facto, Cardoso explodiu com a maior indignação perante tantas e tão infames calúnias. Logo
pediu licença para lhe apresentar a seguinte declaração escrita que se encontra nos arquivos
britânicos.
64
“Sir: Knowing that news are being reported over the country that this
expedition had bought women in several places on its way over the continent –
I beg your permission to state before you as an established authority that these
reports are quite spurious. It happening that there are some European residents
here about and this news can reach them so or much easier than they had reach
myself and the African news always come in Europe through a refrangible
prism, I have the honour to inform you that women which take part in the
expedition are wives of some men in it. I always permit them to be married
where they please but do not permit the women to come along with the
expedition till I am quite sure they do this by their own fancy and will. The
camp is always open and everyone can come in and assure itself of the
(illegible) of my statement”.

Mesmo assim, não se esbateram as desconfianças do cônsul Hawes. Comunicou ao seu


Ministério londrino que, durante a visita efetuada ao acampamento português tinha ficado
surpreendido com duas belíssimas pontas de elefante que poderiam ser imediatamente
vendidas por 35 libras cada uma. Quando perguntado, Cardoso respondera que as tinha aceite
como ofertas feita por um chefe gentílico – o que não podia corresponder à verdade.
Intrigante foi também o facto de Cardoso dispor de suficiente dinheiro em prata, isto apesar
de se ter inicialmente apresentado como “um mendigo de chapéu estendido” (sic).
As desconfianças de Hawes não se ficaram por aqui. Deslocou-se propositadamente à
povoação do Cuirrássia para apurar o que se tinha passado durante a permanência da caravana
portuguesa. O régulo mentiu descaradamente:

“O oficial português tinha falta de mantimentos e como pouco ou nada


possuía, pedira a ele régulo que aceitasse uma bandeira e uma carta que
garantisse a amizade de todos os brancos. Cardoso recomendou-lhe que levasse
a carta consigo quando efetuasse qualquer viagem e que a exibisse a todos os
brancos que encontrasse. Também lhe pediu que hasteasse a bandeira na sua
povoação não só para chamar a atenção dos barcos a vapor que já circulavam e
mas também para demonstrar que desejava relações pacíficas e amigáveis com
todos os passageiros. Acrescentou que a bandeira não tinha sido hasteada na
presença de Cardoso e que o conteúdo da carta não lhe foi explicado. Também
perguntou ao Cônsul britânico se desejava ver a bandeira e a carta; até se
ofereceu de bom grado para trocar por vulgares panos aqueles dois símbolos da
soberania portuguesa”.

A vassalagem dos régulos Metarica e Cuirrássia também mereceu os protestos da


African Lakes Company, como consta de uma carta que a empresa dirigiu ao ministro dos
Negócios Estrangeiros Britânico. Nela expressou a sua preocupação no que concernava as
tentativas de proximidade feitas por Portugal nos distritos contíguos ao lago. O ministro Lord
Iddesleigh, em carta datada de 23 outubro 1886 e dirigida a George G. Petre, embaixador
ministerial britânico em Lisboa pediu-lhe que:

“Apurasse junto do ministro dos Negócios Estrangeiros se o tenente


Cardoso dispunha da competência para celebrar tratados com chefes que de
nenhuma maneira estavam sob o controlo das autoridades portuguesas e
que verificasse qual o caminho proposto para assegurar as diligências a efetuar
em relação ao assunto.”
65
Permaneceram durante um mês em Mandala. Entretanto o gerente Moir recebeu das
autoridades de Quelimane firme confirmação de que pagariam os adiantamentos feitos a
Cardoso e que assumiriam a responsabilidade por outras despesas que viesse a fazer.
No trajeto para Quelimane, a caravana foi forçada a contornar os Montes Milange pelo
sul, atravessando as terras dos régulos Chicumbo e Mecanda, que – segundo informação
prestada por Hawes ao seu ministro londrino – exigiram a Cardoso pesados direitos de
trânsito. No final, toda a caravana seguiu o curso dos rios Ruo e Licari até atingir Quelimane
no dia 17 maio 1886. Foi com surpresa que aqui depararam com S. Pinto, vindo de Zanzibar e
que, chefiando um grupo de dez nativos, preparava a sua partida para o interior em busca da
supostamente desaparecida expedição. Existe a versão de que o encontro foi litigioso até ao
ponto de surgir um desafio para duelo.
Para melhor entendimento da posição de Serpa Pinto, convém reproduzir a carta oficial
transcrita por A. Lobato (6).

Carta que mandou cessar a expedição de Augusto Cardoso


Consulado de Portugal em Zanzibar
Meu caro Cardoso:
Já tem feito muito. O país a que se destina está devastado pela fome e
seria arriscar a expedição ir ali. Volte já para Quelimane onde eu espero que
chegue até ao fim de março o mais tardar. Mande adiante um telegrama
dirigido seja para Moçambique seja para Lourenço Marques para me ser
transmitido para Zanzibar a prevenir-me da sua chegada. Cá o espero sem falta
em março.
Sempre o mesmo amigo dedicado: Serpa Pinto.

Publicada em «fac-simile» in «Relatórios e Informações»


– Anexo ao «Boletim Oficial» – Ano de 1927 – nº1 –
Imprensa Nacional, Lourenço Marques.

Contactos preferenciais dos chefes do interior com os negociantes do litoral

No litoral do Cabo Delgado, a influência era tão intensa que muitos dos mestiços se
tinham convertido à religião islâmica.
Em 1790 escreveu Nogueira de Andrade: “… Digo a verdade quando certifico que
todos estes moradores são mouros ou semi-mouros em costumes e abusos…”. Em 1807
escreveu o então governador: “… Quase todos os naturais destas ilhas acreditam mais na seita
de mafona e no rito cafreal do que na religião cristã…”. Em 1850 escreveu António Gamitto:
“… Mais parece domínio árabe do que português…”.
Na verdade, com a reconquista, pelos árabes omanitas, dos portos ao norte do Rovuma,
restabeleceu-se a preponderância maometana. Esta compreendia não só o litoral setentrional
moçambicano mas também – por intermédio dos Ajauas depois convertidos – parte da região
sita entre o Oceano e o lago Niassa. Sob a direção enérgica do Sultão de Oman que para ali
transferiu a sua capital, a ilha de Zanzibar atingiu incontestável supremacia comercial em toda
a costa oriental africana. Ocupou Tungue, na margem direita do Rovuma e, a partir de então,
cresceram ao sul deste rio as tendências autónomas dos chefes do litoral e do interior.
66
É incontestável que aqueles potentados do interior sabiam perfeitamente que os portos
do litoral, devido aos contactos transoceânicos, estavam muito melhor abastecidos dos
produtos que lhes eram necessários e que lhes eram vendidos por preços mais convenientes.
Na citação que se segue, o governador Ernesto Jardim de Vilhena (7) também oficial da
Armada, procurou sintetizar a existência dessas seculares ligações:

“As relações comerciais que anteriormente existiam entre as terras a leste


do Lugenda e os portos da costa, e que eram cultivadas pelos negociantes do
Ibo e de Palma, apertaram-se bastante nos últimos anos, mercê da maior
atividade comercial na costa, da ocupação realizada e do convívio direto com
os povos do interior, conquanto esta não tenha sido tão larga e intensamente
efetuada quanto seria necessário. O Metarica e os seus povos, que desde muitos
anos atrás mantinham relações com os comerciantes do litoral, preferiram
sempre, graças à sua índole natural de viajantes e aventureiros, o trafico da
costa ao das terras inglesas, e são eles que enviam e formam uma grande parte
das caravanas que vêm do interior permutar, e que, ou se dirigem a Palma
seguindo um caminho fácil e conhecido ao longo do Lugenda e do Rovuma, ou
pelo caminho direto do Medo, ganham as povoações da costa ao sul da
Quissanga, a Arimba, o Lúrio, Mecufi e, sobretudo, as que marginam a baía de
Pemba, mormente Mambe”.

É a todos os títulos exemplar o espírito empresarial que, desde há muito, levara o régulo
Metarica a tirar proveito de uma planta útil introduzida pelos Portugueses, o tabaco. Augusto
Cardoso foi perentório (8): “Toda a terra é muito cultivada. As plantações de tabaco são
enormes e com ele se faz grande negócio, chegando a ser trocado por marfim no lago Niassa,
onde é bastante raro”.
As duas cerimónias que se transcrevem são prova concludente que os potentados
gentílicos dispersos pelos territórios a leste do lago Niassa tinham perfeita consciência de
como lhes eram mais vantajosos os contactos comerciais com os portos oceânicos. Era neles
que poderiam efetuar com maiores proveitos as trocas dos seus produtos, sobretudo o marfim,
com as apetecidas manufaturas ultramarinas: sal, açúcar, tecidos, ornamentos, pólvora,
chumbo, armas de fogo, fósforos, etc. Depressa verificaram que as missões protestantes já
instaladas nas margens e nas ilhas do lago Niassa não estavam vocacionadas para esse tipo de
negócios. Também os artigos expostos pela African Lakes Company eram vendidos por
preços mais elevados devido à carestia dos transportes que utilizavam os rios Zambeze e
Chire.
Augusto Cardoso citou o caso sintomático do mercador mouro Majanira que veio a
conhecer em Metarica. Tinha aqui mesmo o seu centro de operações, com grandes armazéns,
a partir do qual organizava viagens comerciais em todos os sentidos que chegavam a atingir as
longínquas regiões a oeste do lago Niassa onde ainda abundavam elefantes. Depois de
acumular uma carga suficiente de marfim, seguia o curso do rio Lúrio para a transportar até à
costa. Utilizava depois pangaios para atingir qualquer das ilhas de Moçambique, do Ibo ou de
Zanzibar, conforme julgasse mais lucrativos os preços das fazendas e de outras manufaturas
importadas. Entre a Niassalândia e a vila de Quelimane encontrou outra caravana, também de
um mouro de Zanzibar, que marchava para o interior com mercadorias que ocupavam nada
menos do que trezentos carregadores.
67
Vassalagem do Régulo Metarica e seu Povo (9a)

Aos 28 dias do mês de julho do ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de
1888, nesta vila do Ibo, capital do distrito de Cabo Delgado, na sala da residência do governo,
achando-se presente o governador do distrito Francisco Isidoro Gorjão Moura, major de
cavalaria do exército de Portugal, os funcionários públicos e grande número de moradores da
vila, compareceram: Saíde Bin Metarica, filho maior do régulo Metarica, Imperemende, tio do
régulo; Muzigala, secretário, e mais pessoas do seu séquito; declarando os três primeiros que,
em nome do régulo Metarica, que livre e espontaneamente os incumbira desta missão, vinham
ratificar a vassalagem por ele prestada em 16 dezembro 1885 a Sua Majestade El-Rei de
Portugal nas mãos de Augusto de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe e encarregado da Expedição
Científica Pinheiro Chagas, apresentando para esse fim a cópia do auto de vassalagem, que é
de teor seguinte:

“Auto de Vassalagem. – Aos 16 dias do mês de dezembro da era do


nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1885, no acampamento da
Expedição Cientifica Pinheiro Chagas, na margem direita do rio Lugenda, na
presença de mim Augusto de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe, encarregado da
expedição, de Bakar Adbulá, ajudante da Expedição, e de todo o pessoal dela,
compareceram: o régulo Metarica do país do mesmo nome, Checoeu, tio do
Régulo e primeiro influente do país e muitos secretários e nobres a fim de o
régulo prestar vassalagem a Sua Majestade El-Rei de Portugal. Declarou o
régulo que desejava ser vassalo e ter a proteção e amizade de Sua Majestade El-
Rei de Portugal, e pedia a bandeira para ter içada na sua povoação, obrigando-
se para isso ao seguinte: 1º, prestar todo o auxílio de mantimentos e
carregadores a qualquer viajante português que passar no seu país; 2º, pôr
termo aos ataques que os mafites, seus súbditos, constantemente fazem à
Quissanga; 3º, mandar já uma embaixada ao governador do Ibo a fim de
renovar perante aquele senhor este ato de vassalagem. Depois desta declaração
entreguei ao régulo uma bandeira portuguesa, que recebeu com grande alegria e
que foi saudada por grande número de tiros feitos pelo séquito do régulo. Dei
por terminado este ato e lavrei eu mesmo este auto, que assino, e comigo o
ajudante da expedição, o régulo Metarica e seu tio Checoeu. Feito no
acampamento da Expedição Científica Pinheiro Chagas, aos 16 dezembro 1885.
– Augusto de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe, encarregado da expedição –
Bakar Abdulá Magide, ajudante da Expedição – Sinal de Metarica – Sinal de
Checoeu. – Está conforme. – Augusto Cardoso”.

Em seguida o governador do distrito, dando por terminado o ato da ratificação da


vassalagem do régulo Metarica, declarou esse potentado vassalo da coroa portuguesa na
qualidade de régulo do país do seu nome nas proximidades do lago Niassa. Em fé do que se
lavrou este termo, que vai ser assinado por todas as pessoas presentes, não o fazendo os
enviados do régulo por não saberem. E eu, André Corsino Teixeira Osório, secretário do
governo, que o subscrevi e assino. – Francisco Isidoro Gorjão Moura, major de cavalaria –
António Nunes Ferreira, juiz de direito – Eduardo Roseiro de Matos Coelho, curador geral
dos serviçais e colonos – Luís João Gonzaga, agente consular de França – Jean Picchetti –
Filipe Malaquias de Oliveira – P.e Florêncio Custódio Bernardino de Sequeira – António da
Câmara Cylindo, capitão – Caetano Paulo Maria de Melo, delegado de saúde – Francisco Dias
dos Santos – Estanislau Alves Dias – António Baptista Carrilho, delegado ad hoc – João de
Barros Carrilho – Constâncio José de Brito – Joaquim Luís Carrasco – Rodrigo José Resende,
68
aspirante da alfândega – José da Silva Resende – Cosme António Dias – Luís Justiniano
Baptista, escrivão e tabelião do primeiro ofício do Ibo – Sundardás Narangi – Valabudás
Sundargi – Mulgi Lalgi – Valabudás Quetici – Ranchordas Jadangi – Agi Cassamo Adamo –
Lalgi Narangi – Agi Abibo – Momade Jamú – Caetano José Fernandes, escrivão e tabelião do
segundo ofício do Ibo – António Luís Henriques Tramier, oficial de diligências – Mangi
Valgi – André Corsino Teixeira Osório, secretário do governo.

Vassalagem do Régulo Cuirrássia e seu Povo (9b)

Aos 13 dias do mês de maio do ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de
1888, nesta vila do Ibo, capital do distrito de Cabo Delgado, na sala da residência do governo,
achando-se presente o governador do distrito Francisco Isidoro Gorjão Moura, major de
cavalaria do exército de Portugal, os funcionários públicos e grande número de moradores da
vila, compareceram: Insá Cuirrássia, Buraímo Cuirrássia, Selemane Cuirrássia, filhos do sova
das terras de Cuirrássia, na extremidade S. do lago Niassa, Cuirrássia Checapoto; Macarone,
irmão; Musselimo, sobrinho; e Maponda Cumieheze e Matiane, secretários; declarando que,
em nome desse potentado, que livre e espontaneamente os incumbira dessa missão, vinham
ratificar a vassalagem por ele prestada em 20 janeiro 1886 a Sua Majestade El-Rei de Portugal
nas mãos de Augusto de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe e encarregado da Expedição
Cientifica Pinheiro Chagas, apresentando para esse fim a cópia do auto de vassalagem, que é
do teor seguinte:

“Auto de vassalagem – Aos 20 dias do mês de janeiro do ano da era do


Nosso Senhor Jesus Cristo de 1886, na povoação de Cuirrássia, capital do país
do mesmo nome na extremidade S. do Lado Niassa, na presença de mim,
Augusto de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe e encarregado da Expedição
Cientifica Pinheiro Chagas; de Bakar Abdul Madjide, ajudante da expedição, e
de todo o pessoal dela, compareceram: o sova Cuirrássia Checapoto, Addalá,
Selemane, Buaná Muhamade, Matola e muito outros influentes do país e
parentes do sova a fim de prestarem vassalagem a Sua Majestade El-Rei de
Portugal. Declarou o sova que ele e o seu povo desejavam ser vassalos e ter a
proteção de Sua Majestade El-Rei de Portugal e pediam a bandeira para ter
içada na sua povoação, obrigando-se para isso ao seguinte: 1º, prestar todo o
auxílio de que careça algum viajante português que passe nas suas terras; 2º,
mandar já uma embaixada a Quelimane a fim de renovar perante o governador
daquele distrito este ato de vassalagem; finalmente obedecer a todas as ordens
que receba de Sua Majestade. Depois desta declaração e tendo o sova e seus
secretários jurado obediência a Sua Majestade e o cumprimento de todas as
obrigações de que ficara encarregado, entreguei-lhe a bandeira portuguesa, que
recebeu com grande contentamento e que foi saudada com grande número de
tiros feitos pelos indígenas e pelos landins da expedição. Pouco depois dei por
terminado este ato e lavrei eu mesmo este auto, que assino e comigo o ajudante
da expedição. Feito na povoação de Cuirrássia, em 20 janeiro 1886. – Augusto
de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe e encarregado da Expedição Pinheiro Chagas
– Bakar Abdul Madjide, ajudante da expedição. – Está conforme. – 20 janeiro
1886. – Augusto Cardoso, sub-chefe”.
69
Em seguida, o governador do distrito, dando por terminado o auto da ratificação de
vassalagem do sova Cuirrássia Checapoto, declarou este vassalo da coroa portuguesa na
qualidade de sova das terras de Cuirrássia, na extremidade S. do lago Niassa. Em fé do que se
lavrou este termo, que vai ser assinado por todas as pessoas presentes, não o fazendo os
enviados do sova por não saberem.
E eu, André Corsino Teixeira Osório, secretário do governo, que o subscrevi. –
Francisco Isidoro Gorjão Moura, major de cavalaria – Luís João Gonzaga – Jean Picchetti –
Estanislau Alves Dias – Filipe Malaquias de Oliveira – P.e Florêncio Custodio Bernardino de
Sequeira – Francisco Dias dos Santos – João Augusto Pinto – João Lopes de Barros Coelho –
António Baptista Carrilho – Pantaleão António de Macedo – Roque Francisco Gonçalves –
Caetano Paulo Maria de Melo – Joaquim Luís Carrasco – Alarico Carlos Vespasiano Gomes –
Joaquim José Dias – Bernardino de Barros Coelho – Edmond Rousille – Rodrigo José
Resende – João de Barros Carrilho – José da Silva Resende – Cosme António Dias – Luís
Justiniano Baptista – Ranchordás Jadangi – Valmodás Sundargi – Cassamo Adamo – Salgi
Nangi – Jotta Gopaldasse – Agi Abibo – Cassandasse Lanchordasse – Sundardasse Naugi –
Mulgi Salgi – Mahadene Bim Abuibo – André Corsino Teixeira Osório, secretário do
governo.

Bibliografia

1) SANTOS, Fr. João dos (1999). Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente.
(Introdução e notas de Manuel Lobato e Eduardo Medeiros). Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 259 e seg.
2) CONCEIÇÃO, Frei António da (1867). Tratado dos Rios de Cuama – 1696. Goa, Índia Portuguesa, “O
Chronista de Tissuary”.
3) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand, p. 443.
4) CÂMARA, Perry da (1886). Districto do Cabo Delgado. Bol. Soc. Geog. Lisboa, 6, 2, pp. 67-115.
5) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press.
6) LOBATO, Alexandre (1966). Augusto Cardoso e o Lago Niassa. Lisboa, Centros de Estudos
Ultramarinos.
7) VILHENA, Ernesto Jardim (1966). Bosquejo Histórico das Explorações Geográficas do Niassa. In:
Lobato, Alexandre; “Augusto Cardoso e o Lago Niassa”. Lisboa, Centro de Estudos Ultramarinos.
8) CARDOSO, Augusto (1966). Breve relação da expedição de 1885-1886. In: Lobato, Alexandre; “Augusto
Cardoso e o Lago Niassa”. Lisboa, Centro de Estudos Ultramarinos.
9) Integração de Territórios e Povos a Leste do Lago Niassa. (1966) In: Lobato, Alexandre; “Augusto
Cardoso e o Lago Niassa”. Lisboa, Centro de Estudos Ultramarinos.
10) Vassalagem do Régulo Metarica e seu Povo – Autos de 16 dezembro 1885 e 28 julho 1888.
11) Vassalagem do Régulo Cuirrássia e seu Povo – Autos de 20 janeiro 1886 e 13 maio 1888.
71


DOCUMENTO
A origem dos Macololos do vale do Chire. O estabelecimento dos
missionários escoceses, após as explorações de David Livingstone. A
ofensiva portuguesa contra os Macololos. Ultimatum britânico de 1890

Em setembro 1795, a colónia holandesa do Cabo rendeu-se temporariamente a uma


força expedicionária britânica que tinha por missão mantê-la sob o domínio exclusivo do
Príncipe de Orange que solicitara asilo à Grã-Bretanha. É que a França revolucionária tinha
conquistado o seu país e imposto a nova ideologia política por meio de uma inédita
“República da Batávia”.
Os britânicos regressaram de novo em janeiro 1806, talvez por envolvimento na luta
contra o “bloqueio continental” que Napoleão havia declarado contra a Inglaterra. Oito anos
mais tarde, após a renúncia e o exílio do imperador francês, a Casa de Orange (1) decidiu
oferecer aquela sua colónia ultramarina à Coroa Britânica para demonstrar a sua gratidão pelo
acolhimento e pelo generoso auxílio que lhe havia prestado durante os amargurados anos de
derrota e de exílio.
Foi em 1820 que chegou a primeira vaga de emigrantes britânicos, agrupados em
famílias, talvez integrando militares desmobilizados após o esmagamento final do ambicioso
imperador. Assim foi iniciado um dos mais dinâmicos e valiosos pontos de contacto entre a
África e a Europa, a acrescentar a outros de menor importância que brotaram desde os finais
do Séc. XIX, cada um com as suas motivações e as suas políticas expansionistas baseadas em
razões económicas, militares, religiosas e, sobretudo, na qualidade dos recursos naturais.
Francisco de Lacerda e Almeida (2) astrónomo, naturalista e também Lente de
Matemática na Universidade de Coimbra, com larga experiência de reconhecimentos
cartográficos na demarcação das fronteiras do Brasil, partiu de Lisboa em maio 1797,
chefiando uma bem apetrechada missão que tinha como objetivo atravessar a África segundo
um plano concebido em conjunto com os governantes de Angola. Foi este académico – que
aliava conhecimentos científicos à sua larga experiência sertaneja – que teve a premonição de
que na África Austral, a relação de forças iria sofrer transformações radicais e que os
britânicos se aproveitariam daquela região tão fértil, tão salubre e tão estratégica, para se
expandirem pelo resto do continente. Daí ter sugerido que os governantes lisboetas
efetuassem esforços sérios para conseguir a ligação, pelo interior, dos estabelecimentos
portugueses situados nas duas costas africanas.
A sua premonição consumiu quase meio século para atingir foros de veracidade, e
envolveu a pessoa de um ignoto missionário escocês que efetivamente penetrou na África por
aquela região privilegiada.

***

Como se sabe, as explorações de Livingstone provocaram o alargamento significativo


da presença de missionários protestantes na região do lago Niassa e do vale do rio Chire.
Também sabemos que entre eles o predomínio pertencia a variadas igrejas escocesas. A sua
história é longa, diversificada e até trágica porque, logo de início, as doenças tropicais
dizimaram dezenas desses idealistas que tinham como empenho principal a aplicação, pelas
72
autoridades, de medidas eficazes que visassem suprimir o nefando tráfico de escravos
praticado, em grande escala, pelos chamados “Árabes de Zanzibar”.
E foi por essa via que, pouco a pouco, se foi confirmando a incapacidade portuguesa
para impor a Lei e a Ordem nos sertões africanos. A carência de recursos militares atingia
níveis inacreditáveis. Em 1850, Gamitto (3) admitia:

“Em Moçambique o exército ou força armada é um corpo quimérico…


torna-se sempre inútil e mesmo prejudicial, pela falta de disciplina,
subordinação e tática; os seus oficiais, com honrosas e raras exceções, sem
instrução alguma, estão a par dos soldados…”.

Décadas depois o próprio governador-geral, coronel Agostinho Coelho (4) confessava


no seu relatório de abril 1882 a outubro 1883:

“Reduzam-se as guarnições… e ter-se-á conseguido avançar no caminho


da civilização… tirando-lhe da vista o soldado atual que é um exemplar de
todos os vícios, incapaz para a guerra e pernicioso na paz… em nenhum ponto
da Província posso dispor de duzentos soldados para qualquer operação de
polícia ou de guerra…”.

Como é natural, esta incapacidade era redobrada pelos constantes atrasos nos soldos.
Assim sendo não causa admiração o que se passou em 1875 quando o previdente
Andrade Corvo, no exercício de funções ministeriais, conseguiu que o próprio governo central
lisboeta enviasse ordens formais para que o governador-geral estabelecesse uma ou mais
guarnições no Chire. O governador-geral, sem hesitação, respondeu ser totalmente impossível
cumprir aquelas ordens: a foz do Chire estava sob domínio português; mas o mesmo não
acontecia no resto do vale. Não dispunha de forças suficientes para submeter os povos
gentílicos dispersos pelos territórios atravessados pelo famoso rio (5).
O episódio que se segue tem o mérito de realçar que os chefes macololos gozavam de
autonomia tão completa que podiam condenar à morte os próprios súbditos britânicos.
Aconteceu que, em 1880, a Comissão de Inquérito da Igreja Escocesa decidiu despedir, por
mau comportamento, um truculento adjunto de nome Fenwick. Recusou regressar à sua pátria.
Entretanto, conseguiu outro emprego na “African Lakes Company”. Sempre dominado por
instintos perversos, chegou ao ponto de ameaçar de morte o conhecido gerente John Moir. De
novo despedido resolveu dedicar-se a atividades mercantis. Em certa ocasião deslocou-se a
Quelimane para negociar o marfim pertencente a Chipatula, o chefe macololo que dominava a
região de Chilomo. Quando Fenwick regressou com as mercadorias adquiridas, ambos
celebraram o negócio com um serão divertido e bem regado. Mas na manhã da ressaca,
quando procuravam acertar as contas, as exigências do régulo parece terem sido tão
extravagantes que Fenwick, ensandecido pela cólera, o matou à queima-roupa, pondo-se de
imediato em fuga. Foi logo perseguido e sumariamente abatido.
Alexandre Lobato deu importância às consequências destes homicídios. Refere o facto
de terem chegado ao conhecimento do já citado governador-geral, coronel Agostinho Coelho.
De uma informação prestada por este a 27 maio 1884 ficou a saber-se que mandara o
governador interino de Quelimane a Massingire para esclarecer o incidente. Mas, na ocasião
do encontro, os grandes do Chipatula garantiram que o régulo fora morto por feitiço dos
brancos; de resto já tinha sido substituído por seu filho Chicusse. Deram altivamente a
73
conhecer que “não queriam brancos nas suas terras e que, se o governador desobedecesse,
haveria guerra”. De facto, nessa mesma noite, a povoação onde estava a autoridade visitante e
a sua comitiva, foi atingida por três tiros. Além disso, durante o longo batuque noturno,
entoaram cantos guerreiros e proclamaram o seu ardente desejo de combater. Se o governador
não iniciasse a guerra, eles próprios se encarregariam de atacar.
O caso de Chicusse merece ser aprofundado por razões que, direta ou indiretamente,
envolveram a autoridade portuguesa. Além disso constitui um exemplo das malfeitorias que
também podia cometer um mancebo oriundo da aristocracia gentílica que, nas missões
escocesas, não só recebera ensinamentos sobre a “ética protestante” mas também aprendera a
escrever em bom inglês. Julgo oportuno reproduzir o comentário que sobre o assunto escreveu
Victor Giraud (6):

“Je me garderai de discuter l’instruction publique et obligatoire envisagée


au point de vue europeéen; mais, en Afrique, je puis affirmer que c’est la pire
des armes à mettre aux mains des indigénes”.

Veremos, mais adiante, o caso semelhante de um tal Chinsoro que, pelos missionários
escoceses no Chire, havia sido selecionado, com outros quarenta, para receberem educação
superior na mítica Cidade do Cabo. Em 1868 aceitara servir como intérprete no “hunting trip”
ao Zambeze. Por falta cometida nos meandros sertanejos, fora julgado, incriminado e
mandado fuzilar pelo “conselho de guerra” ali legalmente constituído pelos oficiais britânicos.
Chicusse foi sucessor de Chipatula na chefatura da comunidade tribal que dominava as
terras situadas zona onde o famoso Ruo desagua no rio Chire. Foi descrito por Hanna como
um mancebo com cerca de vinte anos, que já acumulava dois defeitos: arrogância e
alcoolismo. Exigiu que lhe fosse entregue a viúva de Fenwick que, como referimos,
assassinara seu pai. A pequena colónia britânica ficara alarmada quando soube que era de
algum modo apoiado por seu avô Ramacucane – com alguma supremacia sobre os restantes
chefes de origem macololo. O explorador francês V. Giraud também ficou pessimamente
impressionado com o jóvem Chicusse. Relata o caso de ter mandado matar um dos
mensageiros que lhe trouxeram um bilhete do gerente da Companhia do lago. Depois
falsificou uma carta em inglês que remeteu pelo mensageiro sobrevivente.
Mas o diabólico carácter de Chicusse levou-o mais longe. Em abril 1884 apoderou-se
do pequeno vapor “Lady Nyassa”, bem como do recheio e das cargas. Chegou ao extremo de
enviar aos colonos o respetivo capitão em completa nudez, apenas encoberto por uma folha de
palmeira.
Quando o capitão Foot assumiu o cargo de cônsul britânico, a sua primeira diligência
foi pedir audiência a Ramacucane. Este, depois de proclamar a sua supremacia, deu-lhe os
auxílios de que necessitava para desencalhar o pequeno vapor.
Na sua última carta, datada de 7 agosto 1884, o capitão Foot queixou-se de febres altas.
Faleceu nove dias depois. Foi substituído por L. G. Goodrich. Em meados de agosto 1886
tomou posse o cônsul Hawes. Teve logo que enfrentar outro crime selvático cometido por
Chicusse: para se apoderar de uma preciosa carga de duzentas armas de fogo, algum marfim e
barris com pólvora, mandou matar o “mercador volante” Hinkleman, parece que de origem
austríaca mas de nacionalidade britânica. Graças ao testemunho de outro europeu que escapou
ileso, o mercador foi morto com armas brancas. O seu coração foi retirado para ser comido. O
cadáver foi lançado aos crocodilos.
Este crime de canibalismo fundamentado em antigas crenças mágicas, foi reprovado
pelos restantes chefes macololos. Ramacucane comunicou ao cônsul Hawes que ordenara a
74
prisão do seu sanguinário neto para que pudesse mandá-lo a Quelimane para ser castigado.
A reação de Hawes foi tão eficiente como imediata. Conseguiu dissuadir o idoso soberano
repetindo e desenvolvendo o argumento de que os Portugueses poderiam interpretar a
decisão como prova do reconhecimento da sua soberania.
Só nos finais de novembro Ramacucane decidiu lançar uma ofensiva em grande escala
contra as terras de Chicusse. A população pouca resistência ofereceu. O seu chefe debandou
mas depressa foi capturado e executado. Grande foi o regozijo do cônsul Hawes, dos
missionários escoceses e dos restantes britânicos.
Em Londres, os serviços competentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros
louvaram esta eliminação do turbulento Chicusse sem qualquer intervenção portuguesa. Um
dos altos funcionários E. W. Wylde comentou por escrito (sic) “a good riddance of a
drunken vagabond, so long as it has not brought about by the Portuguese” (7).
Pode aplicar-se à Niassalândia o mesmo comentário resignado que me recordo ter lido
em uma das numerosas cartas de Paiva d’Andrada sobre a Machonalândia:

“Não nos devemos queixar. Os ingleses deram-nos vinte anos para


completarmos a ocupação efetiva dos sertões de Moçambique”.

***

Não sendo possível nem recomendável esmiuçar um número considerável de casos


semelhantes, irei concentrar esforços em algumas conjunturas que me parecem
paradigmáticas e que, aos olhos dos indígenas tiveram características tão sobrenaturais que,
de modo gritante, colocaram os britânicos num patamar de prestígio muito superior ao dos
portugueses. O mais significativo relaciona-se com o transporte em peças e com a montagem
e a desmontagem do pequeno vapor que depois singrou as águas do lago Niassa: o Ilala (sítio
da África Central onde falecera Livingstone).
Duas das igrejas escocesas concordaram em unir os seus recursos para fundar uma
missão no sul do lago Niassa. Receberam o imediato apoio de John Kirk, companheiro de
Livingstone e então cônsul geral britânico em Zanzibar. Decidiram colocar à testa da
expedição o oficial da Armada E. D. Young que já efetuara duas comissões na região.
Partiram de Londres em maio 1875, dobraram o Cabo e, em fins de julho, descarregaram todo
o material em uma das bocas do Zambeze, conhecida por Congone. Aí montaram o barco e
adquiriram lenha para subirem o Zambeze e o Chire até às cataratas de Murchison. Aqui o
barco foi de novo desmontada. As suas peças em conjunto com muitas outras cargas, foram
transportadas por cerca de oitocentos carregadores que percorreram sessenta milhas em
terreno acidentado e em veredas pedregosas até atingirem as águas mansas e já navegáveis do
Chire, com pelo menos um metro de profundidade. Os poderes sobrenaturais dos ingleses
foram largamente comentados porque nunca se vira o ferro flutuar na água! Aparentemente,
não houve dificuldades no recrutamento, na alimentação e na remuneração dos carregadores.
Também não há notícia de fugas e roubos, tão comuns nas caravanas do território português.
***

Após intensa atividade diplomática, Portugal e a Grã-Bretanha assinaram, a 26 fevereiro


1884, o chamado “Tratado do Zaire” que reconheceu a soberania portuguesa sobre a margem
direita da foz daquele grande rio. Por outro lado concedeu aos britânicos liberdade de
comércio e o congelamento dos direitos aduaneiros. Souberam aproveitar a ocasião para
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conseguir que os representantes de Portugal incluíssem o rio Zambeze e o seu afluente Chire
entre as vias fluviais de livre-trânsito. Também ficou explícito que o afluente Ruo, que nasce
em Milange, marcaria a fronteira entre as zonas de influência de cada um dos países. Foi
acordado, ainda, que a Armada Real fosse autorizada a frequentar as águas territoriais de
Moçambique durante as operações de ataque e perseguição ao tráfico escravista.
Aconteceu, porém, que o tratado não chegou a ser ratificado pelas Cortes. Mesmo
assim, em maio do mesmo ano, o governo londrino instruiu o seu novo embaixador
governador-geral Petre, para que chamasse a atenção das instâncias oficiais para o facto do
importante documento ter fixado o rio Ruo como limite da jurisdição portuguesa e que, por
esse motivo, o governo britânico não reconheceria quaisquer direitos para além dele. Petre
transmitiu o aviso a J. Barbosa du Bocage, ministro dos Negócios Estrangeiros. Embora este
argumentasse que o tratado não deveria ser invocado por haver faltado a ratificação, não
deixou de recomendar ao governador de Quelimane que respeitasse a fronteira do Ruo.

***

Parece necessário prestar um ligeiro esclarecimento sobre a admirável obra do Prof. A.


J. Hanna, pela qual me guiei para citar a documentação oficial britânica. Esse historiador não
quis ou não pôde consultar as fontes portuguesas, apesar da minúcia com que refere a imensa
documentação primária em que se baseou e dos elevados conhecimentos dos colegas que
generosamente o auxiliaram. Como qualquer erudito íntegro, incluíu na bibliografia uma
pequena nota de pé-de-página, com o nº l, onde admite (sic):

“It is one of the limitations of this work that foreign sources (particularly
Portuguese) have not been drawn upon”.

Infelizmente essas limitações abrangeram a autobiografia de Azevedo Coutinho (8) que


foi publicada sete anos antes do erudito investigador haver concluído a sua tese de
doutoramento.
Contudo esta lacuna pode ser colmatada com a obra, não menos rigorosa, de outro
investigador de língua inglesa, o Prof. Nowell (9). Com zelo e competência consultou e citou
a documentação portuguesa, dedicando todo o seu capítulo 13 (pg. 179-187 e notas as pgs.
251-2) a esta denodada resistência dos Macololos, dirigidos por Melaule, considerado como
seu chefe supremo, também nascido na longínqua Linhati, donde partiu com outros ao serviço
do explorador Livingstone.

As intervenções de Harry Johnston

Foi a 2 fevereiro 1889 que Harry Johnston (1858-1927) apresentou a petição oficial
solicitando as indispensáveis decisões superiores referentes à sua partida para o Zambeze, em
maio ou junho, com o objetivo de estudar e relatar, confidencialmente: “A exata condição e
extensão da influência portuguesa nas terras banhadas por este grande rio até à povoação do
Zumbo, sem visitar a Niassalândia nem celebrar tratados com as autoridades gentílicas”.
O primeiro-ministro Lorde Salisbury deu a sua concordância. Porém, quando Johnston
já tinha concluído os seus preparativos para embarcar, tomou esta inesperada decisão: o
76
jovem cônsul deveria, em primeiro lugar, deslocar-se a Lisboa para que, recorrendo aos seus
conhecimentos da língua portuguesa, tentasse negociar: “Um entendimento sobre fronteiras
que afastasse os Portugueses do planalto e da Zambézia Central”. O embaixador Petre
cumpriu os deveres do seu cargo e concedeu pronto e total auxílio ao seu conterrâneo.
Quando remeteu para Londres o memorando que continha as bases do acordo alcançado,
teceu rasgados elogios a Johnston e até acentuou que ele fora “muito bem sucedido” (10). É
da autoria de Marcello Caetano um relato minucioso sobre o que se passou, nos bastidores,
durante estas negociações (11).
O regresso de Johnston a Londres ocorreu a 22 abril. Logo iniciou diligências para que
o tratado fosse aceite. Usava argumentos exclusivamente concentrados nos interesses
materiais britânicos, marginalizando por completo as exigências espirituais e filantrópicas.
Escreveu a Salisbury (12):

“Os sentimentos dos nossos missionários (do Chire) não constituem o


único elemento a considerar nos acordos com Portugal. Há também os
interesses e as expectativas de numerosos súbditos britânicos que acabaram de
obter ou esperam obter concessões do governo português para realizar
prospeções mineiras ou iniciar explorações agrícolas (como foi caso de
Hornung que fundou a Sena Sugar Estates, a maior açucareira de Moçambique)
(13) e cujas esperanças de sucesso comercial depressa serão afetadas se
falharmos em realizar com Portugal entendimentos sobre as respetivas esferas
de influência política”.

Ele próprio assumiu a difícil tarefa de se deslocar à Escócia para convencer a hierarquia
das instituições missionárias a aceitar as suas pragmáticas soluções. Já suspeitava que iria
enfrentar atitudes intransigentes e até mesmo animosidades flagrantes. Na verdade, quando
finalmente foi realizado o plenário, logo notou que a maioria dos presentes escutara os seus
argumentos com total indiferença e até mesmo com ostensivas cataduras adversas. Nessa
mesma noite, a mais importante autoridade religiosa da região escreveu a Lorde Balfour
confirmando que os escoceses eram totalmente contrários ao tratado proposto por Johnston.
No dia seguinte Balfour conseguiu falar com o primeiro-ministro na Câmara dos Lordes e
participou-lhe o insucesso. Salisbury limitou-se a esclarecer que o seu parecer pessoal era
coincidente mas acrescentou:

“Eu também tenho que aguentar o fardo de uma opinião pública


vigorosa”. Terminou prometendo “que para já avisaria o governo português
para que não fosse longe demais”.

No que respeita a Serpa Pinto, era sabido que havia chegado à Ilha de Moçambique em
maio 1889, com o objetivo de dirigir uma força de socorro ao já mencionado António Maria
Cardoso que se debatia com o problema dos Padres Brancos. Contudo foi informado de que,
afinal, a situação se tinha normalizado e que os seus serviços já não eram necessários. Não
desejando regressar a Portugal sem se notabilizar com algum feito heroico, concebeu novos
planos em acordo com as autoridades lisboetas e com o novo governador-geral, o oficial da
Armada J. P. de Neves Ferreira.
Como principal objetivo, propunha-se subir o Zambeze até ao Zumbo e, a partir daqui,
seguir o curso do Luangua até alcançar a margem ocidental do lago Niassa, de onde poderia
navegar até ao Chire. Tratava-se, portanto, de mais outra expedição “científica” cujo
77
propósito verídico seria a vassalagem dos chefes independentes. O plano combinava-se assim
com a expedição de Vítor Cordon até ao afluente Sanhati e, enfim, com a projetada criação do
Distrito do Zumbo. S. Pinto seria acompanhado pelos engenheiros J. R. Temudo e Álvaro
Ferraz (Visconde Castelhões), que tinham sido incumbidos de estudar o traçado da linha-
férrea entre Quelimane e a confluência do Chire com o Zambeze.
Por seu lado, Harry Johnston foi informado, a 27 maio, de que o agravamento da
situação no Chire exigia a sua partida para Moçambique e a tomada de posse do cargo
governativo na região que veio a constituir o protetorado da Niassalândia. Durante as cinco
semanas que esteve em Londres surgiram, por mera coincidência, certos fatores inesperados
que, no futuro, iriam assumir enorme importância. O principal foi, naturalmente, o encontro
casual mas decisivo com Cecil Rhodes que procurava obter a concessão de uma companhia
majestática. Dominado como era por ideais patrióticos e imperialistas semelhantes aos de
Johnston, logo lhe concedeu incondicional apoio financeiro (14). Fundamental também foi a
descoberta da barra navegável do Chinde, na foz do Zambeze, que tornava possível o tráfego
fluvial entre o oceano e o rio Chire, assim podendo ser contornado o território português (15).
Johnston chegou à Ilha de Moçambique a 9 julho 1889. Solicitou ao governador-geral
uma carta de recomendação para ser apresentada aos oficiais portugueses que encontrasse no
seu caminho. No dia 28 embarcou na canhoneira britânica “Stork” aproveitando e
confirmando a navegabilidade da nova barra que havia sido descoberta. Atingiu o afluente
Ruo no início de agosto, constatando que a expedição de S. Pinto o tinha precedido.
No dia 9 do mesmo mês remeteu a Salisbury uma confidencial dando conta de que este
oficial português se propunha continuar o seu caminho, a despeito da hostilidade dos
Macololos. Precisou que só em última instância proclamaria o protetorado britânico sobre a
região. Manteria segredo sobre os tratados que esperava celebrar. Desse modo deixaria à
decisão exclusiva do governo britânico declarar a sua “esfera de influência” ou o seu
“protetorado”. Mais esclareceu que, devido à afluência de vultuosos recursos financeiros (i.e.
os donativos generosos de Cecil Rhodes) a própria Africa Lakes Company, por ora tão
gravemente descapitalizada, gozaria dentro em breve de condições mais do que suficientes
para manter a Lei e a Ordem nos territórios meridionais ao redor do grande lago.
Pouco depois encontrou-se, frente a frente, com o próprio S. Pinto. Foi por este
convidado para tomar chá à maneira britânica, a bordo da canhoneira portuguesa. Johnston
ignorou os seus parcos conhecimentos de português quando constatou que o adversário se
exprimia corretamente em inglês. Este, com a maior cortesia, solicitou-lhe que intercedesse
junto dos chefes macololos para permitirem que o território fosse atravessado pela sua
expedição científica. Johnston lamentou não lhe ser possível obter tal autorização. Os motivos
eram vários, destacando-se entre eles o facto da caravana portuguesa compreender uma
maioria de guerreiros zulos (alusão aos cerca de cem landins contratados em Inhambane). O
futuro cônsul insistiu não apenas nos inconvenientes que a caravana iria provocar aos súbditos
britânicos mas sobretudo no previsível agravamento das relações entre os dois países caso
ocorressem confrontos armados. No prolongamento do diálogo, S. Pinto acabou por esquecer
o pretenso carácter científico da sua expedição e passou a referir-se, de modo direto, ao
projeto do governo lisboeta que visava alongar a influência portuguesa até ao lago Bangueulo
(Bangweulu).
A 26 agosto Johnston telegrafou esta informação ao primeiro-ministro londrino.
Acreditando que convencera S. Pinto a desistir da ideia de invadir os territórios macololos,
prosseguiu em direção a Catunga para se aconselhar com o cônsul interino J. Buchanan que,
entretanto, havia sido contactado por Melaure (Mlauri) que tinha sucedido a Ramacucane.
Tempos antes, Buchanan tinha convocado uma reunião com cinco outros súbditos britânicos
para subscreverem, a 12 agosto, um protesto formal a ser apresentado ao comando português.
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Este protesto foi, no dia 20, refutado por um contra-protesto no qual os quatro oficiais
denunciaram as intrigas e jogadas dos “ingleses de Blantyre” que procuravam acicatar o furor
dos chefes macololos garantindo-lhes que os Portugueses estavam determinados a lançar
contra eles ataques devastadores. No dia 10 setembro, Buchanan remeteu a Salisbury toda esta
correspondência, enriquecida com os necessários anexos. S. Pinto também escreveu a esse
cônsul interino, acentuando o carácter “científico” da expedição e o facto dos guerreiros
landins entrarem em ação apenas em casos de legítima defesa. Mais declarou não poder
admitir que alguém quisesse restringir os seus direitos de passagem. Caso fosse atacado no
território macololo: “Passaria imediatamente à ofensiva e acabaria de uma vez para sempre
com essa perpétua causa de distúrbios” (16).
Esta atitude provocatória de S. Pinto é assaz difícil de compreender. Buchanan, ao
remeter o protesto dos moradores, tinha esclarecido na sua carta de 19 que:

“O território macololo e as montanhas do Chire a partir do afluente Ruo


fora colocado sob a proteção de Sua Majestade”.

Esta declaração de protetorado britânico fora certamente efetuada com base em


instruções recebidas de Johnston porque coincidiu com a ordem dada ao cônsul interino para
celebrar tratados com os chefes macololos. Como é evidente a declaração formal da soberania
britânica foi recebida com enorme regozijo pelos colonos escoceses. Entoaram inclusivamente
o patriótico hino “Rule Britânia”.

Incidentes anteriores ao início dos combates

Antes de iniciar o relato dos confrontos bélicos que tiveram tão graves consequências,
convém citar um caso que pode ter inclinado os empregados da African Lakes Company a
incitarem os Macololos contra as forças sob comando português. A. Coutinho narra o seguinte
episódio (17):

“Estava eu no camarim da “Cherim”, atracada à margem… quando ouvi


vozear fora alguns impropérios contra os portugueses na língua estrangeira… e
vi um branco (um dos empregados da African Lakes) falando alto e batendo por
qualquer motivo no cozinheiro preto, coxo e velho… revoltou-me o
atrevimento de alguém (um estrangeiro para mais) entrar sem licença a bordo
de um navio com a nossa bandeira desfraldada e a flâmula de guerra hasteada
indicando ser barco militar, e se permitir agredir um preto da guarnição e
insultar-nos… não me contendo, atirei duas bofetadas puxadas ao intruso
irreverente que, como a borda da canhoneira fosse baixa, baldeou por cima dela
para o rio, donde saindo… encharcado e talvez molesto, correu, gritando, em
direção aos armazéns da «African Lakes» onde se meteu, com grande alvoroço
e gáudio da minha gente e dos muitos negros reunidos na margem…”.

Entretanto e ao contrário dos restantes chefes, Melaure manifestou extrema relutância


em rabiscar o seu sinal no documento de vassalagem. Alegava a sua entranhada credulidade
nos poderes mágico-religiosos. Também referiu as superstições derivadas da crença na
insidiosa malignidade da feitiçaria. Só em 24 setembro acedeu em proclamar a sua pública
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concordância, embora recorrendo a interpostas pessoas. O documento foi enviado para
Londres no dia 30. Passados sete dias, Buchanan escreveu de novo a Salisbury, satisfeitíssimo
com as provas de lealdade dadas por Melaure. Mas este contentamento foi precoce porque o
rancoroso potentado apoiou uma provocação que teve repercussões muito graves: decidiu
manter a bandeira britânica que alguém tinha içado de forma ostensiva e permanente, sempre
bem visível no acampamento das hostes leais aos portugueses.
Obedecendo às ordens recebidas, os guerreiros landins procederam à rápida remoção do
conhecido símbolo nacional britânico. Melaure, ensandecido pela cólera, não só acusou
Buchanan de o haver enganado como também recusou perentóriamente receber qualquer
bandeira substituta. Vociferou, em altos brados, que tinha perdido a paciência e que iria sem
mais demoras esmagar as forças portuguesas.

***

A. Coutinho ancorou em Mupassa a 10 novembro e deparou com S. Pinto e todos os


seus acompanhantes em justificado alvoroço. Dois dias antes e sem qualquer provocação,
tinham sido alvejados a tiro. Os oficiais portugueses e as suas forças foram obrigados a
ripostar com fogo nutrido que incluía metralhadoras. Após dias de expectativa, obtiveram
informações seguras de que os macololos se procuravam reagrupar com o objetivo de
desencadearem um segundo ataque a Chilomo, a mais importante povoação situada na
pequena península formada pelas escarpadas margens da confluência do Ruo com o Chire.
Para melhor “comandamento de vistas e fogos”, fora ela construída numa elevada e saliente
planura à volta da qual foram escavadas boas trincheiras. No dia 17 novembro, S. Pinto
ordenou a A. Coutinho que navegasse contracorrente para se poder descobrir o principal
aquartelamento de macololos e manganjas. A. Coutinho tomou medidas para que, em caso de
necessidade, pudesse fundear de imediato, montar as metralhadoras e o canhão-revólver e
escolher as respetivas guarnições. Atingiram o objetivo após algumas horas. Os inimigos logo
abriram fuzilaria intensa mas pouco perigosa devido ao fraco alcance das suas armas e ao
pequeno número de atiradores, talvez simples sentinelas. O próprio A. Coutinho foi ferido
embora sem gravidade. As armas da canhoneira voltaram a ripostar com rajadas e até mesmo
com granadas certeiras. O tiroteio prolongou-se por horas. Neutralizados enfim os inimigos,
A. Coutinho, desembarcado com um destacamento, deparou com as trincheiras vazias,
ensanguentadas e abrigando cinco feridos. Regressaram à canhoneira por ser imprudente
tentar qualquer perseguição noturna. Antes disso conseguiram içar a bandeira portuguesa. O
barco fundeou a meio do rio de modo a facilitar a defesa caso voltasse a ser atacado.
Só na manhã seguinte, apareceu o resto das forças mobilizadas por S. Pinto. Durante a
tarde, o total das hostes pró portuguesas já dominava as duas margens do Chire. A. Coutinho
descreve como se segue a forma como os vencedores celebraram a vitória:

“O batuque ensurdecedor dos «gomas» e dos cinzetes de guerra,


acompanhava o pombeirar dos negros sipais, enquanto os landins emplumados
e serenos, avançavam em pelotão, ao som dos cantos de guerra dos sipais,
celebrando o feito dos Muzungos e do que eles chamavam – e chamaram muito
tempo – Muzungo Icuro, ou M’Pezene (18) ou só Coutinho…”.

S. Pinto mostrou o seu apreço mudando oficialmente para “Vila Coutinho” o nome da
antiga Chilomo.
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Os comandos portugueses, por intermédio de sucessivos mensageiros, pediram aos
chefes macololos que procedessem à entrega das bandeiras britânicas e que confirmassem a
sua vassalagem ao Rei de Portugal. Nenhum obedeceu. Buchanan aconselhou-os a não
aceitarem qualquer tipo de rendição e a buscarem refúgio nos territórios nortenhos. Mais tarde
escreveu a S. Pinto no dia 10 dezembro prevenindo-o de que, caso ordenasse qualquer ataque
teria que responder imediatamente por essa decisão. No dia seguinte remeteu mais uma
confidencial a Salisbury. Deve estar aqui a causa da nota do embaixador britânico, enviada ao
ministro Barros Gomes a 18 dezembro, protestando contra a ofensiva iniciada por S. Pinto
contra os Macololos.
Algo de insólito aconteceu depois. Durante um jantar a bordo da “Cherim”, oferecido
por A. Coutinho aos oficiais portugueses, surgiu o estafeta de Quelimane com um misterioso
telegrama. Era de 19 outubro e anunciava o falecimento do rei D. Luís. Serpa Pinto, muito
abalado, desembarcou imediatamente e regressou à sua cabana. No dia seguinte chamou A.
Coutinho e, depois de lamentar a morte do rei, seu amigo e protetor, revelou:

“Vais ser nomeado brevemente governador militar do Chire, e eu dentro


de pouco tempo vou a Moçambique conferenciar com (o governador-geral)
Neves Ferreira. Tu vais ocupar esta grande região e farás o que entenderes.
Estou certo do teu patriotismo e da tua energia. Tem em ti próprio tanta
confiança como eu tenho!”.

Coutinho reagiu assim:

“Eu, rapaz de 24 anos… agradeci-lhe a amizade e confiança… e disse-lhe


que podia estar certo que faria o melhor que… pudesse, pelo Rei, pela Nação e
seu prestígio. Assim tive, por ordem de S. Pinto, de iniciar em breve uma difícil
e ingrata campanha pelo Chire e Ruo, que havia de ter repercussão de ordem
internacional…”.

Conta depois que S. Pinto:

“Reconheceu que já não tinha razão de ser a sua missão científica e


pacífica, limitada ao estudo do traçado de uma linha ferroviária. Encarregou-me
então (como foi dito) de ocupar as duas margens do rio, que sempre
considerámos portuguesas… No dia 28 novembro, investia-me oficialmente no
governo militar do Chire, mas só partiu depois do meu regresso a Chilomo,
findas as primeiras operações. Embarcou na canhoneira «Maravi» que em
poucas horas, levado pela corrente, o deixou na povoação Vicente, dali
seguindo para Quelimane e Moçambique. Como se sabe não mais voltou e a
sua expedição foi dissolvida”.

A. Coutinho partiu de Chilomo a 29 novembro para ocupar e dominar as margens do


Chire e as terras adjacentes até onde fosse possível. As suas forças incluíam soldados
angolanos e também moçambicanos chefiados por oficiais e sargentos portugueses. De Sena
vieram cerca de mil sipais dirigidos pelo capitão-mor Anselmo Ferrão e os seus irmãos
Zacarias e Eusébio. Incluíam também quatrocentos sipais da Maganja, da Chupanga e de
Caia, chefiados por José Paiva Raposo, e ainda outros contingentes de sipais.
Pelo rio seguia a “Maravi”, acompanhada por escaleres com víveres e munições, e com
gente armada. Era vagarosa a marcha pela margem direita do Chire, devido aos rugosos
81
caminhos e por vezes às chuvas torrenciais. Os guias, por receio ou ignorância, seguiam
hesitantes e chegavam a enganar-se na rota.
A alimentação também chegou a ser limitada para duas ou três pequenas refeições.
Nada mais havia do que simples massa de mapira ou arroz cozido. Apenas melhorava quando
se abatia alguma peça de caça.
No dia 8 dezembro, os guias levaram-nos, sob chuva intensa, por caminhos que
conduziram à margem do rio. Apesar da perigosa situação em que se encontravam entre o
imenso caniço, não podendo fazer avançar os irregulares – exaustos, como os próprios
soldados, pela grande marcha realizada sem alimentação – foi resolvido bivacar numa
pequena lombada.
Foram então colocados a certa distância alguns postos de vigilância com sipais. Mal se
haviam estabelecido quando a montante rebentou tiroteio acompanhado por grandes brados.
Puderam verificar pelo ondear do capim, que avançavam grande número de macololos, que
depressa abriram intensa fuzilaria. Com dificuldade foi a peça de artilharia arrastada para o
lado donde vinham os tiros. Só por duas vezes foi possível fazer fogo com ela. Dentro de
pouco tempo o tiroteio era geral; os oficiais gritaram para que a soldadesca poupasse
munições.
Por fim resolveram tentar um esforço decisivo. Mandaram os soldados armar baioneta e
pondo-se à frente seguidos logo pelos caçadores da Chupanga e por outros guerreiros armados
de zagaia e machadinha, desceram e voltaram a subir o barranco, carregando depois com
vigor contra o inimigo. Este sofreu muitas baixas, sobretudo quando se concentraram a
trezentos metros duma pequena clareira. Sobre eles se fizeram repetidas descargas. Os
macololos começaram a retirar para norte só quando os atacantes conseguiram instalar a peça
num “morro de muchem” e disparar duas granadas.
Essa retirada degenerou em debandada, quando se ouviram os apitos da “Maravi” que
logo abriu fogo com rajadas das metralhadoras. Assim foi alcançada completa vitória sobre os
macololos. Sofreram de certo mais de duzentas baixas, entre elas um mínimo de cinquenta
mortos. Foram duas horas trágicas. Este renhido combate – um dos mais duros em que A.
Coutinho participou – teve como desfecho a tomada da povoação grande e limpa do Melaure,
verdadeira capital dos chamados macololos. Nela entraram no dia seguinte, deparando com
alguns feridos entre palhotas de soberba construção.
Os vencedores souberam, pelos prisioneiros, que a força inimiga era muito numerosa. E
ainda que haviam morrido em combate, não só o Cabalalica, comandante do ataque a
Mupassa, mas também o Campata e o Mulidima que tinham defendido Chilomo. Garantiram
os prisioneiros que o principal inspirador dos ataques aos portugueses fora o Mandala,
cognome porque conheciam John Moir.
No dia 10 pelas 16h marcharam para a Serra de Mechiolo onde se havia refugiado parte
dos inimigos. Ocuparam três povoações, quase sem resistência, pois apenas houve troca de
tiros quando chegaram ao caminho que conduzia à segunda povoação, situada a uns 300 m de
altitude na escarpada encosta. Na manhã do dia 15 depois de terem incendiado várias
povoações, chegaram à capital do régulo Massea. O consequente tiroteio provocou algumas
baixas ao inimigo. Na força portuguesa houve dois sipais feridos.
Avançaram até Mulilimo e bem cedo no dia 18 atingiram as cataratas, tomando Matiti.
Aí atravessaram o rio e no dia seguinte ocuparam Catunga, com algum tiroteio e poucas
baixas. O inimigo retirou para os lados de Blantyre, deixando alguns prisioneiros e feridos. Os
atacantes ocuparam M’beue e a seguir Goma, ficando assim ocupadas com pequenos sanzoros
as margens do Chire. Os combatentes regressaram a Chilomo, continuando a “Maravi” em
M’beue durante alguns dias.
82
Solução final: telegrama do cônsul int.º Churchill, remetido da Ilha de
Moçambique a Lorde Salisbury. O Ultimatum de 11 janeiro 1890

William A. Churchill fora nomeado por Johnston, devido a conveniências de serviço,


para exercer interinamente o cargo de cônsul de Sua Majestade Britânica na capital de
Moçambique. Foi por sua intervenção que se divulgou a presença de S. Pinto na ilha.
Churchill conhecera-o, por mero acaso, na celebração natalícia oferecida pelo governador-
geral. Considerou normal dar-lhe conhecimento de que as operações militares contra os
Macololos haviam continuado após a tomada de Chilomo. Tinha dado ordens ao governador
militar do Chire (i. e. Azevedo Coutinho) para que conquistasse, fortificasse e guarnecesse
Catunga, o nortenho porto fluvial que servia Blantyre. W. Churchill, nessa mesma noite,
transmitiu tão fidedignas e importantes notícias, por via telegráfica, ao primeiro-ministro
britânico.
Lorde Salisbury seguia com especial atenção o evoluir dos acontecimentos. Os altos
comandos militares já tinham elaborado planos para se enviarem, por via terrestre, forças
expedicionárias ao Zambeze. Também o Conselho de Ministros havia decidido em 23
dezembro ordenar a uma força naval que ocupasse a Ilha de Moçambique no caso do governo
português não aceitasse terminar a sua ocupação na margem sul do afluente Ruo. Aconteceu,
no entanto, que o primeiro-ministro adoeceu no decurso de quatro dias. Mesmo acamado quis
dirigir ele próprio as delicadas negociações. Entretanto Buchanan tinha-lhe enviado no dia 5
janeiro uma mensagem onde ressaltam evidentes falsidades. Especificou que no primeiro dia
do mês uma força de seiscentos zulos tinha atacado Catunga e arreado a bandeira britânica;
depois prosseguira até Maseia fazendo prisioneiros e cometendo atrocidades que seriam “uma
desgraça para qualquer nação civilizada”. Seja como for, o primeiro-ministro ditou uma série
de telegramas que culminaram no dia 11 janeiro 1890, num formal Ultimatum ao governo
Português.
Para efeitos de recapitulação, convém transcrever na íntegra o importante documento.

Texto do Ultimatum entregue por George Glynn Petre a Henrique de


Barros Gomes

“Her Majesty’s government cannot accept as satisfatory or sufficient the


assurances given by the Portuguese government as they interpret them. Her
Majesty’s Acting Consul at Mozambique has telegraphed on the authority of
Major Serpa Pinto himself, that the expedition was still occupying the Shiré,
and that Katunga besides other places in the territory of the Makololos were to
be fortified and would receive garrisons. What Her Majesty’s government
require and insist upon is the following: That telegraphic instructions shall be
sent to the governor of Mozambique at once to the effect that all and any
Portuguese military forces which are actually on the Shiré or in the Makololo or
in the Mashona territory are to be withdrawn. Her Majesty’s government
consider that without this the assurances given by the Portuguese government
are illusory. Mr. Petre is compelled by his instruction to leave Lisbon at once
with all the members of his legation unless a satisfatory answer to the foregoing
intimation is received by him in the course of this evening, and Her Majesty’s
Ship Enchantress is now at Vigo waiting for his orders. British Legation,
January 11th 1890.
83
Tradução

O governo de Sua Majestade não pode aceitar como satisfatórias ou


suficientes, as seguranças dadas pelo governo português tais como ele as
interpreta. O cônsul interino de Sua Majestade em Moçambique telegrafou,
citando o próprio major Serpa Pinto, que a expedição estava ainda ocupando o
Chire, e que Katunga e outros lugares mais no território dos macololos iam ser
fortificados e receberiam guarnições. O que o governo de Sua Majestade deseja
e em que insiste é no seguinte:
Que se enviem ao governador de Moçambique instruções telegráficas
imediatas, para que todas e quaisquer forças militares portuguesas atualmente
no Chire e nos países dos macololos e machonas se retirem. O governo de Sua
Majestade entende que sem isto as seguranças dadas pelo governo português
são ilusórias. Mr. Petre ver-se-á obrigado, à vista das suas instruções, a deixar
imediatamente Lisboa com todos os membros da sua legação, se uma resposta
satisfatória à precedente intimação não for por ele recebida esta tarde; e o navio
de Sua Majestade Enchantress está em Vigo esperando as suas ordens.
Legação britânica, 11 janeiro 1890”.

O autor desta coletânea concordou com o Emb. Franco Nogueira quando, na


conferência efetuada na Soc. de Geografia, em junho 1990, denunciou o grave erro cometido
na tradução oficial. O diplomata notou – e bem – que na língua inglesa “intimation” significa
algo como “insistência”. Por seu lado, o Dicionário Inglês – Português, na nova edição revista
e melhorada pelo Dr. Armando Morais, aventa os seguintes significados: aviso, indício,
insinuação, notificação. Este último parece ser o que melhor se cuaduna com o contexto.

***

Como é do geral conhecimento, o Conselho do Estado, chefiado pelo próprio rei D.


Carlos, optou pela cedência e o governo pediu a sua demissão. Em 8 fevereiro o comando das
forças portuguesas recebeu em Catunga ordens superiores para que as retirasse até ao sul do
Ruo. Compreendem-se por que razões S. Pinto não voltou a ser escolhido para desempenhar
cargos na África Continental. Conformou-se com um simples governo de Cabo Verde, antes
da sua morte em 1900, com 54 anos de idade.

Apreciações sobre o Ultimatum

Jorge Borges de Macedo (19) historiador e diretor da Torre do Tombo, defendeu, em


dezembro 1990, que havia necessidade de renovar a forma como se tem estudado o
Ultimatum. Especificou que se tinha privilegiado apenas a crise interna, mas era necessário
analisar também a vertente da política externa. Só isso bastaria para renovar todos os estudos
sobre o tema. A política de 1890 era feita por partidos de clientela. Era notória a incapacidade
do país para controlar os acontecimentos. “Portugal debateu-se com um drama de identidade.
Não soube encontrar o seu desenvolvimento”. Esta última afirmação, aliada ao suficiente
distanciamento histórico, encoraja a apresentação de algumas conclusões pouco ortodoxas.
84
Moçambique, como nação, perdeu parte substancial desse território planáltico, salubre,
fértil, bem irrigado que, em coordenadas geográficas, se pode definir como limitado pelos
paralelos 12 e 17 e pelos meridianos 33 e 37. Mas também perdeu uma população de milhões
porque a Niassalândia se transformou em território de refúgio para os grupos étnicos que a
rodeiam, insatisfeitos com as ineficiências, as arbitrariedades e, sobretudo, as práticas
violentas que caracterizaram as administrações quer da Companhia da Zambézia quer da
majestática Companhia do Niassa, ambas descapitalizadas e lutando com graves carências em
matéria de pessoal eficiente e qualificado. Ambas sobrevivendo com base na cobrança, a bem
ou a mal, do “imposto de palhota”, o célebre mussoco. Leiam-se estes resumos das cartas de
Mariano Machado desde 31 agosto a 9 novembro 1899:

“O governador Andrea mandou que os indígenas dos prazos Massingire e


Manganja pagassem o mussoco em dinheiro: lembrei que os indígenas não
tinham fábrica de moeda e que para conseguirem dinheiro para pagar o
mussoco teriam que ir vender os seus produtos aos monhés e ao território
inglês”.

Pede relatório sobre: “o desastre da elevação do mussoco nos Prazos próximos da


fronteira inglesa e da Companhia de Moçambique”; nos Prazos de Quelimane cobravam-se
1.260 réis por cada indígena ou seja 2.520 por palhota, enquanto na margem direita (do
Zambeze) a Companhia de Moçambique mantinha a antiga taxa e no território inglês
cobravam apenas três xelins por palhota; isto prejudicava a C. Z. porque a situação era
agravada pela exigência do pagamento do mussoco sob forma de trabalhos impossíveis de
avaliar monetariamente. Tal não acontecia na Niassalândia, nem nas divisões sob
administração direta da majestática portuguesa; ali os indígenas não sofriam estas pressões.
Era por isso indispensável que, nos Prazos limítrofes, “a cobrança do mussoco fosse feita de
modo idêntico para se evitarem fugas definitivas”; “carta de Wheelhouse sobre as
barbaridades cometidas pelo empregado Pompeu no Gongue e Bandar”.
Muitos textos como este se poderiam citar, não devendo causar estranheza o facto de
todas as etnias terem procurado maior proteção e liberalidade nos territórios sob influência
britânica: Ajauas, Lómuès, Macuas, Manganjas, Cheuas e até Angonis. O estudo de J. P.
Borges Coelho (20) fornece dados bem elucidativos relativos a Tete. Feliz ou infelizmente, de
norte a sul, o fenómeno emigratório tornou-se uma característica estrutural na demografia
moçambicana. Face a esta evolução da situação política e económica, pode talvez afirmar-se
que os Macololos perderam porque foram ultrapassados por outros massivos afluxos
populacionais vindo do exterior. Pode sugerir-se que, a longo prazo, os britânicos também
hajam perdido, porque transformaram a Niassalândia colonial num caso de imprevidência e
até de discriminação. Tal é o entendimento de L. Vail (21). E também M. Chanock (22)
quando cita o investigador que, baseado no censo de 1926, acentuou o facto de 63% da
população total residir em concessões feitas, nas terras altas, a cinco grandes companhias.
Perdeu por fim o moderno Malawi que, na comparação que se segue, está em primeiro
lugar, em destrutivas densidades de habitantes por quilómetro quadrado: Malawi = 60,
Lesotho = 50, Suazilândia = 40, Tanzânia = 25, Moçambique = 20, Zâmbia = 10. É Antoon de
Vos (23) que as considera “destrutivas”.
O Plano de Desenvolvimento do Vale do Zambeze, publicado em junho 1971, informou
que a bacia deste rio em Moçambique possuía cerca de um milhão e meio de habitantes. A
densidade média não chegava a atingir oito h/km2. A distribuição era irregular encontrando-se
85
manchas de um a dois h/km2 e apenas uma mancha em que aquele indicador alcançava o
número de setenta h/km2.
As últimas estatísticas que conheço referem-se a 1977. Na região sul do Malawi,
compreendendo um terço da área do país, acumulava-se metade da população total, com a
média de 88 h/km2.
Em 1966 os diferentes grupos linguísticos distribuíam-se desde modo: Cheuas =
1.645.000; Lómuès = 477.000; Ajauas = 453.000; Tumbuca = 300.000; Sena = 116.000;
Cocolos = 75.000.
Pela sua diferente abordagem, merece reflexão o contributo de David Birmingham.
Acentua a indiferença dos historiadores britânicos face à conjuntura do Ultimatum: algo como
insignificante atrito diplomático com um multissecular mas também insignificante país (24).
86
Bibliografia

1) KOCK, W. J. de (1972). História da África do Sul. Pretoria, África do Sul, Ministério da Informação.
2) LACERDA E ALMEIDA, F. J. de (1798). Diário da viagem da vila de Tete, capital dos rios de Sena,
para o interior de África. In: “Textos para a História da África Austral – Séc. XVIII”. Lisboa, Publicações
Alfa/Biblioteca da Expansão Portuguesa, pp. 81-131.
3) GAMITTO, A. C. Pedroso (1854). Memória sobre um systema para as Cólonias Portuguesas. Ann.
Cons. Ultram. (parte não oficial) Série I.
4) COELHO, Ten-Cor. Agostinho. Relatório (do governador-geral de Moçambique de 8/4/1882 a
31/10/1883). Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, com a cota 59-D-15.
5) AXELSON, Eric (1967). Portugal in South-East Africa (1875-1878). In: “Portugal and the Scramble for
Africa (1875-1891)”. Joanesburgo, África do Sul, Witwatersrand University Press, p. 1-19. Na interpretação
deste autor, pecariam por utópicas quaisquer exigências baseadas nos chamados “direitos antigos e
irrefutáveis”.
6) GIRAUD, Victor (1890). Les Lacs de l’Afrique Équatoriale (voyage d’exploration exécute de 1883 a
1885). Paris, Librairie Machette, p. 570.
7) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press, p. 70.
8) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand, pp. 402/5 e 414.
9) NOWELL, E. Charles (1982). The Rose-Colored Map. Lisboa, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar/Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, p. 143.
10) É paradigmática a regra de relações públicas que o jovem mas já astucioso Johnston se vangloriou de
desenvolver na conquista generalizada de simpatias, tanto em Portugal como em Moçambique, isto é, o
fingido mas cansativo embevecimento baboso perante tudo quanto lhe fosse mostrado como exemplo da
excelência nacional, incluindo, como é evidente, o Mosteiro dos Jerónimos.
11) CAETANO, Marcello (1971). Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos (História
duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas). Lisboa, Edições Ática, 4ª ed., rev. ampl., pp.
273, ver o apêndice final sobre os antecedentes do ultimatum e a missão de Johnston a Lisboa em março
1889.
12) HANNA, A. J. (1956). Idem, p. 131.
13) HEAD, Judith (1978). Sena Sugar Estates and migrant labour. In: “Mozambique”. Seminar, Centre of
African Studies/University of Edinburg, December.
14) NOWELL, E. Charles (1982), Idem, p. 181 (cita o cheque de £2.000 oferecido por C, Rhodes a Johnston e a
confirmação pelo Banco Rotchild de uma conta excedendo um milhão de libras; a esse gesto comentou
Johnston. (sic) “A man had come forward offering virtually to let us take over any degree of Central Africa
between the Zambesi and the White Nile and find the money to run it”).
15) 15/16) HANNA, A. J. (1956), Idem, p. 142.
16) 17/18) COUTINHO, João de Azevedo (1941), Idem.
17) MACEDO, Jorge Borges de (1990). Ultimatum em discussão na Faculdade de Letras. Lisboa, Público,
13 dezembro.
18) COELHO, J. P. Borges (1991). Tete, 1900-1926: o estabelecimento de uma reserva de mão-de-obra.
Arquivo/Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, nº 10 Especial, pp. 103-132.
19) VAIL, Leroy (1977). Railway development and colonial underdevelopment: the Nyasaland case. In:
“The Roots of Rural Poverty in Central and Southern Africa”. Londres, Heinemann Educ. Books.
20) CHANOCK, Martin (1977). Agricultural change and continuity in Malawi. In: “The Roots of Rural
Poverty in Central and Southern Africa”. London, Heinemann Educ. Books.
21) VOS, Antoon de (1975). Africa, the Devastated Continent? Haia, Holanda, W. Junk Publishers.
22) BIRMINGHAM, David (1996). Britain and the African background to the Ultimatum of 1890. Lisboa,
Studia, nº 54/5, pp. 21-32.
87


DOCUMENTO
“Nos Cem Anos do Tratado de Delimitação de Fronteiras 1891-1991”,
por
Manuel Jorge C. de Lemos
[“ARQUIVO – Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique”, Maputo, nº 9 (abril 1991) pp. 69-78]

Assinalando-se a 11 junho próximo o primeiro centenário do Tratado Luso-Britânico de


1891, acordo que teve em vista “regular definitivamente a delimitação das respetivas esferas
de influência em África”, decidiu o Arquivo Histórico de Moçambique publicá-lo por
antecipação neste número do seu Boletim, transcrevendo-o da coletânea de “Tratados
Aplicáveis ao Ultramar” (Vol. V, edição de 1943, de José de Almada).
Decisão oportuna, sobretudo se se tiver em conta que o referido tratado constitui um dos
documentos jurídicos fundamentais de Moçambique, pois estabelece o traçado da maior parte
das suas atuais e internacionalmente reconhecidas fronteiras.
É dado adquirido e conhecido de todos quantos se interessam pela história do nosso país
que é uma inverdade utilizar-se o velho e gasto chavão dos quinhentos anos de ocupação e
dele inferir-se, como muita gente tem feito (por ignorância ou conveniência política), que
Moçambique existe como unidade geográfica e administrativa há já tanto tempo.
O que é verdade é que Moçambique, como a maior parte dos países do continente, é
resultado da partilha a que o mesmo foi sujeito pelas potências europeias, na sequência da
célebre Conferência de Berlim, realizada de 15 novembro 1884 a 26 fevereiro 1885, que,
entre outros, consagrou o princípio de que apenas a ocupação efetiva conferia direitos de
soberania sobre os territórios africanos.
À data da Conferência, os domínios de Portugal (obtidos pela força das armas ou
cedidos pelos estados e chefaturas locais por meio de tratados, ao longo de muitos anos) no
território que é hoje Moçambique encontravam-se dispersos pelo litoral – Ilha de
Moçambique, Ilhas de Quirimba, Quelimane, Sofala, Inhambane e L. Marques – e no interior
resumiam-se a uns poucos estabelecimentos fortificados – Sena, Tete e Zumbo (Manica há
muito fora abandonada e os prazos do vale do Zambeze estavam fora do controlo das
autoridades portuguesas).
O Tratado de 1891, ao regular as pretensões expansionistas de Portugal e da Inglaterra,
marcou irreversivelmente o início do fim dos estados e chefaturas até aí independentes e o
surgimento de novas unidades territoriais, as colónias, que estão na origem dos atuais estados
da região. O instrumento para o efeito utilizado foram as chamadas “campanhas de
pacificação”, operações militares que até ao fim do século haviam subjugado e circunscrito às
fronteiras delimitadas povos heterogéneos, com história, tradições, línguas e interesses
diferentes. Cem anos apenas nos separam do momento em que o referido convénio foi
assinado; os primeiros cem anos de história comum de todos os indivíduos que habitam este
território. É nesse passado comum e não na origem racial, étnica ou social que se deve buscar
a génese da nossa moçambicanidade.
88
Texto do tratado para regular definitivamente a delimitação das respetivas
esferas de influência em África e assegurar as relações de amizade entre as
duas potências, assinado em Londres a 11 junho 1891, onde foram trocadas
as ratificações a 3 julho do mesmo ano

Artigo I

A Grã-Bretanha concorda em reconhecer como compreendidos no domínio de Portugal


na África Oriental, os territórios limitados: 1– Ao norte por uma linha que, subindo o curso do
rio Rovuma, desde a sua foz até ao ponto de confluência do rio M’Singe, daí segue na direção
do oeste o paralelo de latitude do ponto de confluência destes dois rios até à margem do lago
Niassa; 2– A oeste por uma linha que, partindo do citado limite sobre o lago Niassa, segue a
margem Oriental deste lago na direção sul até ao paralelo 13º 30’ de latitude sul; corre daí na
direção Sueste até à margem Oriental do lago Chiúta, a qual acompanha até ao seu extremo.
Segue daí em linha reta até à margem oriental do lago Chirua ou Chidua, pela qual continua
até ao seu extremo limite a sul e a Oriente; daí por uma reta até ao afluente mais oriental do
rio Ruo, correndo com este afluente e seguindo subsequentemente pela linha média do leito
do rio Ruo até à confluência deste com o rio Chire. Da confluência do Ruo e do Chire, a
fronteira seguirá a linha central do leito do último destes rios, até a um ponto logo abaixo do
Chiuanga. Daí correrá exatamente para oeste até encontrar a linha divisória das águas entre o
Zambeze e o Chire, e seguirá essa linha entre estes rios e depois entre o primeiro rio e o lago
Niassa até encontrar o paralelo 14º de latitude sul. Daí correrá na direção de Sudoeste até ao
ponto em que o paralelo 15 de latitude sul encontra o rio Aruangua, e seguirá a linha média
desde rio até à sua junção com o Zambeze.

Artigo II

Ao sul do Zambeze os territórios compreendidos na esfera de influência portuguesa são


limitados por uma linha que, partindo de um ponto fronteiro à embocadura do rio Aruangua
ou Luangua, vai na direção sul até ao paralelo 16º de latitude sul, segue este paralelo até à sua
interseção com o 31º de longitude Leste de Greenwich, corre para Leste direito ao ponto onde
o 33º do longitude Leste de Greenwich corta o rio Mazoe e segue esse 33º para o sul até à sua
interseção pelo paralelo de 18º 30’ de latitude sul; daí acompanha a crista da vertente oriental
do planalto de Manica na sua direção sul até à linha média do leito principal do Save,
seguindo por ele até sua confluência com o Lunde, donde corta direito ao extremo Nordeste
da Fronteira da República sul Africana, continuando pelas fronteiras orientais desta República
e da Suazilândia até ao rio Maputo. Fica entendido que ao traçar a fronteira ao longo da crista
do planalto nenhum território a oeste do meridiano de 32º 30’ de longitude Leste de
Greenwich ficará compreendido na esfera portuguesa, e que nenhum território a Leste do
meridiano de 33º de longitude Leste de Greenwich ficará compreendido na esfera britânica.
Esta linha sofrerá contudo, sendo necessário, a inflexão bastante para que Mutassa fique na
esfera britânica e Macequece na esfera portuguesa.
89

Artigo III

A Grã-Bretanha obriga-se a não pôr obstáculos à extensão da esfera de influência


portuguesa ao sul de L. Marques até uma linha que, partindo da confluência do rio Pongolo
com o rio Maputo, segue o paralelo deste ponto até à costa marítima.

Artigo IV

Fica estabelecido que a linha divisória ocidental, separando a esfera de influência


portuguesa na África Central, subirá o centro do leito do Zambeze superior, partindo das
cataratas de Katina até ao ponto em que entra no território do reino de Barotse. Este território
permanecerá incluído na esfera britânica, e os seus limites ocidentais, que constituirão a linha
divisória entre as esferas de influencia inglesa e portuguesa, serão traçados por uma comissão
mista anglo-portuguesa, que terá a faculdade, em caso de discordância de pareceres, de
nomear um arbitro de desempate. Fica entendido, por ambas as partes, que as disposições
deste Artigo não poderão ferir os direitos existentes de qualquer outro Estado. Sob esta
reserva a Grã-Bretanha não se oporá à extensão da administração de Portugal até aos limites
do Barotse.

Artigo V

Portugal concorda em reconhecer, como compreendidos na esfera de influencia


britânica ao norte do Zambeze, os territórios que da linha traçada pela comissão mista a que se
refere o Artigo antecedente, vão até ao lago Niassa, incluindo as ilhas daquele lago ao sul do
paralelo 11º 30’ da latitude sul até aos territórios reservados a Portugal pela linha descrita na
Artigo I.

Artigo VI

Portugal concorda em reconhecer, como compreendidos na esfera de influência


britânica ao sul do Zambeze, os territórios limitados a leste e nordeste pela linha descrita no
Art. II.

Artigo VII

Todas as linhas de demarcação traçadas nos Artigos I a VI serão por acordo entre as
duas potências, retificáveis em harmonia com as necessidades locais. As duas potencias
90
acordam em que no caso de uma delas desejar alienar quaisquer territórios, ao sul do
Zambeze, incluídos na sua esfera de influencia pelos presentes Artigos, será reconhecido à
outra o direito de preferência a esses territórios ou a qualquer parte deles, sob condições
idênticas às condições que tiverem sido propostas.

Artigo VIII

Cada uma das potências obriga-se a não intervir na esfera de influência que
respetivamente for determinada à outra pelos Artigos I a VI. Nenhuma das potências fará
aquisições, celebrara tratados, aceitara direitos soberanos, ou protetorados na esfera da outra.
Fica entendido que nem companhias, nem particulares dependentes de uma das potências
poderão exercer direitos soberanos na esfera reconhecida à outra, a não ser que para isso
tenham o consentimento desta.

Artigo IX

As concessões comerciais ou mineiras e os direitos de propriedade, de companhias ou


indivíduos dependentes de uma das duas potências, serão reconhecidos na esfera da outra
potência quando devidamente se prove a sua validade das concessões mineiras feitas pela
autoridade legítima, numa área de 30 milhas para um ou outro lado da fronteira ao sul do
Zambeze, será nomeado de comum acordo um tribunal arbitral. Fica entendido que tais
concessões serão exploradas em harmonia com as leis e regulamentos locais.

Artigo X

Em todos os territórios da África oriental e central pertencentes às duas potências, ou


sob a influência delas, gozarão os missionários de uma e outra nação de plena proteção. Fica
garantida a tolerância religiosa e a liberdade de todos os cultos e ensino religioso.

Artigo XI

Ao trânsito de mercadorias pelos territórios portugueses situados entre a costa oriental e


a esfera britânica não serão impostos, por um prazo de vinte e cinco anos, contados da
ratificação desta convenção, direitos que excedam 3 %, quer na importação, quer na
exportação. Esses direitos em caso algum terão carácter diferencial, e não excederão os
direitos aduaneiros estabelecidos sobre as mesmas mercadorias nos referidos territórios. O
governo de Sua Majestade Britânica terá a opção dentro do prazo de cinco anos, contados da
data da assinatura deste acordo, para pedir a liberdade do trânsito para o resto do prazo de
vinte e cinco anos, mediante o pagamento de uma soma que corresponda à capitalização dos
direitos anuais durante esses prazo, calculados na razão de 30.000 libras esterlinas por ano. A
91
moeda e os metais preciosos de qualquer espécie serão importados e exportados para dentro e
para fora da esfera britânica sem pagamento de direitos de trânsito. Fica entendido que haverá
liberdade para os súbditos e mercadorias de ambas as potencias atravessarem tanto o Zambeze
como os distritos marginais do lado esquerdo do rio, e situados acima da confluência do
Chire, e ainda os distritos marginais do lado direito do Zambeze situados acima da
confluência do rui Luenha (Ruenga), sem que a essa passagem seja posto qualquer obstáculo,
e sem pagamento de direitos de trânsito. Fica outrossim entendido que, nos distritos acima
mencionados, cada uma das potências terá, tanto quanto for razoavelmente necessário para o
estabelecimento das comunicações entre territórios que estão sob a sua influência, o direito de
construir estradas, caminhos de ferro, pontes e linhas telegráficas através dos distritos
pertencentes à outra potência. As duas potências gozarão nestas zonas da faculdade de
adquirir em condições razoáveis o terreno necessário para tais fins, sendo-lhes também
concedidas as demais facilidades indispensáveis. Portugal terá iguais direitos nos territórios
britânicos das margens do Chire e nos territórios britânicos compreendidos entre o território
português e as margens do lago Niassa. Qualquer caminho de ferro, construído por uma
potência no território da outra, ficara sujeito ás leis e regulamentos locais, estabelecidos por
acordo entre os dois governos, e, no caso de divergência de opinião, submetidos à arbitragem,
conforme fica abaixo indicado. Facilitar-se-á igualmente, entre os dois limites acima
mencionados, a construção, sobre os rios, de cais e desembarcadouros com destino ao
comércio ou navegação. As divergências de parecer entre os dois governos sobre a execução
das suas obrigações respetivas provenientes das disposições do parágrafo antecedente, serão
submetidas à arbitragem de dois peritos escolhidos respetivamente por cada uma das
potências, que nomearão um árbitro de desempate, cuja decisão, no caso de divergência dos
dois árbitros, será sem apelação. Se os dois peritos não concordarem sobre a escolha do
árbitro de desempate, será este nomeado por uma potência neutra, e designada pelos dois
governos. Todos os materiais para a construção de estradas, vias-férreas, pontes e linhas
telegráficas terão entrada livre de direitos.

Artigo XII

A navegação do Zambeze e do Chire, incluindo todas as suas ramificações e


embocaduras, será completamente livre para navios de todas as nacionalidades. O governo
português concorda em permitir e facilitar o trânsito de pessoas e de mercadorias de toda a
espécie, pelas vias fluviais, do Zambeze, do Chire, do Punguè, do Buzi, do Limpopo, do Save,
e dos tributários destes, bem como pelos caminhos terrestres que sirvam de meios de
comunicação onde os rios não forem navegáveis.

Artigo XIII

Os navios mercantes das duas potências terão no Zambeze e nas suas ramificações e
embocaduras, quer em carga, quer em lastro, igual liberdade de navegação para o transporte
de mercadorias ou passageiros. No exercício desta navegação os súbditos e as bandeiras de
uma e outra potência gozarão em todas as ocasiões de uma completa igualdade, não só no que
disser respeito à navegação direta do mar alto para os portos interiores do Zambeze e vice-
92
versa, como à navegação de grande e pequena cabotagem, e ao comércio efetuado em botes
em todo o curso do rio. Não haverá por consequência em todo o curso do Zambeze ou nas
suas embocaduras direitos diferenciais para os súbditos de uma ou outra potência; e nenhum
privilégio exclusivo de navegação será por uma ou outra concedido a quaisquer companhias,
corporações ou particulares. A navegação do Zambeze não será sujeita a restrição ou
obrigação fundada exclusivamente no facto da navegação. Não lhe será imposta obrigação
alguma enquanto a lugares de desembarque, ou a depósito de mercadorias, nem por descarga
parcial ou arribada forçada em qualquer que seja a sua proveniência ou destino. Não será
lançado imposto algum marítimo ou fluvial baseado no facto único da navegação, nem serão
coletadas as mercadorias a bordo dos navios. Serão unicamente percebidos os impostos ou
direitos que signifiquem uma retribuição por serviços prestados à própria navegação. A tarifa
destes impostos ou direitos não estabelecerá tratamento algum diferencial. Os afluentes do
Zambeze ficam a todos os respeitos sujeitos às disposições que regem o rio de que são
tributários. As estradas, os caminhos, as vias férreas e os canais laterais construídos com o fim
especial de corrigir as imperfeições da via fluvial em certas secções do curso do Zambeze,
seus afluentes, ramificações e embocaduras, serão, na sua qualidade de meios de
comunicação, considerados dependências do rio e como tais igualmente abertos ao comércio
das duas potencias. E, conforme sucede para com o rio, serão percebidas nestas estradas, vias-
férreas e canais apenas as taxas correspondentes ao custo da construção, custeio e exploração,
e proventos devidos aos iniciadores. Relativamente às tarifas destas taxas, tanto os
estrangeiros como os indígenas dos territórios respetivos, serão tratados com completa
igualdade. Portugal obriga-se a estender os princípios de livre navegação enunciados neste
Artigo a todas as águas do Zambeze e de seus afluentes, ramificações e embocaduras, que
estão ou vierem a estar sob a sua soberania, proteção ou influência. Os regulamentos que
Portugal estabelecer para a segurança e fiscalização da navegação serão elaborados, de modo
a facilitar quanto possível a circulação de navios mercantes. A Grã-Bretanha aceita, sob as
mesmas reservas e em termos idênticos, as obrigações impostas nos Artigos antecedentes e
extensivas a todas as águas do Zambeze e de seus afluentes, ramificações e embocaduras, que
estão ou vieram a estar sob a sua soberania, proteção ou influencia. Todas as questões que
derem motivo às disposições deste Artigo serão sujeitas a uma comissão mista, e, em caso de
desacordo, à arbitragem. Qualquer outro sistema de administração e de fiscalização do
Zambeze poderá por consenso comum das potências fluviais substituir as disposições acima
expostas.

Artigo XIV

No interesse de uma e outra potência, Portugal concorda em permitir completa liberdade


de passagem entre a esfera de influência britânica e a baía do Punguè, para mercadorias de
toda a espécie, e em proporcionar as indispensáveis facilidades para melhorar os meios de
comunicação. O governo português concorda em construir um caminho-de-ferro entre o
Punguè e a esfera britânica. O estudo desta linha estará terminado dentro de seis meses, e os
dois governos combinarão o período dentro do qual o caminho-de-ferro será começado e
concluído. Se não se chegar a acordo, os dois governos escolherão uma potencia neutra, que
designará uma companhia, como sendo, na sua opinião, competente para a imediata execução
dos trabalhos, e com a qual o governo português contratará a construção do caminho de ferro.
A dita companhia terá todas as faculdades necessárias para aquisição de terrenos, corte de
madeiras e livre importação e fornecimento de materiais e de braços. O governo português
construirá diretamente ou contratará a construção de uma estrada a partir do extremo ponto
93
navegável do Punguè ou de outro rio que possa reconhecer-se como mais aproveitável para o
comércio até à esfera britânica; e construirá na baía do Punguè e nesse rio dos necessários
desembarcadouros. Fica entendido que não serão impostos nas mercadorias em trânsito pelo
rio, pela estrada ou pelo caminho-de-ferro, direitos alguns excedentes ao maximum de 3 %
conforme as condições estipuladas no Art. XI.

Artigo XV

Portugal e a Grã-Bretanha obrigam-se a facilitar as comunicações telegráficas nas suas


esferas respetivas. As estipulações contidas no Art. XIV relativas à construção da via-férrea
da baía do Punguè para o interior serão em tudo aplicáveis à construção de uma linha
telegráfica ligando a costa e a esfera britânica ao sul do Zambeze. As questões sobre os pontos
de partida e de terminação da linha, ou sobre quaisquer outros pormenores, serão submetidas
à arbitragem de peritos sob as condições prescritas na Art. XI. Portugal concorda em manter o
serviço telegráfico entre a costa e o rio Ruo, e o serviço por esta linha para os súbditos das
duas potências não terá qualquer tratamento diferencial. Portugal e a Grã-Bretanha acordam
em proporcionar todas as facilidades para a ligação das linhas telegráficas construídas nas
suas esferas respetivas. Os pormenores relativos a esta ligação, como também à fixação das
tarifas combinadas e mais encargos serão, na falta de acordo, submetidos à arbitragem de
peritos sob as condições já prescritas na Art. XI.

Artigo XVI

A presente Convenção será ratificada e as ratificações serão trocadas em Londres ou em


Lisboa no mais curto prazo possível. Em testemunho do que os respetivos plenipotenciários
assinaram a presente Convenção, e lhe puseram o selo das suas armas. Feito em duplicado em
Lisboa aos onze dias do mês de junho do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos
e noventa e um.

***

Vantagens que trouxe a Moçambique o superior desenvolvimento dos


países integrados na esfera de influência britânica

Sem quaisquer complexos, os espíritos mais imparciais não deixarão de reconhecer a


superior obra de desenvolvimento que, sob direta ou indireta orientação britânica, os
colonizadores de variadas origens conseguiram levar a efeito em três dos países limítrofes que
possibilitavam mais convincentes comparações com Moçambique: a Niassalândia, a Rodésia
do Sul e a África do Sul. À medida que foram aumentando os conhecimentos sobre esta
delicada matéria, firmou-se paulatinamente a opinião de que o consentimento da supracitada
convenção fronteiriça, trouxe consideráveis benefícios a Moçambique.
94
Infelizmente Portugal não dispunha de meios, nem de tecnologia, nem de capacidade de
organização, nem de pessoal qualificado, nem mesmo de adequada ideologia política, para se
lançar, com eficácia e determinação, na difícil tarefa de implantar os contributos positivos da
civilização ocidental entre tantos povos nativos, iletrados, oprimidos pela malignidade da
imensa fauna, por enraizadas crenças arcaizantes e pelo rudimentarismo dos instrumentos de
trabalho.
Por ordem da sua importância geral, da menor para a maior, podem sintetizar-se como
se seguem as mais evidentes vantagens de que se aproveitava o Estado e a população
moçambicana dita “não indígena”, plenamente integrada na economia de mercado e na
civilização da técnica e da ciência aplicada:
a) Superioridade da assistência médica prestada quer nos seus consultórios pelos
diversos especialistas, quer na rede hospitalar mais densa e melhor equipada;
b) Superioridade do sistema educativo que levava muitas famílias a manter os seus
filhos internados em escolas secundárias situadas nos países vizinhos;
c) A atração exercida pelas praias e, de modo geral pelo mar, sobre os estrangeiros do
interior, atração que proporcionou a formação de uma indústria turística sólida e de grande
importância económica;
d) Infraestruturas portuárias e ferroviárias construídas para servir os países vizinhos,
assim criando milhares de empregos e se transformando na maior fonte de receitas.
Os casos de prestação de cuidados de saúde podem cifrar-se por muitos milhares,
sobretudo em relação a Joanesburgo que depressa se guindou à posição um dos melhores
centros médicos de todo o mundo. Seria irrizório citar em pormenor as três situações em que
me vi pessoalmente envolvido e que me podem ter salvado a vida. Esta superioridade
estendia-se até ao protetorado da Niassalândia, visto faltarem especialistas em todo o distrito
de Tete. A população não índigena do centro de Moçambique procurava, por iguais motivos
as principais cidades da Rodésia do Sul.
Também era intensa a procura de internatos com o ensino secundário. Esta inclinação
encontra-se desenvolvida no último Ensaio Inédito.
Os elementos respeitantes ao afluxo turístico, podem ser consultados em todos os
Anuários Estatísticos regularmente publicados em Moçambique.
Por serem verdadeiramente impressionantes, limitar-me-ei a fornecer os dados finais.

***

Se a leitura atenta do Art. III for acompanhada pela sua reprodução cartográfica, logo se
constata que foi cometido um erro que exige correção imediata. O Pongolo/a não é afluente
do rio Maputo, mas simples topónimo indígena aplicado a este último pelas populações das
terras situadas ao sul da fronteira, terras designadas quer por “Maputaland” quer por
“Amatongaland” (1). Por mero acaso foi encontrada a referência que forneceu a resposta
certa. Consta ela de uma obra editada em 1920 pela Almirantado, em Londres (2).
Eis como foi oficialmente enunciado o extremo sul de Moçambique:

“… The short southern frontier runs west from Oro Point (Ponta do
Ouro) to the junction of the Pongola and Usutu rivers, thence following the
latter for a few miles upward. At this point it reaches the Lebombo Mountains”.
95
Eis a tradução:

“… A curta fronteira meridional corre para oeste desde a Ponta do Ouro


até à junção dos rios Pongola e Usutu, seguindo daí este último, umas poucas
de milhas a montante. Neste ponto atinge os Montes Libombos”.

***

Basta saber que Moçambique tem de superfície 785 mil kms2 e basta reparar na sua
enrugada raia marítima para concluir que nesse país o problema das comunicações reside,
fundamentalmente, na ligação entre um litoral com 2.800 kms e um interior de largura
bastante variável que oscila de um mínimo de 50 km no extremo sul e um máximo 640 km no
extremo norte.
A questão dos portos sempre foi da maior importância no seu desenvolvimento
económico. Quis a natureza ou a previsão dos navegadores do Séc. XVI, que o litoral fosse
favorecido por uma cadeia de magníficos portos com águas profundas e com capacidade para
conceder abrigo, durante as intempéries, a todo o tipo de embarcações, desde o grande
transoceânico até ao mais humilde caíque de velas triangulares. O mapa de “vias de
comunicação” do Atlas de Moçambique (3) merece aplausos para quem o concebeu: dele
constam onze e seis portos, respetivamente para navios de cabotagem e de longo curso.
No início da ocupação efetiva, a costa teve que ser dotada com farolagem de aceitação
internacional.
Nos principais portos foram criadas capitanias, gozando de larga autonomia,
dependentes do Ministério da Marinha e guarnecidos por oficiais da Armada. Eram
responsáveis pela pilotagem e pela balizagem. Desde cedo os portos e as costas foram
estudados por peritos qualificados. A título de exemplo, basta citar os trabalhos hidrográficos
e cartográficos que, nos inícios do Séc. XX, efetuaram Hugo Lacerda (4) na Baía de Lourenço
Marques e Ivens Ferraz (5) na costa de L. Marques até ao Bazaruto.

***

Fatores de ordem política, deveres de prestável vizinhança, interesses de evidente


complementaridade, aceleração de múltiplas formas de desenvolvimento, etc., impuseram a
rápida construção de apropriadas vias. No último quartel do Séc. XIX procedeu-se ao
lançamento das primeiras linhas. Em 1890 ligam o porto de L. Marques à fronteira com a
África do Sul; em 1898 ligam o porto da Beira à fronteira da Rodésia. Estavam lançadas as
raízes da maior infra-estrutura em que se baseou a economia de Moçambique.
A rede dos portos e transportes orientava-se no sentido do litoral para o interior. As
estatísticas relativas a este conjunto portuário foram as seguintes entre 1965 e 1970: navios
entrados – 3.700 e 4.210; tonelagem da carga manuseada – 13.706.000 e 17.480.000.
Eram três os sistemas ferroviários existentes: norte, centro e sul. O do norte apoiava-se
no porto de Nacala, cobria uma extensão de 920 kms e dividia-se em duas linhas. O do centro
no porto da Beira e era constituído por três linhas e um ramal, perfazendo um total de quase
mil kms de extensão. Essas três linhas tinham os nomes oficiais de:
a) Caminho-de-ferro da Beira;
b) Trans-Zambesia Railway;
c) Caminho-de-ferro de Tete.
96
A primeira atingia a Rodésia, Botsuana, Zâmbia e Catanga. A segunda permitia o acesso
do Malawi ao mar, servindo também a região de Inhaminga e a Sena Sugar através do ramal
Inhamitanga – Marromeu. A terceira ligava Dona Ana ao Moatize e servia exclusivamente a
região de Tete tendo facilitado enormemente o transporte das máquinas e dos equipamentos
indispensáveis para a construção da Barragem de Cabora Bassa. O sistema sul apoiava-se no
porto de L. Marques e, naturalmente, tinha supremacia em toda a malha ferroviária, quer
porque servia o «hinterland» mais evoluído e mais rico, quer porque movimentava e
controlava os fluxos produtivos de toda a região do Sul do Save. Era constituído por quatro
linhas e três ramais. Além destes três sistemas existiam ainda, com carácter independente, as
linhas de Inhambane e Gaza no sul e, finalmente, a linha de Quelimane no centro.O total das
ferrovias ultrapassava os três mil quilómetros. As respetivas estatísticas evoluíram como se
segue nos anos de 1965 e de 1970: passageiros transportados – 3.751.000 e 5.280.000;
toneladas de carga transportada – 12.622.000 e 16.896.000.

Bibliografia

1) BANTU (1966). Maputaland. Pretoria, África do Sul, julho, pp. 216/7.


2) A Manual of Portuguese East Africa. Londres, 1920. Compiled by the Geographical Section of the Naval
Intelligence Division, Naval Staff, Admiralty, p. 135.
3) Atlas de Moçambique. 1962, L. Marques, Empresa Moderna, mapa de Vias de Comunicação, p. 33.
4) LACERDA, Hugo de (1907). O Porto de Lourenço Marques. Lisboa, Soc. Geog., Comunicação feita na
sessão, pp. 42 e esboço das curvas de igual declinação magnética.
5) FERRAZ, G. Ivens (1902). Descrição da Costa de Moçambique de Lourenço Marques ao Bazaruto.
Memória apresentada ao Congresso Colonial Nacional, Lisboa, pp. 58 e esboço cartográfico na escala
1:1.000.000.
97

10º
DOCUMENTO
Origem do Reino de Cambane-Mondlane que unificou parte dos
Chopes

O estudo que dediquei à etno-história do sul de Moçambique foi complementado por


oito mapas cronológicos (1500 a 1900) nos quais os trajetos migratórios de sete grupos
puderam ser representados com cores distintas: Tsongas, Chopes, Bitongas, Chonas, Vendas,
Angunes e Sothos (1). Para melhor compreensão da geografia e da matéria que se segue,
recomendo a sua consulta atenta.
Julgo fundamental apresentar de forma coerente os elementos que foram sendo
descobertos sobre a formação das primeiras unidades políticas entre as populações autótones
que, mais tarde, os invasores da primeira metade do Séc. XIX designaram por Chopes, “os
que alvejam com flechas”.
Esta abordagem nada tem de original. Foi usada, entre outros, por David Beach na sua
rigorosa e metódica investigação sobre as reações coletivas dos Chonas-Carangas contra esses
outros ferozes predadores ditos Matabeles (Ndebele) – dirigidos por Mezilicazi e pelo seu
sucessor Lubengula. Após receberem sérias ameaças por parte do despótico e sanguinário
Chaca Zulo, seguiram o exemplo de Sochangana, Zuanguendaba, N’qaba e N’guana.
É indispensável que os moçambicanos relembrem as características concretas em que se
baseava a especificidade e até mesmo a superioridade tecnológica da cultura chope. Essas
distinções foram reconhecidas não só por observadores europeus como também por africanos
de diversas etnias.
Defendo a hipótese de que a cultura chope se tenha diferenciado progressivamente da
cultura tsonga, devido à lenta adaptação de cada uma a ambientes ecológicos bem diferentes,
onde predominavam respetivamente, florestas e savanas. Daí as divergências se verificarem,
sobretudo, no domínio material. Há nítida correspondência entre a região onde aquela
primeira cultura se desenvolveu e a faixa mais larga (entre a baía de Inhambane e o rio
Limpopo) marcada com o nº 20 no mapa oficial da vegetação que cobria o sul do Save. O solo
era constituído por antigas dunas do quaternário, beneficiando de uma pluviosidade que
oscilava entre 900 e 1.200 mm anuais. Essa vegetação foi, pelos peritos, definida como
«floresta aberta e savana com matas».
Em face deste e outros elementos, não temos dúvidas em discordar de David Webster
quando, em um dos seus artigos sobre trabalho migratório, se limitou a considerar a extinção
da caça como a mais importante transformação ecológica ocorrida no território chope desde
1870 (2).
O predominante ambiente florestal condicionou e homogeneizou a evolução cultural dos
grupos de imigrantes de díspares proveniências que naquela região se foram concentrando.
Um dos seus efeitos foi, sem dúvida, forçar os varões a tarefas sedentárias e domésticas. Não
existiam aqui esses fortes estímulos da atividade masculina que deram à cultura tsonga
elementos estruturais bastante diferentes: caça grossa, bovinos como exclusivo masculino,
comércio a longa distancia, frequentes guerras inter-tribais.
O homem chope era retraído e mesmo hostil aos contactos com o mundo exterior.
Tinham razões históricas para conservar esse isolamento. No primeiro quartel do Séc. XIX
foram cruelmente vitimados pelo tráfico de escravos. Cerca de 1825 Vasconcelos e Cirne (3)
98
informou que chegaram a ser exportados pelo porto de Inhambane entre mil e mil e
quinhentos escravos por ano.
Regina Fernandes (4) assegura que o tráfico continuou depois de 1830. Vitimou
sobretudo Chopes e Bitongas. Para isso contribuiu a corrupção das autoridades, incluindo
governadores. Há também a considerar a rapacidade dos traficantes locais e a procura
fomentada pelos negreiros estrangeiros (sobretudo franceses que arribavam àquele porto sob
pretexto de avarias).
Também Caldas Xavier, em 1877, os classificou como «os mais selvagens, embora os
mais trabalhadores e industriosos» (5). Desenvolveram uma economia de auto-suficiência mas
dotada de dinamismo. Essas individuais atividades podem explicar o que David Webster
definiu como: “A ênfase egocêntrica da matriz sócio-económica chope que contrastava
vivamente com a atitude etnocêntrica prevalecente na África Austral” (6).
Aplicou as suas energias e o seu poder criativo nas manufaturas, nos trabalhos agrários,
nas exibições estéticas e nas diversões coletivas.
A floresta densa exigia-lhe a confeção de ferramentas pesadas, sendo indispensável a
sua participação na derruba, ao contrário do que acontecia entre os Tsongas dispersos pela
savana arbustiva. Passou a responsabilizar-se por todas as tarefas que exigissem o recurso a
utensílios de ferro. Abundavam ferreiros capazes de fabricar diversificadas armas,
ornamentos, ferramentas, alambiques, moinhos de cana sacarina, etc. Não faltavam
carpinteiros que talhavam excelentes madeiras e que descobriram soluções surpreendentes
como as povoações lacustres contra os guerreiros de Gaza que sabiam ser paralisados por
tabus que proibiam combater em meio aquático. Dedicou-se, com a mulher, à agricultura
intensiva, estimulado pela pluviosidade mais elevada, pela concentração em grandes
povoações e pela introdução de plantas alimentares de origem asiática e americana. Plantas
que os Tsongas rejeitavam por determinação de arreigados tabus.
Outra tecnologia inovadora levou à confeção de palhotas cilíndricas e de teto cónico,
superiores em altura, solidez e área coberta, alinhadas em arruamentos regulares, ladeados por
laranjeiras e outras plantas alimentares exógenas. Inventaram linhas para coser, extraídas de
fibras das folhas de ananás. Descobriram as propriedades alimentares e medicinais dos
subprodutos da mafurreira.
Fama secular tiveram os tecidos confecionados com o córtice da árvore mphana ou
mphai (Ficus sp.) – o “imputeiro” dos Portugueses – que exigiam difícil preparação e que,
além da suas utilidades imediatas (vestuários, mantas, redes, cordoaria, cascos e velas,
cortiços de abelhas, etc.) serviam para pagamento da compensação nupcial e para embalagens
protetoras de artigos de comércio e exportação. Esta utilíssima espécie arbórea era
deliberadamente plantada em quantidades que espantavam os restantes grupos étnicos,
conforme esclareceu Castro Soares em 1729 (7) e como foi ainda recordado pelos
informadores de H. A. Junod (8) no início do Séc. XX.
A criatividade artística dos varões sobressaía na música, nos cantos e nas danças, e
também na significação dos penteados e nas complexas escarificações queloides: “escreviam
na carne a história da sua vida”. Mas esse talento específico tornou-se famoso nas grandes
orquestras de xilofones e prolongou-se até datas recentes, sendo estudado, entre outros, pelo
musicólogo Hugh Tracey que não hesitou em considerar os Chopes com séculos em avanço
relativamente a qualquer outra etnia africana (9).
99
As razões da hostilidade de Ngungunhane contra os Chopes

Desde cedo que Ngungunhane proclamava que as terras de Binguana pertenciam ao


Império de Gaza. No tratado elaborado em Lisboa ficou explicito que herdaria todos os
regulados que seu pai Muzila tinha avassalado. Assim sendo não podia aceitar que nesse
assunto se intrometessem os Lofortes e os Fornazinis que preponderavam em Inhambane
(com o topónimo gentílico de Inhafoco). Também deram especial importância às terras de
Binguane, os dois conselheiros de Ngungunhane, N’tonga e Comahianga, que primeiro se
deslocaram à Ilha de Moçambique para comunicarem ao governador-geral as reivindicações
de Ngungunhane. Convém acentuar que esse Binguane já dera provas concretas de
duplicidade e até mesmo de deslealdade. Fora a Inhambane declarar a sua submissão mas, por
duas vezes, ignorara os pedidos de auxílio militar solicitados pelo governador. Não admira
que o governador-geral Castilho tivesse dado ordens para que fosse, para todos os efeitos,
classificado como rebelde.
Igualmente consta da ata da magna reunião realizada na capital nortenha a 14 fevereiro
1887, que Ngungunhane acentuou firmemente que desejava castigar Speranhana, filho de
Binguana, que em contínuas incursões roubava os seus gados e atacava as suas populações em
Bilene.
Conta o supracitado biógrafo do conselheiro José d’Almeida que, entretanto,
começaram a chegar do sul do Império de Gaza notícias alarmantes. Binguana e seu filho
continuavam a ordenar incursões contra as terras vátuas de Chuahibo, que lhe eram vizinhas,
e também contra as do Bilene Mananga. Estava convencido de que gozava de impunidade
devido às sólidas paliçadas, em que a sua gente vivia no recesso das florestas mais densas.
Estas notícias, umas atrás das outras, levantaram a maior indignação na corte, clamando todos
que era preciso pôr termo a semelhantes desmandos, que se não permitiriam no tempo do
falecido Muzila. Esta indignação generalizada entre os membros da sua corte criou uma forte
corrente de opinião que defendia ser indispensável deixar o Mossurize e partirem em massa
para o Vale do Limpopo. Esta fação acabou por impor a sua vontade e dessa maneira
prevaleceu a decisão coletiva de emigrarem. A deliberação foi comunicada ao Residente que a
transmitiu logo ao governador-geral na Ilha de Moçambique. José d’Almeida (10) ouvido o
Conselho do governo, respondeu que nada tinha a objetar contra a transferência de Manjacase
para outro lugar que o monarca julgasse mais conveniente nas longínquas terras meridionais.
Com efeito Ngungunhane acompanhado por cerca de cem mil pessoas de ambos os
sexos e de todas as idades, na sua maioria pertencentes à etnia Vandau, chefiou a deslocação
para as terras meridionais e escolheu justamente o território de Cambane, governado por
Binguana ou – devido aos efeitos da idade – por seu filho Speranhana.

***

Os Chopes, já preparados para a guerra de extermínio que iria ser movida por
Ngungunhane, construíram grandes paliçadas, no meio de mato serrado, os célebres Cocolos
(khokholwene) (11).
Erskine (12) que em 1871, no próprio reinado de Binguana, fez o percurso de
Mandlacazi a Inhambane, observou em pessoa quatro cocolos. Matshunculu era o mais
extenso e abrigava cerca de 1.500 habitantes. Também prestou a interessante informação de
que todos os cocolos dispunham de colmeias com abelhas domesticadas que, além de
produzirem mel, circulavam sem perigo.
100
Armando Longle (13) que, em 1885, transitou de Inhambane para L. Marques, visitou
os cocolos de Binguana situados entre a respetiva capital e o Xai-Xai. Recordemos que esse
régulo só veio a falecer em 1889 e que, por esta altura, o seu território se alongava do rio
Inharrime até ao Limpopo. Eram quatro os cocolos que primeiro visitou. Foi tuijane que veio
a sofrer os mais duros ataques. Era o melhor preparado para a defesa devido à espessura das
matas. Apresentava, do lado sul, os furos das balas dos atacantes. Os cadáveres dos inimigos
estavam espalhados pelo mato. Longle ainda viu as cabeças espetadas em troncos. Reparou
que em nenhuma destas aringas se encontrava água.
Serrano (14), viajante em 1890, ainda constatou, ao redor das povoações destruídas, a
enorme extensão de terras que a população tinha cultivado, sendo evidente a sua antiga
prosperidade. Mais acrescentou: “As plantações de mandioca, tabaco e ananás eram feitas
com regularidade, ou circundando os caminhos, ou em linhas perfeitamente paralelas; os
terrenos eram cercados para evitar a invasão dos gados… a povoação de Zebute… era muito
importante por ser nela que o Binguane tinha as suas mulheres; as palhotas que ainda se
conservam de pé, são grandes, circulares e todas revestidas de barro interior e exteriormente;
as portas têm relevos curiosos e pinturas extravagantes”.

A intervenção de Cecil Rhodes e da sua Companhia Majestática B. S. A. C.

Duas são as razões que me levaram a interromper o relato sobre a cultura e prosperidade
dos Chopes para apresentar algumas explicações sobre o famoso magnate sul-africano. A
primeira baseia-se no facto de os participantes na grande emigração já referida, necessitarem
desesperadamente de alimentos para poderem sobreviver até à próxima colheita. A segunda
têm como objetivo dar a conhecer as razões que levaram Cecil Rhodes e os seus mandatários
a concentrarem as suas atenções na difícil personalidade de Ngungunhane e nas
idiossincrasias dos seus conselheiros mais próximos. São muito difíceis de resumir os
acontecimentos ocorridos nos últimos anos do Império de Gaza. Nem tão pouco há interesse
em elaborar esse resumo. Tantos são os intervenientes e tantas são as “lendas e narrativas” por
eles publicadas que se torna supérfluo fazer qualquer esforço de síntese histórica.
A presença britânica na África Austral e Oriental teve a particularidade de nela se
haverem empenhado, em simultâneo, missionários, caçadores, exploradores, militares,
capitalistas, empresários, comerciantes, agricultores, etc. Só mais tarde surgiram os minerais
como fontes de riqueza capazes de gerar impulsos expansionistas bem determinados. Graças
às descobertas diamantíferas, a África do Sul depressa atingiu lugar cimeiro na economia
mundial. Os lucros foram tão vultuosos que os produtores conseguiram não apenas cobrir as
despesas efetuadas com a erupção dessa indústria extrativa mas também de dispor de capitais
suficientes para investir em atividades diversificadas e em aquisições territoriais com
potencialidades bem asseguradas.
Entretanto, apareceu em cena a figura de Cecil John Rhodes, (1853-1902) com
preponderância absoluta no domínio da produção diamantífera de Kimberley. Acalentava o
sonho de construir o seu próprio império. Não surpreende que fosse intransigente adversário
político de Paul Kruger.
A fama mundial do “ouro do Rand” atraira para a região uma plebe cosmopolita, os
“uitlanders”, na sua maioria anglófonos que Rhodes procurou utilizar no falhado atentado de
1895/6 contra Kruger, conhecido por “Jameson raid”. Este insucesso levou Rhodes a desistir
do método de utilizar terceiros para concretização dos seus objetivos. Felizmente para si,
101
forças mais poderosas deram forma aos seus planos. A disputa britânica com o Transval
passou a ser conduzida, após 1895, pelo próprio Marquês de Salisbury (adiante Salisbury)
primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido. O seu governo iria
conduzir até 1905 os destinos do Império Britânico, então no auge do poderio universalizado.
Quando em 1886 foram descobertas as riquezas auríferas de Witwatersrand, Rhodes
nunca conseguiu ganhar ali uma posição comparável à que tinha alcançado em Kimberley.
Para compensar este fracasso relativo, acreditava que um segundo Witwatersrand poderia ser
encontrado mais a norte, com os filões que se dizia existirem entre o Limpopo e o Zambeze.
Para concretizar esta ambição decidiu lançar-se na vida política e cedo foi eleito como
deputado no Parlamento do Cabo. Datam dessa época as suas primeiras ligações com os
políticos africaners. Também obteve posição dominante na imprensa para poder defender os
seus interesses nos órgãos de informação pública.
Deve acentuar-se, contudo, que Rhodes nunca defendeu o direto envolvimento britânico
nestes assuntos sul-africanos. Assumiu-se mais como um imperialista que queria reforçar o
poder dos sul-africanos de origem europeia mas não o da supremacia londrina. Assim sendo,
almejava transformar as vastas regiões situadas ao norte do Limpopo numa espécie de império
privativo. Fixou como primeiro objetivo o controlo do reino Matabele dirigido por Lubengula,
herdeiro de Mezilicazi que, como é sabido, também se afastou definitivamente de Chaca.
Uma vez consolidada essa base, procuraria, a partir dela, controlar o saudável e fértil planalto
habitado por pequenas unidades políticas de origem chona, planalto para onde mandou
prospetores fazer o levantamento parcial das milhares e antiquíssimas minas.
Calculou com objetividade os passos a dar para aumentar a sua influência junto de
Lubengula. Começou por solicitar a John Moffat, filho do famoso missionário, que
convencesse Lubengula a aceitar uma modalidade de tratado pelo qual se comprometesse a
não ceder o seu reino quer à Grã-Bretanha quer à África do Sul, ficando desse modo excluídos
outros rivais menos importantes como Portugal, Alemanha e Transval. Esse objetivo foi
atingido a 11 fevereiro 1888. De seguida, encarregou C. Rudd, agente da sua confiança, de
obter na corte de Lubengula uma concessão sem direitos de soberania mas que autorizasse
formalmente a exploração exclusiva e consumada de todos os jazigos minerais existentes no
reino e nas tribos avassaladas e, ainda, que proibisse quaisquer outras entidades de
procurarem nesses domínios tanto terras como minerais. Em troco dessa concessão, forneceria
modernas armas de fogo, munições, equipamentos e toda a espécie de recursos que fossem
solicitados, incluindo os de natureza financeira. Essa concessão foi formalizada a 30 outubro
do mesmo ano. Os direitos foram delegados em uma empresa distinta, da qual Rhodes se
considerava proprietário embora bem apoiado por desconhecidos investidores. Precisamente
um ano depois, por graça real, foi-lhe concedida, em Londres, a cobiçada carta da majestática
British South African Company.
Estes pormenores são aqui deliberadamente relembrados. Eles são indispensáveis para
se compreenderem os resultados, não raro trágicos, da entranhada hostilidade que Rhodes
alimentava contra os interesses de Portugal, hostilidade que o levou a revelar total falta de
escrúpulos quando se esforçou por concretizar esses ideais imperialistas de que não abdicava
e que conseguiu transmitir àqueles subalternos que, quase cegamente, obedeciam às suas
ordens.
São conhecidas as razões que levaram Salisbury a patrocinar a concessão majestática a
Rhodes. O império quase privativo que este sonhava fundar e desenvolver, consolidaria a
presença britânica na África Central trans-zambeziana, sem as limitações orçamentais
exigidas pelo Parlamento, ficando assim neutralizadas as possíveis reivindicações de dois
outros rivais: o rei Leopoldo da Bélgica (e também do Congo) já conhecedor das enormes
potencialidades minerais de Catanga; mais para leste, o controlo das ligações amigáveis e
102
suspeitas mantidas entre os dirigentes alemães instalados no Sudoeste Africano e no
Tanganica e os Africaners do Transval, presididos por Paul Kruger.
Voltando a Lubengula. Nenhuma impressão causaram, a este monarca, os poderes
majestáticos de que se arrogava Rhodes. Recusou, sem explicação, atribuir outras concessões
que ultrapassassem as relacionadas com a exploração mineira. Para sair do impasse, Rhodes
tomou, nos finais de 1889, a radical decisão de que Lubengula teria que ser derrubado à força.
E, se tal fosse necessário, poderia ser eliminado. Como já procedera em relação a Kruger,
mandou organizar um comando de centenas de mercenários com o objetivo de raptar ou
suprimir o rei Ndebele. Mas Lubengula, com a astúcia e resistência de um veterano,
conseguiu escapar a tempo (15).
Após o fracasso de ambos os atentados, Rhodes não sofreu quaisquer represálias nem
mesmo admoestações. Pelo contrário: seis meses depois ascendeu gloriosamente ao cargo de
primeiro-ministro da Colónia do Cabo! Deste modo, a única entidade imperial que poderia
refrear as atividades menos lícitas da B. S. A. C. exercidas nos vastos domínios situados ao
norte do Limpopo, passou a ser chefiada pelo próprio diretor dessa mesma companhia!
Durante cinco longos anos Rhodes governou efetivamente toda a África Austral. Porém, foi
impotente para evitar a segunda e tão sangrenta guerra anglo-Boer, iniciada a 11 outubro
1899. Terminado este sumário sobre o “imperialismo rodesiano”, regresso de novo ao Império
de Gaza. Como se sabe, foi em 9 junho 1888 que Ngungunhane, ainda residindo no
Mossurize, concedeu a Portugal a livre exploração mineira de Manica e Macequece, embora
nunca abdicando das suas naturais prerrogativas de soberania. As melindrosas negociações
que precederam essa decisão real encontram-se minuciosamente relatadas na biografia do
Cons. José d’Almeida (16).
Foi por intermédio do famoso “João” – alto-funcionário governamental e bom
informador com quem comunicava em absoluto segredo – que G. G. Petre, ministro-
embaixador em Portugal, teve conhecimento de um facto consumado e de inegável
importância que, logo a 30 março 1890, se apressou a comunicar a Lord Salisbury. Afinal o
Barão de Rezende (adiante Rezende) já se encontrava instalado em Manica, em simultâneo
com as funções representativas de: a) Oficial do governo português; b) Executivo da (1ª)
Companhia de Moçambique, a qual pagava o grosso dos seus honorários (17).
Uma das suas primeiras decisões, acordada com Paiva d’Andrada, foi a admissão de
arrendatários de quinhões mineiros que iniciassem no terreno as explorações auríferas. Eis os
seus títulos oficiais: Ophir Concessions Limited; East Africa Exploration and Trading
Syndicate; Barbeton Syndicate; Umzilaland Syndicate; Madeira Syndicate; L. R. S.
Watherley; African Prospecting Syndicate; J. H. Jeffreys; Robert Clement; Edmund de
Kergariou; Zambezi (Gaza) Concession Company, Limited; Sabi Ophir Mining Company;
Zambezi (Sofala) Concession Company, Limited. O diretor Resende não podia imaginar que
os dois últimos, chefiados por Moodie e por N. Harrison, já exercessem espionagem a mando
de Rhodes.
Na sua qualidade de Intendente dos Negócios Indígenas em Manica, o referido Rezende
remeteu ao governador-geral de Moçambique dois ofícios datados de 17 setembro e 3 outubro
1890, contendo informações de muito interesse sobre o número e o comportamento dos
célebres pioneiros que atravessaram o Limpopo para ocupar o planalto concedido à
majestática de Rhodes. Seguem-se algumas dessas informações:

“Os homens entrados na Machona foram seiscentos e trouxeram oitenta


carroções, oitocentos cavalos e muitos bois. Construíram uma fortificação a
umas cem milhas de Manica, a que chamaram Hampden, outra a cinquenta
103
milhas no Save de que não sei o nome e uma terceira mais distante, que
denominaram Victoria… Parece que o seu fim principal vindo a Manica foi
alcançar de Mutassa a cedência ou o tratado, para com isso forçarem o governo
português a consentir-lhes comunicações com o porto de Pungué, porque de
outra forma ficariam quase incomunicáveis. O coronel Carrington ficou em
Bechuanalândia com importantes forças… Pude ainda saber que a gente da
Machona, quando a expedição inglesa chegou, fugiu aterrorizada abandonando
o país, e que os expedicionários escolheram o monte Hampden na Machona,
onde ampliaram as fortificações para servirem como seu quartel general” (18).

Esta outra conjuntura – aliada à vassalagem que Mutassa transferiu de surpresa para a
coroa britânica, originando a traiçoeira prisão de Rezende, Paiva d’Andrada e Manuel
António de Sousa – acicatou a decisão de Rhodes para expulsar os Portugueses e de
conquistar uma “saída para o mar”. Também ajuda a compreender a verdadeira razão que
levou Salisbury a exigir a retirada das forças militares portuguesas não apenas da região
banhada pelo Chire e povoada pelos Macocolos, mas também da dos Machonas do planalto
entre o Zambeze e o Alto Limpopo.

Papel desempenhado por Dennis Doyle

Iremos apenas apresentar provas bem documentadas sobre um agente rodesiano com
grande influência, que também procurou prejudicar Portugal quando se esforçou por
consolidar a sua presença em Moçambique. Chamava-se Dennis Doyle. Aparece pela primeira
vez citado no ofício do Eng.º Llamby sobre os acontecimentos de Manica: “La femme de
Manuel Antonio avait aussi été conduite au campement. Mr. de Rezende et moi lui cedâmes
une de nos tentes. Mr. de Rezende m’a dit depuis qu’il avait dû défendre cette femme contre
les obsessions d’un mr. Doyle, qui était en realité le chef de l’expédition, dont mr. le capitaine
Forbes n’était que le bras”. Mais adiante volta a falar em Doyle e desmascara Moodie e
Harrison nestes termos: “… Mr. Forbes partit avec mr. Doyle et un certain nombre de
cavaliers dans la direction de la côte guidés par mrs. Moodie et Harrison… qui, ayant jeté le
masque, ont ainsi affirmé leur cumplicité dans les attentats qui avaient été commis”.
Segundo se infere de um tratado que Ngungunhane efetuou com B. S. A. C. – tratado
que Dennis Doyle subscreveu e no qual foi testemunha importante – já ele se encontrava na
capital de Ngungunhane no início de outubro 1890. Foi Mário Costa (19) que apresentou o
conteúdo deste documento, limitando-se a informar que fora extraído do livro de Eduardo de
Noronha “O Distrito de L. Marques e a África do Sul”. Infelizmente não encontrámos em
qualquer outra fonte, confirmação da existência deste tratado. É, por conseguinte, com a
devida reserva que o vamos transcrever:

Tratado entre a “British South Africa Company” e Ngungunhane

Reunido o grande conselho do país de Gaza, na povoação de Manlagázi, aos 4 outubro


1890, eu, Ngungunhane, rei da nação, concedo solenemente, atendendo às considerações
abaixo exaradas, por mim, meus herdeiros e sucessores, em nome da nação que governo, a
Aurel Schultz, na sua qualidade de representante da “British South Africa Company”, de ora
104
avante designada simplesmente por “Company”, o único, absoluto, perpétuo e completo
direito e poder para exercer os seguintes atos em todo ou parte do território da mesma nação,
ou sobre qualquer território que de futuro lhe seja anexado:
a) Procurar, pesquisar, explorar, extrair e guardar todos os metais e minerais.
b) Construir, aperfeiçoar, equipar, trabalhar, dirigir e fiscalizar obras públicas e
melhoramentos de qualquer espécie, incluindo caminhos-de-ferro, tramways, docas, portos,
pontes, cais, desembarcadouros, canais, reservatórios, trabalhos hidráulicos, lançamento de
viadutos, irrigações, concessões para melhoramentos, materiais, esgotos, drenagens, higiene,
água, gás, luz elétrica ou qualquer outra, estabelecimento de telégrafos e telefones e quaisquer
outros trabalhos de utilidade geral ou pública.
c) Exercer trabalhos mineiros, explorar pedreiras, contratar engenheiros mecânicos e
metalurgistas, fundidores, construtores, empreiteiros, armadores de navios, construtores
navais, oleiros, mercadores, comerciantes, importadores, exportadores, e comprar, vender e
permutar mercadorias ou géneros de todas as espécies.
d) Montar bancos nos seus diferentes ramos.
e) Comprar, vender, fundir e cunhar moeda e permutar metais preciosos em barra,
espécie ou cunhados.
f) Importar e manufaturar armas e munições de todas as espécies.
g) Exercer todos os atos que conduzam ao exercício efetivo, ou proteção de quaisquer
direitos, poderes e concessão por este outorgados.
A Companhia compromete-se a pagar ao rei e seus sucessores, perpetuamente, uma
soma anual de 500 libras ou o seu equivalente em fazendas, à sua escolha – Aurel Schultz,
representante da “British South Africa Company”. – Ngungunhane, M. Dongazi  sinal de
que usa, rei do país de Gaza. – Testemunhas: J. S. Jameson, Dennis Doyle, J. K. Felz. – O
abaixo-assinado declara que este documento foi devida e completamente traduzido a
Ngungunhane, rei do país de Gaza, e aos seus principais conselheiros, e que ele compreendeu
perfeitamente o que nele se contém. – R. T. Felz, conselheiro do rei Ngungunhane. –
Testemunhas: J. S. Jameson, John A. Stevens, Dennis Doyle.

***

De modo geral os investigadores, reconhecem a superioridade da documentação escrita


sobre todas e quaisquer tradições orais. Para ter uma perspetiva correta sobre o tratado
supracitado, há toda a conveniência em compara-lo com a ata que consta do Livro Branco,
apresentado às Cortes na sessão legislativa de 1891, a propósito das negociações do tratado
com a Inglaterra. Esta ata encontra-se transcrita, na íntegra, na biografia do Cons. Almeida
elaborada por Trindade Coelho (20).

Ata da reunião celebrada em Violante (Zefunha) aos 29 dias do mês de


dezembro 1890, a convite do régulo Ngungunhane

Aos 29 dias do mês de dezembro de ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
de 1890, perto do chigacho de régulo Ngungunhane, em Violante, pelas 11 horas da manhã,
onde se achavam reunidos o mesmo régulo e seus mais classificados indunas, bem como o
Intendente Geral de Negócios Indígenas em Gaza, o Conselheiro José Joaquim d’Almeida, o
105
Intendente do Mossurize, Arthur António Matheus Serrano, o Intendente do Alto Save,
Adrião Miguel Xavier, o Subintendente do Inhaoxe, Ricardo Moreira de Sousa e Faro, os
alferes do Exército de Portugal, António Moreira de Sousa, José Augusto de Quadros, e
Manoel de Jesus Barreira, o súbdito russo Maurice Torbin Bretterman, o súbdito britânico
Alexander Deans, os intérpretes Quelimane e Victorino, comigo Ignácio de Paiva Rapozo,
Intendente do Biléne, servindo de secretário da expedição a Gaza, aí compareceram, por
intimação do poderoso potentado vátua, os ingleses Aurel Schulz, Frank Colquhoun, J. Mac
Killican, M. A. Barnett, Fels e sua mulher, que há algum tempo, se encontram acampados
nestas terras, e perante os quais o referido potentado desejava espontaneamente fazer,
segundo afirmou, algumas declarações que reputava indispensáveis, embora elas fossem a
repetição de outras iguais que já por várias vezes, e em épocas diferentes, tem solenemente
feito.
Tomando-se lugares, ficou à direita do régulo S. Ex.ª o Conselheiro Intendente Geral, e
em seguida a este todos os seus empregados, e os Srs. Bretterman e Deans, passando os
indunas para a esquerda de Ngungunhane, que fez sentar na sua frente, e bem separados de
portugueses e vátuas, o Sr. Colquhoun e seus companheiros. Depois de disposta assim a
assembleia, foi o régulo convidado por S. Ex.ª o Conselheiro Intendente Geral a tomar a
palavra e a expor o que tinha a dizer, o que este então fez, dizendo que o seu fim consistia em
tornar bem público, em face dos estrangeiros presentes, que ele e seu povo, assim como seu
avô Manicusse, e seu pai Muzila, eram vassalos fiéis e submissos de Sua Majestade El-Rei de
Portugal; e que, por mais que se dissesse e intrigasse, as terras de Gaza seriam portuguesas,
enquanto ele tivesse vida, e delas fosse governador. Que a bandeira que todos estavam vendo
erguida perto da sua residência nunca seria substituída pela de outro qualquer estado; e que,
tão sincera era esta sua promessa, que no intuito de que seus filhos a respeitassem, os tinha
entregado ao secretário (Intendente Geral), com algumas outras crianças, que no futuro
seriam os grandes do país, para que todos fossem educados em Portugal, e aí estudassem a
língua e os costumes da nação e que deviam pertencer, e se compenetrassem do amor, da
fidelidade e do respeito que lhe deviam tributar.
Que ele, como toda a família Jamine, descendente dos grandes chefes zulus, só tinha
uma palavra; e que, se no seu coração houvesse a mais leve tendência para aceitar a bandeira
inglesa, teria a coragem de o dizer aqui ante os portugueses, como tinha a coragem de dizer
que a recusava, ante os ingleses que o estavam ouvindo. Que isto ficava por uma vez assente,
e que pedia ao secretário que nunca mais duvidasse da sua lealdade, pois que essa dúvida era
para ele um desgosto tão profundo, como o que sentia a mulher inocente e honesta quando
acusada de infiel.
Que é facto que muito ingleses, confessando-se todos seus amigos, e dando-lhe
presentes mais ou menos preciosos, o vinham visitar, procurando uns fazer negócio de peles e
de marfim, outros obter dele concessões de terrenos auríferos, e alguns persuadi-lo a passar-se
para a Grã-Bretanha; mas que, também era certo, que com os primeiros se limitava a negociar,
se isso lhe convinha, respondendo aos segundos, e que nesse número entrava o Shiboquana
(Colquhoun) aqui presente, e Dr. Bertrand que há dois meses se retirou destas terras, que só
El-Rei, e o secretário, podiam atende-los. Aos terceiros, a resposta era invariavelmente a
mesma: que queria ser amortalhado numa bandeira igual àquela que amortalhou o corpo de
sua mãe, a veneranda Uzio.
Que já uma vez disse, e agora repetia, que mandara há tempos o Guio-Guio ao Natal
quando, vendo-se abandonado pelos residentes, e ameaçado por Inhambane e L. Marques,
julgou ter perdido a estima de Sua Majestade, e que Portugal lhe queria fazer guerra, por ele
haver batido o Binguana; mas que, como então, afirmava que esse emissário não fora
incumbido de dizer coisa alguma que comprometesse a sua nacionalidade portuguesa. Que ia
106
apenas informar-se se lá se sabia se nós portugueses projetávamos alguma guerra contra ele, e
pedir aos ingleses que, no caso afirmativo, interviessem perto de El-Rei em seu favor. E, se
voltava agora a este assunto, é porque também aqui estava presente o inglês Bubé (Aurel
Schultz), que vem por parte do governo do Natal a saber do pé de relações em que ele
Ngungunhane está hoje com Portugal, bem como trazer-lhe um saguate, e a quem empraza
por essa ocasião a desmenti-lo.
Que eram estas, e só estas as declarações que bem publicamente desejava fazer, e que,
sentindo-se agora aliviado por as ter feito, nada mais tinha a acrescentar.
S. Ex.ª o Conselheiro Intendente Geral, tomando então a palavra, pediu ao
Ngungunhane para dizer diante de todos a quem pertencia o Chifambobsico, filho do falecido
Mutassa, e régulo de Manica.
A este pedido respondeu o régulo vátua que toda a gente sabia que o Chifambobsico era
seu, desde a submissão imposta ao Mutassa pelas armas de Manicusse; que a tal respeito não
podia haver dúvidas, nem por parte do secretário, que há muito tem na Manica gente a
explorar minas, e uma autoridade portuguesa, nem por parte dos ingleses, visto que estes a ele
se dirigem todos os dias a solicitarem-lhe concessões naquele território. E que nem tal região
podia deixar de pertencer-lhe, desde que o seu domínio se estende até aos Dumas (Machonas)
e vai até ao Motoco. Que além disso a Manica sempre teve desde a sua conquista um
governador vátua: o Maguiguana, no tempo de Manecusse e Muzila, e o Michava atualmente;
e que, com este se encontrava em Violante, o ia mandar chamar à nossa presença.
Perguntando neste momento o mesmo Ex. mo Conselheiro, se o régulo tinha regularmente
recebido impostos de Manica, respondeu afirmativamente, dizendo que os últimos bois que de
lá trouxe o Michava, como tributo, ainda não há dois meses que chegaram, e que se
encontram pastando nas terras abachope de Matinhe, a pequena distância deste lugar. Passado
um quarto de hora apareceu o Michava, que o Ngungunhane a todos apresentou. Depois disto
o Intendente Geral, usando da palavra, disse que acreditava na lealdade do Ngungunhane, e
que folgava de o ter ouvido; mas que os estrangeiros que vinham visitá-lo, é que procuravam
no litoral fazê-lo passar por pouco sincero e por mau português.
E que isto não era uma afirmativa vaga, pois que diante de todos acusava o Sr.
Colquhoun, também presente, de ter asseverado em L. Marques ao Intendente Ignácio de
Paiva Rapozo, que o facto de se encontrar aqui arvorada a nossa bandeira nada significava,
visto o Ngungunhane lhe haver dito, que ele Colquhoun também cá poderia erguer a sua. Que
ao Sr. Bretterman também o mesmo individuo dissera na referida cidade, que os indunas lhe
ofereceram seus filhos para serem educados em Inglaterra, e que havia mesmo entre eles um
que desejava fazer-se inglês.
O régulo e os indunas respondem que tudo isto é falso, e dizem ao Sr. Colquhoun que
apresente a sua defesa, se não são verdadeiras as acusações que, face a face, se lhe estão
fazendo; mas este limita-se a declarar que efetivamente o Sr. Bretterman e Rapozo dizem a
verdade, e que foi ele que faltou a ela, por se encontrar embriagado quando conversou com
eles.
A pedido do Ngungunhane perguntou então o Conselheiro Intendente Geral ao Sr.
Colquhoun, se ele obteve dos vátuas alguma concessão; o interrogado, porém, recusa-se
a responder, apesar do mesmo Ex.mo Sr. lhe ter feito sentir que, sendo aqui legítima e
reconhecida autoridade de Portugal, o estava interrogando oficialmente, e que sabe o
que lhe cumpre fazer para obter a resposta que deseja.
E sendo já três horas da tarde, se deu depois disto a reunião por finda, da qual se lavrou
a presente ata, que vai ser assinada pelo Conselheiro Intendente Geral, pelos demais
funcionários, pelos Srs. Bretterman e Deans, e por mim Ignácio de Paiva Rapozo, Intendente
107
do Biléne, servindo de secretário, que a escrevi, subscrevi e assino. = José Joaquim
d’Almeida. = Arthur António Matheus Serrano, Intendente em Mossurize. = Adrião Miguel
Xavier, alferes de cavalaria. = Ricardo Carneiro de Sousa e Faro. = António Moreira de
Sousa. = José Augusto de Quadros. = Manoel de Jesus Barreira. = Maurice Torbin
Bretterman. = Alexander Deans. = Sinal do Interprete Quelimane + – Sinal do Interprete
Victorino + = Ignácio de Paiva Rapozo, secretário.

***

A intervenção de Dennis Doyle não cessou após esta posição firme tomada
publicamente por Ngungunhane. Merecem meditação os acontecimentos que a seguir são
resumidos.

Viagem de D. Doyle a Londres, com representantes de Gaza.


Conferência na Real Sociedade Britânica, a 29 junho 1891

Acompanhado por D. G. B. Moodie e pelo omnipresente Dr. Leander Starr Jameson


(1857-1917) médico privativo e confidente pessoal de Cecil Rhodes que planeara os dois
atentados já referidos, D. Doyle percorreu a cavalo, em 46 dias, um trajeto de 700 ou 800
milhas entre Manica e a foz do Limpopo. Eram seguidos por uma caravana de 27
carregadores. Pouco depois de ter chegado à corte de Ngungunhane, foi incumbido de se
deslocar a Londres, na companhia de dois enviados do monarca. Na instituição e na data
supracitada, pronunciou uma conferência que foi publicada no nº 13 (nova série) do respetivo
periódico, com o mapa do trajeto (21). Nessa conferência, Doyle fez afirmações e
considerandos que necessitam de retificação.
Entretanto, não pode deixar de se notar como coincidiram com os de Alfred Sharpe, nas
terras de Mpezene, os insistentes elogios que faz ao território atravessado que considerou
como altamente propício a uma densa colonização europeia, obcecação quase mórbida do seu
dono e senhor, Cecil Rhodes. No dia 14 pernoitaram num povoado, perto da antiga capital.
Acentua que havia centenas de povoações abandonadas, em perfeito estado de conservação,
demonstrando que os moradores tinham partido em data recente. A este propósito diz
textualmente:

“Devo explicar que isto foi causado pelo facto da totalidade da tribo
de Ngungunhane se ter deslocado para o sul com o propósito de punir
Sepelanhana que tinha arvorado contra ele a bandeira da revolta”.

Mais afirmou Doyle que, após a chegada à corte, tinha sido informado que a força de
combate de Gaza era constituída por vinte mil guerreiros de puro-sangue Zulu, dos quais
dois mil se encontravam armados com carabinas Martini-Henri. As grandes plantações de
árvores de fruto e a extensão dos campos cultivados asseguravam não haver carência de
alimentos.
No final da conferência o presidente agradeceu a Doyle – como ao outro conferente – as
informações que tinham fornecido e que constituíam contribuições válidas para melhorar os
conhecimentos geográficos. Terminou por agradecer aos dois cavalheiros oriundos do
108
sudoeste africano a quem gostosamente apresentou boas vindas – os enviados do rei
Ngungunhane. Fez votos para que lhe comunicassem que o seu nome tinha ali sido recebido
da maneira muito amigável e que agora se sabia, com geral agrado, que as suas forças
militares atingiam o poder que o senhor Doyle tinha referido. Entre parênteses, é de notar que
esta opinião responsável dá consistência à conhecida hipótese de F. A. Toscano:

“… Estrangeiros que desejavam a guerra por sempre suporem que, num


aguerrido combate entre os dois mil portugueses e os cinquenta mil vátuas do
Gungunhana e seus aliados – Portugal sairia esmagado e viria a perder a
colónia de Moçambique”.

Não se podem deixar passar sem enérgica contestação estas arengas pronunciadas
na Sociedade de Geografia de Londres. Houve evidente má fé por parte do conferencista. É
vastíssima a literatura dedicada à deslocação forçada de muitos milhares de famílias vandaus,
com idosos, mulheres e crianças, deslocação que Ngungunhane julgou indispensável quando
transferiu a sua capital para o território meridional de Cambane. Abundam os testemunhos
dos sofrimentos e morticínios provocados por essa longa migração que se arrastou durante
seis meses. A decisão do monarca esteve decerto ligada ao facto da maioria dos guerreiros
que compunham o seu exército serem de origem vandau. Conhecem-se até os nomes dos
regimentos constituídos por guerreiros desta etnia que atacaram o quadrado de Coolela.
Merece ser denunciada a afirmação de Doyle sobre as características étnicas dos vinte
mil guerreiros que pretensamente faziam parte do exército do Ngungunhane. A distorção
deliberada da verdade ressalta claramente quando se repara no reino Matabele (Ndebele),
dirigido por Lubengula, que conquistou a parte mais fértil e saudável do planalto onde, no
Séc. XVIII, se tinha instalado o celebre Changamire Dombo, fundador do reino dito Rózui. A
documentação já citada comprova que Doyle sabia que os invasores de origem
“zulo”constituíam uma minoria e que, depois de conquistarem as terras altas dominadas pelos
Montes Matopos, chegaram a criar um rigoroso sistema de castas que reduziu os vencidos
rózuis a níveis semelhantes aos dos párias hindus. No reino de Gaza o número de guerreiros
de pura origem zulo (mais propriamente angune) não ultrapassava os dois mil, como foi
constatado em 1887, por Paiva d’Andrada e outros observadores. Concentravam-se em torno
da capital no Mossurize e também na área de Chaimite, onde Sochangana-Manucusse fundou
a capital da segunda casa real.
Também não é verdade que a população deslocada dispusesse de alimentos em
quantidade suficiente. Entre vários outros salienta-se o testemunho de Serrano que observou
famélicos vandaus tentando sobreviver com raízes e frutos silvestres, parcamente alojados em
toscos abrigos de capim.

***

Para rematar, é lícito considerar como derradeira e quase desesperada, a tentativa de


Dennis Doyle para obter de Ngungunhane o tratado que a seguir se transcreve e que, sob título
errado, foi transcrito por Mário Costa (22).
109
Ratificação ao tratado de 4 outubro 1890, entre a “B. S. A. C.” e o régulo
Ngungunhane (15-11-1891)

Faço saber pelo presente, que eu, Ngungunhane Umdungasua, rei absoluto de Gaza,
com a assistência do conselho, recolhidos os votos dos meus conselheiros, reunidos em
conferência a 15 novembro 1891, fiz a seguinte concessão a Dennis Doyle, representando a
“British South Africa Company”:

“A companhia terá o único e exclusivo direito a toda a extensão das terras


desocupadas do meu território; poderá em meu nome, e em meu lugar,
conceder aforamentos por espaço limitado ou perpétuo, arrendar quaisquer
terras baldias, conservá-las perpetuamente, se for necessário, para os trabalhos
da Companhia; tem direito absoluto a cortar, arrancar e transportar madeiras; a
apascentar gado e cultivar a terra, e receber foros provenientes delas; a fazer
concessões quando o ache conveniente, e geralmente a conceder títulos, assinar
aforamentos, e fazer o que seja necessário para tornar efetiva a jurisdição sobre
as terras. Fica entendido que todo o dinheiro e receitas cobradas pelo
aforamento ou venda de baldios, são única e indisputada propriedade da
Companhia para seu próprio uso e beneficio, e eu, Ngungunhane Umdungasua,
comprometo-me a prestar todo o auxilio ao meu alcance para a execução deste
tratado.Em compensação da minha renúncia a quaisquer direitos e interesses
nas receitas e dinheiros provenientes das terras, a Companhia pagar-me-á a
mim e aos meus herdeiros uma soma anual de 500 libras, entregue na povoação
real de Mandlagázi, no 1º de maio de cada ano, ficando este documento nulo se
o pagamento se atrasar seis meses. A primeira prestação será paga no 1º maio
1892”.

***

Na verdade esta pretensa concessão ficou sem efeito devido à conclusão do tratado
definitivo sobre fronteiras, assinado pelos representantes da Grã-Bretanha e de Portugal, a 11
junho 1891. A finalizar todo este conturbado período da história moçambicana pode citar-se a
seguinte observação de Newitt (23): “The ultimate satisfaction for Portugal must have been
the anger of Rhodes at a settlement which efectivelly pulled the carpet from under his
territorial privateering”.

***

Há uma falha grave que necessita de ser denunciada: esquece-se, deliberadamente ou


não, o fidedigno relato do missionário e médico suíço G. Liengme (24) que, com sua família,
viveu mais de dois anos na corte meridional de Gaza. Citarei um episódio trágico que decerto
contribuiu para a desmoralização em que se encontrava Ngungunhane nos últimos tempos do
seu reinado: o falecimento súbito do seu segundo filho Mangua, o único que sabia ler e
escrever e até falar um pouco de português. D. L. Wheeler (25) apresentou uma interpretação
errada quando atribuiu o trágico desfecho à fação antiportuguesa que conspirava na corte. Tal
não podia corresponder à verdade porque Liengme, que assistiu à morte, deixou bem explícito
que ela se deveu a um colapso alcoólico, depois do príncipe ter bebido imoderadamente a
bebida conhecida por sope, que lhe teria sido oferecida pelo residente português. Este
episódio está recheado de mistérios e o próprio conselheiro Almeida não conseguiu apurar a
110
verdade, apesar dos esforços oficiais que efetuou por escrito. Como é lógico, estava bem
consciente que para si e para a Coroa Portuguesa, seria do máximo interesse conservar o
Mangua vivo. Note-se também que o sope não era uma bebida de origem portuguesa. Era
destilado pelos próprios chopes, em grandes quantidades, a partir da cana sacarina. Sem
dúvida que na corte eram frequentes as orgias alcoólicas e Liengme chegou ao ponto de
considerar o monarca como um “ébrio inveterado”. Cita o dia em que ousou contradizê-lo a
propósito dos Chopes, seus mortais inimigos, defendendo que também eram seres humanos e
como tal deveriam ser tratados.

“O monarca reagiu com um furor terrível e invetivou esses desgraçados


Chopes que, segundo ele, deviam ser exterminados ou reduzidos à escravatura”.

Outras observações de Liengme têm o mérito de fornecer mais pormenores sobre o


comportamento do monarca: “… Mas toda a sua política era de tal modo falsa, absurda, cheia
de duplicidade, que se tornava difícil conhecer os seus verdadeiros sentimentos”.
Esses desiquilibrios de Ngungunhane são confirmados por Toscano que escreveu
textualmente: “… Todas as pessoas que lidavam com o Ngungunhane nunca compreenderam
bem o seu feitio reservado, dissimulado e complexo, guiado ao acaso, ao sabor de diversos
interesses e influências”.
Um pouco à margem do assunto principal, convêm elucidar os leitores interessados que
essa obra de Toscano tem inegável valor mas não pode ser citada na bibliografia. E não pode
porque teve a infeliz ideia de se associar a um homem de letras totalmente ignorante sobre a
história do Império de Gaza. Esse pretenso co-autor é aqui designado pelas iniciais J. Q.. O
seu procedimento condenável consta da seguinte carta inédita que Toscano (26) dirigiu a
Mário Costa e que foi encontrada, por mero acaso, no espólio deixado por este sério
historiador:

“Lourenço Marques, 11 novembro 1939


Meu Excelente Amigo!
Estou altamente envergonhado com o meu amigo. Tenho estado doente,
motivo por que não respondi logo à sua carta de 3 outubro findo. Vou contar-
lhe o que se passa com a última edição da “Derrocada”. Como sabe, eu forneci
todo o material para a 1ª, 2ª e 3ª edição da “Derrocada”; paguei a impressão e
encadernação da 1ª e da 2ª edição em 1930 e destas só consegui cem volumes
que ofereci aos amigos. Em 1933/4, arranjei mais elementos para uma 3ª edição
mais completa. O J. Q. que só teve o trabalho de burilar e rever, pega nesta 3ª
edição e vende-a por 12.000$00 aos Editores Nunes de Carvalho, da rua dos
Poiais de S. Bento (ainda existente) e eu, se quis um volume dessa edição tive
que o comprar! Agora dirá meu amigo: porque não o processou? Foi a minha
primeira impressão, mas vieram logo cartas de Lisboa informando-me que o
podia meter na cadeia mas que não lucrava nada com isso e ainda teria de
gastar muito dinheiro etc, etc. O homem desfez-se em desculpas: que tinha a
família doente; que estava na miséria, etc, etc. E, eu fiquei comido! Agora a
propriedade da “Derrocada” é só minha e… mais nada! (por escritura pública).
Aqui tem o meu amigo a razão por que não lhe mando o que me pede, o que
aliás faria com o maior prazer. Da 1ª e 2ª edição mandei-lhe um volume mas a
terceira está mais completa e vem em dois volumes. Os meus negócios são
sempre assim! Se eu montasse uma fábrica de chapéus todos os meninos
passariam a nascer sem cabeça! … Um abraço do seu amigo F. Toscano”
111
Bibliografia

1) RITA-FERREIRA, A. (1982). Presença Luso-Asiática e Mutações Culturais no Sul de Moçambique


(Até c. 1900). Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, Estudos, Ensaios e Documentos, 139.
2) WEBSTER, D. J. (1978). Migrant labour, social formations and the proletarization of the Chopi of
Southern Mozambique. Leiden, Holanda, Afr. Perspectives, 1, pp. 157-174.
3) VASCONCELOS E CIRNE, M. J. Mendes de (1990). Fac-simile da Memória da Província de
Moçambique. Maputo, Arquivo Histórico de Moçambique, Documentos – 2.
4) FERNANDES, M. Regina Pinto (1966). Apontamentos para a história de Inhambane sob D. Miguel. L.
Marques, Monumenta, 2.
5) XAVIER, Caldas (1881). O Inharrime e as guerras Zavallas. Lisboa, Bol. Soc. Geogr., 2ª série (7-8), pp.
480-528.
6) WEBSTER, D. J. (1977). Spreading the risk: the principle of laterality among the Chopi. Londres,
Africa, 47 (2) pp. 192-207.
7) SOARES, Bernardo de Castro (1729). Documentos anexos às plantas (referentes ao mapa da barra de
Inhambane). Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), cx. Moçambique, 1 agosto.
8) JUNOD, H. Alexandre (1927). The Life of a South African Tribe. Londres, 2ª ed, vol. 2.
9) TRACEY, Hugh (1948). Chopi musicians. Their music, poetry and instruments. Londres, Internat. Afr.
Inst..
10) COELHO, Trindade (1898). Dezoito Anos em África: Notas e Documentos para a Biografia do
Conselheiro José d’Almeida. Lisboa, Tipografia de Adolfo de Mendonça, pp. 166/9.
11) LIESEGAND, Gerhard (1974). A survey of the 19th century stockades of southern Mozambique: the
khokholwene of the Manjacaze area. In: “In Memoriam António Jorge Dias”. Lisboa, Junta de
Investigações do Ultramar, vol. 1, pp. 303-320.
12) ERSKINE, St. Vincent (1875). Journey to Umzila’s S.-E. Africa, in 1871-72. Londres, J. roy. geogr. Soc.,
45, pp. 45-128.
13) LONGLE, Armando (1886). De Inhambane a Lourenço Marques. Lisboa, Bol. Soc. Geogr., 6ª série (1),
pp. 13-37.
14) SERRANO, J. A. Matheus (1894). Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 13ª série, 6, pp. 397-447.
15) BIRMINGHAM, David (1996). Britain and the African background to the Ultimatum of 1890. Lisboa,
STVDIA, nº 54/5, p.29.
16) COELHO, Trindade (1898), Idem.
17) NOWELL, E. Charles (1982). The Rose-Colored Map. Lisboa, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar/Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, p. 143.
18) ANDRADA, Joaquim Carlos Paiva d’ (1891). Documentos Relativos aos Acontecimentos de Manica –
setembro a dezembro 1890. Lisboa, Imprensa Nacional, pp. 99-110. Um relatório sobrescrito por Júlio
Fernandes de Solla, encontrado no arquivo da Companhia da Zambézia (5ª secção) confirma o pavor
generalizado perante as cavalgadas da polícia montada criada por Rhodes. “Dizem que povoações inteiras
têm sido apanhadas em consequência dos ingleses terem chegado ali sem ninguém saber. A maior parte das
tropas, segundo as mesmas informações, são de cavalaria”… “De todos os lados fogem dos ingleses. É
impossível descrever bem o terror que o preto tem dos ingleses. Muitos Árabes têm vindo habitar no Prazo
Chabonga, fugidos da Hilala e Manika inglesa”.
19) COSTA, Mário A. (1928). Voluntários de Lourenço Marques. L. Marques, Imprensa Nacional, pp. 18/9.
20) COELHO, Trindade (1898), Idem, pp. 287/90.
21) DOYLE, Dennis (1891). A Journey through Gazaland. Londres, Proc. roy. geogr. Soc., 13 – nova série,
pp. 588/91, 23 junho.
22) COSTA, Mário A. (1928), Idem, pp. 86/7.
23) NEWITT, Malyn (1995). A History of Mozambique. London, Hurst & Company, pp. 676 índex.
24) LIENGME, G (1901). Un potentat africain: Goungounyane et son règne. Suiça, Bull. Soc. Neuchâtel.
Geogr., 13: 99-135.
25) WHEELER, Douglas L. (1968). Gungunhana. In: Bennett, Norman R.; “Leadership in Eastern Africa: Six
Political Biographies”, Boston University Press.
26) O presente autor compromete-se a proporcionar a leitura desta carta a quem estiver interessado.
113

11º
DOCUMENTO
Devido à complexidade da matéria, foi aqui
seguido um critério diferente na citação das
referências bibliográficas. Passam para o final
de cada subtítulo e têm numeração própria.

Resumo dos acontecimentos ocorridos na região setentrional de


Tete, atribuída a Portugal pelo Tratado de 11 junho 1891

Na demonstração cartográfica de Newitt (1) a parcela tetense que aqui merece


tratamento diferenciado foi salientada por meio de linhas paralelas e por este título: “territory
alloted to Portugal 1891”.
Poucos sabem que, anteriormente à Conferência de Berlim, havia pelo menos dois
exemplos concretos da presença oficial e efetiva de Portugal, junto da margem esquerda do
rio Aruângua, um dos maiores afluentes do Zambeze.
A mais antiga foi denominada “Feira do Aruângua Norte”. Não disponho de elementos
sobre a data da sua fundação. Pelo relato escrito cerca de 1667 por Manuel Barreto (2) sabe-se
que um tal António Gomes se havia deslocado àquela região longínqua para ali comprar uns
cinquenta “bares” de marfim, o que correspondia a cerca de doze toneladas. Esperava obter
lucros superiores a 800 %! Todavia, este montante ficara reduzido a metade devido à
aquisição de canoas, aos salários de remadores, aos tributos exigidos por régulos ribeirinhos e,
enfim, às descargas e recargas indispensáveis nas cataratas de Cabora Bassa.
O mapa mandado elaborar pelo Visconde de Sá da Bandeira, datado de 1861, aponta o
paralelo 14 e define Marambo como Terra Portuguesa (3). Também dispomos de um
relatório, que recordo ser excelente, elaborado pelo capitão José M. Correia Monteiro (4). Em
junho 1831, já major e governador de Tete, comandou a célebre expedição ao Muata
Cazembe. Como se sabe levava como adjunto o comandante militar de Sena A. C. Pedroso
Gamito, autor da conhecida obra sobre aquele pioneiro sucesso.
A segunda prova é constituída pela igreja de S. Pedro Claver e pelas vastas
dependências da Missão do Miruro, situada a uns trinta quilómetros ao norte do Zumbo. Foi
visitada cerca de 1937 por J. R. dos Santos Júnior (5). Este arqueólogo forneceu os seguintes
pormenores:

“À roda da Missão há um excelente pomar de laranjeiras e outras árvores


de fruto. Ali brota uma fonte de água magnífica. Numa pequena eira de terra
batida vi um rolheiro de trigo colhido na Missão. Observei algumas espigas que
estavam bem gradas. O Rev.º Padre Bernardino Lopes Maia, que servira como
auxiliar na Missão de Boroma, próxima de Tete, e que viera recentemente para
dirigir e reorganizar a Missão do Miruro – durante tanto tempo abandonada –
recebeu-nos amavelmente e foi cicerone durante a visita, embora estivesse
bastante preocupado porque naquela manhã fora picado por uma mosca tsé-
tsé”.
114
Bibliografia

1) NEWITT, Malyn (1995). A History of Mozambique. London, Hurst & Company, p. 342.
2) BARRETO, Manuel (c. 1667). Informação do Estado e Conquista dos Rios de Cuama. In: G. M. Theal,
“Records of Southeast Africa”, 1898-1903. Cidade do Cabo (África do Sul).
3) SÁ da BANDEIRA, Marquês de (1867). Zambézia e países adjacentes. Lisboa, 2ª Edição.
4) MONTEIRO, José Manuel Corrêa (1859/61). A feira do Aruangua do Norte. Lisboa, Anais do Conselho
Ultramarino. Consta de uma anotação ainda bem legível que este mesmo oficial subscreveu o “extrato de
um ofício dirigido em 13 junho 1830 a M.J.M. de Vasconcelos Cirne, tenente-coronel e governador de
Quelimane”. Presta os seguintes e valiosos pormenores: cerimónias fúnebres do régulo cheua Muasse,
falecido em 1829; sacrifícios humanos (raparigas); dois menores empalados para guardar a sepultura;
recebera a visita do embaixador do Cazembe que tinha iniciado a viagem com vinte pontas de marfim e
cinquenta escravos, contudo na sua rota não só fôra roubado por Muízas mas também perdera homens
devido à fome, restando apenas cinco cazembistas. Termina por informar que durou sessenta e seis dias o
percurso efetuado entre a feira do Aruangua Norte e a povoação de Tete. A mesma referência menciona quer
a “parte não oficial” dos supracitados Anais, quer a “2ª série” e o ano de 1861.
5) JUNIOR, J. R. dos Santos (1940). Missão Antropológica de Moçambique. Lisboa, Agência Geral das
Colónias, 2ª Campanha, agosto 1937 a janeiro 1938.
115

O Reino dos Undis e a irmandade do nhau

Na síntese dedicada à história pré-colonial de Moçambique (1) remontei a origem do


Reino dos Undis às últimas décadas do Séc. XV. Dela constam as razões que levaram o seu
fundador – quando ainda residia em Capirintiua, na cordilheira Dzaranhama – a separar-se do
famoso genearca que mais tarde deu origem ao título dinástico de “Caronga”. Na monografia
etnográfica que dediquei aos Cheuas da Macanga podem encontrar-se mais pormenores (2).
O primeiro Undi emigrou para ocidente, acompanhado pelos anciãos e pelas mulheres
da monarquia dirigente do clã Piri. Acabou por se fixar, com os seus súbditos, na região do
Mano. Talvez a tenha escolhido pela sua evidente vantagem estratégica entre os centros
portugueses no vale do Zambeze e os remotos sertões nortenhos onde os imigrantes, pela
própria tradição oral, sabiam haver abundância de ferro, cobre, marfim, etc. Certo é que o
topónimo Mano passou a abranger todo o território sob controlo direto dos Undis, entre os
afluentes Capoche e Luia. Os conquistadores cedo se impuseram às pequenas comunidades
autótones, ainda de tipo tribal. Os seus monarcas deram provas de superior capacidade
política na arbitragem de disputas entre rivais. Também demonstraram possuir excecionais
poderes de carácter ritual, mágico-religioso e até mesmo sobrenatural.
Remonta a 1614 a mais antiga referência portuguesa a um dos Undis. Tem sido fixado
nesse século o início da expansão dos Undis pelas terras ocidentais dos nsengas. Um esforço
comparativo, conseguiu relacionar a primeira alusão portuguesa a esses monarcas com outra
data, também segura, baseada no facto do Muene Mutapa investido em 1663, ser filho de uma
mulher nobre do clã tembo, instalado nas nascentes do Capoche.
Durante todo o Séc. XVII e grande parte do seguinte, os intercâmbios comerciais foram
baseados no marfim. Tal permitiu o progressivo reforço da autoridade central dos Undis. As
trocas foram aumentando devido:
a) À fundação das povoações do Zumbo e da Feira;
b) À descoberta de jazigos auríferos;
c) À intensificação, pelos árabes de Zanzibar, do crudelíssimo mas rendoso tráfico de
escravos.
A mina do Mano, sita nas proximidades da capital, iniciou a sua exploração em meados
do Séc. XVI. Chegou a produzir quatrocentos mil cruzados de ouro. Os dominicanos já em
1741 ali possuíam um templo. Talvez devido ao esgotamento do precioso metal, o “Bar do
Mano” foi considerado como “perdido” vinte anos depois. Continuava encerrado em 1798,
quando perpassou a expedição de Lacerda.
No Séc. XIX, os Undis não conseguiram, por si sós, satisfazer a intensa procura de
marfim e de escravos. Não admira que os variados traficantes procurassem o contacto direto
com os “vice-reis”, referidos por Langworthy (3), muito embora não fossem instigados por
ambições políticas nem procurassem estabelecer feiras permanentes. Seja como for, o
crescente recurso a violências por parte dos compradores de escravos veio, pouco a pouco, a
transformar-se em fator de desintegração. De início, essa escravatura mercantil desempenhara
a função utilitária de libertar as comunidades tribais dos elementos mais perniciosos e
indesejáveis, especialmente os condenados a ostracismo pelos tribunais consuetudinários.
Depois, outros escravos passaram a ser utilizados, como moeda, nas indemnizações em casos
de ofensas desonrosas, nas compensações aplicadas aos criminosos passionais, nas
reincidências de maus pagadores, etc. Mais tarde, com a intensificação da procura, passou a
recorrer-se a raptados, a prisioneiros de guerra, a forasteiros desconhecidos, etc.
116
Langworthy expressou a opinião de que, em tempos mais recentes, os Undis tenham
perdido a sua hegemonia. Todavia Santos Júnior (4) quando em 1937 visitou a Marávia soube
por Francisco de Sousa, ancião de origem portuguesa, que o Mambo Undi era considerado
como: “Régulo supremo de todas as tribos que se estendiam pela atual Marávia e mesmo pela
Macanga”.
Não irei repetir o que já foi escrito sobre o reino dos Undis e a importância da
sacerdotisa designada por maqueuana (5). Nessa ocasião (1970/1) troquei correspondência
com Langworthy. Adquiri e citei a sua notável tese de doutoramento (6). De passagem,
lamento que não tenha podido ou querido recolher informações sobre os motivos que, em
1935, levaram o Undi reinante a abandonar de surpresa o território moçambicano para se fixar
definitivamente na Rodésia do Norte, em conjunto com a maioria dos seus súbditos. É
também de estranhar que não haja obtido elementos fidedignos sobre a provável correlação
entre os Undis e a irmandade do nhau, apesar de lhe ter enviado o estudo que publiquei em
1968 (7).
Contactei igualmente com Matthew Schoffeleers, esse missionário católico de origem
holandesa que levou o seu rigor científico até ao ponto de concluir um doutoramento em
Oxford e de, mais tarde, ser aceite, no Malawi, como membro da própria irmandade, valendo-
se para tanto do seu ímpar conhecimento da língua e dos costumes gentílicos.
Contudo, as nossas opiniões divergem no que concerne as circunstâncias que instigaram
a criação do nhau. O meu supracitado estudo foi baseado na audição pessoal e sistemática de
grande número de eni mzinda (plural de muini mzinda, dono do lugar secreto) dispersos
pelas circunscrições então designadas por Angónia, Macanga e Marávia. Garantiram,
unanimemente, que o direito à mzinda fora considerado como privilégio hereditário e
irrevogável, concedido pelos soberanos a súbditos que mereciam ser homenageados. Marcava,
por conseguinte, um estatuto social assaz elevado, de tipo aristocrático. Os eni mzinda que
entrevistei – fossem ou não reconhecidos como dirigentes pela administração europeia – eram
descendentes dos distinguidos pelos sucessivos monarcas.
Sendo esta a minha convicção, naturalmente que também discordo da seguinte hipótese
avançada pelo mesmo missionário e investigador: os invasores maraves teriam herdado de um
preexistente e primitivo povo de caçadores e coletores (designados por macafulas) não só a
irmandade do nhau como também os cultos territoriais de Chissumpe e de M’bona.
Contudo, na sua carta de 22 novembro 1972, teve a gentileza de me dirigir o seguinte
apelo: “I thank you for your notes on Undi, particularly where you say that the nyau were
used by Undi to maintain national unity. I wish you would write something on this, because it
is absolutely crucial to our understanding of Maravi history, etc”.
A interpretação que então elaborei e que continuo a manter, também foi confirmada
pelas tradições recolhidas pelo funcionário administrativo J. Garrido (8) que, na sua
monografia etnográfica sobre os “Azimbas”, deixou bem evidente o estreito relacionamento
que existiu entre os Undis e a irmandade.
Posteriormente escutei, com natural agrado, o apoio incondicional do etno-musicólogo
austríaco Gerhard Kubik (9) que em 1967 efetuou trabalhos de campo entre os Manganjas do
sul do Malawi. Recordo bem o encontro ocorrido na residência de Margot Dias – a notável
musicóloga e investigadora da condição feminina entre os Macondes – quando
espontaneamente garantiu que naquela região tão meridional havia constatado integral
correspondência entre os dados que pessoalmente conseguira recolher e os complexos
pormenores sobre a irmandade que procurei relatar.
117
Ainda a propósito de Schofeleers, admito que não me foi possível consultar três dos
seus estudos que, sem dúvida, continham elementos capazes de facilitar a interpretação do
polémico tema (10) (11) (12).
Para resumir. Mantenho a convicção de que a irmandade foi criada pelos Undis com um
objetivo bem concreto de política interna. Perante a faceta, decerto introvertida, das muitas
tribos que compunham a “nação” dos Undis, parece válida a hipótese da irmandade ter sido
criada como um meio eficiente de desenvolver um autêntico espírito “nacional”. É do
conhecimento dos etno-historiadores que, antes de surgirem monarcas ambiciosos e movidos
por ideais de unificação, tanto os Zulos (ou melhor “Angunes”) do Natal como os Chonas (ou
“Carangas”) do planalto interior, se dividiam em cerca de duas centenas de tribos sempre
prontas para defender por todos os meios as fronteiras tradicionais.
Tenha-se em mente que ao novo reino dos Undis convinha fomentar a livre circulação
de pessoas e bens e que, para atingirem esse objetivo unificador, procurassem eliminar os
antigos litígios fronteiriços. Assim sendo, a admissão ao local sagrado era consentida, sem
reservas, a todo e qualquer forasteiro que, graças ao conhecimento da linguagem secreta,
demonstrasse a sua filiação e pretendesse que lhe fossem reconhecidos plenos direitos de
participação e de circulação.
D. W. Phillipson, na sua obra principal (13) apresenta na fig. 97 um desenho com
gravuras esquemáticas algo semelhantes às de Chicolone que oportunamente serão referidas.
Logo de seguida, no texto subjacente, faz uma afirmação perentória mas difícil de aceitar: as
figuras líticas teriam ligação com os cerimoniais do nhau. Depois, remete o leitor para
outra das suas obras publicadas em Nairobi no ano de 1976: “The Prehistory of Eastern
Zâmbia”. O facto de me ter sido impossível a sua consulta, não impede que desde já discorde
da explicação avançada. Esta discordância baseia-se numa constatação irrefutável. Na vasta
área geográfica – nela incluindo Moçambique – onde a irmandade desenvolveu com
relativa liberdade as suas múltiplas atividades, não tenho notícia da existência de desenhos
rupestres semelhantes aos que constam da obra supracitada.
É de supor que as complexas formalidades tradicionais do nhau se encontrem hoje
reduzidas a meras curiosidades folclóricas capazes de despertar algum interesse turístico. De
um pequeno e recente guia sobre a Província de Tete, consta – lado a lado com a grande
albufeira de Cabora Bassa – a seguinte nótula que me abstenho de classificar (14): “A dança
nhau exige bastante agilidade do seu dançarino, o qual ostenta uma enorme e medonha
máscara de madeira. Dançada ao som de batidas fortes de tambor, é também dança tabu de
rituais de iniciação.”
118
Bibliografia

1) RITA-FERREIRA, A. (1982). Fixação Portuguesa e História Pré-Colonial de Moçambique. Lisboa,


Instituto de Investigação Cientifica Tropical/Estudos, Ensaios e Documentos, nº 142.
2) RITA-FERREIRA, A. (1966). Os Cheuas da Macanga. L. Marques, Mem. Inst. Invest. cient. Moçamb., 8,
Série C (Ciências Humanas), pp. 1-332.
3) LANGWORTHY, H. W. (1969). A Political History of Undi’s Kingdom to 1890: Aspects of Chewa
History in East Central Africa. Universidade de Boston (U. S. A.), Tese de Doutoramento.
4) JUNIOR, J. R. dos Santos (1940). Missão Antropológica de Moçambique. Lisboa, Agência Geral das
Colónias, 2ª Campanha, agosto 1937 a janeiro 1938.
5) RITA-FERREIRA, A. (1966), Idem.
6) LANGWORTHY, H. W. (1969), Idem.
7) RITA-FERREIRA, A. (1968). The Nyau brotherhood among the Mozambique Cewa. Joanesburgo,
South Afr. J. Science, 64 (1), janeiro, pp. 20-24.
8) GARRIDO, J. (s/d). Os Azimbas. Datiloscrito original, não publicado.
9) KUBIK, Gerhard (1968). Ethno-Musicological research in southern parts of Malawi. Soc. Malawi J., 21
(1) pp. 20-33.
10) SCHOFFELEERS, J. M. (1972). The Chisumphi and Mbona Cults in Malawi: A Comparative History.
Lusaka, Paper read at the Conference on the History of Central African Religions.
11) SCHOFFELEERS, J. M. (1975). Nyau Symbols in Rock Paintings. Republic of Malawi, Department of
Antiquities, Occasional Papers.
12) SCHOFFELEERS, J. M. (1976). The nyau societies: our present understanding. Soc. Malawi J., 29 (1),
pp. 59-68.
13) PHILIPSON, D. W. (1977). The Later Prehistory of Eastern and Southern Africa. Londres
(Heinemann), p. 277.
14) Moçambique: Terra de Contrastes…. (1997) Maputo, Fundo Nacional de Turismo, p. 10.
119
Carl Wiese, o sertanejo de origem germânica que amou e lutou por
Moçambique

Carl Wiese nasceu na Alemanha cerca de 1860. Emigrou para Moçambique em 1883.
São escassas as informações sobre os seus laços familiares e a sua formação académica ou
profissional.
Dominando tanto o inglês como o francês, depressa conseguiu emprego como guarda-
livros. Facilmente aprendeu a língua portuguesa. Pouco a pouco se foi integrando nos núcleos
comerciais de Quelimane e de Tete, principalmente interessados no negócio do marfim. Em
1885, devido à crescente escassez desse precioso despojo, tomou a decisão de averiguar, por
sua conta e risco, quais os sertões do interior onde ainda abundassem os proboscídeos. Em
março, com uma caravana de trezentos carregadores, partiu de Tete e seguiu o curso do
Zambeze até Cachomba.
Wiese seguiu a rota do noroeste em direção ao Aruângua. Ocasionalmente, alguns dos
seus caçadores vieram a cruzar-se com um pelotão de guerreiros angonis. Pertenciam ao
famoso Mpezene que, na década de 1860, tinha decidido estabelecer-se naquela zona salubre,
após a fragmentação do reino sedentarizado e engrandecido na margem oriental do lago
Tanganhica, reino fundado pelo conhecido Zuanguendaba, senhor seu pai. Wiese pediu ao
comandante que fosse portador de uma oferenda para o soberano. Dois meses depois, já no
início de 1886, foi visitado por uma embaixada de alto nível transmitindo o convite de
Mpezene para se estabelecer nos seus domínios. Agradeceu e, quando julgou oportuno,
deslocou-se à capital para prestar homenagem pessoal ao monarca. Este ficou bem
impressionado e concedeu-lhe autorização para fixar residência em Metengulene.
Ao tomar esta decisão, Wiese levou em consideração vantagens de diversa ordem:
dispor de maior liberdade de ação, beneficiar da proteção das forças angonis, viver afastado
das questiúnculas políticas e também da concorrência de rivais munidos de armas de fogo,
como os traficantes árabes ou suahilis oriundos do litoral e os chicundas ao serviço exclusivo
dos muzungos mais ou menos independentes que usavam e abusavam dos títulos oficiais
concedidos.
Metengulene também facilitava a Wiese o início de contactos com unidades políticas
mais longínquas, como aconteceu em relação aos Bisas, a ocidente do Aruângua. Esta grande
atividade proporcionou-lhe um invejável conhecimento dos sertões setentrionais muito
distantes da atual fronteira nortenha de Tete. Convém acentuar que era já fluente em várias
línguas vernáculas e procurava conviver com naturalidade e ampliar os seus conhecimentos
sobre os usos e costumes das diversas etnias.
Graças ao Memorandum, datado de 1891 que publicou em Lisboa, conhecem-se os
percursos que efetuou e as estações comerciais que fundou (1). Naturalmente que se reveste
de redobrada validade histórica a impressionante síntese introdutória elaborada por Harry W.
Langworthy (2) sobre as múltiplas atividades desenvolvidas por este pioneiro, atividades que
podem ter contribuído para a cedência britânica quando se discutiu o prolongamento do
distrito de Tete até ao paralelo 14. Este erudito americano preencheu a contento a lacuna que
parece verificar-se na interpretação de N. Newitt (3) que dedicou cinco magras linhas a
Wiese.
Não é meu propósito discorrer sobre a supracitada introdução. Acrescentarei apenas
informações fidedignas sobre algumas das atividades em que esteve envolvido Carl Wiese.
Durante o escrutínio que tive oportunidade de efetuar, durante dois anos, no arquivo da sede
lisboeta da Companhia da Zambézia, deparei com documentação inédita ou mal conhecida
sobre o dinâmico sertanejo alemão.
120
Entre estes documentos está o mapa publicado em 1892 (4). Antes de se referir a este
importante contributo, Langworthy (5) reconheceu que, como explorador, Wiese possuía
extenso conhecimento da área e das próprias línguas e costumes dos povos nativos. Como
resultado, ele foi simultaneamente mais preciso e mais detalhado nas suas participações para o
conhecimento cartográfico. Muito embora se tenha baseado nos mapas elaborados por
Livingstone nessa área, o seu constitui um documento mais sistemático. Contudo, por razões
que Langworthy não apurou o seu mapa não foi publicado pelos portugueses e, do mesmo
modo aquele que foi publicado em Londres não teria conseguido larga circulação e, como é
evidente, não havia merecido a atenção da “Royal Geogaphical Society” de Londres.
A verdadeira razão parece ser diferente da que foi sugerida pelo historiador americano.
Baseia-se ela no facto do documento estar recoberto por um grande número de informações
impressas em letra miúda, com intenções de carácter publicitário, sobre a orologia, a
hidrografia, os grupos étnicos, as principais rotas, as regiões auríferas, os bens produzidos, as
estações comerciais, os mais antigos mercadores de Tete, os contactos com o litoral, as
ligações marítimas, etc, etc.
Como não me canso de afirmar e de repetir, esse precioso e volumoso acervo
documental, foi mandado destruir, pouco depois, pelos corpos gerentes daquela empresa que,
desde 1892 a 1930, teve importância fundamental desde o Zumbo até ao rio Licungo, e desde
Marromeu até Missale.

Bibliografia

1) WIESE, Carl (1891). Memorandun acerca das expedições realizadas na Zambezia Septentrional
durante os annos de 1885 a 1891. Lisboa, Imprensa Nacional.
2) LANGWORTHY, Harry W. (1983). Expedition in East-Central Africa, 1888-1891, a report by Carl
Wiese. Norman, University of Oklahoma Press, ed., introd. & coment.
3) NEWITT, Malyn (1995). A History of Mozambique. Londres, Hurst & Company, p. 352.
4) Ruggs’ New Map of the Western Nyassaland Gold Fields, Specially Illustrating the Explorations of
Carl Wiese (1892). London, Rowland Rugg.
5) LANGWORTHY, Harry W. (1983), Idem, p. 7.
121

A expedição portuguesa ao Mpezene

Como é sabido, em novembro 1888 o governador-geral Augusto de Castilho visitou


Tete, durante a preparação da sua vitoriosa ofensiva contra a aringa de Massangano,
reocupada pelo Bonga Metontora.
Carl Wiese entendeu que devia cumprimentá-lo e, na verdade, foi por ele recebido com
deferência. Aproveitou o encontro para acentuar, convictamente, os benefícios que traria à
coroa portuguesa dar a Mpezene e aos seus “grandes”, demonstrações de paz e de amizade.
Aumentariam, desse modo, as oportunidades para estabelecer contactos com outras unidades
políticas onde os Portugueses continuavam a ser os únicos europeus conhecidos desde o Séc.
XVI.
O governador-geral ficou impressionado com os argumentos e as sugestões
apresentadas. Tomou a imediata decisão de enviar àquele soberano angoni uma expedição
oficial na qual participaria Wiese, como agente intermediário.
Esta iniciativa foi concretizada tendo sido nomeado, como representante da coroa, o
tenente Augusto da Fonseca de Mesquita e Solla, com largos anos de vivência naqueles
sertões e portador de mensagens dirigidas pelo governador-geral, a Mpezene e a seu irmão
Mepambera (também conhecido por Mebelua) (1).
Em julho 1889 foram iniciados os preparativos. Despediram-se a 7 março. O premente
problema dos carregadores foi resolvido por Wiese de maneira simples e eficaz: uniu-se
maritalmente com Dona Romana, mestiça afro-portuguesa com casa montada na vila,
descendente de uma importante família da Zambézia, detentora de diversos Prazos da Coroa,
entre os quais o de Inhassanga que Wiese, por vezes, declarou ser sua pertença. No seu
célebre relatório jamais mencionou esta relação. Mas ela foi testemunhada por Alfred Sharpe,
o agente britânico que, em 1890, também apareceu em cena quando efetuou a sua visitar a
Mpezene.
A expedição prolongou-se até ao começo de 1891. Falharam os seus objetivos oficiais
porque não foi conseguido que Mpezene prestasse definitiva vassalagem a Portugal. Disso
veio a tirar proveito a coroa britânica, graças aos esforços desenvolvidos pelo dito Sharpe,
como mais adiante será referido.
Sob a perspetiva estreita dos seus interesses privados, a expedição foi ruinosa para
Wiese porque, ao contrário do prometido, não recebeu quaisquer recompensas pelas elevadas
despesas efetuadas com a manutenção da caravana.
Foram infrutíferas as suas deslocações a Tete e até teve dificuldade em conseguir que o
governador o reembolsasse dos empréstimos feitos aos militares com soldos cronicamente
atrasados. Só mais tarde foi de algum modo recompensado por meio de concessões e de
outros direitos outorgados pela própria Companhia da Zambézia.
Na impossibilidade de consultar a documentação portuguesa, H. W. Langworthy teve
que se conformar com as escassas informações que obteve sobre as atividades exercidas pelo
súbdito alemão Carl Wiese quando, nos princípios de 1898, regressou definitivamente ao
território de Moçambique.
Abandonara as suas funções na North Charterland Company pouco depois da derrota
que as forças britânicas tinham infringido aos angonis de Mpezene, derrota que ao tempo se
notabilizou não só pela fraca resistência dos vencidos como também pela confiscação dessa
grande quantidade de gado bovino que, segundo o direito consuetudinário vigente em todos os
reinos de origem angune, pertencia exclusivamente ao monarca.
122
Sabe-se que em julho 1900 Wiese indicou, como endereço pessoal, a povoação
fronteiriça de Chilomo, onde o afluente Ruo desagua no rio Chire. Aquele endereço,
juntamente com outros indícios, comprova as atividades que Wiese procurou desenvolver nos
Prazos do Chire. Como se sabe, foram negativamente apreciadas pelo germanófobo
Comissário Régio na Niassalândia, Sir Harry Johnston.

Bibliografia

1) WIESE, Carl (1891/2). Expedição portuguesa a Mpezene. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, de 10ª série (6/7): 235-
273 até 11ª série (8): 519-599.
123
O enigma das máquinas trituradoras

Durante o tempo em que desempenhei funções administrativas na Macanga, os deveres


profissionais levaram-me ao posto de Vila Gamito – um dos três existentes na vasta
circunscrição. Não longe da pequena mina de ouro ali em atividade deparei, por simples
acaso, com algo de insólito: enormes, sofisticadas e pesadíssimas peças de qualquer máquina-
ferramenta, encontravam-se dispersas e quase invisíveis sob o capim muito alto. Mais adiante
constatei a existência de uma quantidade substancial de tijolos bem cozidos e sem vestígios de
terem sido usados.
Durante mais de três décadas referi o assunto a alguns engenheiros de minas e a outros
conhecedores da região. Nunca encontrei quem me esclarecesse sobre a inusitada descoberta.
Esta esperança só se concretizou, muito mais tarde, depois de ter regressado definitivamente a
Portugal, quando participei no projeto de microfilmagem da documentação sobre
Moçambique. Para ser mais explícito, julgo ter encontrado explicações credíveis sobre o
enigma, quando procedi ao inventário do arquivo da antiga sede da Companhia da Zambézia.
Seguem-se os pormenores que consegui apurar.
Entre as múltiplas consequências desencadeadas pela ofensiva do Changamire Dombo
nos finais do Séc. XVII, contou-se o declínio rápido e desolador da soberania portuguesa
devido à obstrução imposta à indústria extrativa. Contudo, embora utilizando processos
rudimentares, encontravam-se ainda em exploração, nas últimas décadas do Séc. XIX, os
quartzos auríferos de Chifumbazi, Missale, etc, e as areias aluvionares dos rios Luia, Mazoi,
etc. A insegurança geral excluía a hipótese do desenvolvimento mineiro baseado em
maquinaria e em processos de mineração modernos, que exigiam avultados capitais.
Podem ser simplificadas como se segue as concessões depois feitas à Companhia da
Zambézia:
a) Exclusivo da exploração das minas de ouro, diamantes, carvão, ferro, cobre e outros
quaisquer metais;
b) Exclusivo da caça ao elefante e outros paquidermes;
c) Exclusivo da pesca de pérolas, esponjas e corais;
d) Exclusivo das florestas;
e) Exclusivo do comércio ambulante;
f) Exclusivo da construção de caminhos-de-ferro, estradas e outras obras públicas;
g) Exclusivo da administração dos Prazos da Coroa não arrendados;
h) Exclusivo daqueles cujos arrendamentos fossem terminando;
i) Exclusivo dos que fossem sendo de novo constituídos com direito à cobrança de
tributos impostos aos indígenas, sob a forma de géneros ou de trabalho.
Para melhor avaliação dos esforços desenvolvidos no sentido de serem explorados
proveitosamente os largos poderes concedidos, há que ter em linha de conta as dificuldades
que tolhiam os ramos de atividade que não operassem em regiões pacificadas e seguras.
Apenas em relação às jazidas de Missale e Chifumbazi, estudadas por Carl Wiese em 1890 e
1894, foi possível obter satisfatórios elementos técnicos.
Em 1903, embora tivessem sido efetuadas diversas pesquisas, as atividades mineiras
paralisaram quando surgiu a primeira guerra do Báruè. Extinto esse foco de rebelião, logo no
ano seguinte a Companhia entrou em fase renovada de valorização mineira graças à abertura
em Tete da sua Repartição de Minas. Contudo, veio a constatar-se que a legislação em vigor
exigia taxas tão elevadas que se podiam considerar proibitivas. Além disso, as deficiências
124
legislativas obrigavam os interessados a tratar quer com a C. Z. quer com as autoridades
estatais. Chegavam ao ponto de desistir quando não encontravam quem tivesse oficialmente
investido com as competências necessárias. Não se sabia onde se poderia registar um
manifesto mineiro nem quem pudesse autenticar um título de posse.
Isto explica a razão por que a nova tabela de taxas foi bem acolhida. Efetuaram-se
importantes reduções e adaptações. Ao terminar o ano de 1904 tinham sido concedidas mais
de sessenta licenças para pesquisas e registados quase mil e quinhentos manifestos. A Carl
Wiese foram concedidos mais de dois mil e quinhentos claims.
Os pesquisadores que afluíram a Tete foram em princípio orientados para os pontos
onde já se conhecia a existência dos minerais com maior interesse. Escolheram em geral toda
a região sita no ângulo Capoche-Luia. Os resultados foram animadores.
À Companhia Hulheira da Zambézia fora concedido em 1894 o exclusivo da
pesquisa e lavra de carvão e outros minerais. Iniciou os seus trabalhos nas jazidas de Matinte
onde extraiu duas mil toneladas. Contudo foi forçada a abandonar a exploração porque o custo
do seu transporte até ao Chinde era tão elevado que se vendia por preço idêntico ao do Cardiff
britânico, de qualidade muito superior. Devido a esta suspensão, por tempo indefinido, a C. Z.
moveu-lhe uma ação judicial para rescisão do contrato de subconcessão. Como a sentença lhe
foi favorável, todos os direitos mineiros que de início haviam sido concedidos à hulheira
regressaram à posse da vencedora.
É de admitir a hipótese de que, na sequência desta decisão, Carl Wiese haja
desenvolvido esforços no sentido de atrair capitais germânicos e britânicos. De facto, em 1904
organizou-se em Berlim uma companhia com a designação de Zambezia
Bergbaugesellschaft. Sabe-se que enviou para o Chifumbazi uma missão de pesquisa. É de
aceitar a hipótese de haver concluído que a exploração não seria rentável.
Feliz ou infelizmente foi, no mesmo ano, constituída em Londres a Campbell’s
Zambezia Minerals Company para a exploração das propriedades que Mrs. Robinson e o
capitão Campbell possuíam na qualidade de sub-concessionários. Enviou para Tete baterias
de pilões para tratamento de quartzo aurífero das minas de Missale. Nestas minas – também
exploradas por outros sub-concessionários da C. Z. (Obrist & C.º) – tinha a companhia
londrina obtido em 1905 uma barra de ouro de 130 onças como produto da trituração de
sessenta toneladas de quartzo. Os primeiros pilões instalados apenas serviram para ensaiar os
filões auríferos, tendo mais tarde sido enviada para o Chifumbazi uma bateria de cinco pilões
Krupp capaz de esmagar vinte e cinco toneladas de quartzo por dia.
Além daquela que encontrei no arquivo da C. Z., existe sem dúvida mais documentação
sobre este assunto. Por via indireta vim a apurar que R. C. F. Maugham (1) alude ao facto de
no Chifumbazi haver duas galerias e de que, no final de 1906, tinham sido extraídas cerca de
quinhentas toneladas de quartzo com uma média de apenas uma onça de ouro por tonelada.
Em boa verdade, não era possível competir com o ouro produzido no Transval. Merece
atenção o seguinte exemplo. Vim casualmente a apurar que, já em 1870, pilões semelhantes
operavam no norte do Transval. No relato do seu alternativo e pessoalmente escolhido trajeto
até L. Marques, o alferes Fernando da Costa Leal – que acabara de participar em determinada
comissão diplomática – incluiu a seguinte informação (2):

“… Nas minas de ouro do rio Tati, para ir às quais se passa pelo


Transval, estava trabalhando uma máquina de esmagar o quartzo aurífero que
preparava diariamente vinte toneladas dessa matéria, cada tonelada produzindo
vinte e duas onças de ouro, o que dava o produto diário de 440 onças,
equivalente a 1.760 libras esterlinas por dia. No mês de fevereiro vira eu a dita
125
máquina em Potchfestroom, vinda de Inglaterra com o fim de seguir para o
interior.”

Nesta pequena descoberta podem encontrar-se os motivos do fracasso económico dos


pilões de Chifumbazi. Ainda para efeitos comparativos acrescentarei que os pilões vistos por
Costa Leal foram os primeiros a atuar no Transval. Os seus restos exibiam-se entre
Pietersburg e Potgietersrus e foram transformados em motivos de orgulho nacional e, a partir
daí, em autênticas atrações turísticas.
Avento a hipótese de que a pesada maquinaria encontrada em Vila Gamito tenha sido
transferida no mar alto, com guindastes de bordo (?), para os lanchões que normalmente se
encostavam aos vapores, lanchões que a C. Z. cedo adquiriu para transporte de passageiros e
mercadorias.
Só as ferrovias permitiram dispensar substancial quantidade de mão-de-obra indígena.
Em 1904, a utilização intensiva do novo troço que ligou Quelimane ao Maquival, permitiu à
C. Z. transportar todo o material necessário à construção dos caminhos-de-ferro da
Niassalândia, evitando desse modo o recurso a muitos milhares de carregadores compelidos,
mal pagos e mal alimentados.

Bibliografia

1) MAUGHAM, R. C. F. (1906). Portuguese East Africa – The History, Scenery & Great Game of Manica
and Sofala. London, p. 276.
2) LEAL, Fernando da Costa (1943). Viagem na África Austral. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 61ª série (5/8) p.
327.
126

O êxodo da população

Na verdade, o transporte, mesmo feito em embarcações fluviais ou em carroções boers,


exigia a mobilização forçada de milhares de homens robustos. Esta prática era legalmente
justificada como cobrança do mussoco, isto é, o tributo exigido pelos concessionários dos
Prazos, entre os quais se compreendia Carl Wiese.
Não é para admirar que o caso dos pisões do Chifumbazi e muitos outros empregos
intensivos da mão-de-obra compelida, tenham levado parte substancial dos varões válidos e
ativos a transferir as suas povoações para os territórios sob a soberania britânica, onde os
salários eram bastante mais elevados e onde dispunham de total liberdade para escolher o
empregador e o tempo de trabalho prestado.
Os dirigentes da C. Z. viam, desse modo, comprometido o futuro desenvolvimento das
suas atividades. Por considerarem fundamental que esse êxodo populacional fosse estancado,
exigiam às autoridades governamentais a urgente implantação de medidas eficazes,
aparentemente sem terem consciência das culpas que lhes podiam ser assacadas.
O próprio Carl Wiese publicou a este propósito, em Lisboa, um estudo bem
fundamentado que intitulou: “Labour Question em nossa casa” (1). Em uma das suas
conclusões deu repetida ênfase ao facto do “terceiro império português” ser duramente
afetado pelo problema estrutural e quase insolúvel da falta de capitais.
Lutando, como lutava, com graves carências financeiras, não seria possível à metrópole
fornecer às populações colonizadas os meios necessários para poderem beneficiar, sem
grandes demoras, dos melhoramentos proporcionados pela civilização da técnica e da ciência
aplicada. Se Portugal não pudesse enveredar por esse caminho, viria a sofrer os perigos
inerentes à estagnação. Para sair desta situação dramática, sugeriu que se atraíssem os
investidores estrangeiros e, ainda, que o Estado promovesse a formação de credíveis
companhias privadas às quais deveria conceder poderes majestáticos.
Só desse modo poderia a colónia de Moçambique beneficiar dos estímulos
indispensáveis para que fosse elevada a posições de vanguarda no desenvolvimento sócio-
económico. Portugal, como colonizador, poderia então ficar liberto das despesas que, durante
largos anos, haviam contribuído para a sua estagnação senão mesmo para o seu retrocesso.
A sugestão de Wiese foi aceite em relação às companhias majestáticas de Moçambique
e do Niassa. É verdade que se verificaram fracassos. Mas também há a reconhecer apreciáveis
sucessos. Aos domínios da C. Z. foi concedido um estatuto diferente e que, não raro,
duramente a afetou devido à crónica morosidade e à gritante incompetência dos órgãos
estaduais. Medite-se neste desabafo de Mariano Machado (2):

“A verdadeira situação das autoridades da África Oriental é esta; os


governadores de distrito nada podem ou devem resolver sem consultar o
governador-geral; feita a consulta, é na maior parte dos casos, senão em todos,
transmitida ao Ministério da Marinha e Ultramar; raro é que em nossa vida se
consiga a resolução satisfatória de qualquer problema…”.

Langworthy terminou a sua magnífica introdução com uma tentativa séria para
compreender as complexas e antitéticas motivações que levaram Wiese a abandonar
Moçambique, país “onde recebera tantas provas de deferência e que sempre amara e
considerara como segunda pátria”.
127
Sugiro que também tivessem importância outros fatores pessoais como o desgaste pelos
esforços desenvolvidos nos mais primitivos sertões durante mais de trinta anos, sempre sob a
ameaça das temíveis doenças tropicais. E, enfim, o desejo de passar os últimos dias da sua
vida com o regalo de uma aposentação confortável, a exemplo do que fizera Paiva d’Andrada,
quando se fixou em Paris.

Bibliografia

1) WIESE, Carl (1907). Zambezia – a “Labour Question” em nossa casa. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 25ª série:
241-47.
2) MACHADO, Mariano (1901). Arquivo da Companhia da Zambézia, volume com o nº 13: Administração
em África – julho a dezembro – CENTRAL, carta nº 146, a 5 dezembro, Lisboa.
128
A intervenção do agente britânico Alfred Sharpe, ao serviço de Cecil
Rhodes

As atividades de Alfred Sharpe (1) merecem ser referidas porque comprovam, de


modo direto e insofismável, o interesse de Cecil Rhodes e até do governo britânico em
colocar também a região de Tete dentro da sua esfera de influência.
Tratava-se de um turista interessado em exotismos e aventuras que, cerca de 1887,
percorria os sertões para se dedicar à mera caça desportiva. Sabe-se também que participou
nas operações militares organizadas pela African Lakes Company contra os árabes
escravocratas, instalados na zona de influência de Zanzibar. Fora ferido em combate e logo
transportado para a África do Sul onde recebeu tratamento adequado. Regressado ao Chire
veio a encontrar-se, por mero acaso, com Harry Jonhston, que já referimos. Foi por este
admitido ao serviço da B. S. A. C., com o propósito inicial de conseguir do Undi um tratado
de vassalagem. Mais tarde recebeu ordens para conseguir tratados não só com Mpezene mas
também com Muaze Cazungo, potentado gentílico nas regiões mais setentrionais.
Sharpe ficou maravilhado com a paisagem, as potencialidades e o clima ameno do
planalto que havia sido conquistado por Mpezene. Considerou-o como sendo o melhor e o
mais apropriado para a colonização europeia. Em seu entender dispunha de clima, vegetação,
solos aráveis, pluviosidade e rede fluvial de qualidade inexcedível, ultrapassando largamente
as terras situadas a oeste do lago Niassa que os missionários escoceses haviam preferido para
sua instalação. A altitude média era superior a 900 metros acima do nível do mar, com
inúmeras cadeias montanhosas e rios caudalosos. Abundavam as pastagens e as florestas de
boas madeiras. Também tinha a vantagem de não haver tripanossomíases.
A segunda viagem de Sharpe foi iniciada em março 1890. A 18 deste mês conseguiu um
tratado com o chefe angoni Chiuere. No dia 29 voltou a penetrar no território angoni,
atingindo o rio Luângua. Regressou ao Mpezene a 21 maio e ali se cruzou mais uma vez com
Carl Weise. Foi por este acompanhado na viagem que efetuou ao Muaze Cazungo.
Preparava-se para a sua quarta visita formal a Mpezene quando o parlamento português
reprovou o acordo de fronteiras firmado a 20 agosto 1890. Todas a zonas de influência
tiveram que ser reformuladas até se conseguir o acordo que fixou o presente traçado
fronteiriço entre o Zambeze e o Luângua.
A. J. Hanna foi outro investigador que forneceu dados sobre os esforços que Sharpe
desenvolveu para obter tratados de vassalagem ao norte do Zambeze, na região sob antiga
influência portuguesa (2). Na conferência que pronunciou em Glasgow a 14 dezembro 1900
fornece informações preciosas para a reconstituição histórica da sua atividade como
governador da Niassalândia (3).

Bibliografia

1) LANGWORTHY, H. (1983). Alfred Sharpe. In: Expedition in East-Central Africa, 1888-1891, a report
by Carl Wiese. Pp. 359/60.
2) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press, p. 131.
3) SHARPE, Alfred (1901). Trade and colonisation in British Central Africa. Edimburgo, Scottish
Geographical Magazine, pp. 129/48.
129
Jack, a fiel, prestimosa e inseparável montada de C. Wiese

Tem merecido alguma atenção o facto das sociedades dispersas por toda a África
subsahariana manifestarem pouco ou mesmo nenhum interesse pelo aproveitamento da
energia animal. Nunca houve tentativas persistentes para domesticar animais selvagens como
a zebra, o búfalo, o cudo, o elefante, etc.. Raros europeus conseguiram domesticar alguns
destes animais a partir de crias deixadas por fêmeas abatidas durante caçadas. Ficou célebre,
na tradição oral dos colonizadores, o elefante que diariamente transportava o saco dos
correios, entre Catembe e Bela Vista. Há também uma curta referência de J. M. de Lacerda a
certo povo de Angola que, como montadas, utilizava regularmente bois-cavalos (p. 66).
Pois Carl Wiese teve a brilhante ideia de adquirir um jumento ao europeu João Martins,
residente em Tete. Nesta vila, antes da implantação do moderno conjunto de bombagem,
depósito e canalização de água para consumo doméstico, ainda conheci o recurso
generalizado a esses animais de carga, para distribuir água trepando pela margem direita do
Zambeze. João Martins não cuidou de os domesticar e de os treinar para transporte de pessoas
ou de cargas. Deixara-os crescer em total liberdade e, com isso, desenvolveram instintos
ferozes. Na verdade, com coices e dentadas, afugentavam qualquer manada de bovinos. Wiese
procedeu de forma diferente. Sobrecarregou o animal com pesadas caixas de munições.
Passou a transportar, quando necessário, a carga correspondente à de três carregadores
nativos.
Já Wiese fazia uso normal do seu Jack quando iniciou a expedição ao Mpezene, a 7
março 1889. Durante cerca de vinte meses, percorreu com ele milhares de quilómetros.
Vitimado pela mosca tsé-tsé, só veio a falecer a 15 novembro 1890, isto é, no dia anterior ao
segundo regresso de Wiese à sua povoação de Mtengulene, no reino de Mpezene.
Jack deu, pelo menos uma vez, prova concreta de ser dotado com a chamada
“inteligência animal”.
Antes do relato, devo confessar que – malgrado as falhas de memória que me
dificultaram a vida normal e, por maioria de razão, os esforços de investigação – fiquei tão
vivamente impressionado que retive para sempre esse facto de Jack ter sido o principal ator de
um episódio insólito mas que tem sido injustamente silenciado.
Durante uma paragem em determinada povoação, tinha nela ocorrido um falecimento.
Segundo os costumes, um grupo de carpideiras chorava copiosamente e soltava gritos agudos
e prolongados, Jack aproximou-se com o maior respeito e adicionou os seus zurros aos
prantos das mulheres. Estas ficaram silenciosas e decerto surpreendidas. Jack também
emudeceu e ficou estático. Assim que recomeçaram, Jack voltou de novo a zurrar. Isto
repetiu-se por várias vezes. Terminada a cerimónia funerária, o grupo das carpideiras
debandou. Pouco depois surgiu uma mulher, que trazia nas mãos uma malga com alimentos.
Foi solicitar a Wiese autorização para oferecer aquela recompensa a Jack como
agradecimento por haver participado nas lamentações pelo falecido.
Este episódio tão simples como significativo, transporta-me para outra recordação
duradoura ocorrida em 1947, quando chefiava o Posto de Lioma. Encontrava-me nas
onduladas encostas do monte Maguè, a norte do Namuli, monte que também ultrapassava os
dois mil metros de altitude. Subi a custo e tive a sorte de abater um javali. Foi resolvido ali
passar a noite num descampado, anexo a um afloramento granítico. Os poucos homens que
me acompanhavam acenderam a indispensável fogueira e assaram a carne nas brasas.
Enrolado numa manta, escutei as conversas. Corneta, o veterano sipaio e destemido caçador,
contou um episódio venatório durante o qual tinha conseguido adivinhar o pensamento do
animal que queria abater. Ingenuamente indaguei: “Então os animais selvagens também
130
pensam?”. De imediato, Corneta respondeu em tom perentório e até com laivos de censura,
por o branco ter ousado levantar dúvidas sobre aquela transparente evidência: “Pensam, sim
senhor!”. E assim me calou.
Mais para diante, recordou a sorte que o bafejou quando finalmente conseguiu lobrigar
o velhíssimo e gigantesco elefante solitário que, ano após ano, percorria centenas de
quilómetros, por um trilho bem definido, entre Malema e Milange. Da cabeça daquele Moby
Dick do sertão africano, pendiam enormes pontas de marfim escurecido que se arrastavam
pelo solo. Todo o seu pesado e impenetrável corpo estava marcado por inúmeras feridas
saradas, feitas por balas e por lanças.
Mandei estender a esteira e enrolei-me numa grossa manta. Corneta e os demais
continuaram a cochichar à roda da fogueira, tão insensíveis à frialdade da montanha como o
eram aos grandes calores das terras baixas.
131

12º
DOCUMENTO
Ngungunhane, o vencido Imperador de Gaza e sua comitiva.
Exílio e morte nos Açores

Este epílogo tem como principal objetivo desqualificar certas interpretações que se nos
afiguram algo fantasiosas e até mesmo tendenciosas. Também serão levantadas algumas
questões que merecem mais profunda reflexão. Com o devido respeito, não vemos razão para
que à vida de Napoleão Bonaparte, na ilha de Santa Helena, seja concedida maior importância
histórica do que à vida de Mudungaz Ngungunhane, na Ilha Terceira. Este último foi tratado
com a maior humanidade possível. Comparem-se os pormenores que adiante apresentamos
com o amargo comentário feito por Ch. Moreau-Vauthier (1) biógrafo do grande imperador
francês: “Este cativeiro, que dá uma tão triste ideia da humanidade nos seus rancores e nas
suas vinganças, encontra um contraste magnífico na própria pessoa do prisioneiro. A vítima
eleva-se enquanto o seu carrasco se avilta”.
Porém, antes de apresentar alguns elementos seletivamente verídicos sobre a vivência
quotidiana dos exilados na conhecida comunidade açoriana, parece oportuno fornecer um
resumo retroativo do papel que foi desempenhado por Nuamantibjane, o último régulo da
Zixaxa. Em obediência ao direito consuetudinário em matéria de sucessão, teve a infelicidade
de assumir as rédeas do poder pouco antes do colapso do império vátua. Aconteceu que em
agosto 1894, por razões polémicas, Mahazulo, soberano das terras de Magaia (um de entre
vários outros que se dispersavam pela região que circunda a vasta baía de L. Marques, a
melhor de toda a África Oriental) tomou a grave decisão de se revoltar abertamente contra a
incipiente ocupação efetiva portuguesa. Nessa instância pediu apoio militar ao seu colega que
dominava as terras de Zixaxa, um jovem inexperiente que fôra recentemente empossado. Foi
importante o facto de grande número dos guerreiros ser favorável ao pedido formulado por
Mahazulo. Quando os Portugueses, invocando a vassalagem, ordenaram a Nuamantibjane que
mandasse atacar os domínios de Magaia, aconteceu que os dirigentes de Zixaxa, apoiados
pelos guerreiros, impediram o régulo de cumprir aquela obrigação e optaram por participar no
ataque contra a então vila de Lourenço Marques.
A 4 outubro dá-se o assalto ao Quartel da Polícia pelos homens da Magaia e, segundo
parece, nesta primeira ofensiva contra as posições portuguesas, já tomaram parte alguns
guerreiros de Zixaxa, embora sem o consentimento de Nuamantibjane, o mesmo sucedendo
no dia 14, quando no ataque à cidade, forças da Zixaxa, comandadas pelos secretários do
jovem régulo, Magane, Tinguiça e Machipenguana, ostensivamente alinharam já ao lado dos
atacantes oriundos da Magaia.
Nuamantibjane, como todos os chefes que vêem os acontecimentos marchar avante dos
seus desejos, acabou por consentir. Desde então, a sua ação passa a ser nula. Após a derrota
de Marracuene, o decreto subscrito pelo Comissário Régio, datado de 28 maio, sanciona a sua
deposição, passando desde então a ser considerado rebelde e foragido.
Em fins de maio, Nuamantibjane tinha retirado para Magul e o avanço português
prosseguiu incessantemente. A 25 julho apresentou-se em Manjacaze, acompanhado por
duzentos dos seus guerreiros, para prestar definitiva vassalagem ao senhor de Gaza. Mas logo
a 8 setembro, mesmo com o auxílio de tropas vátuas, foi mais uma vez vencido no memorável
combate de Magul.
132
Desde então, sem guerreiros nem autoridade, Nuamantibjane conformou-se com a
condição de simples refugiado nas terras de Ngungunhane. Perderam quaisquer significados
as formas de resistência que eventualmente tentasse. Mais tarde – após a derrota de Coolela e
da destruição pelas chamas da capital de Gaza – foi localizado pelo tenente Sanches de
Miranda na povoação de Xissamo. Após estes acontecimentos, Nuamantibjane foi removido
para L. Marques, sendo exposto a 6 janeiro 1896 na Praça 7 março, juntamente com os outros
prisioneiros de guerra e suas mulheres Pambame, Oxaca e Debeza. Também foi exilado e
logo embarcado no “África”, onde ocupou com as suas mulheres uma parte do corredor da
coberta da popa de bombordo, tendo como cama a tarimba inferior.
A 13 março o “África” chegou ao Tejo, onde os prisioneiros de guerra eram aguardados
pelo ministro do Ultramar, por António Enes e por muito povo, sendo Ngungunhane e
Nuamantibjane interrogados na sala da Balança, no Arsenal, servindo de intérprete o coronel
Serra, acusando-se mutuamente culpados da guerra contra os brancos.
Cinco carruagens conduziram os vencidos para o Forte de Monsanto. Ocupando o
quinto carro juntamente com o Ngungunhane, ia Nuamantibjane sentado no banco da frente
ao lado de Molungo e assim ladeados por dois soldados de cavalaria atravessaram Lisboa de
lés-a-lés, admirando ruas e praças que nunca haviam sonhado ver, e portando-se com
extraordinária compostura, como se sempre tivessem andado de carruagem.
Apenas lhes faltavam as esposas. Muito embora tivessem embarcado no navio-
transporte “África”, sete das pertencentes a Ngungunhane e três das que dispunha
Nuamantibjane, esses pequenos haréns não chegaram efetivamente à Terceira, ao contrário do
que tem sido afirmado. Em Lisboa, a poligamia dos dois famosos rebeldes foi satirizada por
Bordalo Pinheiro e acabou por ser considerada inaceitável e até ofensiva pelas autoridades
portuguesas, sobretudo religiosas, que, como é natural, acalentavam a esperança de converter
e batizar tão contumazes pagãos. Mas essas autoridades ao pretenderem impor-lhes as
virtudes do matrimónio monogâmico depararam com uma reação insólita e digna de ser
romanescamente explorada: as rainhas, atuando em total solidariedade, apresentaram esta
condição séria e irrevogável: ou partiam todas ou não partia nenhuma para os Açores!
Julgamos ter sido este o motivo que levou à sua deportação coletiva para S. Tomé, onde
parece que vieram a falecer. O régulo ronga (mais conhecido por Zixaxa) conseguiu
compensar com os recursos locais a falta de companhia feminina. Adotou a língua e os
costumes portugueses, incluindo o sacrossanto batismo, casou canonicamente com uma
açoriana e teve dela um filho que veio a exercer o honroso ofício de marceneiro.
Chegados à fortaleza de Angra em 27 junho 1896, Mundagaz, conhecido por
Ngungunhane, seu filho Godide, seu tio Molungo e, finalmente, Zixaxa, o vencido régulo
ronga. Não se deve esquecer que foram sempre acompanhados pelo cozinheiro privativo de
Ngungunhane. Segundo os relatos da época o aspeto dos prisioneiros comoveu o público
açoriano tanto pela “penúria dos trajes como pelo ar deprimido que exibiam, convencidos que
estavam de que vinham para morrer”.
Eis como Pedro de Merelim (2) descreve a chegada, numa antiga publicação terceirense
chamada “Atlântida”: “Ngungunhane caminhava vagarosamente, precedendo os três
familiares – filho, tio e sobrinho –, estatura média, obeso, atarracado, descalço, fralda de fora,
uma trouxa ao ombro, a escorrer suor. Godide, um simples rapazola, alegre, tagarela, ingénuo,
inexperiente da vida. Molungo, a recordar a espécie árabe, feições regulares, delgado, alto,
aprumado, olhar perscrutador, incerto e desconfiado. Zixaxa, o régulo valente e destemido,
rapagão forte e vigoroso, aristocrata da sua raça, porte altivo, os seus movimentos e olhar
incisivo denunciavam vitalidade física e a energia de um selvagem audacioso e traiçoeiro, a
suscitar admiração. As pequenas trouxas que transportavam continham toda a sua roupa.
Vestiam calças de brim que, para a viagem, lhes haviam sido distribuídas em Monsanto.
133
Embora tratando-se de peças novas de vestuário, não lhes serviam. As de Ngungunhane logo
se rasgaram. Os quatro negros, perante o olhar curioso do público numeroso, subiram as ruas
Direita e da Sé, encaminhando-se para a fortaleza de S. João Baptista, onde chegaram pelas
quatro horas da tarde. Após serem entregues às autoridades e ser assinado o devido recibo, a
escolta regressou de imediato a bordo. Fornecida roupa nova aos prisioneiros, foram estes
depois “sempre bem tratados” por instruções expressas do comandante da fortaleza, podendo
circular pelo pátio durante o dia e só à noite recolhendo às casas que lhes serviam de celas.
Ao tempo do governo militar de Pimenta de Castro nos Açores foi concedida aos
exilados africanos autorização para saírem e andarem por toda a ilha, altura a partir da qual o
bom relacionamento com a população terceirense se tornou histórico. Passavam muito tempo
em caçadas a coelhos, em que Zixaxa era perito. Ao jantar, “guisavam-nos com batatas e
banqueteavam-se, sem faltar, regra geral, um litro de vinho de cheiro a cada um”, diz
Merelim. Os quatro confecionavam, para se entreterem, “condessas e outras espécies de
cestos de vime e palha” que vendiam com facilidade aos transeuntes.
E este cronista assinala também: “Os quatro pretos alcançaram nas ilhas tal grau de
popularidade que ao palco do Angrense, a primeira casa de espetáculos da cidade, como
assinala um jornal da época, subiu a opereta “O Ngungunhane nos Açores”, expressamente
escrita por um moço terceirense”. E mais à frente descreve:

“Morreu Reinaldo Ngungunhane às nove horas da noite de 23 dezembro


1906 – ou seja dez anos, cinco meses e vinte e sete dias após o seu desembarque
nesta ilha, de hemorragia cerebral, contando cerca de sessenta e sete anos de
idade. Os três companheiros de exílio, sem deixarem, naturalmente, de acusar a
ausência do antigo chefe vátua, prosseguiram na vida comum e quotidiana,
ocorrida mais ou menos no cenário e ação atrás evocados” (3).

Auferiam o soldo diário de 260 réis com direito a vestuário e alimentação (4). António
Godide, seu filho, foi o segundo a perder a vida, vitimado por tuberculose pulmonar com
apenas trinta e poucos anos, no último dia de julho 1911. Catorze meses depois, no final do
dia 5 outubro 1912, bateu a última pulsação, o coração do velho e taciturno Molungo.
Sucumbiu a uma gastrite aguda, segundo diagnóstico oficial.
Roberto Zixaxa viveu, ainda, sozinho, de certo saudoso dos companheiros mortos.
Chegou a exercer, por nomeação em ordem de serviço, as funções de guarda do Monte Brasil.
Sendo o que possuía mais distinto porte, e inteligência superior aos outros, logrou falar
corretamente o idioma pátrio. De uma mulher do povo teve um filho, nascido em Angra, a 27
setembro 1912, ao qual deu o nome de Roberto Frederico Zixaxa e que veio a desempenhar o
ofício de marceneiro.

Bibliografia

1) MOREAU-VAUTHIER, C. (s/d). Napoleão 1769-1821. Porto, Livraria Chardron, Lello & Irmão, L.da.
2) MERELIM, Pedro de (1960). Os Vátuas na Ilha Terceira. Açores, Atlântida, IV, 317-318.
3) MERELIM, Pedro de (1960). Idem.
4) WHEELER, Douglas L (1968). Gungunhana. In: Bennett, Norman R.; “Leadership in Eastern Africa: Six
Political Biographies”, Boston University Press.
135

13º
DOCUMENTO
A história do Derre e dos prazos Massingire e Marral
por:
José de Magalhães de Menezes

Este documento, descoberto no antigo arquivo da sede da Companhia da Zambézia, em Lisboa, tem como
principal objetivo defender a distinção que, em estudos históricos, deve ser observada entre os povos
vulgarmente designados pelos etnónimos de Massingires e Macololos. A ortografia foi atualizada.

Há já alguns anos que entre os dois grandes prazos Massingire e Marral se debate a
questão dos direitos sobre as terras de Derre, sendo apenas há alguns meses resolvida pelo
Ex.mo Sr. João de Azevedo Coutinho, digníssimo governador do Distrito da Zambézia. Fomos
contemporâneos desse debate, temo-lo seguido de perto e, habitando no Massingire há perto
de três anos lembrámo-nos de sucintamente lançar em meia dúzias de folhas de papel,
algumas linhas desapaixonadas referentes àquelas terras.
Não fazemos crítica porque não nos achamos a isso habilitados. Relataremos parte da
história do Derre baseada em testemunhas coevas, suas riquezas e vantagens com que fica o
atual possuidor ou arrendatário. Ao Ex. mo Sr. Mariano José Machado, íntegro diretor da
Companhia da Zambézia em África e atual representante dos arrendatários do Massingire
tomamos a liberdade de oferecer este mesquinho produto da noite de insónia, esperando que
nos releve no atrevimento.
Quelimane, março 1898
José de Magalhães de Menezes

(Derre) É uma porção de território português compreendido entre os prazos Massingire


e Marral e as terras de Milange. Habitado pelos angùros que pertencem à grande família dos
alolo, falando um dialeto quase igual ao de Quelimane ou Chichuabo, tem-se conservado por
assim dizer independente, isto é, no meio da submissão geral dos cafres ao pagamento do
mussoco, o Derre tem deixado de o fazer. Primeiro, porque se recusava a faze-lo e ao governo
português nunca ocorreu ali enviar uma pequena expedição. Depois, contemporizando com as
divergências entre o Massingire e o Marral, o celebre M’Canga se sentia admiravelmente
disposto no meio desta isenção de impostos e trabalhos. Vivia dos seus roubos, da caça ao
marfim, dos produtos que cultiva, da cera e da borracha abundantes nas suas terras, fazendo o
seu negócio com Ajauas e Mujojos, até que a repentina decisão do governador Coutinho o
veio tirar do dolce far niente em que se sentia embalado. Se de boa vontade e sem barulho, se
submeterá ao pagamento do mussoco, o futuro o deixará ver. Em tempos antiquíssimos, quer
dizer, anteriores à passagem de qualquer dominador por aqueles sítios, o Derre era
simplesmente um pequeno reino dirigido por um chefe chamado M’Canga. Os seus limites,
eram então incertos devido às guerras que se travavam entre o dito M’Canga e o M’lolo da
M’tenguera, grande chefe dos Maganjas. Como elas decorriam com vantagem, ora para um,
ora para outro – nunca se podia determinar, com razão e justiça, onde findava o poderio de um
e começava o outro.
Passando, pois um véu sobre essas épocas das quais é impossível haver ou testemunhas
ou factos que nos possam elucidar sobre os limites das terras de M’Canga, vamos rapidamente
relatar os acontecimentos que se seguiram e que mais ou menos influenciaram o traçado dos
136
limites atuais, entrando depois da exposição dos factos, que ultimamente ocorreram e que nos
propusemos contar.
Numa época que não podemos precisar mas que é posterior ao falecimento do antigo
M’lolo e do antigo M’canga, aconteceu que um dos M’lolos foi preso e substituído pelo Sr.
Sacramento, nesse tempo comandante militar de Chiromo. Ignoramos o paradeiro desse
substituto. No seu lugar ficou seu filho Lapa, que conhecemos, e de quem verbalmente
ouvimos parte destes factos sobretudo o aparecimento em Massingire de um muzungo de
sangue cruzado de índio, chamado Mariano Vaz dos Anjos, a quem os indígenas deram o
cognome de Uatequenha1.
Levado pelo génio aventuroso e desejando aumentar o seu poderio e as suas riquezas
(mobilizou) a sua gente – os já então célebres sipais – capitaneados por M’Chaua2, o mais
querido dos seus cazembes ou “chefes de guerra”. Foi assim que irrompeu pelas terras de
Chicanda e de Campata onde, como instrumentos de defesa, os habitantes só tinham as
primitivas setas (mibvi) e zagaias (ma-depa) dos Maganjas. Valendo-se da superioridade do
seu armamento – quase na essência armas de pederneira e bem poucas de espoleta – levou a
ferro e fogo aqueles povos. Implantou-se nas margens do rio Luisongue, onde construiu a
célebre aringa que, mais tarde, o comandante José Cardoso transformou no atual centro.
Possuía uma esplêndida casa de pedra e cal que agora se encontra abandonada mas cujas
chaves foram entregues ao súbdito Canumparinga. Não existia ainda o nome de Machingire e
aquelas terras chamavam-se em geral M´tenguera. Foi então que os habitantes deram à aringa
o nome de Machinjiri3 o qual depois passou para os sipais e mais tarde para todo o território
como se denomina nos nossos tempos.
Pouco a pouco se foram aqueles povos habituando ao tributo de marfim e géneros que
lhes impusera o Matequenha (versão portuguesa) com exceção dos chefes dos Maganjas:
M’lolo, Camanga e Tengane, o primeiro dos quais ainda deu muito que fazer ao governo
português. Embora ao princípio tenham resistido, conformaram-se finalmente os dois últimos
com o jugo que lhes fora imposto. Houve porém um chefe de outra raça – completamente
diferente dos Maganjas e até seus inimigos figadais – que tentou resistir fiando-se nos
escarpados píncaros das suas serras. Era este o nosso M’canga, chefe e senhorio do Derre.
Matequenha enfureceu-se ante a ousadia de tal homem que tivera a veleidade de lhe opor
resistência e (até) assassinara vários dos seus sipais. Mandou (mobilizou) então a sua
famigerada gente que, com correrias, despovoou as atuais serras de Chiperoni, Mirrambone,
Massenguere, Maciunhe e Gungune. Capitaneada por Uchana, Capombeza e Chimpondene,
submeteu o M’canga que pagou o seu tributo em marfim. Quando alguma vez tentou erguer a
cerviz ante o jugo que o avassalava, uma nova incursão dos Amachinjiri logo o metia na
ordem. Portanto, assim começou M’canga a reconhecer a soberania do Machinjiri e nós já
podemos considerar este tributo como uma espécie de mussoco que já o M’canga
(cognominado Malumpa-ma-nai, “o de quatro braços”) pagava ao Machinjiri.
O célebre inhacuáua Capindo – limítrofe do M’canga e cuja povoação é nas faldas do
Chiperoni – também nessa ocasião pagou tributo e esteve preso em Machinjiri de onde mais
tarde conseguiu fugir. Conhecemos Capindo, estivemos várias vezes na sua povoação,
ouvimos dele a narração destes factos. Era o que se pode chamar um grande n’ganga ou seja
“médico cafreal” e, na verdade, tinha algum merecimento. Numa ocasião, em 1896, o
conhecido russo W. Laleiocky, ultimamente expulso do Distrito da Zambézia, foi acometido
por uma paralisia no braço direito até ao ponto de não poder de forma alguma mexer esse
membro. Pois somos testemunhas de que Capindo o curou completamente, depois de feitas
várias incisões no braço doente e de as esfregar com líquidos da sua composição. Estivemos
com Capindo em agosto 1897. Soubemos com pena que acabava de morrer em consequência
de queimaduras que recebera. Era muito velho e usava uma machila com peles de leão e
137
leopardo, a qual lhe fora oferecida por um régulo dos dacuanes (?), em reconhecimento de o
haver tratado de uma moléstia julgada incurável pelos outros n’gangas.
Mas voltemos a M’canga. Os limites dos seus territórios nesses tempos (ou melhor
dizendo das terras do Derre) eram: ao norte as terras de Uatipuir e de Milange, a oriente o
Lualua e as terras de Nhamicunguro, a quem sucedeu seu filho cognominado M’chochoma
(Sr. Romão de Jesus Maria); ao sul as terras do inhacuáua Murille; família de M’lolo; ao
poente as terras de M’lolo, Gumbe, Capindo e Chiperoni; a leste eram vários inhacuáuas
pequenos que reconheciam a autoridade de Murille já que, quando sucedia morrer algum
elefante nas suas terras, irem apresentar-lhe a ponta chamada “do chão” ou “do lado” sobre
que caíra o elefante, ponta que Murille em companhia do chefe obediente, ia entregar ao
Matequenha. Os limites entre estes pequenos inhacuáuas e M’Canga eram a serra Rangel, um
pequeno riacho cujo nome já me passou da memória e mais adiante as terras de seu irmão ou
parente Canga à Mahimba, o Nhalicoco, a quem M’Canga tentou matar, tendo este de fugir
para a Mahimba (prazo Marral). Portanto, o Derre era um pequeno chefe autónomo mas
reconhecendo e pagando tributo ao Machinjiri ou, como atualmente se diria, um protetorado
Machinjirense.
Matequenha morreu, segundo testemunhas coevas, envenenado pela sua irmã D. Anna,
enfiteuta de parte de Nhagoma e de Maganja-d’alem-Chire. Era ela perita em feitos desta
espécie, tendo-lhe sucedido seu filho, também Mariano, cognominado o Chonze4. Como
sugere este cognome, possuía um génio intratável, sedento de sangue e a tal ponto duro e mau
para com os sipais – que tão grande glória e largas terras haviam conseguido para seu pai –
que estes resolveram desfazer-se de tal senhor. Porém, como lhes repugnasse matar o filho do
seu antigo amo, filho que eles tinham visto crescer, expulsaram-no simplesmente do território,
vindo a morrer numa almadia, a caminho de Mopeia, brutalmente espancado na Mutarara
pelos sipais de sua tia D. Anna, assim vingando a morte de alguns companheiros.
Chonze governou pouco tempo, mas o facto é que durante ele o M’Canga continuou
pagando tributo. Seguiu-se um período de dissenções e lutas intestinas, tendo nessa ocasião o
Cazembe M’Chana emigrado para a margem direita do Chire. É um período obscuro, sobre o
qual pouco podemos adiantar; além disso pouco nos interessara. Houve vários proprietários e
administradores, até ao ano do assassinato pelos amachinjiri, do infeliz Queiroz, então
comandante militar (in nomine) do Machinjiri, e que residia à borda da ribeira de Chironje, a
pouca distância (duas horas) do Chire.
Seguiu-se a célebre guerra do Machinjiri (1884, cremos nós) em que os famigerados
sipais, juntos com a gente da Maganja-d’aquém-Chire, vieram até à “Companhia do Ópio”,
em Mopeia, onde em vão lutaram contra o corajoso e saudoso Caldas Xavier e contra Robert
Penderson, gerente técnico da mesma companhia, que foi ferido por três balas, sendo uma no
rosto. Apesar da sua nobre valentia, teriam sucumbido se não fosse o socorro que a tempo
lhes prestou a coluna de estrangeiros partida de Quelimane que assim frustraram as intenções
dos guerreiros que vinham decididos a assaltar Quelimane e a trucidar todos os seus
habitantes. Malograda tal tentativa, voltaram para Machinjiri onde, mais tarde, Manuel
António de Sousa exigiu e conseguiu a entrega dos cabecilhas do motim, entre os quais se
encontravam Bzingue e Chinpondene. A aringa de Manuel António deixa ver os seus
vestígios a cerca de dez minutos à vazante de Port-Herald. Sossegaram pois os ânimos,
estando nessa ocasião como comandante militar, o oficial José Cardoso. Este foi na verdade o
ídolo daquela gente. Ainda falam com saudade na muita aguardente, pólvora e fazendas com
que Cardoso lhes retribuía o marfim que traziam ao comando militar. Além disso os antigos
sipais iam morrendo, outros eram já velhos e alquebrados e pouco a pouco, não restou senão a
fama que, apesar de ser só fama, ainda eram temidos. Cardoso continuou administrando o
Machinjiri sem novidade e recebendo regularmente o mussoco.
138
M’Canga lembrando-se dos resultados que lhe trouxera a sua recusa ao tributo de
Matequenha, resolveu obedecer à intimação de Cardoso, mandando nessa ocasião a este
comandante, uma porção de mitambaras5 de amendoim a título do mussoco. Porém, manhoso
como sempre, escolheu para portadores das mitambaras, uns escravos seus que apanhara à
gente do Lómuè, com quem em tempo tivera guerra e que amedrontados por se terem de
encontrar com um branco, por ser coisa que não existia nas suas terras, abandonaram os
géneros ao pé de Machinjiri, fugindo em seguida. Daqui se deixa ver que os Angurus do
Derre mais uma vez tributaram a Machinjiri. Isto mesmo nos foi dito e confirmado pelo
próprio Malumpa-ma-nai, em outubro de 1896, na presença do sub-inspetor dos Prazos da
Coroa, Henrique César da Costa e, também, de Romão de Jesus Maria.
Deu-se ao tempo uma ocorrência anedótica. O indígena Semane – sequaz de M’Canga e
da gente do Romão – tentou negar que os sipais jamais tivessem obrigado o Derre a pagar
tributos a Matequenha. Verdadeiramente indignados, levantaram-se o capitão Marenga, o
cazembe grande de Machijiri, e vários outros dirigentes entre os quais se contavam M’tupa,
Matengabiri, Oamunga, Mangane e o Canhongo 6. Bradaram: “Imue anguru, um-nga sakula,
um madimba ya um ano, um-na-gumana mabara ya ato, ada bzalina na ife, muenemo”, o
que significa: “Vós, angurus, se procurardes com as enxadas nos campos que cultivais, ai
encontrareis as balas que nós semeámos”.
A época pacífica que se seguiu ao período guerreiro de Matequenha e seus sucessores
fez com que os antigos e pequenos régulos, cujas primitivas habitações se situavam em
Chiperoni, Massenguere, Missambone e Cungune, fossem voltando pouco a pouco aos seus
antigos territórios. Entre outros, citamos os régulos Gerenne, Musgola, Zauara, Demura,
M’Tana, Nacurrula, Nhacama, Taqui-u-a e Nanguo. A Cardoso, sucederam-se vários outros
comandantes e, já então, era a firma Pereira, Dúlio & Wiese, a arrendatária do Machinjiri. Foi
durante a gerência deste firma, que pela primeira vez se levantou, entre o Machinjiri e o
Marral, a questão de saber a quem deveria ser adjudicado o Derre e a quem deveria M’Canga
pagar o mussoco. Foi o empregado Raphael de Pinho, agente da autoridade do Machinjiri, o
nomeado para representar aquela firma e para marchar para o Derre, onde se encontrou com o
Sr. Nascimento da Costa, da firma Romão Pereira & Costa, do prazo Marral e o já citado sub-
inspetor dos prazos da coroa. De delimitação não se tratou, supomos nós, ou se se tratou, nada
ficou resolvido. Aconteceu apenas que o sub-inspetor presenteou o Malumpa-ma-nai com
uma bengala dizendo-lhe ao mesmo tempo, que ele M’Canga só deveria pagar mussoco a
quem, autorizado pelo rei (i.e. o governo), lhe fosse pedir e dele haver a tal bengala que o
pobre diabo considerou como um ceptro!
Entretanto, Mougala, Demura e outros apresentaram-se voluntariamente a pagar o
mussoco em Netumbe, sede da administração do Machinjiri. Saiu Wiese da firma arrendatária
e ficou esta na praça girando sobre o nome de Pereira, Dúlio & C. a Também Pinho saiu de
Machinjiri, surgindo depois vários outros administradores entre os quais o Sr. J. Sobral, em
cujo tempo se continuaram a apresentar vários pequenos régulos que oportunamente pagavam
o seu mussoco. Sobral foi demitido e substituído por J. de Magalhães de Menezes, no cargo
de agente da autoridade e administrador de Machinjiri, e, como era seu dever, tratou de cobrar
o mussoco mais depressa e em maior quantidade possível. Durante a sua administração,
apresentaram-se os pequenos régulos Capindo, Gerene, M’Garro, Zanara, Tana, Nhacama e
Nanguo, que foram recenseados e pagaram os seus mussocos, como se pode ver nos cadernos
de recenseamento e competentes recibos, relativos aos anos de 1895 e 1896. Neste último ano
o administrador Magalhães protestou energicamente, por várias e importantes razões, entre as
quais destacaremos duas. 1ª– Haver um nativo que se arrogava possuir direitos senhoriais,
prendendo, assassinando e envenenando os habitantes e, até mesmo agredindo e maltratando
os sipais que por suas terras passavam, fazendo tudo isto impunemente; o facto indignava de
139
tal modo as populações tanto de Machinjiri como de Marral e se corriam sérios riscos de
eclodir um levantamento geral. 2ª– Por se haver decidido que, quem se colocasse sob a
salvaguarda de M’Canga, ficaria automaticamente isento do mussoco e de trabalho, sucedeu
que os habitantes dos prazos limítrofes, pouco a pouco se foram transferindo para o Derre, o
que prejudicava os interesses relacionados tanto com o mussoco como a contribuição braçal,
os géneros alimentícios, a recoleção de cera e a borracha.
Baseado nestas razões, pressionou reiteradas vezes os gerentes da firma Pereira, Dulio
a
& C. . Foi esta a origem da segunda incursão ao Derre, incursão que poderia ter resolvido a
questão dos limites se não fossem os escrúpulos do sub-inspetor Costa, que declarou não se
achar autorizado a tomar decisões deste tipo.
Cumpre-nos agora intercalar um caso diferente. Em 1895, o notável Canga-a-Malimba,
cognominado Nhalicoco (no Derre, legítimo herdeiro à butaca ou chefatura hereditária,
segundo testemunhas coevas) tomou a decisão de desaparecer por ter sido alvo de várias
tentativas de assassinato por parte dos sequazes do M´Canga Malumpa-ma-nai. Apresentou-
se oportunamente em Netumbe, levando uma parcela do mussoco referente às suas
povoações, como poderia comprovar por meio dos recibos que os contribuintes tinham em seu
poder. Requisitou, ao agente da autoridade, dois sipais armados para lhe guardarem a
propriedade e a vida.
Interrompemos a narração para recordar que, nesse tempo, ocorreu uma invasão de
guerreiros comandados por Chacuzuca, capitão do Sr. Romão de Jesus Maria, com a ordem de
cobrar o amendoim do mussoco na parte do prazo Marral, limítrofe do Machinjiri. Forçaram a
população a entregar géneros e ameaçaram de morte o M’Canga-a-Malimba. Chegaram
mesmo a atingir a ribeira Mueruze, limite entre a M’Canga-a-Mahimba e o Inhacuaáua
Chelimane, que desde tempos imemoriais pertence ao Machinjiri. O Chacuzuca foi
encontrado pelo empregado Sr. Joaquim M. Vaz que procedia ao recenseamento do prazo
Machinjiri.
Terminado este parêntese, continuaremos com a excursão ao Derre. Em outubro o sub-
inspetor Costa e o referido Magalhães, saíram de Metembe para se encontrarem com Romão
que, desde há dias, os esperava numa povoação situada no sopé da montanha do Derre.
Seguiram pelos inhacuáuas Muandina, Maçassa e Chelimane, indo ao terceiro dia dormir na
povoação de M’Canga-a-Malimba, onde foram admiravelmente recebidos. Ao romper da
alvorada partiram para o Derre. Tiveram nove horas de viagem no meio do mato, subindo e
descendo serras, sem encontrarem povoação alguma e sendo, por várias vezes, obrigados a
sair das machilas para fazerem a pé, pedibus gambis, os trajetos mais difíceis. Por volta das
duas horas da tarde, tiveram a satisfação de encontrar o rio Micongue, para onde sipais,
machileiros e carregadores se atiraram pêle-mêle para mitigarem com a frescura da água o
horrível calor que os apoquentava. Após subirem uma ladeira excessivamente íngreme,
desembocaram na povoação do muene Sicama, onde almoçaram. Perguntou-se se era muito
distante a povoação onde estava aquartelado o Sr. Romão. Foi-lhes respondido que não
poderiam ali chegar nesse mesmo dia. Tratou-se dos preparativos para jantar e para pernoitar
naquele ponto. Quando os “grandes” foram chamados foi-lhes perguntado se podiam arranjar
mantimentos para mais de noventa homens da caravana a saber: quarenta machileiros, trinta
carregadores e mais de vinte sipais. Invariavelmente a resposta era negativa apesar de
Magalhães lhes ter oferecido o preço que desejassem. Garantiam que o Sr. Romão tinha
levado tudo consigo. Mas como já se tinha observado que as palhotas estavam abarrotadas de
mantimentos, concluiu-se que havia má vontade por parte dos habitantes, má vontade a que
não era alheia a permanência do Romão no Derre, aguardando os visitantes há quase quinze
dias. Magalhães mandou imediatamente os seus auxiliares aos inhacuáuas de Machinjiri e
limítrofes do Derre, os quais voltaram carregados de galinhas e farinha com que se matou a
140
fome à caravana. Partiram na madrugada do dia seguinte e uma hora depois estavam no Derre,
embora na véspera tivessem afirmado que o local onde estava Romão era muito distante.
Magalhães ficou indignado e quis repreender severamente aqueles que na véspera o tinham
enganado e recusado mantimentos. Contudo disso foi impedido pelo sub-inspetor.
Romão, antecipadamente prevenido da chegada dos visitantes recebe-os com toda a
urbanidade. Dedicadas algumas horas a abluções, refeições e um algum descanso, procedeu-
se à chamada de M’Canga e seus grandes. Cremos que na povoação onde se encontravam os
muzungos, tinham se reunidos entre seiscentos e setecentos nativos.
M’Canga, depois de interrogado informou que efetivamente tinha mandado
oportunamente, de Cardoso a Machijiri, as mitambaas de géneros alimentícios. Disse também
que fora recenseado, em ano que não recordamos, por Câmara Cylindo que sabemos ter
falecido em 1897. Acrescentou que fora tributário de Matequenha mas que, atualmente, se
morresse algum elefante nas suas terras, levaria o marfim ao Sr. Romão. Apenas sobre este
assunto foi possível unanimemente alcançar acordo. Sempre que se tentaram investigar outros
problemas, logo surgiram grandes contradições provocadas sobretudo por um tal Semane
sobejamente conhecido como sicário de Romão. Esta situação escandalizou Magalhães que
ameaçou retirar-se porque não viera até ali para ouvir as opiniões dos sequazes de Romão,
mas apenas para apurar a completa veracidade. Costa tomou vários apontamentos, deles
dando cópias a cada um dos representantes dos dois prazos. No dia seguinte separaram-se sem
nada se haver resolvido, em virtude de Costa declarar que as competências que lhe haviam
sido atribuídas não eram suficientes para tomar resoluções definitivas.
Porém, havia um facto curioso a notar. O Semane supracitado havia declarado que os
limites do seu território estavam nos M’Combezi e Muto (rio deslizando no Machinjiri e
Marral, desembocando quase em frente de Nhansambo, e o outro limite, entre a Maganja-
d’aquém-Chire, Marral, Luabo e Mahindo, cremos nós). Quer isto dizer que o M’Canga, no
seu desejo de tudo querer, até já considerava como sua parte do Marral e do prazo da
Companhia de Açúcar. Notou-se que M’Canga se apresentava com a sua gente armada e que
Romão levara perto de cento e cinquenta sipais armados, em comparação ás quinze
espingardas da administração de Messangire. Tudo são factos demasiadamente conhecidos e
que não vale a pena repetir. Bem sabemos que o Sr. Romão, ao apresentar-se com aquela
gente armada, se apoiava numa autorização que a seu pedido lhe fora concedida pelo
governador António da Silva Ribeiro, para construir no Derre um posto com cento e cinquenta
sipais, após os serviços que tinha prestado à coluna expedicionária ao Matipuir, em fins de 94
e princípios de 95. É inegável que o M’Canga se portou bem para com os visitantes. E assim
acabou a segunda visita oficial ao Derre.
Depois, em 1897, passaram para a Companhia da Zambézia os prazos Maganja-
d’aquém-Chire e Messangire (novo nome oficial), dissolvendo-se a firma Pereira, Dúlio &
C.a. O chefe superior da administração dos dois prazos, integrados na Circunscrição do Leste,
foi o Sr. Jeremias Wheelhouse, cavalheiro a quem devemos a máxima estima e consideração.
Encarregou Henrique de Brederode, administrador de Messangire, de efetuar o recenseamento
deste prazo, nomeando Magalhães como seu ajudante. Infelizmente Brederode adoeceu logo
nos primeiros dias e teve que se retirar para o Chinde, ficando o Magalhães a terminar o
recenseamento. Nele incluíu todos os inhacuáuas que foram citados e, ainda, as povoações de
Capindo que tinham escapado ao censo anterior. Acabado esse serviço, Magalhães seguiu
para o mato, em gozo de uma licença de caça. Para substituir o Brederode foi depois nomeado
o Sr. António Pinto Gomes, um jóvem de bom carácter, valente e sério, que tomou a seu peito
resolver a questão dos limites. Tendo sabido que um empregado do Sr. Romão viera recensear
os inhacuáuas M’Gorro, M’Canga-a-Malimba e outros que pagavam a Messangire, o Gomes,
embora dispusesse de apenas oito machileiros, seguiu imediatamente para aquele local e
141
obrigou a retroceder o ilegítimo recenseador. Este incidente obrigou Gomes a escrever
repetidamente para a sede, acentuando a conveniência em solucionar definitivamente o
problema dos limites. Efetivamente em dezembro 1897, o Sr. Wheelhouse seguiu para o
Derre, acompanhado pelo Gomes, e ambos se dirigiram para a povoação do capitão Marenga
onde se cruzaram com o Magalhães que andava caçando e que não quis acompanhá-los para
não ser importuno. Ali veio a ocorrer o encontro com o Ex. mo Sr. governador João Coutinho e
com Romão de Jesus Maria. Travaram-se acérrimas discussões com o M’Canga, que apareceu
com cerca de trezentos homens armados. Ocorreram ainda outros incidentes de pequena
monta cuja narração pode ser dispensada. Finalmente, o Derre ficou pertencendo ao Marral e
para este Prazo também transitaram os inhacuáuas que já pagavam tributos ao Messangire,
ficando os limites determinados da maneira que a seguir vamos descrever. A linha marcada
pela cumieira do Chiperoni separava a vertente da serra que olha para o nordeste e que arrasta
Cupindo e os seus muenes para o Marral; a partir do riacho Namarraga, subindo à cumieira
do Cungune, deixava o inhacuáua Muogala ao Messangire; partindo da serra Rangel e daí
seguindo uma ribeira cujo nome não recordamos mas que vai desaguar no rio Missongue,
continua-se por uma linha ainda mal determinada até se atingir o Mueruse que limita as terras
do M’Canga-a-Malimba com as do inhacuáua Chelimane.
Desse modo regressou o Messangire aos antigos tempos das dissensões entre o M’lolo
de M’tenguera e o primitivo dono do Derre.

Apêndice geográfico e etnográfico

O Derre e as terras de M’Canga e de Berna são, por assim dizer, o principal caminho de
todo o marfim e mais negócios que vêm ao Ingode e a Quelimane, saindo do Matipuir e
Malómuè. Sendo o centro de tão grandes riquezas não se deve admirar que tenha tantos
pretendentes. É um país bastante montanhoso, com serranias de grande altitude, sulcado por
numerosos rios e ribeiros. Os seus vales são fertilíssimos e neles se desenvolvem mantimentos
de toda a espécie como café, amendoim e gergelim. Também são abundantes as madeiras de
alta qualidade. Ali encontramos a imbilla, usada com vantagem em toda a espécie de
construções mas que já vai rareando nas margens do Chire e do Zambeze porque os indígenas
não só a empregam na confeção de lanchas e escaleres, como também abatem o arvoredo para
poderem cultivar plantas alimentares. Também abunda o mtondo, árvore de grandes
dimensões, e muito apropriada para o cavername das embarcações que sulcam o rio Zambeze.
Notável é também a muçukossa, avermelhada, muito consistente e própria para marcenaria.
Outra árvore, m’pique, produz frutos preciosos e semelhantes às atas. A mgonha e a muana
são árvores majestosas de que os indígenas se servem para fabricar grandes almadias de
quatro ou cinco bancos. Podemos também citar a muconite, um ébano cheiroso; o chinio,
empregado em tinturaria; a talala de que se fazem os arcos de guerra; o mango, trepadeira
que produz a borracha quando inciso; o nhamazonzoro, o satombo, o m’kundo-kundo,
todas com propriedades medicinais e, enfim, o muavi, veneno que entra na confeção do
temível ordálio, o julgamento divino, etc., etc. Quando à fauna, ressalta o elefante, njovo; o
rinoceronte, puete; o hipopótamo, penembe; o búfalo, nhumbo; o leopardo, bonga; etc., etc.
Nos rios há variadíssimas espécies de peixes. São inúmeras as espécies de aves, gastaria
folhas a descreve-las. Sobre a qualidade dos solos nada diremos pois a isso não estamos
habilitados. Entre os moradores há a opinião geral de que quem ali intentar a cultura do café,
alcançará resultados ótimos. As árvores-da-borracha são abundantíssimas, pena sendo que os
indígenas, para aumentarem a produção para venda, triturem de tal forma as raízes que
142
ocasionam a morte da trepadeira. Também para obterem a cera destroem por completo as
colmeias quando usam fogo.
Posto isto passaremos à conclusão porque o texto já vai longo em demasia.

Conclusões

A questão do Derre era sem dúvida uma questão de limites, isto é, a qual dos prazos,
Machinjiri ou Marral, deveria o seu mussoco ser adjudicado? Foi esta questão, que já foi
levada a Moçambique em 1894… sabemos nós que fora tomada a decisão de se seguir uma
linha pela cumeeira da serra do Derre de modo a que esta ficasse dividida em duas partes,
uma das quais seria para o Machinjiri e a outra para o Marral, mas esta decisão não passou da
secretaria do governo-geral. Isto efetivamente era racional e justo, mas temos a notar, à vista
do resumo histórico que estas precedem, que o M’Canga, desde os tempos de Matequenha e
mais tarde com Cardoso, também pagou ou o tributo ou o mussoco. Pergunta-se: por que
razão o chefe gentílico mandava o mussoco aos outros tendo o Marral direito a ele?
Mas há mais. O que se entende por Derre? É o território do M’Cangaceiro? Ou também
os distritos de M’Gorro, Negogoro, M’Canga-a-Malimba, Tagui-u-a e Capindo? Se o
M’Canga não pagava mussoco a ninguém, e os aludidos inhacuáuas o pagavam ao Machinjiri,
como é que eles pertenciam ao Derre? Dizemos isto porque na decisão ultimamente tomada,
estes inhacuáuas passaram para o Marral, tendo sido o administrador do Machinjiri obrigado a
devolver os mussocos já recebidos.
Capindo é puro Chiperoni e nunca Derre, Capindo fica na extremidade da serra que olha
para Chilomo, a poucas horas do Sapanda Chiromo no território do inhacuáua Gumbe.
Capinda sempre reconheceu a autoridade do inhacuáua Murille, como ele próprio nos disse
por varias vezes e, quando se apresentou em Netumbe, foi acompanhado pelo inhacuáua
Murille e por mais ninguém. Porque é que quando algum elefante morria nas terras de
Capinda, o Sr. Romão, agente da autoridade do Marral, não mandava apreender os caçadores,
ou pelo menos a “ponta da terra”?
Estas considerações teriam cabimento se a firma beneficiária do arrendamento do
Machinjiri fosse Pereira, Dúlio & C. a ou qualquer outra. Mas desde que é a Companhia da
Zambézia, o caso muda completamente de figura.
Julgamos que nos contratos da Companhia da Zambézia com o governo, há uma
clausula determinando que “todos os prazos cujos contratos de arrendamento forem
rescindidos ou hajam caducado por qualquer motivo, passarão para a administração da
Companhia, e que a todos os terrenos compreendidos nos limites dos territórios da
Companhia, que não estejam aforados ou arrendados, também sofrerão o mesmo destino! É
isto verdade? Então como o Derre não estava debaixo da direta ou indireta administração de
ninguém, ou melhor, como a ninguém estava arrendado, seguramente que deveria passar para
a Companhia da Zambézia, que o poderia juntar ao Machinjiri, ou dele fazer um prazo à parte,
conforme fosse a sua vontade. Lembramo-nos de que, por várias vezes, o Ex. mo Sr. Mariano
Machado, digníssimo diretor da Companhia da Zambézia em África, nos ter dito que
precisava de homens fossem recensear o Malomuè e os picos de Namuli e M’Canga. Qual é o
caminho para os picos de Namuli senão o Derre do M’Canga? Se o diretor da Companhia da
Zambézia em África já contava com M’Canga, decerto que se fundava nas cláusulas dos
Estatutos da Companhia. Quais são os direitos que o prazo Marral pode apresentar para firmar
as suas pretensões ao Derre? Os que se baseiam no facto dos indígenas garantirem preferir o
143
Sr. Romão a qualquer outro arrendatário? Mas nós – como os demais que lá forem – podemos
conseguir o mesmo desde que distribuemos à larga aguardente e dinheiro. Conhecemos os
meios que o Marral empregou para chamar a si o M’Canga Corrio. Pelo primeiro foi dito ao
segundo que, nos primeiros tempos, só pagaria uma pequena porção de tabaco por cada
palhota! Ora no Derre o tabaco é tão abundante que não lhe é dada qualquer valia! Somos
contemporâneos destes factos, estávamos então a meio dia do Derre e ouvimos os
comentários feitos pelos próprios habitantes. Mas meramente por o M’Canga preferir o prazo
Marral, não se pode inferir que a razão e o direito estejam do seu lado. Passando agora para a
geografia. Qual é o limite natural entre os dois grandes prazos Machinjiri e Marral? Não é o
caudaloso Lualua? Sim é esse mesmo, coincidindo com o limite antigo entre o M’Canga e o
Nhamicunguro, outrora enfiteuta do Marral. Sendo este limite natural tão bem colocado, tão
visível, como é que se corta sem piedade o território do Machinjiri?
Temos acabado; já nos não sobra tempo. As dispersas considerações com que
terminamos o nosso trabalho, não envolvem qualquer crítica. São meras conclusões diretas
dos episódios históricos que descrevemos nas páginas anteriores. São a expressão sincera do
que sentem aqueles que, como nós, conhecem palmo a palmo, não diremos para além do
Derre, mas do Chire ao Derre, ao Macumbe, ao Ruo, ao Chindio, e ao Mcombezi, a mais
pequena parcela de terreno, o mais pequeno monte, o regato, a povoação e a gente.
Março de 1898 (a)… José de Magalhães de Menezes

Notas de pé-de-página distribuídas pelo texto original:


1 – Uatequenha – do verbo Ku-tequenha, mexer tudo, nome que os indígenas derivaram do génio guerreiro e
conquistador de Mariano, que o levou a assenhorar-se de domínios que o governo português chegou a
reconhecer-lhe, dando-lhe presentes e regalias de oficial superior e (mesmo) recebendo-o em Quelimane, já
então sede do distrito, com todas as considerações;
2 – M’Chaua – ainda é vivo, conversei com ele muitas vezes; deve ter perto de cem anos, fala admiravelmente o
português; dele houvemos informações coevas e fidedignas. Reside atualmente na margem direita do rio Chire,
no Unonanuassa, a jusante de Port-Herald, no território da British Central Africa;
3 – Machinjiri – e não Massingire, nem Messangire, como erradamente se escreve, é uma palavra derivada do
verbo Ku-tchinjira, que por seu turno é um repetitivo do verbo Ku-tchinja, que significa a ação dum bazo
(machadinha cafreal) que ressalta ao bater num tronco sem nele poder penetrar. É um vocábulo de Chi-maganja
(Vide Cyclopaedic Dictionary of the Mag’anja Language by the Rev. David Clement Scott, publicado em
Edimburgo). Considerando a gente de Matequenha como invencível, visto por varias vezes terem tentado atacá-
lo mas as suas forças (sempre) ressaltarem como sucede ao bazo cafreal, transmitiram o nome de Machinjiri para
a aringa e mais tarde estenderam-no aos sipais;
4 – Chonze – é o nome dado a um vento muito forte que nós supomos poder traduzir por furacão. Em virtude da
violência do jovem Mariano e do seu génio destruidor, foram os sipais que lhe deram o cognome acima referido;
5 – Mitambara – plural de tambara, sacos cafreais feitos com a casca de uma árvore chamada monbo muito
abundante no Malolo e de que os Anguros e Alolos se servem para o transporte de géneros. Também lhes
chamam mikwende;
6 – Canhongo – esta palavra designa o combatente que – seja dia seja noite – tem por obrigação tocar como sinal
de alerta o cinzete (pequeno tambor feito com pele de penembe, lagarto pequeno).

Seguem-se, por ordem quer de interesse quer de citação, as reflexões


merecidas por este valioso documento inédito

Em primeiro lugar ele demonstra a magna importância que era outrora dada ao respeito
pelos limites territoriais, mesmo nas mais pequenas comunidades políticas gentílicas. A
violação deliberada desses limites era suficiente para desencadear coletivas reações bélicas
que poderiam prolongar-se por tempo indefinido, provocando morticínios ou pelo menos
144
amargos sofrimentos. Tal se devia à enorme concentração de poderes que era atribuída aos
monarcas, com realce para os radicados nas crenças mágico-religiosas. Precocemente
desenvolvemos este tema na nossa “nota sobre o conceito de tribo em Moçambique” (1).
Exigia-se, a todos e quaisquer viajantes mesmo conhecidos, que suspendessem a sua marcha e
enviassem, a quem de direito, delegados portadores de oferendas, mesmo simbólicas,
solicitando a indispensável autorização para ser efetuada a travessia. É a todos os títulos
exemplar a visita efetuada em setembro 1827, à exploração aurífera de Inhaoxe, por uma
comissão de autoridades e moradores de Sofala. Oportunamente solicitámos a atenção dos
historiadores e dos antropólogos para as longas formalidades e para a complexidade dos
rituais e protocolos exigidos para a travessia do território tribal (2). Outra importante
constatação que ressalta do documento escrutinado relaciona-se com a exigência regulamentar
de serem efetuados recenseamentos da população, com o objetivo de se concretizar a
ocupação efetiva e de ser efetuado, dentro das normas vigentes, o pagamento dos tributos
fixados. Só aqueles que foram constrangidos a desempenhar, no chamado “mato”, as duras
tarefas do “arrolamento” podem avaliar os esforços, as privações de todo o género incluindo
na alimentação, nas deslocações, na falta de assistência médica, nas ameaças constantes de
miríades de insetos daninhos, nas inevitáveis precauções contra perigosas e omnipresentes
doenças tropicais, ressaltando a prévia fervura das águas mesmo as destinadas a lavagens.
O governador de distrito da Zambézia referido na carta introdutória foi o célebre oficial
da Armada João António de Azevedo Coutinho Fragoso de Sequeira (vulgarmente
simplificado para Azevedo Coutinho) que exerceu as referidas funções de 17 abril 1897 até
novembro 1898. Nas suas memórias alude ao Guarda-marinha Fernando de Magalhães e
Meneses, Conde de Vilas Boas que “com seu irmão José de Magalhães Meneses, Barão de
Viv’alva, tanto se distinguiram nas suas carreiras de coloniais ilustres e de soldados africanos
cheios de bravura e decisão (3). A autoria do documento deve-se decerto a este último, o que
fornece explicação para o elevado grau de cultura e sensibilidade que emana do relatório
supracitado, é tentador suspeitar que haja quaisquer relações familiares. Mariano Machado
aparece como subscritor das cartas manuscritas da administração em África que fomos
encontrar no antigo arquivo da Companhia da Zambézia, e cujas referências aparecem
reproduzidas nesta coletânea.
O comandante José Cardoso referido na terceira página, desempenhava as funções do
comandante militar de Massingire quando detetou e transmitiu a Serpa Pinto os primeiros atos
de rebeldia dos Macololos que de início abriram fogo contra o vapor Lady Nyassa,
pertencente à “African Lakes Company”.
Romão de Jesus Maria referido na 4ª pg. do mesmo inédito, era também arrendatário de
prazos cuja integridade e eficiente cooperação mereceram justo elogio a Azevedo Coutinho,
como se pode admirar no trecho que se transcreve: “Dos filhos da terra tinha
incontestavelmente a minha consideração e preferência R. J. M., que há muito conhecia,
arrendatário de prazo Marral de quem tenho falado e que tão relevantes serviços prestou à
Nação, auxiliando com sipais e sempre com a maior dedicação, bom conselho e prática, por
vezes com o maior risco e sacrifício, inúmeras expedições ao sertão em missões de paz e de
guerra”.
Durante a revolta de 1884 referida na 6ª pg. do mesmo inédito, foi cruelmente
assassinada a guarnição que ali se encontrava, incluindo alguns oficiais entre eles o próprio
comandante oriundo da família Almeida Queiroz citada por Azevedo Coutinho. O massacre
incluiu a esposa e os dois filhos do referido comandante. Pela carta que aqui se estuda é
possível identificar a proveniência dos revoltosos e a sua relação direta com o famigerado clã
Vaz dos Anjos que na década de 1840 se estabeleceu permanentemente na região de
Massingire, ocupando as terras mais baixas do rio Chire e ali construindo a poderosa
145
fortificação do Chamo. Malyn Newitt fornece suficientes pormenores sobre os malefícios
causados pelas atividades terroristas e escravistas desta dinastia (4).
Os rebeldes avançaram em direção a Mopeia massacrando e pondo em debandada a
população nativa. Foi nesta contingência que sobressaiu a ação heroica de Caldas Xavier que
– em situação de licença ilimitada – dirigia a empresa agrícola que Paiva Raposo tentava
fundar na grande concessão que lhe fora atribuída. Aquele militar, acompanhado por seu
irmão quase cego e pelo cidadão britânico Robert Penderson, técnico da empresa,
entrincheiraram-se num armazém e, reagindo com fogo vivo, resistiram durante sete horas aos
sucessivos assaltos. Já exaustos e feridos foram salvos, como refere Magalhães de Menezes,
por uma coluna de quinze estrangeiros vindos de Quelimane, escoltados pelos seus servidores.
Atacaram pela retaguarda e puseram em fuga os revoltosos. Não foi possível identificar esses
aliados estrangeiros.
Mário Costa faz ponderosas reflexões sobre tão épico combate:

“… a verdade é que se os dois mil revoltosos tivessem ocupado Mopeia,


ficariam, na altura, com a chave de todas as comunicações, de Quelimane com
Sena, Tete e Zumbo, isto é,… com a mais importante (parcela) que tinha então
a Província. Alastraria a revolta para outras localidades e ficariam em perigo,
pelo menos, Quelimane e Sena. E o que se diria… a nosso respeito, à falta de
argumentação imparcial? Que Portugal não tinha forças, nem poder, nem
recursos para manter a sua soberania na cobiçada África Oriental” (5).

Na sequência desta revolta foi nomeado José Cardoso como comandante militar de
Massingire. Já acima o referimos como colega de Serpa Pinto. Azevedo Coutinho também faz
referências elogiosas ao empresário Dúlio Ribeiro, mencionado por Magalhães de Menezes.

Bibliografia

1) RITA-FERREIRA, A. (1958). Nota sobre o conceito de “tribo” em Moçambique. Lourenço Marques,


Bol. Soc. Estud. Moçambique, vol. 27, nº 108, pp. 49-68.
2) RITA-FERREIRA, A. (1999). African Kingdoms and Alien Settlements in Central Mozambique.
Universidade de Coimbra/Departamento de Antropologia.
3) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand, pp. 402/5 e 414.
4) NEWITT, Malyn (1970). The Massingire rising of 1884. Londres, J. Afr. Hist., 9, pp. 87-105.
5) COSTA, Mário A. (1928). Voluntários de Lourenço Marques. L. Marques, Imprensa Nacional, p.18/9.
147

14º
DOCUMENTO
Esforços colonizadores da Companhia da Zambézia

É sabido que efetuei, para o Arquivo Histórico de Moçambique, a microfilmagem do


enorme acervo documental que se encontrava na antiga sede lisboeta desta grande empresa.
Durante cerca de quatro décadas, gozou de largos poderes de soberania numa área que quase
compreendia metade da superfície total da secular colónia.
Esse arquivo fora organizado sem critérios bem definidos, sobrepondo-se os assuntos
em sequências quer não numeradas quer numeradas mas com falhas e erros. Entre o seu já
diminuto pessoal lisboeta, ninguém sabia qual o tipo de documentos que ocupava o grande
sótão. A documentação fora escrita sem margens esquerdas suficientemente largas e, por
conseguinte, os pregos das capas atravessavam o conjunto, tornando-se indispensável desfazer
muitas pastas para se conseguir microfilmar o seu conteúdo em boas condições. Era
indispensável consultar a totalidade e inventariar a particularidade para que não ficasse
alterada a ordem dos documentos com interesse histórico e para que pudesse apurar o
paradeiro de outro material que considerei importante tal como: informações dos
intervenientes nas campanhas de ocupação e na supressão das revoltas que nesse contexto
eclodiram; relatórios dos chefes de secções e administradores de prazos que acumulavam as
suas funções com as de comandantes militares; problemas surgidos com os primeiros
recenseamentos e com a consequente cobrança do imposto indígena (mussoco) em géneros,
dinheiro ou trabalho; recrutamento de trabalhadores para as minas do Rand; itinerários de
reconhecimentos e expedições com localização e identificação das unidades políticas
tradicionais. Entre parênteses mencionarei que esses tão antigos relatórios eram sem
comparação melhores dos que, décadas depois, iriam subscrever os administradores de
Circunscrição nomeados ao abrigo da salazariana Reforma Administrativa Ultramarina.
Todo esse material foi, de início, redigido apenas em originais manuscritos. Era
mandado de Moçambique, para conhecimento do Conselho de Administração. Ora ficava na
sede, ora era devolvido. Por esse e por outros motivos, a totalidade do arquivo teve que ser
“passada a pente fino”. Tanto os dois copiadores da correspondência sobre o período de 1914
a 1940, como os restantes que os antecederam ou sucederam, não dispensavam a consulta da
documentação recebida. Havia correspondência de extremo interesse trocada com entidades
oficiais, sobretudo com os administradores por parte do Estado e com os comissários do
governo nomeados para seguir a administração da Companhia. Havia, sem dúvida, livros das
atas das reuniões os quais, segundo me informaram, foram remetidos para Moçambique.
Também não me foi mostrada a correspondência secreta e confidencial. Após a inventariação,
o material foi arrumado na sequência que preferi para que a microfilmagem fosse efetuada de
maneira racional e cronológica.
Como acentuei nos meus relatórios mensais, era indispensável que tivesse livre acesso a
todos os pisos e compartimentos. Não podia ficar dependente da boa vontade e das
disponibilidades de tempo, das duas empregadas da secretaria, tanto no transporte das pastas
como do próprio escadote. Felizmente que esta difícil situação pode ser normalizada pela
admissão de Manuela Branco, filha do próprio Eng.º Homero que desempenhava as funções
de gerente dessa então simples “filial” da C. Z. em Lisboa.
Como acontece com quaisquer outras grandes empresas comerciais, o estudo consciente
das atividades exercidas pela C. Z., exige a consulta minuciosa das contas da gerência e
148
exercício. Desde a sua fundação que, anualmente, publicava o volume reunindo todos os
dados que facultassem aos acionistas e às autoridades tomar conhecimento das atividades
desenvolvidas e dos resultados alcançados. Conseguimos reunir uma coleção completa,
iniciada em 1892 e completada em 1974, coleção que foi oportunamente entregue ao Prof.
José Fialho, representante do Arquivo Histórico de Moçambique para coordenar o projeto de
microfilmagem financiado por uma instituição sueca. Projeto vasto porque só por mim –
contando apenas o total dos arquivos selecionados – ultrapassei os seiscentos e vinte mil
microfilmes.
Infelizmente todo este magnífico acervo foi mandado destruir quando o diretório
moçambicano tomou a decisão de vender o edifício da sua antiga sede, situado em
privilegiada zona urbana e dispondo de um largo quintal.
Para facilitar a tarefa dos investigadores, chamo a sua atenção para a existência de um
grosso volume encadernado que se encontra entre os “reservados” da Sociedade de Geografia
de Lisboa, com a cota 60-A-15 e com o título de “Relatórios e Contas da Companhia da
Zambézia”. Compreende o período de 1892 a 1908.

“Relatórios e Contas”

1º “Relatório do Conselho d’Administração – 1-6-1892 a 31-12-1893”, Lisboa, 1894, 32 pgs.


2º “Relatório do Conselho d’Administração – apresentado na Assembleia-geral Extraordinária
de 28-6-1894”, Lisboa, 1894, 20 pgs.
3º “Atos e Contas de 1894-1895”, Lisboa, 1895, 30 pgs.
4º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1895”, Lisboa, 1896, 67 pgs.
5º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1897”, Lisboa, 1898, 101 pgs.
6º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1898”, Lisboa, 1899, 57 pgs.
7º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1899”, Lisboa, 1900, 50 pgs.
8º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1900”, Lisboa, 1901, 113 pgs.
9º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1901”, Lisboa, 1902, 48 pgs.
10º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1902”, Lisboa, 1903, 56 pgs.
11º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1903”, Lisboa, 1904, 40 pgs.
12º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1904”, Lisboa, 1905, 38 pgs.
13º “Rapport du Conseil d’Administration. Bilan et Comptes. Rapport du Conseil Fiscal.
Exercise de 1905”, Paris, 1906, 36 pgs.
14º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1906”, Lisboa, 1907, 48 pgs.
Este relatório inclui uma carta (65,5 x 26,5 cm) da área dos territórios das concessões da C. Z.; com a
localização numerada das minas de ouro, cobre e carvão e, igualmente, a localização numerada dos prazos com
sua relação alfabética.
15º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1907”, Lisboa, 1908, 50 pgs.
16º “Relatório. Contas. Parecer do Conselho Fiscal. Gerência de 1908”, Lisboa, 1909, 42 pgs.

***
149
A mais imparcial análise dos relatórios da C. Z. quando acompanhada do pleno
conhecimento das condições e das dificuldades em que foi desenvolvida a sua administração
africana, demonstraram cabalmente que a Companhia não descurou a valorização económica
das suas concessões.
No setor agrário diversas foram as experiências levadas a efeito com as culturas da
cana, da borracha, de café, de oleaginosas, de arroz, de algodão e principalmente de coqueiros
que tem plantado e cuidado em elevado número. Entretanto intensificou a criação do gado, e
continuou os ensaios ou a exploração das culturas de quina, baunilha e mandioca para
sustento das populações indígenas. Apesar de todos os contratempos, a C. Z. continuou a
ocupar novas regiões, a fundar novas estações e a explorar as indústrias e culturas já criadas e
iniciou-se a do sisal.
Durante o período de 1904-1906 continuou trabalhando com método e tenacidade,
transformando-se e beneficiando-se os palmares de coco, iniciando-se culturas de coconote e
de algodão e desenvolvendo-se a pecuária. Continuou-se também neste período a instalação
de salinas e a exploração das fábricas para preparo de arroz e do cairo. Tendo sido detestáveis
os anos agrícolas de 1904 e 1905, com o que muito também sofreu a agricultura indígena,
teve a C. Z. no seu ramo comercial de restringir consideravelmente as operações, efectuando
apenas transações solidamente garantidas.
Malgrado o golpe sofrido com o ultimatum de 1890, é de elementar justiça reconhecer à
Companhia da Zambézia a primazia nas iniciativas de desenvolvimento desses sertões com
tão patentes potencialidades. Foram arriscados os investimentos de tipo capitalista mas
conseguiram-se êxitos nos trabalhos mineiros e alcançaram-se brilhantes resultados com as
plantações após tentativas que confirmaram as mais rentáveis.
A título de exemplo, relata-se com mais pormenor o fracasso em que redundou o longo
e considerável esforço que efetuou com a cultura do algodão, apesar de ter conseguido
financiamento estrangeiro e de contar com a dedicação de um qualificado agrónomo. Ela foi
iniciada em 1904, no Prazo de Bompona, com sementes das qualidades “Egípcio Abanni
Mitafifi” e “Americano Geórgia/Upland”. Nesta experiência foram colhidas, em 4,5 ha.s,
nada menos do que 2.335 quilos de algodão-semente depois transformado em 996 quilos de
algodão-fibra. Este obteve muito boa classificação na exposição colonial efetuada na
Sociedade de Geografia de Lisboa, em abril e maio 1905. Dois exemplares foram cotados a £
7 ¼, um exemplar a £ 6 ¼ e outro a £ 5 ¾ de pence. Apresentaram fibras com 1 ½ e 1 ¾ de
polegada. Este notável resultado levou a Companhia a fundar em 1906 o Sindicato de Estudos
para a Cultura de Algodão na Zambézia, o qual foi constituído por ela própria e pelo Banque
de l’Únion Parisienne. O Sindicato contratou e instalou na Zambézia o engenheiro agrónomo
René Ismalun, com o objetivo de investigar e de implementar a cultura. Procurou, desse
modo, tirar proveito das isenções oferecidas, em todas as colónias portuguesas, pelo Decreto
de 20 março 1906, isenções que se prolongavam por vinte e cinco anos. O mesmo decreto
chegou ao ponto de, em Angola, conceder um prémio de 30$00 por cada hectare onde tivesse
sido cultivado o algodoeiro.
O Sindicato logo iniciou, em Bompona, o plantio de dez hectares com a semente do
supracitado algodão egípcio, tendo conseguido produzir, por hectare, nada menos do que 251
kgs de algodão-fibra. Em 1907 a área cultivada subiu para 128 ha.s mas, devido à inesperada
invasão de uma doença criptogâmica, o resultado final foi dececionante. A persistência
daquela doença teve como efeito o esgotamento do capital de 250 mil francos, na base do qual
se havia constituído o dito Sindicato. Esta conjuntura explica a respetiva liquidação em 1909.
Em virtude das condições favoráveis que lhe foram oferecidas para aquisição do ativo,
decidiu a Companhia da Zambézia prosseguir com as experiências, desta vez com o algodão
Caravonica da Austrália e, ainda, com o de Moçâmedes (Angola). Em 1910 e 1911, como as
150
doenças e os parasitas continuassem a atacar as plantações, resolveu tentar a semente do
algodão americano Upland, aclimatado no vizinho protetorado britânico da Niassalândia.
Alcançou-se o magnífico resultado de 650 kgs de algodão-semente por hectare, ao qual
corresponderam 33% de fibra limpa. Em Manchester foi avaliado com a vantagem de 70 a 80
pontos sobre o Midlling Americano. Em 1912 atingiu 700 ha.s a área total semeada em
Bompona, Vila Bocage, Chilomo, Benga, Andone e Anguaze. Por desgraça – devido a
profunda e generalizada seca – a colheita foi praticamente nula.
Desde 1913 até 1927 a situação evoluiu, desastrosamente, como se segue: naquele
primeiro ano foram cultivados 1.186 ha.s e colhidas 147 ton.s, ou seja 125 kgs por ha.s;
Em 1914 a área cultivada foi reduzida para 593 ha.s, devido à entrada em vigor do
Decreto datado de 7 julho 1913 que criou um imposto de 4% ad valorem sobre os produtos
exportados. Naquele ano a produção própria atingiu 72,5 ton.s mas a proveniente dos
indígenas – a quem foram distribuídas sementes, com a garantia de ser fixado um preço para o
algodão-caroço – situou-se na casa das 160 ton.s;
A partir de então a evolução anual pode assim resumir-se:
1915 – Cultivados 371 ha.s, com colheita de 45.206 kgs;
1916 – Idem, respetivamente, com 540 ha.s e 286.148 kgs;
1917 – Colheita de 176.088 kgs;
1918 – A cheia cobriu totalmente a Ilha de Bompona e destruiu a totalidade das terras
cultivadas, o que, juntamente com o aparecimento de doenças, explica a suspensão
determinada em 1919;
1920 – Efetuaram-se plantações algodoeiras em quatro locais distintos, sendo
produzidos apenas 3.165 kgs de algodão-semente;
1921 – Em Bompona e Chilomo colheram-se, respetivamente, 7.885 e 4.778 kgs de
algodão-semente;
1922 – Apenas Bompona produziu 759 kgs de algodão-semente;
1923 – Em Chilomo foram preparadas terras para cultivo no ano seguinte;
1924 – Nesse mesmo local foram produzidas cerca de 30 ton.s de algodão-semente;
1925 – Idem, idem 89.587 kgs;
1926 – Idem, idem cerca de 12.000 kgs;
1927 – A Companhia desistiu completamente da cultura algodoeira por lhe ter causado
demasiados prejuízos. Este fracasso é merecedor de estudos comparativos porque a
investigação arqueológica prova que a cultura do algodão e o fabrico de tecidos se
encontravam largamente divulgados entre as comunidades nativas que entraram em contacto
com os colonizadores oriundos do Médio Oriente, já convertidos ao Islamismo. No ensaio
inédito sobre as “Culturas Obrigatórias no Moçambique Colonial”, serão dados mais
pormenores sobre este assunto.
151
Coleção de Volumes, numerados e datados, reunindo a correspondência da
Administração em África da Companhia da Zambézia (1892 a 1908)

Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada se encontrava


colado o nº 1 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência do Ex.mo
Sr. coronel Paiva d’Andrada – maio 1892 a agosto 1893”. A documentação que nele se
encontrou foi classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem:
– Carta de Paris, a 31/5 (compra e venda de ações).
– Telegramas, de 3 e 4/6, sendo um certificado e o outro cifrado.
– Carta de Paris, a 6/6 (sobre ações). Telegrama, a 7/6.
– Sete cartas de Paris, de 10/6 a 22/7, com os seguintes assuntos: questão Wiese; lista da
repartição de 18.000 ações; reunião com acionistas ingleses; lista de 9.500 ações; colocação
de ações; acionistas ingleses; certificados de ações.
– Telegramas, de 4 e 13/8. Copia datilografada da carta, em francês, dirigida a Theodore
Berger, de 18/8, acentuando a penúria de capitais e informando que vai partir para África, via
Londres e Lisboa, onde espera falar com o ministro da Marinha. Honorários e despesas suas e
do Engenheiro de Minas Gaston Angelvy (por outra fonte sabemos que este técnico, em 1884
comissionado pelo Sultão de Zanzibar, pesquisou a possível existência de jazigos carboníferos
em Itule, na margem direita do Lugenda).
– Telegramas, de Londres e Lisboa, respetivamente de 21 e 31/8.
– Sete cartas no vapor “Tartar”, de 17/10 a 10/11 (nas de 1 a 3-A da coleção impressa,
sendo as 1-A, 2-A e 3-A referentes à Contabilidade).
– Três cartas, de 26 a 27/11, Quelimane (nas de 4 a 6 da coleção impressa, sendo a 4ª
referente ao “emprego do tempo”; a 5ª a “projetos, grandes negócios ou política da
Administração da Companhia”, sendo este sublinhado da autoria de P. A; tem em anexo
cópias de três cartas diversas que também constam da coleção impressa e a 6ª sobre “Terras
da Maganja da Costa”).
– Contrato, em papel selado, entre a C. Z. e Pedro de C. Valdez, arrendatário dos Prazos
Macuze e Licungo, feito em Quelimane, aos 26/11 (É de notar que alude à “grande
influência” que este Valdez exercia sobre o chefe rebelde da Maganja da Costa, “capitão”
Mucumba). Adenda ao acordo referido.
– Duas cartas, a 28/11, Quelimane (nas 7 e 8 da coleção impressa, ambas sobre
“expediente”, mas a segunda com mais notas à margem).
– Carta de 11 pgs, Inhasserere, margem direita do Zambeze, 7 km a montante de Sena, a
17/12 (é a nº 9 da coleção impressa: “emprego do meu tempo”). Contém valiosas informações
e refere a subida do Zambeze em três escaleres).
– Decalque da carta datilografada por P. A. a pg. 6 da carta nº 9. Inhasserere, a 16/12.
– Nove cartas, a 18 a 30/12, Inhasserere (nas de 10 a 18 na coleção impressa). Tratam
dos seguintes assuntos: “pesquisas auríferas”; “empregado da C. Z.”; “comércio”;
“expediente”; “estações da C. Z.; prazo e luane de Inhasserere”; “meios de navegação no
Zambeze”; “concessão do arrendamento dos prazos”; “saque no valor de 340$000 reis”;
“pedras preciosas”.
– Documentos que não constam da coleção impressa, que P. A. remete os exemplares de
18 e 25 junho do jornal “South Africa” onde sublinhou notícias de interesse p/ Moçambique e
p/ a C. Z.
152
– Documentos não transcritos na coleção impressa contendo “Deve e Haver da Caixa”,
faturas, recibos, notas de despesas, etc., tudo relativo a 1892.
– Carta em Guengue, a 16/1 (é a nº 18-A: “aviso de um saque”).
– Telegramas, expedidos a 5/3, anunciando a sua partida para a Europa.
– Carta em Zanzibar a 12/3 (é a nº 19 da coleção impressa).
– Telegramas expedidos durante a viagem.
– Valiosa carta em Madrid (?) a 16/4, não incluída na coleção impressa.
– Dois telegramas diversos.
– Duas cartas de Paris, a 26/4 e 29/5, não incluídas na coleção impressa.
– Duas cartas em Livorno, a 5/6.
– Duas cartas em francês, de 2/6.
– Três cartas a bordo do “Bundesrath”, de 11/6 a 14/7, nºs 20 a 22 da coleção impressa,
sobre várias matérias: “tabaco”; “emprego do tempo, grande número de informações sobre o
estado de rebelião das populações do vale do Zambeze recolhidas durante a subida do rio
desde dezembro de 1892 a janeiro de 1893” e, ainda, sobre o “Prazo Tambara”).
– Duas cartas em Zanzibar, de 5 a 6/7 (são as nºs 23 e 24 da coleção impressa. A
primeira versa “comunicações marítimas”. A 2ª é reservada e trata da “Maganja e terrenos do
distrito de Quelimane”.
– Sete cartas na Ilha de Moçambique, de 14 a 19/7 (nºs 25 a 31 da coleção impressa)
tratando do seguinte: “comunicações marítimas”; “telegramas e comunicações telegráficas”;
“aviso de saque – compra de tecidos de algodão a grossista hindu”; “fazendas de algodão
cru”; “viagem e comunicações marítimas”; “territórios ao norte de Quelimane”;
“estabelecimento das comunicações telegráficas em terra – cabo submarino”. Na penúltima as
folhas 4 e 5 estão carcomidas p/ insetos).
– Duas cartas no vapor “Emir”, aos 26/7 (nºs 32 e 33 da coleção impressa) estudando: a)
“portos de Quelimane, Macuze e outros; sua relação com os caminhos-de-ferro”; b)“terras da
Maganja da Costa – prazos Macuse e Licungo – outros terrenos a norte”. Esta última não foi
transcrita por ser considerada confidencial.
– Carta de P. de Campos Valdez, arrendatário dos Prazos Macuse e Licungo, de 10/4.
– Bilhete de Paiva d’Andrada.
– Dezasseis cartas no Sombo, de 28/7 a 14/8, (nºs 34 a 49 da coleção impressa
versando: “parceria comercial”; “notícias da Zambézia”; “envio de saque”; “Wiese –
concessões”; “ramo comercial”; “Max Schoeppes”; “correspondência recebida de Lisboa”;
“Companhia Flotilla – transporte de artigos da C. Z. para Tete”; “Vila do Chinde e terrenos
vizinhos com plano de urbanização”; “hotel no Chinde”; “tabacos”; “ramo comercial”,
“parceria comercial”; “aviso de saque”; “contabilidade – guarda-livros – sede da
administração”; “navegação fluvial”. As cartas nºs 34, 38 e 45 não foram transcritas por
serem consideradas confidenciais)
– Carta em Quelimane, a 21/8/1893, s/: “Ramo comercial” (não consta da coleção
impressa). – Telegramas de agosto 1893.

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153
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 2 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência do Ex.mo
Sr. P. d’Andrada – outubro 1893 a novembro 1894”. A documentação que nele se
encontrou foi classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem.
– Oito cartas em Tete, nas de 51 a 57, de 11 a 24/10, referindo os seguintes assuntos:
“aviso de saque”; “sumário de informações acerca da viagem e do pais e vários assuntos
indicados à margem”; “Angelvy e seu relatório mineiro”; “relatórios quinzenais de Mariano
Machado”; “Cocorico”(?); “aviso de dois saques”; “aviso de saque”. A carta s/n foi escrita por
outrem e assinada por P. A., sobre o Engenheiro de Minas Angelvy. Atenção carta nº 52.
– Cartas nºs 58 e 59, no Guengue e na Ilha Nhamungo, a 30/10 e 7/11.
– Telegramas e minutas sobre a construção de uma linha telegráfica de Cecil Rhodes,
com autorização do governador de Tete.
– Cartas nº 60/1 na aringa Mafambisse (ponta Sangara do prazo Guengue), a 24 e 29/11.
– Cartas nºs 62 e 63, no Sombo e Quelimane, a 14 e 17/12, resumindo as atividades que
P. A. desenvolveu desde 27 julho.
– Carta de Dúlio Ribeiro para P. A., idem, a 2/11, sobre a arrematação do monopólio do
comércio na Maganja da Costa.
– Telegramas. – Quatro cartas, no Sombo, nas de 64 a 67, de 21 a 31/12.
– Nota de despesas de 31/7.
– Caixas do administrador delegado, de agosto a dezembro 1893.
– Cópia de uma carta em francês, de 14/6, em Tete pelo Engenheiro Gaston Angelvy.
– Relatório elaborado e assinado pelo Engenheiro Gaston Angelvy, em Tete, a 15/8.
– Carta de Dúlio Ribeiro, Quelimane, a 29/12.
– Cartas nº 68, 69 e 70, no Sombo, a 1, 5 e 6/1.
– Quatro telegramas. – Carta nº 70-A, “Exposição feita pelo administrador delegado
sobre verbas pagas pelo Comité de Londres à Central African Company”.
– Quatro cartas de P. A., em Londres, desde 25/4 a 4/5.
– Relação de telegramas; seis telegramas diversos.
– Três cartas de P. A., em Paris, nos dias 5 e 6/5.
– Carta da Eastern Telegraph Inc, de 2/5.
– Cópias de telegramas em inglês.
– Três telegramas.
– Carta de P. A., em Lisboa, a 25 ou 28/9.
– Apontamento solto, sem data.
– Parecer elaborado em Paris, “na manhã de 13/10”.
– Proposta em Lisboa, a 15/10.
– Projeto de orçamento, apresentado a 15/11.
– Caixa do administrador delegado (janeiro a março 1894).
– Telegrama de 11/3.

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154
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 3 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência de
Mariano Machado – agosto 1893 a fevereiro 1895”. A documentação que nele se encontrou
foi classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem:
– Relatórios em Tete, nas de 1 a 4, referentes às quinzenas de agosto e setembro 1893,
mencionando: rio Zambeze, transportes, comunicações, pesquisas, concessões, madeiras,
Kahorabassa, carvão, comércio, pessoal, Macanga (propõe a instalação de famílias boers);
chegada de dezoito almadias, uma das quais foi atacada por feroz hipopótamo.
– Modelos de impressos.
– Cartas nºs 68 e 69, em Maembe, aringa Restauração, a 25 e 29/1. Na primeira pede a
Paiva d’Andrada autorização para se deslocar a Portugal por motivo de doença.
– Cartas nºs 74, 76, 79, 80 e 81, em Tete, de 10 a 13/12. A segunda, que tem anexas
duas cartas em inglês, refere o incidente ocorrido durante a construção da linha telegráfica
Blantyre-Salisbury, protegida por lanchas-canhoneiras britânicas no Zambeze. A última narra
mais pormenores sobre este caso e anexa cópias de sete cartas em papel fino (uma delas
confidencial) e um “protesto” em papel timbrado da C. Z.
– Duas cartas não nas, a lápis, na “Fronteira Leste do Zambeze”, a 17/2/1894: a primeira
para P. d’Andrada e a segunda para o comandante militar Superior de Tete.
– Carta nº 84, a P.A., no rio Combeze, a 19/2/1894, c/ referência a Bívar e a (sua?)
aringa. – Carta nº 85, do mesmo local e data, ao comandante militar Superior de Tete.
Termina assim: “Todos os pretos do prazo Mocaca me afirmam que o seu limite Leste
foi sempre o rio Combeze e que além dele eram terras dos Macololos e do prazo
Maganja”.
– Carta nº 87/7, do mesmo local, a P. A. aos 21/2, enviando croquis geográficos com
indicação dos rios e da localização dos acampamentos (português e inglês).
– Telegrama. – Carta com quatro faces, no Chinde, a 23/2/1894.
– Carta em Tete, a 27/2/1894, acompanhada pela ata da sessão de desagravo realizada
por moradores de Tete, na Sociedade Literária, contra a afronta à soberania portuguesa
constituída pela construção, não autorizada, da linha telegráfica Blantyre-Salisbury. Atenção
ao papel manchado pelo excesso de tinta.
– Carta-protesto destinada à Rainha Victoria, sobre o mesmo assunto. Croquis. Atenção
à escrita muito manchada, quase ilegível.
– Catorze cartas, em Tete, n nas 92, 98, 104, 106, 108, 110, 123, 125/11, 127, 129, 132,
141, 148 e 159, de 27/2 a 2/5/1894, tendo as 108 e 110 anexos, a 123 os balanços de 1892 a
1893.– Carta, em francês, em Tete, a 5/3, ao Comissário de Sua Majestade Britânica, em
Zomba. – Carta, em francês, em Zomba, a 27/2, pelo representante da British Central Africa.
– Carta nº 162, no Chinde, aos 16/5/1894.
– Carta em Figueira da Foz, em julho 1894, reiterando o pedido de demissão.
– Resumo da exposição feita, a 24/8, por Mariano Machado, na sessão da C. Z.
– Carta de 6/9, em Lisboa. Carta a bordo do “Goth”, a 13/9. Carta no Cabo, a 3/10.
– Relatório importante, em Quelimane, de 30/10; entre as folhas 5 e 6 havia uma carta
do Chinde, com a mesma data, ass. pelo Inspetor dos Prazos da Coroa, Gorjão de Moura.
– Duas cartas em L. Marques, a 30/11 e 3/12/1894.
– Três ofícios nº 177, 187 e 202, a 23/11 e 26/12, o primeiro dirigido ao Inspetor dos
Prazos da Coroa. O segundo, com a mesma data, com resposta alusiva à renda devida pelos
Prazos. O terceiro, do mesmo Inspetor-geral Gorjão de Moura.
155
– Carta de Pereira, Dúlio & Cia, em Quelimane, a 24/11.
– Carta pessoal e reservada, em L. Marques, a 3/12.
– Três cartas em Quelimane, nºs 184/5 e 189, de 24 a 29/12; a última protesta contra o
imposto de palmeira acentuando que se exige demasiado dos “pretos fiéis” e nada se exige
dos “pretos rebeldes”.
– Carta de João Martins, em Tete, a 25/10.
– Nº 25, de 13/10/1894, do “Echo da Zambézia”, publicado em Quelimane, com
editorial pedindo a anulação do decreto de 28/6 que cria um imposto sobre o coqueiro.
– Cinco relatórios de Gustavo de Bívar Pinto Lopes, de 16/1 a 17/3: o primeiro foi na
aringa de Sangara (apresentação de chefes); o terceiro na aringa Restauração, em Maembe,
aos 18/2, sobre apresentações de muanamambos, sachekundas e mukatas).
– Relatório de Mário d’Andrade, em Sena, a 22/4.
– Carta e anexos de G. Bívar Pinto Lopes, de 6/5.
– Dois relatórios de Raphael de B. P. L., em Maembe, a 31/5 a 15/6, com anexos.
– Quatro cartas de Machado, em Moçambique, de 3 a 11/1/1895, anexos (29 fls.).
– Duas cartas de M. Machado, em Quelimane, a 20 e 21/1, (37 fls.).
– Carta de Cosme Dias, em Moçambique, a 16/1.
– Carta de R. R. Rodrigues, em Quelimane, a 22/1.
– Carta de J. de Moctesuma, em Quelimane, a 21/1/1895.
– Carta de Raphael Bívar Pinto Lopes, em Sangara, a 12/12/1894.
– Relatório volumoso do tenente A. Trindade dos Santos, em Tete, a 12/11/1894.
– Mapa do mussoco recebido.
– Carta nº 37/7 de Machado, Quelimane, a 14/2/1895 (v. férrea Quelimane – Maquival).
– Carta nº 38/8 de M. M., em Quelimane, a 14/2, com decalques das dirigidas a Carlos
Wiese e ao governador da Zambézia e com uma justificação das despesas.
– Carta s/n, de R. B. Pinto Lopes, em Sangara, a 29/12/1894, no prazo Benga, um tal
Carlos “obrigava os nativos a aceitarem fazendas para trabalharem para os ingleses”.
– Decalque da carta de M. M. ao Inspetor-geral dos Prazos, Quelimane, a 14/2.
– Decalque da carta de M. M. ao governador da Zambézia, Quelimane, a 14/2.
– Carta de Pereira, Dúlio & Cia. ao diretor da C. Z., em Quelimane, a 11/2.
– Carta em inglês da “African International Flotilla and Transport”, Chinde, 4/2.
– Decalques de três letras no valor de 1.000$00; 300$000 e 900$000.
– Carta de Cosme Dias, em Inhambane, a 8/2, com informações sobre o vencimento e as
regalias que auferia na Casa Regis.
– Oficio nº 21, de 15/2/1895, do Inspetor-geral dos Prazos da Coroa.

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156
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 4 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência de
Mariano Machado – março 1895 a março 1896”. A documentação que nele se encontrou
foi classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem:
– Dez cartas de M. M. nas, com faltas, de 41/9 a 75/18, todas em Quelimane, de 18/3 a
19/5/1895. A nº 49, de 28/3, tem 48 fls., incluindo anexos de Raphael Bívar Pinto Lopes; João
Martins, capitão-mor de Tete; A. Huber, em francês; projeto de casa no Chinde.
– Carta em francês, no Chilomo, a 8/6. – Carta nº 90/19, idem, em Quelimane, a 6/6,
com missiva de 12/6 remetendo o “projeto de regulamento de cortes de madeira e lenha”.
– Três cartas extras, nos de 1 (incomp.) a 3, no Chinde e em Tete, de 19 a 30/6/1896.
– Quatro cartas de M. M., de Tete, nos de 101/20 a 117/24, de 16/7 a 22/8, 23 fls).
– Carta nº 131/25, idem, a 3/9/1895, com: a) decalque do contrato com o capitão
Mesquita e Solla; b) nota dos prazos do distrito do Zumbo; c) decalque de carta dirigida ao
Inspetor-geral dos Prazos; d) letra no valor de £ 400.
– Cartas nº 139/26 e 140/27, de Quelimane, a 29 e 30/9, constando da primeira o
contrato com José Thadeu da Silva. Carta em inglês, do Chinde, a 15/9/1895.
– Carta incompleta, em Quelimane, a 4/10/1895. – Carta nº 152/29, do Chinde, a 10/10.
– Letra no valor de 2.600$000. – Carta nº 156/30, Benga, em Tete, a 21/10.
– Carta com número ilegível, idem, a 28/10/1895.
– Dois decalques das cartas em francês, de Quelimane, a 11/11/1895.
– Duas cartas de M. M., idem, de 5 a 12/12/1895.
– Idem, idem, de dez. 1895, c/ croquis, na escala 1/250.000, entre Boroma e Chicoa.
– Carta em L. Marques, a 21/12, sobre a Portaria que autorizou a ocupação da Macanga.
– Folhas de pagamento, etc. (41fls.). – Relatório anual de 1895 (11 fls.).
– Duas cartas de M. Machado, em Quelimane, com anexos, de 17 a 27/1/1896.
– Cheque no valor de £ 7, do “Bank of Africa”. Carta s/nº, de Tete, a 10/2/1896, com
mapa da receita e despesa em 1895. Carta s/nº, de Tete, a 20/2/1896, com dois úteis mapas de
prazos. Importantíssimo relatório do capitão A. F. de Mesquita e Solla, da “Agência
Principal dos Prazos de entre Chicoa e Zumbo”, referente a 31/12/1895 (25 fls.).
– Duas cartas de M. M., em Quelimane, a 14/3/1896. – Valioso relatório do capitão
Mesquita e Solla, da Chicoa, a 31/1/1896, apresentado ao governador do distrito de
Zambézia. Versa os seguintes assuntos: a) margem esquerda do Zambeze sem ocupação
efetiva; b) arbitrariedades de Ignácio de Jesus Xavier – confidencial; c) posição dos chefes
indígenas; d) pagamento do mussoco em enxadas “a tradicional industria dos maraves”; e)
apontamentos importantes para a história da Marávia no arquivo da Secretaria de Tete; f) o rei
Undi; g) importância do clã Pire; h) incursões dos Angonis de Mpezene; i) famílias de Araújo
Lobo e de José do Rosário Andrade, este último alcunhado “Canhemba” (24 fls.).
– Cinco cartas de Quelimane, de 16 a 19/3, ver “termo de entrega de prazos”.
– Dezoito cartas de M. M., nas de 15 a 32, sendo as seis primeiras de Quelimane sem
data e as restantes do Chinde, com datas de 21 a 23/3/1896. Memória descritiva do Prazo
Nameduro, a 16/3/1896. Três cartas do Chinde, nº 33 a 35, a 23/3, com mapa de receita e
despesa de 1895 e decalque de carta a Freire d’Andrade.

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157
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 5 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência de
Mariano Machado – abril a dezembro 1896”. A documentação que aqui se encontra foi
classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem:
– Vinte e seis cartas do Chinde, nas de 36 a 61, de 13/4 a 16/5/1896.
– Idem, idem, nº 62, de 16/5, com carta de 30/3/1896, do capitão Mesquita e Solla,
chefe da Secção entre Chicoa e Zumbo, referindo: a) violências cometidas por policias
ingleses; b) auto de declaração de José Dionísio sobre o Prazo Mocingua; c) seus relatórios de
fevereiro e março; d) praga dos gafanhotos zomba; e) chefe feudal Vicente José Ribeiro, o
Chimbango; f) mussoco e recenseamento; g) incursões de M’Pezene; h) navegação no
Zambeze.
– Vinte e cinco cartas do Chinde, nas de 63 a 86, de 16/5 a 3/6/1896, sendo a nº 71 a
resposta em francês ao questionário sobre jazigos carboníferos e, ainda, revestindo a nº 84
excecional importância chegando a ocupar 35 fls.
– Dezasseis cartas do guarda-livros, no Chinde, nas de 87 a 102, de 3 a 28/6/1896.
– Duas cartas de M. Machado, no Chinde, nas de 103 e 104, de 9 a 10/7/1896.
– Idem, idem, nº 105, de 10/7/1896 denunciando a entrada no Tijungo de dois pangaios
com pólvora para os “rebeldes” da Maganja da Costa e, ainda, a falta de fiscalização naval.
– Vinte cartas de M. Machado, no Chinde, nas de 106 a 125, de 8 a 10/7/1896.
– Idem, carta importante nº 126/7, de 9/7/1896 acusando a prisão arbitrária em Tete, sob
condições desumanas, dos três filhos do arrendatário Araújo Lobo, educados em Lisboa.
– Idem, relatório excecional enviado do Chinde a Couvreur, a 9/7/1896 (24 fls.).
– Continuação de relatório anterior, 10/7/1896 (19 fls.).
– Relatório volumoso e precioso nº 128, no Chinde, a 18/7/1896 (71 fls.).
– Carta nº 129, do Chinde, a 14/7/1896, remetendo os seguintes relatórios: a) do capitão
Mesquita e Solla sobre Chicoa e Zumbo, a 13/6/1896; b) do administrador dos Prazos
Muchena, a 17/6/1896, sobre a resistência do muzungo Luís; c) de Henrique R., a 27/6/1896,
sobre a Muchena; d) de Carlos Chaby, a 30/6/1896, sobre Inhacatipué; e) do administrador
dos Prazos de Tete, na Benga (incompleto); f) de S. Aguas, Prazos Tipue e Massangano, a
31/5/1896; g) de A. F. Silva Júnior, a 4/7/1896, sobre Ankuasi; h) de Júlio Solla, em Pimbe, a
10/6/1896. Onze cartas do Chinde, nas de 130 a 141, de 16/7 a 3/8/1896; incluindo a nº 135,
de 28/7, uma cópia da carta dirigida ao Cor. Paiva d’Andrada, administrador da Companhia
do Báruè (em formação) e uma letra no valor de 659$030.
– Cartas nos 142 a 143, idem, de 13/8/1896, com anexos.
– Dezoito cartas do guarda-livros, nas de 144 a 161, de 21/8 a 14/12/1896.
– Carta de João Martins, s/n, em Tete, a 24/11/1896.
– Carta de Mariano Machado, s/nº, a bordo, a 14/12/1896 (convite de P. d’Andrada para
Inspetor da Companhia do Luabo tendo em anexo uma carta de Kammerman, em francês).
– Carta de M. Machado, s/nº, em Djibouti, de 21/12/1896.
– Sete cartas do guarda-livros, no Chinde, nas de 162 a 168, de 26 a 28/12/1896.
– Quatro Telegramas.

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158
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 6 e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência de Mariano Machado – janeiro a junho 1897”. A documentação que
aqui se encontra foi classificada e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Quatro cartas do guarda-livros, no Chinde, nos 1/97 a 4, de 2 a 8/1/1897.
– Importante relatório do guarda-livros, no Chinde, referente ao período de 1 a
8/1/1897. Trata dos seguintes assuntos: no Prazo Massangano os colonos recusam-se ao
trabalho alegando que “não são escravos”. Alusão a um relatório de 50 páginas, cujo
paradeiro se desconhece, elaborado por Mesquita e Solla, referente ao período de setembro e
outubro. Nesse relatório o autor referiu-se a diversos assuntos: incursões de landins em Senga
e Pimbe; um chefe árabe, súbdito do Sultão de Zanzibar, pretende estabelecer-se com cerca de
quarenta dependentes nas terras do comando da Chicoa, procurando fugir ao jugo britânico;
afirma que a maioria dos alunos das missões é composta por menores comprados ou
resgatados da escravidão em que se encontravam e tornam-se mais tarde nos Muzungos que
raramente seguem os preceitos da religião que aprenderam. A página 8 o guarda-livros
presta os seguintes esclarecimentos: “São estes os tópicos do extenso relatório do Sr.
capitão Solla – cuja valiosa colaboração perdemos devido à proibição imposta pelo Sr.
governador do distrito”.
– Carta nº 22/2, do guarda-livros, Chinde, 12/1/1897.
– Carta s/n, de M. Machado, Chinde, 18/1/1897 (entrev. Mouzinho de Albuquerque).
– Seis cartas do guarda-livros, Chinde, nos 5 a 10, de 18 a 31/1/1897.
– Carta nº 11, do guarda-livros, Chinde, de 31/1/1897, em que promete remeter
oportunamente o relatório de 1896 (não encontrei este relatório).
– Carta nº 12, do guarda-livros, Chinde, de 31/1/1897 (Sipaio matou um indígena em
Inhacatipué, Rigoni substituído por Trindade, o comandante militar mandou desarmar todos
os sipaios dos Prazos da C. da Zambézia, o que fomentou o desprestigio da Companhia).
– Carta nº 13, do guarda-livros Moctezuma, Chinde, nº 13, de 31/1/1897 (revolta em
Sena, Gustavo de Bívar e F. d’Oliveira feitos prisioneiros, o primeiro conseguiu escapar).
– Quatro cartas do guarda-livros Moctezuma, Chinde, nos 14 a 17, sendo as duas
primeiras de 31/1/1897 e as duas últimas de 5 e14/2/1897.
– Carta nº 18, de Mariano Machado, Quelimane, de 15/2/1897.
– Carta nº 19, de Mariano Machado, Quelimane, de 15/2/1897 (Rigoni prendeu o
coronel Warten na Macanga; depois de transferido para Inhacatipué matou um indígena e
recebeu a tiro o comandante militar; não pode ser agente da autoridade por ter nacionalidade
brasileira. M. M. faz algumas considerações pertinentes sobre as perturbações psíquicas que
afetam muitos europeus na Zambézia após algum tempo de permanência no interior.
Narra o caso do tenente que quis fuzilar um sacerdote por ter recusado propiciar a missa do
galo alegando a falta dos paramentos habituais).
– Três cartas de M. Machado, de Quelimane, nas de 20 a 22, de 15/2/1897.
– Carta nº 23, de M. M., do Chinde, a 15/2/1897 (troca de rupias por moeda portuguesa;
libras; questões cambiais, compra de algodão; comércio indiano).
– Carta nº 24, idem, idem, idem (Contribuição industrial).
– Cartas nº 25/6, idem, de Quelimane, a 15/2/1897 (contrato Pereira e Dúlio).
– Cartas nº 27/8, idem, do Chinde, 14 e 15/2/1897.
– Carta nº 29, idem, a 14/2/1897 (Prazo com café na Macanga, plantado por inglês).
– Três cartas de M. Machado, do Chinde, nas de 30 a 32, de 15 a 16/2/1897.
159
– Carta nº 33, idem, idem, a 16/2/1897, com carta de Hamburgo em francês.
– Oito cartas do guarda-livros, do Chinde, nas de 34 a 42, de 25/3 a 5/3/1897.
– Carta s/n, de M. Machado, de Quelimane, a 5/3/1897.
– Importante carta extra de M. Machado, de Quelimane, a 14/3/1897, (doença e
incompetência dos empregados, insubordinação dos indígenas, violências e negociatas dos
comandantes militares com soldos atrasados durante meses, hostilidade de Mouzinho contra a
Companhia de Moçambique e de Amorim contra os Prazos, o capitão Solla foi proibido de
enviar relatórios e de tratar dos assuntos da Companhia da Zambézia entre a Chicoa e o
Zumbo, necessidade de recrutamento de empregados honestos, humanos e competentes,
importância dos tecidos de algodão importados da Índia, nuvens de gafanhotos que devoraram
cana-sacarina, trigo, grão-de-bico, etc. Conveniência em usar o trabalho braçal indígena em
substituição de maquinaria. Celebre história de feitiçaria de que resultou a morte do potentado
que estava no luane do Guengue, Morrumbala, Massingire.
– Carta extra, de M. M., de Quelimane, 14/3/1897. – Idem (P. & Dúlio).
– Idem, (contribuições João Martins) (25 fls.). – Idem, 15/3/1897 (barca Florinda).
– Idem (incidente Cor. inglês Warton e empregado brasileiro Rigoni, na Macanga).
– Idem, idem, idem, 16/3/1897 (modo de cobrança do mussoco). – Idem (vapores).
– Idem, idem, idem, idem (linha telegráfica Tete-Salisbury).
– Importante carta extra, idem (incidente com o comandante militar de Massangano que
ao tentar prender o empregado Mendonça foi atacado pelos indígenas, na pág. 4 informa que
“os pretos do Báruè tiveram sempre tendência para se alargarem até à margem do Luenha”
Rigoni abate um indígena que atacara os sipais).
– Carta extra, idem, idem (sobre Carlos Wiese opinou: “creio que ele acha muito regular
e natural ter vendido à North Charterland Exploration Company as concessões que lhe foram
feitas por M’Pezene”). Idem (alambiques).
– Idem, (Importante. Mouzinho deu ordens para não arrendar mais Prazos a Ignácio de
Jesus Xavier e à família Araújo Lobo. Retirou ao primeiro as honras de capitão-mor.
Transcreve o oficio de Amorim).
– Idem, idem, idem, idem (Macanga insubmissa. Receio consequências na expedição de
Mouzinho. Governador de Quelimane mandou prender inglês que no rio Revugo perto
fronteira “faz guerras, queima palhotas, rouba gados”. Dificuldade sobre fronteira).
– Cartas nº 43/4, do guarda-livros, do Chinde, de 16/3/1897.
– Carta extra, de M. M., de Quelimane, de 16/3/1897 (67).
– Treze cartas s/n, idem, idem, de 17 a 19/3/1897 (nas a vermelho de 68 a 77) com
alguns anexos, ao Ger. da E. I. A. Inhambane; ao Adm. da C. Z.; Paris; com cópia das ordens
gerais de serviço.
– Cartas nº 45/6, do guarda-livros, do Chinde, de 20/3/1897 (nas de 78 a 80 idem).
– Carta extras nas de 75 e 76, idem, idem, idem (com anexos).
– Carta nº 77, de M. M., idem, 24 e 25/3/1897 (nº 81 e 82 a vermelho).
– Carta nº 47, do guarda-livros, do Chinde, de 27/3/1897 (nº 83 idem).
– Quatro cartas do guarda-livros nas de 48 a 51, de 26 a 31/3 (nas a vermelho de 84 a 87).
– Carta nº 21/1, L. Mello Guimarães, idem, 4/4/1897 (nº 88).
– Carta s/n, de M. M., Moçambique, idem (nº 89).
– Idem, 8/4/1897 (nº 90 a vermelho) (Cópia de carta a Mouzinho d’Albuquerque).
160
– Idem, idem, idem, idem (nº 91 a vermelho) (Linder seguiu para a Macanga “vamos a
ver o que fará na Macanga mas não tenho esperanças que faça coisa alguma de útil enquanto
os pretos daquela região não levarem uma boa lição”. Ganha 90.000$ mensais, 25% do
produto liquido do mussoco e 25% do produto liquido do comércio).
– Idem, idem (nº 92 idem). – Idem, idem, de Quelimane, idem (nº 93 idem).
– Idem, idem, de Moçambique, idem (nº 94 idem) (anexo s/ compra da firma Pereira &
Dúlio). – Duas cartas s/n, idem, idem, idem (nº 95 e 96 idem).
– Carta nº 52, do guarda-livros, do Chinde, de 10/4/1897 (nº 97 idem).
– Carta s/n, de M. M., de Moçambique, de 10/4/1897 (nº 98 idem).
– Carta nº 53, do guarda-livros, no Chinde, de 12/4/1897 (nº 99 idem).
– Carta nº 54, idem, idem, de 14/4/1897 (nº 100 idem).
– Três cartas s/n, de M. M., a bordo, 14/4/1897 (nº 101 a 103 idem) (a seguir a esta
última, com dez páginas, consta a seguinte nota: viagem a Moçambique para falar com o
governador-geral Mouzinho d’Albuquerque).
– Carta nº 55, do guarda-livros, de Quelimane, de 16/4/1897 (nº 104).
– Doze cartas de M. M. em Quelimane, nos 56 a 67, de 19 a 30/4/1897 (nas a verm. de
105 a 118).
– Carta nº 68, idem, idem (nº 119) (inclui “contrato” celebrado com Linder a 31/3/1897
e “instruções especiais” que lhe foram especificadas como chefe da 4ª Secção da
Circunscrição de oeste na Macanga).
– Treze cartas de M. M., em Quelimane, nos 69 a 81, de 1 a 17/5/1897 (nas a verm. de
120 a 132). – Carta nº 82, de M. M., em Quelimane, 18/5/1897 (nº 133).
A partir desta data a correspondência passa a usar papel timbrado, com o mapa
das concessões da C. Z.;
– Três Cartas de M. M., em Quelimane, nas de 83 a 85, de 18 a 19/5/1897 (134 e 136).
– Carta nº 86, idem, (remete os relatórios de junho a outubro 1896, elaborados pelo
capitão Mesquita e Solla, ex-chefe da Secção d’entre Chicoa e Zumbo e pede a sua
devolução visto não ter cópias) (nº137).
– Dez cartas de M. M., em Quelimane, nas de 87 a 95, de 19/5/1897 (nas a verm. de 138
a 147). – Carta nº 96, idem, idem, idem (com excelente relatório anual e relatórios dos
Prazos de Tete em Benga, com o mapa da cobrança do mussoco, nos Prazos Pimbe e
Macanga).
– Seis cartas de M. M., Quelimane, nas de 97 a 102, de 21 a 29/5/1897 (nas a verm. de
149 a 154). O nº 99 refere-se à mesada paga à esposa do Major Queiroz, Inspetor das
Companhias de Guerra.
– Carta nº 103, idem, idem, idem (inclui uma carta dirigida ao governador-geral de
Moçambique, sobre as exigências arbitrárias do diretor da Alfandega) (nº 155).
– Carta nº 104, do guarda-livros, em Quelimane, de 31/5/1897 (nº 156).
– Carta nº 105, idem, idem, idem (informa que Paiva d’Andrada chegou a
Quelimane no dia 27 no vapor “Matabele” seguindo para o Chinde no dia 29 pelo
mesmo navio. O governador parte p/ Vicente no dia 3 por ter recebido um telegrama do
chefe de circunscrição de Sena solicitando sua presença para assumir o comando da
ofensiva. Não há noticias exatas sobre Camboemba. Sabe-se porém que a praça de Sena
já abriu fogo contra os revoltosos que se aproximaram e que a margem esquerda
continua relativamente sossegada) (nº 157).
– Cinco cartas de Moctezuma, Quelimane, nos 106/10, de 31/5 a 1/6/1897.
161
– Carta nº 111, de Moctezuma, Quelimane, de 1/6/1897 (consta que a companhia de
guerra que está em Mopeia foi transferida para a Mutarara, sede do Prazo da Maganja d’Além
Chire. Uma verdadeira calamidade para a ação para a C. Z. naquele Prazo onde um único
oficial que lá havia, o comandante militar, já nos causara tantos incómodos. Imagina-se agora
os vários oficiais, sargentos e soldados – geralmente em menor número que os oficiais –
tudo a mandar e a querer provar aos indígenas que só eles são gente d’El-Rei e que só eles
mandam! O Sr. Machado vai ficar assombrado de quantos milandos resultarão no futuro se os
soldados ali ficam! É ver o que sucedeu em Mahembe onde durante o domínio da companhia
de C. Z. havia… mais de duzentos nativos – Hoje não há ali uma palhota – tudo fugiu depois
que os soldados se viram donos daquilo. Os arrendatários do Delta do Zambeze sentem-se
felizes por estares livres dos comandos militares – e a nós cai-nos em casa uma companhia de
guerra permanente que, dizem, terá cem praças… Seguindo as teorias do ex-comandante, os
sipais, mulheres, moleques (i.e. empregados domésticos), etc. dos militares não devem pagar
mussoco – E o governador confirma… Recebi telegrama do Sr. Machado do teor seguinte: “
Camboemba queimou Chiramba será abatido facilmente – Sigo Vicente Chinde”. O
governador parte em três corrente pelo Quaqua. Dizem que arranjou perto de cem homens de
tropa. Há muita falta mantimentos. Zambézia já se sente fome. Em Tete já se vende mapira a
oitocentos reis). (nº 163).
– Carta nº 112 e 113, idem, idem, idem (nº 164 e 165).
– Quatro cartas de M. M., Quelimane, nos 114 a 117, de 7 e 8/6/1897 (nas a verm. de 166
a 169). – Carta nº 118, de Moctezuma, Quelimane, de 9/6/1897 (nº 170).
– Cartas nos 119 e 120, de M. Machado, Quelimane, de 9 a 11/6/1897 (nos 171 e 172).
– Carta nº 121, idem, idem, 12/6/1897 (devido à proteção dada pelo Intendente do
Chinde, às lanchas inglesas e alemãs, sugere ironicamente que o Ministério da Marinha
autorize os navios da C. Z. a usarem bandeiras d’aquelas nacionalidades. O governador é
camarada do primeiro-tenente da Armada Real da Alcobia, (seria o Intendente?). Este permite
em frente à concessão, uma sentinela inglesa com arma e baioneta. Das cobranças 2/3 são para
o Intendente e 1/3 para o escrivão) (nº 173).
– Carta nº 122, idem, idem, 11/6/1897 (contrato com francês Michel para subarrendar o
Prazo Maganja d’Além Chire e plantar açúcar na Ilha de Inhangoma) (nº 174).
– Carta nº 123, idem, idem, 12/6/1897 (devemos reunir até fins deste mês vinte contos
aproximadamente de marfim… conto guarda-lo porque sendo ele aqui vendido muitas vezes a
cento e dez e cento e vinte e cinco pesos os quinze quilos, hoje está a setenta e cinco e oitenta
pesos;… convém esperar mais seis meses até ver-mos se as coisas melhoram na Índia… A C.
Z. está depositária do celebre marfim de Araújo Lobo, espólio a vender brevemente em leilão,
concorrerei apesar de se tratar de vinte e cinco a trinta contos, é um empate de capital que nos
deve dar grandes lucros… O matical d’ouro (seis gramas) foi sempre vendido de quatro mil e
quinhentos a cinco mil reis a troco de fazendas; hoje não querem dar-nos mais de quatro mil
reis. Tendo a C. Z. em caixa aproximadamente três quilos, conviria saber se há vantagem de
ser vendido em Lisboa. É em pó e puríssimo) (nº 175).
– Carta nº 124 e 125, idem, idem, de 15/6/1897 (pediu a Paiva d’Andrada dispensa do
lugar de Inspetor da Companhia do Luabo) (nº 176 e 177).
– Carta nº 126, idem, idem, idem (devido à guerra, seca, gafanhotos, podemos vender
milho e feijão em depósito. A linha telegráfica continua a funcionar bem para Tete devido ás
medidas do governador e à esquadrilha do Zambeze… Os resultados da campanha contra o
Camboemba devem ser seguros com tais elementos (i. é, bons empregados da C. Z.) vão para
ali todos os navios da esquadrilha e o governador Coutinho parte em 17 do corrente) (nº 178).
162
– Carta nº 127 e 128, idem, idem, de 16/6/1897 (dívida da Companhia de Moçambique
por despesas de guerra de 1893 feitas em proveito daquela companhia) (nº 179 e 180).
– Carta nº 129 e 130, idem, idem, de 14 a 17/6/1897 (pormenores da dificuldade de
transporte de mercadorias. Compra de duas lanchas a Hornung. Carta ao chefe da Secção
Beira) (nº 181). Carta nº 130-A, de Moctezuma, em Quelimane, de 16/6/1897 (nº 183).
– Três cartas de M. M., Quelimane, nos 131 a 133, de 17 e 18/6/1897.
– Dez cartas extras de M. M., Quelimane, de 20 a 27/6/1897 (nas a verm. de 187 a 196,
tendo a nº 189 e 190 anexos de Dúlio Ribeiro e a nº 196 o reg. de caça) (total de 50 fls.).
– Carta nº 134, de Moctezuma, Quelimane, de 22/6/1897 (nº 197).
– Cinco cartas de M. M., Quelimane, de 28 a 30/6/1897 (nas a vermelho de 198 a 202).
– Carta nº 140, Moctezuma, Quelimane, de 30/6/1897 (P. d’Andrada enviou 115
maticais d’ouro em pó, pesando 672,75 gramas a 4$000 cada matical, ou seja, 460$000)
(nº 203). Carta nº 141, de M. Machado, em Quelimane, de 30/6/1897 (nº 204).

***

Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava


colado um rótulo com o nº 7 e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência de 1 julho a 31 dezembro 1897”. A documentação que aqui se encontra
foi classificada e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem:
– Cinco cartas de M. Machado, Quelimane, nas de 142 a 146, de 3/7/1897 (contendo a nº
145 o Regulamento de Caça e a nº 146 um anexo).
A PARTIR DO ÚLTIMO NÚMERO PARECE TER HAVIDO LAPSO PORQUE
SALTA SUBITAMENTE PARA O 168
– Carta nº 168, de M. Machado, em Quelimane, de 3/7/1897 (dislates feitos pelo major
Forbes, durante a construção da linha Blantyre-Salisbury). Carta nº 169, de Moctezuma, dia 7.
– Carta nº 170, de M. Machado, idem, idem.
– Cartas nº 171 e 172, idem, idem, de 10 e 13/7/1897 (carta pessoal a Mouzinho de
Albuquerque, pedindo proteção contra os abusos praticados pelas autoridades).
– Carta nº 173, idem, (sobre Macanga, informações de Linder, os ingleses e a fronteira,
gafanhotos em Mucembeze). Carta s/n, idem, idem, 25/7/1897.
– Vinte cartas de M. Machado, em Quelimane, nas de 175 a 194, de 25/7/ a 3/8/1897 (a
nº 180 contem um pedido sobre os Prazos de Massingire e Macanja, a nº 193 contem apólice
de seguro e a nº 194 contem os preços do marfim).
– Carta nº 195, idem, idem, idem (“os mouros são mais felizes (?) porque têm sucursais
em todas as terras da costa de Moçambique o que infelizmente nós não podemos fazer”).
– Cartas nº 196 e 197, idem, idem, de 4 a 6/8/1897 (com anexo).
– Cartas nº 2 e 3 extra, idem, idem, de 7 e 8/8/1897.
– Catorze cartas de M. Machado, em Quelimane, nas de 199 a 211, de 10 e 14/8/1897.
– Cartas nº 212 e 213, idem, idem, idem (fome na população nativa da Macanga).
– Carta extra, idem, idem, de 15/8/1897 (degenerescência dos muzungos e das donas).
– Dez cartas de M. M., de Quelimane, nas de 214 a 233, de 21/8 a 7/9/1897 c/ anexo.
– Carta extra pedindo o envio de 100.000 recibos do mussoco. – Carta nº 224, de M.
M., de Quelimane, de 20/9/1897 (com anexo). – Carta da contabilidade, 21/9/1897.
– Três cartas de M. M. de Quelimane, nas de 225 e 227, de 21 a 24/9/1897.
163
– Carta nº 228, idem, idem, de 24/9/1897 (inclui anexo com relatório de Mesquita e
Pimentel sobre a plantação de café na serra da Morrumbala).
– Carta nº 229, (inglês Forbes foi substituído p/ Dr. Jamesson na linha telegráfica).
– Carta nº 230, idem, idem, idem (segundo lhe consta, vai ser feito o recenseamento nos
prazos Maganja e Massingire; em sua opinião será uma verdadeira calamidade porque neste
ano, devido à guerra de Sena, passou transitoriamente para a margem esquerda grande parte
da população, a qual regressará de certo ás suas terras quando a situação se normalizar).
– Carta nº 11, contabilidade, idem, idem, idem.
– Carta nº 231, do guarda-livros, em Quelimane, a 24/9/1897.
– Cartas nº 12 e 13, do guarda-livros e de M. Machado, de 29 e 30/9/1897.
– Cinco cartas de M. M., de Quelimane, nas de 232 a 236, de 30/9/ a 4/10/1897.
– Carta nº 14 da contabilidade, de M. M., em Quelimane, a 4/10/1897.
– Quatro cartas de M. M., em Quelimane, nas de 237 a 240, de 14 a 16/10/1897.
– Carta nº 241, idem, idem, a 19/10/1897 (prazos Andone e Angoaze).
– Carta nº 242, idem, (prazos Macanja e Massingire com relatório da 4ª Secção –
Chicoa/Zumbo, agosto 1897).
– Catorze cartas de M. Machado, nas de 243 a 257, de 20/10 a 20/11/1897.
– Sete cartas da contabilidade, nas de 15 a 21, de 20/10 a 24/11/1897.
– Carta extra nº 4, de M. M., quando embarcado, 9/12/1897 (importante, com 19 fls.).
– Carta extra nº 5, idem, idem, idem (com vários relatórios; o de João Martins, chefe da
circunscrição do oeste, Tete, refere a ocupação de uma aringa, nas margens do Luia, por
cinquenta policias ingleses, que retiraram no fim de setembro; adoecendo nove dentre eles e
tendo sido tratados gratuitamente em Tete. Do relatório de Júlio Fernando de Solla,
Cachombo, de 30/9/1897, tirei extrato no bloco grande).
– Cinco cartas extras, de M. M., da Beira, nas de 6 a 10, de 10/12 e 11/12/1897.
– Carta extra nº 11, idem, idem, de 14/12/1897 (importante, com 35 fls.).
– Dez cartas, idem, idem, nas de 258 a 267, de 4 a 26/12/1897.
– Três cartas da contabilidade, nas de 22 a 24, de 6 a 26/12/1897.
– Dezassete telegramas de África. Dezasseis cartas de Beira. Oito cartas do Chinde.
– Cópia da carta em francês de M. M., para Mr. Ph. Richemond, em Quelimane, a
29/6/1897. Decalque da carta de M. M. (ilegível). – Decalque da carta de M. M., em francês.
– Carta nº 290, de M. M., para F. X. Carmo Vaz, Nova Goa (pede arroz para semente,
pessoal para salinas e palmeiras; pagamentos em marfim e ouro em pó).

***

Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava


colado um rótulo com o nº 8 e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência de janeiro a dezembro 1898 – CENTRAL”. A documentação que aqui se
encontra foi classificada e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem:
– Cinco cartas Centrais, de M. M., Quelimane, nos 6 a 10, de 18 a 25/1/1898.
– Seis cartas extras, de M. M., em Quelimane, nas de 12 a 17, de 15 a 21/1/1898
(contrato com Eigenmann & Stucky para a Sociedade do Boror). Carta nº 18 extra, idem, L.
164
Marques, a 3/2/1898 [fábrica (destilaria?) de Ressano Garcia, fretes, agencia em L. M.,
câmbios, café, navegação] (12 fls.).
– Nove cartas Centrais, idem, idem, nas de 11 a 19, de 17 a 25/2/1898, sendo a última de
Quelimane com a seguinte informação: cópia de carta dirigida ao governador do distrito da
Zambézia e relatório do empregado na Macanga sobre desmandos do inglês Deffey, no Alto
Revuguè. – Dez cartas Centrais, de M. M., em Quelimane, nas de 20 a 29, de 23/2/ a 8/3/1898
(tendo a nº 26 os limites do prazo de Marral e Massingire).
– Cartas nº 19 e 20 extra, idem, a 6/3/1898 (a segunda trata da emigração para o
Transval, fazendo criticas contundentes e acentuando os prejuízos que sofridos pela C. Z..
Escreve: “… o mesmo governo emprega todos os meios para que a única fonte de riqueza
que nos restava, a única esperança, os braços baratos, o governo quer por força, sem
proveito algum para ele, que essa bem triste riqueza nos desapareça”. O recrutador
Antonioti, antigo cozinheiro, com dois alemães e um americano).
– Três cartas Centrais, idem, idem, nas de 30 a 32, de 8 a 21/3/1898. Carta nº 21 Extra,
de M. M., em Quelimane, a 30/3/1898 (vantagens da ocupação de Maravia, Milange, Chirua,
Namuli; importantes considerações).
– Sete cartas Centrais, de M. M. e de guarda-livros, em Quelimane, nas de 33 a 39, de 2
a 4/4/1898. – Carta nº 40 Central, do guarda-livros, em Quelimane, de 4/4/1898, comunicando
regresso de Linder da Macanga (“Promete-me um interessante relatório” (chegou a fazer?)
“No entanto remeterei (depois de tirar cópia) o que me diz o chefe da circunscrição do oeste
sobre este assunto, que é muito importante”. Consequências da derrota de M’Pezene
“Quando fui ao Zumbo disse eu a vantagem que havia em preparar o terreno para receber a
gente do M’Pezene, mas a circunscrição não tinha recursos e o governo não sabe, não quer e
nem pode”. O inglês George Deffey acusado de violências e extorsões propõe-se a
subarrendar o prazo Angoni (Chikusi) por quinze anos com mussoco em trabalho de três
xelins por palhota e por ano, igual ao território da Niassalândia).
– Carta nº 41 Central, de M. M., Quelimane, de 11/4/1898 (Remete relatório anual – no
fim do doc. 134 – dois croquis dos prazos Andone e Angoaze e das linhas telegráficas – onde
estão? – assim c/ o relatório do Magalhães sobre Derre – doc. 135 – e de Dr. Linder sobre a
Macanga – onde está?). Carta nº 42 Central, idem, idem, idem (O marfim desceu para oitenta
e oitenta e dois pesos “e ninguém o comprava por causa da peste da Índia, pela mesma razão
tive que comprar algum algodão largo a trezentos e vinte a libra…”. Carta nº 43 Central,
idem, 15/4/1898 (relação de documentos sobre as propriedades). Carta nº 44 Central, idem,
idem, 14/4/1898 (rendimento dos prazos seg. épocas).
– Quatro cartas Centrais, de M. Machado, em Quelimane, nas de 45 a 48, de 18 a
21/4/1898. Carta nº 22 extra, idem, idem, de 23/4/1898. Carta nº 49 Central, idem, idem, de
25/4/1898 (relatório do chefe da circunscrição do oeste referido na carta nº 40 de 4/4. O chefe
Mandala (Angoni?) das antigas terras Chicusse, queixou-se de perseguições de ingleses e
chefes sob sua soberania, por ter abandonado a Niassalândia). Carta nº 50 Central, idem,
idem, de 27/4/1898.
– Vinte e cinco cartas Centrais, de M. M., em Quelimane, nas de 51 a 74, de 1/5 a
19/9/1898. Carta nº 23 extra, de M. Machado, em Lisboa, a 2/7/1898 (prejuízos derivados da
campanha de Azevedo Coutinho para pacificação da Maganja da Costa “… por ser o
momento das colheitas e da cobrança do mussuco. Podem facilmente calcular os destroços e
os prejuízos causados pela passagem de milhares de selvagens, que atravessaram os
nossos prazos armados em guerra, obrigando a fugir muitos indígenas. A C. Z. forneceu mil
e quinhentos sipais e carregadores, dos dois mil e trezentos reunidos (por Coutinho?). Vieram
de Massingire, Maganja e Guengue). Carta nº 24 extra, idem, em Nápoles, de 14/9/1898
165
(visita a fábrica de têxteis em Zurich, escolha de lenços com padrões preferidos pelos
indígenas) (11 fls.). Seis cartas Centrais, de M. Machado, nas de 75 a 80, de 5 a 18/10/1898.
– Carta nº 81 Central, do guarda-livros, em Quelimane, de 19/10/1898 (extorsões,
arbitrariedades e negociatas dos comandantes militares). Duas cartas centrais, do M.
Machado, em Quelimane, nas de 82 e 83, de 3 a 7/11/1898). Carta nº 84/5 Central, idem, idem,
de 5 a 8/11/1898 (múltiplos assuntos, sobretudo os referentes aos efeitos da campanha da
Maganja da Costa) (11 fls.) e (visita ao prazo Boror; superior direção de Eigenmann e irmão
de Stucky). Seis cartas Centrais, de M. Machado, em Quelimane, nas de 86 a 91, de 14 a
16/11/1898. Carta nº 92 Central, idem, idem, de 27/11/1898 (enviando cópia do oficio
dirigido ao governador-geral Andrea sobre a Angonia, Macanga e ocupação até Namuli.
– Três cartas Centrais, idem, idem, nas de 93 a 95, de 30/11 a 1/12/1898.
– Carta nº 96 Central idem, idem, da 30/11/1898 (cópia de resposta a uma circular do
Ministério da Marinha. Duras críticas contra os comerciantes indianos).
– Três cartas Centrais, idem, idem, nas de 97 a 99, de 1 a 12/12/1898.
– Carta nº 25/6 extras, idem, de 24/12/1898 (Importante: exigências excessivas de
Azevedo Coutinho. Danos no gado de tiro e nas lanchas. Fuga de indígenas dos prazos
Andone e Angoaze. Extorsões e violência dos guerreiros “… desordem em que tudo foi
organizado pelo governo e pela Companhia. Gafanhotos e chuvas excessivas. Dificuldades no
transporte de géneros (do mussoco) até ao Chinde. Tentativas inglesas para se alastrarem por
Milange e Angonia. Situação em Tete. O capitão de Artilharia Amorim castigou os machingas
(?) que faziam diariamente correrias em toda a margem direita do Zambeze, entre Chicoa e
Zumbo…”. Transportes. Disputas pela concessão da Maganja da Costa) (25 fls.).
– Carta nº 100 e 101 Centrais e telegramas, de M. M., em Quelimane, de 29/12/1898
(22 fls.). – Relatório de contas de 1898, com mapas (Navegavam no Zambeze quatro
canhoneiras portuguesa.: Cuama, Chirim, Obuz e Granada; duas inglesas: Mosquito,
Herald; sete vapores da African Lakes; três da Flotilla Cia; quatro da Sharrer’s Cia; um da
Catholic Mission, um rebocador alemão e um da Companhia de Moçambique) (35 fls.). Cópia
do relatório sobre as Terras do Derre, por J. M. de Menezes (20 fls.). Índice (20 fls.).

***

Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava


colado um rótulo com o nº 8-A e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência do ano de 1898 a dezembro 1900”:
Exclusivamente dedicado a contas e à contabilidade (330 imagens).

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Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava


colado um rótulo com o nº 9 e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência de janeiro a setembro de 1899 – CENTRAL”. A documentação que aqui
se encontra foi classificada e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem:
– Oito cartas de M. Machado, em Quelimane, nas de 1 a 8, de 1 a 17/1/1899 (18 fls.).
– Carta nº 9, idem, idem, de 24/1/1899. Manuscrevi o seguinte texto: “Chegou
finalmente o Sr. governador Andrea e com ele a tranquilidade, a ordem e o sossego, por esta
desgraçada Zambézia… Rapaziada, guardas-marinhas e o sub-inspetor dos prazos fizeram tais
distúrbios no Massingire para mostrar serem pessoas importantes e tirarem toda a autoridade
166
aos nossos empregados que me obrigaram a escrever a carta junta. Felizmente… o sub-
inspetor retirou-se, acabou o comando militar e foi para ali nomeado como residente o Sr.
Henrique Costa, sub-inspetor dos prazos, que deve seguir amanhã via Chinde. Estou tratando
da ocupação de Milange, na qual o Sr. Costa muito me poderá auxiliar. O Sr. governador está
estudando o assunto para o resolver rapidamente, se nos arquivos do governo não houver
documento que possa obstar à entrega daquela região”. Carta ao governador: “… foi para
evitar tal calamidade (abusos dos comandantes militares) que o Sr. conselheiro António Enes
no seu regulamento de prazos determinou que essas autoridades tratariam da disciplina dos
seus soldados mas não interviriam de forma alguma na administração dos prazos…”.
Prepotência do jovem oficial comandante militar do Chilomo… Necessidade de prudência.
Foi ali assassinado o Com.te Queirós, mulher e filhos. Se se retirar a autoridade aos agentes
da C. Z. podem ocorrer distúrbios. Cinco cartas de M. Machado, em Quelimane, nas de 10 a
14, de 23/1 a 16/2/1899.
– Duas cartas extras nos 1 e 2, de M. Machado, em Quelimane, de 8 a 22/2/1899. Carta
nº 3 extra, de M. M., em Quelimane, de 23/2/1899 [acusações e processos injustos a
empregados. Resistência passiva dos indígenas com cópia das cartas de 10/2 ao governador-
geral e de 24/1 ao governador da Zambézia (já citada)] (20 fls.). Carta nº 4 extra, idem, idem,
8/2/1899. Carta nº 15, idem, idem, 23/2/1899.
– Carta nº 16, idem, idem, 20/2/1899 (salinas, magnifico trabalho. Cinco marnoteiros
europeus, palmeiras, Massingire, Vila Bocage, borracha) (17 fls.).
– Sete cartas particulares a Mr. Couvreur, nas de 17 a 23, de 25/2 a 13/3/1899 (12 fls.).
Três cartas de M. Machado, em Quelimane, nas de 24 a 26, de 17 a 21/3/1899 (a última dá
informações sobre destilação de cana sacarina, vinho cafreal em armazém).
– Quatro cartas, idem, idem, nas de 27 a 30, de 21 a 22/3/1899. Carta nº 31, idem, idem,
de 21/3/1899 (transcreve a nota nº 258, do governador do Distrito da Zambézia: “Em
conformidade com o Dec. de 19/4/1894 que ampliou a área das concessões feitas à C. Z. pelo
Dec. de 24/9/1892, digne-se V. Ex.ª mandar por parte dessa companhia tomar posse dos
territórios entre os limites de Massingire e os Picos Namuli, estabelecendo com maior
urgência possível, duas estações, uma em Milange e outra em Massangano. A posse será dada
pelo comandante militar de Milange, alferes Salustiano Correia, lavrando-se o competente
auto em que se declare que a renda a pagar será depois estipulada… Partiu para Milange o
tenente Carneiro como comandante militar e Representante da Companhia e o chefe de
Secção subordinada à Circunscrição Leste, com dois ou três empregados. Na nova secção
montará o mouro com que temos contrato, todas as lojas necessárias para ali chamar o
comércio do interior. Limitar as aspirações dos prazos Marral e Boror”. Fazer recenseamento.
– Seis cartas, idem, idem, nas de 32 a 38, de 22/3 a 7/4/1899 (falta a carta nº 37) (10
fls.). Carta nº 39, idem, idem, de 9/4/1899 [fábrica de álcool em Ressano Garcia. Contas da
Circunscrição Leste. Milange (chegou Durão com quatro empregados, sessenta sipais,
duzentos carregadores. Delimitação com Boror claro, definida pelo esplêndido e rigoroso
levantamento feito por Stucky). Vila Bocage. Tete (“Escreve-me João Martins bastante
desanimado. Autoridades dali e o comandante militar de Massangano nada conhecendo sobre
a situação do Macombe e dos prazos a jusante do Luenha, fazem exigências a Martins
querendo mesmo que ele mande ali prender pretos – em território da C. de Moçambique! O
comandante de Massangano pratica violências – e os pretos daquela região que são muito
bravos, protestam energicamente. Assim começam os motins. João Martins é o homem que
tem de remediar todos os disparates de brancos e pretos, e daí o seu aborrecimento. A
ocupação inglesa vai apertando Tete num círculo terrível, por mim bem previsto e
descrito em 1893 e 1894. Bandos de facínoras que têm infestado aquela região, feriram
gravemente um negociante de Tete, roubam os mercadores indígenas e praticam impunemente
167
outras violências”. Direitos. Chinde. Quelimane. Exposição Colonial de Paris. Companhia de
Açúcar Hornung – fábrica em plena produção em junho; proposta deste sobre mão-de-obra…
“Como João Coutinho deve regressar brevemente, então verei se, de acordo com ele,
poderemos dividir o negócio dos prazos da Companhia do Açúcar responsabilizando-se o
Marral a fornecer também a gente necessária. Enquanto o trabalho não for geral em todos os
prazos, há de ser muito difícil obrigar os pretos ao trabalho regular e constante – sendo a
maior dificuldade a dos prazos da margem direita do Zambeze – administração da Companhia
de Moçambique – e os que estão arrendados a pretos ou muzungos do país, que se limitam a
cobrar o mussoco, verdadeiros refúgios de vadios. Aditamento ao “governador não tem
oficiais para substituir os que estão em Tete e Massangano. Em geral vão para ali oficiais que
empregam todos os meios para serem substituídos rapidamente. Muito convinha que a
Companhia de Moçambique tomasse rapidamente conta do território entre a Lupata e o
Luenha, conforme a última concessão o que lhe daria facilidades de se aproximar mais do
Báruè. Não vejo maneira da Companhia de Moçambique deixar de ocupar esses prazos e
portanto é conveniente que essa ocupação se realize o mais breve possível para irem
domesticando aqueles pretos. Com os comandantes militares daquela “força” nada se
consegue” M. Machado)] (11 fls.). Carta nº 40, idem, idem, 14/4/1899 (fábrica de álcool em
Ressano Garcia). Relatório e contas de 1898 (revoltas em Cachomba e Zumbo: batidos os
régulos Chincoco, Changaga e Machindas; idem Macanga e Angonia) (24 fls.).
– Carta nº 42, idem, 17/4/1899 (recorte “Natal Mercury” sobre expedição Carl Peters).
– Quatro cartas, idem, nas de 43/7, de 19 a 28/4/1899. [ocupação e delimitação de
Milange: “… bem recebido nas povoações com batuques. Apresentaram-se os chefes
(inhacuáuas) recebendo bem a Companhia”. Recenseamento. Minha constatação: não foram
encontrados quer os relatórios quer os croquis mencionados].
– Dezassete cartas, idem, nas de 48 a 64, de 26/4 a 15/6/1899 (58 com anexo) (44 fls.).
– Carta nº 65, idem, idem, de 26/6/1899 (dificuldades na ocupação no interior,
gafanhotos, inundações, criação de Circunscrição do Sul, organização de Circ. do Leste).
– Sete cartas, idem, idem, nas de 66 a 72, de 25/6 a 8/7/1899.
– Carta nº 73, idem, Chinde, de 6/7/1899 (Expedição ao Mataca). “A terrível palavra
de guerra na Zambézia… veio interromper todos os serviços regulares da administração… os
pretos não pagam o mussoco… foi um grande serviço prestado à Companhia do Niassa e aos
ingleses, com grandes prejuízos para todo o Distrito da Zambézia”.
– Carta nº 74, idem, Quelimane, de 12/7/1899 (Viagem de 19/5 a 23/6, com o
governador; no Chinde choveu constantemente durante três dias; Morrumbala, Chilomo,
comércio, Tete, Macanga e Angonis. Solla que era o chefe de secção entre Chicoa e Zumbo,
cafrealizou-se naquele isolamento (o que é um facto natural nestas paragens) casando com
uma qualquer mulher preta; tinha 2 ou 3.000$00, mas não quis trabalhar mais e ali ficará
como um muzungo vivendo à sombra da palhota; a seu pai o capitão Solla aconteceu o
mesmo, são factos vulgaríssimos em África, principalmente no interior longe do convívio
com europeus. Tenente Brito, Boroma, Monhés, Andone e Angoaze: fuga de pretos nestes
prazos – só foram encontrados 23.986 em lugar de 29.427, o que é uma verdadeira
calamidade. Causas. Angónis procuram voluntariamente trabalho. Cópia datilografada de
importante relatório de Pinho, em Maputte aos 25/5/1899, dirigido ao chefe da Circunscrição
do Leste em Vila Bocage). Sete cartas, idem, idem, nas de 74 bis a 80, de 22/7 a 30/8/1899.
– Carta nº 81, idem, em Quelimane, de 30/8/1899 (Guerra do Mataca; prejuízos graves
para a Companhia da Zambézia: “A expedição… precisou de 8.000 indígenas e a C. Z. teve
que dar mais 3.000, além dos 2.000 que lhe foram distribuídos, o que causou graves prejuízos
para o serviço. O governador Andrea mandou que os indígenas dos prazos Massingire e
168
Manganja pagassem o mussoco em dinheiro: lembrei que os indígenas não tinham fábrica de
moeda e que para conseguirem dinheiro para pagar o mussoco teriam que ir vender os seus
produtos aos monhés e ao território inglês”.
– Carta nº 82, idem, idem, de 31/8/1899 (Escritura da cedência pela C. Z. à Companhia
do Boror das terras da Maganja da Costa). Carta nº 83, idem, idem, idem (Salinas).
– Carta nº 84, idem, idem, idem (Relatórios, instruções, etc. de Portugal Durão. Ensacas
de caçadores de elefantes. Não empregar meios violentos).
– Carta nº 85, idem, idem, de 3/9/1899 [O governador Andrea insiste no pagamento do
mussoco em dinheiro… (o subscritor desta carta comenta ironicamente): “Como se vê no
interior da África, onde os indígenas não têm trabalho, conseguem dinheiro para pagar o
mussoco sem terem que vender os géneros e sem fazerem moeda falsa! Os monhés e os
nossos vizinhos conseguem tudo neste abençoado país”]. Cartas nº 86 e 87, idem, idem,
respetivamente de 5/9 e 15/9.
– Carta nº 88, idem, idem, de 15/9/1899 (Excerto do r elatório de Portugal Durão sobre a
ocupação do Licungo e da Lugela: “Tumula é um velho muito alto, a barba branca, o corpo
curvado, dando ao cumprimento que me fez um ar de majestade… Começou a conferência
pela libação da praxe; o Tumula, sentado na fumba, começava a perder a Sua Majestade; dos
beiços – que os nervos já cansados deixaram pender – a cachaça corria em baba; os olhos
encovados, sem expressão; salientes as arcadas supraciliares; o rosto dum prognatismo
acentuado; parecia-me que naquele cérebro, atavicamente, havia ainda reminiscências de
quando foi gorila… Tumula voltou a ter comigo, dizia que eu era o primeiro branco a quem
falava e que pedia que lhe escrevesse o meu nome num papel. Satisfiz o pedido e ele dizia-me
então, que agora já era gente do governo, que os outros não podiam brincar com ele” (13 fls.).
– Quatro cartas, idem, idem, nas de 89 a 92, de 16/6 a 20/9/1899. Carta s/n, de M.
Machado, em Quelimane, de 22/9/1899 [Companhia de Açúcar de Mopeia – Hornung,
relatório de Botelho Moniz, chefe da Circunscrição do sul. “Antiguidade do Sr. Hornung na
Zambézia, ao serviço desta companhia e a sua grande resistência ao clima, são garantias
muito a ter em conta”. Descrição da fábrica. Obra grandiosa: 1.500 ton. de açúcar e grande
porção de álcool. Transporte da cana: bois puxando vagonetes. A população que era de
6.000 indígenas no começo da exploração acha-se hoje elevada a 14.000, facto
importante e difícil de explicar, pois geralmente o negro evita a proximidade dos
grandes centros de trabalho. Opinião muito lisonjeira sobre Hornung do Secretário da
Companhia da Zambézia]. – Índice final por assuntos.

***
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 9-A e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência de Moctezuma e anexos (na ausência de M. Machado) agosto a
dezembro 1896, junho a agosto 1898”. A documentação que aqui se encontra foi
classificada e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 414/1, de 31/8/1896. Motim em Inhacapendeca. Administração dos Prazo
Massangano – Águas, foi obrigada a retirar com fazendas de Inhacapendeca para o Sengo, por
ordem de João Martins, chefe de Secção de Tete. Aquele enviou um telegrama no dia 25/8
informando que “… vinha gente armada pagar mussoco. Vi propósito hostilização causa
intrigas mambo Zuracufa fornecer gente serviço linha. Prendi, havendo resistência, tiroteio,
suspeito ataque, impossível resistir, tenho abandonar”. (doc. 6 anexo). Águas foi desmentido
por Silva, administrador prazos Gungue (doc. 7). Três telegramas Moctezuma recomendando
prudência (doc. 8, 9, 10). Régulo Zuracufa foi preso auxílio “Granada” (doc. 14). Oficio do
169
Governo da Zambézia (doc. 17). Parecer de M. Machado de 15/10/1896 afirmando não se
poder contar com o comando militar de Massangano.
– Carta no Chinde, aos 14/9/1896, enviando cópia da nota do governador da Zambézia
que informava aguardar relatório do comandante da lancha-canhoneira “Granada”. Proíbe
emprego da força. Quando os empregados carecerem de auxílio deverão solicitá-lo ao
comandante superior de Tete. Moctezuma considerou o caso Inhacapendeca como anormal.
– Carta no Chinde, a 19/9/1896. Remete os relatórios dos prazos a seguir:
– Macanga (Muchena), de 19/8/1896, por Rigoni. – Benga, de 31/8/1896, por Couto
– Inhacatipué, de 15/8/1896, por Chaby.
– João Martins, de 31/8/1896, sobre incidente Inhacapendeca.
– Incidente com Warton (Administrator & Managing Director of the North Charterland
Exploration Company).
– Carta do Chinde, aos 9/10/1896, com 23 folhas. Alude a “um quilométrico relatório
(como de costume) aliás muito interessante – como todos os escritos do erudito capitão Solla.
Período de 14/6 a 15/8. Tem 36 páginas seguindo de um suplemento de outras 6 = 42”. Faz
um resumo até folha 16 sobre Ignácio Xavier, M’Pezene, Zumbo, Wiese, etc.
– Carta do Chinde, aos 19 e 20/10/1896, com 30 fls. contendo importantes informações.
Carta do Chinde, aos 9/11/1896, sobre a morte de Chaby, com biliosa. – Idem, 17/11/1896.
– Circular de 1/12/1896, dirigida aos gerentes dos prazos, pedindo relatórios anuais e
indicando temas a desenvolver.
– Carta de Chinde, a 19/12/1896 sobre a política dos ingleses para atrair os indígenas.
– Relatório relativo ao período de 16 a 31/12/1896.
– Relatório nº 3, em Quelimane, referente ao período de 15 a 20/6/1898.
– Relatório nº 5, referente ao período de 1 a 24/7/1898. Contém pormenores sobre a
campanha da Maganja da Costa, transcrevendo nas pgs. 2 e 3 a carta de Bívar que participou
na expedição. Na página 17 escreveu: “já dei ordem terminante que fosse posto de parte o
chamado cavalo-marinho e se use de alguma brandura para com os pretos…”. Na pág. 18
acrescentou: “creio que estas repressões produzem melhor efeito do que os castigos corporais.
É claro que não podemos deixar de aplicar esses castigos em certos casos, visto que os pretos
não podem dispensar a palmatória – tal-qualmente fossem crianças indisciplinadas”.
– Relatório nº 6, em Quelimane, referente ao período de 25/7 a 13/8/1898, de
13/8/1898; – Cópia de petição ao governador pedindo para arrendar a Maganja da Costa;
– Relatório nº 8, em Tete, de 12/7/1898 (cópias de Augusto da Trindade sobre o chefe
Angoni Mandala, em Mutapa aos 15/6/1898) (idem, de Augusto da Trindade, sobre Chicusse,
em Mutapa aos 28/6/1898) (Trindade conta que chegou ao Dómuè na tarde de 24/6/1898. No
dia seguinte certificando-se estarem em terra portuguesa devido à direção seguida pelas águas
que nascem naquela serra, construiu casa e aringa de pedra na povoação de Maguaza que
fornece mantimentos aos sipais da aringa inglesa. Em 26 foi avisado da chegada de quatro
ingleses e sessenta sipais armados. Os ingleses mandaram perguntar ao Trindade se queria
falar com eles. Foi sozinho apesar dos pretos não quererem que o fizessem. Recebido de
cobarde maneira pois os sipaios formaram armado diante dos ingleses. Entrou na aringa. Por
intermédio de um dos oficias de apelido Reade que falava português afirmaram estar em
território britânico e que a causa da sua intervenção tinha sido punir o Mandala pelos crimes
cometidos. Acrescentaram que já tinham apresentado queixa ao governo português.
Intimaram o Trindade a retirar-se com a sua gente o que ele cumpriu. Na manhã seguinte
assistiram ao incêndio da povoação do filho de Cacher). Depois de transcrever estes dois
relatórios, João Martins acentuou a necessidade efetuar a delimitação e acrescentou “o
170
empregado Trindade esteve aqui só três dias e mandei-o regressar sem demora para evitar que
os indígenas ataquem os habitantes das terras inglesas”.
– Cópia “Secretaria Civil do governador do distrito da Zambézia – Quelimane, de
11/8/1898. Circular nº 4 – Ao Ex.mo Sr. Agente da Autoridade dos Prazos Anguaze e Andone.
Do Secretário do governo – Confidencial – Encarrega-me Sua Ex.ª o governador de dizer a
V. Ex.ª se sirva envidar todos os esforços possíveis para evitar a emigração de indígenas para
o Transval, mas por forma a que não haja quaisquer conflitos com os engajadores a quem
ostensivamente parecerá auxiliar. O mesmo Ex.mo Sr. lembra que o meio mais fácil para se
conseguir este fim será por intermédio dos chefes de povoações a quem V. Ex. ª. dará as
instruções que julgar convenientes. Todos os indígenas que se quiserem contratar deveram
trazer um documento por V. Ex.ª assinado para prova de que V. Ex.ª teve conhecimento. Esse
documento deverá ser uma espécie de guia em que venham escritos todos os nomes dos
emigrantes (Ass:) Maciel, Secretário. Selo do governo do Distrito da Zambézia. Visto.
Conforme. Moctezuma”;
– Relatório nº 7, de 14 a 20/8/1898: “J. Coutinho não retira tão cedo para a Europa. Ele
tem-me feito a “cabeça em água”. Já percebi que é um perfeito “cata-vento”;
– Relatório nº 9, em Tete, aos 27/7/1898, de João Martins. Remete: a) Relatório de Júlio
Fernando Solla, de junho e julho 1898, da 5ª Secção da Circunscrição do oeste. Alferes
Leandro Rego com uma força de trinta e dois homens para auxiliar o comandante militar
Zumbo a capturar José Lobo “Menhambar”, residente na margem esquerda do rio Mucangaze
a duas horas de caminho da foz. Pôs-se em fuga. Aringa está destruída. José Lobo havia
espancado um indígena do Zambeze e sua família e incendiado a povoação. O comandante do
Zumbo e o alferes Rego foram a Chigoga. Solla ofereceu carregadores e auxiliares. Tiroteio.
Chigoga fugiu. Destruída a sua chitata. Chigoga desprestigiado, refugiado nas serras. Forças
do Zumbo, comandadas por alferes Lobato, aqui reunidas no Comando Chicoa, parece que
para bater machingas. Tenho realizado algumas capturas de criminosos, políticos e feito deles
entrega ao governo.
– Junta cópias da seguinte correspondência: a) Carta de 1/7/1898, do Agente da
Autoridade do Prazo Pimbe, Júlio Fernando Solla, dirigida ao comandante militar do Zumbo
(Chigoga mandou a Cachombo vender carne de porco a troco de fazendas mas deram dinheiro
ao portador. Intimou os chefes da povoação para apresentarem primeiro, teve essa audácia.
Como os chefes não cumpriram declarou-lhes guerra. Ordenou aos chuangas na C. Z., na
qualidade de seus escravos, só a ele prestassem obediência, mandando-lhes uma bala e uma
enxada que segundo o uso do país são sinónimos de obediência ou castigo. Chuangas vieram
entregar. Chigoga convidou mambos do Prazo Pimbe para se revoltarem com ele o que em
geral recusaram. Chigoga não compareceu perante o Agente da Autoridade quando chamado.
Receosos da sua punição, os indígenas refugiavam-se nas ilhas do Zambeze); b) Do mesmo,
ao comandante militar da Chicoa, aos 3/7/1898 (as povoações dos fumos Samukanga e
Capacula do Prazo Inhadoma (?) sede do comandante militar de Chicoa, desde 1894 que não
pagam imposto. Cometeram incêndio à povoação comercial Joaquim Augusto do Rego cuja
filha mataram. Suas povoações obrigam machingas que assaltaram povoações; c) O
comandante militar de Chicoa não julga conveniente começar recenseamento; d) O alferes
Vicente Lobato de Faria agradece o auxílio prestado durante o ataque à aringa Chigoga; e)
Chuangas Prazos Chingar e Muçandaluz contaram prisão mambos por forças inglesas
comandadas por Carl Wiese;
– Relatório de Moctezuma, em Mutarara, aos 30/6/1898. Viagem de Chilomo e
Milange, com croquis. Revoltas do pai do inhacuáua Mlolo. Choveu durante todo o dia (em
junho);
171
– Relatório nº 8, de 21 a 28/8/1898 (dez contos da guerra da Maganja da Costa). Parece
incrível a continuação das chuvas que ainda não cessaram. Retrato físico e moral do Aurélio
Vitorino Mestiço de canarin e negro, último rebelde da Maganja da Costa. Sua prisão;
– Relatório de Jeremias Weelhouse, chefe da Circunscrição Leste, na Mutarara, aos
8/8/1898. Cobrança do mussoco em géneros. Contrariamente às ordens enviadas, o
empregado recebia tudo. Só interessava amendoim e gergelim. Os Monhés de Inharuca
pagavam novecentos reis por cada panja de vinte e sete litros de amendoim;
– Relatório nº 11, de João Martins, aos 2/9/1898 “Passou nesta vila há dias o major Van
Niekerk com mil e duzentas cabeças de gado vacum confiscadas de M’Pezene e seguiram
para Salisbury. No dia três chegaram o major Leverson e o Dr. Rayner que vieram comprar
rancho e contratar cem pretos para auxiliar a demarcação das fronteiras. Continuam
aparecendo aqui grande quantidade de ingleses comprando gado para levarem para Untali e
Salisbury. Se assim continuam lutaremos com falta alimentação. Vão comprar gado às terras
de M’Pezene e de Manica”;
– Cópia da carta de Augusto Trindade (Mutapa, 19/8/1898) a João Martins (ataque de
ingleses com sipaios aos distritos de Chizuzo. Queimaram cinquenta povoações. Pede
reforços senão terá que retirar-se. Tentou aproximar-se mas foi atacado a tiro com o
estrangeiro Sinderam;
– Carta ao capitão Pedro Francisco Massano d’Amorim, comandante militar Superior de
Tete, agradecendo ao Agente da Autoridade dos Prazos o auxílio prestado na expedição
contra José Lobo o “Maquinhambaze” e régulo Chigoga;
– Carta de João Martins e Augusto Trindade de Tete, aos 30/8/1898 (ordena que não
saia do luane mesmo que veja povoações a arderem. Manda dez sipaios e mil cartuchos.
Ordena que não hostilize Diffey. Onde estão os três mil homens armados a que aludiu no
último relatório;
– Carta de João Pimenta a Machado aos 4/6/1898 (acusações ao governador Coutinho
cujos antigos guerreiros cometeram roubos, violações, etc. impunemente. Classifica a guerra
na Maganja como “fantochada”, “pândega”. Tem razão de ser, com o fim de se arranjarem
medalhas e elogios e para interesse pessoal do atual governador que pretende a Maganja para
si. Doido, imbecil. – Carta de Fernando Pimentel a M. Machado, aos 26/6/1898;

***
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 9-B e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Relatórios dos empregados – 1898, 1899, 1902, 1903 e 1904”. Contém vários relatórios:
– Relatórios da tesouraria: junho a outubro 1902. – Decalque da carta de 16/1/1903;
– Relatórios da tesouraria: novembro 1902 a julho 1904, falta janeiro 1903 e maio 1904.
Relatórios muito importantes sobre o distrito de Milange (23/4/1899), Administração do
Lugela (31/5/1904), Administração do Molumbo (8/6/1904);

***
172
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 10 e os seguintes dizeres: “Administração em África – Cartas
nos 93 a 109 e 1 a 43 – outubro 1899 a junho 1900”. Contém as seguintes:
– Carta nº 93, de 4/10; – Carta nº 94, M. Machado, Quelimane, de 4/10 (rel. nº 5, de
15/9/1899, subscrito por Portugal Durão, chefe da Circunscrição do Leste: dificuldades da
campanha contra o Mataca);
– Cartas nº 95/6, idem, idem, de 3/10 a 29/9 (relatório de Michel, em francês, sobre a
Companhia de Açúcar de Mopeia, com mapa a cores dos respetivos talhões);
– Sete cartas, nas de 97 a 103, de 5/10 a 9/11;
– Carta nº 104, idem, idem, Quelimane, de 9/11. Envia relatório nº 7 da Circunscrição
do Leste, referente a 15 outubro e o relatório de viagem de Pinho “… que é muito
interessante” (os conteúdos estão adiante anexos à carta extra P nº 5). Elogio a Durão. Pediu
relatório sobre “… o desastre da elevação do mussoco nos prazos com fronteira inglesa e da
Companhia de Moçambique resultando que nos prazos do Distrito de Quelimane se estão
cobrando 1.260 reis por cada indígena ou seja 2.520 reis por palhota, enquanto na margem
direita a C. M. cobra a antiga taxa e no território inglês três xelins por palhota… (são)
prejuízos para a n/Comp. que agravam a situação dando grande (número) de trabalhadores
indígenas já em transportes como em muitos outros serviços enquanto nos prazos da Comp.
de Moçambique, que continuam em administração direta, nada fazem acontecendo o mesmo
na British Central Africa. É indispensável que nos prazos limítrofes a cobrança do mussoco
seja feita da mesma forma para evitarmos a fuga completa dos indígenas. Convidei o
“coletor” de Port Herald para um almoço em Vila Bocage. Admirou a plantação. Vivia em
palhota, doente. Dois anteriores tinham falecido. Autorizei Durão a cobrar nos novos prazos a
mesma taxa do que a B. C. A. Invasão de mouros em Tete. Despesas com a guerra do
Mataca. Empregados com doenças (biliosas). As chuvas duraram até fins de agosto. Carta de
Wheelhouse sobre as barbaridades do empregado Pompeu em Guengue e Bandar.
– Carta nº 105, idem, idem, aos 11/11/1899 (envia cópias do termo de posse do Prazo
Milange e do auto de delimitação entre este e o Prazo Boror, feita com a companhia
arrendatária; – Cartas nº 106 e 107, respetivamente de 11 e 13/11/1899.
– Carta extra, de M. Machado, no Chinde, a 2/11, sobre Peters.
– Carta s/nº, de Moctezuma, em L. Marques, aos 10/11, sobre sucursal.
– Carta extra P nº 5, de M. Machado, em Quelimane, aos 10/11, com os seguintes temas
expostos em 48 fls. Intrigas do inglês Leath junto de Luís (Caetano Pereira), antigo régulo da
Macanga e hoje considerado como empregado da C. Z. Cópias de cartas. Cópia do relatório
de R. Pinho, feita em Milange, por Durão, a 10/9/1899. Relatório nº 7, feito em Chilomo, por
Portugal Durão, aos 15/10/1899, com croquis bicolores, a preto e vermelho. Devastações
(praticadas pelos) sipais da expedição ao Mataca. Fuga de indígenas para o território inglês.
Dois documentos sobre o imposto cobrado pelos ingleses no território português: três xelins
pelo “Collector of Revenues for the District”. Resistência quanto ao pagamento do mussoco
pelas mulheres. Missão inglesa com escola. Passagem para o Molumbo;
– Cartas nº 108 e 109, respetivamente de 24/11 e 4/12/1899;
– Carta extra P nº 6, de M. Machado, no Chinde, aos 17/12/1899, com os temas
expostos em 43 fls. Relatório nº 8, de Portugal Durão, no Chilomo, aos 5/12/1899, sobre a sua
viagem à Angónia; plantações de milho chimanga; batata, mandioca, derrube de quase todas
as árvores; rios de água corrente; grande densidade “o Chicusse é uma mina de braços”; são
cinco os seus filhos: Mandala, Mecauira, Gunga, Putiquiza, e Cabango; todos mais ou menos
questionam o facto de Mandala se julgar com direito à butaca (i.e. à sucessão); beleza das
palhotas do Mandala; o Mecauira só após a chegada do tenente Brito mudou a sua povoação
173
para território português. Junto ao (monte) Dómuè predominava o Pembe com a sua
metalurgia de ferro. Trabalho voluntário em Blantyre para (adquirirem) vestuário contra o
frio. Estimativa de cinquenta mil palhotas. No território inglês há falta de mão-de-obra. Gado
bovino. Picos Namuli. Duas cartas particulares de Durão;
– Trinta e dois telegramas, sendo alguns decifrados; – Cópia datilografada do “Relatório
da Missão ao Derre – Mutarara”, de 27/2/1899 e elaborado por R. Pinho, com anexos;
– Relatório original de Botelho Moniz aos 18/10/1899 (21 fls.);

1900

– Folha intercalar com dizeres: “nº 39 a 83 – 1900”;


– Carta extra nº 1, em L. Marques, de 1/1/1900. Cartas em Quelimane, nas de 1 a 14, de
1/1 a 9/3/1900; – Carta nº 15, de M. Machado, idem, 9/3/1900 (enviava os seguintes
relatórios, em originais, de que foram tiradas cópias que, em parte, foram concentradas, com
outras, no volume nº19-A. Conferir: – Relatório nº 9 com anexos, de 19/12/1899, elaborado
pelo chefe da Circunscrição do Leste; – Relatório de 12/1/1900, elaborado pelo chefe de
Secção do norte de Milange; – Carta-relatório de 20/1/1900, elaborada pelo subchefe e
dirigida ao chefe da Circunscrição do Leste; – Relatório nº 1, de 1/2/1900, elaborada pelo
chefe de Circunscrição do Leste;
– Cinco cartas, nas de 16 a 19, de 9 a 14/4/1900 (sendo uma delas extra P-10);
– Carta nº 20, de M. Machado, em Quelimane, aos 16/4/1900 (Viagem com o
governador da Zambézia). É importante e tem 21 fls.;
– Dezasseis cartas em Quelimane, nas de 14 a 35, de 3/5 a 12/6/1900 (nº 8 extra);
– Carta nº 36, de Botelho Moniz, em Quelimane, a 12/6/1900 (diversos assuntos);
– Quatro cartas, nas de 37 a 40, de 17 a 26/6/1900; Carta nº 41, de 26/6/1900 com
anexos em cópia (portugueses que pretendiam deixar a colónia britânica de Demerara para se
fixarem em Moçambique); Carta nº 42, de Botelho Moniz, Quelimane, a 27/6/1900 remetendo
um relatório com 14 fls. Carta nº 43, de B. Moniz, idem, aos 29/6/1900; Índice por assuntos.

***
Volume com o seguinte rótulo na lombada: “Administração em África – julho a
dezembro 1900”. Tem o nº 11.
– Carta nº 46, de 7/6/1900, em Quelimane, com paradeiro desconhecido (enviava os
seguintes duplicados dos relatórios da Circunscrição do Leste: nº 2 de Portugal Durão; do
chefe da Secção sul de Milange; do agrónomo sobre a Morrumbala; cópia do contrato de
Portugal Durão com Walker Brothers para a plantação de 250.000 pés de café);
– Carta nº 54, de Quelimane, a 23/7/1900, com paradeiro desconhecido (continha
croquis de P. Durão sobre ângulo Lugela-Licungo);
– Carta nº 60, de Quelimane, a 17/8/1900 (com a “boa notícia” de Faro (?) ter sido
nomeado governador da Zambézia);
– Carta nº 65, em Quelimane, a 23/8/1900, com paradeiro desconhecido (continha três
relatórios do chefe da Circunscrição de Leste); Carta nº 83, em Quelimane, a 18/9/1900, com
paradeiro desconhecido (continha três relatórios do chefe da Circunscrição de Leste com sete
anexos. Devido ao interesse que lhe atribuía recomendava a sua publicidade);
174
– Carta nº 84, idem, 20/9/1900 (é importante, dirigida ao governador de Quelimane e
menciona arbitrariedades cometidas por ingleses e por comandantes militares);
– Carta nº 87, idem, 28/9/1900 (fuga da população);
– Carta de 29/9/1900, de B. Moniz ao governador de Quelimane (boato sobre o
recrutamento de dois mil indígenas para a companhia da Zambézia);
– Carta nº 5-C, em Quelimane, aos 11/10/1900 (conflito entre P. Durão e B. Moniz);
– Carta nº 104, idem, aos 25/10/1900 (ocupação de Milange e de Namuli);
– Carta nº 111, idem, a 14/11/1900, com paradeiro desconhecido (mandava para Lisboa
doze relatórios de 1896); Carta nº 17, L. Marques, a 20/11/1900 (ocupação de Milange e de
Namuli); Carta nº 18, L. Marques, a 20/11/1900 (fome na Zambézia);
– Carta nº 127, Quelimane, a 19/12/1900, com paradeiro desconhecido (remetia
relevantes queixas contra Durão apresentadas às autoridades; ameaças de prisão; violências
cometidas durante a ocupação); Carta nº 128, idem, a 26/12/1900 (sobre indígenas das etnias
Machinda, Gossa, Baroma; anuncia que cinquenta zezuros fugidos aos militares ingleses
atacaram Chabariga, matando o empregado Costa e ameaçando Cachomba);
– Importante carta a M. Machado, na Cachomba, aos 21/11/1900;

***

Volume com o nº 12 e o seguinte rótulo na lombada: “Administração em África –


janeiro a junho 1901”. A documentação foi assim recenseada:
– Treze cartas, nas de 1 a 12, de 5 a 31/1/1901, sendo uma delas 10 D;
– Carta extra P 1, de 6/1 (orçamento para 1901); carta extra P 2 (situação geral, contas
anuais); carta extra C 3; extra P 4 com anexo; Carta nº 13, de 3/2/1901 (“… o estado
anárquico que reina nos territórios de Chicoa e Zumbo, simplesmente porque o governo – que
não quer potentados na Zambézia – permite que os europeus ali residentes estejam à mercê
das veleidades dos indígenas sempre prontos a tirar-lhes a vida e as fazendas!”;
– Quatro cartas, nas de 13 (repetido por lapso) a 16, de 8 a 20/2/1901; Carta extra P6, de
20/2 (visita à Circunscrição do Leste); extra P 7 de 21/2;
– Carta nº 17, de 21/2. “Angonia – Tendo sido informado que o tenente Brito estava
descontente, dizia a intriga, por falta de acordo com o seu colega Durão, o que me parece não
ser verdade, tratei de dar independência a Brito e não satisfazer o seu pedido de trezentos mil
réis por mês, mas sim dar-lhe uma percentagem. Assim o Sr. Brito volta para os Angonis
ficando naturalmente também com a Macanga e receberá 10 % sobre a receita que arranjar,
mais 5 % para dividir pelos empregados… O Sr. Brito dispõe de uma grande energia e
atividade sendo de esperar que possa fazer um bom serviço e tirar os melhores resultados nos
trabalhos daquela região”;
– Carta nº 18, de 22/2, com relatório importante de Troni sobre Circunscrição do oeste
(pormenores sobre a revolta na Chicoa instigada pelos muzungos… A verdadeira gente de
guerra deles (Xa-xegundas, vulgo Chicundas) são de Tete ou Sena ou escravos comprados em
Manica e no Macombe (do Báruè) quando pequenos e criados por eles. Apesar de proibida, a
pólvora entra em Tete livremente…” Revolta do Gossa Grande (Tauara), mambo Boroma,
Mucingua; Dezanove cartas, nas de 19 a 35, de 23/2 a 25/3/1901; Carta extra P12, de 12/3;
extra P15, de 20/3; extra P15 bis, 26/3 (contrato Winkelmann, anexos em inglês); extra P16,
de 26/3; Carta nº 36, M. Machado, em Quelimane, a 26/3, paradeiro desconhecido. Reportava
os temas a seguir definidos. Relatório de Durão sobre os Prazos de Milange e a sua viagem
aos Picos Namuli com “interessante mapa dessa região”. M. Machado sugere conferência na
175
Sociedade de Geografia. Entende ser ruinoso para a C. Z. ocupar administrativamente a
região. Cópia da carta dirigida a Durão em 1/2/1901. Posição de Brito na Angonia.
Recrutamento de mão-de-obra. Contrato para o fornecimento de doze mil contratados à
British Central Africa, abusivamente feito pelo gerente da C. Z. em Blantyre, Louis
Winkelmann, nomeado por Portugal Durão, para a construção do caminho de ferro Chiromo-
Blantyre;
– Carta nº 37, idem, a 29/3, de paradeiro desconhecido. Continha dois croquis e três
anexos um sobre os Angurus e outro sobre o itinerário de Milange à Chirua e ao Gurué. Pede
que lhe enviem cópias. Cinco cartas, nas de 38 a 42, de 28/3 a 8/4,
– Carta nº 43, idem, idem, de 9/4, com anexos importantes: prejuízos provocados pela
guerra anglo-boer, pela seca, pelos gafanhotos e pela suspensão dos pagamentos por parte dos
arrendatários dos Prazos. Carta nº 44, idem, de 10/4. P. D. chefe da Circunscrição Leste
anuncia descoberta do filão aurífero perto de Luangua.
– Carta nº 45, idem, de 11/5. Manda relatório de Luja agrónomo e outro sobre cana-
sacarina. Estes relatórios não foram encontrados. Carta nº 46, idem, de 10/4. Nota de Durão,
complemento de relatório sobre Milange e mapa. Não foi encontrada. Seis cartas, nas de 47 a
52, de 10 a 22/4. Carta nº 53, de M. M., a 22/4. Acontecimento de Tete. Cópia de importante
carta dirigida ao governador da Zambézia. Carta nº 54 e 55, idem, em Quelimane, de 22/4. A
segunda refere-se ao término do contrato com Portugal Durão. Faz-lhe grandes louvores e
apresenta uma longa relação dos trabalhos que executou.
– Dezanove cartas, nas de 56 a 72, de 22/4 a 22/5. A carta nº 68 continha o relatório do
agrónomo Luja sobre a plantação da Morrumbala mas este documento não foi encontrado.
– Carta nº P19 extra, de M. M., em Quelimane, de 1/5/1901. Afirma ter sido desastrosos
os resultados de 1900. M. M. desistiu da viagem à Europa. Acentua a crise, a miséria, a fome,
etc. Importante.
– Vinte e quatro cartas, nas de 73 a 95, de 24/5 a 25/6. Carta extra P20 de 7/6. Entre as
primeiras está a cópia de uma carta dirigida ao governador-geral sobre a Circunscrição do
oeste. Em outra carta tese comentários sobre o novo decreto relativo à destilação do álcool.
Também se alude aos cocos fornecidos à Companhia da Pesca das Pérolas do Bazaruto.

***
Volume com o nº 13 e o seguinte rótulo na lombada: Administração em África – julho
a dezembro 1901 – CENTRAL. A documentação encontrada foi subdividida nos parágrafos
autónomos que se seguem.
– Oito cartas, nas de 96 a 103, de 5/7 a 17/7; cinco cartas extras, nas de P 21 a P 25, de 20
a 24/7. Seguem-se as matérias que nelas se encontravam referidas. Circunscrição do Leste.
Relatório de Raphael Pinho, em Molumbo, a 19/6, sobre pragas de gafanhotos, fome
generalizada, fuga da população para os territórios quer britânicos quer da Companhia do
Niassa. Os Angurus encontram-se “armados até aos dentes”. Único recurso: mussoco em
trabalho. “O anguru é adverso à emigração e mesmo quando é forçado a isso procura por
todos os meios fugir ao trabalho e regressar à povoação. Se o anguru emigrasse com a família,
como fazem os angonis, contribuiria imenso para o rápido desenvolvimento desta região.
Com o despovoamento da Chirua extinguiu-se a indústria do sal cafreal”.
– Quinze cartas extras, nas de P26 a P40, de 23/7 a 16/8; sete cartas, nas de 104 a 110, de
13 a 16/8. Carta nº 111, de 14 a 16/8, com requerimento ao governador-geral e o pedido de
abertura de novos prazos entre Quelimane e Angoche. Pede o encerramento do porto de
Tijungo. Carta nº 112, de 21/8, sobre a distribuição de dez ilhas que se formaram no leito do
176
rio Zambeze. Seis cartas normais, nas de 113/8, de 21/8 a 10/10; carta extra sobre o rio
Zambeze, de 18/9.
– Carta nº 119, de 14/10, mas cujo paradeiro não consegui descobrir. Continha um
relatório da Circunscrição do oeste referente a agosto que ao subscritor “pareceu
interessante por causa das questões do Báruè”. Carta nº 120, de 16/10, sobre viagem à
Zambézia e as plantações de cana sacarina. Carta nº 121, de 16/10, com anexos importantes,
totalizando 23 fls. Carta nº 122, de 16/10, com cópia da exposição dirigida ao governador-
geral. Carta s/ nº, de 16/10, sobre viagem à Zambézia e assuntos importantes, com onze fls.
– Carta extra nº 41 – CONFIDENCIAL, sobre João Martins, Angónia, Carl Wiese,
arrendamento do prazo Lugela. Informa que Brito (i.e. o segundo-tenente da Armada António
Júlio de Brito) pretende subarrendar a Angónia por 10.000$000 anualmente. C. Wiese, do rio
Capoche ao Zumbo.
– Três cartas nas de 124 a 126, de 17 e 19/10.
– Carta nº 127, de 27/10, sobre a situação em Milange e no Namuli. Afirma que Rego
propõe o abandono da região. Não foram encontrados os relatórios dos empregados, relatórios
que afirmou ter remetido. Também desapareceram as cópias das cartas que dirigiu ao
governador da Zambézia.
– Cartas nº 128, 129 e 130 de, respetivamente, 25, 27 e 30/10, com um total de 57 fls.
Os temas nelas citados relacionam-se com a pacificação e a ocupação da Zambézia. Menciono
alguns: situação da revolta no Lugela, com cópias das cartas que escreveu a 15 e a 25/10 ao
governador da Zambézia; revolta de 1897 em Milange com o incêndio da missão e a expulsão
dos missionários e do comandante militar; opina que “apesar da guerra na Maganja que bem
sanguinária foi (até escrevi que se renderam sem luta) não serviu de ensinamento aos
indígenas do norte desta região, a quem chamam Lomuès, que ainda hoje não pagam
mussoco, nem aceitam facilmente a autoridade do governo. A Companhia do Boror não viu
com bons olhos o nosso predomínio, manifestação que mais parece provocada por
dissidências entre diferentes chefes indígenas! Os comandantes militares de Milange e
Anguru eram agentes da autoridade da Companhia da Zambézia no cumprimento do Decreto
de 18 novembro 1900. Com a ocupação se gastaram até fins de 1900 (precisamente)
94.868.087 réis. Foram assassinados o contramestre e (alguns) sipais em Nameta. Como não
podia autorizar a intervenção da força armada, disse aos empregados que se retirassem.
Segunda carta (?): os indígenas do Lugela roubaram três contos (i.e. três milhões de réis) de
mercadorias. C. Z. mandou 250 homens (sipais?) à Lugela”.
– Seis cartas nas 131 a 136, de 30/10 a 15/11. Carta extra nº P 43, de Quelimane, de
511/1901. Importante, ocupando 37 fls.
– Dez cartas nas de 137 a 145, de 5 a 30/11.
– Carta nº 146, de 5/12. Transcrevi o seguinte: “A verdadeira situação das autoridades
na África Oriental é esta: os governadores de Distrito nada podem ou devem resolver sem
consultar o governador-geral; feita a consulta é na maior parte dos casos, senão em todos,
transmitida para o ministro da Marinha e raro é que em nossa vida se consiga a resolução de
qualquer negócio como se requer por mais justo que seja”.
– Treze cartas nas de 147 a 158, de 5 a 28/12/1901.
– Telegramas (exigiram 55 microfilmes).
– Índice.

***
177
Volume com o seguinte número e rótulo na lombada: “14 – Administração em África
– janeiro a agosto 1902 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontrou foi
classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem.
– Cartas nº 1 e 2, ambas de 2/1. Eis em resumo a mensagem do administrador do Prazo
Lugela, de 20/12/1901: “Em dois do corrente tendo mandado setenta sipais aos muenes
Balalei e Mugananha… foram atacados no último muene ficando alguns feridos. Dois sipais
de Tacuane foram degolados quando estavam numa vedeta. O muene Balalei “pegou pé”com
alguns dos seus fumos mas o Mugananha negou-se gastando os sipais 1.300 cartuchos. Os
indígenas estão cada vez mais bem armados e com bastante pólvora, de onde ela vem é que
não posso nem sei dizer. Quiseram os sipais cercar a casa onde Mugananha guardava o
mussoco que tinha recebido de outros muenes, mas não conseguiram porque os outros
pegaram fogo… (A região de) Tacuane e Marraita nunca ficará bem enquanto o Licungo não
for batido… para o ano a fome há-de ser grande caso não se batam estes muenes. Não sei por
que não vieram sipais de Massingire (M. M. explicou que se cobrava imposto)”.
– Cartas nº 3 a 5, sendo uma de 4/1 e duas de 6/1; extra-Chinde, de 9/1).
– Carta extra-Chinde, de 27/1 (do segundo-tenente António de Brito sobre o comando
do “Zambeze” (navio da Armada?).
– Cartas nº 6 e 7, de 17/1 e de 1/2 (esta última enviava cópias, em duplicado, dos
últimos relatórios do agrónomo Luga; contudo nada aí se encontrou); cartas nas 8 a 10, sendo
uma de ½ e duas de 6/2.
– Carta nº 11, de M. Machado, em Quelimane, a 4/2 (importante relatório da viagem a
Tete: a Companhia Açucareira de Marromeu, fundada por Hornung, recrutou quatrocentos
trabalhadores na Angónia; situação dos prazos subarrendados a João Martins e a Carl Wiese;
a administração da Macanga passou para o segundo-tenente Brito; continua a desobediência
em Lugela e Namuli.
– Quinze cartas nas de 12 a 26, de 6/2 a 3/3. Na carta nº 19 consta que o governo
questionou o subarrendamento de prazos a C. Wiese.
– Quatro cartas nas de 26 a 29, de 6 a 10/3. Na nº 27 foi feita referência a uma difamação
sobre o fornecimento de pólvora aos povos do Báruè. A nº 29 remeteu sete mapas preciosos,
mas infelizmente desaparecidos, que incluíam uma relação da totalidade dos prazos, as
respetivas rendas pagas ao Estado, a identificação dos subarrendatários, os rendimentos
obtidos com a administração direta, etc. Dezassete cartas nas de 30 a 46, de 14/3 a 19/5.
– Nove cartas nas de 47 a 55, de 17 a 28/5. A nº 47 trata de “mantimentos para a
expedição ao Báruè”. A nº 49 remetia a cópia, infelizmente desaparecida, de um contrato com
a Comp. do Boror para não negociar na região de Lugela-Namuli desde maio de 1902 a abril
de 1903. A nº 51 respeitava à dragagem aluvial no rio Umsenguezi, com um croquis.
– Carta nº 56, de 1/6. Chegada do comandante J. Azevedo Coutinho como governador e
também de Portugal Durão, 2º subdiretor em África, ambos na Campanha do Báruè.
– Três cartas nas de 57 a 59, de 2/6 e 4/6. Esta última remetia cópia do oficio recebido de
Azevedo Coutinho, convidando B. Moniz a assumir o comando dos sipais da C. Z.
– Cartas nas 60 a 62, de 9/6 e 17/6. Azevedo Coutinho também encarregou o Botelho
Moniz de organizar o serviço de transporte fluvial para a expedição ao Báruè. Vão
quatrocentos sipais de Massingire, quinhentos da Maganja da Costa, trezentos da Angonia.
Também se recrutaram dois mil carregadores da Angonia.
– Carta nº 63, de Botelho Moniz, em Quelimane, de 16/6/1902. Envia cópia do ofício nº
411, do dia 16, subscrito pelo Secretário do governo do Distrito, o qual contém a seguinte
informação: “… a região da Macanga foi completamente batida pelo segundo-tenente da
178
Armada Real, António de Brito… arrasando todas as aringas. Luís Caetano, o chefe daqueles
rebeldes, foi morto quando fugia, tendo a sua cabeça sido reconhecida por mais de quinhentos
indígenas”. Sete cartas, nas de 64 a 70, de 19 a 30/6. Esta última informa que, para a expedição
ao Báruè, a C. Z. forneceu mil sipais provenientes de Massingire e da Maganja d’Além Chire.
– Nove cartas, nas de 71 a 79, de 16/6 a 18/7. Delas constam as seguintes informações:
a) “ A expedição deve seguir do Chinde dia 18 do corrente… acompanho a coluna comandada
pelo Sr. governador porque julgo isso de interesse capital para nós”. b) “Os relatórios de
Quelimane e das circunscrição do Leste e oeste deverão ser enviados diretamente a Lisboa.
– Vinte e sete cartas, nas de 80 a 105, de 16/7 a 26/8. Delas consta a remessa de vários
mapas-relatórios mas estes não foram encontrados. Tem interesse o seguinte trecho: “… a
Companhia do Boror até hoje não tem estabelecimento nenhum no nosso prazo Lugela nem
empregados; o Sr. Stucky nunca tencionava negociar diretamente no Lugela; o que lhe
convinha era eliminar a concorrência da C. Z. naquela região pensando que os indígenas
haviam de vir vender seus géneros em Nhamacurra ou em outras estações da Boror, esperança
que até hoje não se realizou. De maneira que o Sr. Stucky não está satisfeito com o resultado
da sua combinação”.
– Carta nº 106, de Botelho Moniz, aos 2/8/1902. Refere os seguintes assuntos: relatório
de Portugal Durão; proposta da firma Marques & Moura para continuar o subarrendamento
dos prazos Inhabaruaro e Inhalupanda, com dispensa de hasta publica e redução da renda de
382$000, empolada devido à cobiça das autoridades civis e militares que concorreram
indevidamente à arrematação. Atenção! Na sua carta Portugal Durão escreve na folha 7: “…
Estou em vésperas de partir para o Báruè, comandando a coluna volante do Luenha… tive
que levantar cinco mil homens só nos prazos de Tete e tive portanto ocasião de observar
o funcionamento do nosso modo atual de administrar”. P. D. enumera a seguir vários
inconvenientes de grande importância. Carta nº 107, de 28/9, seguindo do Índice.

***

Volume com o seguinte número e rótulo na lombada: “15 – Administração em África


– setembro a dezembro 1902 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontrou foi
classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem.
– Seis cartas, nas de 108/12, de 8/10/9. Desta última consta o seguinte trecho: “Ex. mos Sr.
administradores da C. Z. em Lisboa; vamos escrever novamente para o Chinde para saber se
realmente não foram recebidos os vinte a quatro relatórios que a V. Ex. ª há tempos mandaram:
aqui não os recebemos… P. S. Recebemos os vinte e quatro relatórios a que se refere a carta
de V. Ex.ª nº69”. Sete cartas, nas de 113 a 119, de 10 a 19/9. Com a carta nº 115, mandou
diversos mapas que não foram encontrados, entre os quais dez sobre a administração dos
Prazos Angoaze a Andone.
– Carta nº 120, em Quelimane, de 19/9. Contem os seguintes elementos: “pacificação da
Macanga; conforme as ordens de V. Ex. ª mandamos ao Sr. António de Brito uma cópia da
carta central dessa Direção nº 76”. Três cartas, nas de 121 a 123, de 19 e 20/9.
– Carta nº 1 (?), de Tete, a 20/9. Enviou diversos mapas sobre o movimento da feitoria
entre eles os relativos à cobrança do mussoco. O seu paradeiro é desconhecido.
– Oito cartas, nas de 124 a 131, de 26/9 a 9/10. Desta última consta o seguinte trecho:
“Confirmando a nossa carta central nº112 de 10/9, que respondia à de V. Ex. ª nº 69, temos a
dizer… que a Sucursal do Chinde informa ter recebido… os vinte a quatro relatórios… Diz o
Sr. Navarro que o Sr. subdiretor Durão levou seis desses relatórios e que outros seis foram
distribuídos no Chinde. Os restantes doze foram enviados para aqui…”.
179
– Seis cartas em Quelimane, nas de 132 a 137, de 9 a 11/10, que tinham remetido os
mapas de setembro, referentes aos prazos Andone e Angoaze. Paradeiro desconhecido.
– Carta nº 138, de Botelho Moniz, em Quelimane, de 16/10. Refere a participação, nas
operações militares do Báruè, de três mil homens fornecidos pelas Companhias da Zambézia,
de Moçambique e do Boror. Presta conta da evolução dos negócios e de outros assuntos
durante a ausência em campanha. Individualiza as cartas da Administração Central.
Reportando-se à revolta que grassava entre os Lómuès revela o facto de Stucky ter sido ferido
com um tiro no peito e de, na margem esquerda Licungo, terem sido abatidos alguns sipais e
um comerciante indiano. Espera que o governo pacifique a Lugela. Na folha 12 comenta
sobre a guerra do Báruè: “Toda a gente que ali levámos se portou muitíssimo bem. Em todas
as circunscrições foi mandada abrir uma conta especial com este título para mais facilmente
se poderem avaliar os resultados. Creio que nos deixará um lucro razoável”.
– Carta nº 139, de Botelho Moniz, em Quelimane, de 21/10/1902. Dá parecer favorável
ao contrato de dez mil trabalhadores provenientes da Angónia, da Macanga, do Zumbo e dos
Angurus, proposto pela W. N. L. A. (agência de recrutamento fundada pelas minas do Rand).
O lucro atingiria £ 7.500, efetuando-se o transporte por via marítima. Seria adiantado o
dinheiro do mussoco. Pagar-se-ia o salário de £ 18 anuais, sendo metade no Transval e a outra
metade na terra de naturalidade. A C. Z. receberia por conseguinte £ 90.000 em ouro e pagaria
“em fazendas como é de uso”. O lucro atingiria 10% i.e. £ 9.000, a juntar às £ 7.500 ou seja
99.000$000 em moeda portuguesa. Acrescenta que “não seriam empregados em trabalhos
subterrâneos, que detestam”. – Quatro cartas nas de 140 a 143, idem, idem, de 22/10 a 5/11. A
penúltima continha instruções sobre o subarrendamento dos prazos de Tete. A última fazia
referência a “mapas económicos”, de paradeiro desconhecido.
– Carta nº 144, idem, idem, de 5/11/1902 (anuncia que João de Azevedo Coutinho
regressa a Portugal e lembra que a Administração lhe deve agradecer os favores recebidos).
– Dez cartas nas de 145 a 154, idem, idem, de 11 a 20/11.
– Carta nº 155, idem, idem, de 21/11 (remete cópia do termo de arrendamento dos
prazos Angónia e Macanga, assinado no dia 19, cujas condições foram estabelecidas de
comum acordo entre a C. Z. e o governador do distrito).
– Cinco cartas nas de 156 a 160, de 20 a 22/11;
– Carta nº 161, de 22/11. Por participação do governo acabo de saber que voltou a
revoltar-se a região dos Angurus. O governador ordenou que mandássemos cinquenta sipais,
com empregado, para reforçar o comando militar enquanto não chegarem os reforços de
Quelimane. Carta nº 10, de Chinde, de 21/11.
– Carta nº 2, de Tete, de 22/10, continham mapas e relatórios de setembro que
desapareceram. Carta nº 3, de Tete, de 12/11, continham mapas e relatórios de outubro;
– Carta nº 162 e 163, de 28/11 e de 1/12, sobre o arrendamento do Prazo Carl Wiese.
– Carta nº 164 e 165, de 1 e 2/12, com cópia do importante projeto de Portugal Durão
para a Administração dos Prazos de Tete;
– Carta nº 166, de 2/12. A Administração de Lisboa não autorizou a contratação de
emigrantes para o Transval. O recrutador foi para L. Marques. Machado deve de chegar
brevemente. Diz textualmente: “A Companhia consente a emigração de trabalhadores o que
certamente muito satisfará pois há três meses que aqui estão estabelecidos e ainda não
conseguiram fazer remessa alguma de emigrantes; os engajadores podiam contratar mão-de-
obra nas regiões não constituídas em prazos sem que C. Z. lucrasse alguma coisa com isso; o
aproveitamento da Lagoa Navilumbo poderia fazer fugir catorze mil habitantes”.
180
– Sete cartas nas de 168 a 174, de 3 a 17/12; Carta nº 175, de 17/12. A Comissão de
Zambezianos telegrafou ao secretário do partido do Rei pedindo a nomeação de Azevedo
Coutinho como governador-geral de Moçambique. A C. Z. não tomou parte neste pedido em
virtude das instruções enviadas;
– Carta nº 176, de 17/12. Foi recebido o seguinte telegrama: “Sendo inevitável a
emigração de Alta Zambézia faça contrato provisório dependente da aprovação do concelho”.
Seguem-se comentários muito sensatos. B. Moniz considera da máxima conveniência para a
C. Z. evitar que saiam emigrantes das regiões não constituídas em prazos.
– Sete cartas nas de 177 a 183, de 17 a 31/12. Carta nº 4, de Tete, de 12/12, com mapas
relativos à feitoria. Quarenta e nove telegramas. Índice.

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Volume com o seguinte rótulo na lombada: “16 – Administração em África – de


janeiro a junho 1903 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontra foi classificada
e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 1/4, em Quelimane, de Botelho Moniz, de 7 a 16/1. João Cooke Corrington,
chefe da Circunscrição do Leste, passou para guarda-livros, por lhe faltarem todos os
requisitos para a administração dos Prazos da Zambézia. Relatório de Portugal Durão, em
Chilomo, a 31/12/1902, sobre o estado em que encontrou a Circunscrição do Leste: Milange
foi abandonado, embora pelo relatório de Leandro Rego (desaparecido) se soubesse que só na
Secção da Chirua haviam sido recenseadas catorze mil palhotas; a população consciente do
medo mostrado pelos muzungos revoltou-se aderindo ao Cuambe e ao Mudedere da Angonia,
acostumados à guerra. Fugiram trezentos angonis que tinham sido enviados com guia e sipaio,
Milange chegou a fornecer quatro mil e a Angonia seis mil. No Chilomo os armazéns, as
casas e as mobílias são comidas pela formiga branca. Morrumbala foi abandonada. No que
respeita ao gado verificou-se que Cooke vendeu vacas em vez de touros. No que concerne os
mantimentos há a constatar que no ano de 1902 foi abundante e de 1903 foi de fome. Promete
relatório no fim do ano. Elogia o relatório do chefe de secção do Molumbo, e pede para ali
cinquenta soldados e cinquenta sipais para o Molumbo. Pede postos militares no Namuli e
Nameta. Caso não seja possível pede um empregado europeu para a estação do Gúruè. Caso
seja impossível criar um posto militar em Nameta pede que sejam castigados os muenes
Kihoma Menderre e Nameta. Considera o anguru um animal que não ama a família, além da
sua própria barriga e da sua pele. Em nada concorre para o bem comum do agregado a que
pertence. Não tem amigos além das ocasiões em que juntos se defendem ou vão fazer
malefícios a outros; é completamente livre e só nas ocasiões de perigo ou de malvadez,
reconhece um chefe eleito única e exclusivamente para a defesa ou para o ataque; é sobretudo
uma fera que é necessário domar… Propõe que os sipais recebam mensalmente uma peça de
algodão e o fardamento. Na secção de Chirua e Namuli os dois mil e quinhentos mussocos
rendiam 2.500.000 réis. Não chegavam para pagar os ordenados dos únicos europeus: o chefe
da secção (1.800.000) e da estação (900.000). No questionário que Portugal Durão apresentou
ao Cooke (era inglês) quis saber por que razão não vendeu comestíveis do armazém Mutara à
expedição do Báruè? Almeida (Sena) e Bívar venderam tudo quanto tinham.
– Carta nº 5, de19/1. Subarrendamento dos Prazos de Tete. Carta nº 6, de 19/1. Limites
do antigo distrito de Tete com duas informações. A feitoria de Tete envia cópia do relatório nº
2, entretanto desaparecido. A divisão dos governos de Quelimane e Tete foi feita por Decreto
Real de 9/12/1853 e tem o nº 1261. Ver também a portaria publicada no B.O. 1/1854. Nove
cartas nas de 7 a 15, de 19/1 a 3/2, sendo a nº 10 extra contendo a informação de que M.
Machado chegou ontem.
181
– Carta nº 16, de 3/2, tratando de assuntos muito variados. O governo local, por ordens
expressas do general Gorjão, foi obrigado a permitir a contratação, em Quelimane e na
Maganja da Costa, de trabalhadores para o Transval o que é inconveniente para a C. Z. Muita
gente com alguma influência – incluindo donas e muzungos – está interessada no negócio da
emigração. Apesar disso só conseguiram contratar na vila setenta indígenas, constando que na
sua maior parte se puseram em fuga, apenas chegando trinta ao Transval. Na Maganja da
Costa contrataram agora cinquenta indígenas. Durão em Tete, Moniz no Chinde e Brito na
Angónia. Os nativos da Zambézia sabem muito bem que indo trabalhar na Beira ou na
Machonalândia ganham como moleques (empregados domésticos) i.e. 2 a 3£ por mês… as
minas só pagam 1,10£.
– Carta extra P 1, de M. M., em Quelimane, a 3/2/1903, tratando de vários assuntos.
Mão-de-obra para o caminho-de-ferro Chilomo-Niassa. Brito na Angónia não conseguia
trabalhadores para Marromeu (i.e. para a açucareira de Hornung) “quando é certo que para
a guerra estão todos prontos”. No entanto, estando de visita a Quelimane, afirmou que
podia fornecer aos Caminhos-de-ferro dez mil homens por ano. Defendeu, no entanto, a
exigência de várias condições, tais como o pagamento dos salários por intermédio da C. Z.
que receberia o seu montante em ouro ou em libras sob Londres. Contudo, Mariano Machado
duvida que Brito pudesse fornecer esses dez mil trabalhadores.
– Carta nº 17, de 12/2. Dá a conhecer que António Júlio de Brito regressou à Europa,
depois de prestar relevantes serviços na Angónia, na Macanga e no Báruè. Caso deseje
regressar sugere que lhe seja proposto um contrato de 200$000 fixos, complementados por
uma percentagem sobre os lucros líquidos. Em 1901 recebeu 2.000$000 de percentagem; em
1902 (subiu para) 6.541$000 devido à expedição do Báruè. Argumenta que em todo o caso os
lucros líquidos para a C. Z. atingiram 10.000$000.
– Cartas nas 18 a 19, ambas de 12/2; Carta nº 21, de 14/2. O Conde Villa Verde deve em
Quelimane 40.000$000 sendo 9.000$000 a empregados e o resto à Boror, C. Z., Dúlio e
Correia & Carvalho. Credores concordam em pôr sob administração os prazos que lhe
pertencem. Cartas nas de 22 a 25, de 16 a 18/2.
– Carta nº 26, de 18/2. Afirma-se que “… a emigração da Zambézia é um assunto muito
difícil de resolver e mais moroso será ainda de pôr em prática; e isto pela relutância que em
geral os indígenas têm pelo trabalho e muito mais de emigrar embarcados em vapores onde
seguiam levas de soldados de Angola, de onde não voltavam mais…”.
– Seis cartas nas de 27 a 32, de 20/2 a 7/3 e seis cartas extras nas de P 2 a P 7, de 22 a
23/3. Carta extra P 8, de 23/3. Lamenta “… Infelizmente a emigração (para o Transval) é um
facto, havendo três engajadores, dos quais dois são ingleses que trabalham em Quelimane e na
Maganja da Costa e que já têm mandado indígenas, o que foi feito, apesar de todos os
protestos, ainda no tempo do enérgico governador Coutinho, mas contra sua vontade, por
ordens muito expressas do Sr. governador-geral … na Zambézia, como V. Excias sabem, os
indígenas nunca trabalham voluntariamente; é necessário que os empregados ou os chefes
indígenas os forcem ao trabalho…”. O subscritor remata com pormenores importantes.
– Carta nº 33, de 20/3. Carta do Chinde, s/nº, de 23/3. Carta extra P 9, de 2/4, s/ viagem
à Zambézia. Carta extra P 10, de 2/4. O governador-geral achava muito grave não cumprir o
modus vivendi (v. Boletim Oficial nº 20, de 1902), acha que os interesses do Transval estavam
de tal forma ligados a L. Marques e a toda a nossa colónia, que dos bons resultados da
exploração mineira dependia todo o nosso futuro. Carta extra P11, de 2/4. Emigração.
Despesas com a expedição à Macanga. Carta extra P12 e P13, ambas de 2/4. A primeira trata
da abertura do canal do Muto, acrescentando “pedi aos Srs. Breyner e Cohen para mostrarem
essa planta, e verem se podiam animar os capitalistas que abundam em L. Marques a
interessarem-se por este trabalho”.
182
– Carta extra P14, de 11/4. Emigração para o Transval; recrutadores não só de Milange,
Lugela e Namuli – que o governo não considera como prazos – mas também Chinde, Chilomo
e Tete, sem proveito para a C. Z.; ouvido o governador-geral concluiu que “a emigração há de
forçosamente dar-se, apresentou a W. N. L. A. em Joanesburgo as bases do contrato e exigiu
que a British Central Africa também autorizasse a emigração para o Transval (anexa a
importante proposta do contrato com esta agência de recrutamento); “… mas se fosse
possível elevar o número de emigrantes para cinquenta mil, sendo voluntários como se
exige, não só o trabalho local em nada seria prejudicado, como as vantagens que dali
resultariam seriam muito superiores a todos os resultados conhecidos tirados até hoje
por todos os que trabalham na Zambézia”. Quinze cartas nas de 34 a 45A, de 8/4 a 9/5,
compreendendo uma Reservada nº1 e outra extra da Beira sobre o Canal do Muto.
– Carta nº 46, de 7/5. Quantifica numa espécie de fatura as despesas com a expedição da
Macanga; atenção ao PS final com a seguinte informação: “São estas faturas que não se
encontraram em L. M. na Repartição de Fazenda nem no governo-geral, julgando o
atual governador-geral que o Sr. general Gorjão a levou com o relatório da guerra feito
pelo Sr. tenente Brito”.

Companhia da Zambézia
Administração em África
Quelimane, 31/10/1902, Residência da Angónia
Deve pelo nosso fornecimento para a guerra da Macanga

1 Capitão de Sipais (11 semanas) 8.800


1 Corneta 6.600
290 Sipais 1.276.0
00
200 Carregadores 880.00
0
80 Machileiros 352.00
0
3.37 Chicopas (Gente de guerra a 1.500) 5.068.5
9 00
4 Muzungos (2 ½ meses) 400.00
0
59.2 Litros de farinha para posso 1.776.9
31 30
9.768.8
30

– Treze cartas nas de 47 a 58, de 8/5 a 16/6, compreendendo uma Reservada nº 2 e outra
de Chinde. Carta nº 58, de 16/6. Bívar fechou novos contratos de emigração para o Transval.
Lomelino e Bívar, arrendatário de Goma (?) e M’guro (?) fizeram com a W. N. L. A. um
contrato mais vantajoso. Sendo estes prazos limítrofes com Maganja e Massingire pode muito
bem suceder, se a emigração cair em graça… que os indígenas (destes últimos) passem (aos
primeiros) para se contratarem sem que disso nos resulte vantagem e antes pelo contrário
considerável prejuízo.
– Carta nº 59, de 16/6. Fome em Massingire e Maganja por falta de chuvas.
183
– Carta nº 60, de B. Moniz, de 17/6. Desmandos de Cooke como chefe da Circunscrição
do Leste. Carta nº 61 e 62, de Botelho Moniz, de 19/6. O tenente Brito usou, sem autorização,
os bens da C. Z. para custear a expedição. Julgo inconveniente a acumulação de cargos do
governo com lugares da Companhia por ser difícil encontrar quem saiba conciliar os
interesses das duas partes. A meu ver a Companhia deve eximir-se a aceitar imposições neste
sentido para regularidade e bom andamento de serviço em África.
– Carta nº 63, 64 e Chinde 2, de 22 e 23/6. Índice.
***

Volume com o seguinte rótulo na lombada: “17 – Administração em África – julho a


dezembro 1903 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e
resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 65, de 1/7/1903. Enviava ao mapas-relatórios dos diferentes serviços da
Circunscrição do Leste, referentes a maio, porém estes desapareceram.
– Treze cartas nas de 66 a 78, de 1/6 a 22/7. Carta nº 76, de 27/7. Pedido de Portugal
Durão para o aumento de sua remuneração para 200$000, pedido que explica pelas
dificuldades de transferência para Lisboa das suas pequenas economias.
– Três cartas nas de 80 a 82, de 27 e 28/7.
– Carta nº 83, de 29/7. Subarrendamento dos Prazos de Tete. Minuta do contrato.
– Três cartas nas de 84 a 86, de 1 e 4/8. Carta de Chinde, a 7/8. Contrato de Lomelino &
Bívar (recrutamento para Transval).
– Seis cartas de Chinde, de 8 a 20/8. A última remete uma exposição feita ao Rei pelos
negociantes e proprietários do Chinde, cuja identificação consta do seu final.
– Duas cartas de Chilomo, a 24 e 25/8. Da primeira constavam os mapas da
Circunscrição do Leste referentes a julho, mapas que não foram encontrados.
– Importante carta de Chilomo, a 26/8, de B. M. relatando a viagem à Zambézia.
– Quatro cartas nas de 87 a 90, de 2 a 8/9.
– Carta nº 91, de 8/9. Remete mais uma vez a cópia da fatura referente às despesas com
a guerra da Macanga porque “… aqui (em Moçambique) não é possível a sua cobrança”.
– Três cartas nas de 92 a 94, de 7 a 22/9.
– Duas cartas de Chilomo, de 17 e 20/9; esta última continha os mapas da Circunscrição
do Leste referentes a agosto, mapas agora desaparecidos.
– Carta de Botelho Moniz, em Vila Bocage, de 23/9. Alude a Massingire e à
“desoladora miséria dos indígenas que se acham desprovidos do indispensável para se
alimentarem… o Chire e o Ruo estão secos em alguns pontos… na Maganja d’Além Chire a
desgraça não é menor…”. Cinco cartas do Chinde, s/nº, de 30/9 a 3/10. Uma carta de
Quelimane, s/nº, de 7/10. Uma carta de Tete, s/nº, de 8/10, enviando os mapas de gado da
Macanga, Angónia e Zumbo. Oito cartas nas de 98 a 105 e de 9/10 a 15/10. – Carta nº 106, de
18/10, elogiando a emigração para o Transval… “cada indígena virá a receber 34.600
líquidos… O contrato está muito bem feito e é vantajoso tanto para a C. Z. como para o bem
de (toda a) Zambézia pois a meu ver será a sua única salvação e pena é que se não tivesse
começado há mais tempo porque não teríamos hoje que lutar com tantas dificuldades”.
– Seguem-se quarenta cartas nas, colocando-se entre parênteses os assuntos que se
julgaram com maior relevância: nº 107, de 20/10; nº 108, de 21/10; nº 109, de 22/10 (imóveis
da C. Z. em África); nº 110, de 23/10; nº 111, de 9/11 (prorrogação dos arrendamentos dos
prazos de Tete); nº 112, de 10/11; nº s 113, 114 e 115, de 19/11; nºs 116 a 119, de 20/11; nº
184
120, de 23/11 (importante minuta do contrato de emigração para o Transval); nºs 121 e 122,
ambas de 27/11; nº 123, de 27/11 (circular às atividades económicas perguntando que
participação cada qual poderia conceder para a abertura do canal do Muto); catorze cartas nas
124 a 137, de 29/11 a 21/12; nº 138, de 22/12 (razões da atitude hostil dos arrendatários da
Baixa Zambézia contra a emigração para o Transval); nove cartas nas 139 a 147, de 26 a
30/12; carta nº 148, de 31/12 (contrato com José de Magalhães como administrador do Prazo
Lugela; cálculo do mussoco; como parte do território Lómuè está em rebelião será necessário
recorrer à força). Confidencial: más informações sobre o empregado Vasconcelos “empenhei
minha palavra para com as autoridades cafreais do prazo. Prometendo-lhes que ele não
voltaria ali e hei de fazer o possível para a cumprir embora para isso tenha que deixar o
serviço da Companhia… Assassinou por ocasião do último recenseamento um muene do
Namerrumo… castigou alguns indígenas por forma bárbara”.
– Cinquenta telegramas;
– Índice.

***

Volume com o seguinte rótulo na lombada: “18 – Administração em África – janeiro


a junho 1904 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e
resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Oitenta e três cartas nas de 1 a 98, de 4/1 a 25/6. Carta nº 18, de 21/1. O governador
militar de Tete mantém os prazos Inhacatipué e Massangano, na margem direita do Luenha,
estão fora da área concedida à C. Z., fixada pelo decreto de 24/9/1902. Carta de Chilomo, a
22/1. Continha mapas, que desapareceram, das estações relativos a dezembro. Dezasseis
cartas do Chinde, de 27/1 a 8/6. Carta de Chinde, de 20/2. Lista de prazos subarrendados.
– Carta de Chinde, de 22/2. Presta a seguinte informação histórica sobre o prazo
Inhaperupure: o Chioco foi conquistado por Ignácio quando Manuel António de Sousa
conquistou o Báruè; o prazo Chioco nada tem em comum com os que em 1896 foram
entregues à C. Z. pelo Comando militar de Tete; era uma butaca separada com limites bem
distintos; Missale fazia parte da Macanga.
– Carta extra de 23/2. Importante relatório de Botelho Moniz. Carta nº 30, de 5/3.
Botelho Moniz parte para a Europa por motivos de Saúde. Carta nº 35, de 8/3.
Subarrendamento do prazo Lugela.
– Carta nº 43, de 19/3. Numa carta em Tete e de 4/3/1904, Portugal Durão exprimiu
nestes termos as suas ideias muito liberais sobre emigração para o Transval “entendo que
ninguém tem direito a impedir que o indígena vá trabalhar onde quiser mas defendo que a C.
Z. não deveria atuar como agente recrutador”. Projeto de contrato com a W. N. L. A.
– Carta reservada, de 19/3. Carta nº 51, em Tete, a 5/3, por Portugal Durão. Manifesta
desagrado contra Botelho Moniz pela sua atuação no caso do fornecimento pelo C. Z. de
cinquenta carregadores que iriam transportar de Blantyre para Chiromo a madeira oferecida
pelo comissário régio da British Central Africa ao governador do distrito, madeira destinada à
conclusão da igreja de Tete. Comunica não desejar continuar ao serviço da Companhia da
Zambézia.
– Carta nº 44, de 19/3. Plano de atividades. Carta nº 49, de 24/3.
– Cópia da carta de Botelho Moniz sobre os limites dos prazos de Milange, Lugela e
Lómuè, dos quais apresenta um mapa cartográfico.
– Carta nº 52, de 30/3. Arroz em Bompona. Carta nº 53, de 30/3. Fotos temporal de
31/1. Carta nº 56, de 8/4. Carta de Portugal Durão, em Tete, a 23/3 sobre o grande régulo
185
Undi e os seus irmãos, Chigago, Chincoco e Chimuara. O governador de Tete levantou a
questão dos prazos da Marávia.
– Carta nº 64. Brito substitui Durão.
– Carta nº 71, em Quelimane, a 23/4, de Brito. Sobre o seu serviço na C. Z.
– Carta nº 87, a 14/5, de P. Durão. Importante mapa de Tete com prazos.
– Carta extra Central, de 25/6. Índice.
***

Volume com o seguinte rótulo na lombada: “19 – Administração em África – Cartas


nos 99 a 185 e nos 1 a 43; e telegramas – julho a dezembro 1904 e janeiro a março 1905 –
CENTRAL”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e resumida pelos
parágrafos autónomos que se seguem:
– Carta nº 102, de 6/7/1904 “… S. Ex.ª o governador de Distrito encarregou José Vieira
Branco, alferes, comandante militar de Angurus, com auxílio do nosso empregado José de
Magalhães e Menezes, de… submeter os muenes rebeldes do prazo Lugela… (estes)
apresentaram-se e estamos já a receber em Quelimane os mantimentos (amendoim)
provenientes da cobrança do mussoco. As cargas foram transportadas por antigos
rebeldes. As despesas da diligência foram insignificantes por parte da C. Z.”
– Carta nº 107, de 20/7/1904. “… O comandante militar do Molumbo foi transferido
para Nhamarroi. No Molumbo fica o sargento. A 4ª Companhia de Guerra vai ser transferida
para Vila Paiva d’Andrada. A nossa sede de secção do Molumbo é transferida para
Nhamarroi. Para consolidar a ação no Milange vai o governador iniciar a ação idêntica na
Maganja da Costa ao longo do rio Licungo. No Lugela criou-se mais uma estação no Mateué,
a que demos o nome de Vila Viera da Fonseca, em reconhecimento ao governador que tomou
a responsabilidade de ordenar esta diligência, quando os seus antecessores sempre se
recusaram faze-lo chegando alguns a retirar-nos todos os meios de ação na região… A
população no prazo – que não representa menos de 60.000 de mussoco – nos garantirá boa
fonte de receita. De resto, homens como Sinderam, que conhece o prazo e que representa um
grupo constituído em Blantyre, não hesita em oferecer por ele 4.000£… Nunca fui de opinião
que os comandantes militares fossem administradores de prazos visto a incerteza da situação e
a sua subordinação ao governador do Distrito o qual, de um momento para outro, pode desviá-
los do serviço de recenseamento e da cobrança do mussoco, assim prejudicando altamente os
serviços administrativos de que estão encarregados. No caso de algum deles se revelar
competente para administrar prazos, entendo que é sempre preferível toma-lo inteiramente ao
nosso serviço. Sem dúvida que os comandantes militares podem ser nossos auxiliares, mas
entendo que nunca e pelas razões acima citadas, devem ser administradores dos prazos. Porém
– com respeito ao alferes Branco que acaba de nos prestar importante serviço e que tem
mostrado tanto zelo no desempenho do seu cargo – entendo que enquanto ele se conservar nos
Angurus, deve ser o administrador daquela secção no prazo Milange. O seu ordenado porém
deve de ser elevado a 120.000 réis mensais, conservando-se as percentagens que agora lhe
estabeleci. Logo que ele dali saia, proporei para administrador de todo o prazo José de
Magalhães de Menezes”. Cópia do acordo feito em 13/6/1904 com Francisco de Mello
Breyner e John Sinderam para subarrendamento do prazo Milange.
– Carta nº 108, de Portugal Durão, a 21/7/1904, sobre a regularização dos prazos de
Tete. Importantes e pormenorizadas relações de prazos, com rendas desde 1873.
– Carta nº 111, idem, a 26/7/1904, sobre o acordo com a W. N. L. A. para aplicação do
modus-vivendi (feito com a África do sul). Nomes e distribuição dos recrutadores.
186
– Carta nº 112, idem, sobre o subarrendamento de Milange a Mello Breyner: as 4.000£
dessa renda foram-lhe fornecidas pela Labour Association. Grandes lucros para a C. Z.
segundo as contas de Portugal Durão. Carta nº 115, idem, a 1/8/1904. Contrato com a
Companhia do Boror para cargas.
– Carta nº 120, idem, a 5/8/1904. Subarrendamento de prazos de Tete a Francisco Filipe
Couto, empregado da C. Z. durante nove anos. Mussoco. Má fé. Carta daquele com a relação
dos prazos, seus mussocos e a sua população.
– Carta nº 124, idem, a 10/8/1904. Subarrendamento dos prazos de Tete a João Martins:
pouco ou nada valiam antes da campanha do Báruè. Relação.
– Carta nº 130, idem, a 18/8/1904. Recenseamento dos prazos Massingire e Maganja.
Diminuição de 4.617 mussocos de 1903 para 1904. Fugas (devidas à acumulação de dois
mussocos). A Companhia de Moçambique, na Circunscrição de Sena, tem uns 70.000
mussocos mas apenas três contos se encontram em atraso. A Companhia da Zambézia tem
apenas 29.000 mussocos mas tem em dívida vinte e um contos. O recenseamento de Netumbe
foi feito pelo Vaz que está muito desleixado e bêbado pelo que me verei forçado a despedi-lo.
– Carta nº 138, idem, a 28/8/1904. Rendas dos prazos. Correspondência com o
governador. Carta nº 139, idem, a 30/8/1904. Contratos com monhés (comerciantes indianos).
– Carta nº 151, idem, a 16/9/1904. Seguiram para o Rand, até esta data, 1.058 indígenas
contratados no prazo Milange. Carta nº 156, idem, de 23/9/1904. Epidemia de gado em Tete.
– Carta nº 159, de Portugal Durão. REVOLTA NO CHIOCO. Escreveu textualmente:
“Só ontem recebi informações mais detalhadas do tenente Velez. Pelo seu telegrama…
conclui que o comandante militar do Chioco foi encarregado pelo governador de perseguir o
Damba-Cuchamba que tentava juntar gente. O comandante militar ao passar pelo luane do
Marley foi por este rogado a deixa-lo acompanhar a patrulha. Esse luane é junto de
Inhacaroço. Seguiram para Nhapando junto do rio Mazoe onde encontraram rebeldes que
desalojaram, matando sete e fazendo prisioneiros. O Damba-Cuchamba fugiu. Seguiram em
sua perseguição. Marley em frente com oito sipais morreu vítima de emboscada. As
povoações de que falo, poderão V. Exas encontra-las no mapa que levantei quando andei
delimitando a fronteira e que o Sr. Moniz para aí levou. Trata-se apenas de um bando armado
capitaneado pelo Damba-Cuchamba. Este foi por mim batido e destruída a sua aringa durante
a campanha do Báruè. Fugiu, refugiou-se junto da serra Ankuaze, perto da nascente do rio
Daque. A ele se juntou M’pondera, rebelde nos territórios ingleses, com cabeça a prémio na
Rodésia. Algum tempo antes de eu ter partido para a delimitação da fronteira, foi ele com oito
homens atacar o forte de Chioco… apesar de estar bem guarnecido, conseguiu de noite nele
penetrar de surpresa, matando um soldado e ferindo mais dois, perdendo apenas um dos seus.
O comandante estava ausente e o sargento meteu-se dentro de uma sengua de guardar
mantimentos! Quando fui fazer a delimitação… levei trinta espingardas para armar os
machileiros e com esta pequena força consegui percorrer os territórios que o famoso rebelde
ocupava. Isto dá uma ideia do poder que ele tinha. Pensaram que eu ia fazer guerra.
M’pondera fugiu para o lado inglês e a patrulha que protegia o nosso trabalho (de
delimitação) requisitou o comissário inglês, pouco dado a sport, que prendeu e enforcou o
M’pendera. Falharam as tentativas para prender Damba-Cuchamba apesar de nunca ter mais
do que oito a doze homens consigo. O que se passou agora foi (simples) ato de bandoleirismo.
Ele é menos para temer e tem causado menor perturbação do que os apaches em Paris… Em
Tete, parece que se atribui a este pequena insubordinação ao descontentamento dos indígenas
por causa do mussoco, do trabalho e da emigração. Tenho razões para discordar. A
responsabilidade da C. Z. está ilibada porque não é agente de emigração. Quem recrutou foi a
Labour Association. Ignoro como este recrutamento se tem feito em Tete. Sei que a L. A.
tinha recrutado no Chioco 240 trabalhadores mas que fugiram todos no caminho para
187
Salisbury. É claro que estes homens ao chegarem às suas terras não se apresentam ao nosso
subarrendatário e é de prever que este, tendo-lhes feito adiantamentos em dinheiro, fazendas,
etc. empregasse os seus esforços para que lhe fosse restituído o que adiantara. Nesta ocasião o
Damba-Cuchamba faz uma das suas correrias e o comandante militar responsável pelo
sossego da região, aproveitando para tirar desforra da concorrência do subarrendatário, trata
de atribuir à emigração a dita correria e proclamar que o Chioco estava em revolta. Ele (em
dois anos de ocupação tem lá estado sempre o mesmo homem) tinha obrigação restrita de ter
evitado. Mas é claro que o relacionamento da pseudo-revolta do Chioco com a emigração, há-
de mover grandes interesses em Tete e que dentro em pouco se dirá que essa emigração lhe
foi exclusivamente devida. Mas nós nada temos com isso porque felizmente já não somos
agentes de emigração, já não somos recrutadores. Entretanto vou para Tete… ver qual é a
espécie de responsabilidade que o nosso subarrendatário possa ter, porque se tiver alguma,
imediatamente lhe rescindirei o contrato, embora com isso possa prejudicar os interesses
imediatos da C. Z. mas poderei salvaguardar os interesses gerais e futuros… Com respeito ao
sossego da região, creio que podemos estar descansados, porque está em Tete um governador,
inteiramente à altura do seu lugar”.
– Carta nº 162, em Quelimane, de Portugal Durão, a 28/9/1904. Já mandei 1.058
trabalhadores e penso mandar mais mil do prazo Milange. Pede para fazer novo contrato em
L. Marques com a Labour Association, com mussoco de 2.520 réis. Propõe a abolição das
comissões de 5% em troca de outras vantagens: por exemplo, dois prospetores mineiros cada
mil trabalhadores. O governo não tem o direito de fechar a emigração em qualquer região já
que temos de respeitar o modus vivendi. Propõe uma combinação que resolva o mais difícil
dos nossos problemas: a transferência de dinheiro para a Europa. Pede moeda de prata. Espera
grandes lucros de Milange.
– Carta extra nº 1, idem, idem, a 3/10/1904. Envia mapa do território das nossas
concessões… Na comissão cartográfica, coligindo os trabalhos de Gago Coutinho, Ivens
Ferraz e os meus, será fácil fazer um mapa do território das nossas concessões, muito
rigoroso… é trabalho absolutamente necessário… imediatamente… na escala de um milhão.
– Carta extra nº 2, a Bordo do Chire, de 6/10/1904. Subarrendamento de Milange a
Mello Breyner & Sinderam por 4.000£ adiantadas… a maneira de tirar rapidamente do prazo
este rendimento é a emigração para o Transval… não conheço outro sistema de (sem
empregar capitais) poder ali cobrar o mussoco. Carta extra nº 3, em Tete, de 25/10/1904.
Relatório da sua viagem a Massingire e Port Herald. Chilomo a Tete de machila. Wiese no
vapor. Vila Bocage. Morrumbala. Netumbe. Chilomo. Algodão. Subarrendamento dos prazos
de Tete. No Chioco, ao Damba-Cuchamba aderiram alguns descontentes vindos do território
inglês onde o mussoco foi levado a 2£, o que é um pouco exagerado… No Chioco, só a
grande inépcia comandante militar poderia deixar as coisas chegar onde chegaram. A morte
de Marley deu-se assim: o comandante militar, com Correia e Marley tinha trinta sipais.
Damba-Cuchamba com trinta homens da sua gente, fugiram mas apanharam seiscentos
cabritos. Resolveram continuar a perseguição com uma “ordem de marcha” sem precedentes:
à frente Marley com dois sipais e cinquenta cabritos, Correia com seis sipais e trezentos
cabritos, o comandante militar com o resto dos sipais e o resto dos cabritos. Era uma coluna
de cabritos com dois quilómetros de desenvolvimento! Marley ao passar o mucurro foi morto
com um tiro disparado por detrás de uma árvore; os outros acudiram tarde e abandonaram os
cabritos. O comandante militar mandou dizer que o inimigo cortara a água! Apesar do forte
ter cento e cinquenta homens, uma peça de artilharia e água a trezentos metros. De facto à
noite, o inimigo atacou a aringa impávido. O comandante deu um tiro de peça e o inimigo
fugiu. O governador organizou uma coluna com um pelotão de cavalaria para ir ao rio
188
Changara, com novecentos sipais, um pelotão indígena e uma peça para fazer no Chioco uma
demonstração de força. Portugal Durão não aceitou o comando da coluna.
– CONFIDENCIAL, em Tete, a 20/12/1904. Ultimas informações sobre a revolta do
Chioco. Começou com as correrias do Damba-Cuchanba, a que aderiram alguns indígenas do
Chioco e também dos prazos de João Martins, especialmente de Massangano e Inhacatipué. O
governador tentou reunir sipais mas foi impossível porque Martins declarou que não tinha
confiança na gente dos seus prazos. Foram duzentos sipais da C. Z. com os nossos
empregados e veio Bívar com novecentos guerreiros de Angonia e Charre. Coluna com esta
gente mais pelotão de infantaria e uma peça sob comando de tenente Velez. Quando a coluna
estava no Chioco deu-se o caso curioso de se revoltar o prazo Inhassanga, sob a administração
de João Martins e incendiando povoações no prazo Boroma. Bando armado atacou a Chicoa
para matar o subarrendatário Couto. Foram repelidos e um dos chefes foi morto. Os rebeldes
cortaram o telégrafo. No Chioco também queriam matar o subarrendatário Correia. Durante a
campanha do Báruè, fizeram na Cachomba feitiços para conseguirem a derrota. Foram
apreendidas duas cartas que foram entregues ao comandante militar de Tete, em que a
“honrada gente” da Cachomba combinava a revolta da região caso expedição sofresse derrota
no Báruè. Não consta que Couto ou Correia tenham cometido abusos, mas têm antipatia pelos
brancos da região… houve quem em Lisboa previsse revolta para este ano, em Tete sabia-se
com dois dias de antecedência o ataque a Changara, que fica a dois dias de viagem… vários
comandantes militares estiveram na Cachomba e disseram a morte do empregado Gomes da
Costa foi preparada por brancos… aquando a campanha do Bonga, a mesma gente que dava
concelhos ao governador, vendia ao Bonga almadias carregadas de pólvora. O Bonga só
roubava certas embarcações, poupando providencialmente as outras! A revolta deste ano foi
preparada por gente com interesses lesados ou vaidades feridas. Um emissário de Tete andou
pregando guerra santa nos prazos. Se Couto e Correia fossem mortos entregaríamos os prazos
aos seus antigos possuidores. Esta gente estava habituada a depor governadores como se lê na
correspondência do antigo governador Bayão. Estava habituada a, com pressões, receber de
nós prazos por bagatela. Nós (C. Z.) fomos por eles roubados durante dez anos. Ora alegam
serviços, ora recorrem à revolta. É falso que os prazos não possam pagar o mussoco por
inteiro. Em Cachomba, quando os prazos estão nas mãos de muzungos que agradam ao preto
chegou-se a receber uma libra por cada mussoco. Os padres da missão do Zumbo (isto
garanto porque percorri o prazo) depois de receberem o mussoco que é literalmente pago,
exigem uma galinha para passarem o recibo. A revolta deste ano seria um desastre completo
se não estivesse cá o governador Coelho. Enfrentou os acontecimentos com rapidez e energia.
Couto e Correia teriam abandonado os prazos. Não transijo com interesses que esta gente nos
tem roubado. Atendo somente aos interesses superiores da região e de nós próprios,
inteiramente com o Sr. governador.
– Carta nº 7, em Quelimane, a 19/1/1905. O arrendatário da Macanga e da Angónia. A
obra notável de Bívar: paga 15.000$000 réis de rendas e a C. Z. paga ao governo (apenas)
4.500$000. Queixa-se do pequeno orçamento que não permite admitir empregados e sipais e
portanto cobrar o mussoco.
– Carta central nº 20, de P. Durão, idem, a 7/2/1905. A Labour Association desistiu de
recrutamento na Zambézia… devido aos resultados insatisfatórios. Mortalidade dos
trabalhadores do Lugela e Maganja é a 10%. Na Angonia inglesa chegou a 30%. Julgo
que esta decisão foi devida ao recrutamento de chineses. A emigração muito poderia
auxiliar a Zambézia pela grande quantidade de dinheiro introduzido. Da baixa
Zambézia e de Tete continua a fazer-se emigração clandestina.
– Carta central nº 21, idem, idem, a 9/2/1905. Devido à revolta na Chicoa e a
inconveniente permanência do subarrendatário Correia, a respetiva administração foi entregue
189
ao comandante militar, de acordo com o governador de Tete, mediante o ordenado de 30.000
mensais e a percentagem de 10% na cobrança do mussoco. Só o prazo Inhaperupuro continua
com o Correia. Devido à revolta da Chicoa, Couto pediu a rescisão, mas ficou com Mecingua,
Chabonga e Inhamgombe. A Chicoa fica sob administração direta, com quatro mil habitantes
e o mussoco fácil de cobrar devido ao trabalho migratório para Salisbury e mesmo para
Joanesburgo. A alteração feita nos prazos de Tete desafogou a Administração em África:
foram pagas todas as rendas ao governo no princípio do ano (incluindo Namuli) ficando em
cofre no total das estações cerca de quarenta contos de adiantamentos na compra da copra.
– Carta central nº 25, idem, idem, de 10/12. Remete cópia de uma carta do Padre Branco
Schenk sobre a conveniência da ocupação missionária. Escreveu: “Toute la difficulté contre
cet établissement ne peut venir que de la part du Prelat de Mozambique… Il serait facile de lui
forcer la main en lui faisant avouer son impuissance d’occuper le pays…”. P. D comenta a
insolência dos maometanos de Mataca.
– Carta central nº 36, de Botelho Moniz, em Quelimane, aos 11/3. Importante relação
dos prazos de Tete subarrendados em 1905, com seus nomes, população e rendimentos. R.
Bívar Pinto Lopes, com os prazos Angónia, Macanga e Inhamicurungo, totalizado 22.000
habitantes e pagando 15.000$000 pelo subarrendamento.
– Carta central nº 37, em Quelimane, aos 15/3. Reocupação dos prazos Lugela, Lómuè e
Milange. Carta nº 38, idem, idem, aos 16/3. Visita de Botelho Moniz a Bombaim para a
exposição agrícola e industrial. Presta valiosas informações. Índice por assuntos.

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Volume com o número 19-A e o seguinte rótulo na lombada: “Vários relatórios de


África – Desde dezembro 1899 a dezembro 1901 – Enviados com cartas CENTRAIS”. A
documentação que aqui se encontrava arquivada é descrita resumidamente nos parágrafos
autónomos que se alinham.
– Relatórios recebidos com a carta nº 15, de 9/3/1900: nº 9, Circunscrição do Leste, em
Chilomo, por Portugal Durão, de 19/12/1899; de Pinho, chefe da Secção do norte de Milange,
de 12/1/1900; de Wheelhouse, em Vila Bocage, de 30/1/1900; de Portugal Durão, em
Chilomo, de 1/2/1900;
– Memorandum timbrado de Walker Brothers & Sinderman. Planters, Contractors
and Transport Agents. Machila teams supplied to go anywhere between Chiromo and
Fort Johnston. Portuguese Angoniland. December 1899: declaram ter mandado oitocentos
angonis (para onde?) por conta do governo de Portugal.
– Relatório de João Martins, chefe da Circunscrição do oeste, em Tete, de 16/6/1900.
Informa que o régulo Changara declarou vassalagem e pediu um chuanga como representante
da C. Z., por meio de embaixada ao comandante militar Superior; foi mandado um parente do
Changara, seu criado há dezassete anos. Expulsão do francês Carlos Nouville.
– Opinião de Mariano Machado sobre a Circunscrição do Leste: (convém) manter a
mesma política que existe quanto aos angonis e aos macangas; i. e. que continuem inimigos.
– Relatórios recebidos com a carta nº 46, de 7/7/1900; De Portugal Durão, da
Circunscrição do Leste, em Chilomo, aos 18/6/1900. Informa estar tentando fornecer
novecentos angonis às companhias de Marromeu e Mopeia; de Magalhães Menezes, chefe da
Secção de Milange-sul (de Milange a Vila Durão pelo Marratamuno, de 13/6/1900). Prisão
dos muenes M’loa e Lipidamuno que tinham atirado sobre os sipais e empregados da C. Z..
Atacado por Namussanha. Muenes que se apresentaram com oferendas. Resistência e derrota
do Marrata ou Norrubo-muno. Mussoco recebido em géneros – dezanove panjas de
190
amendoim, sete de arroz, cinquenta e duas de mapira e treze de farinha. Há apenas três
potentados no Lomue e Marrata: o Tacuane, o Mateue e o Mucamula. Apreendeu cento e
noventa e cinco espingardas de pederneira. Conflitos territoriais com a Companhia do Boror
(Stucky). Relação de muenes. Plantação de café na Morrumbala.
– Relatórios recebidos com a carta nº 65, de 23/8/1900: nº 3, de P. Durão, em Chilomo,
a 10/8/1900. Refere a fuga da população; Carta ao “Collector of Revenues”, em Chilomo, a
7/8/1900; Instruções e relatórios do agrónomo Luja.
– Relatório recebido com carta nº 83, de 18/9/1900. Importante e volumoso relatório de
Portugal Durão, nº 3, em Chilomo, a 1/9/1900, com sete anexos.
– Relatórios recebidos com a carta nº 105, de Quelimane, aos 3/11/1900: nº 3, Serviço
de Minas, relativo à segunda quinzena de junho; nº 4, de 30/6 a 30/9, Serviço de Minas, de
10/10/1900; Chefe da Circunscrição da Vila Durão, de 28/10/1900.
– Relatórios recebidos com a carta nº 113, aos 27/11/1900: nº 5, Serviço de Minas.
– Relatórios recebidos com a carta nº 121, aos 8/12/1900: Subscrito pelo agrónomo Luja
no Morrumbala.
– Relatórios recebidos com a carta nº 126, aos 19/12/1900: Serviço de Minas referente à
primeira quinzena de junho 1900.
– Relatórios recebidos com a carta nº 127, aos 19/12/1900: Duplicado da carta de M.
Machado ao chefe da Circunscrição do Leste;
– Cópia da carta de P. Durão ao comandante militar dos Angurus. Atacado por gente do
muene Inhamarrobe, ao sul do rio Lucotocua, perto do Licungo: foi acampar em Russeliua.
Cita os muenes que se apresentaram oferecendo presentes. Assassinato, pelo Inhamarrobe, de
dez machileiros e do contramestre Silva que ali deixara. Pede a sua prisão.
– Cópia da carta confidencial nº 15, de 7/11/1900, do governador da Zambézia, o
primeiro-tenente José D. C. da Sousa Faro, acusando a C. Z: a) da ocupação armada da região
de Milange e Namuli, considerando ser “o procedimento tanto mais grave quanto perentória é
a ordem ministerial – recebida e já transmitida da V. Ex.ª – da suspensão da ação exploradora
da Companhia daquela região”; b) de permitir que os ingleses caçassem em Milange pelo
preço de 2 £ e 7.500 reis por mês; c) de remunerar os trabalhadores angonis com fazendas
adquiridas no território inglês, para não pagar direitos; d) resposta de Botelho Moniz.
– Relatório nº 4, de Portugal Durão, no Chilomo, aos 7/12/1900, afirmando que “há três
meses que o Sr. Brito não manda relatórios, tem por uso proceder assim; julgo que anda com
a comissão de limites; desentendimentos com Botelho Moniz”.
– Relatório de Portugal Durão, a 28/10/1990, informando que fundou as estações Monte
Luaze e Vila Paiva d’Andrada no Namuli, uma aringa em Nhamamobe, uma estação na foz do
Luo. Resistência com armas de fogo. Submissão dos muenes. Levantou mapa (não
encontrado) dele constando as nascentes dos rios Luaze, Lurio, Malema e Ligonha. Garantiu:
“logo que possível enviarei relatório detalhado”. Normas sobre caça.
– Carta de João Martins, em Tete, a 2/10/1900. Caso de Brito e de Luís Caetano Pereira,
chefe angoni Mandala batido pelos ingleses mas recolocado nas suas terras (por serem
portuguesas) por Victor Linder e Luís C. P. Este último escreveu duas cartas que não estão
anexada. Carta de João Martins, em Tete, a 1/11/1900, sobre a guarnição na Changara.
– Relatório da carta da sucursal na Beira. Relatório do gerente da sucursal em L.
Marques, a 17/10/1900. Relatório de João Martins, em Tete, a 23/11/1900.
– Relatório de agrónomo Luja, em Morrumbala, a 10/12/1900. Idem, de 20/11/1900,
com carta nº 131, de 9/12/1900. Idem, nº 6, do Serviço de Minas, a 31/12/1900, com carta nº
130, de 31/12/1900.
191
– Cópia do relatório de Luja, em Morrumbala, a 26/12/1900, com carta nº 8, de
17/1/1901. Relatório nº 16, de João Martins, em Tete, a 31/12/1900, com carta nº 18, de
22/2/1901. Dele constam as seguintes informações: “Pelas cartas recebidas do chefe (da 2ª
Secção) Troni expedidas a 15/12 vê-se ter ali acontecido grande desastre que foi o ataque ao
prazo Chabongo, onde foi morto o nosso empregado Bernardino Gomes da Costa pelos
revoltosos Gossa Grande (Tauara), Boroma, Machindas e cinquenta sipais muzuzuros
desertores das terras inglesas que dizem (estar) armados com espingardas Linfor (?). Junto a
esta encontrará V. Ex.ª a cópia fiel dos factos acontecidos e feitos pelo mesmo chefe da 2ª
Secção (falta este documento). Creio não serem desertores os cinquenta sipais de que falo mas
sim enviados de propósito pelos ingleses para ajudarem os chefes pretos que se revoltaram;
quase se pode acreditar que assim seja visto não constar o terem fugido de parte alguma sipais
ingleses e se assim tivesse acontecido as autoridades inglesas decerto já teriam comunicado
essa fuga às autoridades portuguesas pedindo a captura deles… O levantamento destes
mambos já era esperado porque, além do mau instinto do cafre que pensa só em viver
independente e roubando, temos ainda o mau elemento dos muzungos que estão acostumados
de tempos remotos a serem senhores da Alta Zambézia…”. Partiram 127 auxiliares… mas os
revoltosos são em grande número e já fecharam o caminho entre Chicoa e Cachombo…
mesmo que o governo deseje mandar para ali um grande número de auxiliares para baterem os
rebeldes não há nesta vila nem em Cachombo géneros necessários para a alimentação deles.
– Cópia da carta do comandante militar Superior de Tete, a 27/12/1900. “Para
conhecimento de V. Ex.ª transcrevo parte da informação recebida do Comando do Zumbo que
se relacionam com a ordem pública nos Prazos daquela circunscrição… se a C. Z. deixar de
subarrendar os Prazos Chipera, Panhame e Pangura (os melhores do Comando) aos muzungos
(conhecidos pelas alcunhas de) Canhemba, Chibango e Mataquenha será imediatamente
alterado, por enquanto eles e seus ascendentes existirem, os pretos não podem pagar o
mussoco nem obedecem a mais ninguém, devido à grande influência adquirida quando
capitães-mores e que ainda exercem por detrás da cortina.
– Carta de P. Durão, em Chilomo, a 1/2/1901, com carta nº 20, de 23/2/1901. Carta da
Beira, a 5/1/1901, com carta nº 9, de 17/1/1901. Serviço de Minas, relatório nº 1, com carta nº
25, de 27/2/1901. Carta de P. Durão, com outra anexa, bastante valiosa, nº 36 de 26/3/1901,
sobre “o prazo Milange; uma viagem aos picos Namuli e Inago”.
– Serviço de Minas, relatório nº 2, com carta nº 42, de 8/4/1901.
– Dois relatórios, em francês, do agrónomo Luja, sobre plantações de têxteis, borracha e
cana sacarina, enviados com a carta nº 45, de 11/4/1901.
– Carta de Portugal Durão, de 22/2/1901, sobre o reconhecimento topográfico dos
territórios de Milange, Namuli e Lómuè, com memorial, enviada com carta nº 46, de
10/4/1901, sendo o original do mapa enviado ao Ex. mo Sr. Afonso de Morais Sarmento, vogal
da Comissão de Cartografia. Relatório do Serviço de Minas, remetido com a carta nº 60, de
Tete, 16/4/1901.
– Cópia da carta em francês do agrónomo Edouard Luja, sobre as plantações na
Morrumbala; enviada com a carta nº 68, de 17/5/1901.
– Relatório do Serviço de Minas, relativo à 1ª quinzena de abril, recebido c/ a carta nº
82, a 6/6/1901. Relatório nº 8, do chefe da Circunscrição do oeste, em Inhacatipue, a
29/8/1901; recebido com a carta nº 119, de 14/10/1901. Releva: influência do Macombe (rei
do Báruè) por intermédio de um dos seus “grandes”, cognominado Cumba i.e. porco, entre os
mambos da Changara. Relatório do Chinde, de 30/9/1901, remetido com a carta nº 119.
– Relatório do agrónomo Luja, de 30/9/1901, sobre a cultura do café.
192
– Relatório de agosto 1901, do chefe da Secção do Molumbo, com a carta nº 127. Dá
notícia: a) Da rebelião que teve origem na retirada imprudente dos empregados Pinho Lobo e
Martins; b) De a 16 de agosto ter sido ameaçada a estação de Liaze; c) De no dia seguinte
acontecer o mesmo à de Nangoma; d) De se haver verificado a fuga dos sipais.
– Relatório de setembro de 1901, da Secção Chirua-Namuli, no Molumbo, enviado com
a carta nº 127. Reporta: a) no dia 10 foi atacada a estação de Nameta pelos guerreiros dos
muenes Nameta e Macahula; b) foram mortos cinco sipais e o contramestre, com perda das
suas armas; c) a estação de Nangome – embora reforçada pelo comandante militar dos
Angurus – foi atacada nos dias 17, 20, 21 e 25, mas os sipais e os soldados conseguiram
resistir; d) parece haver um plano combinado para eliminar a ocupação europeia.
– Relatório do chefe da Secção de Milange, de 2/9/1901, com a carta nº 127, de 27 de
outubro. Fornece as seguintes informações: a) fuga da população para o território britânico; b)
o tenente Rego, da Secção de Chirua, teceu comentários que merecem reflexão, como por
exemplo: a) a gente ajana – yao ou ajaua – é a mais trabalhadora, dedicando-se muito ao
comércio e à agricultura; b) foi quase toda para o território britânico, depois dos nossos
vizinhos aprisionarem o Matipuir e o Mutisamanja; c) têm ido à formiga para a outra margem,
embora eu empregue todos os esforços para evitar essa fuga; d) será difícil obter bons
resultados porque os seus chefes estão perto da fronteira.
– Relatório do Lugela, recebido com a carta nº 127, referindo ataques aos luanes. Três
relatórios de Luja, sobre as culturas de café e borracha. Relatório do chefe da Secção de
Milanje, de 9/12/1901. Relatório nº 7, de 21/6/1901, subscrito pelo chefe da Secção da
Namulia, no Molumbo, tenente Leandro António do Rego, recebido com a carta extra s/nº, de
18/9/1901. Contem estas reflexões: ”Trata-se de uma região cujos habitantes nunca dantes
viram brancos, nunca pagaram contribuições, nem mesmo a régulos, não possuem géneros
alguns de exportação e, sobretudo, são exclusivamente guerreiros, atrevidos e negociantes de
escravos; há fome e varíola”. Relatório do chefe da Circunscrição do Leste, em Chilomo, de
21/7/1901, recebido com a carta extra s/nº, de 18/9/1901. Relatório de Bom de Sousa, em
Quelimane, de 4/9/1901, remetido c/ a carta extra s/nº, a 18/9/1901.

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Volume com o seguinte rótulo na lombada: “20 – Administração em África –


Centrais nos 41 a 126 e telegramas – abril a dezembro 1905 – CENTRAL”. A
documentação que aqui se encontra foi classificada e resumida pelos parágrafos autónomos
que se seguem.
– Carta de Botelho Moniz, em Quelimane, 5/7/1905, com nº 34 a tinta vermelha.
Conseguiu liquidação de despesas com guerra da Macanga.
– Carta de B. Moniz, idem, a 6/7/1905, sobre fornecimento de trabalhadores à Comp. de
Mopeia (Hornung). Este não queria pagar despesas de viagem e engajamento, o que dava
prejuízo à C. Z. Carta de B. Moniz, idem, a 8/6/1905, com nº 43 a tinta vermelha. Anexo:
minuta de contrato para subarrendamento dos prazos Lugela, Lómuè e Milange.
– Carta de B. Moniz, a 10/7/1905, com nº 44. Direitos exclusivos da caça ao elefante.
Carta de B. Moniz, a 3/11/1905, com nº 92. Confidencial do governador-geral perguntando se
a C. Z. podia fornecer sipais para a guerra dos Cuamatas em Angola. Índice final.

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193
Volume com o seguinte rótulo na lombada: “21 – Administração em África – janeiro
a julho 1906 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e
resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 11. Emigração para o Transval. Carta nº 15. Liquidação da fatura em relação
ás despesas com a guerra da Macanga (9.768.930); houve a pagar ao tenente António Júlio de
Brito a percentagem de 15% sobre 6.829.900; que representa a receita proveniente da
cobrança do mussoco, i. e. 1.024.485 réis. Carta nº 29. Vendaval com grandes prejuízos.
– Cartas nºs 34 e 56. Emigração para o Transval. Índice.
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Volume com o seguinte rótulo na lombada: “22 – Administração em África – julho


1906 a janeiro 1907 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e
resumida no único parágrafo que se segue.
– Carta de B. Moniz, em Quelimane, a 26/12/1906, com os seguintes assuntos: B. N. U.;
fornecimento a indígenas para serviço em L. Marques; administração dos prazos Angoaze e
Andone; arrendamento do mussoco do prazo de Massingire a Carl Wiese.

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Volume com o seguinte rótulo na lombada: “23 – Central África – fevereiro a


novembro 1907”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e resumida pelos
parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 38, de Chinde, a 15/7/1907, à C. Z: em Lisboa: “… Acusamos a receção dos
seus prezados favores nos 80/82, Relatório do Prazo de Massingire (quer dizer que Lisboa
devolveu o relatório a Moçambique). Juntamos o relatório do prazo Massingire em maio.
– Carta nº 113, de 14 a 16/8/1907, sobre a visita do Príncipe Real a Quelimane. Quis ver
simulacro de guerra cafreal, tendo-se construído uma aringa no descampado de Berebede.
Percorreu as ruas de machila, Canhoneira “Chaimite” no Macuze. Ver carta do governador-
geral com acusações à C. Z. em Vol. II da secção Minas relativo a 1907.

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Volume com o seguinte rótulo na lombada: “24 – Central África – dezembro 1907 a
23 setembro 1908”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e resumida pelos
parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 59, em Quelimane, a 5/5/1908, alude aos “recenseamentos dos prazos Lugela,
Lómuè e Milange” com nota no fundo: “Archivado nas latas”.
– Carta reservada, de 26/6/1908, informação que o governador-geral pedira para a C. Z.
entregar ao governo alguns dos prazos arrendados (lista).
– Mesmo assunto em carta reservada, de Quelimane, a 6/8/1908.

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Podem contar-se por centenas as cartas escritas por Paiva d’Andrada durante o tempo
que desempenhou em África as funções de administrador delegado. Os assuntos versados
foram inúmeros e a sua análise exigem estudos mais apurados do que aqueles que realizaram
os Professores Nowell e David Beach a que oportunamente faremos referência. Para o leitor
194
ter uma perspetiva rápida do valor desta correspondência decidimos transcrever na íntegra,
com ortografia atualizada, uma carta que nos pareceu de valor excecional não só pelo seu
conteúdo mas sobretudo porque se dirigiu a um político lisboeta de grande representatividade
histórica: o Marques de Fontes Pereira de Mello. Foi escrita no Luane de Inhasserere, a 7 km
de Sena, a 16 dezembro 1892:
“Meu caro colega e amigo: Com a minha expedição da Companhia da Zambézia tenho
subido o rio até aqui onde cheguei hoje. Encontrei o país num estado deplorável, embora este
estado apenas se tenha manifestado há poucos dias. Procurarei continuar no meu caminho de
Tete. Quando V. Ex.ª receber esta carta poderão estar as coisas remendadas, mas também
poderá já o telégrafo ter levado aí fatais notícias, mesmo a meu respeito. Por isso mesmo
desejo escrever algumas palavras que me parece deverem ser tomadas em consideração, em
vista do muito interesse que tenho pelo país e pelas duas Companhias, da Companhia de
Moçambique e Companhia da Zambézia, e do conhecimento que tenho das coisas e das
pessoas locais.
Manuel António de Sousa, por si só, tinha em boa ordem dezenas de milhares de
pessoas num vastíssimo território entre o Zambeze e o Punguè, desde não longe da costa até
ás fronteiras do distrito de Tete e, pelo sul muito a oeste da ação efetiva deste distrito. Sujeita
a ele havia muita gente não acostumada aos trabalhos tranquilos de lavoura, mas armada e
habituada às empresas guerreiras, com que nos últimos anos da sua vida tão assinalados
serviços prestou ao país. Entre ele e os sipais havia dúzias de capitães, chefes saxecundos
(chicundas), todos obedientes, submissos ao único chefe, e dispondo cada um de centenas ou
milhares de homens armados. Morto Manuel António, o chefe geral desapareceu, e todos
estes elementos estão desordenados. Para estes vastos territórios mandou a Companhia de
Moçambique três ou quatro homens quase todos estranhos ao país (devo dizer todos
excecionalmente bons e dedicados empregados da Companhia) e esses homens desejavam
logo criar rendimentos à Companhia desejando, embora com toda a prudência, bastante
cuidado e a máxima dedicação, começar logo a cobrar o imposto do mussoco. Manuel
António não servia só a conter em respeito o território que ocupava; era o elemento que o
governo tinha sempre à sua disposição para comprimir as rebeliões que por qualquer lado se
levantavam. Hoje, este poderoso elemento falta para tudo, e assim as resistências que Wiese,
arrendatário dos prazos da Maganja e Massingire, pelos quais paga ao governo larga quantia,
encontra da parte dos colonos dos dois prazos, não podem ser reprimidas pelo elemento de
ordem sempre à disposição de todos; assim o Guengue, limitando pelo interior com a
Macanga, reclamada pelos irmãos do Bonga que ainda ficaram no país (Mutontora e
Chimulamba) como butaca de sua irmã D. Luísa e toda a gente do Macombe, sabem todos
que de ninguém têm a temer. Não tenho tempo para desenvolver estas generalidades.
Resumidamente direi que todo o país está em desordem e que posso indicar os seguintes
grupos (ver por exemplo a carta de Zambeze de Capello e Ivens):
1.º Gentes, que dizem ser do Mesungo Chenche, vindas da serra Gorongosa para a
margem do Zambeze em Magagade, roubaram muitos mouros que estavam fazendo negócio,
saquearam as povoações e dizem mesmo, que nesta hora, no dia de hoje, marcham em grande
massa para arrasar a Chupanga.
2.º Gentes da Maganja, de Massingire, de mais de cima da Zambézia; ainda há dois dias
vieram, dizem, que em grupo de uns três mil com armas e paus (que supunha destinados a
fazer aringa) atacar o comando militar da Maganja junto ao Ziué Ziué, em face de Sena.
Retiraram debaixo do fogo que lhe fez a pequena canhoneira Obuz que ali está no rio.
3.º Toda a gente antiga de Manuel António, ao longo da margem direita e pelo interior,
tem feito algumas violências e diz que não quer ouvir que se paga mussoco, não quer ela
pagar e diz que não quer consentir que outros paguem.
195
4.º Mais acima está a gente do Macombe, que foi a que assassinou Manuel António.
5.º Na margem esquerda, no Guengue, houve há pouco uma forte rebelião – e por trás
do Guengue estão os Bongas e os Macangas.
Assim o estado do país é péssimo; mas todos estes elementos ou pelo menos uma parte
deles se podem trazer à mão e no nosso serviço. O futuro é fácil de arranjar, procedendo-se
como se deve só o que se poderá não poder impedir é o massacre de alguém que seja
apanhado por alguma destas massas quando animadas com intenções de roubo, rebelião e
destroço. Segundo minha opinião a Companhia de Moçambique, pela sua administração
direta, não deve neste momento nem pensar no interior do país. Estou falando da Zambézia e
dos territórios ao norte do Pungué e entre este rio e o Zambeze. A administração da Beira tem
a ocupar-se da linha de Manica, do Quiteve, do Save, etc. Refiro-me só à administração que
tem sede em Sena. O seu programa deve limitar-se a ter em sossego todo o país entre Sena e a
costa, e a linha marginal do Zambeze desde Sena até ao limite da sua ação. Satisfazendo
assim à obrigação de policiar os seus territórios por modo a que eles não sejam covil de
perigos para quem viaja no Zambeze. Para isto, é essencial que o comandante de Sena tenha
com urgência á sua disposição um mínimo de cem homens de confiança, para guarnição de
vários postos, 3 ou 4 e que nesses postos que devem ser fortificados economicamente ao
modo do país, o branco que neles comandar tenha duas pequenas bocas de fogo modernas,
com suficientes munições (como por exemplo uma excelente peça alemã – da nossa marinha,
de tiro rápido que ontem vi em Sena). Isto custa muito pouco, e os rendimentos locais, logo
que haja sossego, chegam bem para a despesa. Poderiam os homens ser maratas, mas há
urgência de gente, e por isso melhor seria que o governador Machado imediatamente pedisse
ao governador Jaime, de Inhambane, que lhe mandasse de lá uns 100 ou 120 landins, vestidos
como landins, e com 3 ou 4 bons chefes, que o governador de Inhambane, desejoso como ele
será de ser agradável ao governador da Companhia, poderá escolher muito bons que ficariam
ás ordens dos chefes brancos dos portos marginais.
Tenho vergonha de ver os meus companheiros estrangeiros percorrendo isto e de
lhes ouvir dizer que parece incrível que, tendo Portugal há séculos este magnifico país,
se encontre ele como está. O motivo principal é a falta de gente portuguesa do reino aqui.
Houvesse em toda a Zambézia com ou duzentos proprietários, fazendeiros ou empregados
portugueses, com os pretos que em torno de cada branco se agrupam, que não mais haveria
receio de ver o que se está passando. Parece-me muito fácil trazer, convidar gente para aqui e
vê-la correr para cá, – mas as fazendas a criar entre o Punguè e o Zambeze devem ter a feição
portuguesa e aproveitar o que realmente há de excelente neste aparente caos. Só quem
conhece o país tão bem como eu o conheço, é que pode compreender como seria deplorável
perder os elementos de ação que aqui existem, embora hoje em completa desordem.
Apliquemos pois o sistema do Cabo e Transval ao sul do Punguè – e aproveitemos por outro
modo os elementos que temos entre este rio e o Zambeze.
Prazo Gorongosa. Logo que comecei a subir o Zambeze constou-me a notícia de que
pela Companhia de Moçambique tinha sido dado, por cinco anos, de arrendamento o prazo
Gorongosa a Anselmo Ferrão. Lastimei tal notícia e logo pensei comunicar ao Conselho que a
minha opinião é absolutamente oposta a tal arrendamento. Antes de chegar a Sena estive em
Mufuvo, em casa de Anselmo Ferrão, de quem gosto, que por vezes tem feito relevantes
serviços ao governo, e que os pode igualmente fazer à Companhia, mas disse-lhe:
Compreendo que o governador Machado, debaixo da proposta de Luís Ignácio, comandante
de Sena, que bem merecidamente tem toda a confiança, concedesse um tal arrendamento;
compreendendo ainda que Luís Ignácio, que não conhece ainda muito certas coisas do país, o
tivesse proposto; o que não compreendo é como você, A. Ferrão, pode pensar em tal. Tive a
explicação do que tão absurdo me parecia, quando A. Ferrão disse que não pensava ir para a
196
Gorongosa, mas apenas aproveitar as terras marginais do Zambeze (deste prazo) ou distrito de
Magagade; ainda assim era com ideias inteiramente erróneas, visto que pensava em plantar
neles café, o que ali nunca poderia produzir bom resultado. Em todo o caso com prazer lhe
ouvi dizer que a ideia estava abandonada. A. Ferrão é de uma antiga família da Zambézia; era
da família de um potentado quando Manuel António ainda não era conhecido. Tem
numerosos pretos, filhos e parentes de antigos escravos, que o seguiam fielmente; assim
poderá reunir dois mil ou mais homens armados. Mas a gente de Anselmo Ferrão não pode
ser vista pela de Manuel António – e talvez mesmo que só o ter corrido a notícia que A.
Ferrão ia ser o senhor da Gorongosa, tenha em parte contribuído para a revolta atual. Não
desenvolvo mais os motivos políticos da minha oposição. Pelo lado económico, técnico,
íamos prender a Companhia dando, julgo que era, por cinco anos, uma província como é o
prazo Gorongosa a um homem que pode ser em certas coisas muito prestimoso, que obsequeia
e serve a todos que dele se aproximam, mas que não tem capitães e, o que é pior ainda, não
pode fazer a menor ideia do valor dos territórios que lhe seriam concedidos e dos meios de os
pôr em exploração.
(O resto da carta trata de negócios especiais da Companhia de Moçambique).”

***

Copiador encadernado e numerado dos ofícios dirigidos ao Comissário do


governo, ao ministro das Colónias e outras entidades oficiais (1914 a 1923)

– 3/1/1914 (fls. 1/13). Ao Comissário: envia cópias do parecer do Procurador da


República, acompanhado pelo competente despacho do governador-geral, sobre os
arrendamentos a Carl Wiese dos Prazos Massingire e Maganja d’Além Chire e, ainda,
elementos estatísticos sobre o censo efetuado nos Prazos de Tete.
– 12/1/1914 (fls. 15/7). Ao Comissário: refere problema de cabotagens e direitos de
exportação.
– 12/1/1914 (fl.18). Ao Comissário: tributação sobre o algodão produzido.
– 25/2/1914 (fls. 22/3). Ao Ministro das Colónias: contratos dos trabalhadores de Tete.
– 25/2/1914 (fls. 24/7). Ao Ministro das Colónias: pede abolição dos despachos s/
cabotagens.
– 24/3/1914 (fls. 29/30). Ao Comissário: recrutamento de trabalhadores para construção
do Caminho-de-ferro do Chindio.
– 17/4/1914 (fls. 34/5). Ao Comissário: pagamento do mussoco em Quelimane.
– 17/4/1914 (fls. 36/7). Ao Comissário: mesmo assunto.
– 13/7/1914 (fls. 42/4). Ao Comissário: aforamento de 60.000 ha. na Ilha Inhangoma.
– 30/11/1914 (fls. 55/7). Ao Comissário: doença de palmeiras conhecida por bud-rot.
– 14/1/1915 (fls. 64/5). Ao Comissário: mortalidade do gado.
– 8/3/1915 (fls. 69/70). Ao Comissário: identificação dos administradores nomeados p/
governo.
– 5/5/1915 (fls. 74/5). Ao Comissário: dificuldades no embarque de géneros para
Lisboa, devido à prioridade concedida ao açúcar.
– 29/5/1915 (fl. 79). Ao Comissário: solicita o relatório do Intendente dos Negócios
Indígenas sobre a inspeção que efetuou aos Prazos.
197
– 11/10/1915 (fl. 88). Ao Comissário: subarrendamento do Prazo Deguè, em Tete, a F.
A. Dúlio Ribeiro.
– 13/10/1915 (fls. 91/3). Ao Comissário: considera que a prioridade concedida ao
transporte de açúcar prejudicava a exportação de oleaginosas para Portugal.
– 13/12/1915 (fls. 112 /3). Ao Comissário: sobre acionistas estrangeiros.
– 14/12/1915 (fls. 114/6). Ao Comissário: considera excessiva a carga fiscal sofrida
pelos produtores da Zambézia.
– 29/12/1915 (fls. 122/4). Ao Comissário: honorários pagos aos administradores por
parte do governo e respetivos impostos.
– 22/5/1916 (fls. 152/65). Ao Comissário: reclamação contra as normas fixadas pela
Fiscalização das Sociedades Anónimas Coloniais.
– 30/5/1916 (fls. 167/8). Ao Comissário: pautas praticadas na Companhia de
Moçambique prejudicando o tabaco da Zambézia e beneficiando o do Transval.
– 22/6/1916 (fls. 174/5). Ao Comissário: gratificações recebidas e a receber pelos
administradores por parte do governo.
– 7/9/1916 (fls. 180/1). Ao Comissário: envia parecer do Laboratório de Patologia
Vegetal sobre doenças nos coqueiros e pediu providências para evitar que a sua propagação
seja acelerada por incúria e ignorância dos indígenas.
– 13/9/1916 (fls. 182/3). Ao Comissário: sobre as contas de 1914 e o parecer da
Fiscalização das Sociedades Anónimas.
– 28/11/1916 (fls. 189/90). Ao Comissário: incúria da Repartição de Agrimensura na
emissão de um título de aforamento.
– 12/12/1916 (fls. 191/204). Ao Comissário: refutação das conclusões contidas no
relatório do governo do Distrito de Quelimane de 1915/6 sobre cobrança do mussoco.
– 18/1/1917 (fls. 210/1). Ao Comissário: importação pela Metrópole de milho colonial.
– 29/1/1917 (fls. 213/7). Ao Comissário: dúvidas sobre a distribuição de dividendos.
– 22/2/1917 (fl. 225). Ao Comissário: pede exclusivo por dez anos na manipulação do
tabaco.
– 28/2/1917 (fl. 226). Ao Ministro das Colónias: mesmo assunto.
– 28/2/1917 (fl. 228). Ao Ministro das Colónias: pede exclusivo por dez anos no fabrico
de produtos manufaturados com fibra de coco e de sisal.
– 2/5/1917 (fls. 242/3). Ao Comissário: violências e capturas feitas pelo Secretário da
Circunscrição do Zumbo, pondo em fuga os habitantes dos prazos.
– 2/6/1917 (fls. 247/52). Confidencial dirigida ao Comissário: resposta fundamentada
ao convite que a este foi feito para alterar as contas de gerência de 1915 – tem averbado a
lápis vermelho “sem efeito”.
– 4/1/1917 (fls. 253/4). Ao Comissário: aguda falta de moedas de prata e cobre para
comércio com indígenas.
– 5/6/1917 (fls. 256/8). Ao Comissário: remete o parecer do advogado da C. Z. sobre o
convite do Ministro das Colónias para alterar as contas de gerência de 1915, em oposição às
deliberações da Assembleia-geral.
– 2/6/1917 (fls. 260/4). Ao Comissário: substituição do ofício das fls. 247/252.
– 25/6/1917 (fls. 265/6). Ao Comissário: exportação para Quelimane de moedas de 1 e
2 centavos.
198
– 27/6/1917 (fl. 267). Ao Comissário: autorização para exportação de 70 ton. de
algodão e para abastecimento de carvão ao vapor espanhol fretado para transporte de géneros.
– 29/6/1917 (fls. 268/72). Ao Comissário: retardo no envio, dos balanços definitivos, à
Direção Geral das Colónias. O 2º ofício é a repetição do 1º com eliminação de uma frase
“contundente”.
– 20/8/1917 (fls. 279/80). Ao Comissário: pergunta se o Estado garante pensões de
sangue aos empregados da C. Z. incorporados nas colunas organizadas em Tete para
restabelecer a soberania portuguesa.
– 19/10/1917 (fls. 282/4). Ao Comissário: remete cópia dos relatórios do administrador
dos Prazos do Zumbo, sobre os crimes cometidos por ordem do Secretário da Circunscrição
João Pinto d’Araújo, crimes que provocaram revolta generalizada; mau acolhimento dado ao
pessoal da C. Z. que se refugiou no território britânico; encorajamentos das respetivas
autoridades para as populações abandonarem Moçambique.
– 22/10/1917 (fls. 286/7). Ao Comissário: dificuldades na exportação de sisal para a
Fábrica de Cordoaria, devido à prioridade dada pelos navios mercantes ao milho e ao açúcar.
– 7/11/1917 (fls. 289/93). Ao Comissário: transcreve parte dos relatórios do
administrador dos Prazos da Marávia queixando-se das violências cometidas por uma coluna
de operações do governo, mesmo entre populações que colaboraram na repressão da que mais
tarde foi chamada “revolta de 1917 ”; esta coluna que ninguém pediu, veio acompanhada de
perto de mil e duzentos guerreiros angonis com a recompensa de poderem capturar
mulheres como prezas de guerra e com elas povoarem a Macanga e a Angónia em prejuízo
da Marávia.
– 13/12/1917 (fl. 300). Ao Comissário: remete relatório sobre a revolta dos Prazos do
Distrito de Tete e denuncia atos de escravatura de mulheres e crianças cometidos pelos
guerreiros e consentidos pelos dirigentes aceites pelo governo.
– 19/12/1917 (fls. 301/2). Ao Comissário: sobre valor das ações da Companhia Luabo e
Boror.
– 2/1/1918 (fls. 304/5). Ao Comissário: queixa sobre o recrutamento de mais dois mil
carregadores para (as operações militares no) Niassa; prejuízos graves sofridos pelas
atividades agrícolas: descontentamento das populações.
– 29/1/1918 (fl. 309). Ao Comissário: sobre embarque de sisal e o recrutamento de
carregadores.
– 1/2/1918 (fls. 312/3). Ao Comissário: sobre falta de moeda de prata nacional em
Quelimane e Tete; recusa de cédulas pelos indígenas; ágio da moeda prejudicando
comerciantes e agricultores; pede aceitação corrente da prata britânica.
– 23/2/1918 (fls. 314/5). Ao Comissário: pede para que o Major Alexandre Augusto
Terry, administrador por parte do governo, seja autorizado a efetuar uma inspeção às
atividades da C. Z. em África, depois de requisitado ao Ministério da Guerra pelo Ministério
das Colónias.
– 15/3/1918 (fls. 317/8). Ao Comissário: repete o assunto anterior.
– 22/4/1918 (fls. 324/7). Ao Comissário: conveniência em denunciar o acordo para
recrutamento estabelecido em 28/8/1913 com a British South Africa Company; ele fomentou
a emigração definitiva para a Rodésia; um claro exemplo do comportamento danoso da
polícia de fronteiras rodesianas ocorreu quando vinte e quatro sipais se transformaram em
“salteadores”; comentário do subscritor “quando um dia vierem a lume as causas várias
que determinaram a última revolta, estamos certos que, esta questão de emigração não
deixará de avultar entre as determinantes que mais prepararam o espírito da indígena”.
199
– 22/5/1918 (fls. 328/31). Ao Comissário: contratos de trabalho aprovados pela
Subintendência dos Negócios Indígenas em prejuízo dos direitos da C. Z. na qualidade de
arrendatária dos prazos.
– 28/5/1918 (fls. 332/5). Ao Comissário: abusos praticados pelas autoridades
administrativas (onde se encontravam) indivíduos viciosos, despóticos e ignorantes que,
pelos seus antecedentes, nunca deveriam ter sido investidos em funções oficiais; pede que
sejam libertadas as centenas de mulheres e crianças que, como escravas (i. e. prisioneiras de
guerra) foram levadas pelos (guerreiros) angonis, não nos prazos revoltados mas naqueles que
se conservaram fiéis; pede remuneração para os indígenas que cooperaram na repressão da
revolta.
– 15/7/1918 (fl. 341). Ao Comissário: comunica o embarque, no vapor “Moçambique”,
do tenente-coronel A. A. Terry, em serviço de inspeção.
– 20/8/1918 (fls. 344/5). Ao Comissário: alude à maquinaria para a fábrica de sisal de
Vila Bocage, comprada por intermédio de Libert Oury, presidente do Comité da Companhia
de Moçambique em Londres.
– 13/9/1918 (fl. 349). Ao Comissário: o tenente-coronel Terry chegou a Quelimane em
10/9.
– 11/10/1918 (fls. 351/2). Ao Comissário: pede o aforamento de 20.000 ha., na Ilha de
Inhangoma, para criação de gado (o requerimento foi reproduzido no copiador central nº 17).
– 22/10/1918 (fls. 354/5). Ao Comissário: informa que entre os motivos do adiamento
da Assembleia-geral, se encontram a “revolta de Tete” e “invasão da Zambézia pelo inimigo”.
– 4/12/1918 (fls. 361/7). Ao Comissário: parecer do advogado da C. Z. sobre a situação
jurídica dos Prazos face ao Regulamento de Concessão de Terrenos, publicado em 1918.
– 28/1/1919 (fls. 370/2). Ao Comissário: graves dificuldades provocadas pela demora e
pelas irregularidades dos transportes.
– 27/2/1919 (fls. 374/5). Ao Comissário: prejuízos nos distritos de Quelimane e Tete
provocados pela invasão alemã e pela revolta no distrito de Tete; mil e duzentos carregadores
mortos.
– 12/3/1919 (fl. 377). Ao Comissário: repete o assunto anterior.
– 8/11/1919 (fl. 395). Ao Comissário: pede que à C. Z. seja concedidas facilidades
semelhantes às que beneficiaram as Companhias de Moçambique e do Niassa, i. e.
requisitarem para o seu serviço empregados militares ou civis.
– 18/11/1919 (fls. 396/8). Ao Comissário: pede para que não seja permitido o
recrutamento de mão-de-obra de Tete para a Rodésia.
– 19/11/1919 (fls. 399/402). Ao Comissário: referência à Zambézia Mining
Development Ltd.
– 17/12/1919 (fl. 404). Ao Comissário: remete cinco cartas geográficas publicadas pela
C. Z.
– 8/6/1920 (fl. 422). Ao Comissário: aforamento de 10.000 ha. na Ilha de Inhangoma.
– 5/8/1920 (fl. 425). Ao Comissário: protesto contra o acordo de emigração para a
Rodésia enviado ao Ministério das Colónias; inclui censo de Tete, por sexos, menores e
inválidos.
– 6/1/1921 (fls. 438/41). Ao Comissário: dificuldades levantadas pelas autoridades
administrativas quanto ao recrutamento de trabalhadores.
200
– 6/1/1921 (fls. 442/3). Ao Comissário: queixa contra o facto de António Correia
Mourão acumular o exercício de advocacia com as funções de Secretário do governo do
Distrito, administrador do Concelho e Comissário da Polícia.
– 15/2/1921 (fls. 445/6). Ao Comissário: queixa contra o facto dos funcionários
públicos venderem no mercado livre, a câmbio especulativo, as libras ouro dos seus
vencimentos.
– 22/3/1921 (fl. 449). Ao Comissário: retoma o problema de mão-de-obra mencionado
no ofício de 6/1/1921.
– 21/3/1921 (fls. 452/61). Ao Comissário: aumento de capital para 9.000 contos,
destinado ao desenvolvimento agrícola e industrial, não se entregando 10% ao Estado; a
nenhuma arrendatária de Prazos se exigiu qualquer partilha de lucros com o Estado, fosse a
C.ª do Boror, a E. A. do Lugela ou a Sociétè du Madal.
– 26/4/1921 (fls. 465/8). Ao Comissário: alteração dos Estatutos.
– 28/4/1921 (fl. 475). Ao Comissário: contrato do capitão-tenente J. A. Valentim
Pedroso de Lima como diretor da Administração Indígena, em Quelimane.
– 1/8/1922 (fls. 476/8). Ao Comissário: dá conhecimento de que um dos diretores da
Sena Sugar apresentou ao Comité da Companhia da Zambézia em Paris, proposta verbal para
arrendamento de Prazos; mais consta que a dita S. S. pretende impor a sua vontade em
Assembleia-geral; acontece que a S. S. já é arrendatária dos prazos Angónia, Goma, Chare,
Marral, Maganja-d’Aquém-Chire, Luabo e Milange; ficaria também com Massingire e todos
os de Tete, com exceção da Macanga, Guengue e Mahembe.
– 25/8/1922 (fls. 479/80). Ao Comissário: alteração dos Estatutos.
– 4/10/1910 (fls. 481/1). Ao Comissário: reparações de guerra.
– 3/10/1910 (fls. 483/6). Ao Comissário: contrato adicional entre a “Zambézia Mining
Development Ltd” e a “Sociétè Minière et Géologique du Zambeze”.
– 23/11/1922 (fl. 487). Ao Comissário: acusa receção de informações prestadas pelo
governador do distrito de Quelimane sobre as queixas feitas pela C. Z. contra as requisições
oficiais de trabalhadores indígenas.

***

Copiador encadernado e numerado dos ofícios dirigidos ao Comissário do


governo, ao Ministro das Colónias e a outras entidades oficiais (1923 a
1940)

– 16/5/1923 (fls. 1/4). Ao Comissário: o mussoco foi elevado para 10$00 per capita,
cobrado pelos arrendatários sem qualquer compensação, sem serem consultados e sem ser
obtido o seu acordo, o que não aconteceu com anteriores adicionais; exagero do aumento =
8$800; violação das normas legais.
– 2/8/1923 (fls. 15/7). Ao Comissário: após repudiar as insinuações contidas num artigo
de Brito Camacho, remete uma nota explicativa dos trabalhos que visavam o desenvolvimento
da cultura do algodão, nota que é reforçada por um mapa estatístico desde 1907 a 1912;
informa que, no Sindicato de Estudos da Cultura do Algodão, a C. Z. participa c/ 30% e a
Banque de l’Union Parisienne c/ 70%.
201
– 26/1/1924 (fl. 26). Idem: alude à procuração para assinatura do acordo relativo à
entrega dos Prazos de Tete ao governo.
– 8/4/1924 (fl. 28). Idem: reclamação contra as portarias governamentais n os 432 e 433,
de 21/4/1923.
– 19/9/1924 (fl. 35). Idem: trata dos depósitos de certificados acionistas de sociedades
inglesas que tiveram ou têm a sua sede em Londres.
– 23/11/1924 (fls. 39/40). Idem: razões que explicam a decisão de efetuar em escudos
ouro a escrita das suas dependências em África; variedades de moeda em circulação =
escudos da Província, escudos da Metrópole, libras portuguesas do B. N. U. e Banco da Beira,
libras inglesas da Inglaterra e África do Sul, prata e cobre português; os direitos de exportação
para as Metrópole eram pagos em escudos da Metrópole.
– 4/2/1925 (fl. 43). Idem: informação sobre os estudos geográficos no Distrito de Tete
efetuados pelo major de Artilharia J. J. Soares Zilhão.
– 23/4/1925 (fl. 51). Idem: alude à autorização do Ministério das Colónias para alterar
diversos artigos dos estatutos da Sociétè Miniére.
– 28/4/1925 (fls. 53/6). Idem: classifica como descabidas as exigências feitas na
condição 9ª do contrato de 24/4, publicado no Boletim Oficial nº 18, de 3/5/1925: considera
que elas só seriam admissíveis no caso de ser prorrogada a concessão dos Prazos; não tendo
esta sido concedida no Distrito de Tete, onde se alcançavam 60.000 mussocos, a C. Z. não
dispõe de mão-de-obra para efetuar, no período de cinco anos, o exigido alargamento das
plantações; merece citação o caso da Sena Sugar que foi beneficiada com a prorrogação até
1934 dos prazos Goma e Mugovo, pelos contratos de 9/11/1921 e 29/4/1924, sem exigências
de alargamento.
– 15/6/1925 (fls.57/8). Idem: discorda da exigência em cambiais de 25% do valor ouro
das primeiras 60 ton. de carvão exportado.
– 28/11/1925 (fls. 68/70). Idem: construção de uma linha-férrea entre Moatize e a
fronteira, pelo Sindicato do Caminho-de-ferro de Tete, formado em Bruxelas – Place de
Louvain, 18/20, por cinco importantes firmas belgas; a C. Z. não pode participar por fala de
recursos.
– 18/5/1926 (fl. 76). Idem: despovoamento dos prazos de Tete provocado pelos
desmandos cometidos pelo Subintendente dos Negócios Indígenas (a lápis vermelho “sem
efeito”).
– 5/7/1926 (fl. 78). Idem: comunica que o Dr. Baeta Neves não tem poderes de
gerência, sendo por isso injusto que, nessa base, tenha sido anulada a sua eleição para o
Conselho Legislativo.
– 27/10/1926 (fls. 84/88). Idem: devido ao facto do governo do Distrito de Tete não
cumprir a obrigação de fornecer mão-de-obra, pede ao Ministro das Colónias autorização para
poder recrutar livremente no Distrito de Quelimane, para acudir às plantações de sisal de Vila
Bocage; na sua exposição, a C. Z. compara esta falta de proteção oficial com o caso da Sena
Sugar a quem o governo fornece regularmente mão-de-obra.
– 14/6/1927 (fls. 97/8). Idem: acordo sobre pesquisas mineiras a efetuar durante dois
anos, celebrado entre a Zambezia Mining Development e o Chioco Sindicate administrado por
Lord Lurgan e Libert Oury.
– 27/6/1927 (fls. 99/101). Ao Comissário: por se reconhecer o seu perigo como foco da
mosca tsé-tsé, pede-se o abate da floresta de Zalala, situada a quinze quilómetros de
Quelimane; outra causa do avanço das glossinas está na superabundância de caça grossa, fruto
da proibição imposta aos indígenas de caçarem com armas de fogo.
202
– 27/6/1927 (fl. 102). Ao Comissário: a Benga foi invadida por uma grande manada de
búfalos que poderá desencadear o agravamento da infestação glossínica.
– 4/8/1927 (fl. 106). Ao Comissário: à Administração em África foi determinado que os
relatórios e a correspondência fossem redigidos em português.
– 16/8/1927 (fl. 107). Ao Comissário: declaração dos administradores do Chioco
Syndicate Ltd.
– 7/9/1927 (fls. 108/10). Ao Comissário: problemas de mão-de-obra decorrentes da
publicação do novo Regulamento de Trabalho dos Indígenas.
– 12/9/1927 (fl. 111). Ao Comissário: documento em inglês e tradução em português da
modificação introduzida nas convenções entre a Zambezia Mining Development Ltd e a
Sociétè Miniére, de 14/2/1920 e 13/9/1922, respetivamente.
– 16/9/1927 (fls. 112/3). Ao Comissário: repete o mesmo assunto.
– 4/10/1927 (fls. 116/8). Ao Comissário: acentua a necessidade de mão-de-obra para os
prazos Andone e Angoaze, face à recusa de autorização para o recrutamento livre de
quinhentos trabalhadores; calcula a média de um homem para cada dois ha. e fixa em 10.158
a população masculina válida.
– 11/10/1927 (fls. 121/3). Ao Comissário: história dos contratos entre C. Z. e Zambézia
Mining Developmente Ltd.
– 25/10/1927 (fl. 127). Ao Comissário: pede resposta ao pedido para construção do
Caminho-de-ferro de Tete, feito em 28/11/1925.
– 25/10/1927 (fls. 129/35). Ao Comissário: pede a construção de uma estrada até
Massingire; requerimento ao Ministro.
– 1/11/1927 (fls. 135/6). Ao Comissário: pede que na revisão do Tratado de Comércio
com a Espanha se leve em consideração que neste país o sisal proveniente das colónias
portuguesas está sujeito a direitos mais elevados do que o oriundo das possessões inglesas e
holandesas.
– 27/12/1927 (fls. 137/8). Ao Comissário: relembra a necessidade de eliminação da
floresta de Zalala que, como já acentuou em 27/6, continua a ser foco da mosca tsé-tsé.
– 17/1/1928 (fls. 141/2). Ao Comissário: repete o problema abordado a 12/9/1927.
– 9/3/1928 (fl. 143). Ao Comissário: fornecimento por uma firma alemã, a título de
reparações de guerra, de uma draga fluvial e um escavador de valas.
– 13/3/1928 (fl. 144). Ao Comissário: contrato com a Zambézia Mining.
– 17/4/1928 (fl. 147). Ao Comissário: alastramento da mosca tsé-tsé.
– 10/5/1928 (fls. 148/50). Ao Comissário: dificuldades na exploração das minas de
Tete. – 22/5/1928 (fl. 151). Ao Comissário: quatro vapores para o rio Zambeze a serem
fornecidos por empresa alemã, a título de reparações de guerra.
– 20/6/1928 (fls. 152/3). Ao Comissário: dúvidas sobre as contas; lucros, títulos e ações.
– 2/7/1928 (fls. 155/6). Ao Comissário: dezasseis lanchas de 50 e 25 ton. para o
Zambeze, a serem fornecidas por empresa alemã, a título de reparações de guerra.
– 26/7/1928 (fls. 159/60). Ao Comissário: representantes do governo na Administração.
– 30/7/1928 (fl. 161). Ao Comissário: venda das ações da Zambézia Mining e Sociétè
Miniére.
– 5/11/1928 (fls. 167/8). Ao Comissário: doença do sono nos Prazos Chicoronguè,
Mucacame, Zenje e Mahembe.
203
– 10/11/1928 (fl. 170). Ao Comissário: aumento do capital da Sociétè Miniére para
23.100.000 francos belgas.
– 17/11/1928 (fls. 171/2). Ao Comissário: conflito com o governo sobre o representante
de minas da C. Z. em África.
– 21/12/1928 (fls. 174/5). Ao Comissário: dificuldade no recrutamento de um condutor
de minas de nacionalidade portuguesa.
– 21/12/1928 (fls. 177/9). Ao Comissário: alterado o período do ano financeiro.
– 12/3/1929 (fls. 187/9). Ao Comissário: pede que o governo responda às três propostas
importantes que lhe foram apresentadas.
– 16/3/1929 (fls. 190/1). Ao Comissário: nomes, vencimentos, gratificações e
percentagens dos administradores da Companhia da Zambézia.
– 9/4/1929 (fls. 193/5). Ao Comissário: conflito com o governo sobre o representante de
minas da C. Z. em Tete.
– 22/4/1929 (fls. 197/8). Ao Comissário: alterado o período do ano financeiro.
– 24/5/1929 (fl. 203). Ao Comissário: acordo entre a Zambezia Mining e o Chioco
Syndicate.
– 31/5/1929 (fl. 207). Ao Comissário: contrato entre a Zambezia Mining e a Zumbo
Company.
– 11/7/1929 (fl. 211). Ao Comissário: remetem-se importantes documentos relativos à
Sociétè Miniére et Géologique du Zambeze.
– 15/7/1929 (fl. 214). Ao Comissário: vencimento mensal do Comissário do governo,
Marechal Gomes da Costa, fixado em 500 francos ouro; dos cinco administradores por parte
do governo.
– 5/8/1929 (fls. 217/8). Ao Comissário: dúvidas quanto às retribuições compensatórias a
efetuar pela C. Z. no que concerne os impostos normais que são genericamente aplicados aos
corpos gerentes pelo exercício dos seus cargos.
– 23/1/1930 (fls. 226/7). Ao Comissário: alteração dos estatutos.
– 18/2/1930 (fls. 229/33). Ao Comissário: tratado de comércio com a Espanha.
– 10/3/1930 (fls. 230/1). Ao Comissário: envia cópia da exposição que o Grémio dos
Agricultores da Zambézia irá entregar ao Ministério das Colónias; pedirá que as facilidades de
mão-de-obra concedidas pelo Dec. 16.475 continuem em vigor após o terminus do
arrendamento dos prazos.
– 1/7/1930 (fls. 234/5). Ao Comissário: alude às obras de drenagem que aguardam o
fornecimento da draga e da escavadora a serem fornecidas pela Alemanha a título de
reparações de guerra.
– 16/7/1930 (fls. 286/7). Ao Comissário: resposta negativa do Syndicat du Chemin de
Fer de Tete às condições apresentadas pelo Ministério das Colónias, a 31/3/1930, sobre a
concessão do Caminho-de-ferro Tete-Chiromo; a grande depressão alterou a situação
financeira; demora de cinco anos na resposta do governo Português.
– 5/8/1930 (fls. 238/40). Ao Comissário: prejuízos sofridos por Moçambique com a
demora da resolução a tomar pelo governo Central quanto ao Chioco Syndicate, interessado
em pesquisas mineiras.
– 10/11/1930 (fl. 242). Ao Comissário: aborda o mesmo assunto.
– 14/11/1930 (fls. 243/5). Ao Comissário: companhias e sociedades organizadas pela
“Zambezia Mining Development Ltd”.
204
– 17/11/1930 (fl. 246). Ao Comissário: o Sindicato do Caminho-de-ferro de Tete deseja
saber quais as garantias que lhe poderá conceder o governo de Moçambique no empréstimo
amortizável a longo prazo.
– 14/1/1931 (fls. 247/8). Ao Comissário: prazo de validade do acordo entre a Zambézia
Mining Development e o Chioco Syndicate.
– 21/1/1931 (fl. 249). Ao Comissário: ainda sobre o mesmo assunto.
– 16/6/1931 (fl. 252/3). Ao Comissário: sobre o tratado de comércio com a Espanha.
– 18/6/1931 (fls. 254/6). Ao Comissário: roga que o sisal moçambicano seja protegido
no mercado da Metrópole.
– 29/6/1931 (fls. 257/9). Ao Comissário: proposta para a redução numérica dos
membros do Conselho de Administração.
– 30/7/1931 (fls. 261/2). Ao Comissário: pedido para emissão de obrigações.
– 20/8/1931 (fl. 267). Ao Comissário: a Sociétè Miniére pede a construção imediata do
Caminho-de-ferro de Tete.
– 22/9/1931 (fls. 269/71). Ao Comissário: critica a preferência da Cordoaria Nacional
pelo sisal estrangeiro.
– 14/11/1931 (fl. 272). Ao Comissário: pede para que seja reduzido o frete marítimo
aplicado ao sisal moçambicano.
– 24/11/1931 (fls. 274/7). Ao Comissário: critica as práticas injustas da Cordoaria
Nacional. – 26/12/1931 (fls. 279/80). Ao Comissário: envia memorial sobre o pedido de
credito ao B. N. U. – 30/12/1931 (fls. 281/2). Ao Comissário: carta da Zambézia Mining
pedindo a prorrogação, por mais cinco anos, do contrato de exploração.
– 22/2/1932 (fls. 284/6). Ao Comissário: carta da Sociétè Miniére ao Ministério das
Colónias, insistindo mais uma vez na construção do Caminho-de-ferro de Tete; esclarece que
só ultrapassando uma exportação superior a 400.000 ton. por ano seria compensado o
investimento já feito de 23.000.000 francos belgas.
– 29/3/1932 (fl. 287). Ao Comissário: a C. Z. comunica que vai extinguir a sua
Repartição de Minas em Tete.
– 22/4/1932 (fl. 290). Ao Comissário: pede que o Ministro das Colónias visite as
instalações e propriedades da C. Z. em Quelimane.
– 6/12/1932 (fls. 296/7). Ao Comissário: dá a conhecer que o Conselho de Câmbios
indeferiu o pedido de transferência de £ 330 para pagamento dos honorários mensais dos
corpos gerentes.
– 13/2/1933 (fls. 298/9). Ao Comissário: refere as dificuldades na obtenção de cambiais
destinadas à importação de sacaria para géneros exportáveis.
– 20/4/1933 (fls. 300/2). Ao Comissário: trata da criação de bovinos e da mortalidade
provocada pela mosca tsé-tsé.
– 26/5/1933 (fls. 303/4). Ao Comissário: problemas levantados pelo facto da Capitania
do Chinde exigir pessoal europeu ou assimilado para a tripulação dos vapores fluviais.
– 8/9/1933 (fls. 305/10). Ao Comissário: exposição ao Ministro das Colónias referente à
Contribuição Industrial aplicada às companhias coloniais.
– 25/9/1933 (fl. 311). Ao Comissário: lembra que o Ministro das Colónias indeferiu a
prorrogação do contrato firmado a 8/11/1911, entre a C. Z. e a Zambézia Mining
Development, tendo a primeira retomado todos os direitos sobre a produção mineral.
– 19/1/1934 (fls. 315/6). Ao Comissário: a C. Z. pede ao Estado para lhe pagar os
7.745.61 ouro que se comprometeu a pagar pelos prédios urbanos existentes nos prédios de
205
Tete. – 27/2/1934 (fls. 319/20). Ao Comissário: a Sociétè Miniére pede prorrogação até 1940
da concessão carbonífera.
– 15/3/1934 (fl. 321). Ao Comissário: insiste sobre derruba da floresta de Zalala, foco
de tsé-tsé. – 2/4/1934 (fl. 326). Ao Comissário: relatório semestral sobre trabalhos mineiros;
ver Dec. 23.704 (D. G. 26/3/1934).
– 25/4/1934 (fls. 329/30). Ao Comissário: resposta ás questões posta pelo sub-secretário
de Estado das Colónias.
– 28/6/1934 (fls. 331/4). Ao Comissário: sobre reparações de guerra.
– 10/4/1935 (fls. 335/7). Ao Comissário: pesquisas mineiras em Tete pretendidas por
Mello, Castelo Branco, Ltda.
– 3/6/1935 (fls. 339). Ao Comissário: pede para serem reduzidas para 50% as cambaias
a entregar para produtos exportados para a Alemanha.
– 24/8/1935 (fl. 342). Ao Comissário: ofício ao Ministério das Colónias sobre situação
do comércio do chá.
– 10/2/1936 (fls. 343/4). Ao Comissário: prejuízos advindos da exigência de autorização
ministerial para poderem exportar copra para a Alemanha.
– 21/2/1936 (fls. 345/6). Ao Comissário: exportações para a Alemanha.
– 22/2/1936 (fls. 347/9). Ao Comissário: alteração dos estatutos da Sociétè, por força de
determinação legal do governo belga.
– 12/3/1936 (fls. 350/2). Ao Comissário: refere-se ao mesmo assunto que o anterior.
– 27/5/1936 (fl. 355). Ao Comissário: pede autorização para comprar ouro produzido
em Tete, ouro que é contrabandeado para a Rodésia.
– 24/6/1936 (fls. 357/8). Ao comissário: protesta contra a tese sobre o chá em
Moçambique apresentada na Conferência Económica do Império Colonial; o autor parece ter
falado apenas em nome de Hornung & Cia, a cerca da fábrica e das plantações em Milange.
– 6/7/1936 (fl. 362). Ao Comissário: compra de ouro, ver oficio de 27/5/1936.
– 9/7/1936 (fls. 364/6). Ao Comissário: redução a metade de capital da Sociétè Miniére,
sendo a restante para amortizações e prejuízos acumulados.
– 9/7/1936 (fls. 367/8). Ao Comissário: pede redução da entrega ao governo de
cambiais de exportação (25,50,75%); lembra que Salazar reduziu, na Metrópole, esses
entregas para apenas 5%.
– 19/10/1936 (fls. 371/2). Ao Comissário: Ministro das Colónias dificulta a admissão de
suíço com pratica de contabilidade e conhecimento de português, francês, inglês e alemão.
– 21/10 e 5/11/1936 (fls. 373/5). Ao Comissário: alteração dos estatutos da Sociétè
Miniére. – 20/11/1936 (fls. 376/8). Ao Comissário: resolução da Conferencia Económica do
Império Colonial que afeta o chá de Moçambique.
– 21 e 23/11/1936 (fls. 379/80). Ao Comissário: declaração de 27.003 dos corpos
gerentes e de pessoal.
– 7/12/1936 (fls. 381/2). Ao Comissário: autorização ministerial para empregado
português regressar a Moçambique.
– 22/2/1937 (fls. 383/8). Ao Comissário: informações, relação de manifesto e licenças
mineiras no distrito de Tete.
– 15 e 22/3/1937 (fls. 390/1). Ao Comissário: autorização para entrada de um
marnoteiro para salinas no Idugo, Zambézia.
– 24/3/1937 (fls. 392/8). Ao Comissário: manifesto e licenças mineiras de 1936.
206
– 5/4/1937 (fls. 399/400). Ao Comissário: posição da C. Z. sobre nova legislação
relativa ao comércio de algodão em rama.
– 8/4/1937 (fls. 401/2). Ao Comissário: juros excessivos cobrados pelo B. N. U.: 8%
nas contas caucionadas e 1% de comissão sobre totalidade do crédito; em Portugal era apenas
4%. – 19/4/1937 (fls. 403/6). Ao Comissário: decreto sobre comércio de algodão a publicar
pelo Ministro do Comércio e Industria; interesses coloniais e o Grémio de Importadores de
Algodão. – 2/6 e 1/7/1937 (fls. 407/8). Ao Comissário: novo contrato entre a C. Z. e a
Zambezia Mining. – 13/8/1937 (fl. 412). Ao Comissário: pede para a B. N. U. baixar a taxa de
juro para 6%; lembra que o Banco de Portugal a baixou para 4%, na sequência da política de
Salazar “que Deus proteja e permita que continue a gerir por muitos anos o governo deste
País…”.
– 18/8/1937 (fls. 413/4). Ao Comissário: pede que o chá seja incluído entre os produtos
mencionados no acordo comercial luso-alemão.
– 21/8/1937 (fls. 415/7). Ao Comissário: envia cópia da carta em que a Sociétè Miniére
esclarece ter feito um acordo com uma sociedade privada especializada em pesquisas
mineiras. – 23/8/1937 (fls. 418/9). Ao Comissário: sobre o Dec. 27.983 e a falta de pagamento
das reparações de guerra.
– 2/10/1937 (fls. 420/8). Ao Comissário: rebate o conteúdo de uma informação enviada
ao Ministro dos Colónias pelo B. N. U. sobre o pedido da C. Z. para ser reduzida a taxa de
juro do empréstimo em conta corrente aberto em Quelimane, para compra de algodão aos
indígenas.
– 19/10/1937 (fls. 429/32). Ao Comissário: cálculo dos prejuízos advindos da cultura
algodoeira devido à quebra das cotações mundiais; referência aos preços fixados no B. O. nº
23/3ª série, de 9/6/37: 1$30 o de 1ª qualidade; $90 o de 2ª qualidade.
– 13/11/1937 (fl. 434). Ao Comissário: o Sindicato Zambeziano é, na verdade, uma
secção da Sociétè Miniére dedicada unicamente a pesquisas mineiras e com contabilidade
diferente da relativa à exploração carbonífera.
– 15/11/1937 (fls. 435/6). Ao Comissário: propõe um plano para a fixação de colonos
europeus no Gurué.
– 15/11/1937 (fl. 437). Ao Comissário: despacho ministerial sobre o relatório de 1936.
– 22/11/1937 (fl. 438). Ao Comissário: introdução de géneros coloniais no acordo
comercial com a Alemanha.
– 7/4/1938 (fls. 444/5). Ao Comissário: pede que as 240.000 ações na posse de
Franceses sejam isentas do imposto de capitais; nota: num total de 600.000 ações, 135.000
pertenciam ao Estado e 225.000 a Portugueses.
– 19/4/1938 (fls. 446/7). Ao Comissário: alude às reparações de guerra.
– 27/5/1938 (fls. 454/5). Ao Comissário: pergunta se a C. Z. deve estar compreendida
entre os “produtores europeus” obrigados pelo Art. 37º do Dec. nº 26.697, a inscreverem-se
na Junta de Exportação de Algodão Colonial; recorda que as concessões da C. Z. foram
atribuídas pelos Decretos nos 11.994 e 20.881, de 28/7/1926 e 6/2/1932.
– 13/7/1938 (fl. 457). Ao Comissário: alteração dos estatutos da Sociétè Miniére.
– 22/7/1938 (fl. 458). Ao Comissário: carta da Sociétè Miniére sobre o recrutamento de
indígenas no distrito de Tete; pede a atenção do Ministro das Colónias para este importante
assunto. – 29/8/1938 (fls. 459/60). Ao Comissário: sobre a moeda usada nos pagamentos aos
empregados.
207
– 6/10/1938 (fls. 461/3). Ao Comissário: protesto por a Junta rebaixar para a 2ª
qualidade o algodão que na presença de autoridades, foi classificado e pago como sendo de 1ª
qualidade.
– 14/10/1938 (fls. 464/6). Ao Comissário: protesto contra as alterações introduzidas no
modo de classificação do algodão pelos decretos que se seguem: nº 27.702, sobre a orgânica
da Comissão Reguladora do Comércio do Algodão em Rama; nº 28.697 e nº 28.851, sobre a
orgânica da Junta da Exportação de Algodão Colonial. Os novos critérios só podem ser
empregados em algodões descaroçados e não no algodão caroço apresentado nas feiras.
– 19/12/1938 (fls. 467/8). Ao Comissário: depois de expor suas razões, pede ao
Ministro que autorize os vendedores de algodão colonial a receberem, não dos compradores,
mas diretamente da Comissão Reguladora do Comércio do Algodão os quantitativos da
diferença entre os preços mínimos fixados pelo § 4º do Art. 8º do Dec. nº 29.698 e o preço do
custo em Portugal de algodão americano.
– 2/1/1939 (fls. 469). Ao Comissário: em resposta à confidencial urgentíssima de
30/12/1938 informa ter telegrafado imediatamente ao diretor dos Serviços em África
ordenando a compra de todo o algodão dos indígenas na Mutarara e Benga.
– 13/3/1939 (fl. 472). Ao Comissário: protesta contra as diferenças de frete a pagar pelo
sisal = 573$75 Moçambique–Lisboa; 473$23 Moçambique–Estrangeiro; 170$00 Angola–
Lisboa. – 9/5/1939 (fl. 473). Ao Comissário: informa ser o presidente L. F. da Silva Viana
que segue na comitiva do presidente da Republica.
– 10/5/1939 (atenção: a fl. 476 é a primeira parte do ofício, continuado na fl. 475). Ao
Comissário: protesta contra a taxa de $25 por kg de algodão exportado, independentemente da
classificação; acrescenta ser “… de recear nos indígenas maior relutância do que a que já
manifestam em alguns pontos por esta cultura”.
– 24/5/1939 (fl. 477). Ao Comissário: texto do discurso a pronunciar pelo presidente do
Conselho de Administração perante o presidente da Republica na visita à C. Z., Boror e
Madal. – 25/5/1939 (fl.478). Ao Comissário: despacho do Ministro das Colónias sobre
alterações no conteúdo dos contratos com os empregados.
– 5/6/1939 (fls. 480/1). Ao Comissário: queixa-se da concorrência dos vapores da
Trans-Zambezia Railway no transporte de carga no rio Zambeze.
– 14/6/1939 (fl. 482). Ao Comissário: o Conselho de Tarifas para as Colónias de África
resolveu baixar para 140$00 p/m3 o frete do sisal transportado do Chinde para Lisboa.
– 26/7/1939 (fl. 484). Ao Comissário: envia cópia da exposição feita pelo chefe da
Secção Algodoeira na Mutarara.
– 8/8/1939 (fl. 485/90). Ao Comissário: discorda frontalmente dos cálculos feitos pela
Junta de Exportação do Algodão Colonial sobre as contas de exploração da sua zona
algodoeira que em 1938 deu há C. Z. prejuízos avultados; problema da classificação do
algodão em três qualidades.
– 13/12/1939 (fls. 491/2). Ao Comissário: queixa-se da falta de praça nos navios
nacionais para escoar a carga acumulada nos portos moçambicanos.
– 11/3/1940 (fl. 496). Ao Comissário: envia os elementos pedidos pelo Ministro das
Colónias sobre a produção de copra; 50% da produção deve ser reservada à Metrópole.
– 19/3/1940 (fls. 497/9). Ao Comissário: queixa-se de que as fábricas, por excesso dos
seus stocks, se recusam a comprar os 50% da copra da C. Z. que foi acordado exportar para
Portugal.
208

Bibliografia

1) 1897. Companhia da Zambézia, (desdobrável com) Mapa dos Territórios das Concessões desta
Companhia. Lisboa, mapa coordenado por Affonso de M. Sarmento.
209

15º
DOCUMENTO
Arquivo da Companhia da Zambézia
A Última Carta de Paiva d’Andrada
(datilografada, sem data mas recebida a 10 maio 1923)
(Pasta com o nº 1 e o seguinte rótulo na lombada: janeiro 1922 a dezembro 1923 – Correspondência Nacional e
Estrangeira (Ortografia atualizada)

Exmº. Sr. almirante João do Canto e Castro Silva Antunes


LISBOA

Meu Caro presidente e Exmº amigo,

Peço-lhe que converse sobre o assunto desta carta com os nossos amigos, Roma
Machado e Portugal Durão, e que, se os três estão de acordo, proponham ao Conselho de
Administração da nossa Companhia da Zambézia, em seu nome, e também no meu, que seja
votada uma modesta pensão à infeliz filha do capitão-mor de Manica, Manuel António de
Sousa, em consideração dos relevantíssimos serviços por ele prestados à Zambézia.
Nas primeiras vezes que eu fui à Zambézia, a viagem desde Lezaro a Tete fazia-se em
escaleres, coches e almadias, tripulados por alegres marinheiros que iam cantando todo o dia.
Chegando porém a altura de uma Aringa na foz do Muira, e entrando na Lupata cessavam os
cantos e os marinheiros só falavam em voz baixa contando coisas tristes e mesmo fantásticas.
Entrava-se na região ocupada pelo Bonga, fechada ao sul do Zambeze por um círculo de umas
trinta Aringas que se estendiam desde o Muira, a leste, até outras situadas no Mazoé, havendo
uma pequena destas Aringas no monte que comanda a capital do distrito, à vista é a distancia
de tiro da casa do governador, Aringa que os habitantes de Tete facilmente poderiam destruir,
mas o que ninguém ousara fazer porque seria levantar a guerra contra todo o poder do Bonga.
A principal das Aringas era a Grande Aringa de Massangano, residência do Bonga, situada na
margem direita do Zambeze e próximo da margem direita e foz do Luenha. As circunstâncias
da navegação, pela força da corrente das águas do Luenha, juntando-se às do Zambeze,
obrigavam todas as embarcações a encostar-se à pequena praia por baixo da margem sobre o
qual estava construída a Aringa.
No centro do rio a água do Zambeze é tão funda que não permite o emprego dos pondos
(varas) e à pagaia era impossível vencer a corrente; a margem esquerda do Zambeze, nessa
altura, não permite o emprego da cirga. Assim era forçoso encostar as embarcações à praia da
margem direita do Zambeze, entrar no Luenha, que tinham de subir o bastante para que,
descaindo no emboco, com a força da corrente atingissem a margem esquerda deste rio antes
de chegar ao Zambeze para que, bem encostados à terra, pudessem voltar para o Zambeze já
livres da corrente do Luenha.
Assim todos os viajantes da Zambeze forçados a encostar à praia da Aringa eram
virtualmente obrigados a dar algum presente ao Bonga. O próprio governador de Tete,
dirigindo-se para a capital do seu distrito, tinha que parar junto à praia em frente de meia
dúzia de pretalhões do Bonga, que o vinham cumprimentar e a quem ele tinha que dar alguns
210
garrafões de vinho em frente dos crânios do major Portugal de Valdez Bonfim e de muitos
outros espetados nos paus da Aringa.
Conhecendo os elementos da força de que dispunha o capitão-mor de Manica na
Gorongoza e outros prazos da Coroa, de que ele era arrendatário, e sobretudo no Báruè, que
ele tinha conquistado ao Macombe e de que ele era considerado dono, e também os elevados
sentimentos de patriotismo deste grande português, achei que tínhamos em mão os meios para
acabar com as vergonhas a que acabo de me referir, e eu, que tinha sido nomeado pelo
governo para instalar o novo distrito de Manica, cuja sede foi efetuada em Chemba, na
margem do Zambeze, com a chegada do primeiro governador e do secretario do governo, e
que nessa época ainda não tinha avançado além de Gorongoza, autorizado pelo governador da
Província a proceder como entendesse, estudei o modo de ataque e arrasamento de todas as
aringas do Bonga, com os sipais do Manuel António, auxiliado também, para as Aringas de
extremo leste, pela gente dos Ferrões de Sena, e para as do extremo oeste com os sipais
também (mais tarde) infeliz capitão-mor da Chicoa, Ignácio de Jesus Xavier. O plano
combinado foi posto felizmente em execução e em poucos dias todas as Aringas estavam
arrasadas, o poder do Bonga demolido e a navegação do Zambeze livre de qualquer entrave.
É interessante consignar que o Ministro da Marinha fazendo-me a honra de confiar no
meu bom senso e na minha prudência me entregou uma portaria concedendo-me poderes
superiores aos dos governadores dos Distritos, pois em nome dele Ministro, podia a cada
instante dar a demissão a qualquer dos governadores.
Quando eu com Manuel António de Sousa, estávamos em acampamento no Báruè para
partirmos com as forças principais, apareceu a do governador do distrito, Major Ferreira
Simões que acabava de chegar de Lisboa. Desejou seguir connosco, apesar de começar logo a
ter grandes febres. Pusemo-nos a caminho e no acampamento em que ficámos na noite que
precedia o dia em que devíamos chegar à 1ª Aringa, o governador estava por tal forma doente
com uma tão grande febre que era impossível continuar a viagem e teve que ficar no
acampamento.
Tivemos efetivamente o primeiro combate neste dia com favoráveis resultados, e
apressei-me a mandar a boa notícia ao governador. Os portadores regressaram com a terrível
informação de que ele se tinha suicidado com um tiro. No delírio da febre o brioso oficial,
provavelmente supondo-se desonrado por não ter acompanhado os que iam combater, tomou
essa terrível resolução.
Quando voltei a Lisboa fiz uma conferência na Sociedade de Geografia sobre os
recentes acontecimentos da Zambézia. Poucos dias depois recebi um folheto impresso, escrito
pelo P.e Brandão, pároco de uma freguesia de Lisboa e deputado muito conhecido, acusando-
me e a Manuel António de Sousa de termos mandado assassinar o Major Ferreira Simões.
Tempos depois achava-me noutro serviço em Manica, acompanhando-me o Manuel
António. Já ali estavam vários pesquisadores ingleses, em contrato com a Companhia que deu
origem à Companhia de Moçambique. Chegaram ali ingleses da nova British South Africa
Company, que se juntaram no acampamento deles no dia seguinte àquele em que alguns
pesquisadores jantaram à minha mesa, estávamos numa palhota dentro da Aringa do régulo
Mutassa conversando com ele quando ouvindo um desusado movimento dos pretos, saímos
eu e o Manuel António, de gatinhas, da palhota cuja porta era extremamente baixa, e
encontrámo-nos com uma meia dúzia de ingleses armados que tranquilamente tinham entrado
na Aringa e que nos deram a voz de prisão. Tivemos logo que começar a viagem num carro
escoltado por homens a cavalo que nos conduziram ao lugar que já tinha recebido o nome de
Salisbury aonde encontrámos o representante da Companhia e fomos muito cortesmente
recebidos por ele, mas o que queriam era ver-nos fora do pais, e fizeram-nos seguir ainda
como presos na direção do Cabo.
211
Deram-me o grande carro do administrador puxado por dezoito bois brancos, carro em
que devíamos seguir, eu e o Manuel António e o oficial que vinha connosco.
Querendo dar-me uma outra prova de consideração, meteram no carro uma caixa com
garrafas de champanhe de que o nosso guarda se aproveitou.
No caminho para o sul, encontrámos o Dr. Jameson, depois tão afamado pelo seu infeliz
raid sobre o Transval, que me disse que eu estava livre e podia ir para onde quisesse, e como
já me não convinha outra coisa que não fosse o complemento da viagem até ao Cabo, pediu-
me para eu levar às minhas ordens o oficial que até então nos tinha servido de “guardian”, o
que muito mais cómodo tornaria a viagem.
Tinha sucedido que a noticia da minha prisão fora comunicado pelo telégrafo para a
Europa e que, logo que o Ministro de Portugal em Londres, o meu velho amigo cuja perda o
país acaba de sofrer, o Marquez de Soveral, dele teve conhecimento, dirigiu-se ao governo
Inglês, reclamando que eu fosse imediatamente solto dando este governo logo para o Cabo a
ordem que o Dr. Jameson me comunicara.
Chegado ao Cabo, nada havia melhor a fazer de que embarcar com Manuel António
para Lisboa onde Manuel António foi muito festejado, Malhoa fez-lhe um belo retrato, que
não sei onde está mas que, com grande prazer, veria nas paredes da sala do nosso Conselho de
Administração.
Estávamos no Hotel Universal, hoje Grandes Armazéns do Chiado e ali nos procurou o
P.e Brandão. Ainda fortemente indignado com a infâmia do seu folheto, eu não quis vê-lo, o
que depois senti, mas o Manuel António, de acordo comigo, recebeu-o.
Não sei, ou não me lembro, como ele se desculpou para Manuel António, mas sei que
lhe dirigiu muitos cumprimentos e que lhe pediu para que quando partisse levasse consigo um
presente de paios ou chouriços da especialidade da terra dele. Efetivamente quando Manuel
António, pouco depois embarcou para a África no vapor que estava no meio do Tejo, e onde
não subiam os visitantes, eu vi do meu bote aquele em que o P. e Brandão levava um grande
cesto que fez subir para bordo, agitando ele os braços em afetuosa despedida a Manuel
António que estava em cima.
Durante o pouco tempo que o Manuel António de Sousa esteve em Lisboa entre outras
manifestações de reconhecimento que ele recebeu, o Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Barros Gomes deu-lhe em sua casa um jantar a que assistiu o presidente do Conselho e todo o
ministério e ao qual também eu assisti.
Não posso resistir a contar uma história que se prende com a origem da nossa
companhia.
No dia seguinte aquele em que o Diário do governo publicou o decreto de 26 dezembro
1878, o 1º decreto das nossas concessões, o Progresso, Jornal de Emigdio Navarro, publicou,
em artigo de fundo, um extenso e violentíssimo artigo com o título de monstruoso escândalo
combatendo a concessão.
No dia seguinte o Diário Popular de Mariano de Carvalho, caso não comum,
reproduziu sem alterar uma palavra e sem qualquer menção, como se fosse artigo próprio e
em artigo de fundo e também com o mesmo título, o artigo publicado na véspera pelo
Progresso, tendo estas duas publicações causado então uma grande excitação no país.
No circo do Price, ao Salitre, reuniu-se um grande meeting, convocado juntamente por
todos os que não tendo conseguido então derrubar o ministério regenerador de Fontes Pereira
de Mello, vieram meses depois com um outro protesto, o da Penitenciária a derrubar o
governo e a constituir o novo Ministério.
212
No jantar a que me referi estavam, como ministro das Obras Publicas Emigdio Navarro
e como ministro da Fazenda Mariano de Carvalho, falava-se calorosamente dos grandes
serviços que acabavam de ser feitos na Zambézia, e E. Navarro exclamou: e lembrar-nos do
que se disse em tempo da concessão Paiva d’Andrada.
Mariano de Carvalho, com o espírito e descaramento que o caracterizava, voltando-se
para E. Navarro replicou-lhe, rindo do que se disse? O que nós dissemos!
O sistema da Administração dos vastos territórios constituídos pelo prazo Gorongoza e
outros prazos arrendados a Manuel António e pelo chamado Reino do Báruè, consistia na
criação de muitos luanes, dirigidos por nhanhas de Manuel António. Estes luanes eram como
centros de distritos em que havia povoações de vários capitães e em que estavam espalhados
todos os sipais de Manuel António. Quando constou na Zambézia que o Manuel António
tinha sido preso e que tinha partido para a Europa, pensaram que ele não mais voltaria e
diferentes capitães tomaram conta de um grande número de luanes e das nhanhas que ali
estavam.
À noticia da volta de Manuel António não viram outro recurso senão o de se unir e de se
voltar contra ele. Com a gente que lhe tinha ficado fiel Manuel António procurou fazer voltar
tudo à ordem, pondo-se em campo contra os revoltosos. Um dia, em combate, um soldado
branco que, não sei como, estava com ele, caiu morto com uma bala.
As forças dos revoltosos eram em muito grande número e não se tornava possível
vencê-las; os pretos fiéis queriam que se pusessem em retirada levando Manuel António na
sua maxila, Manuel António porém, apesar do presente da especialidade da terra do P. e
Brandão, teve provavelmente presente a acusação de assassino que por ele lhe tinha sido feita,
(o único soldado branco que estava com ele estava morto a seus pés), e recusou-se a ser salvo
pelos seus pretos fieis.
Sentou-se numa pedra, e ali em plena saúde e pleno vigor, foi sem oferecer resistência
alguma, cortado a machado pelos seus antigos pretos, e assim tão terrivelmente acabou este
grande patriota e esse homem de valor, ao serviço de quem a Companhia da Zambézia deve o
ter encontrado livre a navegação do rio, sem ter que se sujeitar à humilhação em frente da
Aringa do Bonga.
Manuel António tinha muito filhos e filhas nascidos nos seus diferentes luanes e que
pela Gorongoza e outros prazos devem estar passando cafrealmente vida descuidada.
Tinha ele desejado que uma filhinha fosse educada em Lisboa.
Foi mandada aos cuidados do nosso falecido colega e meu particular amigo general
Couvreur. Não me lembra se ela estava batizada ou se é minha afilhada, tendo-me o general
Couvreur representado no batizado como fez no do Dr. J. Lobo d’Ávila de Lima de quem o
pai, que estava comigo em África, me pediu para ser padrinho.
A pequenita que se chama Dorothéa, foi posta nas Salesias onde recebeu uma boa
educação com meninas da nossa melhor sociedade.
Manuel António mandava ao general Couvreur os fundos necessários para todas as
despesas. Eu, sempre em viagens, não tinha conhecimento de que se passava, sei que esta,
mais tarde casou com um comercial chamado Pinto Chrysóstomo, que mais tarde foi nomeado
para um bom lugar na Índia.
Falando um dia com o que era então ministro da Marinha e das Colónias, o meu amigo
de infância e grande colonial almirante Augusto de Castilho, disse-me ele: o que não deve o
governo fazer por uma filha do Manuel António. Assim esse homem foi nomeado para esse
lugar no governo da Índia por influência da sua mulher. Mais tarde soube que esse homem se
213
tinha juntado a outra mulher e que pretendia divorciar-se com o pretexto de que a mulher
cheirava a preta.
Eu nunca cheirei dona Dorothéa, mas a primeira vez que me lembra tê-la visto foi
procurando-me ela com dois pequenos, um vestido com farda do Colégio Militar, que eram
filhos desse homem que noutro tempo devia ter o olfato menos sensível; o facto é que o
processo de divórcio tem-se arrastado nos tribunais sem solução, ficando essa pobre mulher,
hoje completamente cega, abandonada com os seus filhos sem recursos alguns. Justamente já
depois de ter começado esta carta soube que o tribunal resolveu que esse homem sustentasse
os seus dois filhos que já devem hoje ser homens, que parece estão num colégio em Lisboa,
mas a mulher, essa filha de Manuel António (cega), a quem nós todos tanto devemos,
continua abandonada em Lisboa na miséria, e eu peço aos meus amigos para se interessarem
por ela e para obterem do Conselho de Administração da nossa Companhia, que em
consideração do que a Zambézia deve a Manuel António, seja dada uma modesta mesada à
sua infeliz filha.
Peço mais ainda aos meus três amigos que usem da sua influência para obterem do
Ministério das Colónias também um auxilio, que de tanta justiça é dar-lhe, e assim com duas
modestas mesadas, essa pobre e infeliz criatura poderá ter assegurada uma vida tranquila.
Quando o nosso camarada e amigo Freire d’Andrade partiu há pouco para África, eu escrevi-
lhe sobre a aflitiva situação de dona Dorothéa e pedi-lhe para que ele falasse em L. Marques a
respeito dela com o Alto-Comissário. Mas as tormentosas condições desta desagradável
viagem, não lhe terão dado ocasião de se ocupar do assunto, depois que ele voltou não lhe
escrevi ainda, fui levado a fazer esta carta, tão extensa pelo interesse de assuntos que tanto se
ligam com a minha estada na Zambézia e com a história da nossa Companhia.
De V. Ex.ª.
Colega e amigo Muito Obrigado.
(Ass.) Joaquim C. Paiva d’Andrada

Adendas:
a) Na pg. 441 das suas memórias, Azevedo Coutinho presta esta última homenagem a
Andrada: “… muito velho já, mas sempre incansável, voltou as suas atenções para
Angola, constituindo com a casa Burnay – que quase sempre financiou as suas
múltiplas empresas e outras entidades – a grande, poderosa e próspera Companhia
dos Diamantes de Angola, hoje dirigida… pelo oficial de Marinha Ernesto de
Vilhena”.
b) Parece credível a hipótese de Paiva d’Andrada haver ocultado deliberadamente, até
ao fim da sua vida, os factos que desmentem a afirmação que consta da página
210: “… Tempos depois achava-me noutro serviço em Manica, acompanhando-me
o Manuel António. Já ali estavam vários pesquisadores ingleses, em contrato com
a Companhia que deu origem à Companhia de Moçambique”.
c) O Documento nº 6 (pp. 49-58) apresenta provas esmagadoras de que a veracidade
histórica parece ser totalmente diferente. Nem sequer menciona o próprio Barão de
Resende. Sugerimos ao leitor que estude cuidadosamente o conteúdo desse
importante documento, até ao fim do ofício do engenheiro Charles Llamby. O
estranho procedimento de Paiva d’A ndrada poderá estar relacionado com a sua
decisão de abandonar Portugal e de fixar residência definitiva em Paris.
215
16º
DOCUMENTO
Evolução moderna da corrente migratória entre o sul de Moçambique
e a África do Sul

Não hesito em alinhar com os investigadores que, na sua generalidade, concordam em


definir como se seguem os fatores que, de modo direto ou indireto, incitaram os varões do sul
de Moçambique a procurar emprego assalariado no país vizinho mais cedo do que aconteceu
relativamente a quaisquer outras etnias da África Austral:
a) Ambiente ecológico caracterizado pelo predomínio de planícies arenosas e pouco
férteis, cobertas por savanas, abundantes em caça grossa, infestadas de tripanossomíases e
outras doenças tropicais;
b) Regime pluvial irregular, com níveis de precipitação que aumentavam
progressivamente desde o extenso interior (400 mm), em faixas paralelas até à costa onde
podia atingir um máximo anual de 1.000 mm;
c) Existência de numerosos baixios aluviais libertos de tripanossomíases (Limpopo,
Incomati, Maputo, Umbeluzi, Inharrime) cobertos de pastos e rara vegetação arbórea,
propícios à criação de gado bovino e à agricultura intensiva;
d) Seculares contactos comerciais com navegadores asiáticos e europeus, trocando
sobretudo tecidos e missangas por marfim, âmbar, pérolas, pontas de rinoceronte e outros
despojos de luxo, contactos que incrementaram entre os Tsongas a atividade venatória e o
comércio a longa distância, sobretudo após a introdução das armas de fogo;
e) Diminuição do contributo masculino na produção alimentar graças à rápida e
sobejamente conhecida difusão de plantas mais nutritivas, oriundas da Ásia e das Américas;
f) Abate e confiscação do gado bovino pelos diversos grupos angunes que partiram do
Natal e da Suazilândia, após a derrota de Zuíde por Chaca Zulo, em 1818/9;
g) A grande fome de 1835/40 que se julga relacionada com a fixação no vale do
Limpopo da capital do Império de Gaza fundado por Sochangana-Manucusse, fixação que
provocou o êxodo de cerca de cem mil tsongas para o nordeste do Transval;
h) Pagamento da compensação nupcial (lobolo) com enxadas fabricadas pelos Vendas;
de 1840/55 o montante variou entre 80 e 100 enxadas que correspondiam de 8 a 10 bovinos;
i) Progressiva preferência dos varões tsongas (até então seduzidos pelas açucareiras do
Natal) para a zona diamantífera de Kimberley e depois para os filões auríferos do Rand,
passando a ser designados pelo abrangente etnónimo de “changanas”;
j) Agravamento da crise social e alimentar provocado pela longa e sangrenta guerra de
sucessão travada entre Muzila e Mauheue, pretendentes ao trono de Gaza, guerra que parece
ter originado a grande fome de 1862/3;
k) Preferência pela libra-ouro no pagamento do lobolo que subiu para £ 8 em 1870;
l) Produtos exóticos divulgados dos mercadores ambulantes indianos (nessa época já
englobados na designação coletiva de “monhés”) produtos que provocaram o atrofiamento do
secular e endógeno comércio a longa distância de e para a baía de L. Marques;
m) Crescente valorização da libra ouro no pagamento do lobolo, atingindo já £ 20 em
1897.
Este problema estrutural foi objeto de numerosos e bem conhecidos estudos, entre os
quais o da minha autoria (1). Assim sendo limitar-me-ei a chamar a atenção dos interessados
216
para uma alteração mais recente, de natureza diplomática, que durante bastante tempo foi
mantida em segredo.
No início de 1965 (2), entrou em vigor um novo acordo que aboliu enfim o monopólio
de recrutamento concedido às minas filiadas na respetiva Câmara e na sua agência recrutadora
conhecida pela sigla W. N. L. A., monopólio que se manteve durante trinta e sete anos. Foi
então autorizada a abertura em L. Marques de três agências de colocação, com poderes para
contratarem trabalhadores para diversas atividades económicas e também para as minas não
filiadas. Apenas nove anos depois, em 1973, o governo-central de Lisboa desvendou
ligeiramente este suposto segredo. No entanto, a Gazeta Oficial sul-africana tinha dado
imediata publicação ao texto, até na sua versão portuguesa (3)!
Essa revelação foi devida a Max Fernandes, um moçambicano de origem goesa,
deputado por Moçambique, que apresentou na Assembleia Nacional, em finais de janeiro
1973, uma notável e corajosa comunicação. Baseado na obra de Francis Wilson (4) atacou o
governo pela sua negligência em rever a Convenção de 1928 e em defender os interesses dos
moçambicanos que considerou vitimados por enorme injustiça salarial. Acrescentou que,
segundo as estatísticas apresentadas no parlamento sul-africano, pelo próprio ministro das
Minas, a indústria extrativa pagara aos seus trabalhadores africanos em 1971 apenas 13% da
massa salarial apesar deles constituírem 80% do total dos assalariados. Também considerou
irrisórias as compensações por acidente, silicose e outras doenças profissionais.
Esta desassombrada intervenção mereceu uma carta subscrita por Marcello Caetano e
dirigida à Assembleia Nacional. Dela constam os seguintes parágrafos (5):
1 – A chamada “convenção de Moçambique” de 1928… foi revista em 1934 e deixou
de vigorar em 1964.
2 – Efetivamente, no decorrer de importantes conversações em Pretória, em novembro
1963… foi negociado um acordo de trabalho que regulamenta o emprego dos trabalhadores
portugueses… Quando, por conseguinte, o Sr. deputado Max Fernandes apela para que o
governo solicite a revisão do acordo de 1928… verifica-se que essa revisão já foi efetuada.
3 – Existem atualmente nas chamadas minas do “Rand”, cerca de um milhão e meio de
trabalhadores estrangeiros. Na sua esmagadora maioria são originários do Malawi, Zâmbia,
Uganda e Tanzânia. Cerca de cem mil são de Moçambique. Apenas os trabalhadores
portugueses gozam de proteção, que lhes é concedida pelo acordo de mão-de-obra de 1964 e
que, nas suas linhas gerais, é a seguinte:
a) Existência em Joanesburgo, de uma delegação do Instituto do Trabalho… com
diversas subdelegações que acompanham o cumprimento dos contratos e visitam as
explorações mineiras, para fiscalização das condições de trabalho;
b) Transferência, para a terra de naturalidade do trabalhador, das economias realizadas
durante o seu contrato, que podem subir a 60% dos salários recebidos;
c) Rigorosa fixação do período de duração do contrato em um ano e só em casos
especiais em dezoito meses;
d) Garantia de cobertura por seguros contra acidentes de trabalho e doenças
profissionais.
Decerto que é meu dever denunciar esta série de falsidades. A carta exemplifica
perfeitamente um dos mais graves obstáculos com que lutava o governo-central: a ignorância,
a atrofiada visão, a incompetência profissional dos altos funcionários que dominavam o
Ministério do Ultramar. Também aqui não souberam ou não quiseram informar com
veracidade o próprio presidente do Conselho. Em primeiro lugar afirmaram que a Convenção
de 1928 tinha deixado de vigorar, para, ulteriormente aludirem apenas à sua revisão. Mas, em
217
boa verdade, não houvera qualquer revisão formal. E tanto assim era que a Convenção de
1928 continuou, após a Independência, a reger as relações que, na matéria em causa,
subsistiam entre Moçambique e a África do Sul. Depois confundiram as “minas do Rand”
com a totalidade das atividades económicas da África do Sul, onde talvez se empregassem
cerca de um milhão e meio de trabalhadores de origem estrangeira. Os antigos protetorados
britânicos não foram mencionados, apesar da sua enorme importância como fontes de mão-
de-obra. Mas citam-se a Zâmbia, a Tanzânia e, imagine-se, até a Uganda, quando em 1973 os
imigrantes dessas proveniências eram em número insignificante! Os cem mil clandestinos de
Moçambique foram por completo ignorados. Totalmente falaciosa era a afirmação de que
“apenas os trabalhadores portugueses gozavam de proteção”. As regalias apontadas como
triunfo da diplomacia portuguesa derivaram, não do Acordo de 1964 mas da Convenção de
1928 e das próprias leis do trabalho sul-africanas. Por fim, escamoteou-se a verdadeira
finalidade do acordo sub judice que se limitava a combater a emigração clandestina e a
facilitar a cobrança dos impostos e das contribuições cambiais que os contratados deveriam
remeter para Moçambique: transferências, indemnizações, compensações e, enfim, salários
diferidos. Também surpreende que Marcello Caetano se tenha deixado ludibriar com tanta
facilidade, sendo, como era, autor de um estudo em que dissertou sobre o problema com
bastante ponderação (6).

Bibliografia

1) RITA-FERREIRA, A. (1963). O Movimento Migratório de Trabalhadores entre Moçambique e a


África do Sul. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar/Centros de Estudos Políticos e Sociais.
2) BREYTENBACH, W. J. (1979). Migrant Labour Arrangements in Southern Africa. Pretoria (África do
Sul), Africa Institute of South Africa, p. 34.
3) (1964) Acordo entre o governo da África do Sul e o governo da República Portuguesa regulamentando
o emprego de trabalhadores mineiros portugueses da Província de Moçambique. Pretoria, Government
Printer.
4) WILSON, Francis (1972). Labour in the South African Gold Mines 1911-1969. Cambridge, University
Press.
5) PEREIRA, Ernesto (1973). A emigração do Sul do Save. Lisboa, Missão e Vida, nº 25 e 26.
6) CAETANO, Marcello (1948). Portugal e o Direito Colonial Internacional. Lisboa.
219

17º
DOCUMENTO

A inexequível concentração de poderes nos Serviços de Administração


Civil

Pouco a pouco se tornou impossível aos administradores (de circunscrição ou de posto)


dedicarem suficiente tempo e atenção ao contactos e conhecimentos que convinha manter
com as populações nativas e, muito menos, a contribuírem ativamente para a sua promoção
social e económica.
Em 1933 foi publicada a Reforma Administrativa Ultramarina, monumento legislativo
assinado pelo Presidente do Conselho (António Salazar) e pelo ministro do Ultramar
(Armindo Monteiro). Foi decerto elaborado por burocratas que, por várias razões, não
puderam ganhar suficiente consciência das cruéis realidades que prevaleciam nos sertões.
Além disso, como em todos os serviços estaduais, foram condicionados pela rigorosa diretiva
de evitarem desequilíbrios orçamentais.
A simples leitura da secção VII do capítulo III permitia antever o que iria acontecer. De
facto, encontravam-se ali enumeradas as noventa e três diferentes atribuições dos
administradores de circunscrição, agrupadas por esta ordem:
a) Autoridade civil;
b) Autoridade judiciária;
c) Administração;
d) Política indígena;
e) Fiscalização;
f) Defesa económica;
g) Informação.
Mas estas já esmagadoras atribuições foram aumentadas por muitas outras que se
achavam dispersas pela legislação posta em vigor por iniciativa da maioria dos serviços
públicos, à medida que as suas atividades específicas se foram dilatando por todo o vastíssimo
interior.
É inacreditável que se tenha exigido aos sobrecarregados funcionários administrativos o
conhecimento e o cumprimento do que se achava determinado em toda essa enorme avalanche
legislativa – desde a respeitante aos exatores de Fazenda até à que se relacionava com as
minudências dos códigos do processo penal e civil e, até mesmo, com o censo eleitoral dos
não-indígenas. Manuel Simões Vaz, proprietário e diretor do principal diário, escreveu em
1951, no seu opúsculo sobre os problemas de Moçambique:

“A legislação em vigor na Colónia, tanto a emanada pelo Ministério das


Colónias, como até a publicada localmente, constitui um quebra-cabeças para
quem a quiser consultar. As leis, os decretos, as portarias sofrem alterações e
esclarecimentos e é preciso estar especializado no seu manuseamento e
compreensão para saber como se entendem e devem ser aplicados. Mesmo os
especializados não se encontram livres de indecisões e da prática de erros, de
que, à cautela, são sempre vítimas os contribuintes”.
220

Para que o leitor fique com uma pálida ideia deste infernal e paralisante problema –
nunca resolvido mas pelo contrário tornado cada vez mais impeditivo – juntamos no final dois
anexos contendo apenas a legislação aplicável aos indígenas.
Este entrave era tanto mais prejudicial quanto é certo que os governadores nomeados
pelo Ministério, quase em exclusivo pertencentes ao oficialato das forças armadas, eram
mantidos nas suas comissões por períodos demasiadamente curtos. Quando se consulta com
atenção a síntese cronológica publicada por M. Simões Alberto e Francisco A. Toscano em
1942, causam espanto as constantes mudanças do pessoal com responsabilidades
governativas. É certo que estas permanências fugazes podiam explicar-se pela morbilidade ou
até mesmo mortalidade provocada pelas temíveis doenças tropicais.
Como exemplo podem citar-se três enumerações de rigor indiscutível efetuadas por
moradores, com residência fixa quer no Ibo quer em Sofala. O primeiro é da autoria do P.e
Constantino Gerhard e reporta-se às nomeações para o desempenho do cargo de “governador
e capitão-mor das ilhas de Quirimba”. Entre 1776 e 1884, o missionário forneceu os
elementos de identificação de 71 ocupantes. Encontrou uma média de apenas 18 meses de
permanência. Reportando-se à mesma região, Ribeiro Torres contou 97 governadores entre
1505 e 1765. Por seu lado, em Sofala, Hermenegildo da Silva, relacionou 66 governadores
com os respetivos nomes próprios, datas de posse, postos ou graduações e até os cognomes
indígenas e sua significação. Redigiu extensas notas sobre os acontecimentos ocorridos em
cada governação. Calculou uma permanência média de 23 meses por cada governador.
Não se pode duvidar de que a abolição do indigenato e a natural evolução das antigas
populações rurais e tribais vieram contribuir para aumentar cada vez mais o movimento
burocrático das administrações, entre outras razões porque deixaram de poder resolver-se, de
modo expedito e sem formalidades, as inúmeras questiúnculas de direito privado e outras de
somenos importância em que constantemente se achavam mergulhadas as populações
nativas, questiúnculas que eram outrora resolvidas – sem clemência mas com rapidez e
eficácia – pelos despóticos monarcas tradicionais.
221

ANEXO I

I - Principal legislação de carácter social aplicável a indígenas, publicada em


Moçambique desde o ano de 1900

1º - Relações de Trabalho

a) Port. 1.180, de 4/9/1930 (B. O. 35/30, I série) Aprova o Regulamento do Trabalho dos
Indígenas;
b) Port. 5.565, 12/6/1944 (B. O. 24/44, I série) Aprova o Regulamento dos Serviçais
Indígenas;
c) Port. 7.798, 2/4/1949 (B. O. 14/49, I série) Revoga a Port. 5.565, aprovando o novo
Regulamento dos Serviçais Indígenas e introduzindo alterações substanciais no anterior
regime visto que a competência para celebração de contratos, para fiscalização de trabalho,
etc., deixa de pertencer ao Comissariado de Polícia e passa para o curador-geral dos Indígenas
e seus Agentes. Regula-se o trabalho e faz-se a classificação profissional dos empregados nos
principais centros urbanos. 70% das suas taxas de execução seriam reservados para
construção de Bairros Indígenas;
d) Despacho (B. O. 25/53, III série) Aprova as tabelas de alimentação;
e) Despacho (B. O. 33/53, I série) Estabelece algumas normas gerais;
f) Port. 11.462 (B. O. 18/56, I série, Supl.) Estabelece classificações para as entidades
patronais e para os trabalhadores. No que concerne os profissionais das artes gráficas fixa as
suas qualificações, condições especiais e remunerações mínimas. Foi aplicável aos indígenas
nos termos do Art. 17º e seus parágrafos.
Obs. – Deseja-se salientar que as relações profissionais em que intervinham indígenas
se encontravam estruturadas no respetivo Código e que tanto a respetiva regulamentação
como a posterior legislação publicada em Moçambique foram profunda e naturalmente
influenciadas pela natureza eclética subjacente.
É que não só se disciplinaram, classificaram e orientaram as várias modalidades de
prestação de serviço, como também se regulamentou todo um vasto setor de teóricas
realizações de carácter social. Mereceram cuidados especiais a assistência médica, o tipo de
alojamentos, o nível de salários, a qualidade de alimentação, a proteção ás famílias, a
profilaxia e ainda da garantia de ensino para os filhos e a organização de distrações culturais e
desportivas. Assim, é forçoso reconhecer o carácter fundamental do Código de Trabalho dos
Indígenas, regulamentado na Província pela supracitada Port.1.180. A propósito, da última
disposição citada (Port.11.462) convêm acentuar que já vigorava suficiente legislação
disciplinando o trabalho, legislação que embora ainda não aplicável a indígenas merece ser
aqui citada porque se identificava com a Organização Corporativa do Trabalho e porque já se
encontravam em estudo disposições legislativas que visavam integrar os profissionais com
aquele estatuto. De resto, é isto mesmo que se infere do segundo artigo daquele Dip. Leg.
1.595:

“O exercício pelos indígenas, das profissões disciplinadas


corporativamente será regulamentado pelo governador-geral, sob proposta do
222
chefe dos Serviços dos Negócios Indígenas, ouvida a Direção dos Serviços de
Administração Civil”.

Esta legislação, vulgarmente designada por Regime Jurídico das Relações de Trabalho e
Legislação Complementar, era constituída pelo Dip. Leg. 1.595, de 7/5/1956 (B. O. 18/56, I
Série) e pelas Ports. 11.459 a 11.476, todas de 7/5/1956 (B. O. 18/58, I Série).

2º-Acidentes de trabalho

a) Port. 5.483, 8/4/1944 (B. O. 15/44, I série) Aprova o respetivo Regulamento. (O seu
Art. 10º encontra-se alterado pela Port. 12:462, B. O. 12/58, I Série).

3º-Remunerações a indígenas

a) Port. 2.778 (B. O. 24/36, I série) Altera os salários mínimos dos recrutados para
Manica e Sofala e regula a celebração dos respetivos contratos;
b) Port. 8.779 (B. O. 37/37, I série) Regula os salários dos trabalhadores contratados para
S. Tomé e Príncipe. Foi revogada pela Port. 11.335, B. O. 27/46;
c) Port. 10.962 (B. O. 27/54, I série) Esclarece os casos em que são pagos a trabalhadores
indígenas os salários dos domingos e dias feriados; regula os descontos por faltas ao serviço;
d) Aviso (B. O. 22/55, III série) Aprova a tabela salarial dos indígenas empregados pelas
atividades agrícolas e industriais;
e) Aviso (B. O. 20/58, III série) Aprova a tabela de salários mínimos fixados para
marinheiros;
f) Dip. Leg. 1.664, 1.723 e 1.893, publicados respetivamente nos Bs. Os. 13/57, 48/57 e
41/59, I série, Supl. Estabelecem as categorias e salários a atribuir aos serventuários do Estado
(incluindo os indígenas);
g) Despacho (B. O. 51/57, I série);
h) Despacho (B. O. 31/59, I série) Determina como efetuar a retenção parcial do salário a
pagar no local do trabalho (Art. 182º e 183º do R. T. I.).

4º-Assistência à Família

a) Port. 12.202 (B. O. 47/57, I série) Estabelece o abono de família a pagar aos
serventuários de Estado; revoga a legislação anterior;
b) Dip. Leg. 1.794, (B. O. 37/58, I série) Cria o Fundo para construção de casas
destinadas à população indígena. (Vide Dip. Leg. 1.868 e Port. 13.260, respetivamente nos
Bs. Os. 26/59 e 31/59).
223
5º-Assistência Médica

a) Port. 617, de 30/11/1923 (B. O. 47/23, I Série) Aprova o Regulamento e as instruções


a observar na assistência médica prestada aos indígenas, incluindo a respetiva hospitalização;
b) Dip. Leg. 1.199, de 28/6/1950 (B. O. 22/50, I Série) Cria o Serviço de Combate à
Lepra;
c) Port. 8.574, de 2/12/1950 (B. O. 48/50, I Série) Regulamenta a luta anti-lepra e a
assistência aos leprosos;
d) Dip. Leg. 1.291, (B. O. 13/52, I Série) Cria a Inspeção de Assistência aos
Trabalhadores (foi alterado pelo Dip. Leg. 1.438, B. O. 21/54);
e) Port. 10.713, (B. O. 3/55, I Série) Cria o Serviço de Luta contra a Tuberculose,
estabelece a sua competência e fixa os meios indispensáveis ao seu funcionamento.

6º-Assistência agropecuária

a) Dip. Leg. 404, de 14/2/1934 (B. O. 7/34, I série) Cria medidas de proteção pecuária
que beneficiam os criadores indígenas.
b) Dip. Leg. 919, de 5/8/1944 (B. O. 32/44, I Série) Aprova o Estatuto do Agricultor
Indígena.
c) Dec. 34.633, de 28/5/1945 (B. O. 31/45) Cria o Fundo de Crédito Rural destinado a
conceder empréstimos aos supracitados agricultores indígenas.
d) Port. 6.408, de 6/4/1946 (B. O. 14/46, I Série) Fixa em 250$00 a Taxa Social criada
pelo Art. 53º, do Dip. Leg. 919.
e) Port. 9.893, de 23/5/1953 (B. O. 21/53) Aprova o Regulamento das Granjas
Administrativas.
f) Dip. Leg. 1.562, de 15/10/1955 (B. O. 42/55, I Série) Regulamenta o comércio
pecuário em Gaza e L. Marques e prevê a cobrança de uma taxa de fomento (Ver Despacho
no B. O. 3/56).

7º-Assistência e Previdência Social

a) Port. 64, (B. O. 37/21) Cria medidas de proteção à mulher indígena, especialmente à
que se encontra em estado de gravidez;
b) Port. 176, (B. O. 35/25) Constitui a Comissão de Previdência e Assistência Social com
o objetivo de melhorar as condições de vida das populações indígenas;
c) Dip. Leg. 79, (B. O. 24/28) Concede pensões mensais a assalariados indígenas que não
possam continuar a trabalhar, por doença incurável ou idade avançada;
d) Port. 1.515, (B. O. 47/31) Cria um fundo permanente à ordem do diretor dos Serviços
dos Negócios Indígenas, para prestar socorro aos pobres e aos inválidos;
e) Dip. Leg. 668, (B. O. 42/39) Estabelece para os assalariados com mais de quinze anos
de serviço, o direito a uma pensão de invalidez, quando dispensados por motivo de doença
incurável ou idade avançada;
224
f) Dip. Leg. 812, (B. O. 41/42) Torna extensivos aos serviçais indígenas dos corpos
administrativos a regalia concedida pelo Dip. Leg. 668;
g) Dip. Leg. 1.512, (B. O. 16/1955) Insere disposições relativas aos Serviços de
Assistência Pública.

8º-Assistência Espiritual e Ensino

a) Dip. Leg. 168, de 3/8/1929 (B. O. 31/29, I Série) Regula o funcionamento das escolas
particulares do ensino primário para indígenas, dirigido por missões religiosas de diversas
confissões e nacionalidades, estabelecidas ou a estabelecer no território;
b) Port. 1.907, de 25/3/1933 (B. O. 14/33, I Série) Aprova o Regulamento da Escola de
Habilitação de Professores Indígenas;
c) Port. 2.141, de 2/12/1933 (B. O. 48/33, I Série) Aprova o Regulamento das Escolas
Profissionais para Indígenas do Sexo Feminino (substitui o aprovado pela Port. 1.117, de
17/5/1930);
d) Port. 2.154, de 30/12/1933 (B. O. 52/33, I Série) Aprova o Regulamento das Escolas
Distritais de Artes e Ofícios para Indígenas do Sexo Masculino (substitui o aprovado pela
Port. 677, de 25/2/1928);
e) Port. 2.170, de 17/1/1934 (B. O. 3/39, I Série) Aprova o Regulamento do Ensino
Primário Rudimentar (substitui o aprovado pela Port. 1.114, de 17/5/1930);
f) Port. 2.969, de 10/2/1937 (B. O. 6/37, I Série) Revoga o Regulamento da Escola de
Habilitações de
Professores Indígenas aprovado pela Port. 1.907; g) Port. 6.668, de 16/11/1946 (B. O.
21/47, I Série) Estabelece normas reguladoras do ensino especialmente destinado aos
indígenas, referido no capº 8 do Estatuto Missionário. Estabelece programas de ensino
rudimentar.

Obs. – Convém salientar a importância das seguintes leis fundamentais,


promulgadas na Metrópole e aplicadas ao ensino e à assistência espiritual dos
indígenas:

a - Dec. 31.207, (B. O. 23/41, I Série) Promulga o Estatuto Missionário.


b - Port. Minist. 14.440, (B. O. 26/53, I Série) Esclarece que o ensino indígena confiado
às missões católicas pelo Art. 66º, do Dec. 31.207, é considerado oficial por força do Art. 68º
do referido decreto e, desse modo, é facultado independentemente dos credos religiosos
seguidos pelas respetivas famílias.
225
II - Principal legislação genérica referente a indígenas, que foi promulgada na
Metrópole, e que em 1959 vigorava em Moçambique

a) Docs. 16.473 e 16.474 (B. O. 11/29, I Série) De acordo com as conclusões do Parecer
84, de 22/11/1955, da Procuradoria da República junto da Relação de L. Marques – parecer
homologado no mês seguinte pelo governador-geral – os dois decretos supracitados não se
podiam considerar totalmente revogados pelo Dec. Lei 39.666 (B. O. 27/1954, I Série) que
criou o Estatuto dos Indígenas Portugueses da Guiné, Angola e Moçambique. Entre as
disposições do Dec. 16.473 que deviam permanecer em vigor destacava-se a constante do Art.
22º. Assim sendo, não seriam eliminadas as Comissões de Defesa dos Indígenas, cuja
competência se encontrava definida no Art. 23º;
b) Dec. 16.999 (B. O. 23/41, I Série) Aprova o Código do Trabalho dos Indígenas nas
Colónias Portuguesas de África;
c) Dec. 23.229, (B. O. 51/33. Supl.) Aprova a Reforma Administrativa Ultramarina;
d) Dec. 31.207, (B. O. 23/41, I Série) Promulga o Estatuto Missionário;
e) Dec. 35.461, (B. O. 15/46, I Série) Regulamenta o matrimónio no Ultramar;
f) Lei 2.048 (B. O. 25/51) Na Constituição Política da Nação Portuguesa foram
integrados preceitos destinados ao Ultramar, mormente às populações indígenas (Título VII,
Capítulo III, Art 141º e seguintes);
g) Lei 2.066 (B. O. 29/53, I Série) Lei Orgânica do Ultramar Português (Capítulo VIII,
Secção VI, Bases LXXXIV a LXXXVI);
h) Port. Minist. 14.440 (B. O. 29/53) O ensino confiado às Missões Católicas, nos termos
do Art. 66º do Dec. 31.207, deve ser considerado oficial por força do Art. 68º que se lhe segue
e, por conseguinte, ministrado independentemente de crenças religiosas dos interessados;
i) Dec. Lei 39.666 (B. O. 27/54, I Série) Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses
da Guiné, Angola e Moçambique;
j) Dec. 39.817 (B. O. 46/54, I Série) Promulga o Estatuto dos Julgados Municipais das
Províncias da Guiné, Angola e Moçambique;
k) Dec. Lei 39.997 (B. O. 6/55, I Série, Supl.) Promulga a Reforma Prisional do
Ultramar;
l) Dec. 40.405 (B. O. 51/55, I Série) Substitui o Dec. 35.844, que regula a cultura do
algodão no Ultramar. O seu capítulo II – Arts. 34º a 36º – trata das sociedades cooperativas de
produtos derivados do algodoeiro;
m) Dec. 40.703 (B. O. 32/56, I Série) Estabelece para o Ultramar – com exceção do
Estado da Índia – o regime judiciário de proteção e correção de menores que revelassem
tendências criminosas, libertinas, viciosas ou imorais;
n) Dec. 41.578 (B. O. 16/58, I Série) O seu Art. 22º previu a emissão, a favor de
militares, de certificados com validade idêntica aos referidos no Art. 60º do Dec. Lei 39.666.
226
ANEXO II

Impostos, taxas e emolumentos a que estão sujeitos os indígenas

Antes da publicação do Regulamento da Policia das Circunscrições, as taxas a pagar


pelos indígenas achavam-se identificadas nos despachos cujas datas e boletins oficiais a
seguir se indicam:
1º – 31/12/1952 (B. O. 52, I Série, 2º Supl.); 2º – 31/7/1953 (B. O. 52, I Série);
3º – 7/10/1953 (B. O. 42, I Série); 4º – 7/10/1953 (B. O. 42, I Série).
Após a entrada em vigor do Regulamento supracitado, aprovado pela Port. 12.053 (B.
O. 31/1957), é possível agrupar-se, como após se indica, a legislação relativa ao regime
tributário. Convêm no entanto acentuar desde já que o dito regulamento veio a ser substituído
e aprovado pela Port.17.548 (B. O. 9, II Supl., 1964) e, ainda, ligeiramente alterado pela Port.
17.888 (B. O. 30, 1964):
1º - Taxa pessoal anual Dip. Leg. 1.690, de 20/7/1957 e Port. 14.299, de 13/9/1960;
2º - Contribuição de registo de transmissões entre indígenas e não-indígenas
Circular 14/3ª/19, de 30/11/1954, da Direção dos Serviços de Fazenda e Contabilidade;
3º - Contribuição predial urbana (propriedades de indígenas arrendadas a não-
indígenas) Nº 6 do Art. 3º do Dip. Leg. 861, de 31/7/1943;
4º - Contribuição braçal Parágrafo único do Art. 8º do regulamento aprovado pela
Port. 4.963, de 26/12/1942;
5º - Taxa de fomento pecuário Nos termos de um despacho especial (B. O. 3, I Série,
de 1956) a taxa prevista no Art. 14º do Dip. Leg. 1.562, de 15/10/1955, foi tornada extensiva
aos indígenas que apresentassem carne para venda;
6º - Taxas radioelétricas (Dip. Leg. 1.112, de 31/7/1948, recentemente revogado pelo
Dip. Leg. 2.008, de 24/9/1960) Nos termos de um despacho especial (B. O. 13, I Série, de
1956) as taxas radioelétricas passaram a ser aplicáveis aos indígenas que possuíssem
radiorecetores;
7º - Taxas de trânsito Nos termos de um despacho especial (B. O. 44, I Série, de 1956)
passaram a ser aplicáveis aos indígenas possuidores de veículos automóveis, as taxas
constantes das tabelas anexas ao regulamento do Código da Estrada;
8º - Taxas e emolumentos revistos no Regulamento de Polícia das Circunscrições
Nos termos do parágrafo 1º do art. 143º da Port. 12.053, de 3/8/1957 (modificado pela Port.
13.709, de 30/1/1960), os indígenas passaram a pagar um terço das taxas, licenças e
emolumentos referidos no corpo do artigo, com exceção da taxa de matrícula fixada no 1º da
Tabela B a qual mereceu isenção;
9º - Taxa de licença de caça (Dip. Leg. 1.982, de 8/6/1960) Pela licença Modelo A
(indígenas) passou a ser devida a taxa de 50$00 (Anexo XI ao Regulamento de Caça);
10º - Emolumentos da tabela em vigor nas capitanias dos portos (Anexa à Port.
6.400, de 28/3/1946) Nos termos do Aviso (B. O. 51, II Série, de 1960) passaram a recair
sobre os indígenas, ficando apenas isentas as embarcações com menos de uma tonelada de
arqueação;
11º - Taxa de registo para serviço eventual. Passou a ser aplicável aos indígenas, em
obediência ao Art. 15º da Port. 14.387, de 22/10/1960.
227

18º
DOCUMENTO
Este documento encontrado na gaveta de uma mesa-secretária da
sede lisboeta da Companhia da Zambézia. Tudo indica que hajam
sido suprimidas algumas folhas versando assuntos mais
melindrosos. Infere-se no texto que o autor fazia parte dos corpos
gerentes de alguma empresa e que era membro da Associação
Comercial. Pela referência que faz ao Dr. Marcelo Caetano como
Ministro das Colónias (do início de setembro 1944 ao início de
fevereiro 1947), pode garantir-se que o documento coincidiu com a
visita ministerial efetuada em 1944/5. Não foi microfilmado porque
não consegui identificar o autor.

Aspetos Negativos da Implantação do Regime Corporativo em


Moçambique
Faltam as duas primeiras folhas.
***
(Pág. 3)
Pouca fé pomos nos tratados comerciais, especialmente naqueles que se fazem com
nações mais poderosas, lembrando-me, ao acaso, do célebre tratado de Ultrech, pelo qual
Portugal se comprometeu a desenvolver a Agricultura e, prejuízo da Industria e em proveito
da indústria de outro país que a troco de umas libras em ouro levava toda a nossa produção,
controlando as nossas indústrias e não as deixando desenvolver; tenho sido tão nefasta, que
ainda se ressente nestes dias, pois que a mão-de-obra em Portugal é a mais baixa da Europa, e
a manufatura fica mesmo assim mais cara do que a do estrangeiro. Foi necessário recorrer-se
ao expediente aduaneiro para podermos continuar com a laboração das nossas fábricas e
colocar nas Colónias os nossos produtos metropolitanos. O expediente aduaneiro serve
somente como recurso transitório, porque provoca a reação nos outros interessados e gera um
círculo vicioso, trazendo desastrosas consequências à economia particular interna, que é
obrigada a pagar todas as diferenças, perdendo assim um poder de maior aquisição e os meios
de intercâmbio internacional.
Moçambique já não é uma colónia na verdadeira aceção da palavra. Moçambique é uma
parcela portuguesa, praticamente uma filha que está a atingir a maioridade, tendo dado já
sobejas provas da sua consciência nacional, e não deve ser olhada como uma fazenda de
exploração em favor da Metrópole. Merece ser tratada como uma leal e indispensável
colaboradora, que poderá contribuir para melhorar as condições de vida da mãe pátria.
Para que Moçambique possa desenvolver-se industrial e comercialmente, necessita de
Autonomia Administrativa e Económica. Não é humanamente possível governar-se com
acerto e oportunidade à distância de 12.000 quilómetros, como não é possível concentrar a
Administração de toda a Colónia em L. Marques, sem deixar de atender às inúmeras
necessidades do centro e norte da Colónia, para que as riquezas existentes sejam devidamente
exploradas. Quem tenha visitado ou vivido na Zambézia e no Niassa deplora tristemente o
abandono em que vivem aquelas duas vastas províncias de Moçambique (segue-se a pág. 4)
onde há pouco conforto, pouca higiene e nenhum progresso. O comércio é exercido quase
exclusivamente por indo-britânicos, que têm grandes organizações de importação e
exportação. Os residentes portugueses são quase todos funcionários públicos, que têm ali
relativamente pouca permanência não criando interesses especiais nessas paragens onde
rareiam as escolas e falha a assistência médica, base para uma fixação e colonização europeia.
228
Não podemos alimentar a ilusão de que está no poder militar a manutenção da nossa
soberania com base nos efetivos enviados pela Metrópole onde se não fabricam os modernos
engenhos bélicos, pois a guerra moderna é industrial e científica. Levaria no entanto muitos
anos a constituir quadros efetivos e eficientes recrutados entre os nativos, necessitando de
montar uma indústria que pudesse bastar às principais necessidades. Mas esta época já passou
e resta-nos apenas um recurso: fazer tratados comerciais.
A convenção com o Transvaal não é um tratado comercial, quando podia e devia ser.
Alienamos a nossa maior riqueza que é a mão-de-obra indígena, a troco de umas libras e de
um tráfego para o Porto e Caminhos-de-ferro, cujo emprego é de inteiro beneficio para o
Rande, por ser o caminho mais curto e mais económico para o mar; além de que se tornam
nómadas os pretos em convívio com os estrangeiros, dando como resultado que a população
nativa do sul do Save não tem aumentado nos últimos 40 anos, quando deveria aumentar.
Precisamos de fazer tratados comerciais, em base de igualdade com os países produtores
de equipamento industrial e que necessitam das nossas matérias-primas. Paralelamente,
devemos estreitar mais as nossas relações comerciais com a Metrópole que nos está a vender
por preços exorbitantes o que de outro mercado não podemos trazer sem nos compensar com
uma maior importação dos nossos produtos (assim como o Açúcar e o Tabaco que pagam
direitos proibitivos) comprando-nos o algodão quase ao mesmo preço de antes da guerra e
vendendo-nos (segue-se a pág.5) os tecidos cinco vezes mais caros. Quando digo ao quase
mesmo preço antes da guerra, quero dizer o algodão caroço, produzido pelos indígenas e não
o preço que os concessionários das respetivas zonas recebem e que a Colónia nada aproveita.
E o lucro auferido pelas Companhias concessionárias de capitais Metropolitanos em nada
beneficia a terra Moçambicana. Para este produto precisamos de estabelecer também normas
de comércio para que os nativos que cultivam o algodão deixem de andar despidos e tenham
poder de compra. Os tratados comerciais são sempre operações de crédito com base na troca
de produtos, tendo como vantagem a colocação sistemática de certa produção, que se fomenta
e desenvolve para poder cumprir as determinações que forçosamente derivam dos tratados,
melhorando as condições económicas por virtude da maior produção de que o comércio
participa em larga escala. É ao comércio que compete sugerir ao governo o entabulamento de
relações comerciais com os estados que são compradores dos nossos produtos e fornecedores
dos que precisamos de importar.
Quando as Naus do Infante se fizeram ao mar enfrentando os perigos, tiveram como
finalidade descobrir o caminho para a Índia de onde então chegavam especiarias levadas por
caravanas cujos preços elevadíssimos oneravam os transportes atingindo essas mercadorias
cifras exorbitantes. Nessa altura, já a mira do comércio e intercâmbio com o Oriente impelia
esse punhado de portugueses a escrever uma das páginas mais brilhantes da nossa história
marítima, facto que trouxe a Portugal ilimitadas honrarias e riquezas.
Ao comércio de Moçambique cabe também a vez de tomar a iniciativa de uma grande
obra de desenvolvimento. Embora sejamos poucos, valerá mais a qualidade do que a
quantidade e entre os nossos colegas existem já valores muito apreciáveis, que num esforço
comum poderão realizar prodígios, contribuindo com a sua colaboração para se despertar a
Colónia do marasmo em que se encontra fazendo-a ocupar economicamente o seu lugar neste
vasto e rico território onde o Estado se limita a cobrar o imposto e a pagar aos seus
funcionários e onde o comercio vive apenas dos fornecimentos que faz a um e a outro (segue-
se a pág. 6).
Para se comerciar é preciso saber onde se pode comprar e onde e a quem se pode
vender. Durante a guerra, cujo rescaldo ainda não acabou, a vida tem sido excecionalmente
fácil, porque todos os produtos que até 1936 não tinham sequer cotação no exterior têm sido
vendidos por alto preço devido à falta de produção nos países estrangeiros e à sua
229
desorganização; mas já não vem longe o dia em que a colocação dos nossos produtos se torne
difícil, senão impossível. Então a atual aparente prosperidade se tornará em caos; o que se
pode e deve evitar que aconteça, fazendo tratados comerciais a longo prazo para a colocação
efetiva dos produtos que estamos a exportar podendo importar aqueles que são vitais à
existência e ao desenvolvimento económico deste país que tantos trabalhos, canseiras e
sangue custou aos nossos antepassados a quem devemos prestar homenagem trabalhando
sempre para o engrandecimento do nome de Portugal.
A nossa agricultura ainda está na infância e a não ser meia dúzia de carolas que a ela
têm prestado atenção, quer fazendo granjas, incutindo no ânimo dos indígenas o trabalho da
terra obrigando-os a produzir; quase nada se tem feito no sentido da industrialização da
lavoura que é afinal a base da existência humana. Sem uma agricultura económica não é
possível dispensar braços para outras indústrias e o seu desenvolvimento económico nunca se
poderá fazer. Sem produção não se pode fazer comércio; e só esse interessa à nossa laboriosa
classe.
Para obviar à nossa desorganização, o governo Central (criou em 1939) e mandou para
cá os organismos chamados de Coordenação Económica. Como todos os produtos de
importação, cá se adaptaram e aclimataram; e são mais uns fregueses do comércio local e do
Conselho de Câmbios para transferência de mesadas que, diga-se de passagem, algum
beneficio trouxeram, muito embora não tanto como era de esperar.
Não vou aqui enumerar os defeitos desses organismos, o que seria fastidioso, mas
também não defendo a anarquia em que antes se vivia e – perdoem-me a ousadia de dizer –
ainda continua, não somente por defeito dos homens, mas também dos seus sistemas uma vez
que (segue-se a pág.7) se mantém o princípio de que toda a gente é desonesta, princípio e
sentimento inteiramente errado, bastando que se atuasse inversamente, para que a máquina
social adquirisse quase toda a eficiência que lhe falta, com a vantagem de se castigarem os
culpados apenas, e não tendo a todos por desonestos como agora acontece.
Senão, vejamos: Para se regulamentar a distribuição mais equitativa, recorreu-se ao
imposto suplementar em muitos artigos, que lhe vieram agravar o preço de aquisição, que
todos pagamos, sem contudo se ter evitado o mercado negro, do qual os velhos comerciantes
pouco poderão ter lucrado, mas sim os particulares que melhor avisados, fizeram
açambarcamentos completamente impunes.
Estes, encheram-se de ganhar dinheiro, comprando prédios e fazendo sociedades
comerciais, como se poderá conhecer, se contarmos o numero de novas sociedades e firmas
individuais ou sucessoras que durante a guerra e depois se estabeleceram, na maior parte
desconhecidos, que aproveitando a confusão e as possibilidades oferecidas pelo labirinto das
formalidades que os vários organismos exigiam, conseguiram fazer operações vantajosas, que
os animaram a ingressar na nossa profissão.
Como acabo de expor, o mal reside na aplicação das leis e dos regulamentos, castigando
somente os comerciantes estabelecidos ou os gerentes e não os verdadeiros responsáveis, quer
sendo eles os empregados ou os particulares.
Fui uma vez multado pelo Tribunal de Repressão da Especulação, por um crime que o
verdadeiro culpado confessou ter praticado, sem minha autorização; mas como era eu o
gerente, tive que sofrer o enxovalho, ficando impune o confesso transgressor. O mesmo se dá
com os chamados exatores de Fazenda nos serviços públicos. Que são chamados à
responsabilidade por faltas praticadas pelos seus subordinados, respondendo criminalmente,
mesmo que se prove a impossibilidade de ter podido fiscalizar.
Portanto, os Organismos de Coordenação Económica (segue-se a pág.8) apenas vieram
tornar mais difícil a já muito complicada máquina comercial, tendo apenas a vantagem de
230
haverem mandado construir um Palácio luxuoso para a sua instalação; vantagem que nem esta
Associação Comercial, nem a Câmara do Comercio usufruíram, para só falarmos nos obreiros
do mesmo ofício e não incluirmos na comparação a Agricultura, a Pecuária, a Veterinária e
tantos outros organismos vitais à produção instalados em mansardas alugadas.
A referência que acabo de fazer aos Organismos de Coordenação Económica, não visa
os seus dirigentes nem empregados, quase todos pessoas muito amáveis e prestáveis,
desempenhando funções muito espinhosas por motivo dos respetivos regulamentos, que
somente com inteligência e boa vontade conseguem vencer em cargos tão ingratos muito
embora bem remunerados.
A nossa gente, especialmente aqueles que se habituaram a um certo à vontade, que se
desfrutava antes de cá se estabelecerem estes organismos fiscalizadores, não se amoldaram a
essa ideia, restando apenas a vantagem para os que melhor se adaptaram e para quem corre a
maior soma de possibilidades.
Em Moçambique, onde está praticamente quase tudo por fazer, muito embora já se
tenha feito alguma coisa, ainda se não estabeleceram normas para um plano a realizar a longo
prazo, visando o completo desenvolvimento de todas as nossas possibilidades económicas,
que uma vez desenvolvidas resultarão em maior intercâmbio comercial, que interessa
especialmente à nossa classe e ao público em geral. Para se assegurar a execução de um plano
que não poderá iniciar-se com os exíguos recursos locais, isto é, sem importarmos o
equipamento industrial de que carecemos, outro meio não nos resta do que fazer tratados
comerciais.
Há entre nós um grande desequilíbrio económico, em virtude de ter desaparecido o
concorrente Alemão, que durante muitos anos foi o nosso maior fornecedor assim como o
maior comprador dos nossos produtos de exportação. Nota-se que presentemente não temos
mercado estável para os nossos produtos de exportação que me consta seguirem (segue-se a
pág.9) para a Suécia, Jugoslávia, Suiça e América no que respeita ao sisal.
Atualmente, a importação é feita da América, Inglaterra, Suécia e também da Suiça, no
que se refere a equipamento industrial, recorrendo-se ao Banco de Portugal, como eixo de
transferências, visto que cá apenas conseguimos divisas da União sul-africana, com que se
fazem os depósitos de cambiais de exportação; manobra de precários resultados, que não
permite ao comércio liquidar as suas obrigações à chegada da mercadoria, fazendo depósitos
em moeda local, esperando depois que lhe sejam concedidas as cambiais e aguardando que os
Bancos obtenham as respetivas divisas, sujeitas às despesas de telegramas e outras, que
encarecem a mercadoria. Por enquanto, essa prática ainda é suportada em virtude da falta de
concorrência, importando-se muito menos do que se necessita e deseja; mas se todas as
encomendas que o comércio local tem colocadas, forem executadas de um momento para o
outro, estaremos a braços com a maior crise que jamais Moçambique experimentou. Por isso
há que prevenir e não que remediar, uma vez que os Organismos de Coordenação Económica
apenas se limitam a cobrar os adicionais para viverem, e a fixar preços em uma ou outra
mercadoria. Muito embora se tenham estabelecido normas para uma grande parte e não se
exerça a devida fiscalização, a anarquia de preços neste mercado é confrangedora, como já foi
apreciada na imprensa dos nossos vizinhos do Transvaal. São muitos os intermediários,
principalmente os abelhudos, comerciantes de ocasião e sem escrúpulos, que desonram a
nossa laboriosa classe.
O maior desaforo de especulação é praticado pelos exportadores da Metrópole, que
sabendo das nossas necessidades e da impossibilidade de importarmos de outras origens e
ainda gozando de uma proteção sem reciprocidade, abusam dessas circunstancias para nos
explorarem, como se isto fosse uma roça de recursos inesgotáveis.
231
O comércio local defende-se destas violências por enquanto transferindo para os
consumidores esses encargos, fomentando a carestia da vida até ao exagero do que resulta o
desequilíbrio económico e financeiro que arruinará depois, por muitos anos, todo o (segue-se
a pág.10) desenvolvimento industrial se não puser também em risco a nossa soberania – que
longe vá o agouro! – muito bem podemos evitar.
É urgente, é inadiável que Moçambique adquira a sua personalidade financeira e
económica; de contrário, não podemos aproveitar as riquezas de que dispomos; estamos
sujeitos quando passar a presente crise de produtos que assoberba a maior parte do mundo, a
não encontrarmos compradores para a nossa já reduzida produção. Essa personalidade
somente se pode firmar, se negociarmos tratados diretos com os nossos possíveis
compradores, que em troca nos fornecerão os produtos e equipamento industrial de que
carecemos para estabelecer o baixo custo da produção. Esta precisa de ser expandida
atendendo a que por ser agora manual, fomenta a absorção desnecessária de mão-de-obra,
além do que não nos deixa concorrer com outros países coloniais, cuja industrialização
também nos havia afetado anos antes da primeira grande guerra mundial. Essa guerra só nos
trouxe um novo alento que desapareceu tão depressa quanto a sua industrialização se
restabeleceu. E o mesmo acontecerá com esta guerra.
É preciso não nos iludirmos com a aparente prosperidade baseada somente no grande
numerário que foi preciso timbrar para ocorrer às anormais transações, realizadas na maior
parte a preços astronómicos, muito embora em quantidades reduzidas. Para viver precisamos
de uma certa quantidade, que não poderemos adquirir com papel, mas sim com produtos do
nosso solo e do nosso labor, sendo necessário que haja quem os compre ou receba em troca do
equipamento essencial à conversão do sistema pautal para o industrial. Sem isto, estamos
condenados a permanecer no primitivismo, que provocará a ruína da nossa colonização em
proveito de outras melhor apetrechadas pois que se nota uma pressão latente de outros povos a
espreitarem e a aguardarem o momento propício para assaltar os nossos mercados. Está bem
patente o desenvolvimento que antes da ultima guerra, no norte da colónia, os alemães e os
holandeses estavam a promover asfixiando e absorvendo o comércio indiano e até o
português, caso que não tardará a ressuscitar criando-nos depois um problema que (segue-se a
pág. 11) não será de fácil resolução. Este é o grito de um prático, de um português que se
preza, avisando os seus compatriotas já que sozinho não pode agir, neste meio onde o
comodismo, o conformismo e ainda a subserviência campeiam, e se marcha aos baldões da
sorte sob as influências alheias, quando poderíamos e deveríamos adquirir a nossa consciência
colonial e traçar o nosso rumo.
Em todo o mundo os povos procuram restabelecer a independência económica e seria
ilógico que ficássemos alheios, de braços cruzados à espera do desenrolar dos
acontecimentos. Temos que agir, porque parar é morrer, e como já salientei, cumpre-nos não
esquecer o dever de honrar as cinzas dos nossos antepassados, que nos legaram a
administração deste vasto e rico território, pacificado à custa de muitos sacrifícios e canseiras,
cabendo-nos agora a vez de o valorizarmos e mostrarmo-nos dignos de conservar tão invejado
património.
Compete aos organismos económicos de Moçambique propor aos poderes constituídos
e em especial ao governo Central, as medidas que julgamos necessárias para que o nosso
trabalho progrida e frutifique, mantendo-se a unidade, ameaçada nesta hora de incertezas, que
nem os grandes estados nossos congéneres sabem para onde caminham. Não podemos ficar
indiferentes e inativos à transição pela qual o mundo está passando, nem ousemos esperar que
outrem nos indique o caminho que se deve trilhar, porque só a nós cabe e só a nós compete
tomar uma orientação que se possa enquadrar neste conjunto, que é produzir, vender e
comprar.
232
Não faltam nesta terra de Moçambique elementos de trabalho, inteligência e tenacidade,
capazes de estabelecer uma organização modelar, havendo a vantagem de dispormos de uma
população nativa ainda mal aproveitada que uma vez devidamente instruída e educada nos
métodos modernos de produção, pode e deve contribuir, conjuntamente com os colonos
brancos de boa condição, para multiplicar a nossa atividade, promovendo o nosso
engrandecimento com participação no comércio internacional.
Falta a pág. 12. (Segue-se a pág. 13) No banquete oferecido pelos organismos de
trabalho e produção de L. Marques ao senhor ministro das Colónias, senhor Dr. Marcello
Caetano, no discurso por ele proferido, afirmou que lhe haviam sugerido que se contraíssem
empréstimos em L. Marques e em toda a Colónia para se realizarem determinadas obras que
ele ministro muito gostava de ver concretizadas acrescentando que se deveriam fazer estudos
preliminares de modo a que o dinheiro resultante desses empréstimos, fosse empregado em
proveito de obras necessárias e de imediata realização. Que havia criado para a Colónias o
Gabinete de Urbanização Colonial, como parte do programa de realizações planificadas.
Porém os meses e os anos escoam-se uns após outros em estudos que depois de completos
como aconteceu com a Irrigação do Vale do Limpopo, não terão possibilidades económicas,
nem haverá quem nos empreste os meios para a sua realização com a agravante de haverem já
passado à posteridade os atuais titulares das respetivas Pastas.
Como não podemos levar Moçambique para Lisboa, para em melhor clima e mais
confortável meio fazermos os estudos que somente cá serão possíveis trabalhando-se em
terrenos infestados de carraças e febres malignas, só na Colónia poderão ser exequíveis. Há
estudos e planos a estabelecer, que por si só absorvem a nossa capacidade passando a
enumerar de memória os trabalhos mais urgentes e inadiáveis: Eletrificação da região de L.
Marques, incluindo a cidade, os Caminhos-de-Ferro, elevação e abastecimento de água,
Fábrica de Cimento e outras sugerindo-se para agora uma Central Geradora térmica, instalada
possivelmente na Moamba, comum para todas as necessidades, obtendo-se assim energia
muito barata para animar o desenvolvimento da industria, quase inexistente, tanto
manufatureira como Agrícola e Pecuária.
Urbanização da Cidade da Beira e de Quelimane, abastecimento da água potável nessas
duas cidades cujo atrofiamento se faz notar por falta de indispensáveis provisões.
Irrigação dos Vales do Limpopo, Incomáti e Umbeluzi onde estudos foram feitos e
refeitos e nunca tiveram mais atualidade que no tempo presente.
Conclusão das vias de comunicação e abertura de novas vias, quer por estradas,
caminhos-de-ferro e fluviais.
Intensificação das pesquisas mineiras, com equipamento moderno, para as quais
existem planos elaborados por técnicos.
Falta página 14
PRESUMÍVEL FIM
233

19º
DOCUMENTO
Homenagem aos que contribuíram para demarcar e cartografar as
fronteiras acordadas pelos tratados políticos
[Aos leitores interessado na vida e obra deste grande homem aconselha-mos a leitura de “Gago Coutinho –
Geógrafo”, nº 58 (Secção de Coimbra) da Junta de Investigações do Ultramar/Agrupamento de Estudos de
Cartografia Antiga de 1970]

Relatório enviado de Quelimane, a 22 fevereiro 1901, ao conselheiro


governador-geral da Província de Moçambique pelo comissário da
delimitação, então 1º tenente Gago Coutinho
(exemplo de uma expedição mal preparada)

“Tenho a honra de comunicar a V. Ex.ª o resumo dos trabalhos a que, por ordens de Sua
ª
Ex. o ministro da Marinha, procedi na Província de Moçambique.
Apresentei-me ao governador de Quelimane a 5 setembro último com instruções para
continuar a delimitação da linha W da fronteira de Moçambique com a B. C. A., interrompida
o ano passado. Só em 14 outubro pude dar princípio aos trabalhos de campo, por dificuldades
de instrumentos e de transportes.
Seguindo do Forte M’lengene, em 14º 42’ lat S, continuamos em boa harmonia com a
comissão inglesa. Em 27 outubro, tendo concluído a demarcação até 15º 54’ S, fui obrigado a
sair da fronteira e vir para Chilomo, para reorganizar a caravana, não só porque a região que
atravessávamos estava seca e despovoada como também não havia mantimentos, por causa da
fome que então assolava a Zambézia, e sobretudo porque os meus carregadores, contratados à
pressa, fugiram em grande número sem terem recebido maus tratos; e assim larguei a 31
outubro da povoação Mikorougo, com 70 homens que mal chegavam para carregar os objetos
indispensáveis, ficando por isto naquela povoação bastantes cargas.
Em Chilomo combinei com o delegado inglês recomeçar o trabalho do sul. A Comissão
inglesa, cujos carregadores eram de confiança, partiu a 4 novembro e seguiu ao longo da
fronteira. Por meu lado, tendo obtido, com o auxílio valioso do Residente do Chilomo,
Henrique Costa, os carregadores do prazo, e recebido pelo vapor as cargas deixadas atrás e os
mantimentos enviados pelo Residente da Angónia, tenente Brito, sem o que não podia
trabalhar, só pude partir a 13 novembro, começando os trabalhos topográficos em Cheuenga
em 15 novembro. E caminhando ao longo da fronteira, sem encontrar mais do que notas do
delegado inglês, fui reconhecendo que no tratado se tinha cometido, a meu ver, um erro,
julgando-se que a linha divisória das águas era uma linha definida; porque desde o paralelo de
Cheuenga até ao Monte Muanambidzi as águas das vertentes E dos montes não correm para o
Chire, mas para um rio pantanoso chamado Ndinde, que corre para o Ziu-Ziu e não o Chire.
Esta parte da fronteira era pois incerta. Só encontrei a Comissão inglesa além do Monte
Muanambidzi, no dia 20 novembro. À minha dúvida replicaram que durante as cheias de
Chire extravasava por vários mucurros para Ndindo, e que portanto este rio devia ser
considerado Chire. Não me convenceu o argumento; mas como imprudentemente já há alguns
anos um engenheiro português tinha posto, marcos cimentados ao longo da linha E-W até aos
montes, declarei que, considerando a linha definida no tratado de 91 como duvidosa, aceitava
compensação em outro lugar mais conveniente; e, para não motivar mais despesas aos dois
governos, resolvemos demarcar duas fronteiras para ser a escolha na Europa, depois de
decidida a questão diplomaticamente, sem ser necessário voltarmos ao terreno.
234
Como as chuvas já tinham começado, fomos apressando os trabalhos; a 3 dezembro
tínhamos concluído a demarcação e a 8 dezembro eram assinadas as atas, sendo para louvar
que a Comissão inglesa se portou lealmente para connosco, procurando desinteressadamente
fixar a verdadeira fronteira e tratando-nos sempre como representantes de uma potência
poderosa.
Propusemos na ata que a ilha de Malu, em litígio, e de menos de uma milha quadrada de
área, fosse trocada pelas 20 milhas quadradas, saldo da grande fronteira que Portugal ficava
devendo, para aproveitar os picos mais facilmente reconhecíveis.
Não remeto a V. Ex.ª cópia da carta da fronteira, porque não estão ainda concluídos os
trabalhos e cálculos de gabinete; e, de resto, de nada serviria tal mapa porque, como V. Ex. ª
sabe, a fronteira proposta pela comissão mista só tem valor definitivo depois de aprovada
pelos dois governos.
As minhas instruções ordenavam-me também a escolha da concessão no Nyassa; à
insistência inglesa em recomeçar a demarcação ao norte, observei que ao terminarmos os
trabalhos ao sul não teríamos provavelmente tempo para voltar ao norte ao lago e escolhermos
a concessão antes de 16 dezembro, como fora combinado entre os governos; e esta dificuldade
foi evitada porque o comissário inglês me ofereceu e conseguiu ampliar por mais seis meses
aquele prazo.
As minhas instruções diziam-me que conferenciasse com o Residente da Angónia sobre
o ponto mais conveniente nas margens do lago; ao telegrama que a este respeito fiz a V. Ex. ª
recebi em 7 dezembro, em Chikuama, a resposta telegráfica mandando escolher a concessão
do Nyassa entre M’Lungózi e Chipoza no local estudado pelo Residente da Angónia. Como o
telegrama chegasse estropiado, e este funcionário no seu relatório de que tenho cópia receasse
que a B. C. A. não o dissesse (?), telegrafei pedindo ordens precisas sobre se havia insistir
exatamente naquele local embora fosse – segundo me informavam – alagado na época das
chuvas e portanto impróprio para o fim; mas como chegasse a confirmação do telegrama,
apesar de a minha dúvida não estar resolvida, eu não podia insistir mais e decidi usar da parte
das instruções que em último caso me facultavam a escolha segundo o meu critério, tendo
partindo para Zomba, onde cheguei a 1 janeiro 1901. Depois de cumprimentar o Comissário
W. H. Manning, e de saber que as vistas sobre o nosso local tinham sido postas de parte, parti
de Zomba em 3 janeiro servindo-me dos carregadores e cavalos postos à minha disposição
pelo Comissário Manning; no Chire esperava-nos a Canhoneira “Dove” e no lago a
Canhoneira “Pioneer” na qual a comissão mista se dirigiu ao local escolhido, ao sul do rio
M’lengeri; aqui foi a 8 janeiro demarcada a concessão nas condições da ata de que envio
cópia. O local é, conforme informação do Residente da Angónia, desabrigado durante a
monção do SW, que no lago sopra do SE, como o geral; e por trás há uma lagoa da papirus,
onde atualmente havia dois pés de água. Encostei-me ao rio, que atravessa um canto da
concessão, para durante os seis meses do mau tempo podermos nele ter abrigadas as
embarcações de pequeno calado, que porventura venhamos a ter no lago.
A 2 janeiro estávamos de volta em Zomba; e, ali, conferenciando com o comissário
Manning procurei, de acordo com as instruções, regular o trânsito de mercadorias e pessoas
pelas estradas que cortam os territórios agora definidos pela fronteira, mas não me foi possível
obter a redução dos 3%, que o trânsito do comércio português, como o estrangeiro, é obrigado
a pagar.
A 13 janeiro despedia-me da comissão inglesa, com quem sempre vivemos em boa
harmonia, e largava para Chilomo onde cheguei a 15, e esperei a canhoneira que tinha pedido
para me levar para baixo, assim como ao Conde da Ponte, meu adjunto e importante auxiliar.
235
Não posso deixar de insistir junto de V. Ex. ª sobre a manifesta gentileza com que o
Comissário da British Central Africa tenente-coronel W. H. Manning, pôr à minha disposição
carregadores, cavalos e canhoneiras para me facilitar a viagem ao lago e a escolha de uma
concessão, que era de interesse só do governo Português. Além disso fui por ele tratado, como
de resto por todos os funcionários ingleses com quem mais ou menos convivi na B. C. A.,
com uma consideração que não era absolutamente devida à minha insignificante
personalidade, inteiramente desconhecida, mas ao país que representava. Creio pois, se me é
permitido neste ponto emitir opinião, que uma condecoração portuguesa oferecida a este
homem, dispolo-ia ainda mais a favorável a nosso favor, e garantir-nos-ia um amigo de
grande importância em uma colónia, que como a B. C. A., tem um braço avançado pela nossa
colónia de Moçambique dentro.
Julgo também do meu dever insistir em que os serviços prestados à comissão de
delimitação pelo Residente da Angonia, assim como pelo Residente de Chilomo, foram do
máximo valor; e sem eles não teria sido possível a conclusão este ano dos nossos trabalhos,
devido ás dificuldades já enumeradas de encontrar e alimentar os carregadores. Parece-me
pois que tal zelo pelo serviço, de que resultou para o Estado uma importante economia, é
digno de recompensa, por exceder a norma de serviço a que tais funcionários são obrigados.
A 22 janeiro chegava a Chilomo a canhoneira “Obus” e a 23 largava a comissão rio
abaixo demorando-se a viagem para eu concluir o reconhecimento trigonométrico do rio
Chire, recomendado nas minhas instruções. Chegamos ao Chinde a 4 fevereiro, e pelo
primeiro vapor seguimos para Quelimane, onde chegámos em 8 fevereiro. O meu adjunto,
Conde da Ponte, larga para Lourenço Marques pelo primeiro vapor, e ai poderá fornecer
verbalmente a V. Ex.ª todos os esclarecimentos sobre o serviço desta comissão de delimitação.
Eu, em vista da urgência de comunicar a S. Ex. ª o ministro da Marinha o resultado dos
trabalhos e questões pendentes, seguirei para Lisboa pelo primeiro transporte, que é o vapor
“Kaiser” que larga daqui a 28 fevereiro.
Junto remeto a V. Ex.ª, como disse, a cópia da ata da concessão do Nyassa. Deus guarde
a V. Ex.ª.”
Nota pessoal: a fronteira definitiva entre Moçambique e Niassalândia foi fixada pelo
acordo de 18 Nov. 1954 (v. Relatório da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do
Ultramar, 1956).

Gago Coutinho – BSGL, 33ª série (1915) nº 5 e 6, maio e junho, pp. 182-192
Comunicação efetuada a 11 janeiro (exemplo de uma expedição bem preparada)

A missão tinha como objetivo a demarcação da fronteira Angola-Rodésia. Foi dotada da


mais moderna aparelhagem: heliótropos, projetores de acetileno, cinco teodolitos de
microscópios, um deles Repsold, cronómetro Negus de contactos elétricos, cronógrafo
Campos Rodrigues, fios de invar, etc.
O material de acampamento era completo. Além das barracas, compreendia armamento,
ferragem para marcos, cimento (dezassete toneladas), rancho para ano e meio, dez montadas,
caninos, etc. Contrataram, de princípio, nove “carros boers”, entre os africaners do Bié. Para
eles se abriram 1.000 km de picadas novas (1913/4). Comuns em Angola, caracterizavam-se
pelo leito do carro, o span de vinte bois, a carga de duas toneladas, o pessoal (carreio, pastor e
breke). Usavam chicotes compridos e gritaria para excitar os bois, cada um dos quais tinha o
seu nome.
236
O pessoal europeu compreendia cinco oficiais, um médico, um sargento e, até mesmo, o
conhecido sertanejo Manuel Nunes Correia que, por espontânea solidariedade, se prestara a
ausentar-se, por algum tempo, da sua importante casa comercial de óleos e de outros
equipamentos para máquinas.
A distância normal percorrida em cada trek oscilava entre 8 e 16 km. Para a passagem
dos rios a vau, ou em pontes, a lama das margens exigia dois a três spans no mesmo carro. A
distribuição geral do chicote abrangia todos os bois, para estes depois arrancarem ao mesmo
tempo à voz dos carreiros. Eis a rotina da nossa viagem: levantar e desarmar barracas, a
chamada dos pastores, o primeiro trek. O almoço e o segundo trek. Quase todos os
expedicionários preferiram cavalos. Porém Gago Coutinho decidiu seguir a pé, prevendo o
caso de virem a faltar montadas. O grupo de auxiliares era composto por vinte nativos sem
necessidade de escolta porque o pessoal dos carros também caçava e poderia acudir em
defesa. Embora os quiocos, tivessem fama de ladrões, vieram entregar um boi que se tinha
extraviado.
Passaram o rio Quanza, na altitude 1.250 m, sobre flutuadores de ferro, onde os carros
embarcaram depois de descarregados. Os bovinos passaram a nado, já perto do forte do
Quanza (Neves Ferreira).
A expedição entrou numa região de areias soltas e de encostas pesadas onde os carros se
atolavam. Percorreu depois a região despovoada e sem mantimentos. Paravam não aos
domingos, como faziam os boers, mas durante a lua cheia ou quando havia ocultação causada
pelo tempo enevoado ou chuvoso.
Após três meses de viagem, atingiram Caianda, grande centro comercial de borracha.
Morreram as primeiras montadas devido a doença desconhecida. Duas semanas depois
chegaram a Mucanga, com 1.270 m de altitude, na divisória Congo-Zambeze, além do
meridiano 24. Estabeleceram o acampamento no meio da floresta, aguardando o final das
grandes chuvas e a chegada da comissão britânica.
Visitaram a casa da saúde do missionário inglês Rv. Fisher, com a sua família, por onde
transitava o correio para a Europa. Construíram uma torre de vinte metros, que dominava a
floresta. Confirmaram a nascente do Zambeze e corrigiram os erros de latitude e longitude.
Iniciaram os preparativos para a futura campanha. Compraram mantimentos e angariaram
duzentos carregadores.
A 25 abril surgiu finalmente a comissão inglesa, que se limitava então a dois oficiais:
que andavam tanto a pé como de bicicleta porque, devido à mosca tsé-tsé, tinham perdido
cerca de duas centenas de jumentos com que contavam para transportes. Também não
dispunham de recursos, mantimentos e carregadores, apesar dos auxílios oferecidos pela
Rodésia.
Aos portugueses nada faltava a não ser as montadas, que pouco a pouco tinham
morrido, com exceção de um jumento “bastante ordinário”. Já treinados e conformados,
caminhavam a pé. Não era por tal motivo que havia demoras, porque marchavam mais
depressa do que os carregadores, limitados como eram pelos seus fardos. Conseguiam
percorrer a média diária de quarenta quilómetros.
Para reconhecimento do terreno tiveram que trepar às árvores para nelas montar
estações altas de teodolito, tendo certa feita atingido vinte e dois metros de altura. A marca
mais elevada ultrapassou trinta e seis metros. E para escolherem a árvore mais alta e mais
dominante, eram obrigados a trepar previamente a muitas outras, num esforço que ressaltava
das mãos em extremo calejadas. E este trabalho era precedido por uma espécie de navegação,
pois era por meio de latitude e de estimativas que conseguiam demandar os pontos escolhidos
de longe, do alto de outras árvores. Por isso a missão inglesa, habituada ao reconhecimento
237
fácil na região acidentada e no terreno limpo do Transval, gracejava afirmando que só
tripulantes de navios veleiros, como os portugueses, podiam ali trabalhar!
Continuaram a demarcação da fronteira para oeste pelo paralelo 13, com terreno
francamente ondulado. Em meados de setembro desceram a barreira de grés e chegaram ao
Zambeze, a que os indígenas pronunciam Liambeje. Perto estava o último depósito de
material trazido pelos carros boers que, cumprida a sua tarefa, regressaram ao Bihé.
Concluído o território dos povos luenas passaram para os nhengos e jenjes, cujo monarca era
o célebre Leuanica (v. Documento nº 8).
Atravessaram o Zambeze em almadias e duas horas depois chegaram a Lealui, onde
encontraram bastantes negociantes europeus. Em dois pontos mais elevados estava a
povoação e a residência do Leuanica, e ainda, a missão protestante francesa que foi fundada
pelo conhecido padre Coillard, que valeu a Serpa Pinto quando ele, já sem recursos, chegou a
Lexuma perto das quedas do Zambeze. Tem casas regulares, padres e irmãs. Foram
amavelmente recebidos e convidados para um almoço.
As muitas casas comerciais compravam aqui gado bovino para abastecerem o Congo
Belga, onde não conseguia sobreviver devido à tsé-tsé. Esse comércio tinha uma época
própria e é limitado pelo governo para se não dizimar o gado. Era habitual o uso de um
enxota-moscas.
Era obrigatório o pagamento do imposto de dez shillings, sendo em parte entregue ao
Leuanica. Como este se encontrava ausente, foram visitar Gambela, seu ministro, que vivia
numa boa casa e teve a gentileza de nos ofereceu um chá. Andava coberto de muitos panos e
até possuía mantas.

Apreciações pessoais de Gago Coutinho

Os pretos apreciavam conversas espirituosas e, acreditava que entre eles um bom


gracejo resolvia muitas vezes uma questão complexa. Observou que os negociantes europeus
que falavam a língua e conheciam a psicologia indígena, conseguiam fazer melhores
negócios.
Gago Coutinho também considerava o mosquito muito perigoso. Foram com frequência
picados por eles mas não sofreram ataques de paludismo nem de doença do sono. Fomos
também incomodados por outros insetos: as abelhas nas árvores a que por vezes subíamos; a
carraça, enquanto andaram nos carros em convivência com os bovinos; a formiga branca que
se alimenta com a madeira; pulgas nos pés no Bihé. A mais incómoda era uma mosca
pequena, que faz mel, e que, sem picar, tenta penetrar pelos ouvidos, pela boca, pelo nariz.
Até conseguia por vezes introduzir-se entre as pálpebras e o globo ocular!
Os carregadores foram utilíssimos. Nunca roubaram carga alguma, mesmo de fazenda
ou sal que lhes daria, uma quase independência. Costumavam amarrar as cargas entre dois
paus, que saia meio metro por um dos lados; e quando descansam encostam a carga a uma
árvore com os paus apoiados no chão; com o que nem a carga se avaria nem depois dá tanto
trabalho outra vez a levantar, para carregar.
Os cronómetros e teodolitos eram carregados à pinga, isto é, amarrados a um pau
comprido que dois homens levavam; evitava-se assim que em caso de queda a carga
tombasse. Desta maneira os instrumentos de mais sensibilidade atravessaram duas vezes a
África sem nunca se avariarem.
238
Comparando a justiça e a sua administração, Gago Coutinho notou que em Angola
havia as mesmas demoras do que em Portugal e quase as mesmas leis, ao passo que na
Rodésia tudo era muito mais sumário. Deu o seguinte exemplo: o negociante Bessa vivia na
fronteira de Angola, onde comerciava em pólvora, autorizado pelo régulo Nana Candundo;
logo que foi conhecida a arbitragem sobre o Barotse que transferiu a fronteira para oeste do
rio Cabompo, as autoridades rodesianas tomaram a decisão de prender e pouco depois de
julgar o referido Bessa. Como não lhe facultaram um intérprete, foi-lhe impossível prestar
qualquer depoimento. Como lhe confiscaram os bens antes do julgamento, não dispunha de
meios para recorrer a advogados. As autoridades rodesianas não podiam provar o crime
porque, ignorando onde era a fronteira também ignoravam se o acusado habitava território
rodesiano. Mesmo assim foi severamente condenado e veio a cumprir a pena de um ano de
trabalhos forçados!
Por seu lado, a administração civil de Angola sofria de grandes deficiências. As
autoridades não dispunham de tempo nem de meios para fiscalização eficaz das suas enormes
circunscrições. Os delegados militares eram em geral venais e indisciplinados, como por
várias vezes os expedicionários viram e sentiram. Não havia medidas de correção e nem
sequer a possibilidade de se cobrarem quaisquer impostos aos indígenas.
Devido ao abandono a que Angola havia sido votada, Gago Coutinho considerou
preferível que se implementasse ali um regime provisório, semelhante ao dos seculares
“prazos” da Zambézia, apesar de todos os seus graves, obsoletos e conhecidos inconvenientes,
regime que só as colónias portuguesas tinham adotado.
239

20º
DOCUMENTO

Três gerações de anglicanos fixados em Moçambique. A Frelimo


ascende ao poder e recebe as instalações e os equipamentos das forças
portuguesas. O partido reconhece o marxismo-leninismo como base
teórica e ideológica, dando prioridade à destruição do capitalismo.
Acontecimentos sanguinários durante o governo de Transição

A admirável família de Charles Francis Spence

O censo de 1970 revelou que, entre a população de Moçambique, se contavam cerca de


158.000 europeus. Aproximadamente 5.000 distribuíam-se por 25 nacionalidades diferentes
da portuguesa. Ressaltavam os de origem britânica (c. de mil), italiana (c. de 600), sul-
africana (c. de 500), grega e alemã (c. de 400 cada), suíça (c. de 300). É da mais elementar
justiça reconhecer o enorme contributo que estes estrangeiros deram para colocar
Moçambique (como bem salientou Pierre Balmes) entre os países africanos com indústria
mais desenvolvida, com trocas comerciais mais ativas, com agricultura mais diversificada (1).
No seu estudo comparativo publicado em 1978, J. Eric Torp (2) colocou Moçambique entre
os oito mais industrializados países do continente africano. C. F. Spence tem o direito de ser
incluído entre os melhores empresários que ali se distinguiram.
Quando optei pelo chamado “quadro administrativo”, no início de fevereiro 1942,
efetuei a viagem de L. Marques até à ilha de Moçambique nos navios de cabotagem que, com
eficiência e segurança, ligavam toda a costa transportando cargas e passageiros. Estava no seu
auge a II Guerra Mundial (3).
Foi nessa região que, por mero acaso, vim a conhecer C. F. Spence. Era, como eu tinha
sido, residente em L. Marques. As suas diligências sertanejas estavam relacionadas com o
aproveitamento das espécies silvícolas que pudessem rivalizar com as brasileiras na produção
dessa preciosa borracha que, nos mercados internacionais, atingia os preços exorbitantes que
enriqueceram Manaus.
Só trinta e quatro anos depois, em 1975, voltei a contactar diretamente com Spence.
Esse encontro teve lugar na sua própria e formosa residência, com jardim e piscina, situada
nas cercanias do Palácio do Governo, na zona mais sofisticada da Polana. À cautela, fui
solicitar a sua ajuda na correção do inglês com que, por dever de ofício, tivera que verter a
ortodoxa Constituição marxista-leninista que fora gloriosamente aprovada pelos dirigentes da
Frelimo.
Spence não podia imaginar que, meses depois, logo em janeiro do ano seguinte,
receberia dos governantes (a “Nova Classe Dirigente” de Milovan Djilas!) ordens categóricas
para desocupar aquela moradia onde, próspera e pacificamente, vivera durante décadas. Foi-
lhe dada a seguinte justificação: estava situada na “zona de segurança” que, para Samora
Machel, tinha sido concebida no perímetro que rodeava o grande talhão amuralhado do
palácio colonial que servira de gabinete e de residência oficial a tantos altos-comissários e
governadores-gerais.
Apesar dos esforços desenvolvidos, não conseguiu que fosse aberta exceção para o seu
caso. Também não foi autorizado a alugar qualquer apartamento porque já vigorava o decreto-
lei nº 5/76 que nacionalizara a totalidade dos prédios de rendimento. Tais são as razões que o
240
levaram, a transferir a sua residência para os arredores de Cape Town, assim terminando três
gerações fixadas na cidade laurentina.
Por felicidade elaborou um diário dos acontecimentos ocorridos entre “25 Abril 1974 e
22 março 1976”. Porque este precioso documento teve circulação restrita ou mesmo
individual, tentarei extrair dele alguns elementos que se me afiguram de maior relevância e
significado.
A idoneidade que merecia C. F. Spence ressalta logo no início do documento, quando
informa que o governador-geral, engenheiro Pimentel dos Santos lhe pedira para estudar e
avaliar o difícil problema dos aldeamentos que, durante as ações de contra-guerrilha, tinham
sido criados para concentrar a dispersa população nativa. Para concretização do objetivo,
pusera à sua pessoal disposição uma aeronave e o respetivo piloto. No dia 26 abril 1974,
encontrava-se em Nangarde, na margem do Rovuma, almoçando na messe dos oficiais,
quando a rádio transmitiu o célebre discurso proferido pelo general Spínola, anunciando o
golpe militar que derrubara Marcelo Caetano e que nomeara uma junta militar governativa.
Spence tinha cursado economia em Cambridge. Essa formação explica não só o êxito
como empresário mas também o facto de ter publicado no ano de 1951 a sua primeira obra em
português sobre a situação económica de Moçambique. Segundo consta do seu diário, só
decorridos dez anos publicou em inglês, na África do Sul, outra obra sobre o mesmo tema.
Especificou que ela se havia depressa esgotado. Instado por instituições e pessoas mais
ligadas às atividades económicas, tomou a decisão de estudar, de modo direto e sistemático,
as que se revestiam de maior relevância. Durante meses acompanhado por um amigo
português e outro sul-africano, conseguiu efetuar uma investigação geral, in loco.
A este notável e independente esforço se deve a obra editada na cidade do Cabo, em
1963 (4). Talvez instado por empresários e por outro tipo de leitores que não dominavam o
inglês, Spence teve a sensata ideia de a reproduzir em português e de a editar em Lisboa (5).
Embora não a tivesse lido, julgo que foi substancialmente melhorada. Pelo menos, nas
referências bibliográficas é citada com um número bem superior de páginas. Não falta quem
haja já reparado que estes dois estudos sérios e profundos foram, mais tarde, ignorados pela
nata dos historiadores anglófonos. Será que o julgamento das realidades neles descritas tenha
sido reservado exclusivamente aos académicos?
A escolha feita pelo engenheiro Pimentel dos Santos – o último governador-geral que
dirigiu Moçambique – explica-se pela importância excecional que também dava aos
problemas económicos. Colaborava regularmente nos principais periódicos dos órgãos
associativos. Os peritos gabaram o seu “Programa para Quatro Anos” (6). Mais tarde também
publicou o discurso com que abriu a 2ª Sessão Ordinária do Conselho Legislativo, em 30
outubro 1972 (7)

O acordo de Lusaca

Nos parágrafos que dedicou a este assunto, Spence refere uma iniciativa política que
tem passado despercebida embora pareça ter estreita ligação com o famoso Acordo de Lusaca:
o “comício” (sic) que, no dia 5 setembro, foi iniciado pela Frelimo, no estádio de futebol da
Machava. Foram convidados a nele participar todos os simpatizantes do partido,
independentemente das profissões que exercessem. Os escritórios e os estabelecimentos em
geral suspenderam as suas atividades. Spence foi afetado por esta manifestação por lhe caber
a gerência de quatro combinados industriais. O dito “comício” continuou no dia seguinte, uma
241
sexta-feira. Apenas se deu por terminado às 14 horas de sábado, após a assinatura do já citado
acordo diplomático.
O general Manuel de Sousa Menezes (adiante: general Manuel Menezes) chefe do
Estado-Maior do Alto-comissário e comandante-chefe de Moçambique, merece o elogio e o
agradecimento dos historiadores quer pelo artigo que publicou em 2005 (8), quer pelas notas
com que retificou e esclareceu o contributo que, quatro anos mais tarde, elaborou o Eng.º.
Frederico Monteiro da Silva (adiante: Eng.º. Frederico Silva) (9). O referido oficial superior
acentuou que pretendia fornecer pormenores sobre “o caso de Moçambique”, aquele com que
efetivamente lidou durante cerca de um ano, até ao arrear da bandeira portuguesa no
supracitado Estádio da Machava, no dia 25 junho 1975. Em sua opinião a descolonização em
Moçambique não foi exemplar (pelo que alguns pretendiam) mas pode pelo menos ser
considerada como razoável. A fase que decorreu desde o início de maio 1974, data em que
chegou a Nampula, até à assinatura do acordo, caracterizou-se pela incerteza e pela constante
evolução dos acontecimentos.
Há porém algumas certezas. A primeira – prontamente formada por muitos dos
responsáveis militares – é que a revolução de abril pretendia, o mais depressa possível,
acabar com as guerras ultramarinas. Outra certeza referia-se ao facto da disciplina e do
respeito hierárquico dentro da estrutura militar, estarem a sofrer fortes e graves abalos.
Na prática era por demais evidente que não devia morrer nem mais um soldado
português em Moçambique, porque essa morte seria inglória e sobretudo injusta. Esta
convicção transformou-se em ponto de honra para todos os militares que planeavam ou
comandavam operações.
Por mero acaso, pude testemunhar, como todos os presentes, um caso de chocante
indisciplina à entrada da própria residência oficial do comandante em chefe das Forças
Armadas, na zona mais rica da capital. Três ou quatro soldados europeus ali colocados como
sentinelas, tinham despido as fardas, desapertado as botas e abandonado as armas, para se
sentarem, em camisa e com ostensiva desfaçatez, no murete do edifício… Quando aquele
chefe militar chegou na sua viatura de luxo, enfiado e envergonhado no banco traseiro, as
pseudo sentinelas receberam-no com chacotas e gargalhadas provocatórias! Todos os
presentes puderam imaginar e comentar entre si o que estaria a acontecer no resto do país.
Não são exageradas as apreciações de René Pelissier e do próprio general Spínola que
transcrevi na p. 130 (10). Afigura-se pertinente comparar esta situação com a existente nas
restantes colónias. Há pelo menos um caso de total desmoralização denunciado por Rui Palma
Carlos em relação a Timor (11). Seu pai Adelino desempenhou fugazmente o cargo de 1º
ministro, durante a presidência do general Spínola.
Continuemos. Em Nampula nada se sabia sobre os antecedentes do chamado “acordo de
Lusaca”. Porém, na noite de 4 setembro apareceu um oficial de informações, vindo do Quartel
general, com uma mensagem de Lisboa informando que, no dia seguinte, se iniciaria em
Lusaca uma reunião entre a direção da Frelimo e uma representação do governo português,
reunião que tinha por finalidade discutir um acordo pacífico de cessar fogo. Foi deliberado ser
urgente e necessário enviar a Lusaca um oficial que, durante as negociações, conseguisse
defender a situação do grande número de militares que se encontravam dispersos pela
vastidão do interior. Foi escolhido o tenente-coronel Nuno Alexandre Lousada (adiante Nuno
Lousada), que partiu na madrugada do dia seguinte, num Cessna de aluguer.
Para melhor entendimento do que se passou em Lusaca julgo indispensável transcrever
desde já um episódio quase desconhecido que foi relatado por Adelino Palma Carlos à sua
biógrafa Helena Sanches Osório (12):
242
“A propósito da entrega de Moçambique à Frelimo há um pormenor que
penso ser ainda desconhecido e que foi extremamente sério.
Quando Mário Soares estava nestas (visitas a instituições e
personalidades estrangeiras) Spínola, em regra, mandava um militar para o
acompanhar. Umas vezes foi Almeida Bruno, outras Otelo ou Casanova
Ferreira e, mais tarde, quando se tratou de Moçambique, Melo Antunes.
Contou-me Spínola que, quando regressaram de Lusaca – onde se
realizou a última conferência relativa ao termo da guerra em Moçambique –,
Mário Soares e Almeida Santos, que tinham ido com Melo Antunes, foram
queixar-se ao presidente da República, explicando que não tinham sido ouvidos
para coisa nenhuma. Que tinha acontecido?
Tinham aprazado a conferência onde iriam ser resolvidas, em definitivo,
as condições em que se faria a paz naquela colónia. O encontro estava marcado
para um determinado dia, de manhã, às tantas horas, num tal lugar. Eles,
pontualmente, compareceram. Só que, nem os da Frelimo, nem Melo Antunes
lá puseram os pés. Receberam, por junto, Soares e Almeida Santos, indicação
para regressarem à tarde. E, à tarde, apareceu Melo Antunes, dizendo que já se
resolvera tudo durante a manhã. Só faltava assinar o acordo… Ele, Melo
Antunes, decidira tudo, sozinho, com a Frelimo.
Soares e Almeida Santos estavam numa fúria. Spínola só bradava:
– Se apanho Melo Antunes, mando-o fuzilar aqui mesmo, no Palácio de
Belém.”

***

Depois da assinatura, Mário Soares e a restante comitiva portuguesa regressaram a


Lisboa no avião que os aguardava. Descoberto que foi este comportamento traiçoeiro de Melo
Antunes, travaram-se sem dúvida discussões e recriminações azedas. Este ambiente de
discórdia – que envergonharia qualquer delegação em qualquer país estrangeiro – explica o
facto de não se terem despedido formalmente de Samora Machel (adiante Samora) nem de
terem aceite o convite para o “cocktail” comemorativo oferecido pelo presidente da Zâmbia.
Convém também acentuar que, entre os signatários havia a destacar, pelas suas
convicções pessoais, dois dos membros da delegação portuguesa: só o major Melo Antunes e
o comandante Victor Crespo, tinham desde sempre reconhecido o superior papel político da
Frelimo, que distinguiam como único representante legítimo do povo moçambicano. Na
verdade, o segundo daqueles oficiais veio a aplicar a sua ideologia marxista às decisões que
tomou, durante o tempo que desempenhou o cargo de Alto Comissário. Nunca escondeu essas
convicções. Logo no dia 11 abril 1975, na entrevista que concedeu ao jornal “Notícias”, fez a
seguinte afirmação:
“A descolonização de Moçambique assenta numa total identidade ideológica entre as
duas partes empenhadas no processo relativamente à questão fundamental que é a da
conceção do colonialismo e do capitalismo como sistemas exploradores e opressores”.
Quanto ao que se passava em L. Marques, permito-me abrir um parêntese para
reproduzir agora o que relatei na comunicação apresentada em 1988, na Universidade de
Coimbra. Julgo ter havido uma gralha tipográfica que deturpou parte do texto que, entre
aspas, foi citado pelo Eng.º. Frederico Silva, em 2009.
“Julgamos que os gravíssimos acontecimentos ocorridos na capital e nas áreas
circunvizinhas, desde a tarde do dia 6 (6ª feira) até parte do dia 12 (5ª feira) não devem ser
considerados como reação contra o Acordo de Lusaca, mas antes como resultado:
243
a) Da contínua agitação provocada pela propaganda política vinda de diversos
quadrantes;
b) Do crescente sentimento de insegurança agravado pela intensificação dos ataques
armados da Frelimo e pela paralisação operacional dos militares portugueses, com adesão de
parte do oficialato à ideologia política daquele movimento;
c) Do início da destruição das infra-estruturas económicas dispersas por todo o
Moçambique, tão indispensáveis à sobrevivência do país como uma unidade política viável”.

***

As delegações reunidas em Lusaca de 5 a 7 setembro assinaram dois acordos. O mais


conhecido fixou as condições referentes à Independência, tendo sido transcrito no estudo de
Frederico Silva (13). O segundo teve carácter secreto e estabelecia o cessar-fogo que iria pôr
termo aos atos de guerras em todo o território de Moçambique. Fixava o calendário da
evacuação das forças portuguesas e a transferência das moçambicanas para as instalações
militares das primeiras.
O primeiro teve que ser submetido à aprovação da Junta de Salvação Nacional, do
Conselho de Estado e do Governo Provisório. Estava especificado em dezanove cláusulas e
foi mandado publicar pelo presidente da República (14).
Como dissemos, estava Nuno Lousada isolado naquela comemoração festiva quando, de
súbito, penetrou na sala um mensageiro de Samora empunhando um cartaz. Exigia a sua
presença urgente, a rogo do presidente da Frelimo. O visado logo se dirigiu para uma sala
anexa onde, além de Samora, se encontrava sua esposa Graça Machel e ainda, três graduados
que se apresentaram como generais da Frelimo: Sebastião Mabote (chefe do Estado Maior),
Alberto Chipande (maconde e futuro ministro da Defesa), Armando Panguene (futuro
primeiro Embaixador de Moçambique em Lisboa). Nuno Lousada ficou atónito ao ouvir da
boca de Machel estes, repetidos e afrontados brados: “traição! traição!”… “traíram-nos!”.
Sem nada compreender, perguntou de que traição se tratava. Samora, furibundo, sugeriu que
escutasse a emissão. Nuno Lousada confessa que só então teve conhecimento da ocupação do
Rádio Clube, em L. Marques. Também ficou surpreendido com a convicção alimentada por
Samora de que o golpe tinha sido patrocinado pelo presidente e general António Spínola.
Entretanto as notícias radiofónicas eram tão conclusivas acerca do êxito do golpe que
Samora, comunicou a Lousada que as forças da Frelimo iriam lançar uma ofensiva geral
contra todas as posições portuguesas. Voltando-se para Mabote deu-lhe ostensivas ordens em
tal sentido. Nesse momento, Lousada gritou com veemência: “não faças isso”. Samora
perguntou: “então o que faço?”. O militar respondeu: “faz o que for melhor para o povo
moçambicano e para o povo português”. Depois de ouvir este apelo humanitário, Samora
suspendeu as ordens que acabara de dar. Logo de seguida, foi convencido por Lousada a falar
pessoalmente com Spínola, em Lisboa. Cedo conseguiu efetuar o contacto telefónico.
Suspendo a narrativa para citar a nota nº 11 dos comentários feitos pelo general Manuel
Menezes, para melhor entendimento do artigo publicado pelo Eng.º. Frederico Silva: “A
atitude do Cor. Lousada foi digna, foi acertada, e foi corajosa, mas excedeu os limites da
missão para que foi encarregado pelos comandos militares de Moçambique: lutar por obter
nove a doze meses para poder reunir e conduzir as forças portuguesas de regresso à
Metrópole. Não esquecer que, por esta altura, ainda deveria haver trinta a trinta e cinco mil
soldados portugueses, constituindo pequenas unidades em toda a Província de Moçambique,
segundo os planos já estabelecidos”.
244
Convém lembrar que, segundo fontes da Frelimo, Spínola teria alegado desconhecer o
que se passava em L. Marques. Samora retorquira, com indignação, já saber que o interlocutor
tinha recebido no Buçaco, na quinta-feira anterior, simpatizantes dos movimentos envolvidos
no golpe. Ao ouvir o protesto de Spínola, levantou a voz para o acusar: “o presidente
português mente!”. Em boa verdade, Spínola havia dialogado no Buçaco com elementos
afetos à FICO, vindos expressamente de Lisboa, numa viatura cedida pela própria Presidência
da República. Por estranha coincidência, também tinham passado pelo Buçaco, pouco tempo
antes, os ministros Mário Soares, Almeida Santos e Melo Antunes.
Spínola reagiu com indignação àquela grosseira afronta. De imediato cortou a chamada.
Foi dado tanto valor histórico ao aparelho telefónico que proporcionou este desabrido mas
fulcral diálogo, que o presidente Kaunda houve por bem oferece-lo, como precioso troféu, ao
futuro Museu da Frelimo.
Pode ter sido este incidente que levou Spínola a enviar, em avião especial, dois
emissários seus para tentarem dialogar com os ocupantes do Rádio Clube. Spence menciona
este facto e esclarece que partiram na manhã seguinte sem que houvessem prestado quaisquer
esclarecimentos. Baseado numa comunicação pessoal do próprio, levanto a hipótese de serem
eles os oficiais a quem Arlindo Malosso respondeu que eles, os ativistas rebeldes, dispunham
de bazucas e granadas capazes de atingir com facilidade a conhecida messe dos oficiais da
força aérea, situada a curta distância.
Há outro pormenor a acrescentar: logo após Spínola ter cortado a chamada, Samora foi
incitado a entrar em comunicação direta com o general Costa Gomes. Este determinou que
Lousada regressasse sem demora a Nampula, acompanhado por uma representação da
Frelimo, formada pelos generais Alberto Chipanda, Armando Panguene e Sebastião Mabote.
Iriam, em conjunto, negociar no terreno a implantação do acordo para cessar-fogo. Abrangeria
todo o Moçambique, incluindo as águas territoriais e o espaço aéreo. Entraria em vigor às zero
horas de 8 setembro 1974.
De Lisboa, o governo português, ainda a 7 setembro, informou o general comandante-
chefe de Moçambique sobre essa partida de Lousada para Nampula, acompanhado pela
delegação já referida: “… a fim de transmitir informações da maior importância entre o
governo português e a Frelimo e proporcionar a V. Ex. ª adoção imediata das medidas
apropriadas à concretização do acordo”. Pediu ainda que o referido oficial fosse, com
urgência, mandado apresentar no EMGFA, em Lisboa.
Numa reunião subsequente, já em Nampula, acabaram por concordar que a zona
africana da cidade de L. Marques seria imediatamente entregue à Frelimo, ficando a
parte europeia controlada pelos militares portugueses durante o governo de Transição,
que compreenderia nove meses até à Independência, a 25 julho 1975. Como veremos, a
Frelimo, com a cumplicidade do alto-comissário, nunca cumpriu o supracitado acordo.
Facto a notar foi que, logo na madrugada de terça-feira, no dia 10 setembro, surgiu aos
microfones da estação emissora uma voz que repetiu durante todo o dia, uma estranha
mensagem: “galo, galo, amanhecer”. Parece que se tratou de uma palavra de passe dando
conhecimento à população indígena do triunfo que a Frelimo acabara de obter. Segundo
Spence, essa noite foi a mais aterradora.
Durante esta desastrosa situação, ocorreu um caso quase fatal, que bem define o
ambiente carregado que se vivia. Na segunda-feira, o tenente-coronel que comandava a força
aérea do aeroporto, assumiu a chefia dos controladores. Visivelmente inepto e nervoso, na
opinião de Spence, ordenou que todos os passageiros do avião acabado de chegar da Beira se
concentrassem na sala de espera e ali aguardassem as suas instruções. Entre eles estava um
médico que protestou energicamente clamando que tinha assuntos profissionais a tratar e que
245
não queria ser envolvido em tumultos alheios. O tenente-coronel sacou do revólver e atirou a
matar. Durante a confusão que se seguiu ficaram dois soldados feridos. Alves da Cunha,
empregado de Spence e outrora paraquedista militar, assistiu horrorizado a este incidente.
Perguntou mais tarde ao destrambelhado oficial porque reagira daquela maneira. Já
recomposto e ciente do erro cometido, respondeu com evasivas e futilidades tais como “não
estar habituado a usar pistolas”! Por simples sorte o médico, embora gravemente ferido,
conseguiu sobreviver após intervenção cirúrgica.
Seja por ressentimentos acumulados, seja por impulsos coletivos de retaliação, seja por
terem sido mobilizados pelo repetido apelo “Galo Galo”, multidões heterogéneas de
habitantes suburbanos, lançaram-se, desde o final da tarde de 10 (3ª feira) até parte do dia 12
(5ª feira), em saques indiscriminados e em sanguinárias violências contra os europeus e
asiáticos que ali residiam em moradias dispersas e em bairros periféricos. Os destacamentos
da Polícia de Segurança Pública, da Organização Provincial de Voluntários e dos Fuzileiros
adstritos à Estação Rádio Naval da Machava, (uma das dependências do Comando Naval
sedeado na Av. Infante Sagres) só abrindo fogo intenso conseguiram evitar que as turbas
ensandecidas passassem ao ataque da chamada “cidade de cimento”.
Durante o dia inteiro a emissora pediu o socorro dos dadores de sangue e dos donos de
equipamentos. Também se rogou à população que desocupasse o trânsito pela Avenida
Pinheiro Chagas, para que as ambulâncias pudessem circular sem obstáculos. No hospital
principal a situação era caótica. O diretor comunicou oficialmente o número de 82 mortos e
de 400 a 500 feridos. Desconhece-se, porém, o número de baixas ocorridas efetivamente nos
subúrbios. Em comunicação pessoal, um dos Voluntários que participou nos combates,
garantiu-me que o número de mortos se aproximou dos mil e quinhentos, tendo sido
enterrados em valas comuns abertas por máquinas escavadoras. A estimativa de três mil,
avançada pelo Eng.º. Frederico, pode ter-lhe sido sugerida por altas patentes militares.
As situações anárquicas e as violências cometidas na cidade e nos subúrbios puderam
ser de algum modo controladas com a chegada, por via aérea, de um destacamento de
fuzileiros portugueses e de um batalhão da Frelimo, que compreendia soldados da Tanzânia.
Movido por eventuais exigências da Frelimo, o futuro Alto-comissário Victor Crespo
classificou oficialmente, tudo o que aconteceu em L. Marques, de 6 a 12 setembro, como
«alterações na ordem pública» (15). Este estranho despacho foi datado de 28 dezembro mas
só publicado nas vésperas da sua partida, isto é, após terem decorrido três meses e meio. Pode
ser lido na minha comunicação feita na Universidade de Coimbra, identificada na bibliografia.
Procurarei não repetir o que consta dos escritos publicados por quem presenciou ou
interpretou as sucessivas ocorrências. A literatura relevante é mais vultuosa do que se julga.
Mais uma vez há a classificar como credível a afirmação de “Portugal não pecar por falta de
escritores”. Para elucidação dos eventuais interessados cito apenas oito obras que me
pareceram dignas de especial atenção (16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23). Eu próprio proferi e
defendi, sobre o mesmo assunto, uma comunicação de índole sintética, num dos
departamentos da Universidade de Coimbra. Julgo ter conseguido apresentar a catadupa de
acontecimentos com suficiente rigor e de forma resumida (24).

Mais distúrbios sangrentos iniciados a 21 outubro 1974

A relativa calma que sucedeu à tomada de posse do Governo de Transição foi,


subitamente, perturbada pela perigosa agressividade que se apossou dos soldados pertencentes
à Companhia de Comandos nº 2045 que se encontrava instalada no parque de campismo da
246
praia da Polana. Era do conhecimento geral – até mesmo pelas detonações da metralha e das
granadas que lançavam ao mar – que militares desta unidade se encontravam em manifesto
estado de insubordinação. Seria conveniente, para a historiografia que o Alto-comissário ou
outros responsáveis esclarecessem quais as razões da estranha passividade, para não dizer
negligência, revelada por quem tinha por dever neutralizar, logo no seu início, a
insubordinação dos Comandos. Esta indecisão, segundo a opinião pública, foi a causa básica
das fatais ocorrências e das desastrosas repercussões que desencadeou.
Apenas no dia 20, domingo, se notou alguma movimentação de tropas paraquedistas
procurando controlar os acessos ao referido parque. Nesse dia, numa barreira da marginal, um
soldado da Frelimo matou um cidadão português que não obedecera à ordem de parar.
Assistimos ao início das provocações não no Café Scala como referem tanto o
empresário Spence como o general Sousa Menezes, mas sim no Café Continental que se
situava no outro lado da Avenida da República. Um pequeno grupo de comandos agia de
modo manifestamente tresloucado, sentando-se e levantando-se à roda de uma das mesas,
entre risadas, berreiros e chacotas. Foi ele que, assaltando e desarmando dois soldados da
Frelimo e um polícia africano que patrulhavam a movimentada esquina, deu início a uma
incontrolável escalada de violências. Os numerosos transeuntes pararam para melhor
observação do que se passava. Pressentindo a eminente tragédia escapei-me a correr
atravessando a avenida com a minha mulher em busca de abrigo seguro. De relance pude
observar a aproximação de mais três soldados da Frelimo, em marcha agachada, entre a
multidão dos papalvos. Aparentemente combinados com os provocadores, chegaram pouco
depois, num camião aberto, mais elementos armados da referida Companhia de Comandos.
De seguida, abriram fogo contra as sentinelas da Frelimo postadas no jornal «Notícias» e
outros dos seus camaradas que, entretanto, tinham acorrido ao local.
Segundo um graduado das forças de segurança, a sangrenta reação que depois se seguiu
deve ser interpretada como vingança coletiva da população dos subúrbios que sofreu grandes
baixas durante os já referidos acontecimentos ocorridos após o acordo de Lusaca. Nos
subúrbios, entrou em ação uma nova mobilização em massa dos jovens e mais aguerridos
nativos. Iniciou o saque de fábricas, habitações e estabelecimentos comerciais, bem como o
ataque a viaturas em trânsito e seus passageiros. O número oficial de vítimas foi fixado em 42
mortos e 150 feridos. Contudo, segundo o relato de Spence, um dos estrangeiros que conhecia
pessoalmente, foi encontrar na casa mortuária o seu pai de 85 anos, e conseguiu observar a
existência de muito mais do que cem cadáveres, na maioria europeus.
Em 26 outubro, Spence foi com sua esposa conferenciar com o português que se tinha
convertido à igreja anglicana e que havia ascendido à posição de Bispo da Diocese dos
Libombos. Contou-lhe que o diretor do hospital telefonara diretamente ao presidente Chissano
pedindo que viesse observar o que tinha acontecido. Chissano, com lágrimas nos olhos, teria
comentado: “nunca acreditei que o meu povo fosse capaz disto!”. Spence relatou, com
pormenores, o caso de Terry Weineck, gerente de uma fábrica de tintas na Machava, cuja
esposa dirigia a Escola Britânica. Tinha sido atacado oito vezes mas conseguiu sobreviver
embora coberto de sangue. Passara por um veículo em chamas, com os ocupantes
aterrorizados pela impossibilidade de escapar. Quando chegou a casa, constatou que todos os
vidros tinham sido partidos e que o interior do seu veículo estava coberto de grossas pedras.
247
A cerimónia da Independência no dia 25 junho 1975

A invulgar personalidade de Samora Machel só começou verdadeiramente a


impressionar quando, vindo da Tanzânia, atravessou o Rovuma e iniciou uma peregrinação
que se prolongou por quase um mês até à data da Independência. No seu decurso proferiu
inflamados improvisos perante tantas multidões quantos os locais onde se deteve.
Poderiam citar-se muitos exemplos das emoções e pensamentos que iria revelando,
durante a sua marcha triunfal, pelas regiões entre o Limpopo e o Rovuma, regiões que nunca
pudera conhecer e onde, pela primeira vez, teve a oportunidade de exaltar a vitória atingida
pela Frelimo, perante populações estranhas, que falavam línguas díspares, entre as quais era
indispensável desenvolver o sentimento da unidade nacional.

Deportação das Testemunhas de Jeová para ignotos e distantes campos de


reeducação

Ao que tudo indica, os enormes sofrimentos que vitimaram os adeptos desta conhecida
seita religiosa, foram iniciados anteriormente à circular do Comissariado Político Nacional,
publicada a 17/10/1975 no vespertino “Notícias”, transformado em órgão oficioso da Frelimo.
Por carência de documentação credível não pude referir, em 1988, na Universidade de
Coimbra, esta selvática violação de direitos humanos. Apenas sabia que Samora Machel, em
meados de junho, havia criticado duramente algumas organizações religiosas como as
“Testemunhas de Jeová”, os “Adventistas do 7º Dia” e a própria igreja católica. Em seu
entender, criavam conflitos no seio do povo, conflitos que enfraqueciam a unidade popular.
É de aceitar a hipótese da detenção seletiva das Testemunhas de Jeová, ter sido
cuidadosamente preparada, porque se contavam por milhares o número de convertidos,
agrupados em famílias educadas e urbanizadas. A sua identificação pessoal exigiu, sem
sombra de dúvida, secretas e demoradas investigações. É de admitir que, a horas mortas, as
habitações fossem, à socapa, visitadas pelos seus carrascos. Mantidos em silêncio, todos os
membros da família terão sido colocados em carros celulares que se dirigiram diretamente
para qualquer zona vedada do aeroporto. Ao nascer do dia, tanto a parentela como a
vizinhança apenas poderiam conjeturar que a ausência fora voluntária. É a explicação mais
plausível para se compreender que os raptos não tenham chegado ao conhecimento público e
que, mesmo as pessoas melhor informadas, como era o meu caso, ignorassem totalmente o
que acontecera. Até o próprio Spence não lhe faz referência, apesar da sua confessa
religiosidade e de contactar diariamente com residentes nos subúrbios. Tenha-se em mente
que, além de outras atividades, dirigia quatro fábricas e empregava centenas de operários da
sua confiança, que o mantinham bem informado. O secretismo também evitava que as
deportações chegassem ao conhecimento internacional por via das representações
diplomáticas.
Felizmente que, em 1997, os autores do célebre “Livro Negro do Comunismo – Crimes,
Terror e Repressão” (25) dedicaram um capítulo aos acontecimentos ocorridos em
Moçambique. O Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP) criado justamente em
outubro 1975, foi autorizado a capturar e a manter sob prisão qualquer individuo suspeito de
atentar “contra a segurança do Estado”, expressão muito ampla que incluía os chamados
“delinquentes económicos”. Também tinha poderes para mandar os detidos diretamente para
248
os chamados “campos de reeducação”. Pouco a pouco, se veio a reconhecer que a polícia
política da Alemanha Oriental vinha desempenhando um papel fundamental em todas as
operações relacionadas com a segurança estatual. As “ofensivas pela legalidade”, periódica e
diretamente conduzidas por Samora Machel, não retiraram ao SNASP as suas prerrogativas.
O “Livro Negro” supracitado, dá a conhecer a existência de um campo de reeducação,
em Milange, perto da fronteira com o Malawi, onde foram concentrados cerca de dez mil
membros das Testemunhas de Jeová, que se encontravam dispersos por outros campos do
Niassa. A objeção de consciência e a recusa de saudar a bandeira nacional incompatibilizaram
de imediato a seita com o poder popular, no apogeu do ateísmo militante. Foi a partir de
alguns elementos que tinham conseguido pôr-se em fuga e pedir exílio naquele país vizinho,
que se tomou conhecimento internacional desta odiosa operação repressiva.
Em meados de junho 1985, um dos jornais diários publicados de Lisboa (26) pode
acumular um número impressionante de provas sobre as torturas que se praticavam nos
campos de reeducação. Tornaram-se grandes vítimas da prepotência dos guardas. José Pinto
de Sá, relata um exemplo do que aconteceu no campo de M’sawise, antiga base da Frelimo
durante a guerra colonial. O artigo supracitado remete para o depoimento de J. M. Cabral que
esteve dois anos no campo de reeducação de Naisseco, no Niassa. Ali chegaram numerosas
Testemunhas de Jeová e assistiu a episódios como o seguinte.
Ao romper do dia, na parada, quando se içava a bandeira, o comandante dava os vivas
da ordem: – Viva a Frelimo! – Viva! responderam todos, exceto as Testemunhas de Jeová. O
comandante mandou avançar um dos elementos que se encontrava na formatura e repetiu-lhe
por duas vezes o “viva”. Por duas vezes o mártir se manteve em silêncio. Para ser
exemplarmente castigado, o comandante mandou que os guardas o amarrassem ao mastro da
bandeira por meio de uma corda embebida em lama e sal. Todos foram para os campos
trabalhar exceto o desgraçado que ficou na parada, o dia inteiro ao sol, sem beber. Com o
calor, a corda retesou e penetrou-lhe na carne, provocando horrendos gritos de dor. Na manhã
seguinte o comandante escolhia outra vítima e a cena repetia-se.
“Sofria-se muito”, recordou outro ex-reeducando, do campo de Ruárua, em Cabo
Delgado. “Havia quarenta presos. Todos os dias nos batiam. Muitos prisioneiros eram mortos
a tiro, executados publicamente. Outros eram metidos em buracos na terra, só com a cabeça
de fora, durante uma semana. Levaram a nossa roupa toda. Ficávamos dias seguidos sem
comida. No ano seguinte mudaram-me para o campo principal (de Ruárua) a quatro
quilómetros. Havia lá umas oitocentas pessoas”.
Segundo a Human Rights Watch (27), as fomes recorrentes, durante o período de 1975-
85, foram a origem de um número de mortos superior ao que se registou durante a luta
armada. Esta estimativa foi confirmada pela UNICEF que avaliou em seiscentos mil o número
de vítimas que as graves carências alimentares provocaram no decorrer daquela década.
Recorde-se que o próprio Samora Machel, durante um extenso improviso que pronunciou
num comício destinado a comemorar o Dia dos Heróis Moçambicanos, revelou pela primeira
vez como foi relativamente diminuto número de baixas sofridas pelos militares da Frelimo
durante a luta armada: 2.067 mortos e 889 mutilados (28).
249
Homenagem pessoal ao pastor Francisco Xavier Dengo

Como se sabe, em 1961, após a revogação do estatuto do indigenato, o governo central


tomou a decisão de fundar, em Angola e Moçambique, Institutos do Trabalho, Previdência e
Ação Social. No ano seguinte fixaram-se os respetivos quadros orgânicos. Abriram-se
concursos para admissão de pessoal. Um deles foi dedicado à seleção e à admissão de
escriturários. Os candidatos foram numerosos, de várias raças e dos dois sexos. Fiz parte do
júri que, como é evidente, procedeu com grande rigor e total imparcialidade. Em primeiro
lugar ficou uma europeia, já mãe de família. Em segundo lugar colocou-se um africano que
dava pelo nome de Francisco Xavier Dengo e que, por mero acaso, veio a trabalhar
diretamente comigo durante dez longos anos. Era inteligente e dominava perfeitamente o
português. A ele devo a interpretação dos gatafunhos relativos aos estudos que nesse tempo
publiquei e a sua transformação em decentes documentos datilografados. Também lhe devo a
assistência que me prestou, nos subúrbios labirínticos, quando decidi aproveitar as visitas
formais ao domicílio dos pretendentes a subsídios para elaborar o estudo de sociologia urbana
a que dei o título de “Os Africanos de Lourenço Marques” (29). Tendo o Dengo decidido
construir uma casa de alvenaria no talhão que adquirira num projeto de urbanização lançado
pelo município, foi constrangido a seguir tão complexas e demoradas exigências e
formalidades burocráticas que lhe pedi para elaborar um relato minucioso, para melhor
informação corrente. De tal modo me impressionou o documento datilografado que decidi
incluí-lo no meu estudo sob o título “A minha casa”. Não citei o autor para evitar retaliações
por parte dos sedentários e vingativos burocratas.
Depois de transitar para o Centro de Informação e Turismo, quando já sobrevivíamos
sob a férula dos frelimistas e marxistas-leninistas, aconteceu por acaso fazer um telefonema
de serviço para o Instituto do Trabalho. Porque a voz de quem atendeu se assemelhava à do
Dengo fiz as saudações recomendadas pelos usos e costumes. O meu interlocutor, em tom
amargurado, revelou que aquele homem virtuoso e competente – já na categoria chefe de
secção – fora preso e deportado, com sua mulher e cinco filhos, para longes terras sertanejas
sob a acusação de ter cometido um crime de lesa-pátria: ser pastor das Testemunhas de Jeová.
E mais não consegui apurar.

A grande rusga efetuada na noite de 30 para 31 outubro 1975

A Frelimo, com fraca implantação nessas cidades em seu entender dissolutas, onde pela
certa se acoitavam e conspiravam impunemente tantos dos seus inimigos e sobretudo o mais
perigoso: a chamada «burguesia colonial» – cedo recorreu, com afinco, à técnica das rusgas.
Célebre ficou a efectuada na noite referida no subtítulo. Por muitas dezenas de patrulhas
foram detidos nas esplanadas, nas vias públicas, à porta dos cinemas, etc. cerca de três mil
transeuntes dos dois sexos e de todas as raças, que não exibissem documentos de
identificação. Ofendeu os europeus o facto de terem sido concentrados, em promiscuidade e
condições anti-higiénicas, sem espaço para se deitarem ou mesmo para satisfazer as
necessidades.
Spence também se refere a esta rusga nos seguintes termos: “A mass raid by the Frelimo
troops (People’s Army) to check everyone’s identity papers. They stopped every person in all
the cinemas, restaurants and cafés, and inaugurated a system of road blocks to check all
identity cards. The result was that a few thousand people, black and white, were whipped off
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to various places because they did not have their papers on them. Many were taken as far as
Chai-Chai on the Limpopo River and kept for three or four days, their only food and water
being provided by traders in the area”.
Fui pessoalmente afetado por esta rusga. Tinha ido ao cinema acompanhado por minha
mulher e meu filho Reinaldo. Este aproveitou o intervalo para se refrescar, como muitos
espectadores fizeram. Estranhamente desapareceu sem explicação. Só à saída, bloqueada por
polícias e soldados da Frelimo, compreendemos o que se tinha passado. Todos fomos
revistados e obrigados a exibir o bilhete de identidade (adiante B. I.). Ficaram detidos os que
não puderam exibir esse documento. Regressámos a casa e pudemos constatar que o Reinaldo
se esquecera do seu B. I. Seguiu-se um longo período de angustioso desamparo porque, após
efetuar numerosos telefonemas, ninguém encontrei que me pudesse indicar o sitio onde as
autoridades iriam concentrar os detidos, nem mesmo os nossos familiares que, tinham optado
pela nacionalidade moçambicana, nem mesmo o comandante-geral da Polícia. Não recordo
como soube que seria no antigo quartel da polícia montada, situado nos subúrbios perto da
Missão de S. José de Lhanguene. Aí contemplámos um cenário pavoroso, com evidente
desprezo por todos os milhares de pessoas que se iam acumulando no pátio sem condições.
Apesar disso mais camionetas iam chegando pejadas de pretensos delinquentes e prostitutas.
Notámos que à entrada do grande portão de ferro, onde se encontrava um sargento da polícia
portuguesa, se ia acumulando um monte de bilhetes de identidade, já entregues pelas famílias
dos detidos. Alguém gritou que seria impossível distribuir esses B. I. aos seus proprietários.
Notei a presença de dois jovens soldados macondes com escarificações na face. Olhavam de
modo ameaçador para minha mulher que, raivosamente, acusava o polícia de agir como um
traidor. Regressámos a casa para só voltarmos de manhã cedo. Por felicidade, quando os
autocarros começaram a sair, carregados com os detidos e dando a curva para norte, consegui
ver meu filho à janela de um deles e, recorrendo a empurrões, entregar-lhe o B. I.. Iniciei
novas diligências infrutíferas para saber qual o destino que seria dado aos detidos. Nenhuma
informação puderam ou quiseram dar os próprios parentes de minha mulher que tinham
optado pela nacionalidade moçambicana e ocupavam lugares de destaque no aparelho do
Estado. Foi unicamente o próprio reitor da universidade, Dr. Ganhão, que não hesitou em me
socorrer. No dia seguinte comunicou-me que soubera pelo ministro do Interior que os detidos
seriam levados para o Chai-Chai e seriam interrogados por uma junta. O meu filho apresentou
o bilhete de identidade, foi submetido a interrogatórios e, por fim, libertado por ser
considerado inocente. Mas sem quaisquer meios para se alimentar e fazer a viagem de cem
kms de regresso à capital. Apareceu em casa cansado, esfomeado, sujo, barbudo,
desgrenhado. Apenas fora ajudado por alguns motoristas que lhe deram boleias.

O assédio contra C. F. Spence, no sábado de 29 novembro 1975

Durante todo este dia Spence foi longa e inesperadamente pressionado por infundadas e
até absurdas suspeitas que tiveram o evidente objetivo de amedrontar aquele próspero e bem
conhecido empresário estrangeiro e, enfim, de humilhar um dos membros exemplares da
odiada burguesia urbanizada. Ainda mais inaceitável foi o facto de se tratar de membros da
guarnição do próprio palácio presidencial. Ao que parece, as altas patentes da Frelimo ou os
seus instrutores da Alemanha Oriental, não tiveram o cuidado, comum em relação a todos os
grandes soberanos, de selecionar para a sua guarda pessoal os melhores de entre os melhores.
Contudo, é de aceitar que estivessem conscientes do facto de Spence não poder ser tratado da
mesma maneira brutal como costumavam tratar o comum dos portugueses (30). Talvez
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soubessem que existia uma Embaixada de Sua Majestade Britânica onde não faltava vontade e
capacidade para proteger os respetivos súbditos. Tal não era o caso da Embaixada de Portugal
onde, por informação pessoal do secretário, tinha sido colocado um embaixador afeto ao
Partido Comunista, com entranhado ódio pela burguesia colonial, que chegava ao ponto de,
sub-repticiamente, desviar as suas verbas orçamentadas para poder cobrir as vultuosas
despesas de Rosa Coutinho, em Angola!
Continuando. Cerca das 11 h. bateram à porta de Spence dois soldados da Frelimo
exigindo que lhes mostrasse a sua aparelhagem de rádio-transmissão. Mandou-os entrar e
garantiu-lhes que, em matéria de comunicações, apenas possuía dois “walkie-talkies”
portáteis que era obrigatório usar quando, por desporto, velejava na baía. Os soldados
apreenderam ambos os aparelhos. Perguntaram depois se dispunha de espingardas. Spence
informou-os que cumprira as determinações legais e que já tinha feito entrega na Polícia de
todas as armas que possuía. Exigiram então que lhes mostrasse a arma pregada na parede.
Spence acentuou que se tratava de simples ornamento, datado de 1893, que a Polícia
considerara inutilizado quando chamou a sua atenção para a perfuração deliberada da culatra.
Os soldados, indiferentes, apreenderam-na.
Exigiram finalmente que os acompanhasse até à casa da guarnição do palácio
presidencial. Aí a patrulha foi reforçada com mais dois elementos. O que parecia comandar,
avisou Spence de que iriam efetuar nova busca mas desta vez “à maneira da Frelimo”.
Começou pelo principal quarto de dormir e exigiu a Spence que lhe mostrasse a sua pistola.
Quando negou a posse de tal arma, os quatro soldados, passando as Kalashnikovs para as
costas, removeram completamente o conteúdo das gavetas e demais escaninhos dos móveis.
Um dos soldados empunhou o binóculo que encontrara e perguntou como se disparava!
Finalmente, na parte superior do guarda-fatos, depararam com algo mais importante: uma
pequena caixa de lata colorida de vermelho. Levantada a tampa, o soldado exclamou
triunfante: isto é dinamite! Sem perder a fleuma britânica Spence foi observar: tratava-se de
antigos e pequenos foguetes chineses que seu filho usara para alegrar qualquer festa infantil.
Apreendida a caixa, subiu para três o número de objetos perigosos.
Passaram depois para o escritório. O que parecia comandar, sentou-se comodamente na
cadeira da secretária, olhou em roda e comentou com sarcasmo: “Pois é! Um ambiente de
luxo próprio de um capitalista; de certo que explorou o povo para conseguir isto!”. Spence
sugeriu que ouvisse o “grupo dinamizador” da sua firma, com quem mantinha as melhores
relações. O militar continuou, com rancor: “Nem o nosso presidente tem um gabinete assim!
Porque não põe a fotografia dele na parede?” Spence retorquiu que na sua casa colocava nas
paredes apenas retratos de familiares e não de políticos, nem sequer da Rainha britânica. O
truculento militar decidiu, por fim, mandar Spence, sob prisão, para o Quartel-General,
situado a curta distância.
Aqui foi submetido a mais interrogatórios, desta vez formulados por militares mais
instruídos e educados. Um deles usava óculos. O outro era mestiço e quis saber quantas vezes
o irmão de Spence tinha vindo a Moçambique com o propósito de espiar. Foi-lhe respondido
que se tratava de um homem sério, com autorização de residência, dedicado aos seus negócios
entre Moçambique e a África do Sul.
Seguiram-se outros pequenos incidentes, até que um dos interrogadores pediu a Spence
que viesse com ele até à Embaixada Britânica. Nada de importante respondeu quando Spence
lhe recordou que a embaixada encerrava nos fins de semana.
Spence só compreendeu a gracejo quando se encontrou inesperadamente na Polícia
Judiciária face a face com um homem ruivo, manifestamente cansado, que falava
corretamente o inglês. Logo compreendeu que se tratava do tristemente famoso Zeca Russo
(31). Este, depois de ouvir o que acontecera e de ver os objetos apreendidos, classificou como
252
absurdo o procedimento da soldadesca e até mesmo o facto de o forçarem a interrogatórios no
Quartel-General. Certamente para dispor de um documento legal que pudesse apresentar às
instâncias superiores e, talvez, à Embaixada Britânica, explicou que iria datilografar um
“termo de identidade” e mandaria alguém à residência do Inspetor Jorge Costa. Para por a sua
assinatura. Sugeriu a Spence que telefonasse a sua esposa. Esta, depois de tantas horas
angustiadas, veio buscá-lo. Chegaram a casa para jantar um pouco antes das 20 horas.

***

É comovente o elogio que Spence fez à bem coordenada reunião, na Igreja Anglicana,
nas vésperas do Natal. Cantaram em coro durante a comunhão e recordou a figura de seu pai
que fora mordomo daquela igreja durante vinte e cinco anos até ao seu falecimento em 1929.
Essa mesma igreja onde sua mãe lançara a primeira pedra em 1920. Tudo lhe pareceu
apropriado para celebrar o final de uma era em Moçambique, uma era em que a família
Spence desempenhou papel proeminente durante três gerações.
Também o fim do ano de 1975, foi comemorado de forma admirável. Conseguiu reunir
vinte e sete membros da família dispersos por diversos países do mundo (Portugal, Brasil,
Rodésia e África do Sul). Quase todos grandes empresários foram-se concentrando, pouco a
pouco, na Ilha da Inhaca, para gozarem pela última vez o cristalino mar semi-tropical: ali
pescaram, ali nadaram, ali velejaram, ali mergulharam.

A sublevação dos soldados macondes (17 e 18 dezembro 1975)

Nos dias citados a população da capital foi mais uma vez alarmada por intenso tiroteio
que parecia partir de pontos indeterminados dos subúrbios, mas que, esporadicamente,
também abrangia alguns locais da «cidade de cimento». Durante a noite, esse tiroteio assumiu
aspeto semelhante ao de fogo-de-artifício, sob a forma de rajadas de balas tracejantes que,
como aparentava, provinham de atiradores dispersos por toda a parte e que apontavam… para
o céu!
Pude, casualmente, assistir a este espetáculo na varanda do quarto que então ocupava no
quinto andar do Hotel Aviz. Baseado nos factos que eu próprio testemunhei e nos elementos
que mais tarde pude recolher, ressalta uma certeza que não mencionei na minha conferência
coimbrã de 1988: os dirigentes militares da Frelimo, talvez instigados pelos seus instrutores
da Alemanha do Leste, usaram esta rebelião armada para exibir de forma ostensiva o seu
poderio militar e, desse modo primário, amedrontar ainda mais a população dita não-indígena
que ainda residia na capital.
Spence chegou à mesma conclusão quando, no dia 18, se deslocou aos seus escritórios
na Av. Paiva Manso. Os soldados frelimistas encontravam-se dispersos pelos terraços dos
prédios mais altos e daí faziam espaçadas rajadas de metralhadora em direções incertas,
ninguém compreendendo quais os alvos que pretendiam atingir. Regressado a casa, constatou
que outros cinco soldados tinham invadido o seu jardim e que, no respetivo murete (com
“com bom comandamento de vistas e de fogos”) tinham instalado uma metralhadora. Daí
faziam intermitentes rajadas em várias direções. Mostravam-se contentes. Eram substituídos
de seis em seis horas, recebiam comida quente, conversavam em voz alta, indolentemente
reclinados nas cadeiras da piscina, gozando os prazeres até então reservados aos capitalistas.
253
Durante o III Congresso, realizado em inícios de 1977, os dirigentes da Frelimo
interpretaram de modo deliberadamente distorcido este conflito armado cuja origem étnica foi
confirmada sem dificuldades. Eis a versão frelimista:
“É especialmente a partir desta nova derrota que a burguesia colonial, completamente
isolada, desmascarada, incapaz de enfrentar o avanço das massas trabalhadoras dirigidas pela
Frelimo, foge em debandada do nosso país. Em janeiro 1976, num só dia, chegaram a ser
abandonadas vinte empresas na capital”.

Bibliografia

1) BALMES, Pierre (1979). Le Mozambique. Paris, Afrique Contemporaine, p. 106.


2) TORP, Jens Erik (1979). Industrial planning and development in Mozambique: some preliminary
considerations. Uppsala, Res. Report nº 50, Scandinavian Institute of African Studies.
3) Por mera curiosidade citarei que, durante o percurso, fomos escrutinados por um navio da armada britânica.
Suspeitava talvez de ligações com o inimigo germânico. De facto, pouco depois de haver sido empossado
como aspirante interino no Mogincual, quando fiscalizava um mercado algodoeiro, dois inexplicáveis
trovões assustaram todos os presentes. Só após dois dias, soubemos o que se havia passado. Um cargueiro
grego tinha sido torpedeado, perto da costa, por um submarino alemão. Os náufragos remaram diretamente
para o farol de Namalungo em busca de auxílio.
4) SPENCE, C. F. (1963). East African Province of Portugal. Cidade do Cabo (Afr. do Sul), Howard
Timmins, pp. 147, fotos.
5) SPENCE, C. F. (1965). Moçambique: África Oriental Portuguesa. Lisboa, edição do autor, pp. 359, fotos,
quadros, cartas.
6) SANTOS, Manuel Pimentel dos (1972). Programa para Quatro Anos. L. Marques, governo-geral de
Moçambique, pp. 64.
7) SANTOS, Manuel Pimentel dos (1972). Moçambique em Marcha. L. Marques, Imprensa Nacional
8) Tudo leva a crer que este governador estivesse preocupado com as graves divergências surgidas, em
matéria de aldeamentos, entre a administração civil e os altos comandos militares. Os primeiros
sabiam, por experiências variadas, que a população nativa repudiava as grandes concentrações que
tantos prejuízos traziam à sua rotina secular mas eficiente. Os fatores que se seguem tinham a maior
relevância: a) proximidade de vegetais lenhosos que alimentassem as fogueiras acesas para fins
diversos, sobretudo culinários; b) campos de cultivo e pastagens, exigindo proteção contra a fauna
selvagem, como aves e roedores; c) existência de água potável em suficiente quantidade e a curta
distância já que as mulheres continuavam a transportar o vasilhame à cabeça. Bernardino Oliveira (v.
nota 1) também se referiu a este problema escrevendo o seguinte:
9) “Em Moçambique o contrário sucedeu na maior parte dos aldeamentos; o homem forçado a abandonar a
sua casa e o usufruto das suas machambas, viu a sua precária economia destruída, viu o seu gado e a sua
capoeira desbaratados, sentiu o desrespeito pelos seus maiores, pelas suas crenças e pelo seu habitat, viu
o desmoronar das suas estruturas sociais e passou a sentir a sua segurança física sempre em perigo entre
dois fogos”.
10) As altas patentes militares, nadas e criadas nos centros urbanos da Metrópole, eram indiferentes a estas
preferências pelo habitat disperso. Em seu entender trazia grandes vantagens a concentração em grandes
aldeamentos, não só fáceis de controlar como também privados do contacto com guerrilheiros
facilmente escondidos em toda a espécie de abrigos, rochedos e matagais. O autor supracitado resumiu a
perspetiva dos militares deste modo (v. nota 2): “Teoricamente visa-se recolher as populações dispersas,
tão expostas às agruras da guerra, o que permitiria facilitar não só a prestação de auxílios logísticos,
sanitários e escolares mas também a defesa e o controlo por parte das forças armadas sem perigo de
atingir indiretamente as populações indefesas”.
11) Pimentel dos Santos julgava merecer especial valia a opinião de Spence, estrangeiro neutro e credível,
conhecedor dos mais difíceis problemas de Moçambique e também das soluções eficientes adotadas
pelos governantes britânicos em casos extremos como no Quénia, durante a célebre revolta dos Mau-
Mau.
254
12) MENEZES, M. A de Sousa (2005). A Sociedade de Geografia de Lisboa. Começo e Fim do Império
Colonial. O caso de Moçambique. In: Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, Série 123ª – nos 1-12,
janeiro - dezembro, pp. 293-310.
13) SILVA, Frederico A. Monteiro (2008). Lusaka, 7 de Setembro de 1974. In: Boletim da Sociedade de
Geografia de Lisboa, Série 126ª – nos 1-12, janeiro - dezembro, pp. 126-138.
14) RITA-FERREIRA, A (1988). Moçambique Post-25 de abril: Causas do êxodo da população de origem
europeia e asiática. In: Moçambique: Cultura e História de um País. Coimbra, Instituto de
Antropologia/Centro de Estudos Africanos, 8, p. 130.
15) CARLOS, Rui Palma (s/d). Eu Fui ao Fim de Portugal – Subsídios para “dossier” do Timor Português.
Lisboa, Edições Fernando Pereira, pp. 383, fotogravura na contra capa.
16) OSÓRIO, Helena Sanches (s/d). Um Só Rosto Uma Só Fé – Conversas com Adelino da Palma Carlos.
Lisboa, Referendo, p. 34.
17) SILVA, Frederico A. Monteiro (2008). Idem.
18) V. Diário do governo de Lisboa, I série, nº 210, 9 setembro 1974.
19) 3º Suplemento do Boletim Oficial, nº 74, de 21 junho 1975, último publicado em Moçambique como
território português
20) GALHA, Henrique Terreiro (2011). Descolonização e Independência em Moçambique Factos e
Argumentos. Lisboa, Esfera do Caos.
21) PASSOS, Inácio (1977). Moçambique e a Escalada do Terror. Queluz, Portugal, Literal-Sociedade
Editora.
22) JARDIM, Jorge (1976). Moçambique – Terra Queimada. Lisboa, Editorial Intervenção.
23) SAAVEDRA, Ricardo de (1983). Aqui Moçambique Livre. Joanesburgo, África do Sul, Livraria Moderna.
24) OLIVEIRA, G. Bernardino (1978). Idem.
25) MESQUITELA, Clotilde (1974). Moçambique – Sete de Setembro. Lisboa, Edições A Rua.
26) COCCIA, Giancarlo (1976). The Scorpion Sting – Moçambique. Joannesburgo, África do Sul, Livraria
Moderna, 185 pp., foto gravuras.
27) BARREIROS, Pinho (1977). Um Ano nas Masmorras da Frelimo. Lisboa, Liv. Popular de Francisco
Franco.
28) RITA-FERREIRA, A (1988). Idem, pp. 121-169.
29) COURTOIS, Stéphane et alli (1997). Le Livre Noir Du Communisme – Crimes, terreur, répression.
Paris, Robert Laffont.
30) SÁ, José Pinto de (1995). Os campos da vergonha. Lisboa, Jornal diário “Público Magazine”, 25 junho
1995.
31) Conspicuous Destruction. War, Famine & the Reform Process in Mozambique. New York, Human
Rights Watch, 1992.
32) Jornal diário “Notícias”, Maputo, 5 fevereiro 1976, p. 148.
33) RITA-FERREIRA, A. (1967 – 1968). Os Africanos de Lourenço Marques. L. Marques, Mem. Inst. Invest.
Cient. Moçambique, 9, série C, pp. 373/4.
34) Spence, C. E. Diary of events in Moçambique: April 25, 1974 – March 22, 1976. Inédito, pp. 32.
35) Acabou por fugir para a África do Sul, onde apareceu assassinado no quarto de um hotel de Joanesburgo.
Foram-lhe imputadas ameaças e extorsões que visavam, sobretudo, as joias e outros objetos valiosos
pertencentes a mulheres indianas.
Nota 1 – OLIVEIRA, G. Bernardino (1978). Aqui Portugal Moçambique. V. N. de Famalicão,
Portugal.
Nota 2 – OLIVEIRA, G. Bernardino (1978). Idem.
257

NOTA SOLTA
O túmulo de M’Bire Nhantécuè

Como foi relatado por Velez Grilo, no seu artigo de 1968, o túmulo da personagem que
os súbditos designavam por M’bire Nhantéquè (Nyantekwe) tinha sido descoberto, dez anos
antes, pelo Eng. Sales Grade, chefe da Missão Geográfica de Moçambique (1). A descoberta
encontra-se também referenciada na obra dedicada à comemoração do centenário da
Comissão Cartográfica – 1883/1983. Em 1991 surgiu a oportunidade de melhor esclarecer
este assunto quando consegui contactar, pela primeira vez, com o próprio Eng. Sales Grade.
Com grande gentileza forneceu pormenores de bastante interesse, que depois decidi incluir em
obra da minha autoria (2).
Mais tarde, em junho 1994, consegui reunir na biblioteca da Sociedade de Geografia de
Lisboa, o Eng. Sales Grade e o Prof. David Beach, historiador do Zimbabué. Podem resumir-
se, em sequência cronológica, os pormenores relatados nessas duas ocasiões, pelo distinto
geógrafo:
a ) A existência da sepultura secreta de um antigo, importante e venerado soberano, escondida
entre um cerrado matagal de arbustos espinhosos, teria sido confidenciada ao pequeno
comerciante Almeida Melo, estabelecido na foz do Panhame, por uma filha do régulo
Nhanchenge, com a qual vivia maritalmente;
b ) Este Melo, outrora funcionário administrativo, fluente no idioma local, nutria grande
interesse pela etno-história da região e até colaborava no quotidiano “Notícias”, de L.
Marques, sendo os seus conhecimentos de bibliografia e de tradição oral suficientes para
refutar, com indiscutíveis fundamentos, algumas hipóteses erradas sobre as relações entre os
Mutapas e o Grande Zimbabué, avançadas pelos arqueólogos rodesianos Roger Summers e
R. Robinson (3);
c ) Melo entrou em comunicação com Velez Grilo e Simões Alberto – outros estudiosos da
etno-história moçambicana – a quem transmitiu parte das informações secretas;
d ) Velez Grilo em 1957, sabendo que se encontrava de passagem na capital, decidiu solicitar o
auxílio de Grade que, em campanhas anuais, procedia à inspeção dos marcos fronteiriços no
então distrito de Tete, auxílio que foi prometido mas apenas durante a campanha do ano
seguinte;
e ) De facto, Sales Grade logo que atingiu a região foi procurado por Melo que, de mistura com
fantasias prefigurando algum desequilíbrio, insistiu em que a sepultura se devia encontrar
em terras do régulo Macombe;
f ) O perito decidiu entrar em ação, por sua conta e risco, mas mantendo-se afastado das
autoridades administrativas, bem capazes de prejudicarem os seus planos por recorrerem a
métodos grosseiros de intimidação;
g ) Como era esperado, o régulo Macombe negou, de início, a existência de qualquer túmulo
mas, mais tarde, veio a revelar que as terras mencionadas pertenciam ao seu vizinho
ocidental, o régulo Nhanchenge;
h ) O obstinado Grade transferiu o acampamento para a povoação deste último, na margem
direita do Panhame e, respeitando os costumes, fez preceder a visita por uma respeitosa
espera fronteiriça de dois dias, reforçada com oferendas e saudações transmitidas pelo seu
intérprete;
258
i ) Em frente a frente, este régulo também negou a presença do túmulo;
j ) Grade, não sem problemas de consciência, decidiu recorrer ao estratagema de exibir um
documento e, em grandes brados, garantiu ser um testamento deixado pelo seu antepassado
António Fernandes que primeiro visitara o Muene Mutapa, no qual determinava que
qualquer dos seus descendentes, ao passar por aquela região, teria como obrigação prestar
homenagem ao espírito do antigo e importante monarca;
k ) Como Nhanchenge perseverasse na negativa, o visitante replicou que continuaria ali porque
corria o risco de ser duramente castigado pelo espírito irado do seu avoengo caso partisse
sem homenagear o túmulo; de tão pressionado, o régulo acabou por assentir, mas logo se
escudou na necessidade de obter também a autorização de outro notável que dava pelo nome
de Cháua (Shawa), de grande importância na religião tradicional porque tinha poderes
mediúnicos nos contactos com o espírito do monarca incorporado num leão;
l ) Sales Grade levantou então o acampamento, para se instalar na povoação do Cháua mas de
nada serviram as habituais deferências porque o “sacerdote” não escondeu o seu desagrado e
a sua hostilidade, chegando ao ponto de acusar abertamente Sales Grade de recorrer a puras
falsidades;
m ) O geógrafo reagiu com a sua habitual paciência e diplomacia, argumentando que só pela
carta deixada pelo seu antepassado poderia ter sabido que o túmulo se situava naquela
região;
n ) Como o Cháua continuasse insensível a estes argumentos, mais uma vez ameaçou que não
deixaria o lugar enquanto não conseguisse visitar o jazigo;
o ) Perante tamanha obstinação e tão convincente argumentação, o Cháua acabou por aceder,
embora contrariado, exigindo por fim que também se obtivesse o consentimento do chefe de
povoação Mepaco, localizado de oito a dez quilómetros do sepulcro e que lhe servia de
guardião;
p ) Acompanhado pelo Nhanchenge e pelo Cháua, Grade transferiu o seu acampamento para
aquela última povoação, onde repetiu formalidades, cumprimentos e oferendas;
q ) Por fim, deslocando-se a pé, sempre a corta-mato, abrindo caminho com catanas, conseguiu
atingir o venerando local e verificou que nas suas proximidades, existia um antigo poço que
de início deveria ser de grande dimensão e profundidade mas que agora estava como
entulhado, poço que tinha perto duas ou três palmeiras;
r ) Mais adiante deparou com frondosa árvore que um dos acompanhantes designou por
“igreja”, isto é, local sagrado reservado ao culto e às preces em cujo perímetro se
distinguiam com efeito inúmeros vasos de olaria ali depositados, com oferendas, por
sucessivas gerações de suplicantes;
s ) Os notáveis garantiram que dali até ao sepulcro ninguém conseguiria passar com vida;
t ) Contudo, abrindo caminho entre as espinhosas, Grade atingiu com grande dificuldade os
restos de uma muralha circular de argila que, no seu início, deveria ter uns três metros de
espessura e outros tantos de altura mas que agora, desmoronada pelas intempéries
apresentava apenas um metro de altura;
u ) Os três dignitários descobriram-se e quedaram-se mudos e imóveis;
v ) O geógrafo subiu às ruínas e constatou que, no centro, se erguia um amontoado de argila e
pedras talvez cobrindo o memorável antepassado;
w ) Entre este jazigo e a parte do muro oposta à entrada erguia-se um embondeiro de médio
porte, decerto ali deliberadamente plantado e cuja folhagem se apresentava fresca e verde
como se fosse bem regado;
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x ) Maior surpresa esperava ainda Sales Grade – sobre os restos da muralha encontravam-se
numerosas armas antigas, um pequeno canhão de bronze fundido em Goa com as armas do
rei Dom Manuel I, um canhão hexagonal fundido em ferro e de provável origem arábica,
duas pistolas de diferentes calibres tendo uma delas a fecharia decorada com uma flor-de-lis
prateada, cerca de duas dezenas de antigos arcabuzes com longos canos desfeitos pela
ferrugem e, por fim, um mosquete que depois foi classificado como incomparável peça de
museu;
y ) Os três notáveis também pareceram surpreendidos com tais achados;
z ) Notando que se tinha atingido um clímax de grande tensão, Sales Grade decidiu abreviar a
visita não sem antes ter mandado o seu ajudante medir a passo o perímetro da muralha (com
cerca de 500 metros) e de proceder à recolha dos restos das armas, incluindo a fecharia dos
arcabuzes, após esclarecer os guardiães presentes que o espírito do seu antepassado exigia
que as armas encontradas fossem devidamente resguardadas;
aa ) Antes de deixar a povoação do Mepaco, obteve de seu herdeiro, robusto e viajado jovem, a
promessa de que abriria uma picada até ao sepulcro;
bb ) O expedito geógrafo deslocou-se depois a Tete onde, ao governador do distrito, entregou
todas as peças remanescentes;
cc ) Avisado por telégrafo, Velez Grilo surgiu semanas depois (outubro 1958) acompanhado
pelo agrimensor Guedes Campos que efetuou vários levantamentos topográficos que, sem
explicação, desapareceram por completo;
dd ) Também tinha sido prevista a recolha de filmes e imagens por um profissional que, para
cúmulo, ficou na Beira, incapacitado por doença súbita;
ee ) Velez Grilo deslocou-se ao túmulo sagrado, em companhia da referida comitiva indígena e
alienígena, recolhendo olaria e outros objetos e, talvez movido pelo propósito de evitar a
intromissão de turistas e outros curiosos, guardou segredo durante anos;
ff ) Só em 1968 decidiu dar público conhecimento da descoberta;
gg ) Sales Grade terminou por acentuar que os notáveis nunca empregaram as palavras Muene
Mutapa ou Zimbabué para designarem quer a categoria do chefe venerado quer o conjunto
que constituía a sua sepultura;
hh ) Insistiram sempre e apenas na denominação de M’bire Nhantéquè;
ii ) Na carta nº2 (Zumbo) da escala 1:250.000, localizei o túmulo nas nascentes do rio Biri que
desagua na margem esquerda do rio Mussenguezi, por sua vez afluente do Zambeze;
jj ) Perto, por conseguinte da povoação Chiruca e da cota 392.
kk ) Tomo a ousadia de acrescentar a estes elementos rigorosamente exatos, alguns comentários
meramente pessoais cujo carácter assaz superficial é meu dever salientar.
Tanto quanto é do meu conhecimento, a associação Matope/Nhantéquè/Nobeza foi pela
primeira vez apresentada por Albino Pacheco, com base nas informações recolhidas em
1861/2, durante a sua travessia terrestre de Tete ao Zumbo (4). A fonte comum em que se
basearam Pinto de Miranda e Mello de Castro, no Séc. XVIII, refere contudo Nebeza como
um dos primeiros Mutapas. O historiador D. P. Abraham que, nos meses de julho e agosto
1958, realizou pesquisas de campo na região logo a seguir percorrida por Sales Grade, tratou
só daquela associação no seu artigo “The Monomotapa Dinasty” (5) citando, entre outras
fontes, o cronista António Bocarro que mencionou de forma específica o reino de Beza,
atravessado pelo Mussenguezi, onde existiria uma elevação orográfica designada por Nobiri.
Após garantir que Matope (o monarca que acelerou o processo de expansão e conquista, com
o sobrenome de Nyanhehwe) fora sepultado em Bedza termina por sugerir: “A field
expedition to the Bedza ruins would, in my opinion, prove of great archaeological value”.
260
Todavia, a validade da associação Matope/Nyanhehwe/Bedza foi posta em dúvida por
David Beach (6) baseado em pesquisas mais sistemáticas e intensivas. Por outro lado, ela foi
admitida por outro historiador do Zimbabué, S. I. G. Mudenge (7), no seu artigo de 1976
sobre os Dominicanos do Zumbo e no seu livro de 1988 sobre os Mutapas (8). Impressiona o
aproveitamento que faz da numerosa documentação primária portuguesa proveniente do
Zumbo, prolongando-se de 1774 a 1825, da qual ressalta a suprema importância que era
concedida ao m’pondoro Bedza, em toda aquela vasta região ao sul do Zambeze. Mudenge
também cita como significativo o testemunho de David Livingstone (1854) ao informar que
todos os chefes de Dande e da Chindima reconheciam a supremacia de um tal Nyatewe
(Nhatéuè) na resolução de litígios sobre os limites territoriais. Será que em contacto com os
Tauaras, o tradicional sobrenome chona Nyanhehwe haja sofrido alterações fonéticas com a
substituição do primeiro h aspirado por t, seguida talvez regionalmente, pela substituição do
segundo h aspirado por k em inglês e por q ou c em português? Recordemos que o topónimo
Guruuswa foi transformado em Gunuvutwa pelos Tauaras (9).
Está fora dos nossos propósitos e das nossas possibilidades aprofundar este enigmático
assunto que só interessa a alguns especializados na etno-história regional. Diremos, todavia,
que ao estudar recentemente a documentação do Séc. XVI referente à região entre o Save e o
Zambeze, deparámos com significativos exemplos do prestígio ou pelo menos do renome que
ainda conservavam os distantes Mutapas entre os povos que se dispersavam pelas terras
baixas até ao mar.
No que concerne as antigas armas de fogo encontradas na região, Abraham presta o
seguinte e confuso esclarecimento (na nota 32b): “Bedza is first mentioned in Portuguese
records by Bocarro – Década 13, and correctly located by him. Its location was given to me in
1958 by Chikuku, who lives in the Dande, Sipolilo District. His father was hereditary
guardian of the site of Matope’s village. To the west is the site of Matope’s grave (Mujagwaji
Pan – by some musika trees) – in the middle is the large circle of mutuhwa trees, surrounding
the now dilapidated fort. Five Portuguese cannons from the period of Mwene Mutapa Mavura
(1629-1652) were removed from the site in Augusto, 1959, for display in Lisbon and Tete…
To the east of the fort is the dendemaro, where the mhondoro Nebedza makes offerings (no
incumbent at the moment). The area has very recently been visited by me”.
Digo confuso porque o leitor continua na ignorância quanto à localização do sítio.
Rodésia ou Moçambique? Na verdade, no texto que a nota pretendia esclarecer, Abraham foi
bem conciso: “Matope establishes himself in the district of Bedza south of the river Biri, a
small western confluent of the Mussengezi about twenty miles south of the confluence of the
latter with the Zambezi”. Ora as atitudes dos três dignitários e o sucesso de Sales Grade
permitem ter como certo que Abraham também procurou, mas sem êxito, encontrar o túmulo.
Não há dúvida que sabia da sua existência e localização entre o Panhame e a Chicoa. Também
se fica a ignorar o local exato de onde foram retirados os cinco canhões e qual o seu atual
paradeiro. É óbvio que seria de bastante interesse para a historiografia dos Mutapas procurar
efetuar datações de todo o armamento encontrado.
É de admitir a hipótese de que as deposições de armas de fogo representem oferendas ao
espírito do épico conquistador e fundador do vasto império dos Mutapas. O facto dessas
armas pertencerem a épocas distintas permite mesmo aceitar a probabilidade de serem
provenientes de três massacres mais ou menos documentados que envolveram portugueses e
seus auxiliares:
a) A emboscada feita à guarnição que Vasco Fernandes Homem deixou na Chicoa cerca
de 1576 (10);
b) A destruição das feiras planálticas durante a revolta generalizada de 1631 instigada
pelo Mutapa Caparidze (11);
261
c) A execução do governador Truão e dos seus subordinados em 1807 (12). Sabemos
que, em todos estes casos, o prestígio dos Mutapas foi gravemente desrespeitado.
Albino M. Pacheco, em 1861, durante o seu trajeto de Tete ao Zumbo, também recolheu
as seguintes tradições que confirmam a importância de Nhantécuè (13):
“Ramo do tronco primitivo, foi Matópe o fundador da Monarquia da Chidima, e aquele
que separou, em seu proveito, o território Dande do da Chidima, e se fez acreditar como
profeta depois de morto, com os nomes de Nobeza ou Nhantéguè 1 (cujo exemplo também
seguiram sua irmã mulher Inhamita, e seus irmãos Namangóro e Amarengo) porque antes de
desaparecer tinha declarado que o seu espírito, como imortal, se metamorfosearia em um leão,
onde, como atalaia, continuaria a vigiar e a trabalhar pelo seu povo, datando dele o grande
número de profetas de segunda ordem, aos quais ele mesmo chama sapos (Chúre em
linguagem do país) que sob o pseudónimo de m’pondoros falantes depois de terem sido
Muanamotépuas abundam em toda a Chidima com o beneplácito do profeta em chefe, e o
culto sagrado quase que degenerando em fanatismo que os naturais tributam ao leão por ser o
animal escolhido de preferência para nele encarnar o espírito dos seus mambos. Às imundas
quizumbas, como nanhae ou guardas do m’pondóro, também prestam consideração respeitosa.
Matar pois um leão ou uma quizumba nas povoações dos m’pondoros, é crime imperdoável.
Matope não só foi o primeiro mambo da Chidima, como teve a glória também de ser o
primeiro que viu e falou com os portugueses, e que teve o apelido de Muanamotápua, que
literalmente significa “criança apanhada na guerra” em consequência de ter nascido de uma
nativa prisioneira de guerra; e foi finalmente aquele que deu princípio à agricultura da
Chidima, porque até ali viviam os Demas só da caça, e estranhos a toda a sorte de trabalho”.
Prestes a terminar, o presente autor pede licença para lamentar, perante os
conhecedores, a atitude algo desconfiada e até hostil que, durante a sua permanência em
Lisboa, David Beach assumiu contra este seu amigo e até mesmo contra o geógrafo Sales
Grade, que tão gentilmente acedeu a repetir e até a acrescentar pormenores de como
conseguira descobrir o túmulo de “Mbire Nhantécuè”. A explicação que parece mais provável
para tão estranho comportamento deve ter origem na seguinte afirmação perentória que
incluiu na sua obra de 1980 sobre os Chonas “no absolutely accurate link between traditions
and ruins can be made” (14). D. Beach admitiu que desconhecia a tardia e já citada
comunicação de Velez Grilo.
Também se podem integrar nesta problemática os pormenores de muito interesse que
Paiva d’Andrada (15) apresentou com informações, algo confusas, sobre a identificação e os
poderes mediúnicos dos m’pondoros. Esses elementos podem resumir-se do modo que se
segue. No território entre-os-rios Mussenguesi e Muze, conhecido por Chidima, o chefe
supremo tinha o nome de Cateresa e considerava-se como legitimo sucessor do Muene
Mutapa. O altíssimo m’pondoro da Chidima denominava-se sempre Inhatécuè. Prevalecia a
crença arreigada de que, após o falecimento do monarca, iria aparecer alguém proclamando
ter sido possuído pelo respetivo espírito, com a faculdade de sobreviver na selva e de se
transformar temporariamente em leão. Havia famosos m’pondoros nas maiores unidades
políticas. Forneceu, em outro lugar (of. 36, fl.115) os nomes dos “mpondoros clânicos”
Chimpore – predominava no Báruè, devendo um deles prestar assistência ao filho do
monarca, sempre designado pelo título hereditário de Macombe, notável em Massangano;
Inhamauio – ligado ao grande régulo Mutoco, preponderava no território Budya ou Buria,
tendo sido atribuída ao seu oportuno auxílio sobrenatural a retumbante derrota que aquele
potentado infringiu ao conhecido sertanejo Manuel António de Sousa; Inhamafeca –

1
– O primeiro significa “grande adivinho” ou “feiticeiro”, e o segundo “senhor do Tégué” ou pele, por ser o
primeiro que fez uso das peles para cobrir a sua nudez.
262
sobressaía nas terras de Dande, a sudeste do Zumbo; Inhaxaba – prevalecia na região de
Damba, entre-os-rios Unfuli e Sanhati; Inhamusana – proeminente em Inhamaconde, ao sul
de Guesa; Chimera – exercia maior influência nas terras de Changoe, situadas entre-os-rios
Sanhati e Jangale, este último afluente do Cuabe.
No mesmo ofício nº 37, Paiva d’Andrada faz as seguintes considerações sobre os
motivos que levaram os Bongas a considerarem-se quer senhores da Chidima quer
subordinados a deveres de proteção dos régulos contra as autoridades de Tete. Na Chidima
distinguia-se entre outros o régulo hierarquicamente superior de Cateresa, sucessor do Muene
Mutapa. A ele se seguiu Candia; o seu m’pondoro, sempre chamado de Inhatécuè,
aconselhou-o a romper com Tete e a juntar-se ao Bonga. Mas Candia foi obstruído pelo
governador Manuel A. de Gouveia o qual considerou como prazos e aceitou o arrendamento
das terras de Degué e de Boroma, a oeste de Tete. Este governador foi morto a 6 junho 1867,
durante o primeiro ataque a Massangano. O novo governador, interino, capitão Antunes da
Cunha tomou posse no mesmo dia e manteve-se no cargo até 30 abril do ano seguinte. Atacou
Candia com cinquenta soldados e com auxiliares chefiados por Manuel António de Sousa. O
recontro ocorreu no riacho Mechinda, no Degué, tendo sido morto o m’pondoro Inhatécuè.
Inácio de Jesus Xavier também atacou Candia no rio Canguse, afluente do Máguè, morrendo
o herdeiro em combate. No regresso “limpou” a região entre Canguse e Tete. A gente de
Candia, falecido em 1876, reocupou as terras a sul e a oeste de Boroma. Sucedeu-lhe Zuda
que saqueava a mercadoria dos comerciantes. Fernandes Júnior (16) a pg. 44, diz que este
Zuda destroçou duas forças vindas de Tete. Foi esmagado por Inácio quando organizou uma
expedição punitiva contra Inhampando – com autorização do governador de Tete a quem
roubara o marfim que adquirira e enviara das terras do monarca angoni Mpezene.

Bibliografia

1) GRILO, V. H. Velez (1968). A localização do Zimbabwe de M’bire Nhantekwe (Nhantécuè). L.


Marques, Monumenta, 4, pp. 15/9.
2) RITA-FERREIRA, A. (1999). African Kingdoms and Alien Settlements in Central Mozambique (c.15 th
– 17th Cent.). Departamento de Antropologia – Universidade de Coimbra.
3) MELO, A. de Almeida (1958). As ruínas do Zimbábuè e o Monomotapa – Carta aberta a Roger
Summers e R. Robinson. L. Marques, Notícias, de 10 a 13 abril.
4) PACHECO, Albino (1883). Uma Viagem de Tete ao Zumbo. Ilha de Moçambique, Imprensa Nacional, pp.
24, 44/5.
5) ABRAHAM, D. P. (1959). The Monomotapa Dynasty. Salisbury (Rodésia), NADA, 36, pp.58-86.
6) BEACH, David (1980). The Shona and Zimbabwe 900-1850. Gwelo (Zimbabwe) Mambo Press.
7) MUDENGE, S. I. Gorerazvo (1976). The Dominicans at Zumbo: an aspect of missionary history in the
Zambezi valley c. 1726-1836. Mohlomi, J. of Southern African Historical Studies, Vol. I.
8) MUDENGE, S. I. (1988). A Political History of Munhumutapa c. 1400-1902. Harare, Zimbabwe
Publishing House.
9) ABRAHAM, D. P. (1959), Idem.
10) SANTOS, João dos (1999). Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente. Lisboa,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
11) MUDENGE, S. I. (1988), Idem.
12) ALMEIDA de Eça, Filipe Gastão de (1953-4). História das Guerras no Zambeze: Chicoa e Massangano
1807-1888. Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 2 vols.
13) PACHECO, Albino (1883), Idem.
14) BEACH, David (1980), Idem.
15) ANDRADA, Paiva d’ (1887). Expedição a Sofala. Lisboa, Arquivo Histórico Ultramarino. Oficio nº37,
escrito em Massanga, a 11 junho.
16) FERNANDES JUNIOR, José (1956). Narração do Distrito de Tete (c. 1884 – 1902). Chiúta (Macanga), p.
195, não publicado.
263


NOTA SOLTA
As pinturas rupestres de Chifumbazi e Chicolone

Julgo que se deve a Gago Coutinho a primeira notícia escrita sobre a existência de
notáveis pinturas rupestres nesse remoto local. De facto, no “Caderno do itinerário percorrido
para demarcar o paralelo 14”, relatou haver constatado em 30 novembro 1904 a existência
desse conjunto arqueológico. Mas entre os topónimos que citou não se encontra Chifumbazi
(1). No entanto, segundo o Prof. Mendes Correia (2) Gago Coutinho, em ocasional conversa
ocorrida muitos anos depois, o informou de que, em conferência proferida na Sociedade de
Geografia, não só havia revelado a existência dessas obras de arte como também projetara as
fotografias que extraíra in loco. Havia mais interessados na descoberta porque Portugal
Durão, outro oficial da Armada que chefiara os serviços mineiros da Companhia da
Zambézia, também proferira em 1905 uma conferência sobre o assunto.
É também Langworthy (3) que cita 1907 como o ano em que Wiese fez uma
investigação séria sobre as figuras rupestres não só de Chifumbazi como de Chicolone. Dado
o seu conhecimento da língua e até pela audição de ocasionais conversas trocadas entre os
indígenas, deve ter sabido que neste último lugar se encontrava uma caverna que em tempos
antigos servira de sepultura de personagens importantes.
Em 1909, já influenciado pela decisão de abandonar Moçambique, recorreu talvez aos
seus poderes quase absolutos como senhor do Prazo Chifumbazi e, acompanhado por um
cúmplice rodesiano chamado Owen Letcher, deslocou-se a Chicolone para rever as pinturas
que cobriam a superfície vertical de uma enorme e natural laje de granito. No plano inferior
existia uma caverna onde ele e Wiese recolheram ossadas, instrumentos líticos, olaria de
aparência arcaica, etc. Wiese, incansável, insistiu em continuar a escavação até uma
profundidade de quase cinco metros. Posteriormente todo esse grande espólio fora por ele
transportado para Berlim com o propósito de o oferecer ao Museum fur Volkerkunde.
No ano seguinte, em artigo publicado pelo “Rhodesian Journal”, Owen Letcher deu
notícia do invulgar acontecimento. Ao que parece essa divulgação teve alcance internacional
porque, em 1926, numa obra italiana publicada em Milão, um tal Spring, que não foi possível
identificar, revelou que em Chicolone tinha deparado com inscrições esquemáticas que lhe
pareceram semelhantes a um alfabeto.
Foi também o artigo de Letcher que levou o emérito Prof. Raymond Dart, da
Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, a interessar-se pelo achado e em conhecer
pessoalmente o autor. À falta de fotografias, Letcher apresentou um desenho, feito na ocasião,
do qual constavam parte das numerosas pinturas que cobriam a laje de granito. O catedrático
incluiu essas pinturas de Chicolone no estudo que publicou em 1931 (4) e no qual garantiu
haver ali “centenas de símbolos diversos – escaliformes, tetiformes, radiados, concêntricos,
circulares e manuais – que lhe pareceram ter sido desenhados, na sua origem, de harmonia
com um plano bem concebido e com propósitos bem definidos”.
Para melhor aceitação do carácter sagrado do local convém refletir sobre o que escreveu
Santos Júnior no seguinte resumo da sua comunicação efetuada em 1940 (5): “A muala
ulemba (pedra escrita) – enorme penedo na base do qual, em vasta superfície quadrangular, se
encontram múltiplos sinais pintados a vermelho – é também um m’zimo, e de especial
importância… fica na base da serra de Chicolone na margem direita do rio Vúbuè, fronteiro à
serra Dzíduì, a uns 35 ou 40 quilómetros de Chifumbazi… os sinais pintados a vermelho…
264
constituem uma notável estação de arte rupestre. Quis visitá-la em 1936 a quando da 1ª
campanha da Missão Antropológica: como porém os indígenas da povoação de Coéra,
fugiram em massa, fiquei impossibilitado pela falta de carregadores de ir à dita… Mal eu
sabia então que o local que eu desejava visitar, tendo em mira apenas um estudo de pinturas
rupestres, era um lugar sagrado para a população local sendo ali vedada a presença de
europeus”.
Foi na sua segunda campanha (6) que o arqueólogo obteve elementos mais seguros mas
em condições de tal maneira perigosas que quase lhe foram fatais. Os nativos tudo fizeram
para o desviar do seu objetivo. Ao intérprete revelaram mais tarde tratar-se de um local
sagrado, contendo as sepulturas dos antepassados-deuses, do qual ninguém se deveria
aproximar. Entretanto Santos Júnior decidiu revisitar o abrigo de Chifumbazi, onde fotografou
estilizações animalistas e pectiformes, de barras verticais, pintadas a vermelho e espalhadas
de forma algo irregular.
Após contrariedades que não interessa repetir, conseguiu atingir finalmente o secreto
Chicolone. Na imensa laje vertical contemplou, decerto extasiado, o melhor e mais
diversificado conjunto pictográfico existente em Moçambique, no qual ressaltavam
escalariformes horizontais, axadrezados, pectiformes, símbolos solares, círculos concêntricos,
impressões palmo-digitais, etc. Insistiu para que lhe confecionassem uma escada rudimentar,
com troncos laterais e ramos em degrau, bem fixados por meio de cordame natural (v. fig.
94). Com papel transparente conseguiu decalcar o contorno da maioria dos sinais. O mais alto
ficava um pouco acima da extremidade da escada, a quase sete metros. Reparou numa
pequena caverna a mais de 10 m de altura onde, graças ao binóculo, tinha lobrigado uma
dupla pintura animalista. Teimou em efetuar a sua reprodução fotográfica, guindado por uma
corda rudimentar. Infelizmente, o roçar dessa corda assanhou as abelhas de uma bem
disfarçada colmeia. Em enxame, atacaram com inesperada ferocidade. Os indígenas largaram
tudo e, sempre em corrida, conseguiram atingir posições seguras. Durante este pânico
generalizado, Santos Júnior tropeçou e caiu de grande altura, fraturando um pé e ficando
inanimado durante duas horas. O capataz, entre altos brados, falhadas tentativas e redobradas
dificuldades conseguiu por fim, que fosse levado em padiola até ao camião estacionado na
empresa “Chifumbazi Mineira, Lda.”. O padecente veio a ser socorrido na Angónia e, mais
tarde, transportado para o Furancungo de onde seguiu para a capital em aeronave
expressamente enviada pelo governador-geral.
O grave acidente provocou a mais forte impressão entre a população gentílica porque
veio confirmar, de modo indiscutível, a arreigada crença nos magnos poderes dos
antepassados-deuses que até tinham sabido como vingar justamente as intoleráveis
provocações feitas por aqueles estranhos e desaforados visitantes, conseguindo mobilizar,
para o efeito, um enxame inteiro de abelhas assassinas.
O espólio recolhido por Wiese revelou-se precioso para os conhecimentos
arqueológicos. D. W. Philipson (7) concluiu que certas peças foram consideradas entre as
primeiras descobertas da olaria da Idade Antiga do Ferro na África Subsahariana. Entre elas
merecia destaque a designada por nkope.
265
Bibliografia

1) COUTINHO, Gago. “Quarto Caderno de Itinerários da Comissão de Fronteiras do Distrito de Tete


(18/11/1904 a 15/5/1905)”. v. Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa.
2) CORREIA, Mendes (1936). Pré-história de Moçambique – Um plano de estudos. Separata do volume
XX dos Anais da Faculdade de Ciências do Porto.
3) LANGWORTHY, Harry W. (1983). Expedition in East-Central Africa, 1888-1891, a report by Carl
Wiese. Norman, University of Oklahoma Press, ed., introd. & coment.
4) DART, Raymond (1931). (Não se conseguiu apurar o título exato, sabendo-se apenas que era dedicado às
gravuras rupestres da África meridional, sua idade e significado). South African Journal of Science (Tomo
28), Joanesburgo.
5) JUNIOR, Santos (1940). Alguns «Muzimos» da Zambézia e o culto dos mortos. In: “Congresso do
Mundo Português”. 14º Volume, 1ª secção, pp. 365-372.
6) JUNIOR, J. R. dos Santos (1940). Missão Antropológica de Moçambique – 2ª Campanha, agosto 1937 a
janeiro 1938. Lisboa, Agência Geral das Colónias.
7) PHILIPSON, D. W. (1977). The Later Prehistory of Eastern and Southern Africa. Londres
(Heinemann), p. 277.
267


NOTA SOLTA
Foi aqui seguido um critério
diferente na citação das referências
bibliográficas: passam para o final
de cada subtítulo e têm numeração
própria.

Importância secular da baía de L. Marques


(Delagoa Bay) nas trocas comerciais com o interior

Os assuntos que aqui e agora irão ser expostos, já foram estudados em outras
composições escritas que se acham referidas ou integradas nesta coletânea. Para mais fácil
entendimento, recomenda-se aos leitores interessados que consultem previamente os seguintes
estudos:
a) De Caetano Montez (1) publicado em 1948, sobre o descobrimento e a fundação de
L. M.;
b) De A. Lobato (2) publicado em 1961 e já resumido na primeira referência
bibliográfica do 3º Documento, na qual foi incluída uma nota sobre a fundação da Companhia
e a sua segunda expedição a Moçambique que em 1832 levou os fundadores das famílias
Albasini e Fornasini;
c) O sub-capítulo 4 do capítulo VII da obra que dediquei ao sul de Moçambique (3);
d) O texto desta coletânea dedicado aos persistentes esforços de conquista
desenvolvidos pelos holandeses (5ª Nota Solta).

***

Segundo tradições orais recolhidas in loco, a parcela meridional dos territórios


banhados pela grande baía foi, em tempos remotos, povoada por imigrantes de filiação
caranga, oriundos do longínquo planalto onde se situava o bem conhecido Grande Zimbábuè,
concentração urbana que a moderna arqueologia provou ter sido abandonada em meados do
Séc. XV. Já então esses imigrantes se designavam pelo etnónimo de “tembe”, no qual se
radicam não só o nome de um pequeno rio mas também as praias que se avistam da moderna
capital, até ao presente designadas por “Catembe”. Por comunicação pessoal do Prof. C. T. D.
Marivate, soubemos que sobreviviam ali provas linguísticas de origem caranga, como por
exemplo “I khani Mambo” (em literal “danço para o Rei”, em figurado “muito obrigado”).
Outro exemplo era fornecido pela expressão “garingani-wa-garingani”, intróito na recitação
de fábulas.
É possível que os imigrantes tenham sido atraídos pelo revestimento vegetal espontâneo
de uma região fitogeográfica dita austral que compreende apenas a parte da cordilheira dos
Libombos que se estende desde a fronteira do Natal até ao rio Incomati.
Para respeitar a ordem cronológica convém resumir, desde já, os variados motivos que,
precocemente incentivaram a preferência pelo etnónimo tsonga na identificação dos povos
que falavam a língua ronga, segundo Doke; ou o dialeto putyu, segundo Guthrie (4). Os
tsongas-rongas abrangiam os territórios mais meridionais situados entre a margem sul da baía
de L. Marques e o paralelo 27º 50’.
268
Entre os historiadores que investigaram as relações comerciais mantidas pelos dirigentes
angunes com os povos que rodeiam a “Delagoa Bay” – como passou a ser internacionalmente
designada – foram selecionados aqueles cujas interpretações se afiguraram como mutuamente
complementares. A sua posição na bibliografia baseia-se na mais antiga obra publicada. Esta
opção documental justifica os motivos que levaram a suprimir os indicativos da paginação.

***

Como se sabe, os Angunes (Nguni) – mais tarde designados por Zulos – foram-se
radicando e multiplicando a sul do Alto Pongola, nas extensas e onduladas encostas de
cordilheiras batidas por húmidos ventos oceânicos. Eram excelentes para a criação de gado
bovino e, mais tarde, para o cultivo intensivo e prioritário do milho, novo cereal de origem
americana, disseminado pelos portugueses. Possivelmente guiada pelo propósito de confirmar
a sua distinção e superioridade, a cultura zulo desenvolveu um tabu estranho mas rigoroso que
proibia o consumo de peixe, mariscos e outra fauna marítima. Tenha-se em mente que, por
seu lado, às mulheres era proibido cuidar do gado bovino.
Alan Smith (5) aventou que, no Séc. XIX, os contactos comerciais com a baía
laurentina, remontaram ao reinado de Dinguichuaio, o protetor de Chaca-Zulo. O monarca
considerava esse comércio tão importante para a estruturação do seu poderio político que, sob
pena de morte, o teria elevado à categoria de prerrogativa pessoal. Teria até firmado uma
aliança temporária com o rei do Maputo quando, durante um contratempo bélico, decidiu
recorrer a mosqueteiros tsongas para derrotar o seu rival Quabe.
Seguindo o exemplo do seu grande protetor, Chaca-Zulo estendeu o domínio formal da
confederação aos pequenos chefes que, nas terras baixas, se dispersavam desde Santa Lucia
até às ilhas de Inhaca. Esses régulos não possuíam gado bovino e, para efeitos de alimentação,
dedicavam-se sobretudo à caça e à pesca. Sem capacidade militar para resistir aos aguerridos
e organizados zulos, conformaram-se com o estatuto de simples tributários e colaboradores
nas trocas comerciais efetuadas na terras banhadas pela grande baía. Passou a ser da sua
responsabilidade a mobilização dos respetivos súbditos na obtenção, preparação e transporte
dos tributos prioritários, constituídos por despojos da fauna selvagem. Transformaram-se em
responsabilidades comunais e deviam ser entregues em quantidades que satisfizessem os
potentados vitoriosos. Também eram apreciados – como recipientes de bebidas – outros
produtos hortícolas de produção feminina como cabaças e abóboras. É opinião corrente e
aceitável de que o cumprimento dessas exigências haja sido determinante na consolidação da
carreira política de muitos soberanos. Sem dúvida que estimulou as conquistas zulos e
alicerçou a sua política externa.
Importa sublinhar que o aparato e a complexidade dos adornos exclusivos dos
guerreiros de origem angune (Nguni), possuíam um objetivo militar muito concreto:
aterrorizar os povos que se pretendia submeter ou conquistar. O missionário suíço A.
Grandjean (6) profundo conhecedor da língua e dos costumes, apurou que os guerreiros de
Sochangana-Manucusse que invadiram o sul de Moçambique, conseguiram submeter sem
dificuldade as populações nativas porque foram considerados como sendo qualquer espécie
desconhecida de invencíveis hominídeos, empunhando grandes escudos e lanças, cobertos de
crinas e plumas, pulando e rugindo raivosamente, rilhando os dentes e rodando as pupilas nos
globos oculares avermelhados.
A recolha e o tratamento dos despojos requeriam cuidados especiais. Essas tarefas não
eram fáceis. Todos aqueles que caçaram nos sertões africanos e quiseram aproveitar as peles
para efeitos comerciais ou ornamentais estavam bem cientes dos cuidados e normas a
observar na lavagem, raspagem, demolhagem, secagem, etc. Nas peles de leopardo,
269
imediatamente lavadas após o abate, era indispensável recorrer a produtos específicos como o
sal, o alúmen e a pedra-pomes que, nas condições tradicionais, decerto puderam ser
substituídos por preceitos e produtos de invenção local e talvez mais eficazes. A caça exigia
meios, criava perigos e apresentava dificuldades permanentes. Um fidedigno caçador
profissional garantiu, em comunicação pessoal, que só os mais exímios cavaleiros africaners
conseguiam isolar o avestruz selecionado e galopar a seu lado, em rédea solta, para o abater
certeiramente de modo a manter a plumagem intacta. Uma investigação específica sobre a
exportação de caudas dos simbas, feita de Inhambane para Porto Natal, entre 1850 e 1875,
conseguiu apurar que as mesmas se destinavam à confeção do saiote dos guerreiros zulos.
Existe uma informação oficial, escrita no Mossurize em junho 1886, da qual consta que os
caçadores de Manuel António de Sousa receberam ordens para abater simbas porque as suas
peles tinham sido reclamadas, como tributo, pelo próprio Ngungunhane. Não admira que esse
belo felino tenha acabado por se extinguir.
Outra prova surgida na mesma região, foi dada a conhecer por Paiva d’Andrada quando
aludiu ao novo regimento criado pelo monarca e afirmou que lhe fôra fixado o distintivo da
cor branca. Mal se pode imaginar o esforço desenvolvido pelos chefes avassalados, num
território maior do que Portugal, para reunirem cerca de mil bovinos daquela cor e para com
eles confecionarem, com o devido apuro, o mesmo número de grandes escudos de combate.
Como se sabe, Chaca em 1828 foi vítima de uma conjura urdida por seu irmão Dingane
aliado a alguns indunas. Segundo Charles Ballard (7) Dingane manifestou decidida
preferência pelo comércio com o presídio de L. Marques. Considerava serem ali de melhor
qualidade tanto as missangas como o latão usado nos adornos femininos. Também ali
conseguia adquirir mosquetes, pólvora, chumbo, e outros produtos que lhe eram recusados em
Porto Natal. Sabemos que, por ocasião do assalto à fortaleza, o agente da Companhia
Comercial evitou o mesmo destino graças a um presente de 522 manilhas de pescoço e de 200
maços de missangas.
Há evidentes lacunas no seguinte relato dedicado por Balard à tragédia. “In 1838 the
Portuguese governor at L. Marques also halted all arms sales to Dingane; in retaliation the
Zulu king sent an expeditionary army to L. Marques and annihilated the garrison. This
punitive operation was an expression of Zulu determination to maintain its hegemony over an
area of great strategic and economic importance”.
Nestas circunstâncias, há necessidade de introduzir algumas correções. Mais uma vez
convém exortar os investigadores a não minimizarem a importância da documentação
primária portuguesa.
Alexandre Lobato, nos estudos supracitados, consagrou um deles a interpretar certo
manuscrito que adquiriu a um antiquário lisboeta e que têm por título “Memória contra a
fação dos negreiros”. Também o Arquivo Histórico de Moçambique decidiu, em 1986,
publicar o mesmo manuscrito. Descreve, em forma de diário, os acontecimentos que tiveram
lugar no presídio de L. Marques, entre 26 julho 1833 e 12 julho 1834. Esse documento foi
também minuciosamente estudado por Gerard Liesegang mas com a evidente preocupação de
o espartilhar entre os rígidos enquadramentos concetuais do marxismo-leninismo. Os
resultados da sua pesquisa compreendem dois levantamentos cartográficos e uma introdução
das páginas 9 a 23. No final incluiu as setenta e oito notas que enriquecem essa introdução
(pgs. 71 a 80) e, ainda, quarenta notas ao próprio texto (pgs. 81 a 84). A bibliografia ocupa as
páginas finais.
Lobato rematou o polémico assunto com a seguinte conclusão judiciosa: “Deste caso se
pode dizer que afinal se foram os anéis e depois os dedos; ao governador porque, depois de
uma carreira brilhante, à maneira da época, se desonrou e se perdeu; ao Nobre porque pagou
em saguates, vexames e cadeia todo o calculismo do seu proceder. A absolvição da Junta de
270
Justiça, em 1838, que levou em conta a prisão sofrida, a discordância das testemunhas e a
defesa do réu, não o absolve da mancha de não ter feito alguma coisa que evitasse esta página
triste e vergonhosa da dolorosa história de Lourenço Marques”.
Ao que parece, o manuscrito teve alguma divulgação. Recomendamos a leitura do
Tomo I da “Documentação Avulsa Moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino” (nº 167,
pp. 216 e seg.). Dele consta que uma cópia do documento tinha pertencido ao barão de
Moncorvo e, ainda, que outra cópia estivera na posse de Sir James Alexander, membro da
Royal Geographical Society.

***

Dingane veio a sucumbir em 1840, vítima de uma aliança formada pelo seu irmão
M’pande com os Suazis e os africaners transvalianos. M’pande interveio numa disputa de
sucessão ocorrida no reino de Maputo. Em 1854 o rei Macassane veio a falecer. Tinha
nomeado como sucessor o seu filho Nozihinguile. Porém, o irmão de Macassane (Nonecatxa
de seu nome) discordou da nomeação e ameaçou recorrer às armas. Nozihinguile refugiou-se
na Zululândia e solicitou apoio militar. M’pande satisfez o pedido e enviou sete dos seus
regimentos. Como o pretendente tivesse resistido, foi necessário enviar reforços. Finalmente o
revoltoso e os seus apoiantes foram derrotados e logo executados. Nozihinguile regressou à
Maputolândia como monarca de pleno direito e veio a reinar até 1886. Convém acentuar que,
durante esse longo período, manteve cordiais relações com os Zulos, jamais falhando no
pagamento dos tributos.
Mais tarde, M’pande teve que arbitrar um conflito interno que eclodiu entre dois dos
seus “grandes”: Cetshuaio e M’buiaze. O soberano decidiu conceder ao primeiro os lucros dos
tributos e, também, de outros privilégios que recebia dos Tsongas e, em especial de
Nozihinguile, sob a forma de tecidos, armas, pólvora e chumbo. Uma testemunha cita que o
transporte deste tributo ocupava de cem a duzentos carregadores. Deve acentuar-se que nem
os britânicos de Porto Natal nem os africaners do Transval permitiam a venda de armas de
fogo aos zulos. Para introduzir estas armas usando a rota costeira, Cetshuaio foi auxiliado
pelo famoso sertanejo John Dunn (8) que foi agraciado com o estatuto de chefe zulo, entre
1857/78, com quarenta e três mulheres, duzentos caçadores, dez mil súbditos e milhares de
bovinos. Deixou valioso espólio documental que se encontra nos arquivos oficiais do Natal.
O controlo da rota estratégica baseada na baía laurentina foi considerado como de
grande importância para a carreira política de Cetshuaio. Convém acentuar que John Dunn
gozava de especial prestígio entre os Tsongas, porque a carne dos animais que ele e os seus
caçadores abatiam era oferecida gratuitamente. Na sua correspondência relata que, durante
uma só estação, conseguiu abater nas praias da baía de Santa Lucia nada menos do que
duzentas e três vacas-do-mar. Os Tsongas acudiram às centenas para recolherem a carne,
repugnante para os Zulos por ser de origem marítima.
Os comerciantes de Porto Natal consideravam Dunn como ótimo cliente. Por isso lhe
forneciam de bom grado os capitais e os créditos de que necessitava. Com eles comprava
armas e munições na baía de L. Marques para introduzir na Zululândia, a troco de gado. Era
com este que pagava os débitos contraídos.

***

Todos os monarcas dispunham de fiéis e rigorosos agentes que se deslocavam aos


régulos tsongas – por definição desonestos – para conferir os tributos exigidos. Esse “quadro
271
administrativo” foi abalado pela sangrenta guerra de sucessão que, entre 1858 e 1862, ocorreu
entre Muzila e seu irmão Mauheue. À guerra seguiu-se a fome e a peste que dizimou grande
parte do armentio. Este sangrento e desastroso conflito envolveu, como já referimos, tanto
portugueses como suazis. Sabe-se que o supracitado régulo Nozihinguile, do Maputo, alinhou
por Mauheue.
Entretanto, na década de 1860, já não havia dúvidas de que a cana sacarina era a
produção que, no Natal, melhor se adaptava ao meio ambiente e que mais elevados lucros
proporcionava. Requeria, como se sabe, bastante capital e apurada tecnologia na fabricação do
açúcar e da respetiva aguardente. A plantação e a colheita da cana obedeciam a técnicas já
bem experimentadas em outros lugares próximos como as ilhas Maurícia e Reunião.

***

Como se sabe, tinha o nome de Alfred Duprat e desempenhava as funções de cônsul-


geral de Portugal na cidade do Cabo, o plenipotenciário que foi nomeado para negociar, em
Pretoria, um tratado de paz e amizade com a República da África do Sul, mais conhecida por
Transval. Foi assinado a 29 julho 1869, aprovado por decreto de 7 julho 1870 e mandado
cumprir a 22 dezembro do mesmo ano. No seu artº 23, reconhecia o paralelo 26º 30’ como o
extremo sul da fronteira de Moçambique. Para oeste, a linha do paralelo terminava na
Cordilheira dos Libombos. A Grã-Bretanha reclamou energicamente, alegando que lhe
pertencia de direito a margem meridional da famosa “Delagoa Bay”.
Porque, nas suas investigações, procurava respeitar a supremacia da documentação
primária existente nos arquivos dos diversos países envolvidos, recomendamos a leitura atenta
da síntese que em 1967 Eric Axelson (9) elaborou sobre essa catadupa de acontecimentos tão
complexos como difíceis de resumir.
Cerca de 1873, após a descoberta das regiões auríferas de Lydenburg e Pilgrims Rest,
redobrou a importância da baía laurentina. Forssman, que desempenhava as funções de cônsul
de Portugal na república transvaliana, nomeou como seu vice-cônsul para aquela região o
austríaco Nellmapius. Ambos se esforçaram para melhorar as vias de comunicação com o
litoral. O maior obstáculo era levantado pelas tripanosomíases, transmitidas pelas mortíferas
“moscas tsé-tsé”. Cedo foi crescendo a convicção de ser conveniente iniciar a recolha de
elementos que facilitassem a planificação de uma ferrovia.
Entretanto, em junho 1875, o ministro britânico que ocupava a pasta dos Negócios
Estrangeiros tomou conhecimento, por meios secretos, que o presidente Mac Mahon iria
reconhecer Portugal como legítimo senhor das ilhas Inhaca e Elefantes, das terras do régulo
Tembe e apenas em parte das pertencentes ao régulo Maputo. Também soube que Burgers,
presidente da República do Transval, preparava uma deslocação a Lisboa para, em segredo,
apresentar uma proposta de compra da baía de L. Marques e, caso fosse bem sucedido, obter
garantias de apoio junto dos governantes da Alemanha, da Rússia e dos Estados Unidos.
Antecipando-se, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros deu imediatas e astutas
instruções a Lord Lytton, ministro-embaixador em Lisboa, para que conseguisse celebrar com
o governo português um acordo nos seguintes termos: qualquer que fosse a sentença de Mac
Mahon, a potência vencedora deveria conceder à potência vencida a possibilidade de adquirir,
por compra ou por qualquer outro meio, o território em litígio. Andrade Corvo concordou
com esta proposta.
Enfim, o veredito de Mac Mahon foi tornado público no dia 24 julho. O governo
britânico garantiu que o respeitaria. Contudo, deixou bem explícito, que não teria aceite o
272
recurso à arbitragem se houvesse pressentido, em tempo oportuno, que a baía viria a assumir
extrema importância.
Elton, o vice-cônsul britânico, enviou relatórios criticando acerbamente a administração
portuguesa na povoação de L. Marques. Insurgiu-se, sobretudo, contra a descarada venda de
pólvora, armas de fogo e bebidas alcoólicas. De janeiro a outubro 1875 os chefes gentílicos do
Natal e do Transval tinham conseguido adquirir nada menos do que quinze mil armas de fogo.
Grande parte delas já se encontrava na posse dos Zulos. Em L. Marques só havia dois
comerciantes portugueses. Os restantes eram de nacionalidade britânica, germânica ou
holandesa.
Durante este impasse, ocorreu um incidente que desencadeou alterações de grande
importância política: Sekukuni, chefe supremo dos Ba-Pedi, recusou acintosamente pagar
quaisquer tributos às autoridades transvalianas. Foi atacado pelas tropas africaners não só para
ser exemplarmente castigado por essa atitude de inaceitável rebeldia mas também porque a
imaginada ferrovia para L. Marques teria que atravessar o território dos Ba-Pedi. O monarca
resistiu valorosamente e até conseguiu que os atacantes batessem em retirada. Para agravar a
situação global, constava que tanto Zulos como Suazis davam também sinais de
descontentamento.
Foi esta aparente situação de instabilidade generalizada que forneceu o pretexto tão
desejado pelos britânicos. Lorde Carnarvon, secretário de Estado para as Colónias, concedeu a
sir Theophilus Shepstone, secretário dos Negócios Indígenas do Natal, poderes discricionários
que lhe permitiriam anexar o Transval quando julgasse conveniente. Foi no início de janeiro
1877 que atravessou a fronteira, acompanhado apenas pela sua guarda policial. Começou por
firmar um acordo pacífico com Sekukuni e, em 12 abril, proclamou formalmente a anexação
do Transval tanto ambicionada pelos britânicos.
As forças vivas do Natal, receando a queda ruinosa das suas receitas, manifestaram-se
contrárias à construção de qualquer ferrovia que ligasse diretamente o Transval a L. Marques.
Essa rivalidade interna prejudicou, durante largos anos, as relações entre Portugal e a Grã-
Bretanha.
Entretanto, as açucareiras continuavam a procurar mão-de-obra barata e submissa. Por
seu lado Shepstone não abdicava do seu intento de criar reservas autónomas para as
comunidades zulos. No artigo que publicara em 1870, havia já defendido que os zulos
deveriam transformar-se em agentes de produção agrária. Em consequência, pressionou os
açucareiros para que procurassem mão-de-obra em regiões limítrofes mas pacificadas.
A correlação entre os Rongas do Maputo e as plantações do Natal deve remontar ao
longo reinado de Nozihinguile e à sua coligação com M’pande. Conhecem-se as sugestões
que foram feitas para assegurar o seu controlo em 1852/3. Cinco anos mais tarde, há notícia
segura de famílias rongas contratadas por períodos de três anos, afirmando-se que “from their
natural disposition and habits are a people well suited to sugar cultivation”. A lei nº 13 de
1859 tentou regularizar e centralizar o afluxo desses imigrantes, solicitando-se aos chefes
zulos que suprimissem os obstáculos levantados ao seu trânsito.
Foi esta situação de insegurança que induziu os plantadores a iniciar o recrutamento de
“coolies” na Índia Britânica, a partir de 1860. Nos finais de 1866 já havia no Natal cerca de
6.500 indianos contratados mas sem direito a rescisão.
A guerra civil americana (1861/5) teve repercussões tão adversas e demoradas no
mercado de capitais que afetou as açucareiras. Ficou suspenso o recrutamento de indianos
entre 1865/74. Foi a partir de 1869 que se verificaram no Natal as mais graves carências de
mão-de-obra, agravadas pelas descobertas diamantíferas de Kimberley, onde os salários eram
mais elevados e onde se podiam adquirir armas de fogo.
273
Em 1 setembro 1873 Shepstone, agindo em nome da Coroa, deu posse a Cetshuaio
como rei da Zulolândia. Aproveitou a ocasião para discutir as autorizações de trânsito a
conceder pelos chefes zulos aos trabalhadores tsongas. Sob as insistentes pressões das
açucareiras, chegou ao ponto de, no ano seguinte, consentir que cerca de 2.500 Tsongas
entrassem no Natal ao abrigo do programa de recrutamento apoiado pelo governo. Quatro
anos depois este contingente já havia duplicado. Shepstone também permitiu que o patronato
beneficiasse do trabalho compelido (designado por “chibalo”como em Moçambique) ao qual
era permitido recorrer no caso das obras de interesse público.
Estimou-se em cerca de dez mil o número de moçambicanos que labutavam no Natal
quando o governo britânico iniciou a célebre ofensiva contra Cetshuaio e os seus regimentos.
De maio 1878 a fevereiro 1880 não só cessou a admissão dessa mão-de-obra como se assistiu
ao seu êxodo em massa, inclusivamente por via marítima. Só no final da década as açucareiras
reconheceram que os trabalhadores oriundos de Moçambique tinham, irrevogavelmente,
transferido as suas preferências para as minas transvalianas, quer com o estatuto de
clandestinos quer como contratados pela W.N.L.A. para as minas que nesse competente
organismo se encontravam filiadas.

Bibliografia

1) MONTEZ, Caetano (1948). Descobrimento e Fundação de Lourenço Marques, 1500-1800. L. Marques,


Minerva Central.
2) LOBATO, Alexandre (1961). A invasão vátua de Lourenço Marques em 1833. In: “Quatro Estudos e uma
Vocação para a História de L. Marques”. Lisboa, Junta de investigações do Ultramar.
3) RITA-FERREIRA, A. (1982). Presença Luso-Asiática e Mutações Culturais no Sul de Moçambique
(Até c. 1900). Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, Estudos, Ensaios e Documentos, 139.
4) O único caso em que foi feito um esforço ecuménico para uniformização da ortografia da língua ronga,
ocorreu na reunião de estudos realizada em L. Marques nos dias 23/4 outubro 1968. Essa reunião foi
promovida pelas Sociedades Bíblicas, representadas em Moçambique pelo Sr. José T. Teixeira Leite, e
orientada por dois peritos da Universidade de Pretória, os Prof. Maumbach e Marivate e pelo pastor
Schneider, observador das Sociedades bíblicas da África do Sul e responsável pela Revisão da Bíblia em
língua tsonga.
5) SMITH, Alan (1969). The trade of Delagoa Bay as a factor in Nugni politics, 1750-1835. In:
THOMPSON, L., “African Societies in Southern Africa”. Londres, Heinemann, pp. 170-190.
6) Grandjean, A. (1899). L’Invasion des Zoulou dans le sud-est africain…. Bull. Soc. neuchâtel. Geogr. 11,
pp. 63-92.
7) Charles Ballard (1979). Trade, tribute and migrant labour: Zulu and colonial exploitation of the
Delagoa Bay hinterland 1810-1879. Grahamstown, Dept. of History, Rhodes University, a paper present at
the workshop of the Nguni, june 30 – july 2.
8) Charles Ballard (1980). John Dunn and Cetshwayo: the material foundations of political power in the
Zulu kingdom, 1857-1878. Londres, J. Afr. Hist., 21 (1), pp. 75-91.
9) AXELSON, Eric (1967). Portugal in South-East Africa (1875-1878). In: “Portugal and the Scamble for
Africa (1875-1891)”. Joanesburgo, África do Sul, Witwatersrand University Press, representação
cartográfica de 1880, pp. 1-19.
274
Restabelecimento da soberania portuguesa nas terras do Maputo

O depois famoso Com. Augusto Vidal de Castilho Barreto e Noronha (abrev. Augusto
de Castilho) em meados de 1875 exerceu o cargo de governador de L. Marques. Compreende-
se que em 14 abril 1880, tenha apresentado uma comunicação na Sociedade de Geografia em
que afirmou (1): “… Esta linha imaginária que foi escolhida ao acaso… atravessa o país do
Maputo que divide em duas partes desiguais… o régulo com uma porção dos seus súbditos
reside no Sul de 26º 30’ e está politicamente de facto e de direito fora da nossa autoridade!
Um exemplo análogo não se dá provavelmente em outro país do mundo”.
Em janeiro 1896 o governador interino Joaquim da Graça Correia e Lança (2), em
virtude do régulo da região, Angoanase (Ngwanazi), assumir atitudes de manifesta rebelião,
incumbiu o major Mouzinho de Albuquerque de ali restabelecer a soberania portuguesa.
Mouzinho obedeceu sem reservas nem demoras, apoiado nos seus minguados recursos
que se cifravam em dezassete soldados de cavalaria e trinta praças angolanas. Em marchas
arrojadas, sobretudo noturnas, caindo de improviso ora sobre uma povoação ora sobre outra,
Mouzinho deu por terminada a sua missão em meados de março, tendo deixado os territórios
meridionais devidamente pacificados e cobrado impostos remissos no valor de 1,800 libras
ouro.
Assim ficou consolidada a vitória pouco antes alcançada contra o Ngungunhane, pois se
não fora ela, como o próprio Mouzinho confessa, não poderia com tão reduzida força militar,
submeter um potentado que dispunha de cinco a seis mil homens de guerra. Este feito bélico
foi mencionado por Gerhard Liesegang (3) nos seguintes termos dúbios: “No ano de 1896
Ngwanazi tinha encontrado refúgio na África do Sul, depois de atacado por um pelotão de
cavalaria chefiado por Mouzinho de Albuquerque”. Pela documentação em que se baseou
(nota nº 97) ficamos informados de que – não só os familiares mas também os indunas de
Ngwanazi – foram deportados para a Ilha de Moçambique em abril do mesmo ano.
Regressando à intervenção de Augusto de Castilho, há que ter em mente a supracitada
alteração do paralelo que continua a delimitar a fronteira do extremo sul de Moçambique.
Porém dessa mudança não resultaram vantagens significativas porque os solos que se
encontram entre o rio Maputo e o oceano, são arenosos ou pantanosos, recobertos por densos
canaviais. Por esse motivo a região foi aproveitada oficialmente como “Reserva Especial de
Proteção aos Elefantes”. Segundo informação fidedigna do veterinário e investigador
Travassos Dias, com o decorrer do tempo o número de proboscídeos se tornou tão opressivo e
prejudicial para o ecossistema que foi indispensável proceder ao abate de quase um milhar.
Entre os fetos encontrados nas fêmeas foram selecionados os mais apropriados para se
conseguir apresentar no museu nacional um quadro (por alguns considerado único no planeta)
que mostra as diversas fases evolutivas da gestação.
Na reserva foram introduzidos hipopótamos, crocodilos, rinocerontes brancos e outra
fauna selvagem. Em 1970 foi classificado como definitiva a área de setecentos km2 e a
mudança de nome para “Reserva Especial do Maputo”.

***

Tudo indica que a intervenção militar de M. Albuquerque, haja aqui desencadeado


reações semelhantes às verificadas no resto de Moçambique, isto é, parte significativa dos
habitantes optou por transferir a sua residência para terras transfronteiriças. O caso de Maputo
merece tratamento diferenciado por envolver o único estudo científico elaborado por
iniciativa expressa das autoridades competentes da Província do Natal. Na verdade,
275
recorrendo a métodos intensivos e sistemáticos, recolheu dados importantes sobre a população
da etnia que preferimos denominar por RONGA que povoa o extremo sul de Moçambique e o
extremo norte do Natal. Esta última região foi acertadamente designada por “Maputaland” ou,
na alternativa por “AmaTongaland” (4).
Os responsáveis pelo projeto temiam que os indígenas se não adaptassem às novas
técnicas de regadio e que, assim sendo, continuassem a preferir as tradicionais planícies
inundadas do rio Pongolo/a.
Os esforços de investigação foram coordenados por um sociólogo de origem
portuguesa: John Ribeiro-Torres, filho do administrador do mesmo apelido que citámos a
propósito da distante Ilha do Ibo. Lecionava no Departamento de Estudos Africanos, da
Universidade do Natal. Após agosto 1969 fez parte do corpo docente do Centro de Estudos
Africanos da Universidade de Moçambique.
Nessa época, a Universidade do Natal dedicava especial atenção aos estudos
antropológicos efetuados em Moçambique. É exemplar o caso da americana Corinne
Armstrong. Depois de ali lecionar durante algum tempo obteve, da Universidade de Los
Angeles, uma bolsa para investigar a cultura dos Tauaras que ocupam a região ao Sul do
Zambeze e a Oeste de Tete. Tinha como objetivo pessoal a conclusão da sua tese de
doutoramento. Ribeiro-Torres deu conhecimento de uma versão resumida dessas
investigações que, pelo seu valor e pela sua utilidade para estudantes anglófonos, me pareceu
conveniente incluir nesta coletânea como Nota Solta. O Gabinete do Plano do Zambeze cedeu
três relatórios de campo subscritos por Corinne ao antropólogo Carlos Ramos de Oliveira (5).
Nos princípios de 1972 fora escolhido para pesquisar os povos que poderiam sofrer danos
com a criação da futura albufeira. A sua monografia sobre os Tauaras foi publicada em 1976.
Visando um intercâmbio técnico com mútuos benefícios, Ribeiro-Torres
deliberadamente entrou em contacto com os agrónomos portugueses que, no Baixo Limpopo,
procuravam concretizar planos de hidráulica-agrícola, entre os quais avultava o chamado
“aproveitamento dos machongos” (6).
Segundo os elementos estatísticos oficiais sobre a circunscrição do Maputo, referentes à
década de 1960/70, alcançou certa importância, na planície inundada pelas águas fluviais, o
cultivo do arroz destinado ao abastecimento da capital, existindo mesmo uma fábrica de
descasque. No litoral era notável a atividade piscatória. Exploravam-se pedreiras e também se
produzia cal. O gado bovino atingia cerca de 60.000 cabeças.

Bibliografia

1) MACHADO, Joaquim José (1882). Informação apresentada à comissão africana…. Boletim da


Sociedade de Geografia de Lisboa, 3ª Série nº 1.
2) LANÇA, J. da G. Correia e (1894). Anuário de Moçambique, Referido ao Ano de 1894. Moçambique,
Imprensa Nacional, 724 + XI pp.
3) LIESEGANG, Gerhard (1987). Lourenço Marques antes de 1895. Maputo, Moçambique, Arquivo,
Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, 2 especial, pp. 19-75.
4) Maputaland. (1966) Pretoria, BANTU, julho, pp. 216 e seg.
5) OLIVEIRA, Carlos Ramos de (1976). Os Tauaras do Vale do Zambeze. Junta de Investigações Científicas
do Ultramar/Grupo de Missões Científicas do Zambeze, p. 117.
6) A. VIDEIRA E CASTRO (1962). Community Development in a Hydro-Agricultural Scheme. In: J. F.
Holleman, et alli (ed), Problems of Transition: Proceedings of the Social Sciences Research Conference,
Pietermaritzburg: Natal University Press, 1964, pp. 235-246.
277


NOTA SOLTA
Brief Sketch of Tawara Society

Como já foi mencionado na página 199 dedicada a “Delagoa Bay”, a Universidade do


Natal, nos finais da década iniciada em 1960, dedicou especial interesse aos estudos de
campo, referentes às culturas tradicionais dos povos moçambicanos.
A antropóloga norte americana, Corinne Armstrong, que nesse tempo lecionava na
Universidade do Natal, foi beneficiada por uma bolsa de estudos concedida pela Universidade
de Los Angeles para estudar os Tawaras de Moçambique para efeitos de finalizar o seu
doutoramento.
Pela bibliografia da obra publicada por Carlos Ramos de Oliveira, sabe-se que a referida
investigadora, ofereceu, três dos seus relatórios de campo ao Gabinete do Plano de Zambeze
(1). Tudo leva a crer que tenha obtido a indispensável autorização do governo-geral, graças à
intervenção de Ribeiro-Torres, mencionado na Nota Solta nº 3. Este tinha lecionado Direito
Consuetudinário e, mais tarde, foi convidado para fazer parte do corpo docente da
universidade moçambicana.
É de admitir a hipótese do texto que se segue ser qualquer resumo solicitado à autora
para as autoridades portuguesas melhor avaliarem o carácter dos estudos de campo levados a
efeito pela antropóloga estrangeira, resumo que Ribeiro-Torres teve a gentileza de me
oferecer. Devido ao seu evidente valor antropológico, tomei a liberdade de o incluir nesta
coletânea.

***

The Tawara are a Northern Shona-speaking people living in the Tete District of
Mozambique, mainly south of the Zambezi River between Zumbo and Tete, and in the
northern region of the Mt Darwin District of Rhodesia. Nineteenth century references to the
Banyai probably refer to the Tawara. Though intermarriage with others occurs, the Tawara
remain distinct from the Nsenga, Pimbi, and Dema to the north, and the Tonga and Nyungwe
to the east. In the regedoria of Gossa there are few representatives of these other groups, and
the population is quite homogeneous, almost all sharing the same clan name of Nguruwe
(Pig). Linguistically, historically, and culturally the Tawara appear to be most closely related
to the Korekore of the northern districts of Rhodesia, and there are some in Rhodesia today
known as Korekore-Tawara.
As I stated in the preliminary report, we obtained most of our information in the
Cachomba area on the Zambezi, but we also briefly visited Tawara in Guanzei on the Daque
River, near Estima, and in Nsongo.

Administrative Divisions

Cachomba and Guanzei are both areas within the regedoria of Gossa. The Gossa
chieftainship enjoys considerable prestige among the people in this regedoria – they are proud
of the great line of chiefs (mambo) who have taken the title Gossa. This is not to say that
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every incumbent of the office has enjoyed the same high respect as his forebears, and in fact it
may take some time for a newly appointed chief to have much influence with his council of
headmen and elders (machinda).
Under the chief are a number of headmen (mfumu) in charge of local areas throughout
the “regedoria”. The headmen are supposed to help the chief by acting as advisors as well as
by seeing that administrative orders are carried out, including the payment of tax. In the Gossa
regedoria the headmen have been grouped into sections under headmen who are designated by
the Government as “chefes de grupos” (chiwanga). Court cases which the headmen cannot
judge must be taken to the “chefe de grupo” before being referred to the chief, who as
“regedor” is the highest authority below the Portuguese “chefe de posto” or administrator.
Thus, the headman Cachomba in whose area we stayed has been placed under the “chefe de
grupo” Chissandu, who is also the headman of his own territory immediately west of
Cachomba’s. There seems to be some indication that the Tawara consider the division into
sections under these “chefes de grupos” to be an innovation introduced by the Government
and of little traditional importance. If this idea should be general in the region, there might not
be strong objetions if in the resettlement of villages it became impossible to keep together
under one “chefe de grupo” all the headmen presently assigned to him. It might, however, be
more difficult to move headmen and their villages into a different “regedoria”. We did not
discuss resettlement plans with the people, as that was not our job, though we did answer a
few simple questions raised by the people.

The Village

The term village (musha) is used to refer to the people and territory under one headman
(mfumu). The number of families under a headman varies, but census figures show a range in
population size from less than 100 to over 400 people under each headman in Chissandu's
section. The village may be fairly compact or may consist of several spatially distinct hamlets,
each containing a number of family homesteads. I do not know if such hamlets have a sub-
headman over them, but in some cases it appears that the inhabitants form a number of related
families tracing kinship ties to a senior member. Whether a village is compact or separated
spatially into hamlets can depend on a number of fators, including the local geographical
conditions and the existence of tensions between members of a village. It appears to be rare to
find completely isolated homesteads, and people claim to prefer living together in larger
settlements.
Most of the inhabitants of a village are related to one another by some sort of kinship
ties: men frequently are related by affinal ties, while women more commonly are living in
their parents’ village. A young couple almost always sets up a homestead in the vicinity of the
bride’s parents. If the husband has paid all the required amounts for his marriage, he is
theoretically free to take his wife to his own parents’ village or their hamlet if he has married
within his own village. But from discussions about kinship links between members of
Cachomba’s village, it appears that most men in practice continue to live with their wife’s
people for many years, unless they are called to succeed to the headmanship in another
village. Many men in this area have two wives, each of whom lives in the village of her own
parents, and the husband travels back and forth between them, perhaps spending alternate
weeks in each wife’s village and fields. A very few men will thus travel distances as great as
that between Gossa’s capital and the Zambezi. Some wives do move to join their husbands,
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though they will always have a separate homestead from that of a co-wife, but others refuse to
leave their kin.
Neighboring villages also share kinship bonds. It seems that young men frequently seek
wives in one of two nearby villages where they also have relatives. For example, many men
living with their wives’ people in Cachomba’s village claim either Chissando or Messeca as
their natal village, and their sons may be living in either of these areas with their in-laws.
Even the sons of headmen appear to live with their wives’ kin rather than with their fathers,
and so the successor to the headman may have to be recalled from a neighboring village.
Villagers living along the Zambezi frequently reside quite far from their fields. The
fields must be shifted every 3-5 years, but the villages are more permanent and may remain in
the same general locality over the generations. Houses are abandoned when an important
family member dies or when they begin to fall apart, often due to termites, but new
homesteads are built quite close to the old site. Medicine is put under the first housepost of
the father’s new house to protect the village from evil. If the move is to a new area, the senior
members of the family inform the ancestral spirits of the move. To see if the new locat ion is
favourable, they take cornmeal and arrange it in a heap under a tree in the new area; if it is
still intact the following day, the location is good, but if the meal is strewn all over they will
look for another site. It is, of course, also necessary to inform the headmen and chiefs of
moves across territorial boundaries.
Thus, the village is a basic social and administrative unit within the “regedoria”. There
is flexibility in village membership, for theoretically anyone can be accepted into the village,
but most often membership is based on some kinship link with other inhabitants. In the
economic and religious spheres the village does not appear to play a very important role,
though there do seem to be some rites performed at the village level, as the minor first-fruits
ceremony carried out by the headman and a few other elders.

Economy

Tawara economy is based on agriculture and wage labor, supplemented by the keeping
of small livestock, fishing, and hunting. Fishing is common during the rainy season along the
Zambezi and some of the larger rivers, but it seems to be restricted to individuals using hook-
and-line rather than including communal net fishing. Hunting is limited by the costs of a
license and the scarcity of game today compared to the past when even elephant hunting was
reported in this area. Livestock include goats, pigs, fowl, and rarely sheep and cattle. There
are no cattle in the Cachomba area, though evidently in past years some were bought until it
was seen that they always died. All these animals are eaten, including the pig, even though the
clan name of most people is Pig; only a few refuse to eat pork on this account. Meat and fish
are used to supplement the basically vegetable diet of thick porridge and vegetable relish.
Agriculture absorbs a large part of Tawara interest and time on the part of both men and
women. As there is no store in the immediate locality, the people are mainly concerned with
subsistence agriculture and only occasionally sell excess grain or peanuts. (There seems to be
no interest in raising cotton as a cash crop, but some might increase the size of their peanut
gardens if it became profitable). Work is divided between the large fields (munda) at some
distance from the village and the gardens (dimba) closer at hand. Fields are mainly for grain
crops as sorghum and millets which thrive in a drier soil, while gardens in moist areas are
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planted with a variety of crops including maize, peanuts, sweet potatoes, pumpkins, and green
vegetables.
Men spend much of their time working in the fields, leaving the village by 5:30 a.m. to
arrive 1 ½ to 2 hours later. Theirs is the task of clearing new land each year, for fields last
only 3-5 years, and of organizing the burning later in the year. When the rains come, usually
late in November or early December, the really busy agricultural season starts – planting, then
weeding every week or so until the stalks are 2-3 feet high, and finally harvesting in March
and April. Women and men work together in planting and harvesting, but women usually do
more of the weeding. Work parties are often organized, the cultivator providing beer or meat
for those who help with the weeding or harvesting. Once the grain is beginning to mature, the
fields must be guarded against pests. Special medicines will keep away thieves. Children are
kept busy scaring off birds, while adults sometimes spend the nights in temporary shelters in
the fields so as to chase away guinea fowl, baboons, and buck. Some villages are practically
deserted during part of February or March while the active adults camp thus in their fields.
Village sites remain near the Zambezi where there is sufficient water all year long, but grain
fields cannot be located close to the river because of the soil and because of the flocks of little
river birds which would ruin a year’s crop in a short time.
Gardens, on the other hand, are commonly found near the Zambezi settlements and
along the banks of streams which flow near the fields. Tawara recognize three main types of
gardens: 1) peanut plots, 2) gombe or river-side gardens, and 3) gova or wetter swampy areas.
All around the village will be found small gardens planted with peanuts. These require a fair
amount of attention, on the part of women mainly, for a couple of weeks in January or
February. Larger areas near rivers and streams are used for maize and a variety of vegetable
crops, seeds being mixed in the holes so that both trailing vines and higher stalks grow a year,
and the land may remain fertile for 12-15 years, then requiring only 2-3 years fallow. The
wettest areas, gova, are rare in many localities; the only one that we heard of in this region
was that which belonged to the headman Cachomba and was planted with rice.
There is no land shortage in this region, for the population density is low and there are
no large holdings for cash crops. Villagers thus have a wide choice of land for fields. The
choice is based on various natural features, including the nature of the soil (dark, somewhat
stony, well-drained soil is preferred), and the presence or absence of certain trees and grasses.
A fallow field requires about 15-20 years’ rest before being cultivated again. If the original
cultivator wishes to reuse it, he has the right to reserve the area for future use; but if another
should ask to cultivate there, permission will usually be given, for there is no pressure on
land. A young man sometimes obtains his first fields from his wife’s people who have shifted
to new adjacent fields. Land rights in garden plots, on the other hand, are jealously guarded
even during the short fallow period, for these are fertile areas and often conveniently close to
rivers and homesteads. Once a person has obtained rights in land, no one may take the land
from him and his heirs will be equally secure in their rights to the area.
While agriculture, supplemented by fishing and livestock raising, is sufficient to meet
subsistence needs, most Tawara men face the necessity of seeking employment as wage
labourers for Europeans during at least some years. Money is needed to pay taxes, to marry
wives, to pay court fines, to buy goods at the traders’ stores, and to send children to school.
Older men remember the chibalo system, while younger men continue the practice of seeking
work in Rhodesia, for several reasons: jobs have been more readily available, Rhodesia is
closer than urban areas like Beira, pay is relatively good, and jobs can be found as cooks,
kitchen or wash boys, and other non-farm workers. Some men have relatives who have
worked for years in Rhodesia and may not return until their old age; in these cases they may
have taken their wives and children with them. Occasionally it happens that the proper
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successor to a headmanship does not wish to return immediately, and another will assume the
duties. The absence of strong young men, whose wives continue to live with their own
parents, puts an extra burden of agricultural work on the remaining men. The wider group of
relatives thus becomes important in the economic sphere, for kin are under obligation to help
each other.

Kinship and marriage

The Tawara are patrilineal in descent, inheritance and succession. There are clans,
consisting of people who share a common clan name (mutupo), but they do not form
corporate groups. The important kinship group for a Tawara person is the local lineage,
usually called a «family», whose members refer to each other as relatives, hama. Lineages
have limited genealogical depth and are not arranged hierarchically; most Tawara are not
overly concerned to trace their genealogical relationships with others, though of course for the
royal lineages tracing descent is of more importance.
The lineage is the largest exogamous group, and in the Cachomba area it seems that
intra-clan marriages are preferred as long as the spouses are not «relatives». While the lineage
is not a compact local unit, adult males being dispersed on marriage, most members live
within easy walking distance except for those away as migrant labourers. When a man dies,
his lineage members get together to select a successor, often his younger brother or oldest son.
At least sometimes the successor takes the name of the deceased and occupies his position in
the kinship structure, so that relatives formerly known as father will thereafter be known as
older brother. The successor may also inherit the widows of the decessed, except his own
mother, and he becomes responsible for the care of their children. A woman may refuse to be
inherited by the successor, and if she is elderly she may prefer to live with one of her grown
children. Inheritance of livestock, tools, and other belongings also takes place within the
lineage. A woman’s property will be administered by her brother upon her death; the husband
has no right to it. If a man has two wives, he usually allocates half his goods to the “house” of
each wife during his lifetime so that there will be no problems at his death. The children of
each wife inherit the goods assigned to their mother, with the oldest son keeping a slightly
larger portion in return for his assuming responsibility to help his younger siblings when in
need. The relative lack of important inheritable property seems to be correlated with absence
of strongly developed lineages. Even for marriage payments, men do not rely so much on
their relatives as on their own ability to earn the necessary money. Yet, when in need, men do
look to lineage members for material help. The legal and religious roles of the lineage are as
yet unclear to me. I do not know if the lineage is collectively responsible for the faults and
debts of its members, or if oldest male is particularly important in the ancestor cult.
Lineages are linked through marriage. I have not found any regular pattern of
exchanging wives between lineages, though at least some marriages result from infant
betrothal decided upon by the parents. Today it is likely that the young people could refuse to
accept the marriage arrangements made by their parents when they were children, and the
practice of infant betrothal does not seem common. A boy is encouraged to seek a wife from
the daughters of his father’s kin, e.g. the granddaughter of his paternal grandfather’s sister, or
perhaps from the daughters of his father’s special friends known as sahwira. Most informants,
however, stress the special friends known as sahwira. Most informants, however, stress the
freedom on the part of the young people to choose their partners in marriage. The only
inflexible rules are: a) marriage may not take place between relatives hama; and b) a man
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may not take as his second wife a «sister» of his first wife while the latter is still alive – after
her death, such a marriage is often encouraged.
When a boy decides he wants to marry a girl, he gives her a small token, perhaps 6d, to
indicate his interest. If after discussions the two agree, the boy sends a friend with 6d or a
shilling to give to the girl’s family. This is given to the girl’s maternal grandmother, who
shows it to the mother, and then the father is formally notified of the young man’s intentions.
The girl’s family likewise sends back a similar token to the boy’s people. After this exchange
which marks the beginning of the couple’s engagement, there may be a court case if either
side backs out – it is a family agreement, not just an individual affair.
A boy usually becomes engaged at the age of about 18-20 years, while his fiancée is
likely to be about 14-16 years old. He now begins to visit his future wife daily, eating with her
family, building a little house near their homestead, and helping in her mother’s fields. Before
the wedding takes place, he must give the family £1-2 for the privilege of sleeping with his
wife. A couple of weeks after the wedding the young husband must give his wife’s parent the
final payment of some £7-10. If he has not yet gone out to work for wages, he may obtain the
money from his own relatives, each of whom gives a pound or two. The young people then
continue living together as man and wife for a few months until the wife is pregnant. At this
time the husband leaves to work in Rhodesia or wherever he can earn money to repay his
relatives. No further payments are made. If the wife is barren, the husband will pay only about
£2-3 instead of £7-10, but he will not necessarily divorce her. Later he might take another
wife in hope of getting children; many men do have two wives, but few think of more than
two. Marriage payments differ from area to area among the Tawara. Around Estima, for
instance, a man pays about £7 at the time of his wedding and before he can sleep with his
wife. To obtain the money he usually seeks employment while still engaged, then, when a
baby is due, he must again find a job to pay the lobola of £12-15 at the birth of the first child.
If there is no child, this sum is not paid, thus demonstrating that the purpose of the lobola is to
establish the man’s right to affiliate the children to his lineage. In both areas, only money and
a few small token gifts are exchanged at marriage – livestock do not seem to play an
important role here – and so the husband need not be dependent on his lineage members for
his marriage payments.

Life cycle and ceremonies

When a baby is to be born, the mother is secluded in a house where her mother, a
midwife, and other older women come to help. The husband and his mother may not be
present. The mother and child remain inside the house for 1-2 weeks, and then are formally
led outside while the husband is not around. The baby is given its name at a special ceremony
to which relatives are invited. The husband’s mother sprays water from her mouth over the
child, saying «baby, is now your name». If the baby cries too much over the next few weeks,
it is thought that some ancestor is troubling the child, and the diviner is consulted to
determine which ancestor it is. The baby’s name then will be changed to the one indicated by
the diviner. The ancestor can be of either the husband’s or wife’s side. The baby is protected
from other troubles by such means as giving it a bead necklace and string wristlet, burying the
placenta carefully, and washing the newborn in a special way. The baby sleeps with its mother
until it is weaned at about 1½ to 2 years of age. The mother is not supposed to fall pregnant
again until the child is a toddler, lest the new foetus deprive it of milk by making the mother’s
milk taste sour. The toddler still remains close to its mother, though often taken care of by
older children, until about the age of five.
283
When a boy reaches five years, he tends to leave his mother’s company and seek
playmates in the village. He may go fishing with them, or help herd goats, or just play around.
At night he continues to sleep in his mother’s house but on his own mat, until around the age
of 8-10 years when he joins other older boys in the special boys’ sleeping hut in the
homestead. Girls of comparable age also move into a hut of their own. While boys may help
with some chores, especially herding and occasionally gardening, the young girls are busier
with the cooking.
Today many of the young boys attend school for one year, and a few for two to four
years, if they live close enough to the Government school at Cachomba’s village. Children
come from Chissandu and Messeca as well as Cachomba, but other villages are usually
considered to be too far away. Parents encourage boys to get some schooling, for it might be
of use when they look for work later on, but they generally see little value in girls going to
school. There are however some girls at the school in Cachomba, including some in the upper
classes.
As children get a bit older, they may decide to play «house», choosing a spouse and
acting the part of adults. They may set up little houses to which the «wife» will bring food
and the «husband» will share his treasures with his chosen «wife». This is only play, but it
provides training in accepted adult behavior and the «couples» may continue their special
friendship into marriage a few years later.
Adolescents do not receive teaching on sex from parents, for it is not considered proper
to discuss such matters with them. Instead, they learn from older siblings and friends, and
from a particular older person that each young chooses as an advisor before marriage. A boy
takes a shilling to an older man, never his father but perhaps his paternal grandfather, and
receives advice from him. When a girl first menstruates, she discusses it with her mother’s
mother who then notifies the family. A dance is held to celebrate the occasion, after which the
girl is free to marry. Sex instruction is thus given on an individual basis, for there are no
initiation schools for young people (also no circumcision for boys). In contradiction to the
information given by a Tawara man in Estima about circumcision schools and puberty rites
for groups of girls, the Tawara in the Cachomba area deny the existence of such group
initiations. When asked how a boy becomes a man and is ready for marriage, informants
merely looked puzzled and replied that he just knows he is a man and that is all.
The special advisors chosen by the young people also play a role in their wedding. On
the wedding day the couple must sit solemnly on a mat while older married adults dance
around them making jokes. That night the two sleep together for the first time, and in the
morning the girl’s advisor and the wife of the boy’s advisor come to ask if «everything is all
right». If the boy has found his wife is not a virgin, he will complain and will probably pay
only some £2 instead of the usual £7 to his in-laws. If the girl finds the boy has picked up
venereal disease while working in town, she may refuse to marry him, and any payment
already made will be refunded. The wedding seems to last only one or two days, and involves
besides the dancing a feast of chicken, porridge and beer; but there do not seem to be the
complicated rites and expressions of inter-lineage hostility common among some African
peoples.
It appears that Tawara marriages are usually stable and divorce is not common.
Adultery is grounds for a court case, the offending male having to pay the husband damages,
but informants could not remember a recent case. Occasionally a husband deserts his wife,
marrying another perhaps at Tete while working there and not returning to support his wife in
the rural area. Then she may divorce him and marry another. Children still belong to the
father who paid lobola for them; the only children who take their clan name and lineage
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affiliation from their mother are those of an unmarried woman who does not marry the genitor
of the children.
As a person grows older, he forms close friendships with a very few people of the same
sex, and this relationship is formalized by the exchange of small gifts at certain times. While
ordinary friends are known as shamwari, these particular individuals are called sahwira. This
practice is not the same as “blood-brotherhood” found among some African peoples, for the
sahwira do not become fictional kin. They provide mutual aid and have the responsibility of
acting as pall-bearers at the funeral of their sahwira. This friend is also in a position of such
intimacy that he may tactfully suggest a change of behavior if his friend’s conduct is not
acceptable to the community. Sons of sahwira often become sahwira themselves, while a
child or grandchild of one sahwira may be given in marriage to that of another. In times of
need, then, a Tawara can look for support to his lineage, his wife’s lineage, his fellow
villagers and his sahwira. Which ones are called upon in any particular case depends on the
problem. When a person becomes seriously ill, the family usually consults a diviner to
determine the cause of the illness. Diviners may be men or women. Some of the former use
hakata (dice) as a divining instrument, but women generally rely more directly on their
ancestral spirits for inspiration. It is said that a diviner not using dice will tell the clients to
wait the night, and they will give him some small amount of money like a shilling to sleep on.
In his dreams, he contacts his own ancestors and those of the patient to find out what is
wrong. The next day he informs the family whether it is a case of witchcraft or of a displeased
ancestor, and he will then indicate what can be done to relieve the situation. The elderly
relatives of the patient, on his father’s or mother’s side, may have to provide an offering to
their ancestors if these had been neglected and so had sent the illness. Ancestral spirits are
usually given cornmeal gruel, tobacco or snuff, and beer. In the old days a suspected witch
would be taken to the court of the mambo for trial and if proved guilty, perhaps by the ordeal
of drinking a poisonous substance, was killed.
Besides the diviners, there are doctors who are mainly herbalists with a specialized
knowledge of the medicinal properties of various forest products. Some learn their trade from
an older relative; it is likely that some are also helped by their ancestral spirits in their
practice. Others are aided by a “shave” animal spirit which possesses them at irregular
intervals. When the spirit, of a snake, baboon, or possibly other animal, comes upon the
medium, he may insist on beer being brewed and drums played while he dances all night.
Some of these doctors are specialists in the treatment of only one or a few disorders, whether
barrenness or snakebite or whatever. It has been difficult to obtain good information on
diviners, herbalists, and spirit possession.
When a person dies, the corpse is washed and placed in a special temporary hut during
the mourning period. A dance is held that night, mainly by the young people, for there is a
duty to cheer up the bereaved family. The next day the deceased’s washing dish and a white
stone are taken to a large tree in the neighbourhood; the dish is placed over the stone and then
is broken. The white stone represents the dead man’s spirit, and the relatives tell the man that
they are leaving him there until the bona rite at the end of the mourning period 6 to 18 months
later.
The body is buried in the family area of the cemetery. Cemeteries should be in a shady
and cool place, but they do not seem to be regarded as highly sacred. Evidently in the more
mixed area of Estima there is a tendency to have a separate cemetery for each tribal group, but
different clans of one tribe may be buried together. In olden days men used to be put under a
large stone in a hill rather than being buried in a grave. Today both men and women are
buried, a shelf being made in the side wall of the grave to receive the body. Sticks and grass
are put over the main part of the hole, and then dirt is pushed in; the dirt thus should not land
285
on the body itself. The deceased’s family remains in the homestead mourning and not
working for a week, after which certain men who have been assigned to look after their needs,
the matumbzvi, shave their heads and tell them to not cry any more. They are then free to start
work again. The final funeral ceremony, the bona, takes place several months later. At this
time there are a large feast, meat and beer being given especially to the matumbzv and the
sahwira who acted as pall-bearers. A ladle of beer is taken by each remaining member of the
family and poured out to the deceased’s spirit, while the person says something like, «It’s me,
X, don’t be angry, but take good care of us. Here is your water». After this bona rite, the spirit
is considered to be safely with the ancestors and will not return as an aggrieved ghost. A
successor is chosen to take the dead’s place, and his property is given to his heirs. While the
limited information we obtained suggested that cemeteries are not especially important after
the bone rite, the case may be different with the burial place of chiefs.

Spirits and some religious beliefs

Besides the seemingly otiose High God Ledza, there are five distinct types of spirits
important in Tawara life: the vadzimu (ancestors), the ngozi (vengeful ghosts), the shave
(certain animals), the nsato (python) spirits, and the mphondolo (lion) spirits. The ancestral
spirits are generally helpful to an individual as long as they are remembered, as at first-fruit
rites and when they make known their needs by sending illness. If neglected, or if their
descendants transgress the norms of human behavior, they may send bad luck or illness. Most
people who die become ancestral spirits, but a few who died in especially unfavourable
circumstances, e.g. by murder, may become avenging ghosts who plague those who wronged
them. Shave spirits, as mentioned above, usually are associated with some talent such as
knowledge of medicines. The other two types of spirits, those of pythons and lions, are
associated with chiefs and with rain-making.
Certain chiefs are said to return as a python which inhabits a large hollow tree, perhaps
a baobab. Not all pythons are spirit-pythons, and ordinary ones, as other snakes, may be
killed. The mphondolo (lion spirit) medium can identify these particular pythons, and he will
lead in prayers at the base of the python’s sacred tree-home in times of drought. If the tree is
cut down, drought is believed to follow. There are not many such trees however, so they do
not create a problem in clearing land for cultivation. I am not clear on the exact relationship
between the python spirits and the mphondolo mediums; it may be that some people,
especially women, become the mediums of the python spirits.
The mphondolo lion spirit, sometimes referred to in literature as a tribal spirit, is one of
the most important in the life of the Tawara and other Shona groups. I know almost nothing
about these spirits among the people we visited, except that people speak of them in
connection with ancient rain-making ceremonies. There is a certain amount of information
about such spirits among the Zezuru Shona of Rhodesia, where they are referred to as
mhondoro. These notes will be based mainly on written information rather than informants’
statements, Historical references to them include the travel accounts of Livingstone and of
Capelo and Ivens, who call them Pandora.
After a chief dies, his spirit may return to earth in the form of a lion wandering about
the bush, provided that the chief took certain medicines before death to ensure this happening.
After a while the lion spirit seeks a human host. The host medium is rarely a lineal descendant
of the chief, but is generally a commoner from a different area. The medium becomes the
mouthpiece of the chief when he is possessed by the mphondolo lion spirit. Both the spirit
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and the medium when possessed are called mphondolo. Not everyone who claims to be so
possessed is readily accepted. Usually some senior mediums and perhaps tribal elders
question the newcomer to ascertain his knowledge of the dead chief’s life, death and burial
and genealogical ancestry – all things that the chief’s spirit would of course know.
Occasionally a woman successfully claims to be an mphondolo medium, but this is rare.
When the medium of a chief’s lion spirit dies, it may be several years before the spirit returns
to another human host; in the meantime it again inhabits a lion. There is no regular continuity
of mediums of a particular chief, and if there is no living medium of one ancient chief, the
people can consult the medium of one of the other longdead chiefs.
Though the mphondolo represent important chiefs of the past when they speak in a
possessed state, they are not consulted on political matters. Their important and most
commonly exercised power is in connection with bringing rain. In most of Tawara country
rain is unreliable and drought is not uncommon. When the rains are late, the people complain
to the chief who himself can do nothing but who sends them to the mphondolo to find out
what is wrong. The medium becomes possessed and the spirit tells the people why he is
withholding rain – perhaps because of incest or other transgressions. After the necessary
sacrifices, the spirit promises to send rain.
The mhondoro among other Shona groups is not, however, merely a rain-maker. He can
be quite important in political matters during times of crisis. For example, he must give
religious sanction, the approval of the ancient chiefs, for a new chief (mambo) to be
enthroned. The accepted rule of collateral succession means that a founding chief of an area
should be succeeded by his younger brothers in turn, then by his oldest son, and then by the
oldest sons of each of his brothers in turn. After a few generations, there would be separate
royal lineages, each of which would in turn put forth one candidate for the office of chief.
Eventually several candidates might have about equal claim to the office, and the correct one
could only be determined by a war between the rivals or by the decision of the ancestral
spirits of chiefs speaking through the mhondoros. The chief who has the backing of the
mhondoro will generally enjoy stronger support of his people than the one merely appointed
by the local Government official (the District Commissioner in Rhodesia).
In the past, mhondoros in Rhodesia also were important in supporting rebellions by
chiefs against European rule. After the dismal failure of such rebellions, it seems that the
power of most mhondoros has been greatly limited: they are still consulted in times of
drought and when choosing a new chief, but some no longer pays attention to them and they
no longer oppose Government innovations. It is no doubt partly because of their rebellious
role in the past that the people do not like to discuss these mediums today.
Almost all Tawara in the Cachomba area continue to hold traditional religious beliefs at
least to some extent. There has not been any recent mission activity in the area, but some men
have come into contact with various Christian groups while away working. The main African
Christian church, probably more influential in other parts of the district, is that of the
Apostori. It seems that some Tawara joined this group near Salisbury and have continued to
practice their religion upon their return to Mozambique. The Apostori do not seem to differ
greatly from European and American sects which trust in faith healing through prayer to God
by Jesus, which reject the use of all medicines, European or African, which refuse to
participate in other pagan cults as that of ancestral Spirits, and which insist on clean living and
strict adherence to certain Old Testament laws, including the observance of the Sabbath on the
seventh day. Apostori sometimes attend services of European Christian missions, whether
Roman Catholic in Mozambique or at least some Protestant groups in Rhodesia, though of
course they fell their own church presents the truth.
287
Concluding remarks

This brief sketch has not covered all aspects of Tawara life, nor do we yet have
sufficient material to merit a full-scale report. I have attempted to present things the way we
saw them and heard them reported this year, rather than trying to reconstruct a picture of the
past before recent European influence. There are many aspects of Tawara life which are
changing, of course, and change will no doubt be accelerated in the near future. Already the
pattern of wage labor is accepted and almost all men have been out of their home areas
working for whites for several years. Change is also being introduced through the schools and
clinics, which the people seem to appreciate on the whole even if they do not show the
interest that nursing and teaching personnel might wish. Judging from our brief visit last July
to the Mazoe area, it would appear that many would be open to cash cropping if immediate
profits were the result. Cattle and ploughs have been well accepted by some in Guanzei along
the River Daque, but this requires a suitable area for cattle and protective measures like dips.
While it is natural, then, for rural peoples to be cautious in accepting new ideas, the suspicions
of the elderly do not seem to be equally shared by many of the young people of the area.

Bibliografia

1) OLIVEIRA, Carlos Ramos de (1976). Os Tauaras do Vale do Zambeze. Junta de Investigações Científicas
do Ultramar/Grupo de Missões Científicas do Zambeze.
289


NOTA SOLTA
Tentativas holandesas para captar a produção aurífera do planalto

Foi a partir da esmagadora derrota infringida à “Invencível Armada” que a Holanda –


instigada ou não por outras potências marítimas – se veio a transformar no mais poderoso
rival dos dois países ibéricos. Preparou-se com devidos cuidados e, quando julgou oportuno,
atacou com a eficácia decorrente da sua superioridade naval. Não se limitou a curtas incursões
e às atividades bélicas em alto mar, designadas por “guerra de corso”. Conseguiu conquistas
definitivas e, como é lógico, liquidou as redes mercantis que tinha sido criadas. Como se
esperava, o império português transformou-se no seu objetivo favorito. No decurso de uma
simples década, não só ficou privado do monopólio das especiarias orientais, como também
foi sumariamente expulso do Japão, de Malaca, da Indonésia, de Ceilão e da Índia Austral.
Amsterdão já estava transformada na cidade europeia mais desenvolvida, com
mercadores e capitalistas, experientes no recurso a créditos, sempre atentos aos cálculos sobre
lucros e perdas. A sua eficiência depressa se revelou, desde a difusão das manufaturas
procuradas pelos países ultramarinos até à evolução tecnológica da construção naval. Já então
a própria redistribuição das riquezas criadas pelas descobertas ibéricas, tinha beneficiado,
principalmente, os grandes empresários do norte da Europa.
Não admira que, logo no início do Séc. XVII, também tenham desenvolvido sérios
esforços para se apoderarem de todos os domínios portugueses na África e no Brasil. Em
1604 atacaram sem sucesso a fortaleza da Ilha de Moçambique. Regressaram preparados para
longos cercos durante 1607 e de novo em 1608, época em que a fortaleza era comandada por
D. Estêvão de Ataíde. Recorde-se, enfim, que pelo Tratado de Paz assinado a 6 agosto 1661
foi reconhecido à Holanda o direito de posse sobre todos os territórios que houvesse
conquistado.
Como temos dito e repetido, a grande produção aurífera da chamada “Costa de Sofala”
era conhecida e cobiçada pelos inúmeros mercadores e navegadores que percorriam o Oceano
Índico. Não é para estranhar que, sem grandes dificuldades, os mandatários da Companhia das
Índias Orientais tenham tomado conhecimento desse manancial de riqueza. Acresce que, em
finais do Séc. XVI, certo aventureiro holandês havia conseguido embarcar em uma das
Armadas Portuguesas. De regresso à terra natal, conseguiu publicar duas obras que tiveram
grande impacto, sobretudo entre a rica, letrada e sefardita comunidade judaica de origem
portuguesa que, após a expulsão manuelina, tinha buscado refúgio nos Países Baixos.
Chamava-se Jan Huyghen van Linschoten. É referido por M. Newitt mas sem comentários. O
seu segundo livro, contendo mais pormenores sobre Moçambique, foi impresso e divulgado
em 1596. Nele reproduziu o facto de Nuno Velho Pereira, recém empossado como
governador, haver confessado ao Arcebispo (?) que durante os seus três anos de mandato
(1583/6) esperava acumular a fortuna de nove toneladas (1) de ouro, graças a trocas
comerciais na “Costa de Sofala” e no Império dos Mutapas.
Seja como for, a miragem do ouro ressalta com evidência nos episódios a seguir
resumidos. Tanto o poderoso “Conselho dos Dezassete” em Amsterdão como o seu
representante no Cabo, estavam determinados a conhecer as rotas que conduziam às regiões
auríferas situadas algures no vasto interior.
Conta Alexandre Lobato (2) que em 1953, foi procurado em Lisboa pelo historiador sul-
africano Collin Coetzee, que afirmou ter como objetivo a consulta sistemática da
290
documentação primária sobre a reação portuguesa contra o expansionismo holandês na África
Oriental. Esse primeiro contacto entre os dois historiadores deu origem a um frutuoso trabalho
conjunto, de global e indubitável interesse, decerto facilitado pelo conhecimento mútuo do
idioma britânico.
Desde cedo A. Lobato se certificou de que a expansão holandesa fora baseada no firme
propósito de atingir a mítica “ mãe de ouro” nos longínquos sertões. A posterior ocupação da
Baía de L. Marques, que designavam por Delagoa, revelou-se como a mais obstinada decisão
tomada nesse sentido. Coetzee insistiu que o grande número de viagens efetuadas provara o
férreo empenho dos mandatários sedeados no Cabo. Como se verá, foram nulos os resultados
que alcançaram. É que não dispunham de suficientes conhecimentos sobre o litoral, as
correntes, o regime dos ventos e os métodos usados no comércio nativo. Lobato acentua que
os portugueses tinham conseguido guardar esses segredos durante mais de um século.
Coetzee descobrira na cidade do Cabo e na Holanda relatórios minuciosos contendo
bastante informação sobre as numerosas tentativas efetuadas. Foi essa razão por que, durante
os seus encontros com A. Lobato, manifestou estranheza pelo facto da documentação
portuguesa ser tão escassa. A. Lobato lembrou-lhe que, no Cabo, os responsáveis trabalhavam
para uma companhia privada que exigia relatórios completos sobre os negócios e as respetivas
sequências e vicissitudes. Teve dificuldade em fazer compreender que o comércio e a
administração portuguesa se processavam de modo assaz diferente. Os sertanejos e outros
mercadores podiam eventualmente desempenhar funções oficiais embora não fossem
classificados como funcionários. Esta prática incluía governadores, capitães, feitores,
missionários, soldados e marinheiros. É certo que os governadores arrendavam os setores
comerciais mais convenientes e gozavam do monopólio não só da entrada de fazendas e
missangas mas também da exportação de ouro e marfim. O resto do comércio era livre para
qualquer súbdito desde que comprasse primeiro e vendesse depois ao feitor. Este defendia os
interesses do governador que era obrigado a pagar as despesas com a administração da
conquista. Claro que, deste sistema, tiravam proveito grande número de intermediários que,
como sempre aconteceu e continua a acontecer, acumulavam lucros substanciais. Todos
ganhavam, comerciavam e tinham total interesse em manter a paz porque sem ela o negócio
não poderia sobreviver. A Companhia Holandesa funcionava de maneira inteiramente diversa,
porque só ela gozava do direito de negociar.
A. Lobato levou Coetzee a compreender as razões que tornavam difícil a reconstituição
histórica deste sistema: era baseado em compromissos verbais e não em documentação
escrita. Só em casos de guerras, roubos e calamidades se escrevia aos superiores hierárquicos.
Devido ao reduzido número de feitorias, os comerciantes recorriam à parca e tardia
intervenção do Estado apenas na eventualidade de haverem fracassado na resolução dos seus
particulares problemas. Por tal motivo era desnecessária a remessa de complexos relatórios.
Nos arquivos apenas se encontram cartas e memórias, muito genéricas, concentradas em
assuntos de eventual importância económica e política.
Foi essa completa liberdade comercial que permitiu atingir, em todas as direções, os
mais distantes lugares sertanejos. Até ao começo do Séc. XIX, foi quase nula a intervenção de
um Estado cuja penúria descia ao ponto de atrasar, durante longos meses, os próprios soldos
devidos aos militares. As fontes de receita desse Estado quase se limitavam aos rendimentos
das alfândegas.
Coetzee deixou esclarecido que, por muito tempo, as visitas dos Holandeses à Costa
Oriental foram classificadas, por quem de direito, como simples escalas de regresso para
viagens comerciais às Maurícias e a Madagáscar. Só a partir de 1686 se deu início às
expedições de reconhecimento ao Natal e à Baía de L. Marques. Pouco a pouco se
acumularam informações sobre os assuntos com maior interesse. Em quatro anos elas
291
ultrapassaram as recolhidas durante os 25 anos anteriores. Estes conhecimentos foram
transmitidos ao diretório da companhia em Amsterdão. Por exemplo, nos arquivos existe
documentação comprovativa de que, em 26 janeiro 1689, o Cabo foi escalado por um navio
português cujo capitão forneceu ao governador Van der Stel cópias de mapas da Costa
Oriental.
Em 1719, a expansão holandesa sofreu uma imprevista aceleração. Preocupados com as
atividades inglesas e francesas no Oceano Índico, os “Dezassete” nomearam uma comissão
para estudar o assunto. O relatório foi concluído em finais de julho e nele foi recomendada a
ocupação não só do Natal mas também da própria Baía de L. Marques. Os relatores
acentuaram que essa ocupação seria proveitosa para as frotas do Oriente que regressassem à
Europa. Recomendaram a construção de um forte capaz de resistir aos eventuais ataques
desencadeados por estrangeiros.
No entender de Coetzee, esta decisão foi influenciada pela publicação, em 1718, do
livro de J. P. Purry, Mémoire sur le pays des Caffres et la Terre de Nuyts. Seja como for, os
“Dezassete” resolveram proceder à ocupação da baía laurentina. Encarregaram a Câmara de
Amsterdão – onde tinham representantes – de resolver todos os problemas logísticos relativos
a navios, guarnições, materiais e mantimentos. Esse órgão camarário nomeou um grupo de
trabalho com poderes para tomar todas as decisões julgadas necessárias e dar instruções ao
governo do Cabo. Da documentação consta que essas instruções, datadas de 23 dezembro
1719, ordenaram ao governo do Cabo que preparasse a expedição e construísse uma feitoria
fortificada. Da Holanda partiriam dois barcos. No Cabo seria armado um terceiro.
As instruções recomendaram o uso exclusivo de métodos pacíficos nos contactos com
os indígenas. Uma vez ganha a sua boa vontade, seriam organizadas explorações de
reconhecimento aos três rios que desaguam na Baía. Procurariam adquirir, por troca, gado,
marfim, cera, ouro e madeira. Esse comércio ficaria subordinado aos interesses do Cabo e à
conquistada Indonésia que designavam por Batavia. Para comandar a feitoria laurentina foi
designado Klaas Nieuwhof, assistido por um grupo de oficiais e pelo cartógrafo Jacob de
Bucquoi, ao qual se deveu, anos depois, um interessante livro sobre L. Marques. Nele revelou
que cada capitão era portador de uma credencial dirigida aos potentados gentílicos pedindo
facilidades em matéria de comércio.
A expedição chegou ao Cabo a 22 novembro 1720. As doenças tropicais logo ceifaram
a vida a Klass. Foi substituído por Willem van Taak, funcionário das finanças, empossado no
início de dezembro. A tentativa foi organizada em ambiente de geral entusiasmo. Muitos se
ofereceram para embarcar, esperançados em descobertas auríferas. A partida do Cabo ocorreu
a 14 fevereiro e a chegada a Delagoa a 29 março 1721. Van Taak também não sobreviveu.
Falecido a 31 maio, foi substituído pelo seu adjunto, Casparus Swertner.
Este efetuou tentativas sérias no sentido de cultivar plantas alimentares, mas todas
fracassaram devido às térmites (formiga-branca). Por seu lado, o comércio não proporcionava
ganhos satisfatórios. Estes e outros fatores insuperáveis levaram De Chavonnes, governador
do Cabo, a participar aos seus superiores de Amsterdão que estava inclinado a abandonar a
feitoria.
Porém, o Conselho dos “Dezassete” pensava de maneira diferente. Não se resignava
com o desperdício de tão largas somas. Pelo contrário, continuava convencido de que a Baía
tinha potencialidades futuras. Não só proibiu que De Chavonnes abandonasse a feitoria como
resolveu expedir dois navios para efetuarem a comunicação direta entre o Cabo e Delagoa.
Também enviou trinta homens para o reforço da guarnição. Por um dos barcos veio a saber-
se, em abril 1722, que a malária já causara mais trinta baixas, entre as quais se contavam
ambos os comandantes. Depressa foram substituídos.
292
Pouco depois aconteceu algo de inesperado e catastrófico. Perseguido por quatro navios
de guerra britânicos, o pirata inglês George Taylor procurou refúgio na enorme baía.
Comandava uma força de uns 900 homens, embarcados em três navios, dois deles armados
com 64 e 36 canhões. Durante todo o dia 18 abril, travaram duelos de artilharia com o forte. O
novo 2º comandante Van de Capelle resolveu sair da feitoria, na companhia de dezoito
homens para, ocultamente, manter os seus contactos com as povoações indígenas que lhe
vendiam os produtos alimentares. Talvez por via de algum desertor holandês, os piratas
tiveram conhecimento dessa artimanha. Logo exigiram que Capelle e os seus homens se
apresentassem. Como não tivessem obedecido, decidiram bombardear o forte até à sua
completa destruição. Durante dois meses os piratas cometeram tamanhos desacatos que
acabaram por provocar a hostilidade violenta dos próprios nativos. Só deixaram a baía em fins
de junho, levando consigo muitos mantimentos, os bens adquiridos por troca, o melhor dos
barcos holandeses, dezoito desertores e o cartógrafo Bucquoi.
Os danos tinham sido tão elevados que as condições de vida nas ruínas da feitoria se
tornaram insuportáveis, para cúmulo agravadas pelas atitudes insolentes dos nativos quando
se aperceberam das fraquezas dos holandeses. No seu conforto europeu, os Dezassete
tomaram conhecimento da conjuntura e sobretudo do ostensivo poderio dos piratas. Não só
mantiveram Capelle no lugar de chefia interina como determinaram a construção de um novo,
maior e melhor forte que garantisse redobrada segurança.
Capelle acabou por ser nomeado comandante efetivo nos finais de abril 1724. A malária
continuou o seu mortífero caminho. Nos finais de 1725 restavam apenas 105 homens, dos
quais cerca de 40 se encontravam doentes. No ano seguinte o número de falecidos ascendeu a
quarenta; no final do ano contaram-se 44 acamados. O cemitério não dispunha de proteção; as
hienas (as repelentes quizumbas) tiravam proveito da noite para escavarem as sepulturas e
devorarem os cadáveres.
Capelle foi substituído no comando por pouco tempo. O seu sucessor faleceu logo em
janeiro 1727. A situação na feitoria era gravíssima. Não havia pessoal para percorrer os rios e
as terras em busca de alimentos e de produtos comerciáveis. Entre a guarnição grassava o
maior descontentamento.
Só o desespero geral pode explicar o episódio acontecido em 20 dezembro 1727. Um
dos barcos que explorava a costa, regressou com a notícia de que se encontrava em
Inhambane um navio português comandado por um tal Soares. Dezasseis homens desertaram
para se meterem a caminho, na esperança de aí poderem encontrar salvação. Apenas treze
conseguiram chegar a Inhambane. Porém o capitão do navio, à cautela, não os recebeu a
bordo. No entanto forneceu-lhes alimentos, roupas, missangas e passaportes. Aconselhou-os a
continuarem por terra até Sofala. No Forte Lagoa veio a saber-se que três desses desertores
tinham perdido a vida no trajeto. Ignorava-se o destino sofrido pelos restantes. M. Newitt
menciona este encontro baseado na conhecida tese de Alan Smith (3). Tratava-se de Bernardo
de Castro Soares, fundador da feitoria de Inhambane, cujos mapas e relatórios citámos algures
(4).
Foi por esse tempo que ocorreu uma conspiração que teve consequências dramáticas.
De início provocou o julgamento de um terço da guarnição. No final, vinte e dois dos
amotinados foram condenados à pena capital. Capelle mandou que fossem executados com
ferocidade nunca vista em Moçambique: crucificados, as tíbias partidas com ferros e, para
rematar, sumariamente decapitados (5).
Como durante o primeiro semestre houvessem falecido 37 homens, foram reforçados
com outros 80 em 1728 e com mais 53 no começo de 1729. Entretanto os nativos resolveram
assaltar o curral do gado bovino. Apenas sobreviveu um dos escravos que integravam o grupo
de 35 homens mandado em socorro.
293
Capelle comunicou que nesses dois anos tinham falecido 104 homens, e que a guarnição
estava reduzida a 76 homens. Desta vez os gestores do Cabo recusaram o seu pedido de mais
180 homens, já sensibilizados com as enormes perdas humanas e materiais que a Companhia
sofrera. Só em junho 1730 foi tomada a decisão de bater em retirada. Todas as instalações
foram destruídas. Nos finais de novembro, Capelle embarcou com destino ao Cabo, na
companhia de 133 europeus, compreendendo soldados, oficiais, operários, etc. Também levou
25 escravos. Chegaram ao Cabo em meados de fevereiro.
É incontestável que a Companhia Holandesa das Índias Orientais arriscou e perdeu
vastos capitais e, nessas tentativas infrutíferas, sacrificou com aparente indiferença tantas
centenas de mancebos que algures poderiam ter sido mais úteis ou auferido de melhor sorte.
Os seus capitalistas, representados pelos “dezassete” executivos instalados em Amsterdão,
foram irrefletidamente movidos pela pura ganância de obterem chorudos proveitos baseados
nas regiões auríferas do planalto interior, entre os rios Zambeze e Alto Limpopo. Deixo ao
critério de cada leitor efetuar comparações entre as tentativas feitas pelos Holandeses e pelos
Portugueses para ocuparem a excelente Baía de Lourenço Marques.
Devido à minúcia, exatidão e regularidade com que foram elaborados, têm grande
interesse etno-histórico os numerosos relatórios elaborados pelos comandantes e outros
responsáveis holandeses. Com frequência lamentavam e procuravam interpretar os crónicos e
sangrentos conflitos que entre si travavam os chefes tribais da região circundante. Sobre o
assunto A. Lobato apresentou uma sugestão valiosa que, por infelicidade, parece ter sido
esquecida (6): “A publicação integral da documentação e dos arquivos do Cabo poderá um dia
esclarecer o xadrez dos regulados de L. Marques. Mas agora o que interessa fixar é que estas
lutas constantes e extensas vedavam por completo o comércio da feitoria holandesa, que só
podia abastecer-se de marfim se este viesse do sertão”.
294
Bibliografia

1) Como já acentuamos em outra obra, a tradução feita por Theal é por certo errada. No Séc. XVI a unidade de
peso não podia ser em “toneladas”, mas sim em “pastas”, cada uma delas dividida em 100 meticais e
correspondendo atualmente a cerca de 21 quilos.
2) LOBATO, Alexandre (1961). Quatro Estudos e uma Evocação para a História de Lourenço Marques.
Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar.
3) SMITH, Alan (1970). The Struggle for Control of Southern Mozambique, 1720-1830. Ph. D. Thesis,
University of California – Los Angeles.
4) SOARES, Bernardo de Castro (1 agosto 1729). Documentos anexos às plantas (referentes ao mapa da
barra de Inhambane). Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), cx. Moçambique.
5) LOBATO, Alexandre (1961). Idem, p. 65.
6) LOBATO, Alexandre (1961). Idem, p. 63.

Como grande parte desta nota solta foi baseada na segunda referência citada na
bibliografia, é imperioso transcrever a “Nota Biográfica” com que Alexandre Lobato encerrou
a sua coletânea:
“Dez Anos de Ocupação Holandesa é paráfrase do estudo «Die Kompanjie se
Besetting van Delagoabaai», de C. G. Coetzee, M. A., publicado no Archives Year Book for
South African History, 1948, vol. II. Foi redigida em 1953 em Lisboa, por mim com o Autor,
durante as reuniões que dedicámos, da parte dele, aos factos e condições determinantes da
expansão sul-africana para leste; da minha parte, aos condicionamentos, atitudes e limitações
da presença portuguesa em Moçambique. A exposição de Coetzee é por isso interpretada em
ordem aos imperativos da ação portuguesa”.
P. S. Recomendo a leitura da dissertação apresentada por Ilda Belo Carmona, na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Tem por título “Relações entre os Portugueses de Moçambique e os
“Boers” ou Holandeses de África”. Foi publicada em 1958, como «Separata do “Documentário
Moçambique” nos 85 a 88». Concentrou-se no Séc. XIX e baseou-se na documentação manuscrita
existente no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. No Curso de Verão da Arrábida do ano 2000,
o historiador holandês Pieter Emmer apresentou a seguinte perspetiva:
“Felizmente que já passou o tempo da histografia nacionalista… A Companhia das Índias
Orientais Holandesas deixou de ser considerada como uma espécie de Ministério das Colónias e hoje
ela é considerada, sobretudo, como a primeira empresa multinacional da história”.
295


NOTA SOLTA
A celebração anual da Inquaia. Táticas e hinos guerreiros.
Valores de honra, heroísmo, verdade e solidariedade

A cerimónia nacional de maior relevância denominava-se Inquaia. Sendo como era


prerrogativa do monarca, não podia ser realizada durante as regências ou durante a
menoridade do herdeiro. Participavam sempre a rainha-mãe, as rainhas principais e os
regimentos selecionados. Os rituais eram dirigidos pelos mais dignitários mais graduados. Era
essencial o sacramento das primícias. Era proibido o porte de armas cortantes por se
considerar que o derramamento de sangue provocaria irreparáveis danos sobrenaturais.
Paiva d’Andrada encontrava-se acampado nas proximidades quando, a 24 fevereiro
1887, Ngungunhane e a sua corte, ainda fixados no Mossurize, participaram na Inquaia anual
(1). Calculou em cerca de quinze mil o número de guerreiros convocados. Quando a capital –
sempre denominada Mandlakazi, “grande força” em vernáculo (2) – foi transferida para o
Baixo Limpopo, o missionário suíço Liengme (3) conseguiu assistir a mais de uma inquaia.
Após a derrocada do Império de Gaza, publicou os melhores relatos que se conhecem sobre o
simbolismo e a magnificência do acontecimento. Exaltou as graciosas danças imaginadas
pelas rainhas que agitavam garridos lenços. O monarca era igualmente vaidoso, enfeitando a
cabeça com penas de avestruz, adornando os braços e as pernas com argolas e pulseiras de
ouro, cingindo-se com vários e coloridos panos de seda (oferecidos pelos comerciantes
asiáticos) embora os costumes tradicionais exigissem a apresentação régia em tronco nu.
Embora Ngungunhane fosse, em aparência, pouco inclinado para as belas artes, tinha fama de
ser muito exigente quanto à harmonia dos grandes coros, detetando de imediato quem
desafinava e, por conseguinte, merecia ser punido.

***

Carl Wiese (4) encontrava-se entre os estrangeiros residentes em Moçambique que se


interessavam pela antropologia cultural. Descreveu em pormenor o ataque organizado por
Nsingo, herdeiro de Mpezene, dois anos antes dele próprio ter passado na região.
Conseguiram aniquilar uma grande caravana árabe. Julgo ser o único relato de uma operação
militar daquela etnia que foi bem sucedida em ambiente florestal. O código de honra militar
criado pelo famoso Chaca Zulo, dava prioridade absoluta ao combate corpo a corpo em
terreno aberto e ao prévio cerco feito pelos diversos regimentos dispostos em meia-lua, de
modo a envolver o inimigo.
Eis a tática tal como foi mais tarde relatada por Wiese: os guerreiros notaram, pelos
rastos deixados no solo, que se tratava de uma grande caravana árabe composta por cerca de
quatrocentas pessoas. Durante a noite, a coberto da vegetação, conseguiram observar a grande
quantidade e qualidade da mercadoria transportada. Planearam então um astuto e audacioso
assalto. Aguardaram que a caravana se pusesse a caminho após os escravos terem sido
manietados e carregados com marfim e centenas de embalagens. O assalto foi efetuado por
três grupos distintos: os Cabaendas constituído por adolescentes entre os 14 e os 18 anos, que
o deveriam iniciar; os Mahoras e os Mabemas, adultos e operacionais; os Madodas, veteranos
com coroa de cera que iriam desferir os golpes finais.
296
Os guerreiros do primeiro grupo aproximaram-se da caravana tão perto quanto possível,
escondidos entre a vegetação. Obedecendo a sinais combinados, carregaram subitamente,
gritando os adequados brados de guerra. Apanhados de surpresa, os árabes abriram fogo quase
em simultâneo. Julgando serem os únicos inimigos, correram em sua perseguição,
dispensando a recarga das armas. Os jovens continuaram com a sua fingida retirada, levando
os árabes a internarem-se mais profundamente na mata até ao local onde se escondiam
Mahoras e Mabemas. Estes, segundo o plano, atacaram pela retaguarda, iniciando o massacre
com mocas e azagaias. Os Cambaendas retrocederam para completar o cerco. Finalmente, os
Madodas entraram em ação combatendo corpo a corpo. Poucos árabes foram feitos
prisioneiros. Perante a perda total dos bens que tinham conseguido acumular em dois anos de
práticas desumanas nos mais profundos sertões, a maioria dos que escaparam não quiseram
enfrentar as consequências da derrota e da ruína, optando pelo suicídio com seus tradicionais
punhais recurvados. Os sobreviventes foram mais tarde vendidos a outras caravanas árabes.

***

Parece oportuno citar em especial o famoso hino guerreiro uimebane. Gomes da Costa
(5) vivamente impressionado, descreve-o deste modo: «Ouvi-o cantar por cerca de seis mil
homens durante uma tarde ao pôr-do-sol voltando dum combate; e na planície imensa que
percorríamos, sob o céu dum azul opalino, diáfano, envolvidos pela atmosfera tranquila e
serena, com os nervos ainda vibrando da excitação do combate, essa canção grave, majestosa
e heroica, soou-me como cântico de graças ao Altíssimo, como um hino sagrado. E essa
impressão foi tal que jamais me esqueceu, e ainda hoje só a sua recordação me faz vibrar os
nervos como nesse dia sagrado… É a maneira como está organizado o coro que torna
magnífica esta canção. Numa reunião de impis um grupo de vinte ou trinta homens a partir da
direita começa a canção; um segundo grupo ataca a primeira nota quando o primeiro grupo
começa a terceira; o terceiro grupo começa quando a segunda termina a terceira e assim
sucessivamente… Uimeban, Uimeban! Uime a panse come jab… Áhô… Jue.» O mesmo
autor dá dela a seguinte tradução livre: “Em vão cultivas! em vão trabalhas a terra! Nossas
serão as colheitas quando passarmos com a guerra. A guerra triunfante!”
Não menos entusiásticas são as palavras de Ayres d’Ornellas (6) que o ouviu durante as
reuniões efetuadas na capital de Ngungunhane, em agosto 1895, entre os emissários
portugueses e o conselho formado pelos membros mais proeminentes da família real. Essas
palavras merecem ser repetidas porque descrevem pormenores que permitem definir as
qualidades incutidas pela preparação militar: «… tratemos de dar uma ideia do espetáculo que
presenciei nesse dia, espetáculo que bem poucos europeus têm visto e com certeza o mais
extraordinário a que tenho assistido. Pelas 9 horas da manhã, do mato que fecha a elevação
onde está o Curral de Gungunhane, vinha saindo uma multidão de gente descendo para a
langua do Manguanhana. Ao chegar à planície, tudo isso fez alto, formando uma densa linha
negra que nos fechava o horizonte. Lentamente se foi ela aproximando de nós; pouco a pouco
iam-se percebendo e distinguindo os vultos quando se partiu em seis colunas, duas delas
muito profundas, ladeadas, cada uma, por duas mais pequenas. Eram as duas mangas de
guerra dos Impafumane (homens altos) e Zinhone M’choque (pássaros brancos), dividida
cada uma em três troços (mabange) na força de perto de três mil homens cada uma,
ostentando toda a gala e a riqueza selvagem do magnífico traje de guerra vátua. Vinham
armados só de cacetes, prova das suas intenções pacíficas; e toda essa massa imensa avançava
para nós cercando a Residência sem ruído sequer, manobrando com uma precisão e
regularidade que fariam inveja a europeus. A cerca de 500 metros de nós destaca-se para a
frente o bobo ou jogral do exército, literalmente coberto de peles de tigre (i.e. leopardo), com
297
um imenso capacete de penas negras na cabeça, dando cabriolas, ladrando como um cão,
cantando como um galo. Já estavam as mangas juntas à residência e as seis colunas formaram
linha em semicírculo em volta de nós, vindo para a frente até quinze ou vinte metros um
grupo de cerca de cem homens. Entre estes vinha o Ngungunhane que conheci logo, apesar de
nunca lhe ter visto retrato algum; era evidentemente o chefe duma grande raça. Desse grupo
adiantou-se um dos principais orando por bastante tempo, dando-nos as boas vindas em nome
do régulo e da sua nação e terminando pela saudação vátua: “bahete!” que, repetida pelas
milhares de bocas que nos cercavam, produzia um efeito duma descarga de fuzilaria.
Então o régulo adiantou-se sentámo-nos e trocaram-se os mais cordiais cumprimentos.
É um homem alto, pouco mais baixo do que eu, e sem ter as magnificas feições que tenho
notado em tantos dos seus, tem-nas, sem dúvida, belas, testa ampla, olhos castanhos
inteligentes e um certo ar de grandeza e superioridade. Ao levantar-se, fez-se, de novo, ouvir
o estrondoso “bahete!” e formando outra vez as mangas em coluna, mando-as entoar o canto
de guerra. Aqui devia eu parar! Nada no mundo pode dar uma pálida ideia da magnificência
do hino, da harmonia do canto, cujas notas graves e profundas vibradas com entusiasmo por
seis mil bocas faziam-nos estremecer até ao íntimo. Que majestade, que energia naquela
música, ora arrastada e lenta, quase moribunda, para ressurgir triunfante num frémito de
ardor, numa explosão queimante de entusiasmo! E à medida que as mangas se iam afastando,
as notas graves iam dominando, ainda por largo espaço, reboando pelas encostas e entre as
matas do Manjacaze. Quem seria o compositor anónimo daquela maravilha? Que alma não
teria quem soube meter em três ou quatro compassos, a guerra africana, com toda a acre
rudeza da sua poesia? Ainda hoje nos “cortados ouvidos me ribomba” o eco do terrível canto
de guerra vátua, que tantas vezes o esculca chope ouviu trânsito de terror, perdido por entre as
brenhas destes matos nos quais vivo há um mês”. No dia seguinte fomos à banja, espécie de
Conselho de Estado, onde têm assento os membros da família do régulo e os grandes senhores
da terra – umas trinta e tantas pessoas ao todo – e entabulámos as negociações. Desde o
princípio se nos apresentou uma grande dificuldade: a de convencer o Ngungunhane de que a
submissão às nossas vontades o livraria da guerra. Alegava: “Se as tropas são tantas e estão
nas minhas fronteiras não foi só para que me viessem aqui dizer isso. Se eu já tivesse dito que
não, percebia então essa aproximação”. Enfim, seria longo enumerar os argumentos
apresentados de um ou outro lado em três banjas de cerca de quatro horas cada uma. Só direi
que admirei o homem, discutindo durante tanto tempo com uma argumentação lúcida e
lógica».
Houve outros oficiais portugueses que teceram rasgados elogios aos valores de honra,
coragem, verdade e lealdade incutidos aos guerreiros do Império de Gaza. A. Caldas Xavier
(7) destacou que em Sena “a gente de Anselmo Ferrão que não fugiu foi, sem dúvida, a sua
magnífica manga de landins…”.
Gomes da Costa (8) notou, no que concerne a resolução de litígios judiciais: “No meio
desta assembleia às vezes de duzentas pessoas não há a menor confusão; nunca fala mais que
um de cada vez, e nunca uma discussão se azeda; e isto não é imposto por nós; é natural deles
e resultado de uma educação tradicional”.
E mais adiante especificou: “… Tive sempre no Chibuto os indígenas mais respeitáveis
pela sua qualificação e idade, a quem sempre ouvia antes de pronunciar a sentença; e devo
dize-lo: nunca os encontrei em contradição, nunca os encontrei em mentira, mas sempre
justos, sempre discriminando a verdade no meio das mais tortuosas e embaraçadoras
exposições”.
298
Bibliografia

1) ANDRADA, Paiva d’ (1887). Carta nº 29, a 5 março, contendo a Ata da reunião realizada a 14 fevereiro, na
povoação real de Manjacaze; menciona inquaia realizada a 24 fevereiro com a participação de quinze mil
guerreiros.
2) DNPP e Arquivo Histórico (1985). Ngungunhane, Herói da Resistência à Ocupação Colonial. Maputo,
Partido Frelimo, junho.
3) LIENGME, G. (1901). Un potentat africain: Goungounyane et sons régne. Suiça, Bull. Soc. Neuchâtel
Géogr., 13, pp. 99-135.
4) WIESE, Carl (1891/2). Expedição portuguesa a Mpezene. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, de 10ª série (6/7): 235-
273 até 11ª série (8): 519-599.
5) COSTA, Gomes da (1899). Gaza (1897-1898). Lisboa, M. Gomes ed.
6) ORNELAS, Ayres de (1930). Cartas de África: a Campanha do Gungunhana – 1895. Lisboa.
7) XAVIER, Alfredo Augusto Caldas (1889). A Zambézia. Índia Portuguesa (Nova Goa), Imprensa Nacional.
8) COSTA, Gomes da (1899), Idem.
299


NOTA SOLTA
Datas e factos acerca das ilhas de Quirimba

No arquivo da Administração do Concelho do Ibo existia um documento datilografado,


subscrito pelo missionário de origem francesa que dava pelo nome de “P. e Constantino
Gerard”. Quando os modernos sistemas de reprodução chegaram àquela divisão
administrativa, passou a ser permitido que dele fossem extraídas fotocópias.
Lamentavelmente, essa tentativa de narração histórica tem o defeito de apresentar os
acontecimentos de forma incoerente e sem rigor ortográfico não se encontrando, por
conseguinte, em condições de ser editado. É possível que o P. e Gerard ainda estivesse no
início da sua carreira missionária. Relembro que em 1941 publicou dois estudos sobre
comunidades pertencentes à etnia macua, sendo o segundo relativo à região do Medo que teve
alguma importância no caso da expedição dita “Pinheiro Chagas”, que visava o lago Niassa
(1) (2). Sem dúvida que o autor do documento datilografado fornece informações que têm
bastante interesse para a reconstituição histórica. Por razões óbvias foram introduzidas as
indispensáveis retificações ortográficas.
Por também constituir um documento de grande interesse para a historiografia do
arquipélago da Quirimba, será incluído no final um estudo subscrito por um investigador que
ali exerceu funções administrativas. Com as iniciais J. de C. B. Ribeiro Torres, este autor
publicou no nº 5 (1936) “Documentário Moçambique” uma “Resenha histórica do regulado
de Arimba – Quissanga”, inserindo pormenores sobre o português Manuel de Morais que em
1630 se fixou no Norte de Moçambique, dando origem a uma casa reinante. Os excertos que
serão apresentados foram retirados do artigo com idêntico título, publicado no mesmo
periódico nº 15, referente a julho/setembro 1938. São aqui incluídos para efeitos comparativos
com a cronologia que se segue.
1645 – Foi neste ano que se atribuiu aos armadores a concessão de carregarem navios
com escravos para a nossa colónia sul-americana. As autoridades receberam ordens para
facilitarem o negócio tanto quanto possível, porque dele dependia a prosperidade do Brasil.
Era muito conveniente não só para o real serviço mas também para a fazenda pública e para
os vassalos. Daí por diante não mais parou o tráfico que em breve se tornou no mais lucrativo
de todos.
1670 – Os habitantes das Ilhas de Quirimba não foram sempre bons patriotas. Conta
Teixeira Botelho (I, p. 330) que em 1670 os Árabes de Mascate tentaram atacar a fortaleza de
Moçambique, “prevenidos com práticos contratados nas povoações de Cabo Delgado”. O
ataque não teve resultado, embora fosse efetuado com uma forte esquadra.
1723 – Provisão proibindo a admissão de navios estrangeiros nos portos da Província.
1728 – Foi sobretudo nos tempos da escravatura, quando o indígena não era sempre
livre de recusar o batismo, foi nos tempos em que havia batismo compelido como hoje ainda
temos trabalho compelido. “Mais de uma vez, diz Andrade Corvo, os triunfos dos
missionários na África se podem… explicar pelo tráfico de escravos”. Noutra parte uma lei de
1728 proibia a exportação de escravos não batizados.
1740 – Na década de 1740, os franceses de Madagáscar começaram a frequentar as
Ilhas de Quirimba, para negociar, sobretudo a compra de escravos.
1761 – O Ibo foi elevado à categoria de vila.
300
1763 – Por eleição, a Câmara era composta por: juiz ordinário, procurador, tesoureiro,
escrivão, vereadores.
1769 – Bando do capitão general obrigando os proprietários a plantar mandioca.
1778 – Carta do governador-geral Pereira de Lago que chama aos habitantes de
Quirimba: “povo malvado… brutos… monstros libertinos, símbolos e escândalos da luxúria e
patifaria…”.
1780 – Estabelecida uma feitoria francesa em Quiloa, que passou a dominar o comércio
de toda a costa de Zanzibar, desde Mombaça até Cabo Delgado.
1785 – Foi proibida a entrada de navios franceses nos portos de Moçambique.
1786 – Determinou-se a abertura dos portos aos navios de Goa, Damão e Diu; porém o
governador de Moçambique só criou alfândega na ilha do Ibo, recomendando verbalmente ao
governador e capitão-mor, que fingisse ignorar o tráfico feito pelos franceses e que se
desculpasse com a reparação de avarias.
1788 – O cirurgião-mor Aleixo José Cardoso fui substituído por João Lopes de Azevedo
e Cruz.
1790 – Escreveu Jerónimo José Nogueira de Andrade: “… as Ilhas foram a barreira da
capitania de Moçambique pela banda do norte, e agora são um portal aberto. Foram bem
povoadas, tiveram bons edifícios de pedra e cal, e agora jazem na mais lamentável ruína e
abatimento, causado pelas repetidas invasões arábicas. Muitos moradores partiram para
Moçambique e Goa fizeram a sua residência nos matos onde acabaram a vida…”.
1791 – Por ordem superior do governador António José Teixeira Tigre, o capitão do
regimento dos Granadeiros, construiu no Ibo a fortaleza de S. João Baptista.
1796 – A 6 outubro, cerca de cem franceses, sob as ordens do tenente Picard, atacaram a
ilha do Ibo. Foram repelidos, morrendo um sargento e dois soldados. Conseguiram prender o
tenente Rezende e o Padre Capelão. Dois dias depois os franceses atacaram Pangane e aí
Rezende conseguiu fugir.
1800 – A 30 novembro os Sacalaves de Madagáscar invadiram a ilha do Amiza e o
continente fronteiro e arrasando três povoações. Julgo ter sido o primeiro ataque dos
Sacalaves que continuaram com as suas incursões durante quase vinte anos (3).
1801 – A 16 outubro os Macuas invadiram as Terras Firmes. Morreram doze nativos e
foram feitos prisioneiros dezoito. Sobre esta invasão escreveu o governador para
Moçambique: “Não posso expressar o terror que nesta ocasião dominou… muitos
desampararam as terras e esconderam-se no mato”.
1802 – Esquecendo as injúrias e os prejuízos de 1798, os habitantes do Ibo tornam a
vender escravos aos franceses de Madagáscar. Em fevereiro um barco francês levou 67
escravos.
1807 – Escreveu neste ano o governador das Ilhas: “… quase todos os naturais destas
ilhas acreditam mais no Islão e nos ritos cafreais do que na religião cristã…”.
1808 – Os Sacalaves tentaram cercar a fortaleza de S. João Baptista, mas nada
conseguiram. O governador António Alberto Pereira informou por escrito que se tinham
refugiado na fortaleza mais de 1.500 pessoas. Outras fugiram para o mato das Terras Firmes.
Os invasores incendiaram, roubaram, mataram ou levaram grande parte das trezentas cabeças
de gado bovino. Também chegaram a cortar muitos coqueiros. Acerca desta invasão o
governador comunicou ao capitão-general: “… Eu calculo que os Benimissarcos (Sacalaves)
levaram para cima de 600 pessoas de todas as idades, compreendendo gente livre de
diferentes classes, além dos muitos macuas que vieram aprisionando desde a Changa…”.
301
1811– O governador das Ilhas, Francisco António de Sousa César, primeiro-tenente de
artilharia, marchou à frente duma força contra o régulo Mavilhe. Regressou gravemente ferido
depressa vindo a falecer.
1815 – A 9 novembro, a ilha de Quirimba e a respetiva Terra Firme foram de novo
invadidas pelos Sacalaves. O governador tentou atacá-los, mas sem grandes resultados.
1816 – A 23 outubro, a ilha de Quirimba foi mais uma vez invadida por Sacalaves,
comandados pelo príncipe de Anjeanes conhecido por Chicandar.
1817 – Mais outro ataque de Sacalaves.
1820 – Desertaram os oficiais inferiores da Companhia, quando o distrito foi governado
por Caetano José Cordeiro. Este escreveu para Moçambique: “estas Ilhas se acham
inteiramente destituídas não só de moradores, mas também de colonos nativos por terem sido
por quatro vezes invadidas dos Sacalaves, que conseguiram raptar mais de três mil habitantes
de ambos os sexos”.
1828 – Entrou em vigor o Tratado com o Imamo de Mascate.
1831 – Houve insubordinação dos soldados por não terem dinheiro para se alimentarem.
1838 – Os habitantes do Ibo pretenderam festejar, a 4 abril, o aniversário da rainha.
Como não houvesse dinheiro suficiente, o governador obrigou os três comerciantes baneanes
a pagar as despesas da festa. Passou a repetir-se anualmente este procedimento. O governador
da Província deu a conhecer o seu intuito de admitir casais de Goa para colonizarem
Moçambique.
1840 – A colónia é dividida em seis distritos militares, formando as ilhas de Cabo
Delgado o sexto.
1842 – Em 4 abril (devido ao atraso de muitos meses no pagamento dos soldos)
revoltaram-se os oficiais subalternos e a soldadesca “a ponto de se reduzir toda a vila à
anarquia”. Prenderam o governador, o capitão Custódio de Jesus Lopes e o feitor da Fazenda
Pública João Mariano Gonzaga.
1845 – A 11 dezembro foi o governador Rodrigo Jacinto de Sousa suspenso pelo
governador-geral “por recaírem sobre ele fundamentadas suspeitas de encobrir o tráfico de
escravatura”.
1850 – Neste ano escreveu sobre o arquipélago o capitão António Cândido Pedroso
Gamitto: “… mais parece domínio árabe de que português”. Nesta década, em hasta pública,
ainda se arrendavam as ilhas por triénios. Encontrava-se nelas tartarugas, manás, urzelas, etc.
1852 – O governador Jerónimo Romero iniciou a construção da nova residência para os
governadores. O gado arrolado apurou 16 asininos, 695 bovinos, 610 caprinos, 135 ovinos,
161 suínos.
1853 – A 17 outubro, é aberto o comércio da Província a estrangeiros. O governador-
geral e as autoridades superiores de Moçambique discordaram deste decreto por ser
prejudicial a interesses pessoais.
1854 – A 13 maio foi iniciada a publicação do Boletim Oficial de Moçambique. Em
novembro chegaram ao Ibo os angolanos que tinham participado na Expedição de Silva Porto.
1858 – O governador Romero queixou-se, por escrito, de que os funcionários públicos
tinham recebido os seus últimos vencimentos em 31 dezembro 1855, isto é, com um atraso de
31 meses. Os próprios soldados africanos estavam sem pagamento desde o fim de abril 1856,
isto é, com 27 meses atrasados.
P. S. Na coleção de “reservados” da Sociedade de Geografia de Lisboa (com o nº 146)
existe um ofício confidencial do Marquês de Loulé com a cópia da informação, datada de 24
302
outubro 1857, prestada por Alfred Duprat, representante português na Comissão Mista no
Cabo da Boa Esperança, dando a conhecer que o cônsul inglês Mac Leod tinha feito
revelações sobre a continuação do tráfico escravista, citando o exemplo de um navio com
bandeira americana que carregara no Ibo mil e duzentos escravos.
1859 – A força militar estacionada no Ibo era constituída por um comandante, um
capitão, dois tenentes, dois alferes, dois primeiros-sargentos, dois segundos sargentos, um
furiel, cinco cabos, quatro tambores, cento e quarenta soldados. O major comandante ganhava
979$800; o capitão 619$000; o tenente 341$400, o alferes 295$400; o soldado 43$800.
Surgiu no distrito do Ibo uma epidemia de cólera-morbus que fez 962 vítimas. Tinham
os seguintes estatutos: 126 livres; 21 libertos e 815 escravos. Começou em 16 março e
prolongou-se até 28 abril.
1860 – Abriram no Ibo dois estabelecimentos comerciais franceses: Fabre et Fils e
Régis Ainé.
1862 – Havia um total de 171 embarcações.
1864 – É fundado o Banco Nacional Ultramarino (P. S. Sob a iniciativa de Francisco de
Oliveira Chamiço).
1865 – Relatório do governador Francisco de Paula Castro Domingues, capitão-tenente
de Infantaria: “… Há falta de limpeza nas ruas… a instrução é pouca no sexo masculino e
nenhuma no feminino… seria desejável que houvesse uma mestra de meninas, para as educar
e para se evitar que cheguem a ser adultas com os costumes cafreais praticados e sem
conhecimentos religiosos”.
1866 – Pela primeira vez se mencionam ataques dos Angonis Mafitis ou Guanguaras.
Tinham assolado as terras do interior. Estes ataques iriam prolongar-se durante mais de vinte
anos.
P. S. Esta identificação entre Mafitis e Guanguaras foi sugerida por Azevedo Coutinho
(4). Parece ser bastante credível. Alguns autores têm confundido os Mafitis com os Angonis
Massecos fixados definitivamente a oeste do extremo sul do lago Niassa. Sabe-se que em
1884 estes últimos limitaram as suas incursões de rapina às terras mais meridionais que
atingem o lago Chirua. O missionário escocês D. C. Scott visitou o monarca Chicusse para
rogar a sua clemência. Em 1886 voltou a ser visitado e presenteado pelo cônsul Hawes.
Obteve do mesmo Chicusse a promessa solene de terminar com as suas incursões guerreiras.
Tal promessa foi respeitada até 1896 (5).
1868 – O Ibo passou a ser escala dos barcos franceses da Messageries Maritime, que
ligavam Marselha a Madagáscar. Em abril eclodiu nas Terras Firmes uma revolta prolongada
que envolveu entre 200 a 300 guerreiros indígenas. O governador suspeitou que tivessem sido
instigados por certos moradores. Três de entre estes foram presos.
1870 – O governador de distrito dirigiu ao comandante da Praça o seguinte oficio:
“constando que alguns moradores mandam que os seus serviçais sejam castigados com açoites
aplicados pelos soldados da Companhia, fica terminantemente proibida esta prática abusiva”.
1871 – Em meados de fevereiro as ilhas foram mais uma vez afetadas pela epidemia de
cólera-morbus. Prolongou-se por dois meses. Ficou registada a morte de 307 homens e 259
mulheres.
1873 – Os vapores britânicos iniciaram as carreiras mensais entre Adém e o Cabo da
Boa Esperança, com escala pela Ilha de Moçambique.
1874 – Primeiro contrato com a British Índia, constituindo o Ibo uma das suas escalas.
303
1876 – A Expedição das Obras Públicas, vinda de Portugal, composta por 50 a 60
especializados, também se deslocou ao Ibo: procedeu a obras e a construções importantes
como o novo edifício da Alfândega e os acabamentos na residência do governador.
1878 – A 22 janeiro, o governador do distrito escreve ao chefe de Olumbua: “… com a
nova lei acabou o trabalho gratuito e a odiosa sujeição do antigo liberto… A lei da extinção
dos libertos… foi aceite com má vontade por uma grande parte dos habitantes do distrito, que
tinham como única fonte de receita o abominável tráfico…”. O governador acrescenta que
será rigoroso. Machado, chefe da expedição de Obras Públicas, deixou escrito: “os antigos
colonos em geral remuneram o trabalho do negro com o chicote ou com a grilheta”.
A 23 janeiro – Do governador ao governo-geral: na Quissanga são mais de quinhentas
pessoas que se estão aprontando para me acompanharem ao lago Niassa.
A 24 fevereiro – “mesmo das regiões limítrofes do lago (por exemplo Mualia)
anualmente concorrem a esta vila três a quatro caravanas de oitenta a cem homens com
marfim para ser permutado…”.
A 27 fevereiro – requerimento em que os negociantes deste distrito… pedem (ao
governador?) que mande proceder ao estudo e à construção de uma estrada carreteira que
ligue a Quissanga à povoação do Medo, de onde vem a maioria dos produtos que se exportam
pela Alfândega desta vila.
A 2 julho – O régulo Mualia, das terras da Coroa em Medo, foi ao Ibo prestar preito de
vassalagem. Os Mafitis atacaram Quissanga, queimaram casas, assassinaram umas 40 a 50
pessoas.
A 13 agosto – escreve ao governador-geral queixando-se do “mau pessoal que enche as
repartições públicas no ultramar, sem conhecimentos e mesmo sem os predicados necessários,
salvo exceções”.
A 21 setembro – “nas nossas colónias a experiência de séculos tem mostrado que o
desconhecimento da língua do país pelos missionários, é uma das principais razões por que
tão limitado foi nestes povos o progresso do cristianismo”.
1879 – Em setembro: o régulo Mueri (Montepuez) veio ao Ibo prestar preito de
vassalagem.
A 22 agosto – pelas 5 horas da tarde, houve um grande tremor de terra que durou alguns
segundos. Ficaram seriamente danificados os edifícios da Igreja e do Paço do Conselho.
A 29 dezembro – A “Eastern Telegraph Company” informa que o cabo submarino
entre Zanzibar e Adan está concluído, achando-se portanto Moçambique ligado
telegraficamente ao resto do mundo.
1880 – A 12 janeiro: Decreto real contra os castigos corporais aplicados aos indígenas
(cf. Boletins Oficiais datados de 10 novembro 1869; 2 novembro 1874; 3 maio 1880; 12 julho
1880 e 2 agosto 1880).
1881 – Código de Posturas proibiu que dentro da vila se cavalgassem as montadas.
1883 – Em outubro abriu no Ibo a casa comercial inglesa Sharrer, Tied & Cia. Num só
ano teve mais movimento comercial do que quaisquer outros estabelecimentos.
1884 – Neste ano e nos anos seguintes, os franceses efetuaram “pesquisas
mineralógicas” nas terras do Lugenda, especialmente no Itule, onde constava haver carvão.
1885 – Quando o major Perry da Câmara esteve no Ibo pela segunda vez, aqui chegou a
“Expedição Científica Pinheiro Chagas ao lago Niassa”, sob o comando de Serpa Pinto.
Atingira a Quissanga a 15 fevereiro com 85 guerreiros landins. Permaneceu no Ibo várias
semanas por causa de doença grave que afetou S. Pinto. A Expedição saiu de Quissanga a 16
junho, sendo constituída por 719 pessoas, depois de receber os auxílios conseguidos pelo
304
governador. No Montepuez, S. Pinto voltou a adoecer. Augusto Cardoso assumiu o comando
da Expedição mas reduzida a 140 pessoas. Serpa Pinto, já melhor de saúde, fez o
levantamento da planta do Ibo que existe em Lisboa na Sociedade de Geografia. Eis o que
pensava S. Pinto acerca das terras de Pemba e Lúrio: “Naqueles países sente-se que nada
temos. Nem influência, nem respeito, nem autoridade e mais parecem terras árabes do que a
parte mais importante e interessante do distrito de Moçambique”.
1886 – No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa foi publicado neste ano, um
trabalho do governador Perry da Câmara sobre o distrito de Cabo Delgado.
1888 – Havia no Ibo uma escola para o sexo masculino e outra para o sexo feminino.
Ocupavam um professor e uma professora. Ora “nos últimos 12 anos, pelo menos, nem um só
aluno se tem habilitado para exame de instrução primária, devido talvez, à pouca frequência, à
deficiente competência dos professores, ao mau método de ensino, e à falta de livros e
utensílios…”.
1890 – Por este ano havia no Ibo um vice-cônsul francês, natural da ilha, e um agente
francês chamado A. Cornu. Ambos procuravam contratar “trabalhadores livres” para as
possessões francesas (os quais) não passavam de escravos. Ainda havia franceses no distrito.
1891 – Em 23 março escreveu o governador do distrito ao governador-geral: “… a
escola do sexo masculino desta vila não tem desde 1878, ano em que começou a ser regida
pelo atual professor – F – produzido nenhum estudante dentro nas mais elementares
disciplinas do ensino primário por falta de aptidão do professor… desgraçado estado de
instrução… incompetência do professor… nesta (escola) nem ao menos se fala português…”.
Por decreto de 26 setembro foi concedida à companhia portuguesa constituída pela firma
Daupias Cia. a administração e exploração dos territórios do Niassa.
1893 – O decreto de 9 março dá à Companhia o nome de Companhia do Niassa.

1894 – A 27 outubro a Companhia do Niassa tomou posse.


1895 – O mesmo vice-cônsul e um agente chamado Waddington pretendiam engajar
nesta vila (do Ibo) uns 40 indígenas “destinados a Nessi-Bé”.
1897 – Decreto de 4 novembro manda entregar à Companhia do Niassa a vila do Ibo.
1902 – O governador da companhia do Niassa mudou para Pemba.
1907 – Foi concluída a linha telegráfica Porto Amélia – Palma.
1914 – Ciclone em Porto Amélia.
1922 – Os padres monfortinos chamados pelo presidente da Companhia do Niassa, Dr.
Santeno, chegam ao Concelho de Montepuez.
1929 – A 28 outubro os funcionários do Estado retomam o governo dos Territórios do
Niassa.
305
Os Portugueses e as Ilhas de Quirimba,
por
José Ribeiro Torres

O arquipélago de Cabo Delgado ou de Quirimba, que jaz na latitude 12º S., compõe-se
de 28 ilhas, das quais a maior, Amiza, tem de comprimento 8 milhas e de largura 1 e ½; as
outras são: Quipace, Quiziba ou Quiziúa, Fumbe, Calaluía ou Quilalia, Samucar, Quirimba,
Ibo, Matomo, Rolas ou Crianvé, Melandule, Inhate, Macalué ou Maate, Ilha dos Mastros,
Xanga, Zanga, Minhuge, Timbuza, Namege, Zune, Lumbamba, Mistense, Numbe, Quia,
Cuiamimo, Lenga, Cunge e Ticoma.
Destas só têm sido habitadas efetivamente: Quirimba, Ibo, Matomo e Fumbe ou
Mefunve. Todas ficam próximas umas das outras, formando com a terra firme um canal cuja
largura varia de uma a dez milhas, abrigado de todos os ventos do mar e por onde navegam
com toda a segurança pequenas embarcações, o que outrora oferecia ótimas condições para o
comércio de escravatura.
Nas ilhas despovoadas aparecem, em Quiziba ou Quiziúa, ruínas de uma casa com
cisterna; na de Macalué, os alicerces de um edifício; na de Amiza, parte das paredes de uma
ermida que se diz ter pertencido aos jesuítas que ali tinham hospício; e na de Namege, um
poço de água salobra. É voz corrente que são desabitadas devido a má qualidade da água.
Contudo os solos são férteis.

***

Data de 1560 a primeira missão de jesuítas que aqui se veio a estabelecer e a pregar o
cristianismo entre os indígenas. Vinham de Goa, dirigidos por Francisco de Monclaros. Este
aportou a Moçambique e daí começou a sua missão.
Como a dominação árabe remonta a tempos antigos, vinha de épocas remotas, a
população local é já uma miscelânea de bantus e árabes que assim criam um tipo próprio,
menos escuro e mais aperfeiçoado. As feições são corretas. Desaparecem as duas
características de lábios grossos e de nariz achatado. As línguas amalgamam-se, cria-se o
quimuane, miscelânea de árabe e macua que ainda hoje se fala. A religião maometana, de
fácil adaptação a povos primitivos, espalha-se profusamente por todo o litoral e pelo interior.
É assim que os súbditos do Mataca a centenas de quilómetros do litoral, se maometanizam
também, logo que Mataca, tornado poderoso, manda ao litoral vender escravos e marfim.
Estabelecido o “Comando das Ilhas e Terra firme” na Quirimba, com as respetivas
forças de ocupação, começou o contacto desta raça já cruzada com os europeus. Os
missionários encontraram já bastantes indígenas de fácil catequização quando eram serviçais
dos europeus e daqueles mestiços que provinham do cruzamento destas duas raças,
cruzamento que daria lugar a uma população avultada, ocorrendo aqui um fenómeno idêntico
ao da Índia. Aparecem, depois, os brancos do Ibo, designação que os indígenas dão a esta
gente, com costumes europeus, alguns de pele branca e todos católicos sinceros.
Em Quirimba edifica-se uma igreja (de Nossa Senhora do Rosário) e um convento,
cujas ruínas ainda existem e durante séculos foi abrigo e casa-mãe dos missionários que
operaram nestas paragens.
A primeira lei de abolição da escravatura foi publicada em 1570, justamente no período
em que Francisco Barreto era capitão-general de Moçambique. O ódio que já por natureza e
306
por intuição os portugueses votavam aos esclavagistas encontra nesta lei plena justificação
para exercer com afã e zelo uma rigorosa repressão da escravatura.
A fixação da autoridade portuguesa nas ilhas teve efeitos benéficos. Esta miscelânea de
raças que constitui a população de Quirimba deu lugar a uma mestiçagem complicada, com
características que se hão-de perpetuar pelo século fora e se encontram hoje nos naturais do
Ibo, a que pomposamente, como se disse, os indígenas chamam os “brancos do Ibo”. Do árabe
veio-lhe a cobiça, a volutuosidade e o espírito de intriga; do europeu a religião, a cor da pele e
a devassidão; do indígena a indolência, a desconfiança e o acanhamento. Como era de esperar,
resultou desta misceginação um ente fraco e com pouca preparação para a luta da vida. Por
isso a autoridade é bem aceite, porque saturados de lutas contra (invasores) árabes, turcos,
franceses e até holandeses, sentem agora quem os proteja, organize e defenda.

***

É necessário explicar que durante séculos os colonos portugueses que por estas paragens
se fixaram, eram na sua grande maioria – salvo honrosas exceções – simples degredados sem
educação nem moralidade e portanto a sua influência sobre os indígenas não podia ser
benéfica. Contra esta situação tinham também que lutar os missionários, sendo digna de
registo a obra que realizaram. Muitos brancos se regeneraram e se fixaram à terra, produzindo
excelentes colonos.
Os governadores, efémeros, hesitantes e sem objetivos concretos, não podiam realizar
obras de vulto. Se porventura tentassem implantar planos de defesa, de ocupação, de
colonização, era quase certo que os não conseguiriam concluir. De 1505 a 1765 houve
noventa e sete governadores. Só nessa altura Baltasar Pereira do Lago exerceu o governo
durante catorze anos, até 1779. Foi durante o seu governo que a Colónia beneficiou de uma
época de engrandecimento que aqui nos veio a fixar definitivamente.
Esta desordem na governança da África não era mais que o reflexo do que se passava no
Reino. As colónias foram sempre espelho fiel a reproduzir a imagem da Metrópole. Ainda
hoje o são.
As riquezas da Índia e os faustos do Brasil ofuscaram por completo o valor das
possessões sitas na África. João III, logo no começo do seu reinado, depois de ter assistido ao
desfraldar de todas as riquezas vindas do Oriente, à embriaguez produzida pelos fumos da
Índia, vendo a população do Reino reduzida a um milhão de almas e o tesouro incapaz de
pagar as despesas públicas, vê-se obrigado, por falta de gente, a abandonar Arzila e as outras
praças da África do Norte. Não havia que criticar a qualidade dos colonos que se expatriavam
para os restantes domínios africanos.
Depois, segue-se a catástrofe de Alcácer-Quibir. Durante a dominação espanhola as
colónias portuguesas foram pasto da pirataria de holandeses, franceses e ingleses. Durante a
prolongada luta pela Restauração, foi naturalmente o Brasil que atraiu a atenção dos
governantes. Em 1645 decretou-se o recrutamento de escravatura em Moçambique, dada a
impossibilidade de Angola continuar a fornecer o Brasil, por se encontrar sob ocupação
holandesa.
De paladinos de uma causa nobre – a abolição da escravatura decretada em 1570 –
passámos a ser cúmplices do seu restabelecimento em 1645. A ignomínia do árabe, que tanto
tínhamos criticado, foi adotada, como divisa da nossa abjeção. Se a falta de carácter dos
colonos era notória devido às suas origens delinquentes, com a escravatura foi-se degradando
cada vez mais. Ficava assim banida qualquer esperança de regeneração. Nem regeneração
pelo trabalho agrícola, nem pela doutrina missionária. À abjeção moral que os tinha
307
expatriado para aqui (Moçambique) vinha juntar-se a abjeção material da única profissão
lucrativa. As ilhas de Quirimba voltam a apresentar o mesmo cenário hediondo do comércio
da carne humana. Somente os protagonistas são variáveis. Ao árabe velhaco, de bico adunco e
com olhar de ave de rapina, substitui-se o português mal-encarado que o crime estigmatizara
em terras da Pátria. Cria-se o tipo de negreiro que Rider Haggard tão injusta e
exageradamente apresenta em todos os seus livros. Assim se veio a criar, entre os britânicos, a
reputação injustificada de sermos incorrigíveis esclavagistas. Em todo o caso, é necessário
relembrar que esses críticos, como reza o ditado, “viam o argueiro no olho do parceiro e não
viam a tranca no seu”. Em boa verdade, no ano de 1878, em águas de Moçambique, a corveta
inglesa Daphne, foi apanhada em tão fraudulento delito de embarcar escravos que as nossas
autoridades não encontraram resistência quando deram ordens para o seu desembarque
imediato. Esta descarada violação foi tanto mais extraordinária quanto é certo que foi
assinado em 1869, entre Portugal e a Grã-Bretanha, o último tratado para abolição da
escravatura.
De 1645 a 1671 vive-se exclusivamente do tráfico de escravos, apesar dos esforços de
alguns governadores para desenvolverem a agricultura. O domínio dos territórios conhecidos
pelas ilhas de Quirimba, limita-se às ilhas e ao litoral fronteiriço, onde os muzungos do Ibo se
estabelecem em pequenas propriedades em que enclausuram os escravos até ao seu embarque
para o Brasil. Nos seus ócios plantam alguns coqueiros e cajueiros, que é afinal o que ainda
agora por lá existe.
António de Melo e Castro, governador da colónia durante sete anos, de 1756/63, tenta
desenvolver a agricultura nas ilhas e muda a capital para o Ibo. Lá constrói as fortalezas de S.
João e de Santo António que as hão-de defender depois dos ataques de árabes, franceses,
ingleses e holandeses. Lá estão ainda a atestar o nosso poder de colonizadores, sentinelas
vigilantes da rapacidade de estrangeiros ousados.
Em 1671 abrem-se aos colonos portugueses novas perspetivas com a abolição do
comércio que até aí constituía regalia exclusiva dos governadores. Cria-se a alfândega de
Moçambique, mas para se ver a pouca importância que essa nova medida trouxe à vida do
colono, basta dizer-se que a alfândega do Ibo só foi criada em 1786, isto é, mais de um século
depois. Quer dizer que o principal comércio nas ilhas continuou a ser o da escravatura. O
outro era quase inexistente.
Em todo o caso, alguns barcos mercantes portugueses passam a frequentar a costa.
Porém não se modifica a índole nem a maneira de viver dos nacionais. O comércio é quase
exclusivamente exercido, como ainda hoje, pelos baneanes, a quem em 1686 o Conde de
Alvor, então vice-rei da Índia, tinha permitido o comércio em Moçambique. Formou-se a
Companhia dos Baneanes a que foi concedido o exclusivo do tráfego entre Dio e
Moçambique. Mais tarde criou-se a Companhia da Índia. São estas companhias que, desde
essa data, dão um cunho particular ao comércio moçambicano e vêm a ter grande influência
na sua economia. A feição especial que esta concessão imprime tem importância capital nesta
era de crise que atravessamos. A maneira de comerciar aqui é diferente da das outras colónias.
Não se podem fazer leis gerais para a economia, sem se levarem em conta as modalidades de
cada uma. As ilhas de Quirimba não fugiram, nem podem fugir ainda hoje, a estas
características imperiosas, que lhes imprimiu a maior das forças morais – a tradição.
Conforme a sua posição geográfica, as colónias viam-se constantemente ameaçadas e
transformadas em palco de lutas e cobiças que as desorganizaram e empobreceram. As lutas
que durante séculos se travaram para a posse de Mombaça e dos territórios setentrionais,
tornaram-nas em eternas vítimas. Árabes, franceses, ingleses e holandeses atacam-nas,
saqueiam-nas e matam a população. Os próprios indígenas do continente fazem, de vez em
quando, as suas ofensivas. Os mais persistentes nestas lutas são os árabes e os franceses que
308
chegam a monopolizar por completo o comércio no arquipélago. Séculos depois voltam os
franceses, pacificamente é claro, para estabelecerem uma importante casa e negociarem no
continente. Veleiros fazem os transportes marítimos. A certa altura iniciam os franceses uma
exploração de mica em terras de Bilibiza. Saiem do Ibo barcos carregados de mica. Quando
regressam de França trazem em troca telha de Marselha. É por essa razão que as casas do Ibo
– de arquitetura antiga e a maior parte em ruína – são na sua quase totalidade cobertas com
esse tipo de telha.
Em 1900, quando estes territórios foram entregues à majestática Companhia do Niassa,
a capital, também sede do governo, foi transferida para Pemba, que recebeu depois o nome de
Porto Amélia, em homenagem à Rainha D. Amélia de Orleans e Bragança.

Bibliografia

1) GÉRARD, P.e (1941). «Mahimo» Macuas. Documentário Moçambique (26): 5-22.


2) GÉRARD, P.e (1941). Costumes dos Macuas do Medo – Região de Namuno, Circunscrição de
Montepuez. Documentário Moçambique (28): 5-20.
3) ALPERS, Edward A. & Centro Estudos Africanos Univ. E. Mondlane. (1977). Madagascar and
Mozambique in the nineteenth century: the era of the Sakalava raids (1800-1820). Maputo.
4) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand.
5) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859 – 1895. Oxford
University Press, pp. 38/9.
309


NOTA SOLTA
Zuanguendaba e os Angonis Guanguaras

Vários historiadores consideraram Zuanguendaba como um dos mais notáveis dirigentes


que surgiram na história africana. Vencendo combates após combates, sempre mantendo a
coesão do grupo que formou com elementos de tão díspares proveniências, conseguiu
percorrer milhares de quilómetros através de regiões desconhecidas e lançar os alicerces duma
habilíssima organização política e social.
Para melhor compreensão das futuras fragmentações, convém narrar desde já dois
incidentes ocorridos durante os doze anos em que os seus guerreiros devastaram o território
onde, no período colonial, se veio a formar a Rodésia do Sul. Esses dois incidentes, de
insignificante aparência, explicam não só as disputas e ruturas em que, mais tarde, se vieram a
envolver os seus descendentes mas também as dificuldades levantadas, genericamente, pelo
inconsistente direito de sucessão dos grupos de origem angune. O certo é que vibraram golpes
fatais na unidade política mantida pelo hábil Zuanguendaba durante um quarto de século.
Antes de os resumirmos convém apontar que, segundo o costume, a primeira mulher dos
membros da nobreza não era levada em consideração para efeitos de sucessão. Tal estatuto e
tal direito cabiam à segunda esposa e ao seu primogénito para quem era construída uma
povoação especial, a nyumba ya lusungulo. Outra estrutura conjugal das monarquias angunes
relacionava-se com o agrupamento das rainhas em células bicompostas que dariam origem a
“casas” independentes.
C. J. W. Fleming, em estudo recente, resume assim os complexos incidentes referidos.
Convém que neles meditem os humanitários críticos que acusam as potências colonizadoras
de não respeitarem o direito consuetudinário dos seus súbditos africanos!
O inkosi pretendeu, em determinada ocasião, casar com uma jovem suazi denominada
Munene. Registou-se, no entanto, um inexplicável engano: quem veio a participar na
cerimónia nupcial não foi a pretendida mas sua irmã Quto. Zuanguendaba, assim que deu
conta do lapso, fez todos os possíveis para o corrigir. Com efeito, o enamorado polígamo logo
de seguida contraiu também matrimónio com a sua querida Munene.
Como teve filhos de ambas as irmãs, levantou-se em tempo oportuno a questão de saber
a qual delas caberia legitimamente o estatuto de senioridade. Ora Zuanguendaba parece que
nunca considerou Quto como esposa subordinada a Munene e com ela integrada na mesma
“casa”. Pelo contrário cada uma das irmãs constituiu e deu origem a uma “casa”
independente, passando a de Quto, com o decorrer do tempo, a beneficiar de estatuto
maioritário.
O segundo incidente ocorreu durante uma receção oferecida a visitantes pelo monarca.
Foi encontrado um cabelo humano flutuando num dos potes de cerveja cafreal enviados pela
capital real de Emveieieni, onde residia a estéril rainha principal, Lompeto, juntamente com a
sua co-esposa Soseia, então grávida. Suspeitando-se vítima de magia negra, o inkosi,
ensandecido pela cólera, convocou os conselheiros e ficou decidido chacinar por completo os
habitantes da referida capital real, incluindo as duas rainhas. Incumbiram o induna Guaza
Jere, da povoação real de Elangeni, fundada pela avó de Zuanguendaba, de cumprir a
crudelíssima decisão real. Aconteceu, contudo, que esse aristocrata não sentia suficientes
propensões para desempenhar o papel de carrasco e, talvez levado por impulsos humanitários,
não cumpriu a ordem de executar as duas rainhas e respetivos séquitos. Mais ainda. Decidiu
310
esconde-las na sua própria povoação. Anos decorridos, entendeu que devia confessar a
desobediência cometida. Zuanguendaba, após reflexão sobre o assunto, decidiu perdoar a
todos. Consta da tradição que abraçou as duas rainhas e que reconheceu como sendo do seu
sangue o filho entretanto gerado por Soseia. Todavia nunca as reintegrou na capital principal
nem as restabeleceu nas suas anteriores posições dignitárias. Assim se originou a questão –
arrastada, insolúvel e fonte de infindas e destrutivas dissenções e fragmentações – de apurar
qual dos descendentes teria o direito legítimo de ascender ao cargo de monarca: o de Soseia, o
de Munene ou de Quto?
Continuando. Nas suas linhas gerais, são conhecidos os acontecimentos históricos em
que Zuanguendaba e os seus súbditos estiveram envolvidos durante o agitado período em que
assolaram a vasta região compreendida entre os rios Buzi e Zambeze, juntamente com os
chamados Angonis Massecos com quem parece terem entrado em conflito. Também não
foram poupados pelos chicundas dos senhores dos Prazos. Sabe-se que em 1833 se
encontravam instalados na região de Sátua, ao sul do rio Mazoe. Como mais adiante será feita
larga referência aos Angonis Guanguaras, não pode ser repudiada a hipótese que alguém já
formulou, de Zuanguendaba ter admitido nas suas fileiras, jovens recrutas provenientes de um
regulado situado entre o Punguè e o Buzi, largamente citado no magnífico relatório do
capitão-engenheiro J. Renato Baptista, com o nome invulgar de Umguaranguara (1).
Albino José Pacheco, durante a sua travessia das terras do Dande e da Chidima, ao sul
do Zambeze, ainda em 1861 encontrou viva a tradição de terem sido totalmente confiscadas
pelos invasores “landins” as milhares cabeças de gado bovino que ali existiam (2).
Seja como for, Zuanguendaba e todos os seus súbditos atravessaram o Zambeze na
Cachomba, em 29 novembro 1835, data que foi desvendada pelo estudo dos calendários
astronómicos que confirmaram a ocorrência de um eclipse solar bem exaltado nas tradições
orais (3). Aquele local também se infere da anotação “Old Zulu Camp” inscrita no mapa que
já referimos sobre as viagens sertanejas de Wiese (4). Foi igualmente referido por Andrada
que mencionou Chicaga como o nome oficial do Prazo da Coroa, banhado pela margem
esquerda, onde os imigrantes inicialmente se concentraram.
Permaneceram durante cinco anos no planalto povoado pelos N’sengas, na atual
Marávia, onde foram incorporados muitos e seletos prisioneiros. Prosseguiram depois em
direção nordeste, entre o rio Luangua e o lago Niassa. Na região pantanosa de Mauiri
efetuaram uma nova pausa de quatro anos.
Na incessante procura de novas áreas de pastagem, um dos regimentos, conduzido pelo
induna Piceia, atingiu o país Ufipa perto da costa sudoeste do lago Tanganica. Trouxe consigo
tão belos exemplares de gado bovino que Zuanguendaba ordenou nova migração da sua gente.
Ali estabeleceu a sua definitiva capital que designou por Mapupo, onde veio a falecer entre
1845 e 1848. Cedo os pretendentes ao trono, mergulharam em dissidências. Mandava o
costume que se elegesse um regente que, durante um ano substituísse o monarca. Para tal
cargo provisório foi escolhido Ntabeni, irmão júnior de Zuanguendaba que apoiava a causa de
Mpezene e detestava Munene, chegando ao ponto de a expulsar com o filho Mebélua. Mais
tarde, por razões desconhecidas, todas as viúvas de Zuanguendaba abandonaram o regente
supracitado e solicitaram a tutela de Megai, primo do falecido monarca.
Nesta conjuntura, Megai tomou a decisão de abandonar Mapupo e de conduzir o corpo
principal dos Angonis à região situada entre o extremo norte do lago Niassa e o extremo sul
do lago Tanganica. Aí fundou a nova capital de Chidhlochlo, onde veio a falecer. Muombera
tomou posse do supremo cargo da monarquia. Voltou a percorrer a região já atravessada por
Zuanguendaba e estabeleceu-se de novo no país Tumbuca-Cananga. Aí ocorreram duas
situações de desagregação. Por uma foi responsável o induna Chiuere Ndhlovo, de origem
n’senga. A segunda, mais importante, foi inspirada por Zulo-Gama, de ascendência angoni,
311
que partiu para leste, contornado o extremo norte do lago Niassa. Foi assim que surgiram os
célebres Angonis Guanguaras que começaram por assolar a região sudoeste da atual Tanzânia.
Já sob o comando de Mebonani após 1858 decidiram transferir-se para a região de Songea,
talvez por saberem que nela já se encontrava instalado um povo conhecido e conterrâneo,
também dirigido por uma aristocracia zulo, mas com origens e trajetórias independentes, povo
que os historiadores convencionaram designar por Angonis Massecos.
Estes últimos tinham igualmente atravessado o Zambeze entre 1838/9, mas mais a
juzante entre a Lupata e o Sungo. Após uma permanência quinquenal no atual planalto da
Angónia, lançaram-se em outra jornada migratória, de início meridional, talvez incitados pelo
jóvem Meputa, o monarca que tinha acabado de ser empossado. Atravessaram o rio Chire
cerca de 1846 e foram caminhando para norte sempre através do Alto Niassa. Acabaram por
se fixar na supracitada região de Songea, pouco acima das nascentes do Rovuma, região que
tem como ponto central o cruzamento do meridiano 36 Este, com o paralelo 10 Sul. A partir
dessa base lançaram repetidas incursões que chegaram a atingir o lago Vitória e até mesmo a
cidade de Quilua, já com certa antiguidade quando nela aportou Vasco da Gama em 1498.
Mebonani, para evitar equívocos, logo reconheceu, após cumprir os rituais exigidos
pelo direito consuetudinário, a sua categoria de dependente e, nessa situação, declarou que
aceitava Meputa como chefe supremo. Mas este, ao que parece, pouca ou nenhuma confiança
tinha nos seus novos aliados. Na verdade, cerca de 1862, mandou matar à traição vários
indunas guanguaras e o próprio Mebonani.
Os Guanguaras, escondendo o seu ódio e desejo de vingança, aguardaram que surgisse
uma oportunidade mais conveniente. Um dia, quando Meputa e os seus homens retiravam,
batidos, de um ataque que tinham lançado contra uma tribo do rio Ruhaha, vieram,
imprudentemente, buscar guarida junto dos seus supostos aliados. Os Guanguaras tiraram
proveito da situação para matar o aleivoso monarca masseco e os guerreiros que o
acompanhavam.
Sabendo-se que Meputa foi cremado junto do rio Lichingo, em Songea, é de aceitar a
versão segundo a qual os Guanguaras conseguiram convencer os restantes Angonis-Massecos
de que o seu incossi fora morto por quaisquer outros inimigos. O certo é que não tiveram
dificuldade para preparar, sub-reticiamente, um segundo ataque em larga escala. Colhendo de
surpresa os seus aliados, obrigaram-nos a bater em retirada, abandonando muito gado e parte
dos cativos de guerra. Deve ter ocorrido entre 1863 e 1865 esta emigração definitiva para a
região, a oeste do lago Niassa a que foi posteriormente aplicado o topónimo de Angónia. Este
episódio foi referido de forma resumida mas coincidente com a versão supracitada por outro
investigador atento da desintegração do reino fundado por Zuanguendaba. Trata-se de Harry
W. Langworthy (5), que escreveu:
“The Maseko crossed the Zambezi east of Tete and traveled north up the east side of
Lake Malawi to the region of the upper Ruvuma River. There, in about 1850, they met,
fought, and then temporarily lived in peace with the Ngoni of Zulu Gama. This latter group
was a section of Zuangendaba’s original following which had broken up after his death about
1845. Following several years of strained coexistence, Zulu Gama’s Ngoni attacked and
defeated the Maseko who then fled south to settle eventually around Dedza about 1870”.
A partir de então os Guanguaras, talvez por insuficiência de bovinos, lançaram-se em
progressivas incursões em todos os sentidos. Efetuaram razias e cobraram tributos numa área
vastíssima que compreendia todo o vale do Rovuma e a costa oriental do lago Niassa,
integrando elementos de todas as origens. Atingiram o próprio litoral, surgindo em 1868,
perto de Quilua, onde bloquearam o comércio após derrotarem uma força islâmica.
312
Alcançaram regiões tão meridionais como os Montes Namuli que atacaram cerca de
1865, provocando a partida para Leste de cerca de dez mil Lómuès que vieram a fundar o
conhecido Estado Namarral. É Soares de Castro que fornece desses ataques uma versão mais
pormenorizada, não tendo dúvidas em os atribuir aos Guanguaras (6). Os Namarrais vieram a
estabeleceram-se nas terras de Itoculo, virtualmente despovoadas devido ao tráfico
esclavagista. Em 1875, constituíam uma força poderosa que intercetava caravanas, exigia
tributos e negociava em escravos. Foram atacados, sem resultado, pelas forças enviadas pelo
governador, em 1887 e 1888. As campanhas de 1906 a 1908 também não conseguiram
submeter o chefe namarral Macavala. A resistência só foi dominada em 1913. Entre muitos
outros ocorridos na história de Moçambique, o caso dos Namarrais comprova a asserção de A.
B. Davidson, segundo a qual os conquistadores mais recentes foram, com frequência, os que
maior resistência ofereceram contra a implantação do domínio colonial europeu.
Foram Guanguaras, os invasores que mais influenciaram as populações do vale do
Rovuma. Enorme foi a desorganização que causaram nas populações ali fixadas. Alguns
grupos chegaram a desintegrar-se e outros foram mesmo exterminados. Os Matambuès, que,
segundo Livingstone, constituíam, em 1866, uma comunidade numerosa, estendendo as suas
aldeias por vasta área, estavam praticamente dizimados em 1882, quando Maples passou, com
a sua gente, através desta região.
Augusto Cardoso também mencionou os ataques dos Guanguaras:
“O régulo Metarica recebeu-me muito bem, presenteando-me com cabritos e
mantimentos que foram de grande valor para mim, por ser então muito raro e caro o milho.
Isto era devido à grande razia que três meses antes tinham ali feito os maconguaras, tribo de
salteadores que todos aqueles povos respeitam pela sua valentia e barbaridade. Os
Maconguaras habitam a Este e perto da extremidade do norte do lago Niassa, e dali se lançam,
em longas correrias, espalhando a fome, o fogo e a miséria por toda a parte” (7).
Foram por vezes alugados por potentados gentílicos para suprimirem rivais. É
conhecido o caso de um destacamento de Guanguaras que, a soldo dos Ajauas, ameaçou em
1876 e atacou em 1878 os «mouros da Quissanga», estabelecidos no continente fronteiro à
ilha do Ibo.
Num relato escrito a 16 agosto 1889, o Bispo Smythies, dirigente do estabelecimento
missionário na ilha de Licoma, também acentuou que as populações da margem oriental do
lago viviam aterrorizados pelos Guanguaras e que procuravam munir-se de armas de fogo e
ter pólvora em quantidade suficiente (8).
Outro testemunho é fornecido pelo cônsul britânico Hawes quando em outubro 1887
tentou visitar o monarca guanguara. Os seus carregadores temiam de tal maneira esses
sanguinários salteadores que desertaram em massa, forçando o cônsul a desistir da sua
intenção (9). Ficou provado que este ramo angoni esteve envolvido na revolta chamada maji
maji, ocorrida no Tanganica entre 1905 e 1906. É admissível a hipótese de que haja sido
baseada na merecida fama de ferocidade ganha pelos Guanguaras, a também implacável
solução de “terra queimada” adotada pelos colonizadores alemães, represália que, segundo
algumas estimativas, provocou cerca de meio milhão de mortos, na sua maioria devido à fome
que se generalizou (10)
313
Bibliografia

1) BAPTISTA, J. Renato (1892). Caminho de Ferro da Beira a Manica. Lisboa, Imprensa Nacional.
2) PACHECO, Albino Manoel (1883). Uma Viagem de Tete ao Zumbo. Moçambique, Imprensa Nacional.
3) POOLE, E. H. Lane (1930). The date of the crossing of the Zambezi by the Ngoni. J. roy. Afr. Soc. 29
(115): 290-292.
4) RUGG, Rowland (1892). Ruggs’ New Map of the Western Nyassaland Gold Fields Specially. London.
5) LANGWORTHY, Harry W. (1983). Expedition in East-Central Africa, 1888-1891, a report by Carl
Wiese. Norman, University of Oklahoma Press, introd. & coment, ed.
6) CASTRO, Soares de (1941). Os Achirimas. Lourenço Marques, Imprensa Nacional.
7) LOBATO, Alexandre (1966). Augusto Cardoso e o Lago Niassa. Lisboa, Centro de Estudos Históricos
Ultramarinos, pg. 60.
8) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press, pg. 131.
9) HANNA, A. J., Idem, pg. 75.
10) CALDWELL, John Charles (1987). Les répercussions sociales de la domination coloniale: aspects
démographiques. In: “Histoire General de l’Afrique – VII – L’Afrique Sous Domination Coloniale, 1880-
1935”. Paris, Nouvelle Editions Africain, pg. 511.
315


NOTA SOLTA
Oficiais britânicos, em turismo cinegético, ao longo do vale do Chire,
no ano de 1868

Esta nota solta é baseada num artigo de Dick Hobson, publicado em “The Geographical
Journal (Londres) 149-2, julho 1983, pp. 202-210”, com o seguinte título: A hunting trip to
Mozambique in 1868. O autor termina com os seguintes agradecimentos: “The writer is most
grateful to Colonel Dudley Norman, DSO, for providing Luke Norman’s diaries, and to Mr
Donald Simpson, Librarian of the Royal Commonwealth Society and Mr Landeg White,
Research Fellow at the Centre for Southern African Studies, University of York, for the
enthusiastic and valuable assistance they gave in the provision of background to the diary
material”.
A participação do Dr. Landeg White é suficiente para garantir o rigor científico deste
relato. Viveu parte da sua vida no Malawi, contraiu matrimónio com uma moçambicana,
lecionou e investigou para o Centro de Estudos da África Austral, na Universidade de York.
Tiveram grande repercussão as obras que publicou sobre o Malawi e Moçambique. Após a
independência deste país decidiu fixar residência em Portugal e aqui se dedicou “de alma e
coração” a verter os “Lusíadas” para inglês. Passou a ensinar Literatura Mundial em
universidades portuguesas.

***

Foi o então capitão Henry Faulkner, com 31 anos de idade, que assumiu o comando
desta excursão venatória aos rios Zambeze e Chire. Era o único com experiência sobre essas
terras baixas e insalubres. No ano anterior tinha secundado a expedição de E. D. Young,
enviada pela Royal Geographical Society, para apurar o paradeiro de David Livingstone. O
autor do diário, capitão Luke Norman of Donegal, era acompanhado pelo seu amigo pessoal,
o capitão Thomas Casement. É de supor que ambos se tenham alistado, por algum tempo, no
Exército da Índia. Contrataram dois maquinistas: Perrin e Donovan. No Cabo juntou-se ao
grupo outro oficial com o nome de Alfred Belleville. Nessa mesma cidade visitaram o Rev. J.
F. Lightfoot que superintendia a educação de quarenta e dois jovens nativos, quatro anos antes
especialmente selecionados no Chire, pelo Rev. Horace Waller. Foi autorizado a escolher dois
de entre eles para servirem como intérpretes: Chinsoro e Uriah.
Por £ 400 conseguiram alugar uma escuna de 70 ton., cujo casco ostentava o nome de
“Florence”. Surgiu um passageiro a quem cobraram £ 150. Partiram, no início de agosto,
transportando o necessário equipamento, incluindo um escaler, numerosas e diversificadas
armas de caça e, ainda, as secções desmontáveis de uma pequena embarcação fluvial, movida
a vapor, com quinze metros de comprimento.
Demorou vinte dias a viagem até ao delta do Zambeze. Desembarcaram a carga e
organizaram o acampamento. Como a caça abundava não tiveram problemas com a
alimentação. A montagem da barca foi concluída a 17 setembro. A “Florence” largou para o
mar alto a 27. Entretanto ocorreram dois acidentes antes do final de outubro: quando
Casement desequilibrou o escaler, várias embalagens com tecidos foram arrastadas pela
corrente; Perrin também caiu no rio perdendo bastantes ferramentas. Admitiram remadores e
316
outros auxiliares. Iniciaram a subida, ancorando à tarde para poderem acampar, caçar,
cozinhar, comer e dormir.
Por um mestiço português em viagem, souberam que a mais próxima autoridade oficial
era o coronel Maria de Azevedo (1). Depois de contactado enviou quatro canoas para facilitar
os transportes. A 10 novembro ancoraram em Mazaro na frente de uma bela residência
ocupada por um gentil homem, fluente em inglês por ter sido educado nos Estados Unidos.
Homenageou os “turistas” europeus com um jantar.
Três dias depois ancoraram na Chupanga onde depararam com as ruínas da casa de
alvenaria onde residira Livingstone e onde, em 1862, tinha falecido sua esposa, debilitada por
infelizes excessos alcoólicos. Perto destacavam-se duas outras sepulturas com oficiais da
esquadra do comandante Owen que patrulhou o canal de Moçambique durante vários anos, a
partir de 1822 (2). Também observaram a existência de numerosos esqueletos, com caveiras
esmagadas dispersas a esmo. Os habitantes da etnia Sena informaram que se tratava de restos
de um destacamento de guerreiros do Império de Gaza que tinham sido trucidados à
machadada, depois de se deixarem embriagar com cerveja cafreal sob o pretexto de
celebração coletiva por mór do pagamento dos tributos (3). Essa coleta era bianual e
concentrada no marfim. De passagem – pelo autor do diário ou do artigo? – o leitor é
elucidado que esses guerreiros, do mesmo modo do que os Portugueses, tinham sido
impedidos pelos Nhanjas de se aproximarem do vale do Chire, para que este pudesse
continuar como valiosa fonte de marfim e de escravos.
Protegidos por uma carta de boas-vindas enviada pelo governador de Quelimane,
continuaram a subir o rio até à povoação de Chunga onde Faulkner exigiu, em termos
enérgicos, que fossem removidas as gargantilhas que prendiam um grupo de escravos
consignados a qualquer comprador. Em 28 novembro atingiram o rio Chire ancorando em
Chamo (4) aringa ocupada por um dos filhos do governador de Sena. Sobre este assunto
escreveu Norman: “Agora acabámos com os Portugueses porque os nativos não os querem do
Chire para cima”. Comenta o autor do artigo: sem dúvida que nestes “nativos” estavam
incluídos os carregadores ditos Macololos, trazidos por Livingstone da Barotselândia para
enfrentarem as depredações de Gaza e dos Ajauas (Yao) e para desencorajarem os
Portugueses de estenderem os seus domínios até à região do Chire (5).
Nos inícios de dezembro 1868 as fainas mais ou menos despreocupadas do grupo foram
sacudidas por uma informação nefasta provinda do acampamento montado nos contrafortes da
Serra da Morrumbala, na qual tinham em vão procurado rinocerontes: uma criança trazida por
qualquer dos indígenas admitidos ao serviço tinha falecido com varíola. Escreveu Norman:
“Pela primeira vez constatei que (a varíola) grassava entre nós, mas creio que Faulkner e
Casement já sabiam…”. Três dias depois faleceu outra criança. A 14 dezembro Norman
anotou: “Faulkner começou a queixar-se, já cheio de borbulhas. Bastaram três dias para se
concluir que tinha sido contagiado. Para não transmitir a doença aos restantes companheiros,
foi transportado para o vapor e daí para uma das palhotas da povoação. A face e a cabeça
estavam de tal modo tumefactas que mal podia abrir os olhos. Todo o corpo estava coberto de
pústulas. Apesar desses cuidados, Casement também foi infetado. Norman sofreu os primeiros
indícios de malária. No dia de Natal a crise de Faulkner retrocedeu e o seu estado geral
melhorou. O mesmo não aconteceu com Casement que entrou em delírio, reação que precedeu
o desfecho fatal. Arnold, Belleville e Norman foram afetados por temperaturas febris.
Casement faleceu na noite de 28 dezembro. Durante o funeral foram prestadas as honras
do costume. Como o restabelecimento de Faulkner prosseguisse de modo satisfatório,
Norman decidiu regressar às caçadas. Em contraste com ele, tanto Arnold como Belleville não
puderam esconder o seu desespero e a sua vontade de abandonar a fatídica excursão. Sabiam
que a época chuvosa que se aproximava iria piorar a situação geral. Arnold foi de tal modo
317
insistente que Faulkner permitiu a sua partida para Quelimane e aproveitou-o para enviar
correspondência, incluindo a carta dirigida ao pai do falecido. Decorrido algum tempo,
Belleville escapuliu-se durante a noite. Foi trazido à força por um pelotão de caçadores
indígenas que Faulkner mandara em sua perseguição.
Durante as copiosas chuvas de janeiro, registou-se o aumento das febres e das
disenterias. Faulkner ficou de tal modo doente que, na mente de Norman, surgiu a suspeita de
que estava a ser envenenado por Chinsoro, o ex-intérprete, que tinha sido aproveitado como
serviçal doméstico. Norman pediu a Belleville que examinasse no microscópio certas
sementes que tinha encontrado no prato juntamente com o frango cozinhado. Nada lhe
pareceu de suspeito. Felizmente que Faulkner ouviu a tempo uma rumorosa concentração de
moradores em fúria que pretendiam atacá-lo. Conseguiu que fossem repelidos a tiro pelos
homens ao seu serviço que armou convenientemente. De manhã levaram Faulkner para o
barco e resolveram procurar outro poiso porque aquele já não oferecia segurança.
Constituíram um “conselho de guerra” para julgar Chinsoro. Foi considerado culpado e logo
fuzilado. Uma semana depois Donovan, um dos engenheiros, foi atacado pelo pior tipo de
malária que afeta o cérebro, falecendo logo no segundo dia. Foi sepultado na ilhota de Malo,
perto da confluência do Chire com o Ruo, lado a lado com o túmulo de Charles Mackenzie,
primeiro bispo da Missão das Universidades para a África Central, ali falecido em 1862,
alguns meses após a sua chegada.
O grupo navegou para montante, sob chuvas torrenciais. Para a embarcação vencer a
forte corrente foi necessário reforçar o vapor da caldeira e, por esse motivo, consumiram toda
a lenha de que dispunham. Era impossível encostar às margens encharcadas do rio e, em
qualquer caso, a mais próxima madeira aprestada encontrava-se a 50 km de distância. Não
tiveram outra alternativa senão desfazer em pedaços a grande canoa monóxila com doze
metros. Quando Perrin adoeceu, Morgan teve que o substituir, passando três dias difíceis no
pequeno abrigo do motor.
Conseguiram enfim algum sossego quando foram visitados por Chipitula, um dos
Macololos de Livingstone. Da mesma maneira que os outros vinte e cinco (6) prosperou neste
exílio e classificou-se a si próprio como poderoso chefe e guerreiro. Acompanhou a expedição
de Young e veio agora com o propósito exclusivo de visitar Faulkner que o descreveu como
“trabalhador mas grande malandro”. Contudo foi curta a sua estadia. Depois de alguns dias
queixou-se de que não era bem alimentado e que o grupo se movimentava com vagares que
pessoalmente considerava excessivos. Na verdade Norman descreveu os seus próprios
homens como “esqueletos ambulantes… Esgotaram-se os alimentos e nós próprios dispomos
apenas de chá, café, biscoitos, tabaco e algumas latas de sopa…”.
Passada uma semana, Chiputula regressou com duas das suas esposas que queriam ver
os homens brancos e, também como alguns alimentos. Pouco tempo depois apareceu Moloca,
um Macololo que tinha sido “fiel e valente companheiro de caça” na expedição de Young e
que agora proclamava ser o “chefe supremo de todas estas regiões” (7). Norman recebeu-o
calorosamente. Foi o único que o ajudou na tarefa difícil de rebocar o pequeno vapor rio a
cima. Também foi o único a quem Norman não poupava o grogue e os biscoitos que Faulkner
gostava de distribuir aos seus hóspedes. Futuramente, Moloca transformou-se no suporte
principal do grupo, confirmando assim a opinião que formara Young: “seu excelente e
talentoso caçador”.
Por fim, a 25 março, a caminhada vagarosa levou-os à povoação de Masaire onde, numa
feira bem abastecida, puderam comprar o que necessitavam. Foi também a ocasião que
Faulkner aproveitou para dar o seu primeiro passeio após a debilitante varíola de dezembro.
Ainda se encontrava com poucas forças como se constatou na sua seguinte caçada aos
elefantes. Faulkner e Norman decidiram marchar a montante da embarcação e estabelecer
318
uma base da povoação de Moloca. Aqui tomaram providências para que fossem construídas
habitações. Também compraram um pequeno rebanho de ovinos. Mandaram um mensageiro a
Belleville pedindo que trouxesse o vapor. Chegaram notícias da terceira fatalidade: Perrin –
mais afetado por disenterias do que com febres e que havia descurado os tratamentos – tinha
falecido após uma crise mais aguda. Belleville comunicou a Norman que “nessa noite a
âncora tinha ficado presa em areias profundas e que, ao tentar recuperá-la, ficara desfeito o
melhor cabo que possuíam. Estava ansioso que as nossas casas estivessem já concluídas
porque não conseguia dormir com os tambores e as danças que se prolongavam durante a
noite inteira”.
Em meados de maio Faulkner teve uma discussão final com o “egrégio Belleville”. Este
confessara ter rasgado páginas dos diários de Perrin e Donovan por conterem observações
negativas sobre a sua pessoa. Foi despedido depois de receber tecidos suficientes para
enfrentar as despesas da viagem até à costa. Faulkner e Norman passaram a ser os últimos
membros do inicial grupo de sete. Nada intimidados, e apesar das febres recorrentes, tentaram
abater e ferir variados animais apesar do capim alto. Quanto a elefantes apenas obtiveram uma
cria sem marfim.
Em junho pagaram e despediram os carregadores. Abandonaram os pertences que
tinham no vapor.
Para ajudarem os visitantes a obter marfim suficiente para cobrir, pelo menos, as
grandes despesas feitas durante mais de um ano, os Macololos decidiram organizar uma
caravana de duzentos caçadores e carregadores, munidos com armas de fogo (8). Abateram
grande número de animais. Só em julho conseguiram avistar uma manada de elefantes. Todos
os esforços falharam. Faulkner sentiu no tornozelo a ferroada infeciosa de um inseto. Auto
medicou-se golpeando o inchaço.
Seguiu-se um período de menor relevância porque os dois ingleses aguentaram
renovadas doenças, atracaram-se em rivalidades, redobraram os esforços para obter suficiente
marfim. Talvez saturado com esta situação, Moloca informou Norman que tinha decidido
atacar o seu inimigo Cabvina. Todavia este chefe e a sua gente conseguiram escapulir-se
atempadamente. Os guerreiros de Moloca incendiaram a povoação e destruíram as culturas.
Escondido no capim encontraram um homem de aspeto miserável. Decapitaram-no e
colocaram a cabeça num poste. Os quatro membros foram cortados e, servindo de
ornamentação, espetados em vasos com terra.
Mais tarde Norman desceu o vale do Chire com Moloca e conseguiu adquirir algum
marfim. Nada obtiveram de Chipatula porque só trocava o seu marfim por armas de fogo (9).
Quando regressaram à povoação de Moloca, depararam com Faulkner, bastante satisfeito com
as suas caçadas na região das cataratas. Declarou ter decidido deslocar-se até Quelimane com
o propósito de restabelecer o seu estado de saúde, não podendo saber se poderia regressar ao
Chire.
Norman resolveu continuar sozinho durante mais alguns meses alegando ser aquela a
mais favorável estação para caçar elefantes. Depois aceitou a sugestão de Moloco para, com
trinta carregadores, visitarem a terra dos Nhanjas que haviam sido dizimados pelos invasores
angonis (10). Muitos sobreviventes foram capturados pelos Ajauas (Yao) e vendidos como
escravos. Por toda a parte se encontravam restos de cadáveres.
Pela primeira vez Norman admitiu que, depois do jantar, gostava de fumar um
cachimbo de canabis (11) – hábito corrente entre os Macololos, como já tinha sido observado
por Livingstone na Barotselândia.
Nas páginas datadas de finais de novembro, Norman escreveu algo de inédito e de
inegável interesse histórico: Moloca também sofria de febres palustres e era medicado com
319
quinino porque os Macololos se tinham fixado no vale do Chire em época relativamente
recente, remontando a sua origem a uma região meridional, hoje conhecida por Lesotho, onde
a malária era inexistente (12).
Nos finais de novembro regressaram à povoação de Moloca. Havia ali uma carta de
Faulkner dando notícias sobre a sua viagem a Quelimane. Norman pagou aos carregadores e,
à despedida, ofereceu ao seu fiel e valoroso protetor uma das armas que usava para abater
elefantes.
Precisava de canoas para o regresso porque o pequeno vapor havia sido enviado ao
coronel Azevedo, ao sabor da corrente e com tripulação indígena. Mas aproximava-se da
região onde os Macololos tinham maior influência. Era difícil comprar canoas. Tinha mau
carácter o recém-empossado chefe Mlauri, que havia sucedido a Ramacucane (13). Tentou
enganar Norman numa transação de marfim. Só conseguiu recuperar o que lhe pertencia
quando desafiou o trapaceiro para um duelo à facada. Norman comentou que a sorte lhe fôra
favorável porque com certeza que Mlauri tinha planeado liquidá-lo. Caso estivesse na
companhia de Moloca não seria poupado, devido a quaisquer rivalidades endógenas. Os
homens de Mlauri amedrontaram-se porque Norman, além da carabina, exibia um revolver à
cintura. Sabiam que, se fosse obrigado a abrir fogo, alvejaria sem hesitações os mais
responsáveis.
Na ilhota de Malo, na confluência do Ruo com o Chire, viu-se cercado por centenas de
guerreiros armados e desconfiados. À cautela embarcou alegando que era esperado pelo chefe
Maintinga nesta povoação, onde Casement falecera, não deixou de visitar a sua sepultura.
Faulkner restituiu algumas canoas que facilitaram a viagem até Mazaro, residência do coronel
Azevedo. Norman chegou a 15 dezembro. À sua espera tinha uma caixa de brandy e o
pagamento do marfim que enviara seis meses antes. Foi recebido como hóspede de vulto.
Recorda-se que logo deparou com os sobreviventes exaustos e esfomeados de uma expedição
militar portuguesa, composta sobretudo por goeses, que acabara de ser destroçada pelos
rebeldes de Massangano. Muitos tinham falecido com diarreias e disenterias (14). Quando
Norman se preparava para partir com cinco canoas, foi intercetado por um dos oficiais
portugueses que requisitou “para serviço do governo” três das suas canoas. Ao constatar que
se tratava de um goês logo lhe ocorreu a maneira eficaz de o neutralizar. Saiu da canoa e
protestou em grandes brados na língua hindustânica!
Atingiu Quelimane na tarde de 23 dezembro. Encontrou-se com Faulkner já
parcialmente restabelecido. Apesar das febres recorrentes, procurou passear, descansar,
divertir-se, vender o seu marfim, celebrar os 29 anos de idade. Regressou ao porto para
embarcar a 7 fevereiro no navio “Piccadilly”, com destino a Port Elisabeth. Pouco se sabe da
sua carreira. Em 1871 foi nomeado capitão da milícia Donegal. Casou-se em 1874. Foi
promovido a major em 1883. Seu sobrinho, o coronel Dudley Norman, recorda que quando
em 1917 ainda frequentava a Academia Militar de Sandhurst, costumava visitar seu tio, em
Ascot. Era ainda um homem cheio de vigor apesar de fumar cem cigarros por dia.
Quanto a Faulkner sabe-se que jamais deixou a África. Há provas de que, cerca de um
ano após o seu regresso ao interior, foi assassinado pelos indígenas da já citada ilhota de
Malo. Em 1897, o cônsul Harry Johnston relembrou que o dito Faulkner tinha deixado um
filho gerado a uma nativa. Garantiu ter sido o primeiro mestiço nascido na Niassalândia.
Belleville regressou à África como irmão laico de uma instituição missionária. Teve
contactos com a
Royal Geographical Society. Vivia em Durban, na África do Sul, em 1877.
Moloca, esse “desportista completo” parece ter optado por comportamentos despóticos.
Cerca de 1875 foi abatido pelo seu inimigo Cabvina.
320
Notas

1) Não foi possível identificar este coronel Maria de Azevedo que desempenhava funções oficiais no Mazaro.
Quando Vasco da Gama penetrou no rio dos Bons Finais, o canal de Quáqua permitia a ligação direta com o
Zambeze.
2) Alexandre Lobato na sua “evocação para a história de L. Marques” (1961) fornece pormenores sobre as
atividades do comandante Owen e da sua esquadra no canal de Moçambique.
3) Esta incursão tributária deve ter ocorrido durante o reinado de Muzila. Sabe-se que seguiam a rota de
Cheringoma os guerreiros de Gaza que cobravam tributos na Chupanga e no delta do Zambeze.
4) Esta enorme aringa fortificada de Chamo, defendida por armas de fogo, foi construída pela família fundada
pelo goês, Mariano Vaz dos Anjos. Foi conquistada por Manuel António de Sousa, em 1885.
5) Este comentário ignora a verdade histórica. Os Macololos serviram como remadores e carregadores de
Livingstone durante a sua viagem até Tete. Ficaram aqui retidos porque a reconquista de toda a
Barotselândia efetuada por Leuanica levou à inclemente eliminação de todos os vencidos do sexo masculino.
Foi o próprio governador de Tete que sugeriu aos desamparados, mas armados, serviçais de Livingstone que
procurassem abrigo, caça e terras de cultivo no Vale do Chire.
6) Este cálculo dos sobreviventes de origem macololo fixados no Chire deve de ser aceite com reserva porque o
autor do diário não estava em condições de efetuar censos da população.
7) Esta afirmação pode ser usada para reforçar as hipóteses que põem em dúvida a ascendência de Cassice-
Ramacucane como “chefe supremo dos Macololos do Vale do Chire”. Talvez o direito consuetudinário
mandasse respeitar, em condições normais, a hierarquia observada na caravana em viagem. Sabemos que
Cassice desempenhou o cargo de sub-chefe dessa caravana.
8) Esta atitude coletiva dos Macololos era prova suficiente de que aceitavam a supremacia britânica.
9) A decisão de Chipatula de só aceitar armas de fogo em troca do seu marfim, explica o facto dos Macololos
se encontrarem tão bem armados quando ocorreram os combates que relatámos.
10) Este morticínio dos Nhanjas parece ter sido praticado pelos chamados Angonis-Massecos. Os primeiros,
para evitar que os invasores atravessassem o rio Chire, tinham construído uma linha de aringas fortificadas
nos locais onde se passava a vau. Vencida – parece que por astúcia – a resistência de uma dessas aringas, os
guerreiros angonis saquearam o vasto território onde hoje se situa Zomba, Limbe, Blantyre e Milanje. Só
retiraram a pedido insistente dos missionários escoceses.
11) Este antiquíssimo estupefaciente era oriundo da Pérsia ou da Índia onde se designava por nome semelhante.
Espalhou-se rapidamente por toda a África, com geral agrado e plena aceitação social.
12) É preciosa esta informação inédita porque, explica com coerência, o facto de ter diminuído substancialmente
o número inicial de Macololos que atingiu Tete, número que a documentação oficial portuguesa fixa em
cento e dez. Recorde-se que Moloca sobreviveu à malária porque foi medicado com quinino.
13) Parece enigmático o facto de Norman não mencionar Ramacucane. A documentação oficial portuguesa fixa
o seu falecimento em 1887/8. Hanna, de pp. 66 a 70, fornece pormenores sobre a sua existência e
intervenção, quando se tornou necessário eliminar o seu criminoso neto Chicusse.
14) Confirma o que se sabe sobre mais outra vitória do famigerado Bonga, de Massangano.
321

10ª
NOTA SOLTA
Homenagem a Manuel Simões Alberto

Preâmbulo

José Capela, quando exerceu as funções de Adido Cultural, na Embaixada de Portugal


em Maputo, teve a excelente ideia de dedicar o seu “Boletim Informativo” a vários estudiosos
que se distinguiram durante o período colonial em Moçambique. O nº8 (2ª série) relativo a
1994/5, foi dedicado a Manuel Simões Alberto.
Foi com genuíno prazer que aceitei o seu pedido de dar uma contribuição. Para melhor
apreciação dos futuros historiadores, irei transcrever, com atualizações, uma parte substancial
do meu texto.
«É orientado pelo sentido do dever que me associo, sem reservas, à justa homenagem
que aqui se vem prestar a essa figura algo bizarra, bem merecedora do respeito dos vindouros,
que foi o «tenente» Simões Alberto. Não o faço friamente mas antes dominado por real e
profunda emoção ao recordar o aspeto inconfundível desse dedicado investigador, indiferente
à apresentação pessoal, com os seus fatos amarrotados, a esfiada gravata pendendo de
colarinhos gastos e flácidos, as melenas saindo do chapéu mole e de cor duvidosa, a velha e
gorda pasta de couro onde transportava inseparáveis livros e documentos. Sabiam os seus
raros amigos e frequentadores da Sociedade de Estudos que ele sofria privações explicadas
pela magra pensão de aposentação e pelos exíguos subsídios proporcionados pelo Instituto de
Investigação Cientifica. Mas nunca na sua conversa surgiam quaisquer lamentos. Não me
recordo de lhe ter escutado alusões a problemas pessoais. Nunca soube que família tinha.
Deslocava-se penosamente nos transportes públicos. Morava nos subúrbios. Ouvi alguém
chamar-lhe “cafrealizado”
Com juvenil entusiasmo expunha sobretudo as suas ideias, as suas pesquisas, os seus
projetos. Uma insaciável curiosidade intelectual, aparentemente incólume face aos desgastes
da idade, transformava-o em grande acumulador de materiais, faceta que explica a diversidade
temática da sua produção científica. Como Simões Alberto se destacava desses outros
técnicos, cientistas e quadros superiores que davam vida à Sociedade de Estudos e exerciam
funções e atividades prestigiadas em organismos públicos e empresas privadas! Mas pelos
seus méritos próprios, sempre foi bem acolhido entre este cenáculo.
A aguda perceção histórica de Simões Alberto logo ressaltou em 1935, quando prestava
serviço militar em Tete. Contava, mas sem alardes, que um ignaro com responsabilidades
governamentais tinha vendido a peso, às lojas de comércio, como papel de embrulho, o
arquivo da antiga «Comandância da Vila e da Praça de Tete». Fora ele que, afogueadamente,
andara de porta em porta comprando à sua custa tudo quanto ainda podia salvar. É esta
operação invulgar que refere modestamente na sua monografia sobre os Angonis: «Por
documentos por nós recolhidos em Tete e hoje no Arquivo Histórico de Moçambique» (p.63).
De facto, doou este valioso espólio ao A. H. M. quando nele serviu.
Sem pretender diminuir a contribuição de Francisco Toscano, direi que foi Simões
Alberto o inspirador e principal obreiro dessa ainda indispensável «Síntese Cronológica da
História de Moçambique». Para quem a ela recorre como permanente instrumento de trabalho
(a exemplo do autor destas linhas) não podem deixar de surpreender os critérios de rigor e
meticulosidade que presidiram à elaboração desta cronologia editada em 1942, quando a
322
historiografia de Moçambique ainda tentava os primeiros passos. Dela ressalta a crónica
instabilidade do oficialato das forças armadas, oriundos das casas aristocráticas que, século
após século, se revezavam em curtas comissões desempenhadas em variados cargos públicos,
talvez para escaparem à elevada mortalidade provocada por tantas e tão perigosas doenças
tropicais de etiologia desconhecida.
Como é sabido, parte importante dos estudos realizados por Simões Alberto pertenciam
ao domínio da antropologia física, disciplina para cujo exercício ganhara especiais
qualificações. É certo que se afiguram hoje de somenos importância esses registos
antropométricos como o «índice cefálico» ou «índice jugomandibular». Mas já se não pode
negar valia aos seus estudos pioneiros sobre a misceginação sabendo-se, como se sabe, que,
para se compreender certas facetas da História de Moçambique, há interesse em efetuar
comparações objetivas e sistemáticas sobre o superior dinamismo e a maior resistência às
doenças tropicais dos indivíduos dotados com esse «novo vigor híbrido», desenvolvido pela
união da mulher africana com imigrantes da mais diversa origem: árabes, persas, hindus,
europeus, indo-islâmicos, indo-portugueses, etc. esta abordagem nada teria de inédita.
Clarence-Smith e Malyn Newitt já acentuaram a invulgar vitalidade dessas «sociedades
crioulas» que proliferaram naquilo que o primeiro designou por «terceiro império português».
Mas a curiosidade intelectual de Simões Alberto não se limitou aos assuntos que
acabámos de referir. Também se debruçou sobre a demografia, a etnografia, as distinções
etnolinguísticas e outras facetas mal conhecidas das sociedades tradicionais. E estou certo que
pesquisas conscientes muito poderão encontrar de inédito, como os três volumes de uma obra
intitulada «História de Tete durante o período liberal», revelados no final da «Carta de
Sofala» (Bol. Soc. Estud. Moçamb., n.º 116, 1959).
E toda esta atividade foi desenvolvida sempre com humildade, sem retórica nem
espalhafato, sem engodo em benesses e honrarias, sem o acicate de obrigações profissionais.
Pelo contrário, agiu sempre sob o impulso do puro e nobre ideal de conhecer e de dar a
conhecer mais e melhor as realidades, quantas vezes dolorosas, que caracterizavam os antigos
e modernos grupos sociais moçambicanos».
A título de segunda homenagem e também porque dela constam elementos até agora
desconhecidos, transcrevo uma sua carta inédita que me foi oferecida por um descendente de
Filipe Gastão de Almeida d’Eça, conhecido autor da “História das Guerras no Zambeze”,
publicada pela Agência Geral do Ultramar.
323
Transcrição integral da carta inédita, datada de 16 dezembro 1951
Conselho de Câmbios
Caixa Postal 941
Lourenço Marques

Exmº snr. Almeida d’Eça, e meu Exmº Amigo:


Só hoje me foi possível acusar a receção da sua carta de 8 do mês findo, que muito lhe
agradeço, assim como a relação que a acompanhou. Deve-se este atraso ao facto de ter
aparecido aqui uma missão inglesa subsidiada pela Fundação Roksfeller, de Londres, e que
anda a fazer uns estudos sobre a pureza e cruzamentos das raças negras do mundo, para o que
é necessário colher grande quantidade de amostras de sangue, mas de indivíduos de que se
saiba com segurança a tribo a que pertencem. Como já lhe disse em anterior carta eu toco
muitos instrumentos, e por isso mesmo o meu tempo é sempre pouco.
Aproveitei a ocasião duma pequena licença e fui-me entreter a fazer medições
antropológicas nos soldados negros num campo militar de instrução instalado a cerca de 36
quilómetros de L. Marques, a que chamam “a cidadela militar de Boane”. Ali estive uns dias,
e ali me foi aparecer a tal missão, depois de eu ter classificado etnograficamente os homens.
Dali viemos para as unidades militares da cidade, compounds de trabalhadores, etc. Estes
trabalhos são muito interessantes e apaixonam quem a eles se dedica. É precisamente o que
me sucedeu. Aproveito todas as abertas para medir negros, classificar negros, investigar usos
e costumes, cruzamentos tribais, etc.
Trago entre mãos, de colaboração com um rapaz diplomado pela Escola Sup. Colonial
que é também um carola destes estudos, um estudo muito completo sobre melhorias
constitucionais observadas nos soldados negros durante a instrução militar. Está a publicar-se
a primeira parte, pois os serviços militares estão muito interessados no assunto e têm-nos
dado muitas ajudas, exceto a monetária, que era a que mais interessava. Acabámos agora um
estudo muito desenvolvido sobre a distribuição dos grupos sanguíneos entre soldados negros,
estudo que deve seguir esta semana para o Instituto de Medicina Tropical afim de ser presente
ao I Congresso em abril próximo, e ao mesmo tempo vão cópias do mesmo trabalho para a
Junta das Missões a ver se conseguimos um subsídio para prosseguir estes estudos. Mas não
tenho fé nenhuma.
Sobre o que me pergunta na sua carta dos desastres sofridos pelas nossas tropas em
Massangano não encontrei ainda nada que diga que o Nhaúde nos tenha infligido os três
desastres em que alguns autores falam. Deve haver confusão com os desastres infligidos pelo
seu respeitável filho e sucessor e seus irmãos. Sobre o que sucedeu ao alferes Raposo nada
por enquanto lhe posso dizer de positivo. É provável que ainda encontre aqui alguns
documentos que esclareçam melhor o caso, mas só com tempo o posso fazer. Como o seu
trabalho se compõe de dois volumes e vai agora sair ainda só o primeiro, creio que teremos
ainda tempo de corrigir algumas deficiências que venham a aparecer.
Quanto à lista de governadores e comandantes militares que me enviou posso já cerzir
uma falha que o meu amigo aponta na lista dos governadores de Quelimane e Rios, falha que
existe entre o governo do tenente coronel Tomás José Peres e o capitão-tenente Fernando
Carlos da Costa. Eu explico.
Em agosto 1840 faleceu o comandante de Tete que era o major Correia Monteiro, que
foi substituído pelo coronel de milícias Galdino José Nunes que tomou posse efetiva em
outubro 1840. Em fevereiro 1843 este mesmo Galdino ainda ocupava o cargo e entregou o
comando ao capitão João de Sousa Nunes de Andrade (e não José) que tomou posse a 14 maio
324
1843, e não a 4 março. É este Nunes de Andrade que o comunica ao governador-geral em
ofício nº 5, de 21 maio, onde diz que chegou a Tete a 13 e a 14 tomou posse. Logo Galdino
governou Tete de 1840 a 14 maio 1843.
Nesta altura era governador de Rios de Sena e Quelimane o capitão-tenente Fernando
Carlos da Costa; alferes às ordens João Carlos Possolo Picaluga; comandante militar de Sena
Anselmo Henriques Ferrão. Consta de documentos em meu poder copiados no livro 7º de
registos da Comandancia de Tete, que abrange de 5 fevereiro 1843 a 8 outubro 1844.
Galdino José Nunes era comandante interino e a princípio supus que tinha substituído
João de Sousa Machado, pois este tinha sido comandante militar – ou em Tete ou em
Quelimane – em 1841, quando o Pedro Caetano Pereira teve a primeira desavença grave com
os comandos de Tete. A ser assim, a ordem dos comandos militares de Tete deveria ter sido:
Correia Monteiro, Gualdino José Nunes, João de Sousa Machado, Galdino J. Nunes, João de
S. Nunes de Andrade.
Era certamente de deduzir que fosse esta a sucessão dos comandos militares de Tete se
lêssemos por alto o seguinte ofício de tal livro 7º. Do ofício nº 59 do comandante militar de
Tete ao Sr. governador de Rios e Quelimane Fernando Carlos da Costa, que havia sucedido
talvez a Manuel de Carrazedo. Infere-se que trata do envio de vinte barris de carvão de pedra
do Moatize, que foi o primeiro que se extraía daquelas minas e se enviava para a Índia.
Explica todas as despesas feitas com o envio deste carvão, e a certa altura esclarece assim:
“do dito sítio da mineração a esta vila V. Sª. conhecerá melhor pela folha demonstrativa que
dirigiu o meu antecessor acompanhada por seu ofício nº 116 de 27 janeiro 1841 ao Iluº
Comandante militar destes distritos, João de Sousa Machado”. Isto dá-nos a entender que foi
em Tete e não em Quelimane, que governou ou comandou João de Sousa Machado, portanto
entre Tomás José Peres e Fernando Carlos da Costa. E devia ter sido assim pela seguinte
(razão): as folhas 42 Vº e 43 do citado livro 7º de registos da Comandância da Vila e Praça de
Tete – por enquanto em meu poder – acha-se registado o seguinte oficio dirigido ao Sr.
governador: “Oficio nº 60, de 10 agosto 1843, ficando de dar resposta ao que me pedia sobre
as causas das desinteligências entre Pedro Caetano Pereira e o ex-comandante militar Galdino
José Nunes, reuni os moradores em Assembleia, mas (quando) perguntados todos se calaram.
Uma hora depois ordenei que respondessem por escrito para não saberem uns da resposta dos
outros, o que fizeram enviando eu as doze respostas que se seguem:
1) O capitão João António de Oliveira respondeu que julga como causa principal a
representação que o régulo maravi Bibi fez contra o dito Pereira, por este lhe haver
conquistado terras, como em tempo comunicou o adjunto Galdino, quando foi em serviço às
terras do dito Pereira;
2) O tenente António Vicente de Sousa Caldas diz que, quando aqui chegou a Tete com
a expedição, ouviu dizer que foi por causa do comandante militar Galdino ter mandado
prender uns pretos do Pereira;
3) O feitor João António de Freitas diz que supõe a causa principal de desinteligência
entre o Galdino e o Pereira o facto do Galdino mandar prender uns pretos do Pereira na terra
Chingoza, onde tinham vindo a mando do Pereira trazer escravos em pagamento a António
Gomes da Silva;
4) Luís Caetano Botelho diz que, tendo vindo uma embaixada do régulo Bive queixar-se
do Pedro C. Pereira que lhe havia roubado umas terras, o Galdino convocou o adjunto e
enviou uma embaixada ao Pereira que respondeu com evasivas e nunca quis obedecer ao que
lhe propunha o Galdino, que comunicou o facto ao então comandante militar de Rios, João de
Sousa Machado, que ordenou que se publicasse um “bando” (comunicado) classificando o
Pereira como rebelde, proibindo-lhe todo o comercio com esta vila; o Pedro Pereira tornou-se
325
mais renitente e o ex-comandante Galdino mandou uma força que ao chegar aos limites das
nossas terras foi destroçada por uma expedição do Pº Caetº Pereira;
5) Cândido José da Costa Cardoso diz que o motivo das desordens havidas entre
Galdino José Nunes e Pedro Caetano Pereira deve constar da correspondência deste comando;
6) Pascoal de Meneses Guarda Figueira diz que a causa, certamente, foi o facto de o
Galdino ter mandado prender sete negros ao Cº Pereira;
7) António Vicente Colaço diz que tudo deve constar da correspondência deste
comando para o governador-geral da Capitania;
8) José Luís Rodrigues diz a mesma coisa do anterior;
9) Domingos José Gomes de Araújo diz que, por vários termos lavrados em assembleias
de moradores e a correspondência trocada, deve elucidar a questão;
10) Joaquim Henriques de Nazaré diz o mesmo que o feitor;
11) António Custodio Rosado Queiroz diz o mesmo que o Araújo;
12) António Gomes da Silva diz o mesmo que o Queiroz e o Araújo.
Fosse por causa da prisão dos negros do Pereira, ou a causa principal fosse a questão
levantada pelo régulo Bive, o Galdino José Nunes foi pouco prudente, e o João de Sousa
Machado foi muito precipitado. Dos sete presos que o Galdino tinha do Pereira enclausurados
na Praça de S. Tiago maior, quando o Galdino entregou o comando só estava um vivo, que o
capitão N. de Andrade mandou soltar. Há porém mais documentos de onde se deduz que a
rivalidade entre o Pereira e os comandantes militares de Tete, tinha origem em o Galdino
querer sozinho fazer negócios nas terras que o Pereira entendia serem suas.
Ora o João de Sousa Machado ainda era comandante militar de Quelimane em 12 abril
1842, como se deduz do seguinte oficio nº 88, de 15 outubro 1843 (livro 7º) dirigido ao Sr.
governador:
“Chegou aqui o ex-alferes Constâncio da Silva Ferreira, que, por ordem do comandante
militar desde Distrito, João de Sousa Machado, em ofício nº 58 de 12 abril 1842, assentou
praça de soldado na 1ª compª”.
Mas entre João de Sousa Machado, que substituiu Tomás José Peres no governo de
Quelimane e Rios e o capitão-tenente Fernando Carlos da Costa, esteve o Galdino José Nunes
como governador interino. É o que se deduz da seguinte Circular nº 5, no livro 7º, a folhas 61
vº, enviada pelo comandante militar de Tete, a 15 dezembro 1843: “Por ordem recebida do Sr.
coronel Galdino José Nunes, encarregado interinamente do governo do Distrito de Quelimane
e Rios de Sena, chegou o novo papel selado, o que se comunica a todas as autoridades.”
Oxalá que estas minhas informações ainda cheguem a tempo do meu amigo dar uns
retoques na sua lista, que, mesmo como está, já deu muito trabalho a organizar e apresenta
elementos inéditos.
Já que nos metemos nisto – creio que só nós os dois por enquanto – temos muito a
esclarecer sobre a história desta malfadada Zambézia, meu amigo. A documentação que há
anos ando a compulsar e a que o meu amigo tem compulsado dá pano para mangas. Isto no
que respeita à Zambézia. O que fará se se vasculhar convenientemente a documentação que
resta dos restantes distritos, mas que deve estar toda aí em Lisboa. Mas só a que aqui existe
deve dar muito que vasculhar. É natural que cause náuseas a quem tal tentar. Mas era
conveniente pôr as coisas no devido pé, descrever as coisas como elas foram e não como se
tem feito acreditar que elas são.
A sua maneira de ver as questões históricas da velha Zambézia e a forma
desassombrada como em letra redonda as tem apresentado, estão de perfeita harmonia com os
meus processos de análise. Têm-me chamado casmurro, teimoso e verrinoso, mas ainda não
326
encontrei ninguém que me demonstrasse que minto ou que faço afirmações que não
documento devidamente. Tive por mestre o falecido Homem Cristo, que foi meu vizinho e
amigo. Herdei dele por contágio aquela forma rude de analisar os homens e as coisas. Mas
vejo agora que o meu amigo lê e escreve pela mesma cartilha. Estamos porém vivendo uma
época em que estes moldes não se adaptam convenientemente às correntes atuais, pois muita
coisa que se sabe não se pode dizer como ela é ou como tenha sido. Se está disposto a
continuar a vasculhar papeis velhos aí nos Arquivos e analisa-los à luz crua da verdade, tem
aqui um amigo para o ajudar.
E qualquer dia lhe darei melhores e mais suculentas notícias disto.
Acabo de receber uma carta do meu rapaz, em que diz ter-lhe entregado o meu livreco.
Há porém uma coisa que convém saber.
O trabalho foi premiado num concurso aberto aqui pela Casa da Metrópole e os
originais premiados foram enviados para a Agência Geral das Colónias. Um deles, uma
monografia sobre os Macuas, da autoridade dum intendente administrativo, já foi publicado
por aquela Agência. É natural que o meu esteja já na agenda das publicações daquela
Agência. Veja lá o que há sobre o assunto.
E já agora queria pedir-lhe um grande favor. Foi aqui agora recebida a notícia de que
vai receber o prémio “Abílio Lopes Rêgo” por intermédio da Academia das Ciências de
Lisboa, o administrador Manuel Dias Belchior por um trabalho que escreveu e publicou
intitulado “Compreendamos os Negros”.
Essa obra, prefaciada pelo Dr. Marcelo Caetano, é apenas o desenvolvimento duma tese
que o Belchior apresentou quando frequentou os Altos Estudos Coloniais. Tenho a obra, já a
li duas vezes com muito cuidado, não encontro nela nada de novo, e parece-me que tenho na
gaveta obra do mesmo género mais desenvolvida e talvez melhor organizada. Não me será
capaz de aí desencantar o regulamento para a concessão do prémio “Abílio Lopes Rêgo”, que
creio deve ter sido publicado num dos Boletins da Agência Geral das Colónias? Se o for
agradeço o seu cuidado e falaremos melhor sobre o assunto.
Fica aguardando as suas respeitosas ordens o que se subscreve com toda a
consideração:
(assinatura)

Manuel Simões Alberto. Caixa Postal nº 941. Lourenço


Marques.
327
11ª
NOTA SOLTA
Tenente (dep. capitão) A. F. Mesquita e Solla

Em obras da minha autoria, quando se me afigura oportuno definir a causa de fracassos


ocorridos em diversificadas épocas, localidades e contextos, procuro dar excecional
importância às graves carências em matéria de pessoal estável, honesto, competente e
dedicado com que os governantes portugueses sempre lutaram. Pois, tanto quanto consegui
apurar, o militar citado no subtítulo constituiu uma rara exceção, Foi por este e por outros
motivos que decidi conceder-lhe especial atenção.
A sua longa carreira foi passada na região situada ao norte do Zambeze e limitada a
oeste e leste, pelos afluentes Aruângua e Revubuè. Em abril 1887 comandou, por algum
tempo, o posto militar da Macanga. Serviu como secretário do governador de Tete.
Posteriormente participou na expedição ao Mpezene. Após o seu regresso a Tete, nos
começos de 1891, continuou ao serviço do Estado. É provável que tenha desempenhado as
funções de governador de Tete no ano de 1893.
Indigitado como foi para participar na célebre “expedição portuguesa ao Mpezene”,
Solla assumiu naturalmente a responsabilidade de, durante as ausências de Wiese, manter o
competente diário sempre atualizado e autenticado com os pormenores quotidianos de
indiscutível interesse. Tal aconteceu por duas vezes:
a) Entre 12 fevereiro e 8 maio;
b) Entre 13 julho e 16 novembro 1890.
De tudo quanto escreveu é possível formular algumas considerações gerais sobre a sua
personalidade.
Por exemplo, durante a primeira ausência de Wiese, queixou-se que os dias decorriam
com o maior tédio. Reconheceu não ter paciência para aturar as oscilações da política seguida
por Mpezene e pela sua corte. Lamentou não poder seguir o exemplo do alemão que, ajudado
pelo conhecimento das línguas indígenas convivia de forma natural com os angonis, sentando-
se com eles à roda da fogueira sempre risonho, contando e ouvindo aventuras de viagens e
caçadas. Do mesmo modo podia escutar, atentamente as gabarolices de Mpezene.
Após a partida de Wiese e de Teixeira de Matos, confessa ter sentido “um grande vazio
interior”. Matos atraía-o pela sua conversa animada e pela sua alegria permanente. Um
silêncio quase total caíra sobre o estabelecimento logo após o nascer do Sol. Os poucos
angonis que restavam iam partindo após terminarem as colheitas. A propósito destes
invasores faz algumas considerações de ordem antropológica e que merecem ser aqui
reproduzidas. Chegou à conclusão que a generalidade dos chefes angonis respeitava um
nomadismo baseado em ciclos de dez anos, não por falta de pastagens nem por esgotamento
do solo arável.
Tomara a firme decisão de não visitar Mpezene. Todavia enviava mensageiros para
apresentar comprimentos e para perguntar se o monarca continuava saudável.
A 28 março recebeu um mensageiro de Sharpe com uma carta para Wiese. Seguindo as
instruções dele, abriu a carta e muito embora não compreendesse o inglês mandou ao
explorador britânico uma resposta em francês. Pouco tempo depois foi visitado pelo
estrangeiro. Ficou deliciado com a sua presença e convidou-o para almoçar. Felizmente que
na Universidade de Coimbra, aprendera a expressar-se e a escrever a língua francesa e foi
328
graças a ela que pode comunicar livremente com o explorador britânico. Solla classificou este
encontro como amigável, divertido e informativo. Contudo sentiu-se frustrado pelo facto do
seu convidado lhe ter confessado que não podia demorar-se. Lamentou que tivesse partido tão
cedo para as longínquas terras nortenhas, em comprimento das ordens que recebera no sentido
que concretizar o maior número possível de vassalagens. Soube depois que Sharpe fôra visitar
Mpezene. Todavia procurou de novo a companhia de Solla, em 3 abril, porque lhe tinham
fugido cerca de quarenta carregadores que trouxera do lago Niassa.
Sharpe deixou-lhe diversos artigos destinados às trocas comerciais no interior, artigos
que vendia a preços bem inferiores aos que eram provenientes de Tete. Pediu-lhe que
fornecesse um guia que o pudesse conduzir até Chilupe, povoação onde residia um chefe da
etnia nsenga, situada próximo do rio Msanzara afluente do Aruangua.
Nesse ponto da sua narração surge um mudo conflito de intenções nacionalistas,
baseado pela distribuição de bandeiras. Quando o muzungo Francisco José Pacheco, se
ofereceu para guiar Sharpe até ao Aruangua, Solla pediu-lhe que chamasse a sua atenção para
o facto desse grande afluente do Zambeze banhar uma zona que desde longa data pertencia à
esfera de influência portuguesa. Esta precaução de Solla tinha as suas razões. Na verdade,
veio muito depois a saber-se que Sharpe nas cartas que escrevia a Jonhston, acentuava sempre
que a influência portuguesa era insignificante e desorganizada. E com isso Johnston se
congratulava porque, como confessou, “desde a sua juventude odiava tudo quanto fosse
“internacional”. Chegou a ser acintosa a hostilidade que sentia por Wiese.
Para efeitos comparativos, vale a pena sintetizar as inocentes considerações que Solla
deixou registadas no diário. Garante ter procedido com extremo cuidado no cumprimento dos
seus deveres. Levou em consideração as mútuas responsabilidades de proteção e assistência
que deviam observar os viajantes europeus que se cruzassem nos sertões. Procurou honrar a
reputação que os portugueses tinham alcançado de se esmerarem no auxílio prestado a
estrangeiros, como Sharpe, a vencerem os obstáculos prejudiciais ao sucesso das suas
expedições. Caso avaliasse aquele cidadão britânico numa perspetiva meramente política,
teria que o considerar como inimigo. E mesmo em relação aos inimigos se deve proceder com
generosidade, caso se encontrem em situações de extremo desespero. Não se deveriam
enfrentar os nossos rivais em África recorrendo a processos insidiosos e vingativos. Pelo
contrário, na defesa dos direitos nacionais conviria proceder com a maior franqueza e
veracidade, jamais lançando mão de sofismas e artifícios, fossem quais fossem os resultados
alcançados pelas expedições. Alheio à Conferência de Berlin, insistia que a presença
portuguesa era tão antiga, os vestígios que deixara eram tão evidentes e as tradições e atitudes
indígenas eram tão significativas que nada havia a temer.
A evolução quotidiana de Solla tornou-se bastante mais atribulada durante a segunda
ausência de Wiese, desde princípios de julho até meados de novembro 1890.
Em Metenguleni ficaram apenas trinta serviçais. Solla confessa “nada aconteceu que
quebrasse a monotonia da minha existência”. Contudo logo no dia 20 vieram da Chicoa novas
cargas que continham imensa correspondência para Wiese, a qual fora enviada de Tete, pela
firma “Teixeira Duarte & Irmão”.
Solla tomou providências para que as moradias não fossem atacadas pela formiga
branca (térmites). Um pouco mais tarde começou a sentir dores em todo o corpo, dores que
indiciavam o contágio de uma epidemia sarnosa que afligia a população. Os seus serviçais
comunicaram-lhe que se aproximava uma caravana árabe, que vinha com o propósito concreto
de comprar escravos aos Angonis. Estes recebiam aqueles traficantes como hóspedes da
mesma maneira que acolhiam quaisquer outros estrangeiros.
329
Em 29 agosto, Solla foi visitado por um chefe angoni acompanhado por um dos
dirigentes árabes conhecido por Cadangola, que deu informações sobre as atividades de
Sharpe. Tinha partido para o lago Mueru. Pelos relatos que deixou, sabe-se que havia
navegado ao longo do lago Niassa até atingir o seu extremo norte em Caronga, em agosto
1890. Só em outubro conseguiu atingir o Muata Cazembe.
Solla preocupava-se bastante com as atividades do muzungo José de Araújo Lobo,
cognominado mataquenha, capitão-mor do Zumbo. O motivo dessa preocupação, explica-se
pelo facto de Mpezene sentir profundo ódio por esse muzungo de baixo estofo.
Mais tarde aconteceu algo de trágico. Por mero acaso as brincadeiras de uma criança de
três anos provocaram o incêndio do teto de colmo da maior palhota utilizada como moradia.
As faúlhas logo propagaram o fogo a três outras palhotas que serviam para armazenamento.
Fez um esforço desesperado para salvar o arquivo, o marfim e a pólvora. Mas perdeu todas as
reservas de produtos alimentares. A indigência era tão flagrante que alguns angonis seus
conhecidos lhe vieram a oferecer cabeças de gado.
Em 21 outubro ocorreu um episódio que teve bastante importância nas suas relações
com Mpezene. Um dos seus empregados trouxe-lhe um felino do tamanho de um coelho, cuja
pele era conhecida pela sua beleza. Tratava-se talvez do serval (Félix serval). Mandou um
emissário expressamente a Mpezene, para lhe oferecer o animal. Procedeu assim porque sabia
que apenas o chefe supremo, o inkosi, podia envergar aquela pele. Os que violassem esta
norma seriam severamente castigados.
Mpezene ficou tão sensibilizado que, pela primeira vez, retribuiu com uma oferta de
marfim. Bastaria este episódio ocorrido na segunda metade de outubro 1990, para comprovar
a integridade de carácter do tenente Solla. Virtude raríssima entre as díspares personalidades
que residiam ou atravessavam aquele remoto sertão: chefes angonis, mercadores árabes,
agentes de Rhodes, muzungos de Tete e do Zumbo, com exércitos privados.
Solla, quando viu na sua frente um grupo de homens com onze pontas de marfim, de
diversos tamanhos, logo perguntou qual era o destinatário. Ficou surpreendido quando lhe
responderam que se tratava de uma oferta pessoal. Incrédulo, Solla inquiriu se não haveria
engano e se o destinatário não seria o governador-geral.
Preparava-se para passar um recibo do marfim mas o muzungo Tarquinio insistiu que o
marfim era um donativo de Mpezene porque tivera conhecimento do incêndio que destruíra os
géneros alimentícios, destinados ao consumo da gente que encontrava sobre a sua
responsabilidade. Mesmo assim, Solla interrogou todos os que tinham presenciado a oferta e
tomou nota dos nomes das testemunhas presenciais. No dia 24, mandou dois dos seus homens
que mereciam mais confiança, para agradecerem pessoalmente a Mpezene e para perguntarem
de novo se o marfim não seria destinado ao governo-geral. Mpezene respondeu que o marfim
não era destinado a essa identidade.
Solla ponderava os benefícios que poderia advir deste reforço das suas relações com
Mpezene. A partir de então, os angonis em geral não só ousariam cometer desacatos contra a
sua pessoa e seus dependentes, mas também o passariam a tratar com maior deferência e até a
fornecer dados sobre a política interna do reino.
330
Admissão de Solla ao serviço da Companhia da Zambézia

Felizmente que durante a microfilmagem que fiz ao Arquivo da Companhia da


Zambézia encontrei preciosa documentação que nos fornece elementos de grande valor para
conhecer a parte final da vida deste militar que tantas qualidades revelou durante os seus
longos anos de residência na região entre Tete e Zumbo. Uma das suas grandes qualidades era
o gosto pela escrita.
Antes do início da microfilmagem, quando ainda nem sequer tinha livre acesso ao
arquivo da Companhia da Zambézia, limitei-me a elaborar rascunhos sobre a localização da
documentação contida nas pastas que me iam sendo apresentadas pelo pessoal da secretaria.
Todas as informações que se seguem são baseadas nesses simples rascunhos. Os exaustivos
microfilmes posteriormente efetuados estão na posse do Arquivo Histórico de Moçambique,
juntamente com as respetivas fichas oficiais.
Na respetiva pasta constava, logo de início, o decalque do contrato feito com o capitão
Mesquita e Solla, contrato que foi datado de três de setembro 1895. O seu primeiro relatório,
com vinte e cinco folhas, é datado do último dia do ano de 1895, e têm por título “Agência
Principal dos Prazos de entre Chicoa e Zumbo”. O seu segundo relatório, de vinte e quatro
folhas, foi elaborado na Chicoa, no último dia do mês de janeiro 1896, e foi apresentado ao
governador do distrito da Zambézia. Além de outros assuntos, alude ao pagamento do
mussoco em enxadas “a tradicional industria dos maraves”, apresenta também informações
importantes para a história da Marávia, como o monarca designado por Undi e sobre a
importância do clã Pire. No final de março 1896, já se apresenta como chefe da secção entre
Chicoa e Zumbo. É de notar que alude às violências cometidas por polícias ingleses, refere
outrossim a destruição provocada por uma praga dos gafanhotos zomba, pronuncia-se também
sobre mussoco e recenseamento e sobre a navegação no Zambeze.
A carta nº 129, elaborada no Chinde, por Mariano Machado, a catorze de julho 1896,
remete, entre outros, o relatório de Solla datado de treze de junho dando notícias referentes à
Chicoa e o Zumbo.
A 9 outubro Mariano Machado enviou do Chinde, uma carta com 23 folhas e, com
alguma ironia, refere “um quilométrico relatório (como de costume) aliás muito interessante –
como todos os escritos do erudito capitão Solla”, relativo ao período de 14 junho a 15 agosto.
Tem 36 páginas seguidas de um suplemento com outras 6, o que dá um total de 42. Faz um
resumo até folha 16 sobre Ignácio Xavier, Mpezene, Zumbo, Wiese, etc.
O importante relatório que se seguiu foi elaborado pelo guarda-livros no Chinde e
refere-se ao período de 1 a 8 janeiro 1897. Presta a seguinte informação sobre o Prazo
Massangano: “os colonos recusam-se ao trabalho alegando que não são escravos”. Em
seguida alude a um relatório de cinquenta páginas, cujo paradeiro não conhece, relatório que
foi elaborado por Mesquita e Solla, sendo referente ao período de setembro e outubro. No
mesmo documento o autor cita diversos assuntos: incursões de landins em Senga e Pimbe; o
chefe árabe, súbdito do Sultão de Zanzibar, que pretende estabelecer-se com cerca de quarenta
dependentes nas terras do comando da Chicoa, procurando fugir ao jugo britânico; afirmação
de que a maioria dos alunos das missões é composta por menores comprados ou resgatados da
escravidão em que se encontravam, transformando-se mais tarde nos Muzungos que raramente
seguem os preceitos da religião aprendida. Na página oito o guarda-livros presta o seguinte
esclarecimento: “São estes os tópicos do extenso relatório do Sr. capitão Solla – cuja
valiosa colaboração perdemos devido à proibição imposta pelo Sr. governador do
distrito”.
331
A importante carta extra de M. Machado enviada de Quelimane, a 14 março 1897,
também confirma que o capitão Solla foi proibido de enviar relatórios e de tratar dos assuntos
da Companhia da Zambézia entre a Chicoa e o Zumbo.
Na sua carta nº 86, Mariano Machado remete os relatórios de junho a outubro 1896,
elaborados pelo capitão Mesquita e Solla, mas já especifica que o mesmo deixou de exercer as
funções de chefe da secção d’entre Chicoa e Zumbo. Pede a devolução desses relatórios
porque não extraiu deles as competentes cópias (nº137).
Infelizmente não foi possível apurar o que teria acontecido a Mesquita e Solla. É
possível que tenha sofrido qualquer doença ou contrariedade porque na sua carta nº 74,
elaborada em Quelimane, a 12 julho 1899, Mariano Machado dá a noticia de que o referido
militar “se cafrealizou naquele isolamento (o que é um facto natural nestas paragens) casando
com uma qualquer mulher preta; tinha 2 ou 3.000$00, mas não quis trabalhar mais e ali ficará
como um muzungo vivendo à sombra da palhota; a seu pai o capitão Solla aconteceu o
mesmo, são factos vulgaríssimos em África, principalmente no interior longe do convívio
com europeus.
Langworthy deu a conhecer que Solla faleceu em dezembro 1901.
Avento a possibilidade de Mariano Machado ter acumulado e reorganizado os
importantes manuscritos de Mesquita e Solla e que tenha sido da sua iniciativa a publicação
efetuada pela Sociedade de Geografia de Lisboa com o título “Apontamentos sobre o
Zumbo”. Essa série tem o nº 25 e refere-se ao ano de 1907. Ocupa as seguintes páginas: 247-
57, 274-87, 319-27, 340-56, 382-91 e 436-56.
335


ENSAIO INÉDITO
Influência dos árabes iemenitas e omanitas. Civilização Suahili.
Mulunguanas e Muzungos. Mutapas e Changamires. O reino de
Butua-Tórua e o seu direto sucessor: o Estado Rozui

Como se sabe, na margem africana do Mar Vermelho, os elementos culturais sabeanos


acabaram por se fundir com os de origem etíope, para criarem uma outra civilização e uma
outra unidade política que, a partir do Séc. IV d.C., atingiu invulgar esplendor: o reino de
Axum. A sua prosperidade também se baseou no comércio com o Oceano Índico, tendo
Adulis como principal porto. Foi visitado em 525 d.C. pelo mercador grego Cosmas
Indicopleustes. Este forneceu dados preciosos sobre a África Oriental, exaltando a abundância
de ouro em pepitas (que só poderia ter sido exportado através da Costa de Sofala) e
garantindo serem as quatro estações do ano opostas às do Médio Oriente (o que define
claramente uma região sub-equatorial). Parece ter assim surgido, no Médio Oriente, a
primeira referência escrita à produção aurífera do sertão planáltico limitado pelos rios
Zambeze e Alto Limpopo.
Esta pequena introdução é indispensável para se compreender a importância que vai ser
dada à descoberta de um elmo de bronze na região do Buzi, não longe de Sofala. Juntamente
com outras peças enigmáticas, encontrava-se em 1946 no Museu Geológico e Mineralógico
de Macequece. Foi estudado, reproduzido e descrito pelo Eng.º Pires de Carvalho (1). Possuía
dois orifícios laterais e, na parte frontal, decorações formadas por talhes de forma paralela e
triangular. A análise não revelou impurezas o que milita a favor da sua origem ultramarina.
As proporções de cobre e estanho eram respetivamente de 89% e 11%. Em 1957/8 solicitei a
colaboração do Departamento de Etnografia do Museu Britânico de Londres para que
apurasse quais as possibilidades do objeto ter origem africana. Foram infrutíferos os esforços
longos e dignos de louvor que desenvolveu Miss M. A. Bennet-Clark.
Consegui apurar que os Axumitas – embora conhecessem o ouro, a prata e o cobre –
utilizavam com mais frequência o bronze devido à raridade do mineral de ferro. Parece
credível a hipótese de que os Axumitas também frequentaram a cobiçada Costa de Sofala cuja
grande produção aurífera atraía os mercadores e navegadores de todo o Índico Ocidental.
Supõem-se que o elmo se manteve oculto durante muitos séculos, talvez na sepultura de
qualquer antigo guerreiro. Como a população local já dominava a metalurgia do ferro que
exige temperaturas mais elevadas, com facilidade poderia fundir o elmo para fabricar
pulseiras de baixa qualidade e de talhe grosseiro, semelhantes às que foram descobertas na
região e que se encontravam no mesmo museu, como refere o Eng.º Pires de Carvalho.
Tinham quase 30% de zinco outras argolas, também pertencentes ao museu, muito mais
refinadas e decerto introduzidas por outros estrangeiros, talvez oriundos do sub-continente
indiano. Segundo fui informado por amigos moçambicanos, todo esse precioso espólio foi,
por infelicidade, saqueado durante a guerra civil.
Para que melhor se compreenda o interesse generalizado pela denominada Costa de
Sofala (2) convém apresentar, desde já, o resultado das modernas investigações arqueológicas
sobre a produção aurífera atingida nas terras planálticas do interior. Deve-se a Roger
Summers (3) o primeiro estudo sistemático e intensivo das mais de quatro mil antigas minas
que ali foram identificadas. Aquele estudo foi publicado em 1969 e apresenta um histograma
onde o autor calculou, para todo o Séc. VI, a produção de um milhão e meio de onças. Subiu
336
progressivamente até atingir, entre os séculos VII e IX, a quantidade de quatro e meio milhões
de onças. Mas o máximo da produção teria sido alcançado entre os séculos IX e XII,
totalizando nove milhões de onças. Seguidamente teria entrado em declínio até ao ano de
1500, embora durante esses três séculos ainda se houvessem produzido e exportado cerca de
cinco milhões de onças.
Outro arqueólogo, I. R. Phimister (4) estudou igual número dessas minas e, baseado nas
dimensões, na profundidade escavada, no peso e na qualidade da pedra removida, terminou
por considerar excessivos os cálculos feitos pelo seu colega. Publicou em 1976 o resultado
das pesquisas e apresentou um histograma alternativo no qual consta uma produção global de
sete a oito milhões de onças, iniciada em 950 e terminada em 1900, atingindo o seu máximo
entre 1100 e 1450. Dois anos antes havia dado especial relevo ao ouro de aluvião recolhido
nos leitos fluviais (5).
Procurámos obter elementos sobre este problema básico mas recorrendo apenas à
imensa e não raro meticulosa documentação portuguesa (6). Acabámos por apurar que as
estimativas mais cautelosas do quantitativo de ouro legal ou ilegalmente retirado, entre 1500 e
1700, das regiões controladas pelos Portugueses, apontavam com regularidade para médias
próximas de setecentos quilos anuais, ou sejam 140.000 quilos em duzentos anos, o que
corresponde a quatro milhões e meio de onças. Assim sendo, é lícito concluir que as
estimativas arqueológicas supracitadas necessitam de ponderada revisão. E note-se que os
dois especialistas consideraram como insignificante o montante de ouro que foi sendo
adquirido, após 1500, pelos mercadores alienígenas, de diversificadas origens, composições e
finalidades. Nos seus histogramas não hesitaram em apresentar graficamente essa discutível
conclusão.
Mas voltando de novo à evolução histórica da costa oriental africana. É lógico
estabelecer significativas comparações entre a intensidade da exploração aurífera no interior e
a prosperidade dos estabelecimentos costeiros islâmicos situados ao norte do Rovuma. As
escavações arqueológicas apenas começaram a encontrar provas de crescente e generalizada
riqueza quando atingiram os estratos posteriores aos finais do Séc. XI ou aos inícios do século
seguinte.
Convém ter sempre em mente que, segundo outro arqueólogo D. W. Phillipson (7), os
espólios exumados permitem garantir que os contactos com o exterior beneficiaram
unicamente a referida região aurífera planáltica entre o Alto Limpopo e o Zambeze, bem
como as respetivas rotas comerciais, tendo Sofala como seu principal porto de exportação.
Mesmo nas latitudes setentrionais do lago Vitória, jamais se puderam encontrar materiais de
proveniência ultramarina. No Sul do Malawi – outra região bem estudada – foram raríssimos
os achados comprovativos de intercâmbio com o litoral. O mesmo aconteceu nos atuais
territórios situados ao sul do Alto Limpopo.
Mas continuando. Com o advento dos califas abássidas (750-1258), o imame de
Mascate iniciou, por sua vez, um período de expansão ultramarina, conquistando a estratégica
ilha de Socotorá, à entrada do Golfo d’Adém. Ali predominava uma comunidade de cristãos
monofisitas, fundada pelos conquistadores axumitas partidos da Eritreia. A arqueologia já
demonstrou de modo inequívoco que cerca de 900 d.C. já eram intensas e regulares as
ligações comerciais marítimas entre o Golfo Pérsico e o sul da China. Ainda recentemente
mereceu geral louvor a aquisição, pelo governo de Singapura, para efeitos museológicos, de
um espantoso conjunto de milhares de peças. Foi descoberto por arqueólogos sub-aquáticos
ao largo de uma pequena ilha indonésia. Apurou-se ter ocorrido cerca de 830 d.C. o naufrágio
dessa embarcação oriunda do Golfo Pérsico. O estudo científico permitiu garantir que se
tratava de uma exportação de peças especialmente encomendadas às oficinas de Cantão. À
tripulação árabe juntara-se o empresário chinês.
337
Parece conveniente mencionar desde já a importância decisiva que, no progressivo
incremento do tráfego escravista, tiveram esses navegantes e mercadores do Médio Oriente e
do noroeste da Índia. A esse propósito, o arabista J. C. Wilkinson (8) forneceu significativos
pormenores sobre as regras elaboradas por Mahbub, eminente jurista, teórico do ibadismo e
principal magistrado em Sohar, de 863 a 873. Nelas definiu os comportamentos específicos
que os verdadeiros crentes deviam seguir nas suas relações quer com os cristãos monofisitas
de Socotorá quer com os pagãos politeístas da costa africana. O conhecimento dessas regras
parece indispensável para se compreenderem os efeitos da permanente “guerra santa” mantida
pelos omanitas e por outros potentados islâmicos, contra os gentios da África Oriental. Pelas
leis corânicas eram classificados como inimigos a guerrear, a espoliar, a escravisar e, até
mesmo, a abater impiedosamente, visto cometerem o crime de repudiarem toda e qualquer
religião monoteísta e se acharem conspurcados por intoleráveis rituais pagãos. Todavia, o
mesmo autor é de opinião que as diferenças étnicas, políticas e religiosas não prejudicavam a
cooperação entre os mercadores de diferentes origens. Assim sendo, a atividade dos omanitas
não pode ser dissociada da dos seus concorrentes, apesar dos primeiros possuírem superior
poderio naval. Os negócios eram baseados nas regras de livre mercantilismo.

A Civilização Suahili

Na África Oriental a civilização suahili teve importância fundamental. Foi em tempos


recentes bem sintetizada por Victor V. Matveiev. No entanto, discordamos de algumas das
conclusões que atingiu. Afirmou, por exemplo, ter a sua decadência começado com a
destruição, pelos Portugueses, da rede mercantil que, durante séculos, os Suahilis haviam
conseguido tecer com os centros produtores e consumidores do Índico Ocidental (9). Não
cremos que tal possa ter acontecido. Nem as autoridades, nem os particulares de origem ou
assimilação portuguesa, dispunham de poderio naval, de capital mercantil, de potencial
demográfico, de produtos manufaturados e de pessoal devidamente qualificado para poderem
dispensar os talentos, os recursos e os conhecimentos especializados quer dos elementos
suahilis quer dos outros agentes económicos de origem asiática.
Essa civilização iniciara no Séc. XII o seu período formativo, graças a simbioses entre
povoadores bantos, árabes, persas e indianos. Baseou a sua estrutura económica em pequenas
explorações agrárias, piscatórias e artesanais e no comércio terrestre e marítimo, após
dominar as tecnologias da construção naval e a navegação em mar-alto. Formou múltiplos
agregados urbanos ao longo do litoral, usando alvenarias de pedra e argamassas de cal
fabricada com conchas e até mesmo com corais. Introduziu numerosas plantas utilitárias:
coqueiros, citrinos, bananeiras, mangueiras, cana-sacarina, gergelim, produtos hortícolas e
diversas variedades de arroz e algodoeiro. Pode ser-lhe atribuída a introdução de bovinos da
espécie zebu e carneiros de cauda adiposa. Fr. João dos Santos, residente em Sofala na década
de 1580, especifica com admiração: “Todos estes mouros de Sofala vivem espalhados nos
palmares circundantes da fortaleza que são como as quintas de Portugal… há mui grandes
canaviais de canas de açúcar… as quais… são muita parte do mantimento de que se
sustentam… há muito milho e arroz, muitos inhames, batatas e feijões… em todas estas terras
há muito gergelim… de que se faz azeite… Ao longo do rio de Sofala… estão dois matos
devolutos… cheios de laranjeiras e limoeiros…” (10).
Gaspar Correia, secretário de Afonso de Albuquerque, foi o único cronista que relatou a
alegria de Vasco da Gama e dos seus homens quando avistaram no Índico a primeira
embarcação (11): “… e assim indo (da Costa do Natal para norte) houveram vista de uma vela
338
que vinha do mar para a terra, com que houveram mui grande prazer, dando muitos louvores a
Nosso Senhor por os trazer A TERRAS DE NAVEGAÇÃO”. Tinham chegado ao Índico
“oceano vivo”, ao contrário do Atlântico, então “oceano morto”. São aspetos muito
específicos da história dessas “terras de navegação” que iremos agora resumir.
Apesar das dificuldades de navegação aumentarem nessas águas meridionais, sabe-se
hoje que os Suahilis atingiram o arquipélago do Bazaruto e até mesmo a baía de Inhambane.
Em relação à mais acolhedora ilha do primeiro, os náufragos de 1589 descreveram-na como
“muito povoada de Mouros, fértil em criações de gado maior ou menor e de galinhas”.
Existia, por conseguinte, um autêntico povoamento agrário, largamente baseado na
troca dos produtos de luxo por importações de origem ultramarina que usavam o Zambeze
como via de penetração. Desenvolvera-se durante largos anos em condições de segurança e
com capacidade para produzir excedentes para a navegação marítima e fluvial. Conhecem-se
os seus principais núcleos: Tete, Inhacoro, Sena, Sofala, Mambone, Chiloane, Bazaruto,
Inhambane, Quelimane, Angoche, Mossuril, Pemba, Ibo, Mocímboa da Praia, etc. A partir
destes e de outros núcleos menores, foi difundida a cultura do algodoeiro e a respetiva técnica
de tecelagem. Os arqueólogos encontraram pesos de tear a enorme distância da costa, como
em Ingombe Ilede, onde o Cafu desagua no Zambeze.O espólio escavado forneceu seguras
datações abrangendo os finais do Séc. XIV e os princípios do século seguinte.
Pode discordar-se de outra afirmação de Matviev sobre a debilidade estrutural da
civilização suahili. Seria oriunda da excessiva dependência no que concerne o comércio
externo.
“Quase todos os bens produzidos ou obtidos pela sociedade suahili eram destinados não
ao consumo interior mas à venda para exportação, fossem produtos de caça ou fossem
minerais como o ouro e o ferro. Ora o comércio era, por si só, insuficiente para assegurar os
fundamentos desta civilização e do seu engrandecimento”.
Merece ser considerada a maior capacidade produtiva dos Suahilis. Essa vantagem pode
atribuir-se a fatores concretos: fertilidade dos solos aluvionares; superioridade das plantas
alimentares; qualidade excelente das madeiras; fabricação de cordame e de breu para
manutenção e construção naval; metalúrgia do ouro, cobre e ferro; caça e recoleção de
valiosos despojos exportáveis; uso intensivo de submissos escravos africanos; prósperas e
variadas cidades comerciais na costa setentrional; monções que facilitavam o intercâmbio
com o enorme mercado indiano, etc.
No entanto a suspeição ou pelo menos a incerteza quanto às informações prestadas
pelos desconfiados africanos, não garantiam condições mínimas que pudessem encorajar, logo
de início, a preferência pelas melhores vias de penetração para as regiões auríferas. Os
obstáculos eram mais difíceis em África do que em quaisquer outras regiões banhadas pelo
Índico: desmedidas distâncias; inexistência de pontes, estradas e veículos rodados;
desconhecimento ou impossibilidade do recurso à energia animal; omnipresença da perigosa
fauna selvagem; desconhecidas e mortíferas doenças tropicais, etc. Nos seus esforços para
reduzir estes obstáculos, os alienígenas e os seus descendentes procuravam concentrar-se em
povoações próximas do litoral e dos principais rios, a partir das quais podiam prestar
assistência às tripulações, fornecer água potável e produtos alimentares, sobretudo hortícolas,
reparar e manter as embarcações, armazenar produtos necessárias às trocas, etc.
Ora estas comunidades eram excecionalmente prolíferas devido à poligamia e à
concubinagem, ambas permitidas e até exaltadas pelo Alcorão. Certas tradições orais aludem
à preferência dos colonos islâmicos pelas filhas dos chefes tradicionais. Os descendentes
mestiços eram bem alimentados, não lhes faltando mesmo proteínas animais graças ao
pescado e aos mariscos. Também eram mais resistentes à malária e a outras doenças tropicais.
339
Integravam-se harmoniosamente nos grandes clãs patriarcais, unidos por estreitos laços
religiosos, jurídicos e económicos.
Foi assim que se conseguiram distinguir os célebres “mulunguanas” (aportuguesado de
m’ngwana, homem livre). O seu conhecimento das línguas e dos costumes aborígenes
permitiu-lhes penetrar profundamente nos sertões, serem aceites pelos chefes, traçarem rotas
seguras assinaladas por árvores utilitárias como o tamarindo, criarem feiras regulares
funcionando em dias escolhidos pelo calendário islâmico, vendendo e comprando o que
julgassem mais conveniente. Como bem acentuou R. E. Gregson, no seu trato comercial com
os aborígenes podiam recorrer a variados, eficientes e sobretudo pacíficos métodos. A sua
experiência secular contrastava vivamente com a inexperiência portuguesa quanto às regiões
do interior (12). Não admira que sejam com frequência referidos. Por exemplo, o P. e António
Gomes (13) esclareceu que os “… Mouros que do mar Roxo vieram povoar Melinde, Pate,
Ampaza, Mogadocho, Mombaça e outras paragens; daqui chegaram para Sofala, Angoche,
Moçambique; outros se meteram pela terra dentro, que todo este sertão, de Manica e
Mocaranga está povoado desta gente; quando os Portugueses chegaram a estas terras, já Tete
e Sena eram povoações suas e outras muitas da terra dentro”. Mais adiante descreve a
povoação de um mouro com cerca de quinhentos moradores entre familiares e escravos.
Em conclusão. Os membros da sociedade suahili, apesar das suas desvantagens culturais
e tecnológicas em relação aos Portugueses, não só conseguiram minorar eventuais
antagonismos, como também conseguiram expandir-se ao longo do litoral e das terras
interiores. Concordamos plenamente com as conclusões de Malyn Newitt (14 ): A chegada dos
Portugueses “conduziu ao desenvolvimento dos diferentes aspetos da economia costeira e
encorajou a dispersão das famílias islâmicas… a economia destes (novos) estabelecimentos
baseou-se largamente no fornecimento de mão-de-obra, produtos alimentares e manufaturas
locais… Neste comércio (de marfim) as famílias islâmicas perderam o desempenho das
funções principais e limitaram-se ao exercício de atribuições intermediárias”.

Exemplos de abusos cometidos por representantes da Coroa

Creio ser chegada a ocasião oportuna para acentuar os proveitos meramente pessoais
que, durante largos anos, acumularam os sucessivos e sedentários feitores de Sofala,
utilizando para isso a atividade ambulante dos incansáveis “mulunguanas” que comerciavam
com os povos do interior. Sem fazer quaisquer comentários, porque seriam descabidos, irei
transcrever pormenores da descoberta de um caso bem concreto de peculato descarado e
institucionalizado, tão semelhante a outros existentes na administração portuguesa. Devem-se
esses pormenores ao grande historiador que foi Alexandre Lobato. Encontram-se desgarrados
em outro dos seus escritos sobre diferente temática (15): “… mas no fim tive a consolação
suprema de ter descoberto dados reais, concretos, sobre o fabuloso lucro do comércio de
Sofala e Moçambique. Descobri, na verdade, um segredo que o próprio D. João III ignorava, e
desconheciam também o seu Vedor Geral da Índia, e o seu Feitor da Casa da Índia. Um
segredo que me leva a dizer que era mentira que o negócio de Sofala e Moçambique desse o
prejuízo de que todos falavam. Foi também um problema policial “Os capitães vêm
carregados de ouro e eu só tenho despesas”, dizia o rei. Mas se era assim, porque não largava
Sofala, e porque era tanta a gente que lhe pedia ofícios para lá? Havia de existir uma razão. E
existia de facto. Era puramente uma questão de contabilidade, um simples problema de
técnica financeira: creditavam-se as despesas reais ao preço de venda das mercadorias que
ficavam de oito a dezassete vezes mais baratas. Ninguém ainda tinha visto isto, que é questão
340
basilar na história de Moçambique, mas foi preciso gastar muitos meses para o descobrir.
Ficam assim compreendidas toda a economia e toda a administração de uma época da história
moçambicana. E fui eu que as compreendi porque fiz a sua análise em mais de mil
documentos da Torre do Tombo, metade dos quais, inéditos, foram laboriosamente copiados à
mão, meses a fio”.
Mais uma vez Alexandre Lobato tem razão. Existe considerável documentação que
denuncia toda a espécie de artifícios a que recorriam os representantes reais para enriquecer o
mais rapidamente possível. Os procedimentos eram de tal modo gritantes e escandalosos que
historiadores como Malyn Newitt (16) inicia a sua conhecida história de Moçambique com
um prólogo em que escrutina o conteúdo de um documento escrito ao rei por João Velho,
feitor de Sofala. Tinha tomado posse do cargo em 1542. Dois anos depois, ocorreu a chegada
do novo capitão, D. Jorge Teles de Menezes, acompanhado pela sua comitiva. Os
procedimentos criminosos a que este fidalgo recorreu para conseguir em curto prazo acumular
fortuna, merecem ser marcados pelo ferrete da ignomína, merecem a proclamação
condenatória de todos aqueles que ainda conservam o respeito pelos valores morais.
Ainda sobre a impunidade e o descaramento dessa cleptocracia também merece louvor a
meticulosidade com que o Dr. Rui Miguel da Costa Pinto (17) estudou um documento inédito,
subscrito pelo jesuíta António Barros, entre 1643/6. Este sacerdote foi enviado a Moçambique
pelo vice-rei da Índia, para tratar do pagamento de 33 mil cruzados que eram devidos pelo
contrato dos “Rios de Cuama”: “Da devassa tirada ao feitor de então, António Moniz da
Fonseca, descobriu-se que este e o capitão da fortaleza furtaram 15 mil e tantos cruzados do
pagamento de 176 soldados inexistente. Apesar de nas suas despesas se encontrarem escritos
300 moios de cal a quatro cruzados e meio o moio, a serem utilizados nas obras de
fortificação da fortaleza, a verdade é que esta despesa nunca se efetuou. O feitor acabou por
ser preso em Goa, onde viria a falecer. Os feitores também recebiam os direitos dos pangaios
carregados de mantimentos, 10 cruzados dos mestres das embarcações que vinham da Índia e
os foros das casas da Ilha de Moçambique, sem serem lançados em receita”.
Outro estudioso da expansão ultramarina que teve a coragem de revelar estes latrocínios
foi o saudoso Prof. Luís Albuquerque (18). Na entrevista publicada em 1988 não hesita em
afirmar: “O que os nobres normalmente faziam era o seguinte: obtinham os direitos, da parte
do governador, para fazer viagens comerciais, e depois vendiam esses direitos, porque não
eram capazes de negociar diretamente. O que o nobre de meados do Séc. XVI fazia era,
normalmente, obter as licenças e, depois, vendê-las. O que fazia também era contrabando,
isso fazia… e ganhava muito dinheiro com isso. É uma aristocracia aburguesada, quer dizer,
uma aristocracia que pretende fazer da sua atuação na Índia uma atuação para enriquecer,
porque é uma aristocracia de segundo plano, uma nobreza baixa, de filhos segundos. Repare:
a coisa chegou ao ponto ignominioso de um nobre português escrever ao governador da Índia
a dizer-lhe mais ou menos isto: vai aí o meu filho, peço-lhe que venha de lá muito rico, que a
riqueza é muito mais importante que a fidalguia…”.
Um pouco à margem da conjuntura criticada por estes três historiadores, acrescentarei, a
título de louvor, o facto dos dois últimos terem dado o devido valor à paleografia. O primeiro
incluiu uma nota explicativa contendo as regras utilizadas na transcrição paleográfica do
documento escrito por António Barros. O segundo confessa: “Eu estudei Paleografia, sou de
origem Matemática mas dediquei-me à História, portanto levei isso a sério, estudei
Paleografia a sério. Eu leio qualquer documento, o que não tenho, talvez, é critérios
concordantes com todos…”.

***
341
Quanto à produção aurífera, Alexandre Lobato – baseado mais uma vez em
documentação portuguesa – conseguiu descobrir registos impressionantes (19) e que convém
relembrar porque, ao que se afigura, ainda não mereceram a atenção dos historiadores nem
mesmo do próprio E. A. Alpers (20). Lobato consultou mas não pode copiar os registos
aduaneiros de Goa e Diu. Considerou-os fundamentais para melhor se conhecer o destino que
se dava ao ouro de Moçambique. Encontrou elementos seguros sobre as suas entradas legais,
ano por ano, barco por barco e até mercador por mercador.
Em termos genéricos, o destino do ouro era bem conhecido: a totalidade da costa de
Cambaia e de Guzarate onde, juntamente com marfim, servia para adquirir os tecidos
exportados para Moçambique. Graças a esse ouro moçambicano, Diu veio a transformar-se
numa espécie de Casa da Moeda, exclusiva propriedade dos Jesuítas. Tinham a sua Missão na
cidade e a sua fundição na fortaleza. Davam apoio financeiro às restantes missões
pertencentes à Ordem, incluindo as da Etiópia. Recebiam o metal dos mercadores para efeitos
de cunhagem. Estes usavam as moedas para adquirir no interior quer tecidos acabados quer
fibras de algodão para tecelagem local. Sempre tiveram elas aceitação geral porque os
missionários aprenderam a preservar a sua altíssima qualidade. Acresce que jamais havia
circulação excessiva, simplesmente porque o ouro amoedado era usado na fabricação de joias
e outros ornamentos, tanto masculinos como femininos, segundo os costumes de cada casta,
profissão e estatuto social.

***
Os comerciantes de Guzarate, aproveitando o imenso Golfo de Cambaia, cedo
conseguiram estender a sua atividade desde a Arábia até Malaca, passando pela África
Oriental e até mesmo pelas ilhas do Índico. Tinham já criado um sistema flexível, mas
eficiente e disciplinado, de capitalismo mercantil. Este facto é tanto mais surpreendente
quanto é certo que, graças à documentação portuguesa, é possível inferir que os rígidos
preceitos religiosos do hinduísmo condicionavam quer a vida privada quer a atividade
profissional dos chamados “baneanes” (21). Uma dessas limitações deveria compreender a
proibição de executar tarefas como as relativas à pilotagem, ao carregamento e à defesa dos
barcos que eram da sua propriedade e de que tanto necessitava para transportar as
mercadorias. Felizmente que, na execução de tais tarefas, podiam admitir ao seu serviço
conterrâneos que, desgostosos com a intolerância das instituições bramânicas ou impelidos
por quaisquer outras razões, se haviam convertido ao islamismo.
Tentarei agora resumir os principais factos históricos que, a partir de 1700, culminaram
na decisão de expulsar os muzungos do todo o planalto aurífero. As repercussões dessa
expulsão prolongaram-se por quase dois séculos e podem considerar-se fundamentais para
melhor compreensão das indignadas manifestações patrióticas que, como será relatado
oportunamente, eclodiram em Portugal contra o célebre ultimatum britânico de 1890.
A autoridade dos monarcas – a seguir designados por Mutapas – foi mantida até 1629,
data em que um deles, denominado Mavura, celebrou um importante tratado com a Coroa
Portuguesa após ter solicitado e recebido auxílio militar para conseguir vencer a sangrenta
guerra de sucessão que, durante três anos, travou com seu meio-irmão Caparidze. Entre as
largas concessões feitas pelo vencedor está a supressão das humilhantes e consagradas
cerimónias de receção que até então obrigavam os dignitários e peticionários portugueses a ir
rastejando até aos pés dos Mutapas, desarmados, descalços, de cabeça descoberta, com os
olhos bem fixos no chão. O historiador afro-rodesiano S. I. Mudenge, representou este
cerimonial na capa da sua notável história política sobre o período decorrido entre 1400 e
1902 (22). Pois Mavura concedeu aos comerciantes e missionários plena liberdade de
circulação. Passaram a ser recebidos com os seus chapéus, as suas botas altas e o seu cinturão
342
armado e, ainda melhor, foram não só autorizados a sentar-se em cadeiras mas também
dispensados das formais saudações com palmas.
Interrompo a sequência cronológica e – para melhor compreensão de tão confusas
realidades históricas – regresso à década iniciada em 1640 e ao distante reino de Butua-Tórua,
nunca visitado pelos muzungos mas que sabiam existir numa longínqua região ocidental,
bastante fértil e saudável, rica em ouro e gado bovino, com pastos e chuvas suficientes.
Aconteceu ter ali eclodido uma guerra civil, ao que parece causada por rivalidades entre o
monarca e o seu irmão sénior que se encontrava ligado, por matrimónio, a um importante
mulunguana. Sabe-se que, durante o conflito, foram massacrados muitos súbditos
islamizados. O certo é que, após a sua deposição, em 1644, o monarca vencido buscou refúgio
em Manica e decidiu solicitar auxílio ao capitão de Sena e dos Rios de Cuama, o famoso
Sisnando Dias Bayão, cognominado “Mossuampassa”, que ganhara grande prestígio com a
pacificação dos povos da Morrumbala (23). A célebre expedição que este sertanejo veio a
organizar, com os seus próprios meios, é felizmente conhecida pela carta que, antes de partir,
escreveu em Sena no dia 22 julho 1644, carta que foi descoberta e estudada por C. R. Boxer
(24). Pelo seu conteúdo – e até pela caligrafia e pela assinatura final – se pode concluir que se
tratava de um terratenente com excecional integridade e capacidade. O próprio Boxer não lhe
poupou elogios: “O português que a maior distância penetrou no sertão da África Oriental,
antes da viagem do Dr. F. J. de Lacerda e Almeida”. E mais adiante: “um verdadeiro
conquistador e descobridor, do género Paulo Dias de Novais, em Angola; do jesuíta Bento de
Góis no Tibet, ou dos bandeirantes, seus contemporâneos, nos sertões do Brasil”.
Naturalmente que era visto com inveja e rancor por muitos muzungos. Com premonição
refere na carta “… e a inveja desses poucos que toda descarga com ânimo de tirar-me a
vida…”.
O certo é que conseguiu efetivamente reinvestir o legítimo monarca de Butua-Tórua, e
que lhe deixou, como proteção, uma pequena guarnição aquartelada em aringa fortificada. No
trajeto, aproveitou a oportunidade para se deter por algum tempo no reino de Teve onde
também reinvestiu o rei Peranha que veio a declarar vassalagem à Coroa Portuguesa. Foi este
rei que lhe concedeu, em recompensa, o enorme Prazo Cheringoma cuja história mereceu a
atenção de M. Newitt (25). Além disso, Peranha comprometeu-se a autorizar a livre
circulação dos muzungos.
A triste verdade é que acabaram por vencer os inimigos de S. D. Bayão. Assassinaram-
no, parece que por envenenamento, na feira do Luanze. Foi logo mandada retirar a guarnição
de Butua-Tórua. Por seu lado, o rei Peranha também reagiu como lhe competia, voltando a
expulsar os muzungos das suas terras.
A vitoriosa expedição de S. D. Bayão teve consideráveis repercussões. Um dos mais
poderosos dignitários da corte dos Mutapas, conhecido por Changamire Dombo, ponderou
atentamente as grandes riquezas e vantagens. Pouco depois, tomou a decisão de seguir o
exemplo de S. D. Bayão. Após uma conquista tão fácil como rápida, ali se dedicou com
empenho à fundação de um novo e verdadeiro Estado, denominado Rózuí, com capital em
Danangombe ou Dhlo-Dhlo. Mandou erguer amuralhados também de pedra solta mas bem
mais modestos dos que haviam sido anteriormente construídos em Khami, pelos vencidos
monarcas de Butua-Tórua. A existência deste Estado é autenticada, em simultâneo, pela
arqueologia, pelas tradições orais e pela documentação portuguesa.
Entretanto, o comportamento dos mais importantes muzungos dispersos por todo o
planalto evoluiu para formas cada vez mais violentas e gananciosas. D. Luís de Menezes,
Conde da Ericeira, descreveu-os assim (26): “Os primeiros moradores tinham repugnância em
viver dentro de lugares fechados, para não terem governos, nem Justiças, que atalhassem as
suas frequentes atrocidades. Foi a causa principal dos inimigos se fizessem senhores dos
343
Reinos de Manica, Mocaranga e Báruè, onde tínhamos muitas vilas povoadas de tantos e tão
poderosos moradores em terras, escravos e outros cabedais que cada um se supunha capaz de
ele só castigar os rebeldes que naquele tempo se nos opunham. Desta orgulhosa vaidade se
originou a ruína daquela conquista, porque a pouca subordinação e a pouca seriedade dos seus
habitadores (i.e. moradores) efeitos da inveja que nas possessões ultramarinas é ainda mais
insaciável que nestas, fizeram armar uns contra outros e que reciprocamente se destruíssem e
lembrassem aos seus bárbaros vizinhos o aproveitar-se da desunião que viam nos ânimos e
nas forças dos Portugueses que já então sem remédio começaram a conhecer a falta que lhes
faziam as muralhas dentro das quais não coubera antes a sua desordenada petulância. Estes
poucos que ficaram vivos se viram obrigados a abandonar tudo quanto possuíam no sertão e a
numerosa cafraria de que eram senhores, que fazia a sua mais sólida riqueza e era a força
daqueles homens avaros e facinorosos desertou toda e os descendentes dela são hoje os que
fazem a Vossa Majestade a guerra mais importante, unindo-se com os régulos pertencentes ao
trono de Monomutapa”.
A hostilidade de Changamire contra este tipo de muzungos iniciou-se décadas depois,
em 1684, quando o capitão-geral Caetano de Mello e Castro, decidiu organizar em Manica
uma expedição punitiva contra os mulunguanas que, a noroeste, tinham colonizado Maunguè,
como se encontra confirmado em documentação portuguesa. Essa expedição governamental
sofreu humilhante derrota.
O Changamire Rózui parece não ter tido qualquer intervenção nesta contenda. Só em
1693 tomou a decisão de atacar os muzungos, acedendo à solicitação de auxílio formulada
pelo Mutapa Nhacunembire. Logo de início mandou massacrar os habitantes da feira de
Dambarare. Perdeu algum tempo a intervir em outra das disputas de sucessão cronicamente
ocorridas entre os Mutapas. Pouco depois, em 1695, resolveu dar uma segunda lição aos
incorrigíveis “moradores”: mandou que fossem expulsos da feira de Manica. Os muzungos
compreenderam, por fim, que tinham como única solução o abandono do planalto e dos bens
que possuíam dentro e fora das seculares e numerosas feiras. Fixaram-se em definitivo nas
regiões próximas de Tete, Zumbo, Sena e Sofala, onde vieram a descobrir outros jazigos
auríferos.
Não merece dúvidas que, durante o Séc. XVIII, os Changamires souberam formar e
manter o mais poderoso estado africano ao sul do Zambeze. Recorreram a três métodos
básicos para consolidarem influência: concessão de terras, coleta de tributos e intervenção em
disputas de sucessão. A sua orgânica política, militar e económica tem sido objeto de estudos
profundos e sistemáticos, mormente efetuados por historiadores da antiga Rodésia do Sul,
estudos quase desconhecidos entre nós embora largamente baseados em documentação
portuguesa.
Em obra mais recente dediquei um capítulo à extensão para leste da influência Butua e
Rózui. Atingiram a região central de Moçambique, mais propriamente a que se estende desde
o rio Save até ao Pungué (27). Baseei-me de vestígios arqueológicos, tradições orais e
documentos portugueses. Impressionou-me sobremaneira o facto do reino de Butua, situado a
centenas de quilómetros, haver vendido grande número de bovinos à malograda expedição de
1572, chefiada por Francisco Barreto. Parte deles foram utilizados no reboque dos vinte e
cinco carroções que acompanharam a expedição ao longo da margem direita do Zambeze.
Foram descritos como enormes mas dóceis animais.
Devem-se aos historiadores Nicola Sutherland-Harris (28) e S. I. Gorerazvo Mudenge
(29) estudos sistemáticos e objetivos sobre esta temática. O primeiro designa o monarca pelo
seu epíteto laudatório: Mambo. Nega que o Estado tenha sido do tipo despótico. Defende
que, entre os súbditos, as causas da supremacia do Mambo tivessem sido mais de natureza
religiosa do que militar, porque se baseava em maior intimidade com os espíritos dos
344
antepassados-deuses e, sobretudo, em poderes mais latos e eficazes para o beneplácito da
chuva. O segundo é de opinião que o simples facto dos súbditos e vassalos poderem pagar
tributos sob a forma de ouro, marfim, tecidos e missangas, é suficiente para contrariar a
hipótese dos dirigentes políticos deterem o monopólio das transações comerciais.
Só os africanos indígenas podiam percorrer todas as regiões do Estado, na qualidade de
“mercadores volantes”, designados por va-sambadzi, termo aportuguesado para
“mussambases”. Muito antes da chegada lusíada também se tinha difundido por ali a
tecelagem do algodão. A documentação da época confirma o extremo valor concedido ao
gado bovino. Além da sua utilidade como alimento e forma de acumulação de riqueza, era
com frequência empregado no pagamento de compensações nupciais.
David Beach mostrou algum cepticismo sobre estas interpretações (30). Em seu
entender todos os ramos de produção e de comércio contribuíam para reforçar o poderio
militar rózui. Duvidou que, neste século, as comunidades políticas situadas a ocidente se
tivessem confederado com os Rózuis ou que conservassem com eles qualquer ligação com
objetivos bem definidos. Uma confirmação avulsa da autonomia local surgiu em 1780 quando
o monarca reinante se viu na contingência de enviar uma força armada para proteger a
construção pelos portugueses do novo forte de Manica.
Em outro dos seus trabalhos, o mesmo autor referindo-se à região mais meridional da
zona planáltica defende que no Séc. XVIII, ela foi conquistada por diversas dinastias que na
maioria, se encontravam associadas pelo totem moyo. Embora não tivessem fundado qualquer
estado, reconheciam vagamente a supremacia da dinastia Mutema de Sanga. Contudo essa
região não era desabitada. As populações mais antigas foram submetidas e incorporadas com
os seus cultos e dialetos nas comunidades recém formadas. Estas não faziam parte do Estado
Changamire. Encontravam-se separadas pelo Alto Save e mais tarde pela confederação Duma,
fora do domínio exercido pelos Rozuis.
Vamos aqui referir apenas a política externa seguida pelos Changamires no que mais
diretamente interessa à história de Moçambique. Deram notável apoio à feira do Zumbo,
embora tivessem, com rigor, proíbido quaisquer muzungos de voltarem a penetrar no planalto.
Pode mesmo afirmar-se que essa feira se transformou no principal centro mercantil que ligava
o distante Estado ao mundo ultramarino. Sabe-se que em 1743 expediram uma força de uns
dois mil guerreiros em socorro da dita feira. Quando estes foram mandados regressar por,
entretanto, a ameaça se não ter concretizado, resolveram, por sua livre vontade, assaltar e
roubar uma caravana com quem se tinham cruzado. Pois o Changamire reinante mobilizou de
imediato uma segunda força com ordens rigorosas para que fossem duramente castigados
esses elementos indisciplinados. Em 1772 outra expedição rózui conseguiu salvar o Zumbo de
um ataque dos Mutapas. Em 1780/1 voltaram a socorrer os assustados moradores com um
exército de 3000 homens.
Para a historiografia da presença portuguesa na região a montante de Tete e, até mesmo,
da economia geral de Moçambique, há que reconhecer a grande importância dos goeses que
se estabeleceram na feira do Zumbo. Muitos pertenciam à Ordem dos Dominicanos. Medite-
se neste trecho da “notícia” datada de 1 dezembro 1773 e subscrita por António de Figueiredo
(31): “… na vila do Zumbo que só é habitada de naturais de Goa… se fazem as expedições
para a Abutua das carregações de fazendas e naquelas minas se comutam as roupas e velório
(missangas) por ouro que é em muita quantidade. O rei senhor delas é o Changamira, e é este
o terror daquele sertão. Foi em outro tempo sujeito ao Monomutapa. Não permite que ao seu
domínio passe Cristão, e por isso do centro do seu reino tudo se ignora…”.
Contudo o golpe final foi desferido em 1838 pelos Angunes de Mzilicazi, também
hostilizados pelo sanguinário Chaca-Zulo. Estabeleceram-se definitivamente na região,
fundando o Estado dito Matabele (Ndebele). No sistema de castas imposto pelos novos
345
conquistadores, os outrora tão temidos e poderosos rózuis foram relegados para a última de
entre elas, à qual cabiam os trabalhos quer mais duros quer mais humildes. Em homenagem
ao título supremo do seu antigo soberano denominavam-se a si próprios abantu ba ca
Mambo. Mas os membros das outras castas designavam-nos pejorativamente por holi. Não
comiam, não bebiam nem se sentavam em sua companhia.
Até à efetiva ocupação europeia, alguns grupos rózuis continuaram a dominar a região
conhecida por Duma, banhada pelo curso superior do rio Save, entre os Vandaus e os Manicas
(32). Era frequentemente citada por Ngungunhane, para melhor demarcar o território de Gaza.
346
Bibliografia

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25) NEWITT, M. D. D., Idem.
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31) Fontes para a História, Geografia e Comércio de Moçambique – Séc. XVIII (1954) Lisboa, Junta de
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32) ANDRADA, J. C. Paiva d’ (1886). Relatório de uma Viagem às Terras do Changamira. Lisboa,
Imprensa Nacional.
347


ENSAIO INÉDITO
Uma Perspetiva Antropológica das Origens do Subdesenvolvimento
Africano
Univ. do Minho (Braga) 06/06/1984
Univ. Coimbra 18/04/1988

Como é sabido, a desagregação dos impérios coloniais em África deu origem a amplos
movimentos de reflexão e interpretação e, consequentemente, a uma avalanche esmagadora de
publicações das quais nos interessam em particular as subscritas por académicos ligados às
ciências humanas em geral e aos estudos africanos em especial.
Alguns desses académicos foram desenvolvendo, passo a passo, certas ideias ortodoxas,
de tendência nacionalista, que exaltavam a iniciativa e a participação dos africanos, ideias que
influenciaram por tempo significativo a investigação histórica e sociológica sobre o passado
das nações que foram emergindo. Chegaram a alcançar o prestígio de doutrinas bem
fundamentadas e, até, de resoluções coletivas como a tomada em 1965 no Congresso
Internacional de Historiadores Africanos (Dar-es-Salaam) segundo a qual “uma filosofia
africana da história que possa servir como uma libertação da experiência colonial deve
constituir preocupação vital de todos os historiadores da África” (1).
Uma escola filantrópica, de maior ou menor inspiração marxista, ignorando
completamente as rivalidades, os despotismos, as atrocidades, os genocídios e outras
peculiaridades endógenas, procurou apresentar as sociedades africanas como vítimas
indefesas da ganância imperialista e colonialista. Segundo essa escola, a conquista do
continente tinha sido fomentada pelas pressões internas exercidas por um capitalismo bem
amadurecido que exigia mercados protegidos, fontes seguras de matérias-primas e novas
oportunidades de investimento lucrativo oferecidas a indivíduos e instituições transbordantes
de iniciativas e de capitais. Mas, em boa verdade, a sorte das massas africanas não melhorara;
antes se agravara, porque os colonizadores mobilizaram a mão-de-obra nativa e exploraram as
riquezas naturais em seu proveito pessoal. Graças a essas atividades parasitárias, a Europa
conseguira alcançar um nível ímpar de prosperidade ao passo que a África se afundara numa
situação crónica de subdesenvolvimento (2).
Alguns plumitivos chegaram ao extremo de defender a existência de brilhantes
civilizações africanas inspiradas no Egito dinástico e, por conseguinte, fundadas
anteriormente às que floresceram na Grécia e na Itália. Devido ao prodigioso
desenvolvimento da tradição oral, os Africanos nunca teriam sentido a necessidade de
inventar qualquer forma de escrita. Aparentes regressões culturais teriam sido quer
exageradas por observadores vesgueados por preconceitos raciais quer devidas aos efeitos
calamitosos do tráfico escravista, das conquistas militares e, em suma, da exploração colonial
gananciosa (3).
Outros críticos do colonialismo tentaram contornar as duras realidades que dificultavam
a defesa dessas interpretações. Ardilosamente concentraram a sua atenção nos aspetos
puramente psicológicos: a marginalização ou degradação dos valores espirituais das culturas
africanas; os traumatismos que a cruel situação colonial provocara nas emoções e nas
mentalidades; as devastações anímicas causadas pelas segregações raciais praticadas pelas
privilegiadas minorias de colonos europeus e asiáticos (4). Embora sejamos, por inclinação
pessoal, mais sensíveis a este género de críticas, não deixamos de reconhecer que elas se
348
baseavam em fatores bastante subjetivos, imponderáveis e também demasiadamente dispersos
no tempo e no espaço para que pudessem ser objeto de investigações sistemáticas. Acresce
que qualquer estudante do passado sabe que bem piores discriminações oprimiam os povos do
continente africano, muito antes dos europeus terem completado a ocupação militar e
administrativa.
Em nossa opinião, estas e outras abordagens encontram-se enredadas em problemas de
difícil solução, afetadas como se encontram por noções apriorísticas, interpretações
distorcidas, ideologias políticas e afetividades emocionais. Não é para admirar que sejam
frequentemente acusadas de precário rigor científico. Não falta quem chegue ao ponto de
afirmar que elas em nada contribuíram para aperfeiçoar o nível da historiografia africana.
Para evitar tais obstáculos, há que deixar bem esclarecido que a perspetiva aqui
defendida reconhece, acima de tudo, a inevitabilidade da modernização, do progresso material
e da participação no mundo exterior, com a condição de mobilizar, seletiva e criteriosamente,
os superiores conhecimentos da civilização da técnica e da ciência aplicada.
As modernas pesquisas e datações arqueológicas vieram demonstrar que, através dos
milénios, as sociedades africanas sofreram múltiplas e graves privações. Pode, sem exagero,
afirmar-se que, na generalidade do continente, foram praticamente comuns aos inúmeros
grupos étnicos e linguísticos que o povoavam. Na costa oriental, os precoces contactos
mantidos com os Asiáticos desde os meados do primeiro milénio, pouco ou nada contribuíram
para a modernização tecnológica. Apenas conseguiram melhorar significativamente a situação
alimentar mercê da introdução de valiosas plantas. O mesmo aconteceu no resto do continente
quando se iniciaram os contactos com os Europeus e se adotaram as numerosas plantas
nutritivas oriundas do Novo Mundo.
Infelizmente, esses navegadores e comerciantes eram dominados pela preocupação de
obterem rápidos e compensadores proventos dos investimentos materiais e humanos exigidos
por essas longínquas e demoradas expedições que os tinham levado a atravessar os oceanos
em frágeis embarcações, ameaçados por constantes e temíveis perigos e destituições. Não
admira que, até à ocupação efetiva, não tivesse qualquer expressão o número de africanos que
puderam ascender a mais elevados níveis.
Na região onde hoje se situa Moçambique, abateu-se sobre as populações indígenas, na
segunda metade do Séc. XVIII e na primeira metade do Séc. XIX, o flagelo do tráfico de
escravos que transportou – sucessivamente para as ilhas do Índico e para as explorações
mineiras e açucareiras do Brasil – largas centenas de milhares de escravos. No Séc. XIX,
outra calamidade – esta de origem endógena – veio acumular-se aos malefícios da
escravatura: as grandes invasões dos Angunes que semearam a morte, a fome e a destruição
em largas regiões do sul, centro e leste da África.
Após a consolidação definitiva dos meios e dos agentes da potência colonizadora,
puderam ser controladas as antigas rivalidades étnicas e tribais. Pouco a pouco se organizou o
abate e a erradicação da imensa fauna bravia. Também se descobriram métodos e
medicamentos eficazes para eliminar as pragas e as doenças tropicais. Graças à dispersão das
novas plantas, a produção alimentar sofreu um aumento substancial. Depois de serem abertas
vias de comunicação, aproveitados os locais mais favoráveis ao sucesso das trocas comerciais,
construídas as primeiras infra-estruturas educativas e sanitárias, etc., etc., lentamente se
formou um tipo de sociedade que, por alguns sociólogos, foi classificada como “dualista”.
Por um lado, puderam expandir-se os elementos de uma civilização complexa, rica em
conhecimentos científicos, equipada com maquinismos e meios técnicos de produção e de
transporte, apta a empregar sistemas de organização administrativa e de exploração
económica em proveito próprio. Construíram centros urbanos com as respetivas ramificações,
349
implantaram uma economia monetária largamente baseada no comércio e nos investimentos
externos não só por o mercado interno ser anémico e a formação de capitais ser vagarosa, mas
também porque a satisfação dos gostos e das necessidades de consumo era excessivamente
dependente das importações. Embora constituíssem uma minoria numérica, dispunham de
enorme influência social e económica, detendo a quase totalidade das explorações agrárias,
das indústrias extrativas e transformadoras, das concentrações habitacionais e das atividades
relacionadas com a prestação de serviços. Exigiam-se qualificações profissionais de nível
mais ou menos elevado para se manter em funcionamento o setor moderno da economia e os
diversos serviços públicos e municipais.
Por outro lado, a grande massa rural continuou apegada aos valores tradicionais e
integrada nos seus grupos sociais e familiares. Os esforços de modernização depararam com a
passividade e até mesmo com a resistência dessas populações orientadas para a
autossuficiência e que só esporádica e superficialmente aproveitaram as possibilidades
oferecidas pelo contacto com os mercados e centros de trabalho e pelos investimentos em
infra-estruturas modernas. As características do meio tradicional não encorajavam a utilização
e manutenção dos conhecimentos exibidos pelos agentes colonizadores nem eram de molde a
desenvolver no seu âmago motivações sinceras e poderosas.
Com isto, não se pretende minimizar as culpas da potência colonizadora e dos seus
agentes por ser tão reduzida a proporção de africanos que, à data da independência, tinham
assimilado satisfatoriamente os conhecimentos da civilização da técnica e da ciência aplicada.
A posição do autor foi expressa com clareza em estudo assaz recente (5).
Terminamos esta introdução pedindo compreensão para o facto de irmos aqui tentar um
esforço de síntese baseado em observações diretas e em reflexões parcialmente colhidas em
escritos alheios. Porém, um conjunto de infelizes circunstâncias impediu a citação de tantos e
tão admiráveis autores que nos inspiraram e cujas ideias coincidiam com as nossas próprias:
em primeiro lugar, não ocorreu, na ocasião, a conveniência em elaborar a redentora ficha
bibliográfica; em segundo lugar, as circunstâncias que rodearam a patética descolização
portuguesa, levaram à desintegração de uma preciosa e saudosa biblioteca pessoal.
Dito isto, enumeraremos como se segue os obstáculos, predominantemente estruturais,
levantados pelo ambiente social e ecológico:
a) Adversidade do ambiente físico;
b) Primitivismo tecnológico;
c) Heterogeneidade étnica e linguística;
d) Dispersão do habitat;
e) Elevada taxa de natalidade;
f) Excessivas densidades rurais nas regiões mais favoráveis;
g) Casamento por lobolo – Exclusividade feminina na agricultura – A importância da
caça na afirmação masculina;
h) Estrutura familiar matricêntrica;
i) Solidariedade da família extensa;
j) Instrumentalização da mulher;
k) Crenças no sobrenatural: culto dos antepassados; magia; feitiçaria.
O tratamento, em variável profundidade, de cada um destes pontos levanta estimulantes
desafios a todos aqueles que ambicionam colaborar na formação de uma historiografia
africana merecedora de respeitabilidade científica e que remonte a sua penetração a épocas
que antecedem largamente a ocupação colonial efetiva.
350
Esperamos que este escrito não seja visto como indício da ambição de conquistar
notoriedade pessoal. O autor é apenas animado pelo sincero desejo de transmitir às gerações
mais novas as experiências colhidas em décadas de contacto com o rural africano que tanto
sente na sua carne e na sua mente os efeitos destrutivos da fome, da miséria, da doença e da
ignorância.

Adversidade do ambiente físico

Desde o Séc. XVI que a documentação portuguesa contém referências às condições


extremamente adversas que, na África subsahariana, o meio ambiente levantava à
sobrevivência dos seus habitantes. Entre os inconvenientes climáticos havia a destacar a
predominância, sobretudo nas zonas equatoriais e subequatoriais, de um clima quente e
húmido que favorecia o desenvolvimento de inúmeros agentes infeciosos, como insetos
vectores, helmintos, protozoários, fungos, vírus e bactérias. Alguns eram cosmopolitas como
os da malária, lepra, tuberculose, febre tifoide e disenteria amebiana. Outros eram de origem
exclusivamente africana como os da bilharziose, da ancilostomíase, das tripanossomíases e da
febre-amarela. Sem dúvida que se encontrava em África a mais letal concentração de doenças
malignas existente em todo o planeta. A sua dispersão era facilitada pelo nudismo das
populações que raramente se protegiam contra o contágio direto, fosse ele proveniente da
picada dos insetos ou da penetração através dos poros. A inexistência de calçado era
largamente responsável pela ancilostomíase, pela elefantíase e pela úlcera fagedénica. As
lavagens nas águas inquinadas de charcos e lagoas, disseminavam os flagelos da bilharziose e
das parasitoses intestinais. Os hábitos de dejeção à superfície, espalhando os agentes
infeciosos na proximidade das povoações, expunham os habitantes à morbilidade repetitiva.
Imensas florestas e savanas cobriam o continente e davam guarida a uma fauna
selvagem de ímpar variedade e omnipresença que ameaçava obsessivamente as populações,
os gados e os campos de cultivo. Algumas das doenças tropicais como as tripanossomíases, a
febre equina e a peste suína afetavam mortalmente os animais domésticos e impossibilitavam
a multiplicação do gado cavalar, asinino e porcino. Apesar de beneficiarem de bons pastos e
estarem libertas de glossinas, áreas consideráveis, como o interior do sul do Save, tornaram-se
de difícil aproveitamento devido à escassez de recursos hídricos. Quando a pluviosidade
diminuía, a capacidade pecuária de extensas regiões sofria drástica redução.
Pelo menos desde os meados do primeiro milénio d.C. foi a Costa Oriental Africana
conhecida e frequentada por navegadores oriundos da Indonésia, da Arábia, da Pérsia, da
Índia e até mesmo da China. Aceitamos a hipótese de os primeiros colonizadores indonésios
haverem encontrado no litoral africano condições de tal maneira adversas que os induziram a
preferir Madagascar como território mais favorável para efeitos de fixação definitiva. No
litoral setentrional de Moçambique deixaram pelo menos duas provas indiscutíveis da sua
passagem: a canoa de balanceiro e as plantas alimentares adiante mencionadas. Já referimos,
em outra obra, uma das provas da sua permanência temporária no litoral meridional: a
elefantíase endémica. Especificamente proveniente do sul da Ilha de Bornéu é também uma
variedade de arroz de sequeiro adotada pelos Bitongas de Inhambane. Entre estes se
encontraram, outrossim, provas da existência de uma hemoglobina anormal conhecida por
“D”, a qual, segundo os peritos, apenas na mesma ilha surge com relativa frequência (6).
Mais tarde, com os islamizados, ressaltaram igualmente as consequências do ambiente
ecológico hostil. Parece bem significativo o facto de a exportação aurífera do planalto apenas
ter levado à criação pré-gâmica de escassas e diminutas povoações e plantações na costa ao
351
sul do Rovuma: ilhas do Ibo, de Moçambique, de Angoche, de Chiluane e do Bazaruto;
“terras firmes” em Quelimane, Sofala, Mambone e Inhambane. Compreende-se a preferência
dos colonizadores asiáticos por grandes ilhas e penínsulas defensáveis como Quilua, Máfia,
Zanzibar, Pemba, Pate, Mombaça, Melinde, Lamu, onde fundaram sólidos e prósperos centros
urbanos. Neles, a inexistência de tripanossomíases permitiu a introdução, por via marítima, de
bovinos da espécie zebu.
Após 1500 chegou a vez dos Portugueses sofrerem a pavorosa morbilidade das doenças
tropicais. Foram elas e não a hostilidade dos aborígenes, que provocaram o fracasso da grande
expedição chefiada por Francisco Barreto em 1571/2. No Séc. XVIII, não foram melhor
sucedidos os esforços realizados por duas empresas privadas, com pessoal e com capitais
provenientes de potências europeias que marchavam na vanguarda da técnica e da ciência
aplicada. Na “3ª Nota Solta” desta Coletânea, encontram-se reunidas as causas que explicam
os fracassos sofridos, sobretudo na Baía de L. Marques, pelas custosas tentativas de ocupação
efetuadas pela Companhia Holandesa das Índias Orientais. Mais tarde, em 1777, teve
existência ainda mais precária a feitoria dirigida pelo coronel britânico William Bolts, em
nome da Companhia Asiática Austríaca de Trieste. Em 1828 as doenças tropicais debilitaram
e obrigaram à retirada, para as suas naturais terras altas e salubres do Drakensberg, os
próprios regimentos zulos mandados por Chaca com o objetivo de desbaratar as forças do
seus seus conterrâneos rivais que se haviam refugiado nas terras baixas e mórbidas do sul de
Moçambique. O mesmo ali aconteceu aos guerreiros suazis que tentaram auxiliar Mauheue,
durante a sangrenta guerra civil que, entre 1860/3, manteve com seu irmão Muzila. A Grã-
Bretanha – que seguia no topo da inovação tecnológica – viu destroçada pelas doenças
tropicais a expedição organizada em 1880, com o melhor equipamento da época, pelo capitão
Phipson-Wybrants, que tinha como simples objetivo apurar a navegabilidade do rio Save. O
próprio médico da expedição veio a falecer de tétano.
Bastam estes exemplos para se concluir que o povoamento do arcaico continente
africano deve ser considerado como um dos maiores triunfos da espécie humana sobre a
adversidade de um ambiente físico altamente patogénico. É nossa convicção que ele originou,
por milenária seleção natural, as excecionais qualidades (robustez, vitalidade, resistência à
dor, capacidade de adaptação, etc.) que, na sua generalidade, vieram a caracterizar as
populações autótones. São essas qualidades que explicam a antiquíssima preferência por
escravos africanos nas civilizações pré-clássicas e clássicas do norte de África, do Médio
Oriente e de outras regiões longínquas. Foram também eles que povoaram as Ilhas do Índico e
do Atlântico. Após o advento dos europeus ao Novo Continente, substituíram com vantagem
os Ameríndios que não resistiram às doenças introduzidas pelos conquistadores europeus.
O costume da captura ou compra de escravos africanos pelos navegadores e
comerciantes árabes omanitas antecedeu em pelo menos oito séculos a chegada de Vasco da
Gama. Em meados do Séc. IX, Oman possuía uma frota de aproximadamente trezentas
embarcações de guerra (7). Tudo indica que esse país tenha sido o fornecedor dos milhares de
escravos oriundos da África Oriental, escolhidos pela sua maior resistência à malária, para
serem empregados por latifundiários de Basra na recuperação das terras alagadas e salgadas
do Chat-el-Arab, terras onde pretendiam efetuar plantações de cana-de-açúcar. Foram esses
maltratados escravos que vieram a formar o núcleo duro da famosa e sanguinária revolta que
se prolongou de 869 a 883 d.C. (8).
A maior imunidade dos Africanos contra a malária foi atribuída a uma adaptação
genética baseada na prevalência, respetivamente, dos grupos sanguíneos O e B e dos
portadores de células ditas fauciformes. Podem apresentar-se mais outras adaptações
genéticas cientificamente comprovadas: a acumulação de melanina na epiderme; a raridade da
osteoporose entre as mulheres; a resistência contra as doenças das vias respiratórias
352
superiores. Os indivíduos de pele sombria, quando sujeitos a condições de intensa exposição à
irradiação ultravioleta não sofrem dos eritemas provocados por queimaduras solares nem dos
temíveis melanomas cancerígenos. Mas a melanina exerce uma outra função vital: a bio
síntese de vitamina D em quantidade ótima para assegurar a saúde e o bem-estar. Nas
condições tropicais, as epidermes escuras apenas sintetizam 5% a 10% do total da vitamina D
que as epidermes claras deixam sintetizar em condições idênticas de exposição solar. Tal
explica a virtual ausência, entre os negroides, de ossificações, cálculos renais, doenças renais
secundárias e outros sintomas de hipervitaminose D, doenças que frequentemente afetam os
europeus com longa permanência nos Trópicos (9).
No que concerne a invulgar resistência física e anímica, será suficiente mencionar
alguns testemunhos da maior credibilidade.
O primeiro foi prestado por Lacerda e Almeida, professor da Universidade de Coimbra
– depois capitão-general de Moçambique – no relato que apresentou sobre a subida do rio
Zambeze até Tete, no ano de 1797. Nele comparou, frequentemente, as condições deste
grande rio com as dos rios brasileiros onde, na demarcação das fronteiras, navegara muitos
milhares de quilómetros e atravessara mais de cento e cinquenta “medonhas cataratas”.
Afirmou, acerca dos remadores moçambicanos: “eles são homens fortíssimos, robustos e de
uma paciência e sofrimentos incríveis”. E interrogou-se:
“Quem poderá resistir a um trabalho de dias (aliás trinta e oito dias ativos) e
violentíssimo como se pode inferir do que tenho dito, expostos aos intensos ardores do sol,
nus e sem chapéu na cabeça? Eles contudo o sofrem sem murmurar, e também as bordoadas
(i.e. o embate das pesadas canoas monóxilas contra as rochas) com ânimo leve, cantando e
comendo milho cru apenas inchado na água fria, em que o deitam de molho por algum tempo”
(10).
O segundo remonta à década de 1840 e é da autoria do cientista francês Eugéne de
Frobervile, quando estudou cerca de trezentos escravos macuas de Moçambique, empregados
nas plantações de cana-de-açúcar existentes nas Ilhas Maurícia e Reunião. Ficou surpreendido
com o facto de jamais haver encontrado entre eles casos de “nostalgia” quando era certo que
essa “doença moral”, como lhe chamou, era muito comum entre os Malgaches (de
Madagáscar), escravos como eles e vivendo em idênticas condições. E prossegue:
“A sensibilidade nervosa dos Africanos é também proporcionalmente pouco marcada.
Aguentam com inaudito sangue-frio as intervenções cirúrgicas para nós mais dolorosas. Um
golpe, uma picada, um arranhão – que faz estremecer e gritar um Hindu, um Malaio, um
creolo – deixa-os impassíveis e silenciosos. Nas minhas operações de moldagem (e foram
sessenta) tive muito frequentemente a ocasião de observar a calma com que deixavam
arrancar cabelos e barbas, com que permitiam que o gesso quase os sufocasse. Alguns
adormeciam profundamente enquanto lhes moldava a face” (11).
O terceiro é constituído pelos casos concretos presenciados e narrados por Fernando
Barros, médico da Sena Sugar Estates, sobressaindo o do doente cujo terço inferior da coxa
fora amputado por um crocodilo e do preso que decepou os cinco dedos do pé para poder
“descansar” no hospital. O mesmo médico conclui “A insensibilidade dos pretos à dor tem
sido claramente demonstrada, dúzias e dúzias de vezes, durante a nossa vida clínica… Temos
feito muitas amputações de dedos a trabalhadores, sem qualquer anestesia e sem que os
sinistrados manifestassem qualquer sinal de incómodo marcado” (12).
A hostilidade do ambiente ecológico explica a grande importância que a orografia teve
na história do povoamento humano na região da África Oriental onde hoje se situa
Moçambique. A reconstituição das rotas migratórias, possibilitada pela arqueologia,
linguística e recolha sistemática de tradições orais, fundamenta a hipótese de travessias
353
apressadas por terras baixas, insalubres e inóspitas, intercaladas com períodos de maior ou
menor sedentarização e recuperação em maciços montanhosos que ofereciam apreciáveis
vantagens: temperaturas amenas, pluviosidade suficiente, águas correntes e potáveis, vales e
pastos de relativa fertilidade, rarefação da fauna bravia, melhor defesa contra inimigos, menor
incidência de doenças tropicais, sobretudo de tripanossomíases. Daí a sua importância na
génese dos mitos de origem desses grupos posteriormente forçados a emigrar por pressões
demográficas e por exaustão dos recursos naturais. Mesmo nesses planaltos se verificaram
grandes fomes em pleno Séc. XX, como a de 1949, ocorrida no Malawi e estudada por Megan
Vaughan (13). Ao sul, no vale do Zambeze (1917/19) a uma fome de trágicas dimensões veio
juntar-se o flagelo das pestes, das inundações e das guerras que, no seu conjunto, provocaram
o morticínio ou a deslocação de dois terços da população (14). Gerhard Liesegang apresentou
uma compilação, sistemática e aterradora, sobre estas e muitas outras catástrofes ocorridas em
Moçambique, entre 1700 e 1975 (15).
Nos milénios que precederam os contactos com o exterior, devia ser indubitavelmente
mais grave a situação alimentar da generalidade da população. Na verdade, o número de
plantas nutritivas era insignificante antes da introdução das espécies oriundas da Ásia e das
Américas (16). Mas essas novas plantas apenas em algumas zonas desencadearam conjunturas
de abundância: de um modo geral continuaram a grassar as situações de fome endémica
porque os cultivadores não empregavam métodos eficazes que mantivessem a fertilidade do
solo e das sementes ou que produzissem excedentes e conservassem a produção. Em muitos
grupos étnicos a simples plantação de árvores frutíferas exóticas constituía um tabu cuja
violação implicava a morte (17). Também se não conheciam métodos eficientes de
conservação de carnes, sementes ou forragens para gado. Esta carência era agravada pela
alternância de uma estação chuvosa com outra seca, ficando assim a abundância dos pastos
limitada a uma parte mínima do ano.

Primitivismo tecnológico

Segundo J. K. Galbraith quando, durante a década de 1950, foi ganhando ímpeto a


preocupação pelas miseráveis condições de vida que afligiam os povos ditos
subdesenvolvidos, não tardou a surgir, nos países ricos e industrializados, a tendência para
sonegar algumas das suas causas naturais mais evidentes como eram as baseadas no meio
ecológico, na filiação étnica ou na explosão demográfica (18).
Infelizmente ainda prevalece essa atitude nada científica, sem dúvida radicada ou em
oportunismos de natureza política, económica e até académica ou no receio de ferir os
melindres dos dirigentes africanos. Por exemplo, continua a ser esquecida, de modo
deliberado, a estagnação tecnológica em que, durante largos milénios, se mantiveram as
populações da África subsahariana. Como também não são suficientemente acentuadas as
implicações derivadas do facto de nunca ali haver sido descoberto e usado qualquer sistema
de escrita.
Está no modesto escopo desta síntese não só apresentar algumas hipóteses que
expliquem aquele retardo tecnológico, mas sobretudo enunciar as suas principais
manifestações e consequências. Lembraremos, desde já, que se pode atribuir a doenças como
as tripanossomíases e a febre equina a dificuldade ou mesmo impossibilidade de mobilização
eficiente da energia animal, na qual se basearam tantas civilizações da antiguidade. Como
explicar, porém, que nas regiões do sudeste da África, propícias à criação de bovinos, não se
tenha inventado qualquer tipo de arado ou de veículo com rodados, nem se haja feito o
354
aproveitamento dos estrumes para adubação, nem se tenha adotado a antiquíssima nora
mediterrânea? A inexistência de veículos rodados ou mesmo de simples carrinhos-de-mão
tornou, por sua vez, dispensável a abertura de estradas ou mesmo de picadas e carreiros de-pé-
posto e, naturalmente, a construção de pontes. Para cúmulo, não foram domesticados para
efeitos de carga e tração, quaisquer dos animais selvagens que abundavam em África e que
beneficiavam de imunidades naturais contra as epizootias, tais como elefantes, búfalos,
zebras, etc.
Foi no ramo da metalurgia que o retardo teve implicações mais profundas. O
aproveitamento utilitário dos metais caracterizou-se pela sua demasiada morosidade. Devido à
transição quase abruta da Idade da Pedra para a Idade do Ferro, os povos africanos ficaram
privados, durante pelo menos cinco milénios, daqueles poderosos estímulos que, no Próximo
e no Médio Oriente, deram origem às primeiras grandes civilizações. Recordemos como o
trabalho de cobre, por si só, levou algo como dois mil anos a ser aperfeiçoado e vulgarizado
desde o Mar Egeu até ao Mar Cáspio. O mesmo aconteceu com a olaria rodada e sem
pinturas, produzida manualmente em série, graças aos tornos acionados com os pés. E
também com os têxteis fabricados em engenhosos teares verticais. E por fim com as obras de
arte que animavam o mercado e instigavam o gosto estético.
Nas primeiras civilizações, esses produtos manufaturados eram apetecidos pela sua
eficácia, resistência, duração e também beleza. Cedo foram aproveitados por negociantes
peritos no conhecimento dos grandes mercados consumidores. Como consequência, surgiu a
escrita para medir e recordar as transações, surgiu a mobilização da energia animal para
reboque de veículos rodados, surgiram embarcações a remos e à vela proporcionando melhor
segurança e maior capacidade de carga. Surgiram, enfim, os centros urbanos valorizados com
palácios e templos de onde monarcas e sacerdotes, sob proteções divinas, vigiavam o respeito
pela Lei e pela Ordem. Como na restante Humanidade, as cobiças e os ferozes instintos
iniciaram o triste cortejo de destruições e carnificinas. Mas, como sempre, foram
desenvolvidos melhoramentos tecnológicos com o objetivo de ganhar vantagens nos conflitos
bélicos.
Toda esta evolução foi acelerada pela descoberta do bronze, com superior resistência e
com mais fácil fundição. A procura do competente estanho (e também de outros metais) levou
os Fenícios à Península Ibérica, na época em que se descobriu o ferro na Anatólia, cerca de
mil anos a.C. Este desenvolvimento progressivo foi baseado na satisfatória produção e
conservação dos excedentes alimentares.
Na sua vida quotidiana, os povos subsaharianos dispersos desde o litoral até aos
recônditos do interior, conservaram-se afastados dessa revolução tecnológica. Quer as canoas
de balanceiro, de origem indonésia, quer os caíques de vela triangular, trazidos pelos Árabes,
não foram utilizados para desenvolver o comércio por navegação de cabotagem, que
transportasse maiores e mais diversificadas cargas e evitasse os agrestes, inseguros e longos
percursos terrestres. Nenhuma melhoria técnica beneficiou os teares verticais introduzidos
pelos Asiáticos em conjunto com a cultura algodoeira, sabendo-se, pelo contrário, que foram
substituídos por teares rasteiros de difícil manejo e inferior produtividade. A roldana de içar e
a roda de oleiro nunca se difundiram, apesar de conhecidas em alguns pontos do litoral. A
tesoura, a tenaz, a serra e outros utensílios que remontam ao Egito dinástico, também não
foram adotados. Viviam em palhotas de pau-a-pique reforçado com argila, cuja madeira era
depressa consumida por insetos e roedores e que abrigava outros parasitas. Não adotaram o
tijolo, mesmo seco ao sol, que revolucionou a habitação e a construção em tantas civilizações
da antiguidade. Nem, para os mesmos efeitos, essa argamassa feita com o calcário das
conchas marinhas que permitiu aos islamizados erguer, no litoral norte, estruturas de elevada
resistência. Técnicas milenárias, como a irrigação, a rotação de culturas e a seleção de
355
sementes, eram desconhecidas ou, quando muito, aplicadas de modo empírico e sem
sistematização. As queimadas, usadas de modo incauto para eliminar a cobertura vegetal,
facilitar a visão e o abate da caça e, enfim, estimular o crescimento de capins de curta
duração, contribuíram para suprimir as florestas e os detritos que protegiam o solo e lhe
forneciam matéria orgânica. Esta destruição conduziu a lentas mas implacáveis alterações do
regime pluvial, à diminuição dos caudais, ao aumento das savanas e à própria desertificação.
É imensa a documentação portuguesa que remonta ao início dos Descobrimentos e que
permite fundamentar as observações supracitadas. A título de exemplo apenas se irá
transcrever o relato seguinte, de 6 novembro 1829, subscrito pelo coronel P. J. Miguel de
Brito, capitão-general de Moçambique (19):
“Há aqui muito pouco gado vacum, e não há lanígero, cavalar e muar; mas há nas terras
firmes bastantes jumentos, de que os habitantes não fazem uso algum; não há carros, nem
arados, nem outros utensílios de lavoura; nem aqueles que servem para conduções de géneros
ou matérias pesadas; pelo que todos os edifícios tanto reais como particulares que se
constroem, vão muito devagar e com muita despesa, pois a pedra, a cal, a areia, etc. tudo é
conduzido à cabeça de escravos! Não se faz uso da telha nem do tijolo, as melhores casas e
outros edifícios são cobertas de um terraço de pedras sobre vigas, o que os faz mui pesados e
dispendiosos. Há mui poucos calafates e carpinteiros da ribeira e ainda há menos pedreiros e
carpinteiros de casas; os que há são imperfeitos e quase todos Banianes ou Moiros; não há
canteiros, cabouqueiros, serradores, oleiros, funileiros, curtidores de coiro, surradores, e
outros ofícios precisos na sociedade; não há artista algum pintor, escultor, ou de outras artes
liberais. Em consequência tenho usado de uma prudente e discreta persuasão para dispor os
ânimos destes habitantes para darem princípio ao uso de algumas cousas que lhes são
desconhecidas, e de outras que não o sendo têm deixado de usar delas por desleixo e por
preguiça. Também os tenho animado com o exemplo, pois já mandei fazer carros, padiolas,
carrinhos de mão e outros utensílios para as conduções; mandei preparar um terreno para
exercício da tropa… Mandei abrir uma estrada militar no distrito de Mossuril para cobrir e
defender as fazendas dos moradores mais entranhados no sertão daquele distrito, dos roubos e
devastações que fazem os régulos e os cafres limítrofes; vou mandar fazer um forno para ver
se posso conseguir que lhe faça telha e tijolo e já mandei vir de Quelimane uma porção destes
dois materiais, finalmente vou fazendo o que posso para melhorar e civilizar este país, que
parece mais uma possessão de Banianes, Árabes e Moiros do que de Portugueses”.
Assim, as populações mantinham-se cerca de 1900 – quando foi iniciado o período
colonial propriamente dito – em níveis de desenvolvimento tecnológico pouco superiores aos
que possuíam nos meados do primeiro milénio d.C.

Heterogeneidade étnica e linguística

Na terminologia aplicável à diversa escala de grandeza das comunidades orgânicas,


empregamos o termo “clã” para esses reduzidos e remotos agregados de base territorial e
genealógica, isto é, cujos membros habitavam uma área até certo ponto delimitada e, enfim,
reconheciam coletivamente a sua descendência de genearcas recordados pela tradição.
Distinguiam-se de outros clãs por epítetos laudatórios, por cemitérios privativos, por marcas e
mutilações corpóreas, por tabus e rituais negativos e evitativos, normalmente associados à
alimentação. Contudo, as regras exogâmicas traziam, para o interior desse território,
indivíduos de outros clãs, aos quais se poderiam agregar parentes e amigos da mesma origem,
vítimas de ostracismo, litígios inter-familiares e estigmas sociais de diversa ordem, como as
356
terríveis e frequentes acusações de feitiçaria a que oportunamente aludiremos. Eram essas
situações de rejeição que explicavam um costume mal conhecido mas de inegável significado
histórico: a completa rotura do indivíduo com os seus reais laços de consanguinidade, seguida
de ulterior integração, ritual e formalizada, em outro clã da sua preferência. Naturalmente que
também teve importância decisiva a caça, pastos, terras aráveis e outros recursos naturais.
A composição e as fronteiras dos antigos clãs tinham, por conseguinte, tendência para
se alargarem por crescimento demográfico natural ou por agregação pacífica e autorizada de
elementos alheios. Para esse processo de ampliação territorial e populacional contribuiu,
decisivamente, a personalidade de chefes prestigiados, tão justos como generosos, tão
prudentes como dinâmicos. Consumada a integração de um número significativo de
elementos díspares, foram surgindo unidades políticas mais vastas, heterogéneas e algo
estratificadas que poderemos designar por “tribos”, onde a aristocracia dirigente continuava a
ser formada por núcleos dos descendentes diretos do ancestral fundador. É importante frisar
que os chefes dirigiam mais unidades de lealdade comum do que de território comum. Tal
estrutura explica quer a segmentação de tribos segundo clivagens surgidas em disputas pelo
poder, quer os frequentes e bem planeados movimentos migratórios de tribos inteiras em
busca de recursos naturais abundantes, regimes fluviais mais favoráveis e regiões periféricas
suficientemente afastadas de inimigos poderosos. Temos defendido que essas comunidades de
tipo tribal se distinguiam e definiam por fatores de ordem geográfica, económica, político-
militar e mágico-religiosa (20). Sabe-se como elas eram numerosas dentro dos mesmos
grupos culturais e linguísticos. A título de exemplo, recorde-se que antes dos esforços de
unificação empreendidos por Dinguisuaio e Chaca, na viragem do Séc. XVII para o Séc.
XVIII d.C., os Angunes – popularmente conhecidos por Zulos – se dividiam em mais de
duzentas tribos independentes. Entre 1700 e 1900 os Chonas que povoavam o planalto entre o
Zambeze e o Alto Limpopo também se encontravam divididos em cerca de duas centenas de
tribos. Um exemplo gritante dos extremos a que podiam chegar estas entranhadas rivalidades
inter-tribais, ocorreu na principal praça pública de Lourenço Marques, no dia 23 agosto 1885.
Para prestarem homenagem ao novo governador Azevedo e Vasconcelos, concentraram-se no
lugar milhares de guerreiros dos régulos Chirinda, Zixaxa, Mahota e Manhiça.
Inesperadamente se envolveram em tão violentos confrontos internos que provocaram elevado
número de mortos e feridos.
Modernas pesquisas arqueológicas, como as realizadas no Zimbábuè de Manicueni (21)
vieram mostrar que muito antes de 1500 os navegadores e comerciantes asiáticos haviam
criado incitamentos económicos que encorajaram a formação de unidades políticas que os
primeiros portugueses não hesitaram em classificar como “reinos”. Essa maior complexidade
assumiu aspetos multifacéticos. O território “nacional” (expressão usada sem hesitações pelo
próprio H. A. Junod, em relação às comunidades tsongas) aumentou consideravelmente em
extensão, quer pelo recurso à força armada na conquista ou submissão de tribos vizinhas, quer
pela lenta mas segura expansão demográfica interna. O poder centralizado, de características
monárquicas, foi reforçado por vários processos: acumulação de excedentes por meio de
tributos e oferendas; exigência de direitos de trânsito; mineração e fundição de ferro, ouro e
cobre; apropriação de espólios de guerra, sobretudo mulheres, adolescentes e gado bovino;
aumento das vendas de marfim e outros despojos destinados à exportação; manufatura de
produtos para o mercado interno e externo. Os artigos importados (tecidos, missangas, argolas
de latão, armas de fogo, pólvora e chumbo, etc.) premiavam a lealdade, gratificavam os
guerreiros e captavam novos aderentes. A minoria dirigente tentou e não raro conseguiu: a)
Manter a harmonia e a cooperação entre crescentes massas populacionais; b) Tomar decisões
sobre importantes movimentos migratórios; c) Receber hóspedes, delegações, litigantes,
súbditos necessitados; d) Organizar projetos coletivos como a construção de povoações
357
fortificadas; e) Proporcionar satisfatórias condições de trabalho aos artesãos, comerciantes,
caçadores profissionais e outros especializados.
Este “alargamento de escala” raramente se processou em condições pacíficas. Pelo
contrário, deu origem a um cortejo interminável de conflitos bélicos, com múltiplas causas:
sucessões, segmentações, controlo das rotas comerciais e das regiões de caça grossa,
incursões para captura de escravos destinados à exportação, aproveitamento de rivalidades
históricas, etc. Não raro esses reinos reconheciam existir entre si laços de identidade étnica e
linguística, fundamentados em longínquas origens comuns ou desenvolvidos em coincidência
durante o processo de adaptação aos mesmos ambientes ecológicos e ao mesmo tipo de
contactos com o mundo exterior.
No imenso acervo da documentação portuguesa dispersa por tantos arquivos públicos e
privados, podem encontrar-se inúmeras evidências atestando a situação acima resumida. Mais
uma vez, a título de exemplo, ocorre mencionar um caso que merece atento estudo devido ao
excecional rigor e pormenor com que foram relatadas as complexas, exigentes e demoradas
formalidades rituais que havia a cumprir nas travessias fronteiriças duma para outra
comunidade política. Esteve envolvido nessa viagem, em setembro 1827, um grupo de
entidades públicas e privadas, chefiado pelo próprio governador de Sofala, grupo empenhado
em apurar as potencialidades da exploração mineira conhecida por Inhaoxe, situada perto do
monte Xiluvo, cinco quilómetros a leste do meridiano 34, junto da atual via férrea Beira-
Zimbábuè (22). Como é sobejamente conhecido, durante a partilha da África pelas diversas
potências europeias, as fronteiras de cada colónia foram traçadas de modo inteiramente
arbitrário, à margem da vontade e dos interesses das comunidades nativas. Não admira que só
paulatinamente se fossem esbatendo esses nacionalismos tribais e estaduais de antanho.
Classificados como “grupos e subgrupos étnicos e linguísticos” continuaram a sobreviver e a
manter a sua identidade os súbditos de reinos com existência comprovadamente secular:
Nhaca, Tembe, Mazuaia, Bila, Manhisse, Nuanati, Macuácua, Cambana, Mucumbi, Dzivi,
Binguana, Vilanculo, Chaúque, Quissanga, Danda, Teve, Manica, Báruè, Tauara, Manganja,
Cheua, Massingire, Lapone, Imbamela, Marrevone, Maurussa, Mirace, Angoche, Mataca,
Metarica, etc. Ignorando a história pré-colonial, não falta quem os considere como simples
“apelidos”.
A administração colonial, mesmo que fosse orientada por firme vontade política nesse
sentido, jamais dispôs de recursos suficientes para minimizar os efeitos dos sentimentos
divisionistas derivados desses antigos e múltiplos micro patriotismos localizados e
centrifugadores e, muito menos, para desenvolver em sua substituição uma consciência
nacional moçambicana.

Dispersão do habitat

Numerosos exemplos históricos demonstram que os habitantes da região onde se situa


Moçambique, foram capazes de se agrupar em grandes povoações organizadas. As
investigações arqueológicas revelam que tais exemplos remontam a épocas que coincidem
com a Idade Média europeia, como os zimbábuès chonas-carangas de que restam mais de 150
amuralhados de pedra solta, no interior dos quais viviam os dirigentes e seus familiares,
enquanto pelo exterior se dispersavam milhares de famílias de inferior estatuto. A
documentação portuguesa e as pesquisas antropológicas indicam que Ajauas, Chopes,
Angunes e Tsongas viveram (pelo menos temporariamente) em grandes concentrações
viáveis. Também albergavam populações densas as grandes aringas fortificadas que
358
proliferaram no centro do país e serviram de suporte eficaz ao regime dos Prazos da Coroa e a
repúblicas independentes como a da Maganja da Costa.
Porém, ao contrário do que aconteceu após o colapso do Império Romano, em que
simples explorações agrárias, entrepostos comerciais e aquartelamentos militares deram
origem a centros urbanos de maior ou menor importância, todos os antigos zimbábuès
acabaram por ser abandonados, transportando-se os dirigentes e seus súbditos para outros
locais. Além disso, essas aglomerações constituíam a exceção e não a regra. Uma vez
eliminadas as condições de insegurança que tinham levado os chefes a concentrarem a sua
população, logo se verificou o regresso ao habitat tradicional de pequenas povoações
familiares circundadas por pastagens e campos de cultivo que exigiam constante vigilância.
Como explicar o desinteresse por estas tentativas incipientes de urbanização? É que o
habitat disperso se harmonizava perfeitamente com a agricultura itinerante, a manutenção dos
gados em pastos extensivos, a inexistência ou falta de aproveitamento da energia animal, o
rápido consumo dos recursos vegetais e as destruições provocadas pela omnipresente macro e
micro fauna selvagem. De facto, o nomadismo agrário para ser praticado em condições
ótimas, obrigava o rural a ter à sua disposição uma área cinco a oito vezes superior àquela que
efetivamente cultivava cada ano. A parcela era amanhada durante três a cinco anos e deixada
em pousio para efeitos de regeneração natural durante 15 a 25 anos. Nas zonas de gado
bovino e com pastos naturais, essa área aumentava para dois a seis hectares por cada animal.
O transporte de lenha, água, colheitas, etc. era feito à cabeça, por norma pelas mulheres
que, como é óbvio, não escondiam o seu desagrado quando os percursos a efetuar se tornavam
excessivos. Recordemos que entre os povos matricêntricos dispunham elas de meios de
pressão bastante convincentes para poderem impor a sua vontade. Os terrenos de pastagem
também não podiam ser longínquos visto as condições de insegurança obrigarem à recolha
noturna dos gados nos currais sitos no interior das povoações. Também exigia proximidade a
vigilância dos campos de cultivo, indispensável para manter afastados animais predatórios
como pássaros, javalis, símios, etc.

Elevada taxa de natalidade

Naturalmente que o valor atribuído à propagação da espécie tinha como função


compensar a elevadíssima mortalidade provocada pelos fatores já referidos. Sem dúvida que é
nesse primordial padrão cultural que se radicavam atitudes, costumes e práticas estranhas à
chamada “cultura ocidental” como a poligamia, a educação sexual ministrada nas escolas de
iniciação, as danças representando sem rebuço provocações eróticas, o estigma que vitimava
os homens e as mulheres incapazes de fecundar e gerar, a indiferença pela virgindade da
noiva e até mesmo o desfloramento artificial, o empréstimo e a troca de mulheres, a herança
da capacidade reprodutora da viúva pela patrilinhagem do falecido, a admissão de
indemnizações para resolução dos casos de adultério da esposa, a natural aceitação das
crianças provenientes das ligações extra-matrimoniais da mulher, o recurso a fecundadores no
caso de se considerar indispensável a propagação para efeitos de herança e sucessão, etc. Por
tal ultrapassar o escopo desta comunicação, não iremos desenvolver esses aspetos bem
estudados pela antropologia cultural, mas apenas acentuar que a suprema importância
atribuída pelos africanos à capacidade reprodutora se manteve inalterada, apesar do advento
da civilização técnica e científica ter conseguido reduzir drasticamente as condições de perigo
e insegurança outrora responsáveis pela alta mortalidade.
359
Foi essa elevada natalidade que conseguiu compensar os temíveis custos humanos
provenientes de duas calamidades já referidas que, nos séculos XVIII e XIX, se abateram
sobre a quase totalidade das populações do território que hoje constitui Moçambique: o tráfico
escravista e as invasões angunes. É forçoso reconhecer quão profundas e generalizadas eram
as carências herdadas dos tempos pré-coloniais, quão perigosas eram as novas doenças
introduzidas por europeus e asiáticos, quão lentos eram os avanços da medicina tropical, quão
difíceis de mobilizar eram os recursos em dinheiro e pessoal qualificado, indispensáveis à
assistência sanitária. Nesta conjuntura, não surpreende que, no primeiro quartel do presente
século, se tenham verificado na generalidade do continente, autênticas hecatombes
demográficas que reduziram dramaticamente a população. Contudo, mais uma vez a elevada
natalidade revelou as suas potencialidades, assim que melhoraram a educação, a alimentação,
a assistência sanitária (sobretudo com vacinações em massa), o fornecimento de água potável,
os esforços de erradicação da malária, da bilharziose, das tripanossomiasses e de diversas
pragas de aves, roedores e insetos.
Por outro lado, a pertinaz sobrevivência dos valores tradicionais que exaltavam a
potência genésica de ambos os sexos, combinaram-se com a ignorância ou relutância quanto
aos modernos métodos anticoncecionais, para conservarem a elevada natalidade. Ao presente
situa-se entre o mínimo de seis e o máximo de oito o número médio de filhos por mulher
ainda no seu período de fecundidade. A persistência de excessivas taxas de crescimento
demográfico (no fim do período colonial atingindo cerca de 3% ao ano) dá origem a um
número desmesurado de menores na estrutura etária, menores que consomem uma proporção
incomportável do produto nacional. Esse número excedia manifestamente os benefícios que a
atividade económica e o sistema tributário podiam oferecer em matéria de educação avançada
e especializada das novas gerações. Os acréscimos conseguidos na produção e na
produtividade foram anulados pelo número excessivo de novos consumidores inativos,
mesmo levando em conta a sua participação precoce no setor de subsistência. Assim se foi
firmando um nítido desajustamento entre dois elementos culturais que, na maioria dos países
desenvolvidos, se conservaram solidários: a redução simultânea das taxas de natalidade e de
mortalidade.

Excessivas densidades rurais

Já fizemos referência aos valores culturais que, na sua génese, tiveram a evidente
finalidade de maximizar a taxa de natalidade tão vital para a segurança, a sobrevivência e a
multiplicação da linhagem e da comunidade em ambientes físicos sobremodo hostis à espécie
humana. Também aludimos à natural correlação existente entre o crescimento demográfico e
as zonas mais favoráveis ao povoamento humano. Uma das consequências da introdução das
plantas úteis de origem asiática e americana foi o reforço dessa tendência e consequentes
migrações para as áreas onde as espécies exóticas encontraram melhores condições de
propagação.
O aumento da concentração humana e dos vegetais alimentares nas zonas mais
propícias, tornou excessivas as já elevadas densidades rurais existentes. A indicação de
simples densidades médias (tão em voga durante o período colonial) falseava grosseiramente
a realidade. Por exemplo, dentro de uma região tão limitada como o sul do Save, verificavam-
se desníveis enormes. Na faixa litoral, com pluviosidade mais regular e abundante, existiam
áreas onde a densidade ultrapassava os duzentos hab/km2 ; já no vasto interior árido esse
indicador médio nem sequer atingia um hab/km2.
360
Uma perceção correta das implicações resultantes das altas densidades rurais – perceção
indispensável à definição oportuna de uma política coerente de desenvolvimento rural – só
poderia ser alcançada por meio de estudos que visassem calcular a densidade ótima que cada
zona poderia suportar, tendo em atenção os recursos naturais e as rudimentares técnicas
agrárias correntemente empregadas. Por exemplo, na antiga Rodésia do Norte (atual Zâmbia)
os agrónomos calcularam que nas áreas de chitimene (derrubas seguidas de adubação por
simples cinzas da cobertura vegetal, tal como se praticava em Moçambique) essa densidade
ótima oscilava entre quatro a sete hab/km2. E note-se que essa “capacidade de carga”
(carrying capacity) – mesmo nos casos em que não era excedida – permitia apenas um
equilíbrio estático entre a população e o solo cultivado. Na maioria dos casos levantava
obstáculos ao aumento do nível de vida e mesmo à simples manutenção do nível existente
quando o crescimento populacional se acelerava. Tanto quanto sabemos, este conceito de
“capacidade de carga” nunca foi reconhecido pelos dirigentes da administração colonial em
Moçambique. Alguns especialistas sabiam haver largas zonas onde a pressão sobre os
recursos naturais aumentava até níveis alarmantes. Deixara de existir floresta para novas
derrubas. Eram por demais curtos os períodos de pousio que proporcionavam a restauração da
fertilidade dos solos. Aumentavam de modo assustador tanto a erosão como a oxidação dos
solos. Em suma diminuía de modo drástico a produtividade agrícola. Sabia-se que a cultura
obrigatória do algodão, no regime de concessões, viera acelerar em escala dramática este
processo de degradação. A redistribuição em bases firmes, racionais e eficientes, com respeito
pelo ambiente ecológico adequado aos padrões culturais de cada etnia, teria exigido não
apenas cuidadosos estudos preliminares, mas igualmente a mobilização de enormes recursos
humanos, técnicos, financeiros e administrativos, recursos cuja escassez crónica se torna
ocioso sublinhar.

Casamento por lobolo. Exclusividade feminina na agricultura. A


importância da caça na hegemonia masculina

Entre os povos patricêntricos do sul e centro de Moçambique, o casamento era


considerado como uma troca de serviços entre dois grupos familiares pertencentes a diferentes
unidades clãnicas. A cedência da capacidade reprodutora da mulher era compensada pela
entrega de determinados bens (o popular lobolo) que pelo direito consuetudinário se
reservavam para se conseguir uma noiva destinada a um dos irmãos da recém-casada. Assim
essa compensação nupcial dava carácter legal e estável à nova união. Legitimava sobretudo os
filhos gerados que, em caso de divórcio, fosse qual fosse a sua causa, pertenciam sempre à
patrilinhagem pagante (23). Três outros pormenores revelavam claramente a função do
lobolo:
a) O compromisso de complementar a lobolada por uma sua irmã classificatória, em
casos de evidente esterilidade;
b) A obrigação dos irmãos seniores de ajudar os juniores na obtenção do lobolo;
c) A viúva ser herdada por um irmão classificatório mais novo do que o falecido.
Mas o lobolo não era só exigido pelos parentes agnáticos da noiva devido às evidentes
vantagens materiais que auferiam. As próprias mulheres não o dispensavam por o reputarem
como fator de proteção e prova afirmativa do seu valor pessoal. Mais ainda: era desejado pela
maioria dos homens que o tomavam como confirmação indiscutível dos seus direitos sobre a
mulher e os filhos gerados. A procriação que permitia ao homem realizar-se orgulhosamente
361
como genearca, continuou sendo a finalidade principal do casamento. Bastará recordar que a
incapacidade para gerar sobreviveu como causa principal dos divórcios e um dos mais
humilhantes estigmas sociais.
Seja como for, cedo se generalizou quer o pagamento do lobolo em dinheiro quer o seu
dispêndio normal como qualquer outra fonte de receita. Não admira que as tendências
especulativas fossem crescendo na razão direta da integração na economia monetária, tanto
mais que, nas regiões afetadas pelo trabalho migratório, era enorme a desproporção numérica
entre os solteiros de um e outro sexo, com largo excedente masculino, explicado pela
existência de um quantitativo semelhante de viúvas.
A divisão de trabalho entre os sexos – rigorosamente observada pelos povos
patricêntricos que se dispersavam pelo Sudeste Africano – mereceu a atenção de um número
tão significativo de competentes investigadores que seria deslocado e pretensioso formular
aqui qualquer síntese credível. Na divisão de trabalho pelos sexos, a caça era a atividade que
melhor distinguia os homens, tanto nas sociedades patricêntricas como nas matricêntricas.
Nas escolas de circuncisão (que compreendiam os complexos e prolongados rituais de
integração na maioridade) as fórmulas a memorizar aludiam com grande predominância à
fauna selvagem. Também a ciência do mato, desde a defesa contra a mortífera micro-fauna
até aos métodos de rastrear e abater a caça grossa constituíam parte essencial na transmissão
de conhecimentos.
O abate com fins comerciais não se limitava ao elefante. Abrangia também os
rinocerontes cujas pontas (denominadas “abada”) tiveram e têm larga procura nos mercados
asiáticos. E ainda os hipopótamos cujo marfim conserva por tempo considerável tanto a cor
como a textura. Acicatados pela procura que, em conjunto com a de escravos, dominava as
preferências dos navegadores e comerciantes do Índico, os varões mais destemidos e
ambiciosos lançavam-se com afinco na caça aos paquidermes.
Esta atividade conseguia acentuar o desnível entre os próprios participantes na atividade
cinegética. Todos aqueles que tenham conhecimento das circunstâncias em que se praticava a
caça ao elefante, sabem como exigia especial perícia, audácia, obstinação, sangue frio e
resistência física. Entre a multidão rumorosa que conseguia levar a manada a buscar refúgio
nas matas mais próximas, destacavam-se os mais dextros que, escondidos no capim alto, se
aproximavam dos machos com melhores pontas, para lhes vibrar a machadada certeira que
decepava os tendões das patas traseiras. Não admira que na fundação das mais recentes
unidades políticas, as tradições orais exaltem o nome de caçadores que se tornaram famosos.
Ainda sobre a rígida divisão do trabalho entre os dois sexos, merece ser estudado o caso do
grupo étnico oriundo do sudeste da África, entre os paralelos 28º e o 30º 30’ designado por
Angunes (Nguni), que pude estudar e publicar (24).

Estrutura familiar matricêntrica

Como é sabido, a herança e a sucessão de tipo matrilinear, prevalecente entre os povos


moçambicanos dispersos ao norte do Zambeze, originava uma contradição estrutural entre o
papel biológico do homem como marido e pai e o seu papel social como irmão uterino e tio
materno, a quem competia exercer tutela sobre as suas irmãs e respetivos filhos.
O guardião da matrilinhagem sentia-se de tal maneira responsável que quando lhe
acontecia enfrentar uma situação de incompatibilidade entre os deveres para com a sua
própria esposa e os deveres para com suas irmãs e respetiva descendência, resolvia o dilema,
362
na maioria das vezes, negligenciando os primeiros para poder dar cabal cumprimento aos
segundos. Facilmente se compreende este comportamento se nos recordarmos que a sucessão
se deferia no primogénito da irmã sénior e que os filhos oriundos de ligações intra ou extra-
matrimoniais pertenciam em exclusivo à mãe e sua linhagem, fossem quais fossem as causas
do divórcio. Ora essas causas eram múltiplas e difíceis de prever. Sendo o casamento
uxorilocal, o marido exógeno que incorresse em desagrado, estava sujeito a ser, sem
contemplações, expulso da povoação, levando consigo os parcos objetos de seu uso pessoal.
Nessas sociedades matricêntricas agravavam-se os efeitos não raro perniciosos do
trabalho de tipo migratório. É que, sendo estranhos entre si, os homens não conseguiam
coordenar a ocasião e a duração das suas ausências quando decidiam optar pelo emprego por
conta de outrem. Tais ausências podiam variar de harmonia com os caprichos e interesses
individuais, prejudicando desse modo a viabilidade económica da povoação e o seu
funcionamento orgânico. O mesmo acontecia nas atividades agrárias. Os gados e os campos
de cultivo pertenciam à matrilinhagem, encontrando-se o homem na permanente e humilhante
situação de ser escorraçado e perder os frutos do seu labor. Esta instabilidade era totalmente
incompatível com os esforços oficiais que visavam transformar o homem rural num agricultor
fixado à terra de maneira definitiva.

Solidariedade da família extensa

Um conhecido político queniano resumiu desta maneira os inconvenientes do


parasitismo familiar:

“O crescimento económico depende do espírito de iniciativa; ora o


espírito de iniciativa pode, em larga medida, ser abafado se o indivíduo bem
dotado se vir na obrigação de partilhar o fruto do seu labor com numerosas
pessoas cujas exigências apenas podem justificar-se por razões morais… Por
toda a África Oriental se constata o facto lamentável de o homem cujos
rendimentos aumentam se ver constantemente assediado por uma multidão de
parentes afastados que lhe solicitam auxílio… Ainda ao presente tal acontece,
seja ao pequeno comerciante ou ao membro de uma profissão liberal. No plano
social, o homem que exerce uma atividade lucrativa fornece uma contribuição
de acordo com as estruturas de uma sociedade fundada sobre a iniciativa
individual, mas as vantagens que poderia retirar do seu trabalho são em
extremo limitadas pelas tradições de um sistema coletivo ao nível da família”.

Resumindo. Se, por um lado, beneficiavam das vantagens inerentes à integração na sua
família extensa, os africanos tinham, por outro lado, que suportar as obrigações que a ela se
encontravam ligadas. O pior é que o sistema tradicional de parentesco alargava
desmedidamente os deveres de solidariedade, quantas vezes em detrimento dos legítimos
interesses do próprio indivíduo e de seus filhos (ou sobrinhos no caso das sociedades
matricêntricas).
É de supor que, face à hostilidade do meio, os valores éticos hajam evoluído no sentido
de acentuarem mais as virtudes da cooperação do que as do progresso individual. Seja como
for, entendia-se que os bens e o trabalho deviam ser colocados à disposição de todos os
parentes, consanguíneos ou por aliança, vivos ou falecidos, fosse a linhagem de tipo
patrilinear ou matrilinear. Tinham eles direito à hospitalidade, a oferendas, à prestação de
363
trabalho em reciprocidade, ao auxílio em roupas e alimentos, a convites para festividades e
celebrações, etc. Não existindo técnicas para armazenagem alimentar por períodos longos, é
natural que o sistema de valores passasse a considerar a generosidade como a mais admirável
das virtudes e que os abastados vissem na sua observância uma fonte pujante de satisfação
pessoal e prestígio social e, não raro, um meio para ascender ao poder. O dirigente da
patrilinhagem, tal como o guardião da matrilinhagem, tinha o dever moral de velar pelos seus
tutelados e tuteladas em todas e quaisquer circunstâncias: no nascimento e na morte, no
casamento e no divórcio, nos êxitos e nos fracassos, na miséria e na abundância. Era também
responsável pelas suas dívidas. O gado bovino era considerado como propriedade comunal do
grupo de irmãos varões, embora fosse gerido pelo primogénito e herdeiro.
Como acentuou o político acima citado, este comportamento levantou, no período
colonial, um dos maiores obstáculos à acumulação de capital, fator indispensável ao
desenvolvimento económico. Uma das razões por que tantos varões preferiam o trabalho
assalariado à agricultura de rendimento, baseava-se no anseio de escapar a essa rede de
obrigações de parentesco que os constrangiam a despender, sem demora, em proveito dela,
todo o numerário e todos os excedentes de produção que conseguissem acumular. Até mesmo
quando ausentes do país, em cumprimento de contratos de trabalho nas minas sul-africanas, a
maioria não esquecia as suas largas responsabilidades. Apesar de possuírem de modo gratuito
alojamento, alimentação e assistência médica, gastavam no estrangeiro, em média, quatro
quintos do total dos salários recebidos. Estes gastos eram, em grande parte, efetuados na
aquisição de vestuário e outras oferendas para satisfatória distribuição ao resto da familia.
Situação similar foi verificada pelo autor, na década de 1960, entre os pequenos
comerciantes já fixados definitivamente nos subúrbios da capital. Ao contrário do que se
verificava entre os numerosos europeus, asiáticos e mistos – possuidores de casas comerciais,
as conhecidas “cantinas” – a maioria dos seus congéneres africanos parecia estagnada em
níveis rebaixados, parecendo incapazes de acumular receitas líquidas que lhes permitissem
aumentar o montante dos seus negócios e de outras modalidades lucrativas. Desperdiçavam os
ganhos quotidianos em dádivas e despesas de consumo, para satisfação de esmagadoras
obrigações para com a família extensa e outros elementos parasitários. Um dos raros
cantineiros africanos justificou como se segue o facto de nem sequer concretizar o “rancho”
para consumo mensal, tão comum entre as famílias não africanas. Se cometesse esse erro, os
parentes e afins de todos os graus, ao saberem que ele havia adquirido alimentos em
quantidades superiores às normais, logo surgiam em visitas assíduas e inesperadas, à hora das
refeições, na mira de poderem comer gratuitamente (25).

Instrumentalização da mulher

Apesar de costumes como a poligamia, o levirato e o casamento oneroso parecerem


indicar o contrário, a mulher gozava, nas condições tradicionais, de bastante prestígio e
preponderância. A sua posição como esposa e como componente da família extensa,
encontrava-se bem relacionada com o sucesso na procriação e na assistência durante a longa
amamentação e, igualmente, com a contribuição vital na produção, no transporte e na
preparação dos alimentos.
Nas condições modernas a sua importância aumentou em vez de diminuir. Muitos
varões adultos foram forçados a ausentar-se – não raro por longos períodos – para se
assalariarem em distantes centros de trabalho. Tais ausências multiplicavam sem dúvida as
364
responsabilidades das consortes, sobretudo no que respeita à criação dos filhos e ao
tratamento dos idosos. A amplificação dessa condição instrumental levou os varões a
desinteressarem-se e mesmo a reagir ativamente contra quaisquer iniciativas que visassem a
promoção e a emancipação feminina. A menor escolarização das raparigas era em parte
devida à atitude relutante dos pais ou tutores, profundamente convencidos de que as mais
instruídas teriam menos oportunidade de conseguir maridos satisfatórios. Alegando razões de
diversa ordem, muitos homens evitavam casar com parceiras mais ou menos instruídas:
seriam pouco submissas; rejeitariam os duros labores agrícolas e domésticos; fariam
exigências desmedidas em matéria de vestuário, ornamentos, alimentação refinada, etc.
Devido ao apego das mães pela cultura ancestral, os esforços oficiais e oficializados que
tinham sido desenvolvidos em matéria de instrução deviam repetir-se em cada geração. Por
exemplo, o conhecimento da língua portuguesa raramente era transmitido aos filhos, o que os
forçava a prolongar a escolarização até que a entendessem de modo suficiente. Não admira
que, ao presente, apenas metade da população saiba ler e escrever, sobretudo nas línguas
vernáculas. Só 40 % fala razoavelmente o português e apenas 6,5 % o têm como língua
materna (26). Por essas e outras razões, a esmagadora maioria das mulheres continuou
fortemente ligada a tradições e costumes ancestrais que levantavam sérios obstáculos ao
desenvolvimento económico e ao bem-estar geral. Tenha-se também em mente as numerosas
interdições alimentares que afetavam não só as grávidas em relação aos fetos mas também as
latantes a respeito dos recém-nascidos. Não há dúvida que essas superstições se aliavam ao
desconhecimento completo dos cuidados higiénicos e a carências de outra origem em matéria
de nutrição, para aumentarem a mortalidade infantil. É bem conhecida pelos antropólogos a
extraordinária influência que as superstições e as crenças mágico-religiosas desempenham na
vida quotidiana das sociedades rurais com reduzidos conhecimentos técnicos e científicos. Já
aludimos, por exemplo, aos tabus que proibiam o plantio de fruteiras exóticas e o consumo
pelas grávidas de numerosos alimentos. Limitar-nos-emos a referir, para finalizar, alguns
aspetos arcaizantes da ancestrolatria, da magia e da feitiçaria.

Crenças no sobrenatural

O culto dos antepassados

Como é sabido, a ancestrolatria baseava-se na crença de que os espíritos dos defuntos se


transformavam em figuras com características divinas, passando a exercer influência decisiva
na existência terrena da parentela. Continuavam, por conseguinte, a permanecer no seu grupo
familiar. A morte, a doença e outros infortúnios, bem como o sossego, a abundância e a
fecundidade eram, com frequência, atribuídos à intervenção benevolente ou malevolente dos
espíritos dos antepassados. Nessa convicção, os vivos eram dominados pela preocupação de
os cativar e apaziguar. Porém, como se acreditava na sua pronta irascibilidade e nos seus
excessivos melindres, tais estados de descontentamento só transpareciam quando qualquer
calamidade atingia os membros da sua família terrena. Os esforços que urgia então
desenvolver para aplacar essa manifesta irritação, determinavam, com frequencia, atitudes e
comportamentos que, pelos padrões europeus, se consideravam inexplicáveis e até mesmo
condenáveis.
Esses comportamentos eram sobretudo prejudiciais no que concerne ao exercício
regular de atividades profissionais no setor moderno. Aconselhado por sonhos, por adivinhos
365
ou por qualquer outro meio, o assalariado, sabendo que a sua justificação não seria
compreendida pelo empregador, ausentava-se sem autorização do trabalho, em ruinosa
viagem à terra natal, para aí propiciar algum iracundo antepassado-deus.

A magia

Empregamos aqui o termo “magia” para designar essas forças ocultas impessoais, bem
distintas daquelas puramente personalizadas que atrás referimos. Eram caracterizadas pela sua
amoralidade e falta de relação com o parentesco, pela sua manipulação mecânica e a ausência
de volição própria, pela possibilidade da sua mobilização nas ocasiões mais oportunas e
segundo a maneira mais conveniente. Pelas práticas mágicas procuravam-se dominar forças
que transcendiam as faculdades normais do ser humano e as vias ordinárias da Natureza.
Sendo a magia uma réplica a situações de perigo e incerteza, oferecia métodos operacionais
para enfrentar fenómenos que se julgavam refratários a qualquer outra forma de domínio. A
magia, que demonstrou notáveis faculdades de adaptação às condições modernas, conseguia
manter o seu prestígio e dar ânimo em situações próprias da civilização da técnica e da ciência
aplicada. A insegurança outrora provocada pela excecional hostilidade do ambiente físico, foi,
nos modernos centros urbanos e de trabalho, sucedida pela insegurança do meio social e
profissional, nomeadamente no que concerne a obtenção e manutenção do emprego
assalariado e as rivalidades entre os que exerciam atividades por conta própria.
O recrudescimento das práticas mágicas durante a época colonial também encontrava
explicação no facto de não serem toleradas pelas autoridades europeias as antigas sanções
legais e morais aplicadas pelos tribunais tribais contra o suposto uso da magia dita negra,
destinada a prejudicar rivais e inimigos. Em tal contexto, outra solução não restava à pretensa
vítima senão recorrer a contra-magias de redobrada potência. De qualquer modo, o facto do
indivíduo acreditar na eficácia da fórmula mágica, dos amuletos agressivos e dos talismãs
defensivos, reduzia o seu espírito de competição e a sua vontade efetiva.

A feitiçaria

O termo “feitiçaria” é aqui empregado para designar esse poder maligno e sobrenatural
que a generalidade dos indígenas acreditava ser monopolizado por determinados indivíduos,
poder que lhes permitia consumar desforras, satisfazer instintos, alcançar benefícios à custa
alheia, etc. Eram vistas com repulsa generalizada as imaginadas atividades desses sujeitos
antissociais, conhecidos por designações pejorativas como maloi, mfiti, etc. A sua força
malfazeja poderia ser ou congénita ou obtida por formação especial. Em certos casos, o
odioso feiticeiro ignoraria os seus próprios poderes, visto ser a parte psíquica que,
abandonando o corpo, atuaria durante o sono. Outras vezes agiria com deliberação, por
telepatia e a distância, recorrendo tanto a animais daninhos como a pessoas sob estado
hipnótico. Esta estranha crença (em tempos antigos difundida por quase toda a Humanidade)
fazia viver muitos africanos em crónico estado de ansiedade. Na verdade era-lhes impossível
saber quando e em que circunstâncias podiam ser vitimados tanto pela temida acusação de
serem feiticeiros (só possível de neutralizar pela ingestão sem efeitos do muavi, o ordálio
venenoso) como pelas vinganças praticadas por inimigos detentores de poderes de feitiçaria.
366
Distinguiu-se nesta interpretação M. G. Marwick, sociólogo que estudou a psicologia da etnia
Cheua (27). Outros antropólogos têm interpretado a frequência de tais suspeitas como indício
de relações sociais e familiares extremamente nocivas. Por mim defendo a hipótese de que
serviam de suporte aos valores tradicionais e às estruturas sócio-económicas que, no decurso
da existência comunitária, foram aceitando a necessidade de reduzir os fatores de
diferenciação que minavam a solidariedade interna do grupo clânico ou tribal. Essa
solidariedade era essencial para se vencer quer o perigoso ambiente físico quer as
omnipresentes rivalidades.
Este ancestral e imprescindível fortalecimento da solidariedade interna do grupo, por
meio da oportuna redução das causas de desnível e de desigualdade, sobreviveu às condições
modernas. A eficiência e a fortuna continuaram a ser atribuídas, pela mediocridade
despeitada, não logicamente à superior capacidade do talentoso bem sucedido, mas antes ao
poder secreto e intolerável que ele possuiria para, com recurso a nefandos sortilégios, furtar e
mobilizar os bens e os esforços alheios em seu proveito pessoal. Entre outros, merece
destaque o estudo sistemático e científico efetuado por J. L. Brain sobre os obstáculos que, no
continente africano, essas inveteradas crenças na feitiçaria levantaram contra os modernos
objetivos em matéria de desenvolvimento sustentado (28).
Abunda a documentação, quer de autores portugueses quer de exploradores estrangeiros
que contém referências testemunhais aos efeitos adversos de tão entranhadas crenças. Por
exemplo, Fr. Bartolomeu dos Mártires escrevendo em 1822 dedica algumas páginas do seu
famoso relatório às consequências maléficas que, entre a etnia Ajaua (Yao), provocavam as
permanentes suspeitas de feitiçaria (29). Um pouco mais tarde, em 1831, A. C. Pedroso
Gamitto, com a minúcia de investigador congénito e poliglota, aproveita as observações feitas
durante a famosa expedição ao Muata Cazembe, para tecer considerações muito válidas sobre
o fenómeno (30). Mais tarde quando expôs as suas opiniões definitivas sobre a escravatura na
África Oriental, fez explicita referência ao papel que nela desempenharam as acusações de
feitiçaria (31). A. J. Hanna (32) cita o testemunho concreto dos missionários escoceses que
procuravam estabelecer-se nas margens do lago Niassa. Quando em 1878 visitaram Chicusse,
chefe supremo dos Angonis-Massecos, constataram como se encontrava aterrorizado com o
poder maligno da feitiçaria, recorrendo para sua defesa pessoal ao uso intensivo do muavi.
Seis das suas mulheres tinham sido submetidas ao ordálio acabando duas delas por falecer.
Em frente dos visitantes perpassou uma longa coluna com cerca de duzentos homens que,
coletivamente, iam ser sujeitos à referida prova. Em 1886 quando faleceu aquele chefe
supremo – além de o acompanharem no túmulo seis das suas esposas – os regentes que lhe
sucederam tomaram a decisão de julgar cerca de trinta suspeitos. R. C. F. Maugham (33)
escrevendo, nos finais do Séc. XIX, sobre o norte de Moçambique, também aponta as
consequências negativas do uso intensivo do ordálio. Naturalmente que a crença não se
limitava a Moçambique. Por exemplo António Carreira (34), historiando a evolução
populacional de Angola desde do Séc. XVI apontou, como causas remotas da estagnação
demográfica, não só o recurso constante ao ordálio como também o sacrifício, à nascença,
quer de gémeos quer de albinos.
Pela sua excecional minúcia, merecem destaque os relatos testemunhais subscritos pelo
sacerdote Francisco João Pinto (35). Após o trágico falecimento do Dr. F. J. de Lacerda e
Almeida, passou a comandar a famosa expedição oficial ao Muata Cazembe, organizada em
Tete. A sua permanência na corte daquele poderoso e longínquo potentado africano
prolongou-se de 6 novembro 1798 até 24 julho do ano seguinte, o que lhe facilitou o
entendimento da língua, a partir do Chi-Sena que dominava com perfeição. Com tendência
nata para a investigação, procedeu ao escrutínio minucioso e comparativo dos usos e costume
locais. Redigiu preciosas informações não apenas sobre o culto dos antepassados mas também
367
sobre as profundas convicções no poder curativo da magia, e, por fim, sobre as tenebrosas
acusações de feitiçaria. Quanto à ancestrolatria relata (p. 154):

“Têm muita veneração pelos seus azimos, defuntos, aos quais consultam
em todos os sucessos de suas terras e felicidades. Os cafres que são empregados
em serviço das casas em que foi sepultado algum rei têm muitos privilégios.
Estas sepulturas são feitas em casas, que se chamam massazas. Estes azimos
fazem oferecer coisas de comer, como massas, comer feito de farinha da
mandioca, onde entra a farinha, que nos sertões da América chamam angu,
quirice, qualquer iguaria de carne, peixe ou ervas, e pombe, bebidas de milho,
como tenho dito. O que o oráculo lhes diz têm como coisas de grande
veneração”.

Ali, as crenças nos poderes curativos da magia conduziam a processos de grande


crueldade como podemos verificar (p. 152):

“É inclinado à severidade, porque quase de ordinário os seus castigos são


de pena capital ou pelo menos de cortamento de mãos e é bárbaro, pois em
todas as luas novas envia um cafre ao seu médico, para o matar e, com o seu
sangue, coração e alguma parte das entranhas, preparar os seus remédios, para
cuja composição sempre entra azeite. Estes remédios depois de preparados
acomodam-se em pontas de diferentes animais e até em dentes miúdos de
marfim, os quais são tapados com rolhas de pau ou de pano e repartidos por
vários lugares de sua casa, pelo terreiro interior e pendurados pelas portas; sem
ter alguma destas pontas ao pé de si, jamais fala a pessoa alguma, com receio
de que o enfeiticem.”

Porém os maiores morticínios radicavam-se na descoberta das causas de doenças


prolongadas, como se infere do seguinte informe:

“De tal sorte foi crescendo a enfermidade de Cazembe que a sua melhora
já causava desconfiança… Os seus médicos não se fartavam de sacrificar
quantas vítimas humanas podiam imolar às suas fantasias e à sua teoria política.
Saíam pela manhã, ao meio-dia e pelas dez horas da noite tocando seus
tamborinhos pelos caminhos e todos aqueles que eles apontavam logo eram
tomados como feiticeiros e sem remissão mortos; quantos cafres não morreram
nesta ocasião!” (p.143).
“Fui ao Cazembe com os enviados e mais muzungos. Logo fomos
introduzidos onde ele estava dando audiência aos seus grandes e povo e aí
tivemos de esperar até que acabasse aquela audiência, que me disseram ser de
admoestação que o rei fazia a todos os seus vassalos, para abominarem e
abandonarem o crime de feitiçaria, dando a entender que a sua enfermidade
havia sido originada de semelhante causa” (p.147).

Sobre estas e outras arreigadas superstições, existem relatos testemunhais ainda mais
antigos e impressionantes como o datado de 5 dezembro 1562, subscrito pelo missionário
jesuíta André Fernandes (36) cuja leitura atenta se recomenda. O autor viveu mais de dois
anos na corte do reino de Gamba, reino bem visível no mapa cartográfico nº 4, da obra sobre
o sul de Moçambique (37).
368
Lamento não ter conhecido oportunamente este precioso documento que aliás se
encontra reproduzido quer na coletânea de nove volumes, editada por G. M. Theal, na Cidade
do Cabo, entre 1898-1903 (38), quer na seleção publicada em Lisboa, no ano de 1892, por A.
P. de Paiva e Pona (39). Há perfeita coincidência entre os dois textos.

Aceitação social dos excessos com bebidas alcoólicas e com a Canabis Sativa

Muito se poderia escrever sobre os usos e abusos baseados no consumo de bebidas


alcoólicas, não raro envolvendo os monarcas e a sua corte como acontecia com o próprio
Ngungunhane. Significativas pela sua antiguidade e veracidade foram as informações
prestadas pelo supracitado Francisco João Pinto sobre a corte do Muene Mutapa.
Acerca da embriaguez coletiva e consagrada pelo monarca escreveu o seguinte:

“Faz suas assembleias com os seus grandes, que convida para beber
pombe, bebida fermentada feita de milho miúdo e também de outros legumes,
com mistura dele ou sem mistura, segundo o gosto de cada um. Estas
assembleias começam pelo tempo da lua cheia e duram até ao fim dela. O
espaço que duram são duas horas e mais e começam pela uma hora da tarde, ou
mais cedo. Os assistentes têm liberdade de beberem quanto quiserem. Porém é
preciso conservar o que beberem, porque, se sucede lançar fora dentro da
assembleia, logo aquele miserável a quem isto suceder é punido com morte.”

Pela sua maliciosa comparação transcreve-se a informação prestada em 1562 pelo


jesuíta André Fernandes:

“Às vezes têm festa de beber que dura três, quatro dias sem comerem;
o seu vinho é de frutas do mato e de toda a maneira de mantimento que
comem fazem que bebem a que são muito afeiçoados e bebe um deles tanto
como três alemães”.

Relativamente aos tempos mais modernos foi impressionante o que aconteceu entre a
etnia chope logo após a acupação efetiva. A tradicional atividade de fermentação e destilação
de bebidas degenerou num alcoolismo inveterado que, aliado à gripe pneumónica e a outros
fatores, provocou autentica hecatombe demográfica, remediada pelas autoridades portuguesas
com a destruição dos alambiques e a proibição do plantio da cana sacarina. Foi igualmente
proibida a venda de tubos, lucrativo negócio dos asiáticos. Em sua substituição os Chopes
recorreram a canos de velhas espingardas (40).
Merece ser salientado o minucioso estudo do Dr. Atouguia Pimenta (41) sobre o
fabrico, por fermentação e destilação, de bebidas alcoólicas entre as populações indígenas de
Moçambique. Relativamente à canabis há conhecimentos seguros sobre o seu consumo
imoderado. Apresentam-se apenas dois exemplos.
Chicambo, historiador dos Angonis do clã Maseco e informador de M. Read (42) refere-
se que, antes de se lançarem ao assalto, os guerreiros se sentavam para fumar e aspirar a
“canabis” a qual, segundo afirma, os “enlouquecia e lhes dava corações destemidos para
369
enfrentar o inimigo”. Também T. M. Thomas (43) que viveu onze anos entre os Ndebeles
tendo conhecido pessoalmente Mzilikazi e Lubengula, escreveu textualmente:

“Este fumo tem os mais nocivos e degradantes efeitos sobre a mente e o


corpo do fumador. A sua energia perde-se rapidamente, toda a sua estrutura é
afetada, a mente fica como que enevoada e embrutecida, e logo mesmo em
jovem se torna de tal forma um escravo do seu cachimbo que em nada mais
pensa do que cultivar e fumar a erva bravia”.

Azevedo Coutinho (44) foi outro sertanejo que observou as consequências malignas do
consumo da canabis:

“Fumam com delícia e sofreguidão o «chambo» a que no sul se dá o


nome de «bangue». Este vício muito generalizado em toda a África, termina
por arruinar o aparelho respiratório e tornar idiotas os fumadores; é muito
apreciado porque provocando-lhes extraordinariamente a tosse, fazendo-os
revirar os olhos que se tornam muitíssimo vermelhos, dá-lhes grande
importância. Era curiosíssimo ver no acampamente da Chiramba o chefe dos
Chikopas (angonis) sentado sobre uma «rodela» (escudo de couro) no meio de
um numeroso auditório, fumando «bangue» pelo seu «guigu» (cachimbo),
ricamente enfeitado com missangas, tossindo com um estrondo de trovão, e
fazendo esgares que causavam o assombro e o espanto de todos aqueles
espectadores respeitosos.”

Para os interessados na difusão milenária da canabis em África recomenda-se o estudo


de B. M. du Toit (45).

Bibliografia

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10) ALMEIDA, F. J. de L. (1889). Diário da Viagem de Moçambique para os Rios de Sena – 1797. Lisboa,
Imprensa Nacional, p. 27.
370
11) FROBERVILE, Eugène de (1847). Notes sur les moeurs, coutumes et traditions des Amakoua, sur le
commerce et la traite des esclaves dans l’Afrique Orientale. Bull. Soc. Geog. Paris, 3ª Sér, tome 8, pp.
311/29.
12) SANTOS JÚNIOR, J. R. dos e BARROS, Fernando (1950). Notas Etnográficas de Moçambique. XIII
Congresso Luso – Espanhol para o Progresso das Ciências, 4ª secção – CIÊNCIAS NATURAIS – Tomo V,
pp. 609/23.
13) VAUGHAN, Megan (1987). The Story of an African Famine: Gender and Famine in 20th Century
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14) ALMEIDA DE EÇA, Filipe G. de (1951). Lacerda e Almeida. Lisboa, p. 61, nota nº2.
15) LIESEGANG, Gerhard (1982). Famines, epidemics, plagues and long periods of warfare and their
effects in Mozambique 1700 – 1975. Harare, University of Zimbabwe (Conference in Zimbabwean
History).
16) FERRÃO, J. E. Mendes (1992). A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses. Lisboa,
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17) LOPES, Manoel M. (1907). Usages and customs of the natives of Sena. Londres, J. roy. Afr. Soc., 6, 24,
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18) GALBRAITH, J. K. (1979). A Sociedade da Pobreza. Lisboa, Publicações Dom Quixote.
19) MIGUEL DE BRITO, P. José (1829). Carta de 6 de novembro. Documentação Avulsa Moçambicana do
Arquivo Histórico Ultramarino, Tomo I (Maços 1 a 10), pp. 824/5.
20) RITA-FERREIRA, A. (1958). Nota sobre o conceito de “tribo” em Moçambique. L. Marques, Bol. Soc.
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21) GARLAKE, P. S. (1976). Na investigation of Manekweni. Nairobi, Azania, 11, pp. 25-47.
22) Annais do Conselho Ultramarino (parte não oficial) (1861), Lisboa, pp. 193/6.
23) JEFFREY, M. D. W. (1951). Lobolo is child-price. Joanesburgo, Afr. Stud. 10 (4), pp. 145-184.
24) RITA-FERREIRA, A. (1974). Etno-História e Cultura Tradicional do Grupo Angune (Nguni). L.
Marques, Mem. Inst. Invest. Cient. Moçamb, 11, série C (Ciências Humanas), pp. 4-247.
25) RITA-FERREIRA, A. (1967 – 1968). Os Africanos de Lourenço Marques. L. Marques, Mem. Inst. Invest.
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26) CHALE, Mateus (2005). Ensinar a ler e a escrever. Lisboa, Expresso – Economia, 23 julho 2005.
27) MARWICK, M. G. (1965). Some Problems in the Sociology of Sorcery and Withch-craft. In: Fortes, M.
& Dieterlen, G. eds.. African System of Thought. Londres, Oxford Univ. Press.
28) BRAIN, J. L. (1982). Witchcraft and development. Londres, Afr. Affars, 81 (324), pp. 371/84.
29) RAU, Virgínia (1963). Aspectos étnico-culturais da Ilha de Moçambique em 1822. Lisboa, Studia, 11, p.
59.
30) GAMITTO, A. C. Pedroso (1831). O Muata Cazembe e os Povos Maraves, Chevas, Muizas, Muembas,
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31) GAMITTO, A. C. Pedroso (1857/8). A Escravatura na África Oriental. Lisboa, Archivo Pittoresco –
370Semanário Dominical, 1, pp. 369/72.
32) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859 – 1895. Oxford
University Press, pp. 38/9.
33) MAUGHAM, R. C. F. (1906). Portuguese East Africa – The History, Scenery & Great Game of Manica
and Sofala. London, p. 276.
34) CARREIRA, António (1977). Angola: da Escravatura ao Trabalho Livre – Subsídios para a História
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35) PINTO, P.e Francisco João (1989). Viagem do Cazembe a Tete em 1798 e 1799. In: Textos para a História
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36) Carta de André Fernandes para os irmãos e padres da Companhia de Jesus em Portugal. (1562) Vide,
ref. nº 40.
37) RITA-FERREIRA, A. (1982), Idem.
38) THEAL, G. M. (Comp. 1898-1903). Records of Southeast Africa. Government of Cape Town, vol. 2º, pp.
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39) PAIVA e PONA, A. P. de (1892). Dos Primeiros Trabalhos dos Portugueses no Monomotapa. Sociedade
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40) JUNOD, H. Philippe (1936). The Vachopi of Portuguese East Africa. In: DUGGAN-CRONIN, A. M., ed.
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41) PIMENTA, Atouguia (1940/4). Bebidas cafreais. Doc. Moçambique (23): 5-41, (38): 75-86.
42) READ, Margaret (1937). Songs of the Ngoni people. Bantu Stud. 11 (1): 1-35.
43) MORGAN, Thomas (1973). A Rodésia há cem anos. Noticias da Rodésia, nº 80, p. 8.
44) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand.
45) TOIT, B. M. du (1976). Man and cannabis in Africa: a study of diffusion. Madison, U.S.A., Afric. Econ.
Hist., pp. 1-174.
371


ENSAIO INÉDITO
História monetária,
por
Alexandre Lobato

A síntese inédita que se segue é da autoria do saudoso Alexandre Lobato. Escreveu-a e


publicou-a em 1975, numa obra oficial que, juntamente com várias outras, tinha como
objetivo festejar o Ano da Independência de Moçambique. Porém, dentro de escassos dias e
por razões só conhecidas pelo ministro da tutela, foi mandada retirar da circulação. Tomei a
decisão de a incluir nesta obra. Mais ainda. Com ela prestarei a minha terceira homenagem ao
grande historiador.
A primeira, datada de 1987, consta de um periódico da Universidade de Braga, como
introito de um artigo da minha autoria, relacionado com a descoberta que fizera, sob sua
incitação e em diversos arquivos, dos únicos documentos que consegui encontrar sobre o
destino dado aos bens sequestrados a Baltasar Pereira do Lago, governador de Moçambique
de 1765 a 1779.
A segunda ocorreu em junho 1990 e merece ser aqui reproduzida porque, infelizmente,
quase passou despercebida. «Sobejam para outros prémios, comendas, condecorações,
volumes in memoriam, doutoramentos honoris causa, títulos de praças e avenidas, etc. Mas
para honrar a memória dessa grande figura de cidadão e de estudioso, “medularmente
português” como se confessava, nenhum gesto foi esboçado, nenhuma evocação foi publicada
por quem tinha esse dever. Mesmo por parte dos meios académicos a que, por direito,
pertencia. Mesmo pela própria Sociedade de Geografia que desde 1946 o contava entre os
seus sócios. E decerto que possuía mérito não inferior ao daqueles que foram e continuam a
ser homenageados pela Grei. Simplesmente, por ter passado em Moçambique o maior
quinhão da sua vida, não foi oportunamente catapultado para as ondas radiofónicas, para os
ecrãs da televisão, para as parangonas dos jornais. Numa palavra, veio diluído entre a massa
anónima do meio milhão de refugiados a quem foi aplicada – como bem comentou Eugénio
Lisboa – a designação inexata e indignamente primária de “retornados”. Morreu esquecido
por uma Pátria que, movido por sólidos ideais, sempre amou, serviu, estudou e defendeu».
Terminados estes esclarecimentos, passo à transcrição atualizada dessa admirável síntese que
tão indispensável é para se compreender como a região onde hoje se situa Moçambique
passou a auferir, lenta mas seguramente, das vantagens proporcionadas pela global e
inevitável economia monetária.

***

«Os Árabes, que se estabeleceram ao longo de Moçambique até Sofala e, especialmente


nas ilhas de Querimba, Moçambique, Angoxe, Quelimane, Sofala, Bazaruto e Save,
introduziram o ouro como moeda. Ou melhor, utilizavam o ouro em pó (portanto mercadoria)
como moeda. Nunca o cunharam. A unidade de peso era o matical (4,83 gr) e cem maticais
de pó aurífero formavam uma pasta. O submúltiplo era a tanga, de que oito davam o peso de
um matical. Ao sucederem aos Árabes, em 1505 os Portugueses também não reduziram o
ouro a moeda, pois o tratadista da moeda do Oriente, que foi António Nunes, escrevia em
1554 sobre Sofala, no seu famoso “Livro dos Pesos, Medidas e Moedas”: “E não há moeda
corrente, somente pelas roupas se compra o milho e outras cousas, e por medidas de milho,
372
que se chamam conjas, se compram as cousas miúdas da praça”. Segundo o mesmo autor, o
marco de ouro de Sofala (229,4 gr) continha 47 ½ maticais, equivalendo cada um a 467 réis
de Portugal, ou 8 tangas.
O matical de Cuama (ou região de Quelimane e Zambeze) era igual ao de Sofala, mas já
o da ilha de Moçambique tinha apenas 4,412 gr de ouro, pelo que entravam 52 em marco.
Isto quanto a metais monetários, porque, quanto a outras mercadorias que serviram de
moeda, há que ter em conta o papel fundamental que nas transações com as populações
africanas desempenhavam o marfim, os panos e as contas ou missangas. Estavam mesmo
consagradas as tabelas de equivalência que estabeleciam a relação entre a unidade-padrão e as
diversas qualidades ou tipos da mesma mercadoria. Assim, entre os tecidos, a unidade era o
chuabo ou pano, que podemos definir como o pano de algodão mais barato e de menor
qualidade, com duas braças de comprido. Valia no Séc. XVIII um cruzado, ou 400 réis, em
toda a parte, menos no extremo sul (em L. Marques), onde era cotado a cinco tostões. Valera
2 tostões no Séc. XVI. Um pedaço de tecido com as mesmas dimensões, que se considerasse
ter o dobro ou triplo do valor, porque era mais encorpado, ou de melhor algodão, ou de
desenho mais apreciado, valia 2 ou 3 panos. Como toda a mercadoria tinha preço fixo – o
comércio colonial assentava nos preços tabelados e fixos porque as populações eram
refratárias aos preços oscilantes cuja mecânica não entendiam, e os mercadores também os
apreciavam porque o sistema os punha a coberto duma concorrência aberta num mercado
arriscado – toda a mercadoria era trocável segundo aquela tabela, quer por dinheiro quer por
outra mercadoria. O sistema era por isso aplicado indiferentemente às transações urbanas e
rurais, em todos os setores sociais, e por mercadores de todas as raças.
Não admira, assim, que o próprio Frei João dos Santos nos diga: “Correm também por
moeda ordinária nestas terras contas miúdas de barro vidrado, de cores, enfiadas nuns fios de
comprimento de um palmo, aos quais fios que contas chamam mites e a dez mites juntos
chamam lipôte e a vinte lipôtes juntos chamam motava, que vale ordinariamente um
cruzado”. Um palmo de missangas enfiadas, de uma qualidade tipo – a missanga miúda –
custava 2 réis. A missanga era apreciadíssima pelos povos do interior, e especialmente pelas
raparigas casadoiras servidas pela feitoria de L. Marques. Também se sabe que todos os
artigos do comércio europeu levados pelos indígenas para o interior distante valiam ali
geralmente o dobro do seu preço no litoral.
Corroborando o que já se disse, João dos Santos afirma: “Além destas moedas, também
com as roupas de toda a sorte se compram e vendem todas as coisas, e se pagam as dívidas em
lugar de ouro”. Roupas ou fato ou panos eram designações correntes para os tecidos.
O marfim, outro produto importante do comércio, e todo exportado para a Índia, era
também mercadoria monetária, e para isso se classificava, segundo o peso de cada dente, em
marfim grosso, meão, miúdo e cera. A unidade de peso do marfim era o baar de 4 quintais e
10 ½ arráteis, ou sejam 239,8 kg, em que já se contavam 4 arráteis de crescença no resgate de
cada 6 arrobas. Mas quem comprava marfim adquiria dentes de vários tamanhos. Todavia, a
contabilização e a venda eram simples, porque, depois de classificado cada dente, havia
índices de conversão, p. ex. do cera, em meão ou grosso; ou vice-versa. Um número x de
arrobas de um negociante equivalia a um número y de arrobas de outro colega. Era possível, e
era prático, reduzir todo o variado marfim, por equivalências, a um tipo único com peso total.
O mesmo se passava com os tecidos, pois cada 20 panos que funcionavam como
unidades de conta faziam uma corja, e cada 20 corjas formavam um baar de fato, de 400
panos ou unidades, que valiam 400 cruzados (preço geral) ou 500 (preço do sul). No entanto o
baar podia, p. ex., conter apenas 40 exemplares valendo 10 panos cada. É porque cada
exemplar custava 10 panos ou cruzados. Era luxo.
373
Este sistema foi de grande importância porque regulou o comércio do mato até à
segunda metade do Séc. XIX, quando principiou penosamente a ser introduzida a moeda no
interior, porque nos portos do litoral a economia monetária desenvolveu-se consideravelmente
mais cedo. E essa aceleração não só tornou o sistema monetário de Moçambique
extremamente complexo, como valiosamente rico.
Havia por assim dizer duas áreas – a litoral e a interior – sobrepondo-se em parte, e
influenciando-se reciprocamente, mas cada uma com suas características financeiras e
comerciais, e com vida própria, pois enquanto a área interior mantém até muito tarde as
formas tradicionais, a área litoral, virada aos mercados compradores e vendedores no
estrangeiro, acompanha as transformações e flutuações europeias, sul-americanas e indianas.
Cada área tem a sua economia predominante e o seu sistema monetário fundamental. Em
primeiro lugar, a presença europeia exigiu logo, ainda no Séc. XVI, a criação de uma moeda
divisionária para as operações da vida quotidiana, como o documenta João dos Santos. À vida
económica nas suas relações com o exterior bastavam então as mercadorias monetárias,
especialmente o ouro de pó. Todavia, o aumento das relações sociais com a índia, os
apertados laços de dependência que se criaram com Goa, Damão, Diu, Chaul e Baçaim, ao
nível de família e de viagens de férias e de negócios, as próprias relações que se
desenvolveram entre Moçambique, Quelimane, Sena, Tete e Cabo Delgado, criando circuitos
permanentes de pessoas e de bens e uma consequente procura, tornaram indispensável a
criação de supletivos meios de pagamento com aceitação no estrangeiro, e portanto em boa
prata ou ouro.
Inicialmente eram suficientes, tanto a moeda do Reino como a da Índia, meios de
pagamento com que as pessoas normalmente se governavam. Mas depressa a colónia se foi
transformando num mercado de pagamentos em moeda, em quantidades crescentes mas não
compensadas pelas exportações. O facto de nenhuns bens necessários se produzirem
localmente, obrigava à importação de quase tudo, desde os mantimentos aos móveis e
utensílios.
No começo do Séc. XVII já dominava o xerafim de Goa. Em 1646 era tal a escassez de
moeda que o Concelho de Fazenda da Índia mandou cunhar em Goa cruzados com o peso de
patacões, mas com o toque dos xerafins, com prata holandesa e japonesa. A emissão seria
paga à Fazenda da Índia, por Moçambique, em oiro de Sena. São desconhecidas tais moedas
hoje. Em 1683, o mesmo Conselho mandou fabricar para Moçambique 100 quintais de
tutenaga, em bazarucos da marca monetária Iº devendo a emissão ser paga imediatamente
por Moçambique em ouro ou marfim.
Em 1725 foi lavrado, em bazarucos, cobre no valor de 8.000 cruzados, sendo a
cunhagem feita na fortaleza de Moçambique. Anos depois, em 1728, o governo da Índia
mandou correr em Moçambique as moedas de Goa e Diu pelo seu valor. Só em 1732 foi
esclarecido que esse valor seria em réis. Em 1735 mandou a Junta do Comércio de
Moçambique, que tinha sede em Goa, cunhar ali 30 000 xerafins com a denominação de
cruzados, mas com o peso e toque dos xerafins da Índia, para correrem em Moçambique a
400 réis cada. Nova cunhagem de prata se fez em 1745, aqui acabando a história monetária de
Moçambique, tão ligada à Índia devido à estreita dependência política, administrativa,
económica e social em que se encontrava como colónia da Índia, que o era de facto.
Com efeito, em 1752 foi criada a Capitania Geral do Estado de Moçambique,
diretamente subordinado a Lisboa. Alguns anos antes tinham vindo de Lisboa, como socorros
financeiros, certas quantias em moedas do Reino, e numerosas barricas de missanga que a
Fazenda Real vendeu para criar numerário. E em 1755 mandou o Ministério da Marinha e
Domínios Ultramarinos fabricar em Lisboa moeda provincial até o montante de 20 000
cruzados. Cunharam-se 3 espécies em ouro (de 4 - 2 e 1 mil réis) e 4 de prata (de 800 - 400 -
374
200 - 100 réis) ou seja, de 10 - 5 - 2 ½ - 2 - 1 - ½ e ¼ de cruzado que entraram em circulação
pelo dobro do valor facial, que por sua vez já tinha um valor monetário colonial – o do Brasil
– para evitar a sua exportação. Por esta época, entra Moçambique numa fase de
desenvolvimento rápido, multiplicando as relações comerciais internas e externas devido à
liberdade de comércio e ativando o povoamento urbano. Cresce também muito a exportação
de escravos paga com a importação de moeda estrangeira, designadamente prata espanhola e
sul-americana. É a época das patacas, que em 1765 passam a ser carimbadas com o famoso
monograma MR que as nacionaliza e aumenta o seu valor em metade. Efeitos naturalmente
desastrosos no comércio, criação artificial de uma moeda interna, e subida desmedida dos
preços, sem se conseguir deter a exportação de moeda, que se faz a peso. E a carimbagem
continua, pois no governo imediato de Pereira do Lago aparece o controverso carimbo M.
O agravamento da situação financeira é progressivo, obrigando o governo de
Moçambique a introduzir assinados da Junta da Fazenda, representativos de ouro ou de prata,
e emitidos com cartas de jogar. Assim financiou o governador D. Diogo do Sousa a guerra
contra os franceses, ao findar o Séc. XVIII. Nenhuma destas notas é conhecida, pois foram
todas resgatadas pelo tesouro de Portugal, queimadas em Lisboa, e o governador repreendido.
No Séc. XIX volta a circular nova moeda privativa em Moçambique, quando se envia
do Rio de Janeiro moeda de cobre de 80 - 40 e 20 réis, lavrada para S. Tomé, para correr na
África Oriental pelo dobro do preço, e ser paga ao tesouro do Brasil pelo valor nela marcado,
e em escravos. O negócio originou naturalmente uma subida vertiginosa dos preços de
consumo para o dobro, e a Fazenda conseguiu ganhar nove vezes o custo da moeda, porque a
aplicou com o valor novo ao pagamento de dívidas e obrigações contraídas a preços
anteriores. É ainda obscuro o problema de terem efetivamente circulado em Moçambique as
moedas deste ciclo de 1813 a 1825, iguais às de S. Tomé e fabricadas no Rio ou em Lisboa. A
situação monetária agrava-se muito a partir de 1831, ano em que cessa a exportação legal de
escravos. Em 1835 acha-se tão rarefeito o meio circulante, e tão privado de afluxos
estrangeiros, que se iniciaram cunhagens locais de barrinhas e meias barrinhas de ouro. Foram
seguidas em 1838 pelas misteriosas maçontas de cobre, descritas por Luís Pinto Garcia em
“Moedas Contramarcadas”. Onças de prata foram cunhadas em Moçambique nos anos de
1843, 1845 e 1847. Outra cunhagem de 80, 40 e 20 réis foi efetuada em Lisboa em 1840, para
ter curso pelo dobro do valor facial.
Um novo período, iniciado com o Decreto de 29 dezembro 1853, que aboliu a moeda
provincial e tornou legal em Moçambique a moeda decimal do Reino, prolonga-se até 1935,
ano em que volta a circular moeda privativa de Moçambique. Para proceder ao saneamento
monetário e acabar com manipulações particulares fraudulentas, o decreto mandou recolher a
moeda antiga, mandou remeter moeda da Metrópole, e mandou imprimir em Lisboa moeda
fiduciária em notas de 2$500 e 5$000 para se efetuar a recolha da moeda velha. Estas notas,
hoje desconhecidas, foram as chamadas notas da Fazenda de que se emitiram novas séries, já
na Imprensa Nacional de Moçambique, durante o Séc. XIX. Foram todas retiradas da
circulação em 1905.
O decreto de 1853, além de legalizar a moeda do Reino, que sempre circulara,
estabeleceu quais as espécies estrangeiras de ouro e prata que podiam circular. Especialmente
as brasileiras e latino-americanas, norte-americanas, inglesas e francesas, moedas que, pelo
metal, o toque, o peso e a mútua equiparação, eram efetivamente as moedas em que se
efetuavam os pagamentos internacionais.
Foi em 1877 que o Banco Nacional Ultramarino, fundado em Lisboa em 1864, apareceu
em Moçambique e emitiu notas representativas de ouro e prata. Conhecem-se notas de
1877/97, que circularam juntamente com as notas da Fazenda retiradas em 1905. Em 1906
aumentou o Banco Nacional Ultramarino a sua circulação fiduciária, logo substituída pela
375
grande emissão de 1908/9, que consagrou a libra provincial, que foi moeda fiduciária de
1909/31. Entretanto, a rupia indiana, a rupia de Zanzibar e o pond transvaliano (1897) tinham
sido legalmente admitidos como moeda corrente. Porém, na realidade, a prata inglesa invadira
Moçambique, vinda da Índia, da África Oriental, da Rodésia, da África do Sul, a tal ponto que
os preços internos se fixaram no uso corrente em libras e xelins, com as respetivas etiquetas
nas lojas. Anteriormente, fora o governo por isso obrigado a recorrer de novo à carimbagem,
em 1889, com os carimbos PM Coroado e PM Simples, para evitar graves especulações,
porque as libras-ouro e as rupias tinham ágio na Província e havia comerciantes que as
compravam a um preço para as venderem a outro. A carimbagem fixava o preço e acabava
com a especulação.
A República, ao reformar a moeda portuguesa em 1911, não alterou o regime da moeda
em Moçambique. A de Portugal continuou a ser a da Colónia. Porém a realidade logo se
impôs, porque a inflação provocada pela Grande Guerra de 1914/8 fez desaparecer em
Moçambique a moeda da Metrópole. Em 1914 apareceram as primeiras cédulas BNU, de que
se fizeram diversas emissões durante vinte anos; em 1920 surgiram notas e cédulas de
emergência; e em 1921 começou a circular a conhecida emissão Chamiço, que durou até
1937. O problema financeiro de Moçambique, que se agravara ao findar a guerra por causa do
candente problema do ouro, atinge uma alarmante rarefação do meio circulante da moeda
divisionária em 1920. Desaparecera toda a moeda miúda para compras de bazar, e a solução
de emergência foi a impressão de papel – cédulas municipais, cédulas distritais, cédulas
cooperativas, cédulas comerciais, cédulas de bazar, de forma a criarem-se trocos.
Quando Salazar empreendeu a Reforma Monetária Portuguesa de 1932, já abolido o
padrão-ouro, e iniciou a cunhagem da prata que caracterizou o início do seu consulado,
Moçambique desligou-se monetariamente da Metrópole, porque, tendo constituído desde a
Convenção de 1928 com África do Sul uma suficiente reserva de ouro, procurou o
governador-geral José Cabral estabelecer uma forte moeda privativa. A moeda da Metrópole
não voltaria a correr em Moçambique, e a última circulara em 1916.
O Banco Nacional Ultramarino, que tinha o privilégio fiduciário, renovado em 1931,
continuou ainda a emitir cédulas por alguns anos, até que apareceu a nova moeda de prata –
prata média de 835 a 650 milésimos – posta a circular com a de cobre e cuproníquel em
1935/6.
Assim se iniciou a última fase da era monetária colonial, de que nas legendas veio a
desaparecer a palavra COLÓNIA em 1951. Quanto a metais, a prata cedeu o lugar ao
cuproníquel em 1968 depois de ter descido para os 720 milésimos em 1952. A unidade
monetária escudo, passou de cuproníquel, em 1936, a bronze, em 1945, alpaca, em 1950, para
voltar ao bronze em 1953. Além de que se foram sumindo os tamanhos e os pesos na relação
dos custos e valores. Sinais dos tempos.
Entretanto, em 1919, e no âmbito da Companhia da Moçambique, surgira o Banco da
Beira, a emitir notas de libras, representativas de ouro ou esterlino, e de centavos,
representativas de prata. Prata portuguesa, nos termos da lei. O Banco, porém, devido à sua
liberalidade creditícia, acabou por falir. No entanto, o meio circulante já estava preenchido
por moeda inglesa, tanto em notas como em metal, da Inglaterra, África do Sul e Rodésia,
desde a correntíssima libra de cavalinho ao vulgar tichey de prata ou penny de cobre.
Depois de ter carimbado as notas do Banco da Beira, emitiu-as a própria Companhia de
Moçambique pela sua Caixa de Emissão, até que em 1942 se extinguiu o privilégio
majestático e o Banco Nacional Ultramarino trocou pelas suas as notas correntes em Manica e
Sofala. Assim se atingiu a unificação monetária da Colónia, pois também a Comissão
Administrativa Urbana da Beira recolhera as duas emissões de cédulas de bazar que lançara
em 1937.
376
Há ainda a registar a cunhagem de moedas da Companhia do Niassa, que porém não
chegaram a circular, e a emissão de cédulas, no período crítico de 1920/2 em que escassearam
os trocos, por parte de algumas companhias, designadamente a Boror, para uso nas suas áreas
comerciais. Moçambique regista ainda a existência, desde o século passado, de numerosas
cunhagens de fichas metálicas ou plásticas, e senhas de papel ou cartão, por parte de grandes
empresas, para pagamento de salários aos seus trabalhadores. Não se tratando propriamente
de moeda, representam no entanto meios de pagamento convertíveis à vista em moeda
corrente, e com poder liberatório nos estabelecimentos comerciais da área, muitas vezes
propriedade das próprias empresas emissoras. Claro que muita coisa ficou por dizer sobre o
problema da moeda em Moçambique, mas é de confiar ter sido dada, aqui e agora, uma ideia
geral da sua evolução».
377


ENSAIO INÉDITO
Trabalho Compelido no Moçambique Colonial
Trabalho compelido em geral

A historiografia do trabalho compelido em Moçambique mereceu a atenção de


considerável número de estudiosos. Das suas obras se conclui que remontam a um passado
longínquo as práticas que visavam mobilizar a mão-de-obra africana. Acentuando apenas a
segunda metade do Séc. XIX diremos que a orientação antiportuguesa do movimento
humanitário britânico se baseou, em larga medida, nos testemunhos oculares de viajantes que
percorreram o atual território moçambicano: Livingstone (1856-1864), Mac-Leod (1857),
Coghlan (1860), Rowley (1866), Elton (1875-1877), Young (1877), O´Neill (1880-1888).
A verdade é que, mesmo nas chamadas Terras da Coroa que circundavam L. Marques e
Inhambane, se recorria – como prática normal e socialmente aceite – a diversas formas de
compulsão. Sem dúvida que a legislação humanitária promulgada em Portugal no Séc. XIX,
pelos políticos do liberalismo utópico, estava em completo desfasamento com as implacáveis
realidades africanas.
O Código de Trabalho de 1899 (inspirado nas ideias formadas em Moçambique por
António Enes) foi aplicado de maneira algo arbitrária pelos agentes da autoridade. Mas teve,
pelos menos, o mérito de se adaptar à necessidade de obrigar o indígena africano ao trabalho,
em proveito próprio ou alheio, para que assim se pudesse promover o fomento económico
exigido pelas restantes potências coloniais, única maneira de merecerem respeito
internacional os direitos de soberania que Portugal reclamava, baseado em antigas conjunturas
históricas. Mesmo assim, aquele Código não teve efeitos generalizados porque a maioria do
território moçambicano estava quer entregue a companhias majestáticas, quer dominada pelos
senhores de Prazos, quer desocupada tanto por elementos militares como por agentes
administrativos (1).
O novo código só foi interpretado e regulamentado em Moçambique pelos decretos de 9
setembro 1904 e 4 julho 1905. Em teoria foi interditado o chibalo, isto é, o fornecimento de
homens coercivamente recrutados para acudir às necessidades do Estado e dos particulares.
Freire de Andrade reconheceu as imoralidades revoltantes a que conduziu o sistema. Por isso
tentou proibi-lo, mas sem resultados concretos (P. P. 917, B. O. 49/1906).
Os idealistas que julgavam ver na simples proclamação da República (1910) a cura para
todos os males nacionais, também seguiram a tradicional e mítica via legislativa para solução
dos problemas laborais das colónias africanas. Em 27 maio 1911 foi publicado um decreto
com força de lei que veio substituir o Código de 1899. Os seus sessenta e seis artigos quase se
limitaram a transcrever as disposições precedentes, mantendo na sua essência o sistema
compulsivo.
O caos político em que se encontrava mergulhado o país afetava, naturalmente, a
coerência legislativa. Dois anos depois foi publicado em Moçambique o Regulamento de
Trabalho Indígena (P. P. 1.310, B. O. 42/1913) que, logo no ano seguinte, foi substituído pelo
Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas Colónias Portuguesas, promulgado em
Lisboa (Dec. 951, B. O. 49/1914 – Supl.). A sua entrada em vigor foi, no entanto, suspensa no
mesmo Boletim Oficial (P. P. 2.272). Mandado pôr em execução no ano seguinte (P. P. 1.059,
B. O. 12/1915) sofreu pouco depois duas alterações (P. P. 1.122, B. O. 14/1915 e Dec. 276, B.
O. 39/1922).
378
Esse regulamento de 1914 era assaz extenso, dispersando-se por 264 artigos.
Basicamente limitou-se a manter o sistema de 1899. Todo o homem válido continuou sujeito
à obrigação moral e legal de, por meio do seu trabalho, melhorar as condições sociais e
económicas da respetiva família. Aqueles que não cumprissem do modo voluntário tal
obrigação deveriam ser a isso persuadidos pela intervenção educativa das autoridades.
Esgotados os meios de persuasão, seriam pura e simplesmente compelidos a firmar contratos
subscritos por um empregador e pela autoridade tutelar. Quando os serviços estaduais ou
municipais não estivessem interessados, poderiam ser obrigados a trabalhar nas empresas
privadas que os requisitassem (art. 109). Os que resistissem seriam julgados como vadios e
punidos com trabalho correcional (art. 96). Esta pena seria, em princípio, cumprida em obras
públicas. Nos seus relatórios anuais, as autoridades administrativas incluíam mapas donde
constavam os trabalhadores requisitados pelas e fornecidos às atividades agrícolas e
industriais, bem como os prémios de engajamento que lhes eram atribuídos. Esses elementos
foram pela última vez publicados no “Anuário Estatístico” relativo a 1928 (pp. 340/341):

Prémios de
Trabalhadores Trabalhadores
Salários pagos e a pagar engajamento
requisitados fornecidos
(recebidos e a receber)
Agric. Indust. Agric. Indust. Libras Escudos Libras Escudos
165.319 43.812 160.668 43.565 £ 2.375 15.221.594 $ £ 74 543.473 $

Pelo mesmo “Anuário” (p. 82) se verifica que as atividades agrícolas pagaram
22.901.671 jornas, cabendo às províncias da Zambézia e de Nampula, nada menos do que
12.407.733 e 5.638.820.
Embora haja bastante literatura sobre este período, não a iremos citar aqui porque se
impõe encurtar o texto e a bibliografia. Lembremo-nos apenas que vigorava um regime
político liberal que não levantava restrições ao direito de expressão. Bastará transcrever este
resumo de Francisco Toscano, relativo ao sul do Save, baseado na sua vasta experiência como
administrador (2):

“O trabalho compelido – o chibalo – causou muitas perturbações na vida


dos nativos, pois foram sempre contrários a violências e por esse facto
engrossou a emigração para o Transval. No sul do Save havia várias empresas
agrícolas (na época da febre da agricultura) e nos três distritos essas empresas
careciam de mais de vinte mil indígenas. As administrações eram obrigadas a
fornecer estes trabalhadores por intermédio da Secretaria dos Negócios
Indígenas (criada em 1917); a maior parte dos agricultores – em especial os
pequenos – tratava mal os trabalhadores, estes fugiam e os administrativos
eram obrigados a substitui-los! Era uma tragédia!”

Apesar da sua competência profissional e do seu interesse pelos estudos etno-históricos,


F. Toscano esqueceu este costume dos povos patricêntricos de origem tsonga, chona, etc.: a
rígida e estrutural divisão de trabalho entre os sexos. Aos homens cabia dedicarem-se em
exclusivo à pastorícia, à caça, à metalúrgia, à cestaria, ao comércio a longa distância e, como
era normal, às operações militares decididas pelos chefes tribais. As mulheres eram
responsáveis pela criação dos filhos, pela preparação dos alimentos, pela coleta de lenha e
379
outros produtos, pelo transporte de água, pelas tarefas agrícolas de toda a espécie e, enfim,
pela fabricação da olaria.
***

Quanto ao vasto território sob governação direta da mais importante das majestáticas, a
situação era aí bem semelhante, apesar de Sampayo e Mello haver tecido rasgados elogios
baseado no advento de milhares de imigrantes provenientes dos Prazos da Coroa concedidos à
nortenha Companhia da Zambézia. Diz textualmente: “Esta emigração para os territórios da
Companhia de Moçambique é um dos mais brilhantes resultados da habilíssima política
indígena e superior tato administrativo do antigo chefe da circunscrição de Sena e hoje
governador da Companhia, capitão-tenente Pinto Bastos” (3).
Dispomos, felizmente, de uma contribuição recente e objetiva de B. Neil-Tomlinson
que permite fundamentar opiniões de maior ceticismo (4). Depois de haver conseguido, em
princípios do século, impor a sua soberania por via militar, a Companhia iniciou, por
processos compulsivos, o recrutamento direto de serviçais, tanto para os seus próprios
departamentos, como para satisfazer a procura por parte das empresas privadas. Em 1910 já
tinha forçado a trabalhar, durante três meses em cada ano, cerca de 70.000 assalariados. Os
métodos compulsivos e disciplinares, acrescidos aos castigos corporais, às deficiências de
alimentação, aos salários ínfimos, haviam conduzido a fugas e migrações em massa.
Fracassou a agência de recrutamento fundada com a finalidade específica de solucionar o
problema do fornecimento regular de mão-de-obra. Centenas de empregadores organizaram
na Beira uma manifestação de protesto e ameaçaram atacar a residência do governador. A
Repartição do Trabalho Indígena, fundada pelo novo governador Pery de Lind, passou a
centralizar e a coordenar a distribuição dos indígenas recrutados pelas autoridades
administrativas. Foi facilitado o crédito aos agricultores para compra de equipamento que
reduzisse a procura de mão-de-obra. Em simultâneo foram restringidas as atividades
económicas diretamente exercidas pela majestática. Entre 1911 e 1917 a média anual de
assalariados rondou pelos 80.000, em parte engajados em Tete e na Zambézia. Em 1915
iniciou a cultura de algodão por um sistema de concessões semelhante ao que, mais tarde, foi
adotado pelo Estado, no resto de Moçambique. Segundo Terence Ranger, as sequelas da
revolta do Barué em 1917 teriam provocado, no território da Companhia, uma redução
populacional de cerca de 20% (5). Continuando as necessidades de mão-de-obra a crescer,
Pery de Lind decidiu aumentar o período de trabalho que era obrigatório prestar em cada ano.
Seguiram-se formas de resistência que levaram a estender o recrutamento ao norte do
Zambeze. Em 1928 empregavam-se em Manica e Sofala cerca de 138.000 assalariados
africanos, metade da qual eram provenientes de regiões sob administração direta do Estado. O
número médio de dias de trabalho por ano, prestado por cada “indígena”, aumentou para 110.
No que concerne às atuais Províncias de Tete e da Zambézia, há a relembrar que a
comissão real mandatada em novembro 1888 para estudar o futuro dos antigos Prazos da
Coroa, terminou por se pronunciar a favor da regeneração e adaptação às condições modernas
dessa instituição obsoleta que dera origem a “verdadeiros déspotas semi-independentes” cuja
história fora “um encadear contínuo de barbaridades” como havia de resumir Mouzinho de
Albuquerque (6).
As recomendações dessa comissão originaram o Decreto de 18 novembro 1890 (B. O.
nº. 52), que veio a ser regulamentado e aplicado durante o segundo semestre de 1892. Os
antigos Prazos mantiveram os seus limites e, em arrematações públicas, foram arrendados por
períodos de 25 anos. O arrendatário cobraria o imposto de capitação (mussoco) de 800 réis
anuais, sendo metade sob a forma de trabalho, calculado de 200 a 400 réis por semana,
respetivamente para menores e adultos.
380
Como era de esperar, continuaram as brutalidades e as perseguições. Uma pseudo
Inspeção de Prazos primou pela ineficiência e até mesmo pela inexistência. Assim, tanto
indivíduos como empresas puderam arrendar, com prerrogativas de soberania, enormes
extensões de terras densamente povoadas. Devido à crise político-financeira e, também, ao
desinteresse, à inépcia e à crónica desconfiança dos capitalistas portugueses, essas cobiçadas
prerrogativas vieram a ser adquiridas por grandes companhias dominadas por capitais
estrangeiros. Um dos seus representantes locais, tão experiente como esclarecido, não teve
dúvidas, nas suas memórias, em classificar tal regime como feudal (7). Seja como for, essas
companhias investiram cerca de seis milhões de libras esterlinas (8) em explorações agrícolas
dispersas pelas férteis planícies aluviais do delta, plantando e cultivando coqueiros, cana
sacarina, sisal, arroz, algodão, tabaco, etc. Distinguiram-se a Companhia do Boror, a Société
du Madal e o empresário britânico J. P. Hornung, fundador da futura Sena Sugar Estates que,
em 1912, administrava, policiava, cobrava impostos, monopolizava o comércio e controlava a
mão-de-obra em mais de 36.000 Km2 da superfície total de Moçambique.
Quanto aos Prazos sitos fora do delta do Zambeze, acabaram na sua maioria, por cair na
posse do especulador britânico Albert Ochs que, no remate final de obscuras maquinações,
deu origem à Companhia da Zambézia. Esta, em 1892, obteve o arrendamento de 126 dos 134
Prazos de Tete, declarando-se vocacionada para a exploração mineira. Recorreu como outros,
a processos de compulsão que provocaram um êxodo da população indígena tanto para os
países vizinhos como para o território da Companhia de Moçambique. Não vamos aqui repetir
o que tantos observadores deram a conhecer em tempo oportuno, mas apenas transcrever
excertos retirados do inédito Relatório da Inspeção a África feita por Portugal Durão em 1923
encontrado, como tantos outros, durante a microfilmagem, que, entre 1986 e 1988, efetuámos
para o Arquivo Histórico de Moçambique, do vasto acervo documental da sede da Companhia
da Zambézia em Lisboa, logo depois destruído, na sua totalidade, por ordem da administração
moçambicana (9).

“… A nossa principal ocupação hoje, nos Prazos de Tete, é perder


dinheiro e fornecer serviçais ao governo”. (5.787 em 1922). “Não há dúvida
que o recrutamento do nosso pessoal tem sido o mais infeliz que é possível, e
isto explica muito da ineficiência da nossa administração…”. “Convém notar
que os salários são verdadeiramente ridículos: com estes salários é
completamente impossível despertar no indígena o gosto pelo trabalho… os do
Ile pouco mais recebem que um shilling por mês… em Tete ainda é menos do
que um shilling”.

Leiam-se agora, com cuidado, estas observações justiceiras, desassombradas,


humanitárias e até premonitórias:

“De quanto deixo dito vê-se que depois de sete anos de ausência não vim
encontrar nenhuma melhoria na questão da mão-de-obra. Vejo menor eficiência
individual largamente justificada pela insignificância do salário, enorme
desperdício de braços, incompletíssimo aproveitamento da mão-de-obra
existente; e isto a sete anos dos contratos de arrendamento de Prazos, que estou
convencido não serão renovados; ou se o forem, de pouco valor serão… Esta
situação obriga-me a meditar profundamente. A verdade é que o europeu aqui,
nesta questão da mão-de-obra confiou mais na palmatória do que na cabeça. O
preto, desde as manadas de 3.000 a fornecer ao semestre à Sena Sugar até às
mais pequenas manadas a fornecer aos arrendatários, pequenos agricultores e
“tutti quanti”, é tratado como gado, alimentado para que produza, e depois
381
pago, no fim do mês com o suficiente para comprar um lenço… No Massingire
não há (a proclamada organização de ensacas) o que há, é que no fim de dois
meses os inhacuáuas (chefes) têm de mandar render um certo número de
indígenas. Se o não fizerem ficam presos eles ou as suas mulheres semanas e
meses, às vezes esquecidos, sendo além disso por meio de palmatória
convencidos da vantagem dos métodos do homem civilizado. É claro que a isto
se dá também, o nome de “manter a disciplina” nos Prazos. Em matéria de
disciplina encontrei por cá verdadeiras feras… Eu confesso que não percebo
bem como nós dominamos ainda esta população espancada e espoliada e que
tenho sérias preocupações com respeito ao futuro… Depois notemos que,
excetuando o território da Companhia de Moçambique, a única parte (da
Colónia) que produz é a Zambézia; e é da Zambézia que os estadistas da Ponta
Vermelha pensam tirar os rendimentos para alimentar as batotas (i.e. casinos) e
automóveis de L. Marques, e que no fundo não será apenas o acionista das
empresas coloniais que terá de pagar os luxos de um funcionalismo excessivo e
improdutivo, mas será também o indígena.”

***

E quanto ao vastíssimo território entregue à Companhia do Niassa? O mesmo autor, B.


Neil-Tomlinson (10) elaborou em data recente outra síntese de grande interesse em que nos
vamos basear. Considera que, apesar de expressarem de início objetivos de desenvolvimento,
os acionistas estrangeiros estavam muito mais inclinados a obter lucros fáceis com
especulações financeiras nas Bolsas de Lisboa e Londres. Cerca de 1909 tais objetivos
teóricos foram por completo abandonados e, em sua substituição, a gerência procurou tirar
proveito da exportação de mão-de-obra para a África do Sul. Por esse tempo já haviam
abandonado o território para se fixarem no Tanganhica e na Niassalândia mais de 100.000
Macuas e Ajauas. Em 1913, por decisão do próprio governo da União, cessou o trabalho
migratório para as minas do Rand. Na mesma época a Companhia mudou de proprietários.
Durante a I Grande Guerra a situação estagnou. Em consequência das operações militares,
vieram a perecer cerca de 50.000 carregadores africanos recrutados compulsivamente. No
último período da sua existência, de 1919 a 1929, entenderam os diretores ter passado a
oportunidade de arriscar investimentos produtivos. Utilizando uma administração brutal,
corrupta e mal remunerada, sobreviveu pelo recurso a sucessivos aumentos do imposto de
palhota que passou de 2$00 em 1924 a 85$00 em 1929, isto é, o correspondente a quatro
meses do salário normal dos trabalhadores indígenas. A sua cobrança só era conseguida por
recurso a métodos desumanos. À produção comercializada e ao pequeno comércio ambulante,
com raízes seculares, vieram juntar-se algumas plantações por norma exploradas pelos
próprios empregados da majestática, com recurso ao trabalho compelido. Por seu lado, os
comerciantes asiáticos fundaram bastantes estabelecimentos.

***

Mesmo antes da ratificação, pelo governo Português, da Convenção Internacional sobre


Escravatura, assinada em Genebra a 25 setembro 1926, o ministro João Belo decidiu
introduzir alterações legislativas ao já referido sistema de compulsão institucional. No novo
Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas (Dec. 12.533, B. O. 48/1926) incluiu uma
norma que não só garantia aos “indígenas” a liberdade contratual como também estabelecia
que o trabalho compelido, mas devidamente remunerado, só seria permitido em serviços de
interesse público e de urgência inadiável. As penas de “prisão correcional” e de “prisão
382
maior”, previstas no Código Penal, foram substituídas pelas de “trabalho correcional” e de
“trabalhos públicos”.
Entretanto, a supracitada convenção internacional foi ratificada pelo Dec. 14.045 (D. G.
167/1927). Logo no ano seguinte foi promulgado em Lisboa e reproduzido em Moçambique o
novo Código do Trabalho dos Indígenas, monumento com 428 artigos e largas centenas de
parágrafos e alíneas (Dec. 16.199, B. O. 2/1929-supl.). Alarmadas, as associações económicas
telegrafaram ao ministério das Colónias solicitando que a entrada em vigor fosse suspensa por
um “período de transição” de dois anos.
Foi esta, decerto, a origem do “Questionário sobre a mão d’obra indígena” produzido e
distribuído com critério, pela Direção dos Serviços e Negócios Indígenas. Uma das mais
completas e melhor ponderadas respostas que conhecemos foi redigida em Quelimane a 26
novembro 1929. Sem dúvida que foi elaborada por qualificados dirigentes da prestigiosa
Companhia da Zambézia (11). Selecionámos os seguintes pareceres:
a) No recrutamento para trabalhos e serviços públicos devia o governo e as autoridades
competentes intervir diretamente, nos termos facultados pelo nº 1 do art. 5 do Anexo à
supracitada Convenção relativa à Escravatura;
b) No recrutamento para serviços particulares, as autoridades deviam intervir
indiretamente por vários meios, um dos quais seria “a fiscalização constante e permanente da
ocupação das populações válidas para trabalho, reprimindo a vadiagem de modo rápido e
eficaz, por todos os meios ao seu alcance e castigando com severidade todo o indígena que se
procure furtar ou iludir o cumprimento da sua obrigação de trabalho”. No que concerne a
aplicação do novo Código, os relatores enumeraram dificuldades de ordem política e
económica. Uma das primeiras foi assim definida: “Não sendo semelhante diploma,
consequência necessária do estudo prévio das condições de existência e das possibilidades
físicas e morais do indígena, para efeito da “obrigação moral do trabalho”, este, pela
incompreensão do princípio fixado no art. 3º do C. T. I. o não poderá efetivar de modo
espontâneo e voluntário”. Quanto às dificuldades económicas, foi realçado o facto de que: “a
fórmula vaga e filosófica do enunciado no referido artigo sobre a “obrigação moral de
trabalho” não foi reduzida à prestação certa de serviço por tempo determinado”.
Fonte valiosa e bem merecedora de estudo aprofundado é o número especial que, por
uma publicação periódica lisboeta, foi inteiramente dedicado à prolongada e meticulosa visita
efetuada a Moçambique pelo então ministro das Colónias, Prof. Armindo Monteiro (12). Com
invulgar desassombro – facilitado pela liberdade de expressão então respeitada – quer as
diversas autoridades, quer os dirigentes das associações económicas, quer os representantes
das populações indígenas, expuseram em pormenor os seus problemas e sugeriram, com
sentido prático, as soluções que consideravam mais adequadas. Como a grande maioria dessas
exposições entregues ao ministro foram reproduzidas na íntegra, este volume constitui o mais
fiel e completo repositório sobre a situação prevalecente em Moçambique no início da década
de 1930. Por exemplo, os agricultores de Ribáuè e Malema (na atual Província de Nampula)
argumentaram:

“Desde 1928, data em que foi posto em vigor o serviço voluntário, a


agricultura tem decaído assustadoramente… julgamos que o remédio – visto o
indígena não estar preparado para o voluntariado – será o serviço compelido.
Assim é, todo o que vai para o Estado, vendo-se mesmo este em sérios
embaraços já que nas suas grandes levas para serviços públicos, há muitos que
fogem, apesar de bem guardados” (p.461). Outro justo reparo foi feito pela
Associação de Fomento da Zambézia: “É extraordinário que o Estado até hoje
383
não tenha mecanizado a sua construção, estando ainda a trabalhar por processos
verdadeiramente primitivos” (p.611).

De entre os que mais temiam a súbita liberalização, distinguiu-se F. Gavicho de


Lacerda. Admitiu, candidamente, que “todo o grande trabalho agrícola realizado em
Moçambique tem sido efetuado com braços fornecidos pelas autoridades aos agricultores,
conforme as necessidades. Desde o momento em que o governo se desinteresse do angariação
de mão-de-obra, toda a atividade agrícola cessará […] não será só a agricultura, base de toda
riqueza, a sofrer, como também os serviços de viação, de cargas e descargas nos portos, de
limpeza e conservação de estradas, etc.” (13). Mais adiante sugeriu o aumento do imposto e a
obrigatoriedade de vestuário decente, como meios indiretos de forçar o assalariamento.
Talvez devido à oposição das forças económicas, a regulamentação local das
disposições do Código demorou mais de um ano a ser publicada (P. P. 1.180, B. O. 35/1930-
supl.). No mesmo ano de 1929 surgiu em Lisboa o novo Estatuto Político, Civil e Criminal
dos Indígenas da Guiné, Angola e Moçambique (Dec. 16.473, B. O. 11/1929-supl.) que
reproduziu os artigos sobre trabalho que já constavam do anterior.

***

Salazar cedo tomou medidas para resolver o problema da Companhia do Niassa e,


igualmente, o dos famosos Prazos. Mas os pormenores interessam mais à história política.
Bastará aqui referir que as companhias mantiveram direitos de propriedade e viram
defendidas as suas fontes de mão-de-obra. O Decreto nº. 16.475 conservou o regime laboral
de 1919. Na atual Província da Zambézia o recrutamento passou a ser permitido unicamente
às atividades agrícolas e industriais que nela mantivessem propriedades constituídas.
O Ato Colonial (Dec. Lei 18.570, B. O. 43/1930) – considerado matéria constitucional –
também não esqueceu o problema (pelos vistos fundamental para a Nação e para o Império)
do trabalho dito “indígena”. O Ato determinou:
a) A remuneração do seu emprego pelos serviços estaduais e municipais;
b) A proibição de todos os regimes pelos quais o Estado se comprometesse a fornecer
trabalhadores a atividades particulares;
c) A proibição de quaisquer métodos que forçassem à prestação de serviços ás empresas
privadas;
d) Os casos em que o Estado podia compelir os homens ao trabalho (obras públicas,
iniciativas em benefício direto da população nativa, decisões judiciais de direito penal,
cumprimento de obrigações fiscais). Ficou, enfim, expresso que o regime contratual
respeitaria a liberdade individual e o direito a justo salário e a suficiente assistência,
intervindo a autoridade pública somente na fiscalização.
A Carta Orgânica do Império Colonial Português (Dec. 23.228, B. O. 51/1933-supl.)
que desenvolveu as disposições do Ato Colonial, repetiu essas piedosas intenções, mas já
dentro de condicionalismos mais apertados. Assim é que à frase “o Estado não impõe nem
permite que se exija aos indígenas das suas colónias qualquer espécie de trabalho obrigatório
ou compelido para fins particulares” os segundos legisladores acrescentaram “embora não
prescinda de que eles procurem pelo trabalho os meios de subsistência”. A disposição atrás
transcrita sobre a liberdade individual foi reproduzida no Art. 244 mas com o seguinte
parágrafo único:
384
“É assegurada aos indígenas nas colónias portuguesas liberdade de
escolha do trabalho que melhor entenderem, quer de conta própria, quer de
conta alheia, nas suas terras ou nas que, para esse efeito, estão destinadas nos
territórios do Império. Reserva-se, porém ao Estado o direito de os tutelar
procurando encaminhá-los para métodos de trabalho por conta própria que
melhorem a sua condição individual e social”.

A Carta Orgânica também criou uma inspeção ao trabalho dos indígenas, diretamente
dependente do Ministério das Colónias e concedeu aos respetivos governadores competência
em matéria de lançamento e cobrança de taxas a pagar pelos “indígenas”.
Aos leitores que estiverem especialmente interessados nas conceções, minudências e
subtilezas jurídicas do gigantesco Código do Trabalho dos Indígenas, recomendamos a leitura
da obra do Prof. Silva Cunha (14) que depois veio a desempenhar as funções de Subsecretário
de Estado da Administração Ultramarina (1962-1965) e, mais tarde, as de ministro do
Ultramar (1965-1973).
O Código era unicamente aplicado aos trabalhadores africanos (sujeitos passivos) que
possuíssem o estatuto jurídico de “indígena” tal como havia sido definido pela legislação
precedente. Quanto aos empregadores (sujeitos ativos) deveriam ser “não-indígenas” para
ficarem sob a competente alçada. As definições dos tipos de contrato baseados no Código
Civil Português não tinham qualquer relevância até mesmo porque, entre os deveres do
trabalhador, figurava o de “obediência às ordens do patrão” e, por conseguinte, este podia
empregá-lo em qualquer atividade (motorista, operador de máquinas, servente de escritório,
carregador). Na verdade ficava limitado ao papel de “assalariado para todo o serviço”.
Entre as atribuições das autoridades administrativas, atuando como agentes do curador-
geral dos Negócios Indígenas, as seguintes sobressaíam pela sua importância:
a) Celebrar os contratos com intervenção da autoridade e aprovar os contratos sem
intervenção da autoridade;
b) Praticar os atos necessários para fazer executar e cumprir todas as disposições
protetoras dos trabalhadores contratados e para levar estes ao cumprimento das obrigações
tomadas;
c) Julgar e punir, em processo sumário, todas as faltas cometidas em contravenção do
código.
Consagrava-se o dever do Estado garantir aos indígenas o pleno exercício da liberdade
do trabalho da sua preferência. Fora da sua residência habitual as mulheres só podiam
contratar-se quando fossem acompanhadas do marido, pai, tios ou irmãos maiores. Os
menores entre os 14 e os 18 anos necessitavam de autorização do pai, da mãe ou de tutor.
Entre os deveres impostos aos patrões (deveres que os defensores do sistema
consideravam como plenamente demonstrativos das generosas intenções tutelares do Estado)
contava-se o fornecimento gratuito de transporte, alojamento, alimentação e assistência
médica. E também o pagamento do salário acordado e proibições de diversa ordem: efetuar
descontos e adiantar abonos, despedir sem justa causa, obrigar à compra de quaisquer artigos,
fabricar e distribuir bebidas alcoólicas.
Em nosso entender tiveram maior importância – porque facilitaram as práticas de
coerção e exploração durante mais de trinta anos – os seguintes deveres gerais impostos aos
trabalhadores:
a) Obedecer às ordens do patrão em tudo o que estivesse de harmonia com a codificação
(que como é obvio desconheciam);
385
b) Desempenhar as suas tarefas com zelo e pela melhor forma compatível com as suas
forças e aptidões;
c) Indemnizar o patrão das perdas e danos que de propósito causassem, sujeitando-se
aos descontos que fossem autorizados pelas autoridades;
d) Solicitar prévia autorização patronal para poderem abandonar o serviço.
Dentro da Colónia o limite máximo de duração do contrato foi fixado em dois anos,
podendo, no entanto, este período ser diminuído pelo governador.
Antes de mencionarmos as modalidades de contrato, convém precisar que um
documento indispensável ao eficiente funcionamento do sistema era a “caderneta de
identificação”, embora Silva Cunha se limite a referir o assunto em breve nota de pé-de-
página. E era, na verdade, fundamental porque o contrato era nela registado e servia de base
às futuras ações de fiscalização.
Os chamados “contratos com intervenção da autoridade” – sempre escritos – eram
obrigatórios:
a) Quando o serviço fosse prestado fora da área administrativa da residência do
trabalhador;
b) Quando a admissão do contratado tivesse exigido prévias operações de recrutamento.
Este compromisso tinha, em princípio, carácter rigorosamente individual, exceto quando o
trabalhador fosse acompanhado pela família. Segundo Silva Cunha, esse vínculo contratual
individual revelava a preocupação pela observância do princípio da liberdade do trabalho
(15).
Os “contratos sem intervenção da autoridade” definiam-se por exclusão, isto é,
reservavam-se para os vínculos de trabalho não compreendidos nos casos anteriores. Podiam
ser escritos ou verbais. Não libertavam os trabalhadores, as autoridades e as entidades
patronais das obrigações já enumeradas. Quanto ao recrutamento, a legislação procurou
prevenir quaisquer abusos, atribuindo às autoridades competência para vigiar e fiscalizar e,
ainda, obrigando os recrutadores a munir-se previamente de licenças para poderem operar.
Estes ficaram proibidos de:
a) Transportar os recrutados para fora da área administrativa da sua residência, sem
prévia apresentação às autoridades competentes;
b) Insinuar que representavam a autoridade ou agiam por ordem desta ou de qualquer
organismo oficial;
c) Usar uniformes ou distintivos que os confundissem com as autoridades civis ou
militares;
d) Recorrer a fraudes, ameaças e violências para obrigar os indígenas a contratarem os
seus serviços.
As autoridades administrativas ficaram em absoluto proíbidas de recrutar trabalhadores
indígenas para o serviço de particulares, quer diretamente, quer por intermédio de quaisquer
agentes de autoridade seus subordinados. Silva Cunha, em simples nota ao fundo da página
(16), menciona uma disposição de alguma importância (Art. 129 do Código) que permitia aos
governadores de colónia, em casos urgentes como a época de colheitas, autorizarem a
determinados patrões o recrutamento de trabalhadores nas áreas administrativas
circunvizinhas. Esses empregadores ficavam dispensados da obrigatoriedade de celebrar o
“contrato com intervenção da autoridade”, mas não poderiam reter essa mão-de-obra
extraordinária por mais de três meses.
Entre 1930 e 1942 pode dizer-se que, em matéria de compulsão, se assistiu a uma
proliferação de práticas arbitrárias e multifacetadas, de harmonia com a personalidade de cada
386
autoridade administrativa, desde os governadores aos chefes de posto. Reportando-se a esta
época, escreveu o próprio diretor dos Serviços de Agricultura (17):

“Se o Código e o Regulamento do Trabalho Indígena são precisos e


minuciosos muito deixam ainda ao arbítrio do curador local. Os agricultores
sentem perfeitamente a diversidade de critérios seguidos de uma para a outra
circunscrição ou em cada uma delas através do tempo. Não admira, portanto,
que o principal motivo de conversa e tema de debate nas propriedades seja o
problema da mão-de-obra indígena e o rendimento prático do trabalho a que o
seu emprego deve obedecer.”

Convém notar, no entanto, que esta época foi marcada pela grande depressão económica
mundial e, mais tarde, pela II Grande Guerra. Estes calamitosos acontecimentos reduziram
substancialmente a procura internacional de matérias-primas moçambicanas quer pela falta de
compradores interessados, quer pela dificuldade de transportes.
No território administrado pela Companhia de Moçambique também ocorreram
modificações na política laboral. Foi criada a Direção dos Negócios Indígenas e uma nova
agência de recrutamento. Adotou-se igualmente a “caderneta de identificação” para registo
dos períodos de assalariamento, fixados num mínimo de seis meses por ano para cada homem
válido, sob pena de condenação a “trabalhos correcionais” com 40% do salário normal. Estas
e outras medidas dissuasoras da “ociosidade” levaram os indígenas a procurarem, por si
próprios, empregos por conta alheia. Embora B. Neil-Tomlinson, na obra já citada, não
mencione o fenómeno, veremos que dezenas de milhar de homens preferiram atravessar
clandestinamente a fronteira e oferecer os seus serviços a empregadores rodesianos e sul-
africanos. Entretanto a grande depressão económica também atingiu o território. Em 1932
apenas 63.000 trabalhadores se assalariaram. Os esforços feitos pelos cultivadores africanos
para aumentarem os seus rendimentos monetários, foram de modo deliberado, obstruídos pela
fundação da Junta do Comércio do Milho e pela proibição de compra do cereal nativo,
proibição que visava fomentar e proteger a produção de tipo empresarial, sobretudo em
Chimoio e Manica.
Entretanto, Salazar refinava as suas conceções em matéria de política ultramarina. Em
meados de 1936, na sessão inaugural da Conferência Económica do Império Colonial
Português, depois de citar alarmantes estatísticas sobre a explosão demográfica e a escassez
de terras aráveis que afligia o país, expressou essas conceções da seguinte maneira (18):

“Esta população em aumento que a agricultura não poderá alimentar ou


se puder alimentar, não pode absorver, está diante de nós em poucos anos,
como problema que demanda soluções e não vejo outras senão a emigração
colonial e a mais intensa industrialização do país… Pois bem: em tais
circunstâncias é lógica esta solução – que as colónias produzam e vendam à
Metrópole as matérias-primas e com o preço destas lhe adquiram os produtos
manufaturados”.

Por coincidência, logo no ano seguinte surgiu, sob a forma algo sub-reptícia de
legislação secundária, um Alvará da Repartição Central dos Negócios Indígenas (B. O.
20/1937-II série) que, nas presentes perspetivas, se afigura ter sido o primeiro golpe contra o
idílico princípio da rigorosa individualidade do vínculo contratual, princípio que, como
dissemos, Silva Cunha considera básico em toda a conceção do Código de 1928. Com efeito,
387
à generalidade dos empregadores e das autoridades administrativas convinha que, em cada
contrato, fosse incluído o maior número possível de trabalhadores. E convinha porque toda a
atividade profissional dos primeiros e dos segundos – e até mesmo dos recrutadores – ficaria
gravemente prejudicada se, de cada vez que fosse necessário contratar um trabalhador,
tivessem que interromper prementes deveres profissionais para cumprirem as complexas
formalidades burocráticas determinadas pelos regulamentos. Outras vantagens havia a
ponderar como seja a de conseguir imediatamente dos recrutadores e empregadores
adiantamentos para liquidação dos impostos em dívida. Assim, o governador-geral, baseado
na competência que lhe dava o § 2º. do Art. 113 do Regulamento do Trabalho dos Indígenas,
autorizou a celebração de contratos coletivos, quando respeitassem a iguais períodos e
condições e ao mesmo tipo de serviço e de entidade patronal. Esse despacho que autorizou,
pela primeira vez, a celebração de contratos coletivos, foi assinado pelo governador-geral,
interino, J. Nunes de Oliveira que, durante longos anos, como advogado e vogal do Conselho
Legislativo, representou e defendeu os mais destacados setores da atividade económica. As
suas conceções encontram-se resumidas numa conferência que pronunciou na Escola Superior
Colonial (19):

“… Dizendo isto, eu não pretendo de forma alguma insinuar um regresso,


embora com atenuações, ao regime de trabalho compelido. Este regime foi a
fonte de tantos abusos que se tornou indefensável… Não. Para que as
populações indígenas, no seu conjunto, façam do trabalho diário norma de vida,
será ainda, por algum tempo, talvez muito, necessária uma ação persistente e
constante… E até certas formas discretas de coação (uma vez que não possam
ser confundidas com um sistema, declarado ou oculto, de recrutamento)
poderiam acaso ser autorizadas.”

Esta corrente veio a ser reforçada durante a II Grande Guerra devido à necessidade
urgente do império, como um todo, se tornar autossuficiente em matérias-primas. Não é de
surpreender que o próprio ministro das Colónias, F. Vieira Machado, durante a longa visita
que efetuou ao Ultramar de 6/6/1942 a 5/1/1943, tenha expressado em L. Marques as
seguintes opiniões num discurso público (20):

“Temos que incutir no preto a ideia de trabalhar, abandonando a


ociosidade e o vício, se queremos exercer uma ação civilizadora e protegê-lo…
Se queremos civilizar o indígena, temos de fazer adotar, como elementar
preceito moral, que não há o direito de viver sem trabalhar… É ser negrófilo
menos esclarecido não incutir no preto a ideia da absoluta necessidade de
trabalhar.”

J. Tristão de Bettencourt, no capítulo dedicado à agricultura e não ao da política


indígena, do seu minucioso relatório de 1940/1942, incluiu as seguintes considerações que,
apesar da sua importância, não têm merecido a atenção dos estudiosos (21):

“A escassez de mão-de-obra indígena que no sul do Save deriva, em


grande parte, da emigração, como acabámos de dizer, fazia-se, porém, sentir
em toda a colónia, por motivos vários, entre os quais tinha primacial
importância o rigor com que eram cumpridos determinados preceitos ou
princípios do Código do Trabalho dos Indígenas, por parte de alguns governos
de província, chegando a deixar-se completamente livre para a ociosidade o
388
indígena que tivesse satisfeito a sua obrigação de contribuinte. As mulheres
cultivavam as machambas e os homens, se delas tiravam o rendimento previsto
para pagar o imposto, não eram compelidos a procurar trabalho. A esta situação
se tinha chegado e porque eram constantes as queixas dos agricultores e
industriais, sobretudo na Zambézia e Niassa, por falta de mão-de-obra, fiz
expedir, pela Repartição do Gabinete, a circular nº 818/D-7, de 7 outubro 1942,
com a qual procurei dar alento à nossa vida agrícola e económica…”.

Transcreve, a seguir, o texto completo da circular, de cujo preâmbulo convém destacar


os seguintes trechos:

“A prestação do trabalho em África não pode continuar a depender do


arbítrio do preto, por temperamento e ambiente natural propenso ao esforço
mínimo… mas deve pautar-se pelas necessidades gerais do país a que pertence,
pelo menos, tanto para elevar o seu próprio nível de vida, entrando assim mais
rapidamente na civilização dos que vieram ocupar este continente… Só assim
as atividades produtoras se dedicarão à terra, com probabilidades de êxito.
Haverá segurança na execução dos projetos elaborados e os capitais acorrerão a
valorizar o solo, espalhando aquela felicidade que cada um adquire por direito
próprio, com a força dignificante do trabalho.”

Nos precisos termos desta histórica circular, que representou uma viragem completa na
atitude das autoridades face à problemática laboral, apenas ficavam isentos da obrigação de se
contratarem, como assalariados, pelo menos seis meses em cada ano, os indígenas válidos dos
18 aos 55 anos que:
a) Provassem exercer, por conta própria ou alheia, qualquer atividade profissional
permanente, incluindo a agricultura de rendimento;
b) Tivessem cumprido um contrato legal no estrangeiro, ficando o descanso limitado a
seis meses após o regresso;
c) Fossem criadores com mais de cem cabeças de gado bovino;
d) Tivessem prestado o serviço militar, ficando o descanso limitado a um ano após a
passagem à reserva.
O controlo destas situações deveria ser efetuado pelas autoridades administrativas,
utilizando livros de registo, lançamentos nos cadernos de recenseamento ou averbamentos nas
cadernetas de identificação. Os indígenas considerados vadios seriam enviados, pelos seus
chefes tradicionais, para as sedes das administrações e dos postos. Enquanto aqui estivessem
concentrados poderiam ser contactados por recrutadores e, em consequência, contratarem
formalmente os seus serviços com as entidades privadas da sua preferência. Os indígenas
destinados aos serviços públicos seriam ali mandados apresentar com indicação do salário e
do número de dias de serviço a prestar.
Muito honestamente, o governador-geral reconhece:

“Os efeitos desta circular foram imediatos e de tal forma se fizeram sentir
que, quando em julho 1943, visitei as províncias da Zambézia e do Niassa,
nenhuma queixa ou pedido me foram apresentados sobre mão-de-obra e antes
agradecimentos recebi, pelas medidas tomadas. O ambiente era completamente
diferente do que observara no Niassa em 1941 e na Zambézia em 1942, mas
manda a verdade dizer que para ele não contribuiu só a circular mas,
389
principalmente, a perfeita integração na sua doutrina dos novos governadores
daquelas províncias.”

Se, na verdade, os problemas foram resolvidos de forma satisfatória, não se compreende


qual a razão que teria levado o governador-geral a autorizar o recurso aos castigos corporais,
pela circular confidencial nº 49/4/53, de 29 outubro do ano da sua visita, circular emitida pela
Repartição Central dos Negócios Indígenas.
O novo governador-geral renovou, igualmente, a autorização para celebrar contratos
coletivos com intervenção da autoridade (B. O. 6/1943-II série). O diretor dos Serviços de
Agricultura confirmou estatisticamente como havia aumentado o número médio de
trabalhadores agrícolas: de 68.281 em 1940 para 125.171 em 1944 (22).
Decorridos alguns anos, outro governador-geral, o Comdt. Gabriel Teixeira, substituiu a
mencionada circular nº 818 pela sua própria nº 566/D-7, de 5 maio 1947. Tratou-se de uma
adaptação às normas utópicas do Estatuto do Agricultor Indígena (D.L. 919, B. O. 32/1944) e
ao novo regime da cultura algodoeira (Dec. 35.884, B. O. 45/1946). Contudo não revogou a já
citada circular confidencial nº 49/4/C, de 29/10/1943, que autorizou o recurso a castigos
corporais.
Na verdade, como aquele Estatuto tinha o objetivo (fracassado como se sabe) de criar
uma classe de pequenos mas eficientes agricultores indígenas houve que incluí-los entre os
isentos da obrigação de trabalhar por conta de outrem. Também foi diminuído para cinquenta
o número de bovinos que os criadores deveriam possuir para poderem beneficiar da mesma
isenção. Por outro lado, havia sido modificado em 1946 o regime de cultura do algodão nas
colónias. Além de outras medidas – a que mais adiante iremos referir – procurou limitar-se
essa cultura aos solos que a experiência e a investigação haviam considerado como mais
adequados. A par desta concentração de recursos em zonas ecologicamente favoráveis,
procurou aumentar-se para um hectare a área semeada por cada cultivador. Apenas os que se
dedicassem a esta agricultura dita intensiva ficariam isentos da obrigatoriedade de se
contratarem para trabalho assalariado.
Como era natural, aquelas circulares sofriam dificuldades de aplicação idênticas às da
legislação regular. Tinham sido elaboradas em gabinete, por altos funcionários, sob as ordens
de militares de elevada patente, não só ignorantes acerca das enormes carências em meios
humanos e materiais que afligiam as autoridades administrativas, mas também das próprias
estruturas políticas, sociais, familiares, económicas e jurídicas das comunidades rurais e
tribais de Moçambique.
Como a seu tempo iremos desenvolver, apenas no início da ocupação efetiva parte dos
chefes tradicionais tiveram que ser substituídos por sucessores legítimos. Não admira que
estes, instados a reprimir a “vadiagem”, aproveitassem a oportunidade para efetuar
convenientes depurações internas, mandando apresentar nas Administrações os elementos
marginais e antissociais como os delinquentes, os acusados de praticarem feitiçaria maligna,
os que desafiassem a autoridade dos anciãos e chefes de linhagem, os que recusassem a
prestação de tarefas e oferendas tradicionais, os que, de qualquer modo, caíssem em
desagrado pessoal ou provocassem repulsa coletiva. Mas a sua cooperação na detenção dos
súbditos classificados como “vadios” sofria compreensíveis limitações. Colocados perante
situações de extremo melindre, tentavam conciliar as exigências da Administração com o
papel consuetudinário de protetores e de julgadores. Viviam atemorizados quer com as
vinganças dos descontentes, aplicadas sob a forma de maldições e outras práticas de magia
negra, quer com as punições, por vezes físicas, que poderiam advir de autoridades
administrativas furibundas com a pretensa “resistência passiva”.
390
Ficariam comprometidas sem remédio, todas as inúmeras tarefas e responsabilidades
que recaíam sobre os administrativos se, como pretendiam as circulares, tivessem dia-a-dia
que perder horas a procurar patrões, alimentos, alojamentos e transportes, a emitir cadernetas,
a elaborar contratos para os “vadios” que lhes fossem mandados pelos régulos. Recordemos
as crónicas da falta de pessoal qualificado, as distâncias enormes, as frequentes avarias nas
linhas telefónicas, o estado deficiente das pontes, estradas e viaturas, as faltas de verbas para
compra de alimentação, as limitações orçamentais dos serviços públicos e municipais,
empregadores em potencial.
Daí a maioria das autoridades administrativas ter adotado, por razões estritamente
práticas, a norma de mandarem proceder a rusgas de dimensão, localização e periodicidade
variáveis, com ou sem colaboração dos chefes gentílicos. Ocasiões especialmente oportunas
surgiam quando eram recebidas ordens dos governos de província para recrutar contingentes
de trabalhadores para os serviços públicos, sobretudo câmaras municipais, obras públicas,
portos e caminhos-de-ferro. Assim se concentravam algumas centenas de homens nas sedes
administrativas e se selecionavam, em face das cadernetas e dos averbamentos nos cadernos
de recenseamento, os que deviam ser classificados como “vadios”. Convocavam-se, ao
mesmo tempo, os recrutadores devidamente autorizados a operar na área. Estes eram instados
a dirigir-se, em alternado e em privado, à multidão paciente. Por seu lado o administrador ou
chefe de posto mandava o intérprete dar esclarecimentos sobre os serviços públicos que
pretendiam mão-de-obra. Havendo, como havia, um conhecimento razoável de locais,
salários, benefícios, condições de trabalho, carácter do empregador, etc., era sem grandes
hesitações que cada um fazia de livre vontade a sua escolha. Depressa se resolviam os
problemas da elaboração dos contratos coletivos, pagamento de taxas, concessão de
adiantamentos, fornecimento de alimentação e transportes. Tudo isto era precedido por
sumários exames médicos, geralmente pelos enfemeiros, a fim de serem selecionados apenas
os que, em aparência, se encontrassem em suficientes condições físicas. Era a prática citada
por Judith Head, com base num relatório administrativo de 1952 (23). Contudo esta autora,
apesar de bem documentada, errou ao afirmar que a referida prática era baseada no
Regulamento do Trabalho dos Indígenas, não fazendo qualquer referência à fundamental
circular nº 566/D-7.
Faremos agora algumas observações sobre o modo como, correntemente, se
combinavam entre si as supracitadas disposições legislativas e os conteúdos das circulares
governamentais de 1942 e 1947.
Respeitadas com bastante rigor eram as formalidades burocráticas, como o contrato
escrito, que serviam de base à cobrança das receitas do Estado, ao controlo da atividade
laboral dos indígenas por meio dos averbamentos, às punições aplicadas aos contratados que
faltassem aos seus deveres, etc. É inegável que os grandes empregadores de mão-de-obra, que
podiam ser fiscalizados sem dificuldade e que estavam interessados em manter o seu
prestígio, procuravam cumprir as normas respeitantes a salários, alojamentos, horários de
trabalho, tabelas de alimentação, etc. Era nas pequenas empresas, dispondo de fracos recursos,
que as transgressões atingiam formas mais condenáveis. Quanto à assistência médica e
farmacêutica sofria de crónicas falhas devidas à falta de pessoal qualificado e de instalações
hospitalares.
O funcionamento eficiente do sistema estabelecido pelas duas circulares atrás
mencionadas, exigia a colaboração mais ou menos ativa e voluntária dos chefes gentílicos e
seus auxiliares. Por exemplo em 1960 não era possível que cerca de 80 administradores, 135
chefes de posto e uns 3.000 sipais, sobrecarregados com múltiplas responsabilidades,
controlassem eficazmente os movimentos de mais de um milhão e meio de homens válidos,
dispersos por um território vastíssimo (média de 8,4 hab/km2).
391
Não admira que, logo no ano seguinte, instigado talvez pela sangrenta rebelião
angolana, haja sido publicado no estranho 5º suplemento do B.O. nº 40, o estranho diploma
legislativo ministerial nº 9, do seguinte teor:

“Nenhum funcionário dos quadros administrativos pode ser, sem


autorização do governo, demandado criminalmente por atos ou factos de
serviço ou com ele relacionados, ainda que as funções hajam cessado”.

De qualquer modo, a fiscalização das autoridades, nas suas funções de agentes do


curador-geral dos Indígenas, não podia primar pelo rigor nem pela assiduidade. Também
acontecia que alguns administradores e chefes de posto se deixavam influenciar por formas
subtis de suborno, como a aceitação de oferendas nas quadras festivas ou a prestação de
pequenos ou grandes favores (p. ex. reparação das viaturas de Estado ou de automóveis
particulares). Tenhamos em mente que as grandes empresas, sobretudo as agroindustriais,
dispunham de excecionais equipamentos e de numeroso pessoal qualificado, o que tornava os
funcionários públicos quase sempre dependentes da sua boa-vontade para conseguirem
resolver toda a espécie de dificuldades, tanto pessoais como profissionais, que fatalmente iam
surgindo. A população não-africana que se dispersava por esses lugares situados em zonas
longínquas e isoladas, era forçada, pela própria necessidade da sobrevivência, a desenvolver
comportamentos de solidariedade e de auxílio mútuo que, não raro, se sobrepunham aos
conflitos de interesses e até ao cumprimento dos deveres oficiais. Um administrador que, num
caso de grave infeção, visse o seu filho salvo por um antibiótico cedido por um recrutador,
perdia a força moral para o punir caso viesse a descobrir que tinha infringido as disposições
do Código de Trabalho Indígena. Eram situações que os académicos de todos os quadrantes
jamais poderiam compreender, no doce e seguro conforto das suas longínquas cátedras
citadinas, mergulhados em cogitações nefelibatas. Só em casos excecionais (como o da
lendária Martha Binford) as puderam sentir na sua própria carne.
Certos governadores de província – por norma oficiais das forças armadas em comissão
– revelaram ativa preocupação pelos problemas de mão-de-obra, procurando, embora sem
grande sucesso, conciliar as conveniências dos empregadores com os direitos reconhecidos
pela lei aos trabalhadores. A consulta sistemática das suas “ordens de serviço” é indispensável
a qualquer estudioso que queira ter perspetivas corretas sobre o assunto. Uma das mais
fascinantes foi cogitada pelo governador do Niassa, E. Ferreira de Almeida, em 9 junho 1953,
e tem o nº 2/53. Nela, em catorze rubricas distintas e sob a forma de quadro, se encontram
definidos com rigor os deveres das “autoridades administrativas”, das “autoridades
gentílicas”, dos “indígenas”, dos “agentes de recrutamento” e das “entidades patronais”.
Notável também é a Ordem de Serviço nº 3, de 31 dez. 1953, do governador da Zambézia,
Álvaro de Gouveia e Melo.
Porém, estas e outras tentativas de morigeração não tiveram nem podiam ter grandes
efeitos, devido às crónicas faltas de tempo e de recursos. O contrário aconteceu com as já
citadas circulares governamentais de 1942 e 1947 que foram mantidas em vigor até 1962.
Se é certo que fomentaram o desenvolvimento económico por vencerem a estrutural
escassez de mão-de-obra, conduziram, por outro ângulo, a formas de repressão, suborno,
exploração, desintegração dos agregados familiares, êxodo populacional para os territórios
vizinhos, etc. Os célebres “contratos com intervenção da autoridade” transformaram-se mais
em meios de opressão do que nessa teórica defesa dos direitos dos trabalhadores, exaltada por
Silva Cunha. Forçado ao zelo, à obediência e à assiduidade, todo e qualquer trabalhador,
durante a vigência do contrato, acabava por cair em faltas que, se fossem denunciadas às
392
autoridades administrativas, podiam ser motivo para a aplicação de severos castigos. Com
vista a combater o elevado absentismo, as faltas injustificadas eram reprimidas com especial
rigor. Na linguagem corrente “contratado” passou a ter significação quase semelhante à do
antigo “chibalo”. Uma testemunha crítica cujo diário recentemente publicado, contém,
durante dezoito anos, observações e comentários contundentes, foi o conhecido Bispo da
Beira, D. Sebastião Soares de Resende (24):
14 outubro 1944 (em viagem para Macequece) “… notei que há muitas serrações à beira do
caminho de ferro. Os pretos vestem um saco e vi que alguns trabalhavam numa propriedade no
sábado de tarde! Impera na Beira a escravatura. Não há maneira de se convencerem que os pretos
são pessoas humanas.”
22 junho 1945 “Ao passar pelo Gurué vi um grupo de crianças a trabalhar numa plantação
(de chá). No entanto o trabalho obrigatório não pode estender-se a elas. E bem. Mas a lei existe e
a realidade é outra. Tanta beleza (da paisagem), tanto dinheiro (dos plantadores), tanta obra feita
com sangue de escravos, com injustiças flagrantes que desprezam a pessoa humana do indígena.
Atrás desta civilização há a mais aberrante barbárie que brada ao céu e pede vingança para os
responsáveis. Não há trabalho compelido, diz a lei. Mas a realidade é que todos ou quase todos
que aqui trabalham são compelidos ao trabalho em condições que não respeitam a liberdade, a
justiça e as conveniências sociais…”. “Neste percurso encontrei um grupo de homens amarrados
uns aos outros que eram levados para o trabalho. Tinha visto este espetáculo pela primeira vez, na
Maganja da Costa, dias antes. Este era o segundo. Acompanhava-os um sipai. Este disse que tinha
de fazer assim porque de outro modo eles fugiam e, se os não apresentasse, apanharia porrada na
Administração.”
25 junho 1945: “Ao chegar a Nhamacurra (Zambézia) encontrámos um grupo de homens.
Parei e perguntei quem eram. Eram trabalhadores da Companhia do Boror que, tendo faltado dois
ou três dias ao trabalho, foram presos, levados ao Posto, castigados e voltaram para o trabalho. O
castigo havia sido de palmatória nas mãos e nos pés. Espetáculo horroroso se me deparou em
frente. Aqueles homens mostraram as mãos que estavam inchadas a ponto de as não poderem
fechar. Os dedos pareciam braços de criança de tão inflamados que estavam. Dois homens tinham
a pele da palma das mãos rebentada e o sangue corria…”.
8 junho 1952: “É um pavor o que se passa com o recrutamento! A imoralidade campeia. Só
na Angónia há 25 recrutadores! E é região de fronteira!”.
15 outubro 1956: “… Em matéria de política indígena isto está a saque… Pretos vendem-se
cada vez mais caros. Já passa de 1.000$00 cada um”.
19 outubro 1956: “… Por um lado, é a caça ao preto para o contrato, por outro lado, é a
insistência para que trabalhe a terra. E escravatura existe em Moçambique, não há dúvida, e em
forma bem rígida”.
2 janeiro 1959: “Esteve cá o padre C. de Mossurize que narrou coisas de chefes de posto
que vendem os pretos a tanto por cada um aos recrutadores…”.
16 maio 1961: “Aqui na Chemba os chefes (de posto) falam e procedem como há cinquenta
anos: é pancadaria, é recrutamento a tanto por cabeça e é algodão! Terra de escravatura e de
exploração e depois queixam-se que os pretos se revoltam”.
23 agosto 1962: “Os administradores cada vez estão piores e custa-lhes largar o domínio
total dos pretos”.

***

Não teve consequências visíveis a revogação dos artigos do Código referentes às penas
a aplicar “por quebra de contrato” (Dec. 43.039, B. O. 29/1960). Lembremos que podiam ser
393
punidos com “trabalho correcional” até um ano os que não cumprissem os seus deveres,
perturbassem a disciplina, desobedecessem às autoridades, faltassem sem justificação,
comparecessem em estado de embriaguez, praticassem furtos ou danos, recusassem a
prestação das tarefas marcadas. Cifrava-se em tantos milhares o número dessas infrações que
era impossível dispor de tempo e de meios para organizar os complexos processos de carácter
judicial. Assim sendo, primava o recurso aos métodos mais rápidos e eficientes de castigos de
diversos tipos.
Nestes termos, pode considerar-se correta, na generalidade, a análise que Marvin Harris
elaborou sobre as consequências da aplicação da circular nº 566/D-7 (25). No entanto
parecem pertinentes alguns esclarecimentos:
a) As intenções que levaram à publicação do Estatuto do Agricultor Indígena (D. L. 919,
B. O. 32/1944) não tiveram quaisquer resultados práticos, por razões complexas a
definir algures; ao contrário do que imaginou Marvin Harris, a simples posse de
charruas não isentava o indígena da prestação dos seis meses de trabalho assalariado;
recorde-se que a introdução da charrua pelos trabalhadores migratórios regressados da
África do Sul, remonta aos princípios do Séc. XX; em 1970 existiam, nas três
províncias meridionais, cerca de cem mil desses instrumentos que trouxeram
transformações tão profundas na vida agrária;
b) As culturas de rendimento eram realizadas, com carácter obrigatório, apenas dentro
das concessões monopolistas de zonas algodoeiras e das concessões orizícolas feitas a
empresas privadas;
c) A pressão sobre os recursos de mão-de-obra era obviamente maior nas regiões onde o
setor moderno explorava mais intensamente atividades agrárias e onde os varões
ativos manifestavam decidida preferência pelo emprego quer nos centros urbanos (L.
Marques e Beira) quer nos países vizinhos (África do Sul e Rodésia);
d) O Estado dava péssimos exemplos quando usava e abusava de trabalho compelido e
dos “contratos com intervenção da autoridade”. Recorriam a ele, sobretudo, as
câmaras municipais das maiores cidades e ambos os Serviços de Obras Públicas e dos
Portos e Caminhos-de-Ferro. Aparentemente incapazes de planificar com cuidado as
suas necessidades laborais, conseguiam que os governadores dessem ordens
telegráficas aos administradores para procederem a recrutamentos urgentes. As Obras
Públicas, por norma afetadas por falta de verbas, apresentavam as piores condições em
matéria de alojamento, alimentação e transporte. Apenas as atividades portuárias
pagavam horas extraordinárias. As restantes limitavam-se aos salários mínimos
fixados para indígenas. Podem aplicar-se a Moçambique as seguintes críticas
formuladas por Henrique Galvão em relação a Angola (26):

“… O governo, que tenta por vezes obrigar os patrões particulares a


cumprir uns certos deveres mínimos para com os trabalhadores, falha ele
próprio frequentemente no cumprimento dos mesmo deveres, dando assim um
exemplo inteiramente deplorável… Dos dois males – ‘contrato’ com o governo
e ‘contrato com entidades particulares’ – os nativos preferem o último, no qual
beneficiam ao menos da proteção que o governo concede, embora
precariamente, mas só àqueles que não trabalham para o governo”.

Mais uma vez repetimos: a colonização portuguesa, o funcionalismo público


ultramarino e, no caso presente, os Serviços de Administração Civil, caracterizaram-se pelos
grandes desequilíbrios educativos, morais, inteletuais e temperamentais verificados entre os
394
seus agentes de execução. Uma comprovação que podia ser autêntica em relação a um
concelho ou posto, era inteiramente inaplicável à área administrativa vizinha que se
encontrava sob a responsabilidade de um homem de diferente carácter e temperamento. O
sociólogo americano E. A. Ross reconheceu essa verdade elementar durante a sua visita de
1924: “… each administrator is a law to himself. Some are quite considerate to the natives while
others are very unsympathetic” (27). “Unsympathetic” é, diga-se a verdade, uma daquelas
expressões que a língua inglesa classifica como “understatement”. Certas autoridades
recorriam a práticas que na realidade, chegavam a amedrontar as populações administradas.
No que respeita à aplicação das normas sobre o trabalho compelido, verificavam-se as
mesmas variações idiossincráticas. Por exemplo, ficou famoso, na tradição oral colonial, um
administrador da Zambézia que levou o seu talento organizativo e a sua capacidade de
trabalho até ao ponto de elaborar ficheiros de todos os homens válidos, nos quais era
sistematicamente registada a história laboral de cada um. No final dos seis meses de
“repouso”, o trabalhador apresentava-se por norma na sede da Administração para indicar o
empregador para quem pretendia contratar-se. Foi o sistema preconizado pelo governador do
Niassa, E. Ferreira de Almeida, que adiante voltará a ser referido (28).
O profundo traumatismo psicológico causado pelos acontecimentos ocorridos em
Angola em 1961, tiveram o efeito imediato de consciencializar o Estado e os empregadores
para a necessidade urgente de substituir os antigos métodos de compulsão por outros que
respeitassem os direitos dos trabalhadores. Todavia, a revogação da célebre circular 566/D-7
só ocorreu em 1962, no terminus de longas pressões externas e em circunstâncias que aqui se
revelam pela primeira vez. De facto, por ocasião da queixa apresentada na Organização
Internacional do Trabalho, pelo Estado do Gana, contra as práticas de trabalho forçado ainda
usadas nas colónias portuguesas, a comissão nomeada para o efeito decidiu convocar, como
testemunha, o diretor dos Serviços dos Negócios Indígenas, Inspetor Pinto da Fonseca. Este
alto funcionário – um dos mais competentes, experientes e íntegros da Administração Pública
em Moçambique – recusou-se terminantemente a prestar depoimentos falsos. Antes da sua
partida para Genebra exigiu ao então secretário Provincial Eugénio Ferreira de Almeida
(oficial de Armada que já referimos a propósito do seu relatório sobre o Niassa) que
subscrevesse e lhe fizesse entrega pessoal da revogação da circular. Este cumpriu a exigência,
mas não sem relutância. O depoimento do Inspetor Pinto da Fonseca – que durante anos
serviu como curador dos Indígenas Portugueses na África do Sul – impressionou vivamente a
Comissão e contribuiu para que Portugal fosse ilibado da acusação. Mesmo assim, só após a
criação da Inspeção do Trabalho e da atividade dos primeiros inspetores, passou a ser melhor
fiscalizada a aplicação do novo Código do Trabalho Rural.
No meio desta enorme gama de lacunas, ganâncias, dissimulações, interesses e
idiossincrasias que generalizações se poderão formular?
Será que o regime conservador e autocrático que governou Portugal de 1926 a 1974, foi
o principal responsável pelo recurso contínuo e sistemático ao trabalho compelido, pela
proteção concedida ao patronato e ao grande capital, em detrimento dos trabalhadores? A
verdade é que, na própria Metrópole, a massa dos assalariados era sempre controlada, sem
possibilidades de expressão, enquadrada em sindicatos oficiais sem representatividade,
proibida de recorrer a greves e outras formas de luta em defesa dos seus interesses. Regime
que, no dizer de um dos seus mais lúcidos críticos, António Sérgio, “só preparava o povo para
a escravidão, mas não queria educá-lo mas domesticá-lo” (29) e que cometia o erro de
“pretender um império colonial pujante com uma vida europeia das mais miseráveis” (30).
Porém, a atitude assumida pelo liberal António Enes, ao defender de modo intransigente
a necessidade do trabalho compelido (mesmo recorrendo ao uso da força e obedecendo ao
Regulamento de 1899) fazem remontar ainda mais longe as raízes do fenómeno.
395
Outra explicação plausível pode basear-se no facto de Moçambique se encontrar
rodeado por territórios sob administração ou influência económica britânica. Estes, graças a
excecionais fatores, depressa puderam atingir níveis superiores de desenvolvimento e, por tal
razão, oferecer aos trabalhadores nativos melhores salários e condições laborais. Acresce-se
que estes salários eram pagos em sólidas moedas de ouro e de prata. A superioridade britânica
era manifesta em recursos de capital, conhecimentos tecnológicos, capacidades empresariais,
quadros qualificados, enfim, no maior dinamismo e nível educativo dos agentes
colonizadores. Além disso, esses territórios estavam integrados numa comunidade política,
democrática e descentralizada, o “Commonwealth”, orientada eficazmente por uma grande
potência industrial. A tudo isto se acresciam invulgares jazigos minerais, maior salubridade,
fertilidade e pluviosidade das terras altas, facilitando a pecuária e o cultivo de plantas exóticas
com maior valor nutritivo e utilitário. Todavia, os exemplos de Angola e S. Tomé (com
recurso intensivo ao trabalho compelido em regiões não afetadas pela emigração) e ainda a
preferência das populações mais setentrionais pelos centros de trabalho do Tanganhica, país
de inferior desenvolvimento económico, inclinam a considerar aquela explicação como algo
insuficiente.
Não se afigura fácil formular conclusões, de maior valia histórica, baseadas no estudo
comparativo dos métodos adotados pelos colonizadores britânicos e portugueses para
conseguirem mobilizar a mão-de-obra africana. Mesmo assim, merece reflexão uma
observação bem realista mas algo irónica, feita por Gago Coutinho durante os trabalhos que,
com a sua expedição, iniciou em 1912 (31):

“Encontram-se, logo à nossa chegada, autoridades da (companhia


majestática que também governava a Rodésia do Norte) que andam cobrando
impostos: e este serviço é tão intensivo, e o policiamento tão severo, que os
dois primeiros oficiais portugueses intercetados, foram convidados a provarem
com papéis a sua identidade, pelo native commissioner Morgan, e, isto apesar
de estarem em território português (de Angola) ainda que perto da fronteira. No
centro da África!”.

Concluiu por fim:

“O pessoal que anda cobrando os impostos ao indígena, é aqui formado


por uma trindade: o comissário, que cobra; o oficial da policia, que prende os
que não têm dinheiro para pagar; e o engajador que oferece remir o indígena,
que, não tendo dinheiro, se presta a ser contratado para trabalho. O que é, como
se vê, muito prático e comercial!”.

Foi esta combinação de autoridade forte, de pessoal qualificado, de eficiência


profissional baseada na colaboração mútua, de omnipresente abundância em recursos
financeiros, materiais e humanos, que nunca foi possível implantar no “mato”, como os
citadinos designavam entãoos sertões de Moçambique.
Por outro lado, merece atenção o facto incontroverso dos colonizadores britânicos
reservarem para a “agricultura empresarial” a proporção maior e melhor das terras aráveis. I.
Schapera, em 1953 (32) calculou essas proporções do seguinte modo: África do Sul: 89%;
Suazilândia e Rodésia do Sul: 49%; Bechoanalândia: 6%; e Niassalândia: 5%. Pois em
Moçambique, decorridos mais de vinte anos, quando em 1974 ocorreu o golpe militar lisboeta
que conduziu à descolonização portuguesa, a “agricultura empresarial” ocupava menos de 4%
396
da sua superfície total. Um íntegro investigador sueco acentuou – e bem – que em 1970 a
“agricultura tradicional” fôra responsável por 70 a 75% do total da produção agrícola e por
mais de 90% da produção alimentar básica (33). Não pode deixar de ser irónico o facto dos
empregadores estrangeiros, públicos ou privados, embora repudiando, nos seus próprios
países, o emprego de métodos que obrigassem ao trabalho assalariado, não manifestassem
igual relutância em admitir ao seu serviço pessoal recrutado compulsivamente em
Moçambique. Citam-se apenas três casos que nos parecem significativos.
O primeiro ocorreu após a guerra anglo-boer, quando a indústria mineira, face ao deficit
de 130.000 trabalhadores não-qualificados, decidiu em 1903 proceder ao engajamento de
Chineses. A mão-de-obra africana era em cerca de 90% proveniente do sul de Moçambique,
não havendo dúvidas de que a W. N. L. A. contratou nessa altura, trabalhadores compelidos
pelas autoridades portuguesas e pelos chefes nativos. Entre 1908 (terminus do recrutamento
na China) e 1913 (proibição, pelo governo da União, do emprego de indígenas provenientes
de regiões acima do paralelo 22) os interesses mineiros empenharam-se na fundação de uma
agência, a “Nyassa Consolidated”, que, pelo recurso à força, conseguiu alguns milhares de
trabalhadores nas atuais províncias de Niassa e Cabo Delgado.
O segundo caso mais recente e significativo, é representado pelo recrutamento
compelido, na Província de Tete, por ordens diretas do governador-geral Gabriel Teixeira, de
milhares de indígenas indispensáveis à construção da Barragem de Kariba-Gorge. Em
dezembro 1958 trabalhavam ali mais de 2.500 moçambicanos, quando a mão-de-obra
proveniente da Rodésia do Sul, Rodésia do Norte e Niassalândia totalizava, respetivamente,
1.000, 1.070 e 1.480.
O terceiro caso foi testemunhado pelo autor, cerca de 1960, durante as conversações
com o Governo da Suazilândia, sobre o prolongamento da via ferroviária de Goba até às
minas de ferro de Manzini. Pois a maior preocupação dos negociadores britânicos estava na
garantia do fornecimento de mão-de-obra nativa pelo governo de Moçambique, fornecimento
que só podia ser executado com recurso à compulsão.
Quem conheça algo sobre a enorme importância que o capital privado estrangeiro
desempenhou na exploração económica de Moçambique não pode deixar de considerar como
lamentável produto de lusofobia aguda ou de quaisquer outros fatores emotivos, a conhecida
posição de James Duffy resumida nesta frase: “… but the reality is pretty much the same
today as it has been for four hundred years: the indiscriminate use of the African for
Portuguese profit” (34). Cumpre aqui deixar referido o que se passou no interior de
Moçambique com as atividades daquele setor primário onde predominava o capital
estrangeiro. Seguindo o exemplo das nacionais, souberam, aberta ou ocultamente, retirar
grandes proveitos do trabalho compelido. Monteiro Grilo, diretor dos Serviços de Agricultura,
fez, no seu relatório cobrindo o período de 1940 a 1944, estas pertinentes considerações (35):

“… conselhos de administração e administradores delegados algures na


Europa, mandando por telégrafo. Não há que ocultar que a maior parte do
capital empenhado não pertence a nacionais. As próprias gerências em África
são, com frequência, confiadas a estrangeiros. O objetivo essencial destas
empresas pela natureza da sua constituição é tirar o maior rendimento possível
no mais curto prazo dos dinheiros investidos, pelos processos que o capital
conhece e emprega, mormente quando se aplica a territórios a que não o
prendem interesses materiais nem morais de outra ordem”.

Armando de Castro, para defender a sua perspetiva marxista do papel desempenhado


pelo capitalismo internacional na exploração das colónias portuguesas, deu-se ao labor de
397
recolher elementos sobre o assunto (36). Vamos utilizá-los para apontar alguns exemplos mais
significativos. Antes disso – e quanto ao capital de origem britânica – devemos mencionar,
com louvor, os recentes e pormenorizados estudos de Neil-Tomlinson sobre a Companhia do
Niassa, que já citamos, e a Companhia de Moçambique (37). L. Vail e L. White (38) bem
como Judith Head (39) também trouxeram recentemente ao conhecimento dos estudiosos os
métodos violentos a que recorreram os agentes da Sena Sugar Estates sem que os seus
proprietários e gerentes procurassem modificá-los. Os grandes proventos que esta açucareira
obteve dos recrutamentos em massa baseados na aplicação das duas circulares da Repartição
do Gabinete do governo-geral, às quais fizemos oportuna referência, mereceram outra
meticulosa investigação por parte do sociólogo sul-africano David Lincoln (40). Convém
ainda acentuar que a SSE tinha como uma das suas filiais, a “Sociedade de Chá Oriental”, a
terceira maior produtora em 1974. Pertencente em exclusivo a outros capitais britânicos, foi
também a “Incomati Sugar Estates” mais tarde vendida a banqueiros portugueses. Até no sisal
os mesmos capitais britânicos penetraram também na conhecida empresa “Namagoa
Plantations”.
O capital francês tinha forte participação na Companhia do Boror, com a maior
plantação de coqueiros do mundo e, ainda, na Companhia da Zambézia que, além de
palmares, possuía plantações de chá e concessões algodoeiras. De capitalistas suíços era a
“Companhia Colonial de Angoche” e a “Zembe Plantations”, no Chimoio com sisal e outras
plantacões. Na “Societé du Madal”, também com imensos palmares e plantações de chá,
existiam capitais ingleses, noruegueses e monegascos. Na indústria extrativa destacavam-se
os belgas com a “Companhia Carborífera do Moatize”. A “Societé Coloniale Luso-
Luxembourgeoise” era a maior concessionária algodoeira e, entre 1939-1942, produziu cerca
de metade de toda essa fibra têxtil. Enfim, a maioria dos produtores de sisal eram de
nacionalidade alemã.

Notas bibliográficas:

1 – L. V. de Sampayo e Mello (1910), pp. 264/74;


2 – Francisco Toscano (1941), p. 133;
3 – L. V. de Sampayo e Mello (1910), p. 250;
4 – B. Neil-Tomlinson (1978);
5 – Terence Ranger (1963);
6 – Mouzinho de Albuquerque (1899), p. 41;
7 – G. Stucky de Quay (1945);
8 – Estolano Ribeiro (1927), p. 65;
9 – Portugal Durão (1923);
10 – B. Neil Tomlinson (1977);
11– Companhia da Zambézia, dossier especial nº. 264: “Questionário da Direção dos Serviços e Negócios
Indígenas”: Resposta da Administração em África – 1930;
12 – Boletim Geral do Ultramar nº. 60, 1932 (Visita do ministro Armindo Monteiro a Moçambique);
13 – Francisco Gavicho de Lacerda (1937), p. 12;
14 – J. M. da Silva Cunha (1955);
15 – J. M. da Silva Cunha (1955), p. 229;
16 – J. M. da Silva Cunha (1955), p. 227;
17 – F. Monteiro Grilo (1946) 2º vol., p. 338;
18 – A. Oliveira Salazar (1936), 2º pp. 158/9;
19 – J. Nunes de Oliveira (1953), p. 205;
20 – Francisco Vieira Machado (1943), pp. 40/2;
21 – José Tristão de Bettencourt (1945), 2º vol., pp. 79 e seg;
22 – F. Monteiro Grilo (1946), 2º vol., p. 341;
23 – Judith Head (1978), p. 54;
24 – José Capela (1974), pp. 13/16;
25 – Marvin Harris (1958);
398
26 – Henrique Galvão (1974), p. 101;
27 – E. Alsworth Ross (1925), pp. 42/3;
28 – E. Ferreira de Almeida (1957), 2º Vol., p. 21;
29 – António Sérgio (1958), p. 14;
30 – António Sérgio (1959), p. 198;
31 – Gago Coutinho (1915), pp. 188/9;
32 – I. Schapera (1953), p. 366;
33 – Jens Erik Torp (1979), p. 51;
34 – James Duffy (1959);
35 – F. Monteiro Grilo (1946), 2º vol., p. 221;
36 – Armando Castro (1978), pp. 47/60;
37 – B. Neil-Tomlinson (1978), pp. 5/15;
38 – L. Vail e L. White (1980);
39 – Judith Head (1978);
40 – David Lincoln (1980).

Contribuição braçal

Esta prestação obrigatória de trabalho paga pelos munícipes (prestação que em Portugal
remontava a tempos medievais) tinha, em teoria, carácter eminentemente cívico e reservava-
se a benefícios de interesse local e comunitário. Durante a governação de Mouzinho de
Albuquerque foi designada por “trabalho do rei” e fixada em quinze dias por ano.
Tornada extensiva ao Ultramar pelo Artº 617 da Reforma Administrativa Ultramarina,
apenas em 1942 foi regulamentada em Moçambique (Port. nº 4.963). No ano seguinte foi
esclarecido que deveria considerar-se distinta dos serviços a prestar às autoridades gentílicas
pelos respetivos súbditos, serviços previstos no Artº 102 da mesma R. A. U.
Embora o facto pareça ser ignorado, mesmo pelos maiores críticos da colonização
portuguesa, o certo é que ao abrigo desta disposição legal se cometeram graves e frequentes
excessos. Eram crónicas as carências de recursos financeiros para pagar salários e sustentar
mão-de-obra indispensável à abertura e reparação de pontes e estradas carreteiras, à cozedura
em fornadas de inúmeros tijolos para construção de edifícios públicos, à limpeza e ao
saneamento de povoações classificadas, à manutenção eficiente dos pomares e das hortas
administrativas, etc. Não admira que as autoridades, sobretudo os chefes de posto, usassem e
abusassem da contribuição braçal. Acontecia, com alguma frequência, que não só
prolongavam, pelo tempo julgado necessário os períodos de trabalho gratuito, como também
obrigavam os “contribuintes” a trazer os seus próprios instrumentos e até mesmo a sua
alimentação.
Como era natural, os indígenas não se apresentavam voluntariamente. Devido às suas
exaustivas tarefas quotidianas e à escassez e fraca eficiência dos sipais, muitas autoridades
administrativas aproveitavam as ocasiões em que eram mandados recrutar trabalhadores
destinados a diversos serviços públicos, para apurar qual a situação dos transgressores em
matéria de “contribuição braçal”. Caso fossem encontrados em falta, eram empregados onde e
durante o tempo que fosse necessário. Uma das normas do regulamento permitia acumulações
até vinte e cinco dias quando se concluísse, pelos registos do recenseamento ou na caderneta
de identificação, que os índigenas se encontravam em dívida. A remissão em dinheiro,
embora prevista na lei, só em casos especiais era admitida.
A partir de 1962, esta contribuição passou a ser obrigatoriamente paga em dinheiro,
como adicional ao “imposto domiciliário” (Dip. Leg. 2.186, B. O. 52-Supl.,1961).
399

Trabalho correcional

Esta modalidade de trabalho obrigatório merece referência especial. Beneficiaram dela,


durante décadas, grande número de serviços públicos cronicamente carenciados de recursos
para empregarem os trabalhadores indispensáveis às suas necessidades mais gerais e
correntes. Tentaremos resumir as numerosas disposições legislativas que regularam tal
matéria e sobre as quais devemos a Silva Cunha citações pormenorizadas (1).
Data de 1894 a primeira legislação que previu a substituição das penas de prisão efetiva
por penas de trabalho público remunerado. O Regulamento de Trabalho de 1899 também
condenava a trabalho correcional os indígenas que resistissem às medidas tomadas pelas
autoridades para que aceitassem forçosamente o emprego assalariado.
O Código de Trabalho de 1928 (Artº 302) definiu como trabalho correcional aquele a
que os indígenas podiam ser condenados pelos tribunais competentes sempre que cometessem
qualquer crime previsto e punido pela legislação em vigor.
Mais explícito foi o Estatuto dos Indígenas datado de 1929. Mandou observar nas
possessões ultramarinas o Código Penal vigente na Metrópole, substituindo as penas
correcionais por trabalhos com o mesmo título e, ainda, as penas maiores por trabalhos
públicos. Porém, esta última modalidade penal deveria ser cumprida em região diferente
daquela onde havia sido cometido o crime. Pelo novo Estatuto e por outra legislação
publicada em 1954, foi determinado que se aplicassem aos indígenas as leis penais comuns.
Contudo, os juízes deveriam tomar em consideração as díspares e específicas normas de
direito consuetudinário. As penas maiores continuariam a ser convertíveis em trabalhos
públicos, mas a sua duração normal seria acrescida em um terço.
Tanto quanto podemos ver, são algo contraditórias as posições académicas defendidas
por Adriano Moreira. Em obra publicada em 1954 resumiu desta maneira notável o
pensamento que guiou as decisões tomadas (2):

“Por outro lado, o mais difícil problema com que se defronta a economia
ultramarina é o da obtenção de uma mão-de-obra regular, dependente da
criação de um estado de espírito favorável do indígena em face do trabalho nos
moldes fixados pela organização industrial e comercial europeia. A sua
tradicional relutância em adotar hábitos de trabalho regular, faz do trabalho,
efetivamente, a penalidade por excelência, trabalho orientado para a satisfação
das necessidades públicas”.

Num excerto de outra obra transcreveu, com implícito apoio, a opinião expressa por
Valadas Preto quando exercia as funções de Delegado do Procurador da República em
Inhambane:

“Tal sistema desinvidualiza o criminoso e leva a considerá-lo


abstratamente como elemento de trabalho, economicamente útil e
financeiramente vantajoso. E, como simples trabalhador, é misturado nas obras
públicas ou municipais com os trabalhadores livres, com tratamento e
alimentação igual.
As consequências desta promiscuidade são desastrosas. O condenado fica
sem perceber em que consiste a sua pena ou qual é o crime dos trabalhadores
400
contratados, e no seu espírito, desperta a ideia de espoliação, a ideia de que o
seu crime, afinal, foi um pretexto para o porem a trabalhar por pouco dinheiro.
Ao lado desta ideia vem-lhe o desinteresse por uma futura conduta reta. De
nada lhe vale evitar o crime porque de qualquer maneira terá de trabalhar para
outrem”.

A reorganização do sistema penitenciário ultramarino, previu a construção de vários


tipos de estabelecimentos prisionais. Mas o estrutural desfasamento entre os grandes ideais
expressos na legislação e as crónicas carências de meios para a sua efetiva concretização,
tiveram como simples resultado a criação do Campo de Trabalho Prisional de Mabalane.
Sob indicação dos Serviços dos Negócios Indígenas, as penas eram cumpridas em
vários organismos estaduais, nomeadamente nas Estações Zootécnicas e nas Quintas
Experimentais dos Serviços de Pecuária e de Agricultura, sitos em regiões muito afastadas da
residência dos condenados, sendo o respetivo transporte feito por via marítima. No destino,
gozavam eles de bastante liberdade e era-lhes depositado um salário que correspondia a 30 –
60% do normal.
Este sistema facilitava enormemente as fugas para os países vizinhos, sobretudo quando
os condenados a pena maior eram obrigados a aguardar, nas sedes das divisões
administrativas, durante largos meses, que os Tribunais da Relação devolvessem os processos
com sentenças definitivas. Era o caso, muito conhecido e comentado, dos numerosos
Macondes que se refugiavam no Tanganica após assassinarem os eventuais sedutores das suas
mulheres caso eles se recusassem a dirimir a afronta pagando as indemnizações
consuetudinárias. Maior fonte de mão-de-obra gratuita, empregada nas esquadras da Polícia e
nas supracitadas sedes, advinha das penas de trabalho correcional aplicadas a múltiplas
infrações, em especial as relativas ao imposto de palhota, à identificação indígena, aos
serviçais domésticos, etc. Era normal estes infratores também buscarem refúgio e residência
nos territórios sob administração britânica onde não vigoravam semelhantes tributos.
Bastantes espíritos humanitários e com consciência política consideravam como digno de
reprovação e como origem de profundos ressentimentos, o facto de homens honestos e
pacíficos serem tratados em pé de igualdade com os mais perversos criminosos e, nessa base,
serem administrativamente condenados por razões menores e eventuais: carências monetárias,
desconhecimento das leis, dificuldades de transporte, doenças debilitantes, problemas
familiares, etc.
Adriano Moreira defendeu que, para essas infrações menores, se seguisse o exemplo
sul-africano, i.e. com a formação de brigadas policiadas, constituídas de acordo com as
necessidades de mão-de-obra, brigadas que seriam empregues na execução de trabalhos
públicos e eventualmente particulares, com direito a receber os salários normais e os
complementos previstos na legislação vigente (3). Esta sugestão angélica era por completo
impraticável devido às crónicas faltas de recursos humanos e financeiros que de modo
gravoso afetavam a execução de tarefas bem mais prementes.

Notas bibliográficas:

1 – J. M. da Silva Cunha (1955), pp. 264 a 270;


2 – Adriano Moreira (1955), p. 311;
3 – Adriano Moreira (1954), p. 318.
401

S. Tomé

Cadbury decidiu publicar o seu livro “Os Serviçais de S. Tomé e Príncipe”, no qual
reproduziu as acusações contidas no relatório Burtt. Pode ter sido esta a conjuntura que
decidiu o governo central a promover, por via legislativa, o recrutamento de trabalhadores em
Moçambique. Naturalmente que a I Grande Guerra tornou irrelevantes as preocupações
humanitárias. Sabe-se que em 1918 a produção de cacau em S. Tomé subiu a 36.000
toneladas, no valor de dois milhões de libras esterlinas. Era assegurada por cerca de 40.000
trabalhadores.
Os roceiros, em natural conivência com as autoridades locais, decidiram resolver o
problema da carência de mão-de-obra, com esta medida simples mas desumana: interromper a
repatriação dos trabalhadores angolanos e moçambicanos. Apenas os inválidos eram
autorizados a regressar às suas origens. Mesmo assim, cerca de 1948 as roças empregavam
apenas 24.000 trabalhadores, quando necessitavam para cima de 40.000. O curador, alarmado,
relatou que as plantações dispunham apenas de metade da mão-de-obra indispensável, em
grande parte diminuída pela debilidade pré-senil. O recurso a cabo-verdianos revelou-se
insatisfatório. Pelas suas características culturais, os imigrantes desta origem, apesar de
acossados por fomes endémicas, sentiam-se de algum modo revoltados por trabalharem lado a
lado com angolanos e moçambicanos, estatutariamente classificados como “indígenas”, com
os quais se não sentiam identificados. Quanto a Angola, tanto as autoridades como as forças
económicas – também afetadas por carências de mão-de-obra – opuseram-se com
determinação às imagináveis intenções do governo lisboeta de ali voltarem a permitir o
recrutamento para S. Tomé.
Era do conhecimento geral não ser possível conseguir trabalhadores entre a própria
população da ilha. Um arguto conhecedor do meio ponderou:

“Ainda se conserva bem viva na maior parte desta gente a lembrança dos
tempos em que eles ou os seus pais eram proprietários de conta própria,
vivendo com desafogo e muitos mesmo com grande abastança. Na colónia
havia então grandes fortunas na posse dos seus naturais de cor… A colónia, nos
finais do Séc. XIX, era de todas as que constituem o nosso império a que
mantinha na Metrópole um maior número de estudantes de cor…”.

Moçambique constituía, por conseguinte, a única alternativa para “não deixar morrer ou
estiolar uma colónia que constitui o símbolo brilhante da nossa atividade capitalista
ultramarina (exigindo) que se tente ao menos uma solução”, como se reconhece no extenso
preâmbulo do Decreto nº 36.888, de 1948. Logo após a sua entrada em vigor, as autoridades
administrativas de todo o Moçambique receberam ordens confidenciais para procederem ao
recrutamento direto e compulsivo da mão-de-obra que iria salvar da ruína a aristocracia de
roceiros. Aquelas, coadjuvadas pelos chefes gentílicos (interessados como é óbvio em afastar
os marginais e outros indesejáveis) depressa conseguiram reunir os milhares de braços tão
pretendidos. Os Serviços dos Negócios Indígenas coordenaram estas operações, utilizando os
navios de carga para os transportar para S. Tomé, munidos dos contratos e outra
documentação necessária e devidamente acompanhados por um “comissário ad-hoc” e por um
médico. Foi numa destas comissões que participou o autor destas linhas.
Deve acentuar-se:
402
a) O recrutamento foi facilitado pela já referida circular nº. 818/D-7, de 7 outubro 1942;
b) A maioria dos contratados para S. Tomé era oriunda do litoral norte onde
escasseavam as possibilidades de emprego assalariado;
c) Os primeiros compelidos que regressaram a Moçambique com as suas remunerações
e com impressões favoráveis sobre as condições de trabalho nas roças, influenciaram muitos
indígenas da região a procurarem por sua livre vontade o contrato naquela ilha.
Embora compreenda ser impossível realizar o transporte marítimo nas ideais condições
citadas no Código de Trabalho Indígena (1929), não se pode considerar satisfatório o recurso
aos porões dos navios de carga, escuros, desconfortáveis, sem latrinas nem ventilação, de
mistura com gado e toda a espécie de mercadorias. É certo que, na primeira parte da viagem,
durante o dia, os 450 homens, 13 mulheres e 8 crianças, puderam respirar ar fresco nas
cobertas com bancadas erguidas pelo carpinteiro de bordo, com variados barrotes. Também
construiu com tábuas uma ou mais casas de banho dotadas de chuveiros com água salgada.
Tal já representou uma melhoria significativa porque, anteriormente, os passageiros africanos
eram regados com mangueiras.
Infelizmente o espaço dessas cobertas foi inteiramente ocupado, em Mossâmedes, por
estábulos destinados a 230 cabeças de gado bovino pertencentes a um cliente que, com brados
e gestos exacerbados, exigiu que o comandante telegrafasse ao armador para que soubesse
que iria exigir grossa indemnização se não autorizasse o embarque do gado.
Durante a permanência estive alojado em três roças: Uba-Budo, Água Izé e Boa
Entrada. As informações que prestei no relatório, que mereceu o elogio escrito pelo
governador-geral, podem assim sintetizar-se:
a) A Curadoria não cumpiu a lei que realçou a vantagem de agrupar na mesma roça os
trabalhadores provenientes de igual etnia ou região;
b) O horário de, pelo menos, dez horas por dia, facilitado pela deficiente fiscalização da
Curadoria, sem meios nem pessoal;
c) Às mulheres, mesmo com filhos, eram atribuidas tarefas semelhantes às dos homens;
d) Nenhum trabalhador estava autorizado a ultrapassar os limites da roça;
e) O sabão era de fabrico caseiro mais parecendo uma pasta enrolada em folhas;
f) O vestuário a fornecer de seis a seis meses era de fraca qualidade;
g) A alimenação era constituída basicamente por farinha, peixe seco e bananas,
escasseando em toda a ilha carne, arroz, açúcar, legumes, etc.;
h) Os dormitórios eram de alvenaria e cobertos a telha, alojando-se em quartos de 4 m2
a média de três homens;
i) Os lavabos e latrinas eram deficientes, argumentando os administradores que os
serviçais labutavam o dia inteiro no âmago de plantações atravessadas por muitos riachos
onde poderiam satisfazer as necessidades;
j) Em matéria de assistência limitei-me a reproduzir os seguintes trechos do relatório do
governador: “… há instalações hospitalares regulares… outras de hospitais e enfermarias só
têm o nome… os enfermeiros são em geral nativos sem uma compreensão razoável da sua
profissão, sentem-se à vontade, isolados, sem fiscalização de espécie alguma pois o médico só
raramente aparece…”;
k) Em uma das roças observei o idoso administrador, em fúria e em público, mandar
castigar um dos trabalhadores com palmatoadas;
403
l) Na mesma roça o numeroso e competente pessoal que servia na bela residência, veio
escondidamente queixar-se que não fora repatriado para Angola como tinham sido os seus
conterrâneos;
m) Em outra roça fui brutalmente insultado pelo administrador, diante de todos os
convidados, no fim de uma tarde de domingo, por, durante um passseio a pé, ter escutado as
queixas receosas dos trabalhadores, longe da presença patronal.
No meu relatório não dei conta desta humilhante agressão. Também não mencionei o
facto da ilha ter sido visitada por um navio de guerra britânico. A tripulação percorreu as
roças, com o pretexto de efetuar desafios de futebol com os empregados. Durante um dos
almoços, em roça que não recordo, sentou-se ao meu lado um dos oficiais e perguntou-me, em
tom pacífico, se os trabalhadores eram “livres”. Respondi afirmativamente. Esta pergunta
chamou a minha atenção para o facto da imprensa do Cabo vir desvendando que, ao largo,
transitavam navios de carga portugueses levando a bordo escravos de Moçambique destinados
às roças de S.Tomé.
Tudo visto e considerado, o autor mantém o que escreveu no seu relatório de 12 março
1951, em que não deixou de louvar o papel desempenhado pelo governador Gorgulho no
sentido de humanizar o tratamento dispensado aos trabalhadores. Discorda, por conseguinte,
da perspetiva publicada pela jornalista Felícia Cabrita, na “Revista” do semanário “Expresso”,
de 18 maio 2002. Mas tal não iliba aquele oficial de ter sido o principal responsável pelas
atrocidades que foram praticadas para neutralizar a suposta rebelião de 1953, que vitimou,
sobretudo, os membros da antiga aristocracia são-tomense.
Uma última nota. Foi causa de grandes sofrimentos a repatriação compulsiva de antigos
trabalhadores, já inválidos, que, após tantos anos de residência em S. Tomé, não dispunham
de famílias que os acolhessem, nem de qualquer sistema de segurança social em Moçambique.
Apesar dos Serviços dos Negócios Indígenas haverem sido substituídos pelo Instituto do
Trabalho, Previdência e Ação Social e apesar de, em 1973, a direção da dita Previdência ter
sido preenchida por um licenciado em Direito, não lhe foi possível, por desinteresse dos
governantes, iniciar a fundação em Moçambique de um sistema de previdência semelhante ao
existente na Metrópole. Vivi os pormenores desta situação frustrante.

O trabalho compelido no meio urbano

Mencionaremos, por fim, o difícil problema do recurso ao trabalho compelido nos


centros urbanos. Já referimos que o grande empregador desse tipo de mão-de-obra foi o
próprio Estado, com destaque para as municipalidades, os Serviços de Obras Públicas, os
Serviços dos Portos, Caminhos-de-Ferro e Transportes. Essas práticas eram de tal modo
arreigadas que só puderam ser extintas cerca de 1965.
A exemplo do que fizemos no que concerne as conclusões de outros investigadores
estrangeiros que estudaram o período colonial propriamente dito, parece-nos serem
propositadas algumas críticas sobre o resultado das pesquisas mais ou menos intensivas que
Jeanne Penvenne efetuou sobre aquela matéria, embora se tivesse limitado à cidade de L.
Marques (1) (2). Concordamos com bastantes das suas interpretações, ainda que tenha caído
em generalidades excessivas e que os seus escritos pequem por quase total carência de
elementos estatísticos que poderia ter facilmente obtido, entre outras fontes, pela consulta dos
censos populacionais de 1930 a 1970. Por exemplo, para afirmar o nível baixíssimo dos
salários, não apresenta elementos sobre o custo de vida mas baseia-se em simples opiniões de
404
algumas dezenas de antigos assalariados que, absurdamente, trata por “camaradas”. Também
não compara os salários urbanos com os ínfimos rendimentos obtidos nas atividades agrárias
por conta própria, causa fundamental do voluntário êxodo rural em direção à África do Sul e à
capital moçambicana. Quem abordar o problema da acelerada polarização urbana que marcou
– e continua a marcar – tão profundamente a geografia humana não só de Moçambique mas
também de toda a África, terá oportunidade de formular críticas de outro tipo e discordantes
daquela abordagem. Em seu entender, entre 1910 e 1927 houve algumas pressões políticas
sobre o capital público e privado interessado na construção civil para que empregasse mais
avançadas tecnologias, embora complementadas por alguma mão-de-obra barata de origem
africana e asiática. Contudo, o sistema do chibalo (trabalho compelido) veio comprometer a
formação de pessoal qualificado que poderia ter beneficiado elementos das diversas raças.
Cita, como exemplo, o célebre “aterro da Maxaquene” que resgatou uma enorme superfície
espraiada e permitiu as construções ao nível do mar e, sobretudo, os futuros cais acostáveis
anexos à zona comercial da cidade. A proposta mais progressiva que pretendia maximizar o
uso de métodos modernos e de operários qualificados foi preterida por uma outra que se
baseava em barata e abundante mão-de-obra compelida – ou condenada por órgãos
administrativos a penas de trabalho correcional. As desumanas condições laborais foram
causa de grande mortalidade e mereceram severas críticas publicadas nos órgãos de
informação que, naquela época, gozavam de inteira liberdade de expressão.
Admite que após o advento do Estado Novo a situação dos assalariados urbanos
melhorou de algum modo. Mas não faz referência às modificações introduzidas pelo Código
do Trabalho dos Indígenas, nem, quanto ao porto, aprofunda as causas e os efeitos de duas
categorias simultâneas de trabalhadores: os voluntários, urbanizados, que se assalariavam por
jorna para as firmas estivadoras e os chibalos recrutados nas áreas rurais pelas autoridades
administrativas e contratados por seis meses para os serviços oficiais portuários, com direito a
alojamento, alimentação, vestuário e assistência médica. Ora, em termos estreitamente
económicos, não era compensatória a liberdade de que gozavam os primeiros que já se
encontravam fixados de modo definitivo na cidade, com as suas famílias, e – o que era mais
grave – quase privados do contributo da agricultura e da coleta. Além dos seus rendimentos
dependerem por completo do movimento de navios e de cargas, podendo ficar inativos
durante dias, a sua situação tornava-se decerto desesperada nos casos de invalidez, velhice e
doença, estes últimos bastantes frequentes devido à difusão da tuberculose. Durante anos,
acompanhámos este problema no Instituto do Trabalho e assistimos às situações trágicas que
afetavam numerosos estivadores. Aludimos ao assunto no nosso estudo de sociologia urbana
sobre L. Marques (3). Esta situação era tanto mais revoltante quanto é certo que as firmas
estivadoras – na sua maioria estrangeiras – obtinham lucros escandalosos e fáceis de transferir
para o exterior, lucros que ultrapassavam os 100%. Para melhor esclarecimento deste assunto
tão melindroso apresentamos no final um quadro sobre o que se passou em relação aos
estivadores, quadro que conseguimos elaborar graças ao qualificado oficial da Marinha
Mercante Casaleiro Tavares, que durante anos dirigiu uma empresa de estiva.
Tanto quanto sabemos, não é verdade que até ao início da década de 1950 os
trabalhadores recrutados e contratados por via compulsiva e os condenados a penas de
trabalho correcional, constituíssem – como pretende Jeanne Penvenne – a espinha dorsal da
construção civil em L. Marques. Já então o desemprego afligia a população africana
urbanizada e não havia necessidade de recorrer à compulsão, tanto mais que aquela atividade
era muito apreciada. As circulares nº s 818 e 566/D-7, de 1942 e 1947, visaram, nos seus
fundamentos, resolver o problema da escassez da mão-de-obra nos serviços públicos e na
agricultura dita empresarial. Na verdade, o registo a que se refere a sua nota 20 era relativo a
desempregados. Em 1960 já o problema se tinha agravado de tal modo que preocupava
405
bastante as autoridades. Os condenados por delitos administrativos só em casos excecionais
eram deslocados para efetuar pequenas tarefas de manutenção nos imóveis das associações
desportivas e recreativas. Já o seu emprego maciço em condições desumanas na construção da
catedral é facto incontroverso e fácil de compreender pelo estatuto privilegiado de que gozava
a Igreja Católica.
Importante também e merecedor da maior atenção é o papel desempenhado pelos
sucessivos regulamentos de identificação indígena no combate ao afluxo incontrolado de
rurais aos centros urbanos, afluxo que pouco a pouco foi assumindo proporções tão vastas que
as autoridades se reconheceram impotentes para o dominar. Caíram em desuso as penas
previstas pela lei. Seria de muito interesse recolher estatísticas sobre a evolução anual das
penas de trabalho correcional aplicadas ao abrigo dos diversos regulamentos: identificação,
imposto indígena, serviçais domésticos e contribuição braçal.
Terminamos com os elementos inéditos sobre a problemática dos estivadores africanos
em Moçambique, elementos a que já fizemos referência e que nos foram fornecidos pelo
Com.te. Casaleiro Tavares (adiante C. T.). Para melhor se compreenderem as motivações
desencadeadas por cada uma das greves, foram os elementos agrupados nas quatro tabelas que
se seguem:

Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Qualificação e remunerações Port. 13.871 11 1960 –
– Trabalho extraordinário e períodos de descanso Despacho 12 1960 –
– Retificação Idem 13 1960 –
– Remuneração dos conferentes Port. 14.163 31 1960 –
– Alteração do Artº. 26 da Port. 13.871 Port. 14.360 41 1960 –

Causas da primeira greve:


Segundo C. T., as empresas de estiva, até 1963, pagavam aos trabalhadores eventuais,
sempre Africanos, uma média de dez escudos por dia e um pão. Os lucros empresariais
atingiam 200%. O serviço estatal dos Portos, C. Ferro e Transportes, grande empregador de
mão-de-obra eventual, era o principal opositor contra os aumentos. Em 1963 ocorre a
primeira greve dos estivadores.

Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Normas de trabalho no Porto de L. Marques
Cartões de ingresso limitado, ficheiro individual, livrete para anotar
comportamento, cassação ao arbítrio do Instituto de Trabalho. Despacho
51 1963 1º
Trabalho extraordinário – duas horas por dia, etc. Jorna aumentada (Serpa Rosa)
para quarenta escudos, mais as refeições. C. T. garantiu que a média
atingiu apenas vinte e dois escudos.
– Capatazes e conferentes em Mocímboa da Praia Despacho 38 1964 1º
– Idem, Porto Amélia Idem 42 1964 2º
– Condições e remunerações no Porto da Beira Idem 51 1964 1º
– Vigias no Porto de L. Marques Idem 2 1965 1º
– Capatazes no Porto de Nacala Idem 53 1966 –
– Capatazes e conferentes no Porto de L. Marques Idem 38 1967 1º
– Salários no Porto da Beira Idem 31 1969 1º
406
Segundo C. T. as empresas estivadoras de L. M. não tinham qualquer interesse em
exercer a sua atividade no Porto da Beira porque ali não havia “eventuais” mas apenas
recrutados e contratados com direito a alojamento, alimentação, assistência médica, etc. o que
diminuía a margem de lucro.
Em 1969 os trabalhadores “eventuais” da estiva do Porto de L. M, iniciaram,
inesperadamente, a sua segunda greve a qual esteve na origem da legislação subsequente:

Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Novas normas no trabalho de estiva em L. M. Despacho
A jorna foi teoricamente aumentada para cinquenta escudos. Porém, (F. A.
43 1969 1º
segundo os cálculos de C. T., a média geral atingiu apenas trinta e Gonçalves
dois escudos. Ferreira)
– Regulamento dos Serviços Internos do S. N. P. de Estiva Port. 23.177 41 1970 –
– Idem, da escala de recrutamento Port. 1/71 1 1971 –
– Salários mínimos em Nacala Despacho 106 1971 –

Em 1972 os trabalhadores “eventuais” organizaram a sua terceira greve, reagindo o


governo com as seguintes medidas:

Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Despacho regulamentando o serviço de estiva em L. M. Despacho
(A jorna foi aumentada para oitenta escudos mas, segundo estimou C. T., (Costa 42 1972 –
a média geral rondou pelos sessenta escudos) Tavares)
– Revoga a Portaria nº 13.871 Port. 373/72 42 1972 –
– Regula as concessões de estiva nos Portos Dip.Leg.56/72 66 1972 –

Nota final: após a revolução de 25 abril 1974 os “eventuais” manifestaram-se defronte


do Palácio do Governo, exigindo seiscentos escudos por dia. Apenas conseguiram cento e
cinquenta escudos. Segundo C. T. a carga movimentada por hora desceu de dez/doze
toneladas para apenas cinco toneladas.

Notas bibliográficas:

1 – Jeanne Penvenne (1979);


2 – Jeanne Penvenne (1979);
3– António Rita-Ferreira (1967-68), pp. 389/90.

Totalidade da Bibliografia Citada

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▪ ALMEIDA, E. Ferreira de (1957). O governo do Distrito de Moçambique – Relatório: Nampula 1956.
(2 vol.). Lisboa, Agência Geral do Ultramar.
407
▪ BETTENCOURT, José Tristão de (1945). Relatório do governador-geral de Moçambique…
respeitante ao período de 20 março 1940 a 31 dezembro 1942. Lisboa, Agência Geral Colónias, (1º.
Vol.).
▪ CAPELA, José (1974). Escravatura – A Empresa de Saque – O Abolicionismo (1810-1875). Porto,
Afrontamento ed..
▪ CASTRO, Armando (1978). O Sistema Colonial Português em África (meados do Séc. XX). Lisboa,
Editorial Caminho.
▪ COUTINHO, Gago (1915). Impressões das duas viagens através d’África entre Angola e
Moçambique. Bol. Soc. Geog. Lisboa, 33ª. Série, nº. 5 e 6, maio e junho, pp. 181-208.
▪ CUNHA, J. M. Silva da (1955). O Trabalho Indígena – Estudo do Direito Colonial. (2ª ed., rev. e
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14.
▪ GRILO, F. Monteiro (1946). Relatório do chefe dos Serviços de Agricultura. (2º. vol.). L. Marques,
Imprensa Nacional.
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▪ LACERDA, Francisco Gavicho de (1939). Cartas da Zambézia (Assuntos Coloniais). (3ª. ed., rev. e
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▪ LINCOLN, David (1980). The Origins of Sugar Milling in Mozambique: a Social-Historical
Perspective (versão inicial oferecida pelo autor).
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Colónias.
▪ MELLO, Lopo Vaz de Sampayo e (1910). Política Indígena. Porto, Magalhães & Moniz.
▪ MOREIRA, Adriano (1954). O problema Prisional no Ultramar – Dissertação para o Concurso de
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▪ NEIL-TOMLINSON, B. (1977). The Nyassa Chartered Company: 1891-1927. Londres, J. Afr. History
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▪ PENVENNE, Jeanne (1979). Forced labor and the origin of an African working class: Lourenço
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409


ENSAIO INÉDITO

Culturas Obrigatórias no Moçambique Colonial


Algodão

O arqueólogo D. W. Phillipson (1) atribuiu ao domínio da dinastia dita chirazi,


proveniente da margem oriental do Golfo Pérsico, a prosperidade e a importância que a cidade
de Quiloa atingiu entre 1150 e 1200. Os seus moradores construíram edifícios de pedra
aparelhada, conseguiram inventar argamassas de coral triturado, cunharam moeda própria,
fabricavam e tingiam tecidos de algodão, importavam cerâmicas chinesas e missangas
indianas, etc., etc. Não admira que o famoso viajante marroquino Ibn Battuta – na visita
efetuada entre 1327 e 1330 – a tenha classificado como “uma das mais belas e melhor
construídas cidades do mundo”. Sem dúvida que a região onde hoje se situa Moçambique
esteve sob sua direta influência, com o consequente monopólio da substancial produção
aurífera escoada pelo porto de Sofala.
Na opinião do supracitado arqueólogo, os inumeráveis pesos de tear encontrados nas
escavações efetuadas ao sul do Zambeze são prova segura de que também aí se haja procedido
ao cultivo e à tecelagem do algodão. Porém, só entre 1300 e 1400 d.C. esta atividade se veio a
generalizar no planalto interior, limitado ao norte pelo Zambeze e ao sul pelo Limpopo. As
datações científicas possibilitadas pelo espólio exumado em Ingombe Ilede – no local onde
desagua o afluente Kafue – também provam que, muito antes dos Portugueses, os
comerciantes e navegadores do Índico utilizaram o vale do Zambeze como via de penetração.
Esta via veio a substituir a mais meridional que, durante séculos, tirou proveito da
navegabilidade do rio Save e que, de modo tão estreito, esteve ligada ao engrandecimento da
unidade política outrora sedeada no Grande Zimbábuè. Tal documentação encontra-se parcial
e sumariamente referida no capítulo onze de uma obra específica para a qual se remete o leitor
interessado (2).
O primeiro estudo científico da supracitada manufatura, entre os Manganjas do vale do
Chire, foi efetuado pelo botânico John Kirk que, entre 1858 e 1863, participou na conhecida
expedição ao Baixo Zambeze e à região do lago Niassa, organizada por David Livingstone.
Do sumário publicado por E. Alpers retirámos os seguintes e interessantes pormenores (3):
a) A planta teria sido introduzida pelos Árabes em épocas pré-gâmicas;
b) Dela se cultivavam pelo menos quatro variedades (com mondas a efetuar com
regularidade) mas apenas duas mereciam desenvolvida referência: a Tonje Manga, de origem
exógena e mais comum, era do tipo perene e requeria replantação em cada triénio; a Tonje
Kaja, melhor adaptada às terras altas, exigia replantação anual e era considerada como sendo
de origem endógena;
c) Em setembro 1859 (por coincidência na época do ano em que os caçadores e
mercadores macuas e ajauas se ausentavam das suas povoações durante longas semanas) Kirk
teve a oportunidade de presenciar os Manganjas em plena colheita algodoeira certificando que
nela se ocupava a generalidade dos varões, desde os próprios chefes até aos seus súbditos
mais humildes; a área de cada parcela assemelhava-se ou ultrapassava pouco mais de um acre
(0,40467 do hectare.); a cápsula era colhida assim que amadurecia; o Tonge Kaja exigia maior
esforço no descaroçamento devido à superior adesão à semente, com a desvantagem adicional
410
de ser menor a quantidade de rama produzida; desfiava-se manualmente, em cordões com
cerca de seis polegadas, que em seguida eram enrolados numa espécie de bobina;
d) Livingstone atestou que o Tonge Manga podia, em Manchester, ser equiparado ao
melhor «Nova Orleães»; observou no entanto que o Tonge Kaja gozava de preferência em
relação aos tecidos importados por permitir a fabricação de panos de grande resistência,
semelhantes à lona, as celebradas machilas.
É merecedor de genuína admiração este sucesso multissecular e bastante divulgado
entre as comunidades nativas que entraram em contacto com os colonizadores oriundos do
Médio Oriente, já convertidos ao Islamismo, compreendendo os respetivos descendentes e
aderentes. Esse sucesso ressalta de modo evidente quando é posto em comparação com os
fracassados esforços efetuados por algumas empresas privadas após concluída, pelos
Portugueses, a ocupação militar e administrativa. Por mero acaso, pode ser dado testemunho,
com valor paradigmático, das pertinazes tentativas feitas pela conceituada Companhia da
Zambézia, cuja cronologia consta de um documento inédito encontrado durante a
microfilmagem do vasto e precioso arquivo que mantinha na sua antiga sede em Lisboa,
arquivo que pouco depois, por razões desconhecidas, foi mandado destruir, ilegal e
brutalmente, pelos novos gestores moçambicanos.

A situação da indústria têxtil em Portugal

Entretanto, no decurso desse primeiro quartel do Séc. XX, a indústria têxtil


metropolitana teve que importar do estrangeiro cerca de 95% do algodão em rama que lhe era
necessário. Os respetivos custos anuais, em divisas, atingiam algo como cento e cinquenta
milhões de escudos, o que contribuía de modo substancial para o desiquilíbrio da balança de
pagamentos. A primeira medida visando alterar esta situação foi tomada pelo então ministro
das Colónias, Com.te João Belo, pelo Dec.-Lei 11.944, escassos meses após o golpe militar de
28 maio 1926. Foi estabelecido um regime de concessões territoriais a atribuir a companhias
privadas, dispondo de organização e de capacidade para cumprir as condições impostas pelo
Estado, companhias que passariam a ter o direito exclusivo de adquirir o algodão produzido
pelos indígenas, respeitando os preços oportunamente fixados pelas entidades competentes.
Contudo, essa medida não conseguiu alcançar resultados positivos devido à grande depressão
económica mundial e à consequente queda das cotações do algodão nos mercados
internacionais. Entre 1928 e 1931 à média anual da rama importada por Portugal rodeou as
dezassete mil e duzentas toneladas, contribuindo o Ultramar com apenas 4,5%.
Graças aos benefícios concedidos pelo decreto publicado em 1932 sob a égide de outro
ministro das Colónias, o Prof. Armindo Monteiro, foi conseguido, finalmente, estimular o
interesse dos investidores nacionais. Com efeito, a produção entrou em rápido e sustentado
crescimento. Logo em 1937 a Metrópole importou cerca de 31 mi1 toneladas de ramas
ascendendo a nada menos do que 36,6% o contributo angolano e moçambicano. Não admira
que, no ano seguinte, um terceiro ministro das Colónias, o Dr. Vieira Machado, haja decidido
criar e sedear em Lisboa um organismo de coordenação económica, a Junta de Exportação do
Algodão (Port. Min. 9.024). Foram-lhe atribuídas variadas competências, entre elas
sobressaindo, como é natural, o aumento produtivo e o melhoramento qualitativo do algodão
ultramarino. A lei tornou bem explícita a necessidade premente desses objetivos serem
conseguidos com base em rigorosos estudos efetuados por técnicos competentes e
especializados. Foram tomadas, no mesmo ano, outras medidas reguladoras: o manifesto do
411
algodão, o licenciamento das fábricas de descaroçamento e prensagem, as normas a seguir na
pesagem do algodão-caroço apresentado pelos indígenas, etc.
A produção moçambicana entrou assim em acentuado crescimento. Conseguiu alcançar
a média anual de quase 19 mil toneladas. Este resultado deveu-se sobretudo aos indígenas
porque, nos primeiros anos da década de 1940, se esvaiu visivelmente o interesse dos
agricultores europeus pelo algodoeiro. Os 7.783 hectares que cultivavam em 1940/1 ficaram
reduzidos a cerca de 5.300 na campanha de 1943/4. A indiferença afetou em especial o núcleo
de colonização do Chimoio que, por si só, chegou a trabalhar mais de 3 mil hectares (4). No
quinquénio 1940/4, durante o auge da Guerra Mundial, os nativos venderam um total de
266.500 toneladas de algodão-caroço pelas quais receberam 306.500 contos, o que
correspondeu à média de 1$15 por quilo (5). Porém, se compararmos as médias das diversas
províncias, causam alguma surpresa as flagrantes diferençam que se verificaram: L. Marques
(1$13); Inhambane (1$26); Beira (1$17); Tete (1$17); Quelimane (1$13); Nampula (1$14);
Porto Amélia (1$15). No que concerne o quilo de algodão-fibra o preço médio ascende a
3$70.
Este sistema marcadamente centralizado, burocratizado e sujeito a frequentes erros de
cálculo, só em 1947, como repetiremos, beneficiou de algumas simplificações com redução a
duas qualidades e preços limitados a três escalões, conforme as zonas produtoras. As críticas à
fixação arbitrária das “zonas algodoeiras” e à obrigatoriedade do cultivo em regiões com
ínfimas possibilidades de sucesso, cedo foram formuladas por entidades responsáveis, como o
próprio diretor dos Serviços de Agricultura, no seu conhecido e excelente relatório (6):

“… Mas quando tudo se fez a tempo, com boa vontade e alguma


experiência e a produção teima em quantidades insignificantes, o conselho
honesto é a renúncia à cultura na região comprovadamente inadequada nas
condições normais do meio”.

Inserida nesta perspetiva, estava a oportunidade, por muitos realçada, dos indígenas
poderem obter maiores rendimentos desde que explorassem no mesmo solo outro tipo de
culturas que até poderiam exigir menores esforços. Grilo, em outra passagem do supracitado
relatório, justamente reconhece que: “… Este agricultor iletrado e atrasado – com surpresa
talvez para umas tantas pessoas – também sabe fazer as suas contas sem lápis nem papel e
como todo o homem do campo aprecia a sua liberdade de cultivar o que mais lhe convêm e
interessa… quando assenta opinião sobre o valor lucrativo comparado desta lavra (i. e. o
algodoeiro) é difícil ou impossível faze-lo mudar”.
Mais. A cultura do algodoeiro esgotava rapidamente a fertilidade natural porque
obrigava a extensas derrubas para aproveitamento de terras virgens. Com a autoridade
inerente ao seu elevado cargo, Grilo também condenou está prática nos seguintes termos (7):

“Insistir no que parece ter sido sistema generalizado, em amanhar terra


nova para o algodão, derrubando anualmente duzentos mil hectares de floresta,
é erro profissional, desperdício de recursos naturais e despreendimento do
trabalho requerido para o fim em vista. Não é igualmente de tolerar que a seara
desta planta absorva a capacidade de trabalho da família gentílica em prejuízo
da produção de géneros alimentares necessários ao abastecimento interno”.
Com ou sem críticas, as duas maiores colónias em 1943 já tinham conseguido produzir
cerca de 25 mil toneladas, ultrapassando largamente a quantidade consumida pela indústria
têxtil metropolitana que, entre 1938 e 1943, se manteve na média anual de 22.500 toneladas.
412
Tal não impediu que muitos responsáveis – conscientes das superiores produtividades
normais em outros países – reconhecessem ser indispensável que a cultura moçambicana do
algodão alcançasse níveis mais elevados em matéria de qualidade e de produção por hectare.
O próprio ministro das Colónias, Vieira Machado, estava consciente da necessidade de
incrementar os serviços de investigação e experimentação da Junta do Algodão, seguindo
assim os exemplos fornecidos por britânicos e belgas. Graças a um ocasional conjunto de
circunstâncias, o consagrado botânico Prof. Aurélio Quintanilha foi designado para atingir
esse objetivo em Moçambique. Aqui chegou em outubro de 1943 e durante largos anos
empenhou-se com admirável esforço na consolidação da cultura em bases estáveis e de segura
racionalidade.
Foi essencial a fundação do Centro de Investigação Científica Algodoeira a que veio a
presidir. Com fundamento nas orientações definidas pelos seus técnicos, foram não só
selecionadas as zonas agrícolas mais propícias à cultura, mas também criadas variedades
sementais que permitiram melhorar as fibras por hectare, tanto em qualidade como em
quantidade. As estatísticas comparativas reproduzem este espetacular sucesso: em 1943 e
1953 nos 344.275 hectares cultivados foi alcançada a produção de 61.125 toneladas de
algodão-caroço. Também se conseguiu reduzir em quase 35% o número de indígenas que, por
livre vontade ou sob pressão das autoridades, se dedicavam ao cultivo e à colheita de algodão.
São quase inacreditáveis os aumentos verificados na produção por hectare e por cultivador:
327% e 632%, respetivamente.
Terminada a II Guerra Mundial, a importação de ramas por Portugal veio a atingir a
média anual de quase 34.000 toneladas entre 1946 e 1951. Durante esse período a
participação ultramarina havia ultrapassado 86%. Por infelicidade, a produtividade
metropolitana manteve-se muito inferior àquela que já havia sido alcançada em países com
tecnologia mais evoluída. Desiludido, o autor reconhece que: «A indústria têxtil portuguesa
não soube ou não pode, aproveitar a excecional ocasião que se lhe ofereceu, de 1939 em
diante, para organizar a produção» (8).
A nova legislação publicada em 1946 (Dec. 35.844) – já em parte baseada em precoces
reconhecimentos ecológico-agrícolas – teve, entre outros objetivos, o de concretizar o
reajustamento das zonas algodoeiras. Contudo, veio a atribuir aos concessionários mais
facilidades do que responsabilidades. O Estado passou a garantir-lhes que, dentro das
respetivas zonas, a mobilização de trabalhadores para os serviços públicos e municipalizados
seria reduzida ao mínimo indispensável. Também proibiu a particulares o recrutamento em
áreas algodoeiras, nos casos em que o local de emprego se situasse no seu exterior, muito
embora ressalvando que não seria afetada a liberdade dos indígenas no que concerne quer o
destino emigratório quer a escolha do trabalho a executar.
Outra faceta negativa surgiu na fixação de exigências utópicas, como as relatadas a
seguir. Para que fosse possível não só impor rotações racionais entre o algodoeiro e uma gama
variada de plantas alimentares, mas também manter uma assistência sanitária satisfatória, as
concessionárias teriam de admitir milhares de técnicos quer especializados em agronomia,
fitopatologia e ainda em medicina tropical quer bons conhecedores da psicologia e das
necessidades efetivas das comunidades rurais e tribais. E pessoal qualificado desse nível não
existia e, mesmo que existisse, a sua manutenção seria financeiramente ruinosa. A totalidade
das concessionárias operando em Moçambique empregava um máximo de duzentos agentes
de campo, por norma de medíocre qualidade, quase obcecados em assegurar o direito à
percentagem anual que auferiam sobre a colheita obtida na zona da sua responsabilidade.
Ainda mais quimérica foi a tentativa para induzir os cultivadores a aumentarem a produção
com a promessa de lhes serem atribuídos atestados de «agricultores indígenas» e assim
beneficiarem das regalias que a estes foram oficialmente concedidas em 1944 e 1945, regalias
413
que depressa se tinham revelado infrutíferas. Estas e outras sérias advertências – apesar de
provirem de técnicos qualificados, exercendo cargos de especial responsabilidade – foram por
sistema ignoradas pelo governo central e pelos grupos ligados à indústria têxtil do norte de
Portugal.
É facto incontroverso que a nova regulamentação não conseguiu suavizar as coações
que forçavam os indígenas a produzir algodão, apesar de poderem redobrar os seus
rendimentos com outras culturas, como acentuou o Bispo da Beira em obras publicadas em
1950 (9) e em 1954 (10):

“Sei de circunscrições em que o indígena em anos de produção normal…


recebia como paga da sua colheita de algodão desde cinquenta a noventa
escudos. E na mesma região e nos mesmos locais do algodão, se o indígena se
dedicasse a outras culturas conseguiria em igual área de terreno, e talvez com
menos trabalho, desde dois mil a quatro mil escudos a mais”.

Mas as criticas deste eclesiástico não se limitavam à arbitrária interdição dessa


possibilidade dos cultivadores conseguirem maiores rendimentos. Estendiam-se também à
catastrófica queda verificada na produção alimentar:

“… A principal e a melhor atividade do indígena, em determinada época,


é absorvida pelo algodão e não lhe resta muito tempo nem grandes forças para
cultivar a alimentação necessária a si e aos outros… Não será no caso de a
cultura atual do algodão haver extinto os celeiros abastecedores de
alimentação?”

Por seu lado, o Centro de Investigação Cientifica Algodoeira apenas em 1955 conseguiu
publicar o seu “esboço do reconhecimento ecológico-agrícola de Moçambique”. E mesmo
assim, as recomendações confidenciais que cedo os seus técnicos apresentaram foram durante
algum tempo deliberadamente ignoradas por ofenderem os interesses das concessionárias.
Mas, pouco a pouco, se foram concretizando os indispensáveis reajustamentos. Para isso
contribuiu de algum modo o Dec. 40.405 (B. O. 51/55). A produção por hectare e o
rendimento por cultivador subiram, respetivamente, de 206 kgs/76$80 em 1941 para 470
kgs/765$90 em 1960. No seu estudo, baseado em estimativas que nos parecem em demasia
generalizadas e otimistas, Saraiva Bravo procurou demonstrar que o cultivador de algodão era
relativamente privilegiado não só quando posto em comparação com o trabalhador assalariado
pelas empresas agrícolas da região mas também com o seu congénere que se dedicasse à
cultura de outras espécies (11):

“Com todas aquelas culturas não gasta mais de 270 dias de 8 horas: 150
para o algodão, 60 para o amendoim, 20 para o feijão, 35 para a mandioca e 5
para as fruteiras. Ficam-lhe 95 por ano para arranjar alguma carne de caça e
para a sua vida social, naquilo que mais lhe agradar. Resultado final: pode
alimentar-se melhor, viveu no seu próprio meio, junto da família e dos amigos,
e juntou 1.200 escudos (cerca de 1.000 do algodão e restantes 200 do
amendoim) que lhe dão para comprar mais vestuário e uma bicicleta…”.

Embora seja interessante a comparação que este autor faz com os rendimentos do
trabalhador metropolitano da sua aldeia natal (nesse tempo, remunerado à razão de vinte
414
escudos para os homens e onze escudos para as mulheres por cada dia de trabalho útil)
merece-nos algumas reservas esta imagem utópica do índigena feliz, saudável e vigoroso,
resistente às doenças e ao calor tórrido, dispondo de água e solos férteis, contando com o
auxilio entusiástico da família e, enfim, liberto de pragas e de outros obstáculos naturais que o
ambiente tribal e rural levantava à pratica de uma agricultura moderna e intensiva. Ao que se
nos afigura, estas e outras generalidades de remates positivos, revestem nulo interesse sócio-
económico. Não existem estudos de campo sistemáticos e objetivos que, de resto, apenas
poderiam fornecer restrita panorâmica da comunidade onde fossem efetuados. Aquela visão
otimista era desmentida pelas generalizadas carências alimentares que assolaram muitas
regiões algodoeiras, calamidades justamente denunciadas por Armando Castro e que
provocaram milhares de mortos (12).
Alguns investigadores estrangeiros também descreveram o regime de concessão de
zonas algodoeiras e aludiram, embora veladamente, às imposições, corrupções e outros efeitos
perversos a que o mesmo deu origem. Merece especial destaque a perspetiva publicada em
1978 por Leroy Vail e Landeg White (13), perspetiva que trouxe ao conhecimento
internacional um significativo conjunto de observações que – embora incidindo de forma mais
direta sobre as concessões algodoeiras obtidas pela “Sena Sugar Estates” no vale do Zambeze
– se podem também aplicar às regiões mais setentrionais de Moçambique. Os autores
cometem, no entanto, o erro de dar indevido e excessivo relevo ao papel desempenhado pelos
empregados de campo da dita concessionária. O leitor pouco informado poderá ficar
convencido de que esses subalternos podiam cometer, com total impunidade, toda a espécie
de desmandos, de brutalidades e até de atos criminosos, tais como a violação de mulheres, o
encarceramento de crianças, o espancamento de desobedientes, etc.
É forçoso salientar que todas estas acusações fomentam interpretações deturpadas das
práticas mais correntes. Incitada ou não pelos governadores, a intervenção das autoridades
administrativas era por demasia importante para permitir que os agentes empregados por
empresas privadas agissem de modo atrabiliário e gozassem de absoluta impunidade. Há que
ter sempre em consideração que o desempenho eficiente das competências atribuídas aos
elementos do “Quadro Administrativo” (como eram por norma designados os Serviços de
Administração Civil) exigia que fossem geralmente considerados e respeitados como
exclusivos representantes da Soberania Nacional. Autorizar indistintos particulares a exceder
de modo tão escandaloso as suas meras funções de propaganda e fiscalização, seria reduzir
essas autoridades legítimas ao papel humilhante e intolerável – para o seu brio profissional e o
seu orgulho individual – de meros espetadores passivos, desprezados e até ridicularizados
tanto pelos colonizadores como pelos colonizados. Vivendo como viviam sob o atento
escrutínio de governadores, intendentes e inspetores, as suas carreiras profissionais ficariam
definitiva e irremediavelmente afetadas. Recordemos que o regime político desenvolvido por
Salazar se distinguia por características bastante autoritárias e, como tal, não podia ser
tolerado o desprestígio público e gritante das autoridades locais, a quem os superiores
hierárquicos tinham delegado tantos e tão consideráveis poderes.
415
Obrigatoriedade da cultura. Gratificações em Angola mas recusadas em
Moçambique

Silva Cunha – Subsecretário de Estado e mais tarde ministro do Ultramar de 1972 a


1973 – na sua obra sobre “trabalho indígena”, cita, entre outras leis, o art.11º do Dec. -Lei
35.844 (B. O. 45/1946) que reconheceu às concessionárias algodoeiras o direito ao auxílio das
autoridades administrativas sob a forma de “persistente ação” para se conseguir o
desenvolvimento da cultura mas “sem prejuízo da liberdade da escolha de trabalho aos
indígenas”. A seguir concluiu radiante (14):

“Estas disposições são suficientes para nos levar a excluir a cultura do


algodoeiro do número das culturas obrigatórias”.

Todavia, cai logo em flagrante contradição quando acentua que podiam ser aplicadas
aos nativos penas de trabalho correcional por falta de comprimento das normas que regulavam
o cultivo, o arranque e a queima das plantas. Não contente com isso, acabou por culpabilizar
as autoridades administrativas por todo um conjunto de práticas de extorsão, planificadas pelo
governo central, cujas complexidades e repercussões, mais malignas do que benignas,
tentaremos analisar em simultâneo com o envolvimento e as responsabilidades dos seus mais
diretos representantes em Moçambique: os governadores-gerais e provinciais. Acrescenta
Silva Cunha, distraído quanto ao efetivo contra-senso entre “frequentemente” e “por vezes”:

“… na prática sucede frequentemente que as autoridades, por zelo (ou


excesso de zelo) por vezes ultrapassam os limites legais e procedem de facto
como se o regime estabelecido fosse o da obrigatoriedade de culturas”.

Essencial para se compreender toda esta problemática, era a percentagem sobre a


produção que os dirigentes das concessionárias costumavam conceder, abertamente ou sob
grande secretismo, às competentes autoridades administrativas. Não sabemos se por
ingenuidade ou por deficiente informação, o governador-geral Tristão de Bettencourt
expendeu certas considerações incongruentes e alheadas das cruéis realidades terrenas. De
início explicou, em minúcia, as razões que o tinham levado a discordar da sugestão, por
alguém apresentada, de seguir o exemplo angolano pelo qual foram legitimadas, em ocasião
oportuna, as citadas gratificações. Concluiu, com descabido regozijo (15):

“… mal de nós se apenas o incentivo material for o móbil do seu


trabalho… os resultados das campanhas de 1941 e 1942 mostraram bem que as
gratificações não eram necessárias como incentivo… ficando assim
demonstrado que as autoridades administrativas trabalharam cada vez melhor e
sem mira no interesse material”.

Para melhor entendimento de toda esta antiga e arreigada prática, revelaremos, a título
de exemplo, duas provas documentais encontradas no arquivo, posteriormente destruído, da
sede lisboeta da Companhia da Zambézia. Datadas de 26 outubro 1959 e de 3 março 1960, os
competentes serviços elaboraram “cartas reservadas” relativas aos prémios de algodão a
conceder aos funcionários administrativos em serviço nas regiões onde se situavam as
416
concessões. Foram apresentadas nas sessões do Conselho Geral realizadas a 15 janeiro e a 13
outubro 1960. Das respetivas atas apenas consta, de modo vago, que o Conselho tomou delas
conhecimento. Foram infrutíferos os esforços feitos para descobrir essas “cartas reservadas”.

Classificação dada ao algodão-caroço

Outro aspeto negativo da cultura e que originava fraudes que mais agravaram a
condição dos oprimidos e explorados cultivadores, foi a distinção do algodão em três classes.
O nativo com meios primitivos de colheita, transporte e escolha ao ar livre, ficava com uma
parte importante da sua produção relegada para as classes inferiores, mesmo que tivesse
desenvolvido grandes esforços. As arbitrariedades que podiam cometer-se (e eram cometidas)
nesta matéria ressaltam da própria consulta de elementos estatísticos, como os quadros
apresentados por Tristão de Bettencourt (16). Encontravam-se disparidades gritantes entre a
produção qualitativa das diversas concessionárias, disparidades só explicáveis pela maior ou
menor cautela e honestidade dos agentes que, no ato da compra, procediam à classificação. O
normal seria que a qualidade fosse diminuindo em proporção com a classe, o que de facto se
verificava nestes exemplos, embora com flagrantes desníveis:

Quadro I

Algodão 1ª classe Algodão 2ªclasse Algodão 3ª classe


Concessionárias
Ton. % Ton. % Ton. %
Comp. Moçambique (1941/2) 3.557 71,06 742 14,82 706 14,10
Monteiro & Giro (1941) 888 62,93 362 25,65 161 11,41
Sociétè Colonial (1939) 4.488 62,46 2.033 28,29 664 9,24
Algodoeira Sul Save (1942) 1.004 47,67 602 28,58 500 23,74

Repetiam-se as anomalias que ninguém explicava e muito menos corrigia, como as


seguintes:

Quadro II

Concessionárias Algodão 1ª classe Algodão 2ª classe Algodão 3ª classe


(1942) Ton. % Ton. % Ton. %
Sena Sugar 779 47.90 135 18.96 712 43.78
Lopes & Irmãos 1.690 74.51 78 3.43 500 22.04
Companhia da Zambézia 1.384 64.94 245 11.49 502 23.55
João Ferreira dos Santos 5.075 81.34 87 1.39 1.077 17.26
Sociedade Agrícola Algodoeira 6.740 82.73 150 1.84 1.256 15.41

Este problema nunca pode ser resolvido de modo satisfatório. Não escapou à atenção de
Saraiva Bravo que, na sua obra, elaborou o quadro LXXXI, com base nas percentagens do
algodão de 1ª comprado pelas diversas concessionárias nos anos de 1955, 1956 e 1960,
417
percentagens que oscilavam de modo absurdo, embora fosse de notar que, no sul, atingiam
níveis mais elevados e estáveis. Reconhece este autor (17):

“… Sabe-se que houve grandes divergências nos critérios de


classificação, apesar de existirem padrões de algodão-caroço em todas as
divisões administrativas onde se realizassem mercados. O pessoal de algumas
empresas mostrava evidente parcialidade a favor dos seus patrões, procurando
comprar pelo preço de 2ª, o algodão que era, sem dúvida, de 1ª qualidade”.

As proporções mais próximas da normalidade podiam encontrar-se nas classificações


feitas por um organismo oficial, a Delegação da Junta de Exportação do Algodão Colonial
que entre 1939 e 1942 dirigiu diretamente, no sul do Save, a cultura compulsiva do algodão
(18):

Quadro III

Percentagens Algodão 1ª classe Algodão 2º classe Algodão 3º classe


Máximas 81,3% 30,4% 23,8%
Mínimas 47,6% 8,8% 6,6%

Acresce que, na Metrópole, a diminuição de preço sofrida pelo algodão de 3ª em relação


ao de 1ª era apenas de 11% (19). Já nas tabelas oficiais vigentes em Moçambique essa
diminuição atingia 45%.

Pesagens, pagamentos, aproveitamento da semente com prejuízo para os


produtores

As circunstâncias em que se processavam quer pesagens quer pagamentos também


proporcionavam ocasiões para ludibriar diretamente o próprio cultivador. Os preços oficiais
eram fixados em frações monetárias inexistentes, tais como cinco centavos. As práticas
fraudulentas eram ainda facilitadas pelas crónicas faltas de trocos, pelas balanças grosseiras,
pelo uso e abuso de descontar o peso das embalagens, não raro confecionadas com caniços
engradados devido à escassez de sacaria.
O cultivador indígena foi mais uma vez defraudado quando, após 1945, se iniciou o
aproveitamento e a exportação da semente de algodão e dos seus derivados. Pimentel dos
Santos (20) em artigo publicado em 1953, não hesitou em considerar como lamentável o facto
de constituir mais um bónus oferecido aos concessionários, pois o valor dessa semente não
estava incluído nas cotações fixadas para pagamento do algodão-caroço aos produtores
nativos. Além das quase 5.000 toneladas exportadas em 1960, a indústria local de óleos
vegetais consumiu quase 60.000 toneladas de semente de algodão, produzindo,
respetivamente, 26.380, 6.571 e 1.801 toneladas de bagaço, óleo refinado e fibrilha.
A problemática tortuosa desse aproveitamento foi estudada com algum pormenor por J.
do Amparo Baptista (21). Merece a pena resumir as suas conclusões porque são prova cabal
dos extremos a que podia descer a ganância empresarial.
418
Os factos e as estatísticas provavam que a indústria local de oleaginosas prejudicava
gravemente a economia moçambicana. A semente entrava no cálculo para a fixação do preço
do algodão a adquirir ao nativo e, por tal motivo, foi fixado o preço de 389$26 por tonelada.
Calculemos agora os valores que se obteriam se a semente de algodão fosse exportada. Desde
o período da determinação do valor da semente, ou seja de agosto 1959 a fins de julho 1960,
as concessionárias entregaram às fábricas locais, nada menos do que 63.376 toneladas de
semente. Foi paga pela indústria ao preço médio de 357$79,72 ou seja por a importância total
de 22.675.500$00 (números redondos). Se a semente tivesse sido exportada pelo governo (ou
por qualquer outra entidade), mesmo que se vendesse ao preço de 2$00 por quilo, receberia
nada menos de 126.777 contos! Deduzindo o supracitado preço a pagar aos concessonários de
389$26 por tonelada, este receberia uma demasia superior a uma centena de milhar de
contos!!! No período seguinte repetiu-se a situação. Desde agosto de 1960 a março 1961 os
concessionários algodoeiros entregaram à indústria de óleos local 72.769 toneladas de
semente ao preço médio de 338$75, o que se pode arredondar para 24.650 contos. Os
concessionários pagaram tal semente por 28.326.061$00, pelo que perderam na operação
3.675 contos… Se a semente tivesse sido exportada pelo governo ou qualquer entidade
oficial, conforme a proposta dos concessionários, haveria um lucro para o governo da ordem
dos 117 milhares de contos, que poderia ser aplicado nas zonas rurais.
O que se passava na Metrópole, no mesmo ramo transformador, também provava que
havia na indústria local algo de disfuncional ou de muito enganoso. Os verdadeiros interesses
de Moçambique sofreram prejuízos gravíssimos. Medite-se neste exemplo. A certa fábrica do
Setúbal a semente custava cerca de 2$50 por quilo. Pois este preço, após deduzidos 700$00
por tonelada para despesas até à fábrica, era 5,3 vezes superior ao pago pelas fábricas de
Moçambique! Se a setubalence pretendesse transformar a mesma quantidade de semente que
as moçambicanas processaram em 1960, ela teria sido obrigada a despender algo como
131.000 contos. Mas, como já se viu, as segundas limitaram-se a pagar 24.650 contos, isto é,
embolsaram escandalosamente nada menos do que 106.350 contos! Assim sendo, Amparo
Baptista sentia-se com legitimidade para perguntar aos industriais de oleaginosas de que lado
estava a verdade. Uma mercadoria pela qual pagavam apenas 40$00 por tonelada – e muitas
foram compradas por tal preço – podia vender-se à razão de 2.000$00 FOB, ou sejam
cinquenta vezes mais!
Outro aspeto em que ressaltava a abusiva exploração dos camponeses relacionava-se
com as catorze rubrícas de direitos, taxas, impostos e contribuições, lançadas por diversos
organismos oficiais sobre os derivados do algodão. Saraiva Bravo enumerou em pormenor
essas rubrícas tributárias, concluindo por estimar uma receita direta estadual próxima de um
escudo por cada quilo de algodão-caroço produzido (21). A isto havia a acrescentar os
descontos para o Fundo de Algodão, como adiante referiremos.
Mas o Estado recolheu também vastos proventos indiretos do algodão, já que a cultura
proporcionou à população campestre os meios para liquidar os seus impostos. Eis um quadro
bem elucidativo:

Quadro IV

Pago aos cultivadores de algodão Impostos pagos pelos indígenas


Ano
(em contos) (em contos)
1946 74.361 157.546
1952 249.173 181.294
1960 405.171 237.312
419
Fixação de preços pelo governo central de Lisboa

Gravemente prejudicial para os interesses não só dos produtores indígenas mas também
da economia geral de Moçambique, foi a política baseada em preços oficiais fixados pelo
governo central. Essa fixação revestia aspetos complexos, e envolvia um número elevado de
fatores instáveis que, não raro, eram estimados de maneira arbitrária. Após fixados os preços
de compra da quantidade do algodão em rama ultramarino, pretendida pelos industriais e por
outros importadores metropolitanos, procedia-se a sucessivas deduções que acumulavam
despachos, direitos, taxas, fretes e seguros, para se calcularem, enfim, os preços nos portos
moçambicanos. Deste novo dado eram subtraídas as despesas médias com os transportes a
partir das fábricas. Deduções subsequentes levavam em consideração as despesas efetuadas
com descaroçamento, prensagem, propaganda, distribuição de sementes, organização de
mercados, transportes para as fábricas e, por fim, o lucro das concessionárias e o valor da
semente.
Mesmo assim, cerca de 1960 o cultivador de algodão continuava a ser pior remunerado
do que os seus congéneres dos países vizinhos. Na então Rodésia do Sul, o preço do algodão-
caroço, tanto de 1ª como de 2ª, era sensivelmente duplo do fixado em Moçambique. No
Tanganhica e na Niassalândia o algodão de 1ª era também melhor pago. O contrário acontecia
com o de 2ª.
Esta política deliberada de baixos preços, proporcionou consideráveis lucros à indústria
têxtil de Portugal que assim pode expandir-se e mesmo tentar competir nos mercados
internacionais. Porém, após 1955 foi tão brusca, acentuada e pertinaz a queda das cotações
mundiais do algodão em rama (de 26$22 para 18$84) que em 1960 a diferença entre o
algodão moçambicano e o estrangeiro era apenas de setenta e dois centavos por quilo. São
merecedoras de especial atenção, as pressões que os industriais passaram a exercer sobre o
governo de Lisboa no sentido de obterem autorizações de compra de algodão estrangeiro em
detrimento do colonial. Não deixa de ser curioso que a abolição da cultura obrigatória,
decretada durante o ministério de Adriano Moreira (Dec. 43.639, B. O. 21/61) tenha
coincidido com o natural nivelamento entre os preços das fibras coloniais e os das
estrangeiras.
Entre 1948 e 1956 os rebaixados preços do algodão colonial beneficiaram os
importadores da Metrópole, em algo como 3.314.000 contos (conto = mil escudos). Saraiva
Bravo, em cálculo próprio, demonstrou que, desde 1947 a 1955, o algodão exportado por
Moçambique teria custado a Portugal mais 2.774.000 contos, caso tivesse sido pago ao nível
das cotações internacionais (22). Especialmente escandalosos foram os lucros proporcionados
aos industriais de têxteis durante os anos seguintes:
Quadro V

Preços médios C. I. F. do algodão em


Ano agrícola rama
Moçambicano Estrangeiro
1949/50 12.56 34.60
1950/51 14.25 38.20
1951/52 15.58 29.14

Esta situação chegou a ser discutida na Assembleia Nacional por Pimentel dos Santos
(23):
420

“Em recente debate… foram apresentados números que documentam o


tremendo absurdo económico que se está cometendo. O algodão – pago aos
produtores indígenas a 2$90 por quilo no máximo (até à pouco os preços não
excediam 2$00) – chega às fábricas a 19$00… depois de ter suportado
numerosas alcavalas, é manufaturado e acaba por regressar à Província (i.e.
Moçambique) a um valor fiscal médio que, em 1950, foi da ordem dos 66$00
por quilo”.

Mais precisas foram as críticas de C. F. Spence (24). Nos territórios vizinhos, os nativos
recebiam quase o dobro pelo seu algodão. As fábricas portuguesas não só conseguiam a fibra
por menos de metade do preço vigente no mercado internacional como também vendiam às
colónias por “preços de longe superiores aos preços mundiais do artigo equivalente”. Acresce
que, em Moçambique, os importadores de têxteis eram obrigados a adquirir em Portugal pelo
menos 75% das suas necessidades. Apesar dos elevados direitos de importação, os grossistas
pagavam menores preços pelos tecidos de algodão provenientes da Grã-Bretanha. A tudo isto
havia a acrescentar os direitos de exportação de 12%, aplicados ao algodão em rama
exportado para outros países que não Portugal.

O Fundo do Algodão

Pretensamente relacionada com as repercussões que teriam essas constantes flutuações


de preços que os cultivadores não podiam compreender, está a criação, pelo governo de
Moçambique, no ano de 1959, de um fundo especial destinado ao “melhoramento de vida
indígena”. Para ele teriam que descontar dez centavos por quilo. Desta iniciativa veio logo a
discordar o ministério do Ultramar, cioso das suas prerrogativas centralizadoras. Porém,
aproveitando a ideia e também os aumentos de preço ocorridos em 1951, decidiu autorizar a
criação do Fundo do Algodão (Dip. Leg. 1.922, B. O. 13/1952) para o qual passaram a
reverter, respetivamente 30 e 20 escudos, por cada quilo de algodão-caroço apresentado nos
mercados. Como é natural os vendedores indígenas ignoravam que tal desconto lhes era
efetuado. Eram os próprios concessionários e compradores que, mais tarde, entregavam ao
Estado o valor correspondente. A distribuição dos 280.000 contos arrecadados, desde 1949 até
1960, por este fundo – diretamente dependente da gestão e do arbítrio dos governadores-
gerais – foi feita com manifesto prejuízo dos cultivadores do norte de Moçambique. Mais
justo e equitativo teria sido elevar os preços de harmonia com as cotações internacionais.
Assim se justificariam os descontos que depois poderiam ser reduzidos ou mesmo suprimidos
sem afetar os rendimentos dos produtores (25).
Faria Lobo reproduz o caso especifico do atual distrito do Erati onde entre 1951 e 1960
foram descontados aos indígenas 16.546 contos, tendo o Fundo ali aplicado escassas centenas
(26). Outro caso concreto de aplicação arbitrária daqueles recursos em benefício de
populações dispensadas do cultivo compulsivo de algodoeiro, pode verificar-se nas pseudo
cooperativas de Zavala, fraude impúdica que merece clara denuncia e a mais veemente
condenação. Só o exame minucioso dos relatórios e contas do Fundo do Algodão permitirá
apurar as consideráveis somas ali desbaratadas até à data da sua extinção em 1961 (Dec. – Lei
43.874, B. O. 36/61). Não faltará quem discorde desta contundente apreciação, sobretudo se
tiver lido e ponderado o estudo bem fundamentado, subscrito por Manuel Jorge C. de Lemos
e publicado em 1992, isto é, três décadas após a extinção do Fundo do Algodão (27). Este
421
investigador apresenta, sem dúvida, importantes dados fatuais mas parece hesitar na
formulação de juízos de valor sobre os sucessos, as distorções e os fracassos estreitamente
ligados à aplicação, não raro arbitrária, de assaz elevados montantes, extorquidos de modo
indireto aos pequenos produtores de algodão, dispersos pelas províncias setentrionais de
Moçambique. Influenciados pelos motivos ponderosos que adiante serão pormenorizados,
iremos apresentar um certo número de contraprovas embora frisando a simpatia que merece a
abordagem do autor, tão diferente da adotada por críticos nacionais e estrangeiros. Do modo
pouco feliz, estes últimos concentraram-se – de modo fastidioso e não raro enganoso – nas
múltiplas facetas negativas do colonialismo português em Moçambique. E bem desejaríamos
que, com estas e outras resumidas reflexões, os historiadores mais jovens reparassem melhor
como pode ser possível que haja tantas divergências entre as análises formuladas por aqueles
que viveram os acontecimentos de outrora e as interpretações bem intencionadas daqueloutros
que tentam reconstituir semelhantes eventos compulsando aplicadamente a documentação que
se encontra porventura arquivada. Os “motivos ponderosos” que acima mencionámos
ressaltam da mera leitura da obra que publicámos em 1963 sobre as cooperativas indígenas do
sul do Save (28). Escrevemos o que se segue:
“… Um dos resultados que mais exaltado tem sido… é o da formação das cooperativas
da Manhiça, Chibuto e Zavala. No entanto, se as analisarmos à luz fria da razão e das
estatísticas cedo se concluirá que não há justificação para tamanhos transportes de
entusiasmo” (pp.169/170).
E mais adiante:
“As três cooperativas existentes nesta área (Manhiça) tinham, em 1958, apenas
seiscentos e cinquenta sócios, representando menos de 4 % dos varões adultos… os lucros,
em moeda, que se obtiveram são… totalmente insuficientes para competirem com os salários
oferecidos nos grandes centros de trabalho” (pp. 170/1).
E continuando:
“O menos que se pode dizer dos elementos apresentados… em 1958 e 1959, pela
autoridade administrativa (do Chibuto) é que são totalmente incongruentes, não permitindo
que deles se extraíam quaisquer conclusões sérias” (p.171).
E, para finalizar com alguma mágoa devido à genuína admiração que sempre nutrimos
pela etnia chope:
“As cooperativas de Zavala’ têm sido desmesuradamente glorificadas… Cingindo-nos
apenas aos rendimentos em dinheiro que se afirma terem sido obtidos… a interpretação das
cifras fornecidas oficialmente fez brotar o nosso espírito grandes dúvidas e perplexidades”
(p.172).
Com efeito, nos finais de 1959 e inícios de 1960, recebemos a incumbência de
acompanhar certo estrangeiro de grande prestígio, convidado, pelo próprio ministério do
Ultramar, para efetuar uma visita oficial a Moçambique. No itinerário, elaborado com
cuidado, foi incluída a cooperativa da Manhiça e, ainda, as dos regedores Zandamela e
Banguza, sitos na então circunscrição de Zavala. Um colega que pediu sigilo, revelou:
a) Que estas últimas eram inexistentes e que os supostos livros de contabilidade eram
redigidos na Administração, bem como toda a correspondência;
b) Que as vultuosas compensações pagas aos trabalhadores que haviam contraído
doenças incapacitantes nas minas sul-africanas, como a silicose, eram creditadas como
receitas da pseudo cooperativa, após os beneficiários serem contra sua vontade inscritos como
“sócios”;
422
c) Que a autoridade administrativa estava interessada não apenas na sua própria
projeção pessoal mas também na dos régulos Felisberto Machatine, de Zandamela, e Filipe
Madumane, de Banguza, os quais, pelo governador-geral haviam sido guindados, junto dos
organismos internacionais, como dirigentes exemplares de uma nova política de promoção
das populações rurais. Em junho 1966 quando voltámos a Zavala com o maestro Joly Braga
Santos – interessado no estudo das grandes orquestras de xilofones (timbilas) – apenas
restavam como últimos vestígios daquelas pseudo-cooperativas algumas casas abandonadas
no meio do mato bravio. E em 1972 e 1973, ao organizarmos com Hugh Tracey, os dois
“festivais de música chope”, nem ruínas dessas casas se podiam encontrar. Com estas e outras
iniciativas do mesmo tipo se desbarataram os vultuosos recursos do Fundo do Algodão.

A indústria têxtil em Moçambique

Uma das mais frequentes acusações formuladas contra a política de Salazar,


fundamenta-se nos obstáculos levantados à industrialização das possessões ultramarinas.
Exemplo típico seria o dessas unidades fabris, como as têxteis, que transformavam em
produtos de largo consumo interno as matérias-primas produzidas em Moçambique. A
experiência feita com a SOALPO, em Vila Pery, demonstrou que a pretensa falta de
entusiasmo dos investidores era baseada em sólidas justificações económicas. Essa grande
fábrica que exigiu um investimento de cerca de 150.000 contos apresentava custos de
produção superiores aos das suas congéneres metropolitanas. Eis as razões deste paradoxo que
resultavam claramente do dualismo da estrutura social e económica:
a) Os empregados europeus não só auferiam salários cinco vezes superiores aos dos
seus colegas em Portugal, como também beneficiavam de melhores complementos sociais,
como habitação, assistência médica, licenças em Portugal, passagens de ida e volta, etc.
b) Devido ao seu elevado absentismo, a produtividade dos operários africanos cifrava-se
por metade da dos seus congéneres em Portugal. Apesar disso, os relativos custos suportados
pela empresa (salários, alojamento, alimentação, assistência médica, etc.) não eram menores.

Observações sobre o estudo de Allen Isaacman et alli

Allen Isaacman e os seis co-autores também opinaram em 1980 sobre o problema da


produção algodoeira em Moçambique (29). Colocando-se numa perspetiva sem dúvida
marxista concederam especial atenção à resistência oferecida pelos cultivadores contra a
apropriação dos seu trabalho e à “transformação dos cultivadores comunais em camponeses
produzindo para o mercado, transformação essa ligada ao processo mais vasto da
diferenciação entre classes”. Antes de formularmos algumas críticas às premissas em que se
baseou esta abordagem, faremos alguns reparos dispersos que nos parecem pertinentes:
a) Devido à escassez de atividades económicas não podia aplicar-se a grande parte do
norte de Moçambique, principal região produtora, o argumento de que as dificuldades
experimentadas pelo regime algodoeiro na mobilização campesina teriam sido agravadas pela
competição com outros interesses capitalistas em matéria do emprego de mão-de-obra
indígena;
423
b) Existia uma fonte rigorosa e de fácil acesso para conhecer o verídico número de
trabalhadores moçambicanos empregados na então Rodésia do Sul: os censos populacionais
levados a efeito neste país;
c) A fiscalização das operações de cultivo nas parcelas marcadas aos cultivadores era
por norma efetuada pelos empregados de campo das concessionárias e pelos respetivos
auxiliares e não pelo corpo de polícia das administrações (sipais), cuja eficiência deixava
muito a desejar quer pela reduzida quantidade quer pela fraca qualidade;
d) Foram por demais exagerados e generalizados pelos críticos do sistema, os casos de
espancamento e outras formas de violência, eventualmente cometidas pelos agentes da
autoridade;
e) Não é verdade que fossem compelidos a trabalhar em grandes plantações, com
salários ínfimos, os indígenas que não atingissem a sua cota mínima de produção algodoeira;
f) Em Moçambique, como em qualquer outro território africano, era, e continua a ser,
fisicamente impossível que uma simples centena de funcionários administrativos e apenas
dois milhares de sipais, pudessem exercer controlos tão apertados como aqueles que são
descritos pelos autores, abrangendo cerca de meio milhão de cultivadores dispersos por vastas
regiões selváticas, acidentadas e carecidas de vias de comunicação;
g) As concessionárias algodoeiras não eram controladas pelos capitalistas locais: o
respetivo capital tinha, na sua maioria, proveniência metropolitana ou estrangeira;
h) Não merecem credibilidade os episódios narrados aos autores, após a Independência,
durante as entrevistas coletivas que efetuaram entre as populações rurais, na presença de
representantes da Frelimo;
i) Em nada abona a idoneidade científica dos autores a reprodução de episódios
extravagantes como seja o lançamento de pedregulhos sobre as autoridades portuguesas, feito
por bravos resistentes refugiados em montanhas ou, também, o dos exércitos de sipais
patrulhando milhares de quilómetros de agrestes fronteiras;
j) Embora não neguemos o facto de haverem existido numerosas formas de resistência
tanto ativa como passiva, é nosso entendimento que o contínuo aumento da produção e da
produtividade constitui prova cabal de que foram mínimos os efeitos negativos dessa
resistência e ainda que, nas regiões mais favoráveis, o algodoeiro passou a ser cultivado de
modo voluntario como importante e mesmo única fonte de rendimentos: os próprios autores
reconhecem que, entre 1938 e 1961, a exportação da fibra aumentou em cerca de 700%;
k) As fomes endémicas que, durante milénios, afligiram o continente negro e que –
tanto em Moçambique como em muitos países – se agravaram de modo dramático após as
respetivas independências, apenas de forma esporádica podem ter sido causadas pela
imposição de culturas de rendimento durante o período colonial. As verdadeiras causas
residem na adversidade do meio ambiente e, subretudo, no rudimentarismo tecnológico que
caracterizava as comunidades rurais e tribais africanas. E, em tempos mais recentes, na
explosão demográfica possibilitada pela implantação de serviços especializados na
erradicação de tantas e tão debilitantes doenças tropicais;
l) Na interpretação fundamental, chegam a exaltar a importância alcançada pela cultura
algodoeira na formação de uma classe distinta de pequenos camponeses de tipo capitalista.
Discordamos e até ousamos pedir a atenção dos autores para a antiquíssima dinâmica interna
das comunidades tradicionais, tal como tem sido modernamente aprofundada por ciências
como a antropologia, a linguística, a arqueologia, etc. cujas descobertas têm sido utilizadas,
com frequência, para confirmar numerosos dados constantes da vasta documentação
portuguesa;
424
m) Não pode deixar de se condenar com vigor o facto de nem sequer mencionarem a
especificidade da organização social matricêntrica prevalecente nas maiores regiões
produtoras, ao norte do Zambeze. Nem as implicações derivadas da fruição de terras e
colheitas pela matrilinhagem, do casamento uxorilocal sem compensação nupcial e
consequente facilidade de divórcio e atribuição dos filhos à mãe e sua família.

Considerações finais

Limitando-nos apenas aos critérios de desenvolvimento económico das comunidades


rurais, ter-se-ia podido justificar a cultura compulsiva do algodoeiro mas só entre as
populações setentrionais que não dispunham quer de culturas alimentares capazes de
fornecerem rendimentos monetários equivalentes quer de empregos por conta de outrem
escolhidos sem coação, tanto no interior como no exterior de Moçambique. E essa política ao
mesmo tempo modernizadora e respeitadora dos direitos humanos – complementada pela
definição do ambiente ecologico-agrícola, mais apropriado à cultura – teria reduzido a
mancha algodoeira à atual província de Nampula e a parte das atuais províncias da Zambézia
e de Cabo Delgado. Resumindo. De 1939 a 1961 a cultura só foi possível à custa de elevados
sacrifícios impostos às comunidades nativas. O sistema prejudicou gravemente a economia de
Moçambique em benefício quer dos acionistas e proprietários das companhias concessionárias
quer dos industriais têxteis do norte de Portugal. Mesmo assim não podem negar-se alguns
efeitos positivos. É certamente contestável a opinião de Leroy Vail e Landeg White quando
consideram o sistema como “one of those fiascos so typical of Portuguese colonial
administration”. Abstraíndo dos métodos usados, não se pode classificar como fiasco uma
atividade produtiva que a partir do zero chegou a atingir 140.000 toneladas em 1960,
proporcionando aos cultivadores indígenas um rendimento superior a 400.000 contos por ano.
O cultivo do algodão acelerou a integração das empobrecidas populações setentrionais na
economia monetária, melhorou os transportes e as vias de comunicação, aumentou a rede de
estabelecimentos comerciais e o consumo de bens essenciais à elevação das condições de
vida. O Fundo do Algodão contribuiu para desenvolver a assistência sanitária e educativa e o
abastecimento de água potável às comunidades rurais. Certos concessionários investiram os
seus lucros em outras atividades produtivas. Dinâmicos empresários fomentaram a instalação
de indústrias transformadoras baseadas na semente do algodão e dos seus derivados. Outros
beneficiários indiretos da cultura aplicaram os seus proventos na construção civil urbana. Os
sangrentos acontecimentos ocorridos no norte de Angola durante os meses de fevereiro e
março 1961, tiveram o indiscutível resultado de convencer Salazar e os seus apoiantes de que
se tornava necessário introduzir alterações na “política indígena” tal como era praticada nas
possessões ultramarinas. O Prof. Adriano Moreira, nomeado ministro do Ultramar, soube
atuar com rapidez e precisão (30). No discurso que proferiu perante o Conselho Legislativo de
Moçambique, a 27 setembro daquele ano, foi perentório (31):

“Refiro-me ao problema das chamadas culturas obrigatórias que


principalmente dizem respeito ao rícino, ao arroz e ao algodão. Está revogada
toda a legislação que direta ou indiretamente impunha o princípio da
obrigatoriedade; e tem importância salientar, por ser justo, que a iniciativa
coube aos órgãos legislativos desta Província no domínio do arroz” … “a
realização de um programa de justiça social, inscrito na Constituição, não pode
levar-se a cabo sem algumas perdas no domínio da economia”.
425
De facto, o governo central publicou, no mesmo ano, não só disposições legais
confirmando a anunciada liberalização, como também a orgânica e a respetiva
regulamentação do novo Instituto do Algodão. O relato da evolução sofrida pela cultura após
1962, já em regime livre, ficará melhor enquadrado em estudos com propósitos mais
extensivos, dedicados à produção agrícola em geral. Com a abolição do sistema de concessões
e a proibição de intervenção das autoridades administrativas, registaram-se, como se esperava,
substanciais quebras na produção. O máximo de 140.000 toneladas em 1960 ficou reduzido a
86.000 toneladas em 1965. Suprimido o elemento compulsivo da mini-exploração no setor
tradicional, logo se manifestaram as resistências estruturais que, em muitas regiões, se
opunham à cultura algodoeira. O novo regime de comercialização por concurso e adjudicação
(1963), bem como a redefinição das zonas algodoeiras (1966) e a outras medidas legislativas,
conseguiram relançar a produção em 1966/67 para cerca de 125.000 e 8.000 toneladas,
respetivamente nos setores tradicional e empresarial. Entretanto, um número significativo de
agricultores evoluídos, encorajados pela proteção estadual e por preços mais compensadores,
resolveu arriscar-se na produção algodoeira. Logo em 1967/68 o número desses produtores
ascendeu a 918, cultivando 16.223 hectares e produzindo 14.056 toneladas. A partir desta data
o Instituto de Algodão lançou-se numa iniciativa que consideramos como uma das primeiras
tentativas conscientes para a eliminação do crónico dualismo sócio-económico: a criação de
União Cooperativa Agrícola e Industrial do Vale do Zambeze, cujos filiados passaram a ser
classificados como “agricultores empresariais”. Porém tal medida teve, para os estudiosos, a
inconveniente confusão dos dados estatísticos, como demonstra o seguinte quadro:

Quadro VI

Número de Área cultivada (ha) Produção de algodão-caroço


Campanha
produtores Total Individual Total (ton.) Kg/há Kg/produtor
agrícola
S. E. S. T. S. E. S. T. S. E S. T S. E S. T S. E S. T S. E S. T
1967-68 918 509.145 16.223 361.123 17,7 0,7 14.056 111.338 866 308 15.311 218
1968-69 21.925 480.428 34.608 337.701 1,6 0,7 26.757 110.039 773 326 1.220 229
1969-70 33.300 422.922 46.774 304.510 1,4 0,7 46.410 92.589 992 304 1.393 218
1970-71 36.290 427.067 82.536 300.880 2,3 0,7 57.224 48.391 693 161 1.579 113
1971-72 36.290 337.312 a) a) a) 77.575 61.033 a) a) 2.138 181
1972-73 36.290 283.829 a) a) a) 85.073 57.190 a) a) 2.344 201

S. E.= Setor empresarial S. T.= Setor tradicional a) Desconhecido

Nos anos que precederam o golpe militar de 1974, verificou-se, por conseguinte, a
nítida dinamização do “setor empresarial” e a simultânea decadência do “setor tradicional”.
Esta tendência constata-se melhor pela análise do seguinte quadro, limitado às três províncias
setentrionais, onde se não verificou a deturpação estatística introduzida nos dados globais,
causadas pela inclusão, no “setor empresarial”, de milhares de pequenos cultivadores
africanos das atuais províncias de Tete, Sofala e Manica.
426
Quadro VII
Média anual de produtores e da produção (1967-1971)

Tipo de Nº de Área Produção de algodão-caroço


Província
exploração produtores Cultivada (ha) Ton. Kg/há Kg/produtor
Tradicional 180.045 135.080 33.633 249 187
Moçambique
Empresarial 257 13.915 12.091 869 47.046
Tradicional 63.101 48.647 13.740 382 218
Cabo Delgado
Empresarial 156 4.929 4.103 832 26.301
Tradicional 35.919 26.413 6.588 249 183
Niassa
Empresarial 43 1.069 933 873 21.697

Segundo as estatísticas da O. N. U., a produção de algodão-fibra evoluiu desde modo, a


partir de 1974:

1974 46.000
1975 17.000
1976 12.000
1977 18.000
1978 22.000
1979 22.000
1980 18.000

Arroz

As dificuldades de abastecimento decorrentes da II Grande Guerra levaram à criação de


um regime que incrementasse a cultura do arroz, já com tão antigas tradições que podem
remontar a cerca do ano 400 d.C., data da chegada dos Indonésios.
Após a publicação do Dip. Leg. 754 (B. O. 24/1941) optou-se por uma estrutura
semelhante à algodoeira, definindo-se e concedendo-se a empresas particulares os designados
“círculos orizícolas”, dentro dos quais a cultura se tornaria obrigatória. Criou-se um
organismo financeiramente autónomo, com orçamentos e receitas próprias, o Fundo de
Fomento Orizícola [Dec. 31.887 (B. O. 17/1942)]. Entendeu-se que a sobrevalorização de que
beneficiou o arroz durante aquele conflito armado não deveria reverter a favor do produtor
mas em utensílios, obras de hidráulica agrícola, educação rural, campanhas antipalúdicas, etc.
Todo este regime se encontra minuciosamente descrito por Tristão de Bettencourt (32).
Também C. F. Spence apresentou uma útil estatística, relativa ao período 1934/60 sobre a
produção de arroz em casca e a importação e exportação de arroz limpo.
Os males do sistema concessionário eram, neste caso, agravados pelo facto de se tratar
de um produto comestível e bastante apreciado pelas populações indígenas. C. F. Spence
elucida-nos suficientemente sobre esta problemática (33):

“Mas onde o concessionário orizícola perde, em face do seu colega


algodoeiro, é no muito importante facto de que o indígena come arroz, ao passo
não come o algodão.” … “Uma vez que muitos dos indígenas que vivem nas
427
áreas das concessões plantam já arroz com regularidade, a única possibilidade
de aumentar radicalmente a produção de arroz, pelos indígenas, para venda às
fábricas, é a pressão oficial insistindo pelo cultivo de uma área mínima por
pessoa e pela venda obrigatória às fábricas duma proporção mínima da
colheita.”

As últimas sugestões desde autor já haviam sido adotadas pela Administração, por vezes
com recurso a métodos excessivamente severos, como a fixação de metas de produção a cada
cultivador e a responsabilização direta das autoridades gentílicas.
Como aconteceu com outras práticas da administração colonial em Moçambique, houve
cidadãos portugueses, de rígida fibra moral, que cedo denunciaram os abusos cometidos,
antecedendo em largos anos as críticas formuladas em datas mais recentes por diversos
académicos de expressão inglesa. Um deles foi o Bispo da Beira que em 1950 escreveu (34):

“… Em certos lugares esta máquina de trabalho está posta a funcionar de


maneira que não pode merecer aprovação. Há o concessionário da zona
orizícola que tem o monopólio da compra do arroz. Ao indígena designa-se
com antecipação o quantitativo que ele fica obrigado a fornecer após a colheita.
Ora sucede muitas vezes, ou porque a designação desse quantitativo foi
excessiva, ou porque o ano não foi favorável às culturas, que a sementeira
produziu menor quantidade que aquela que o indígena estava obrigado a
apresentar. Nestes casos, os indígenas, hão-de ceder tudo quanto colheram e,
além disso, são obrigados a ir comprar o restante até completar a referida soma
estabelecida para a entrega. Esta compra que efetuaram ou a outros indígenas
ou ao próprio concessionário é feita sempre por preço superior ao da venda”.

Quanto às denúncias de Vail e White, a que já fizemos referência, embora aceitáveis da


sua generalidade, merecem a mesma crítica formulada em relação ao algodão. As violências
cometidas durante certo ano agrícola, numa área restrita, por um tal Ruy Pereira de Lima,
empregado da Sociedade Comercial e Industrial do Zambeze e Chire, foram prontamente
reprimidas pelo administrador do Chinde e pelo chefe de posto do Luabo.
Vail e White incorreram em outro erro ao atribuírem apenas às pressões internacionais a
abolição das culturas obrigatórias. As próprias denúncias feitas em organismos internacionais
eram praticamente ignoradas do interior dos territórios portugueses, devido à censura prévia
das notícias.
De maneira semelhante ao que aconteceu com o algodão, a cultura forçada do arroz
deixou de oferecer qualquer interesse económico. Os cerca de mil colonos europeus
estabelecidos no Baixo Limpopo, preferindo o arroz às culturas que lhes eram sugeridas pelo
respetivo organismo estatal, conseguiram ultrapassar – unicamente com as suas charruas
atreladas a bovinos – a produção orizícola de muitos milhares de pequenos cultivadores de
enxada, nas atuais Províncias da Zambézia e de Nampula.
428
Bibliografia

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16) BETTENCOURT, (1945). Idem idem, vol. II, p.256.
17) BRAVO, (1963). Idem idem, p. 181.
18) BETTENCOURT, (1945). Idem idem, vol. II, p.244.
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24) SPENCE, C. F. (1951). Descrição Económica de Moçambique. L. Marques, Minerva Central, p.149.
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26) LOBO, J. B. Faria (1962). Distrito de Moçambique – Circunscrição do Erati. Lisboa, Boletim Geral do
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27) LEMOS, Manuel Jorge C. de (1992). O Fundo do Algodão (1952 – 1961). Maputo, Arquivo – Boletim do
Arquivo Histórico de Moçambique, 11, pp. 67 – 81.
28) RITA-FERREIRA, A. (1963). Movimento Migratório de Trabalhadores entre Moçambique e a África
do Sul. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar (Est. Cien. Polit. Soc. – 67).
29) ISAACMAN, Allen et alli (1980). Cotton is the mother of poverty: peasant resistance to forced cotton
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32) BETTENCOURT (1945). Idem idem, vol. I, p.274.
33) SPENCE, C. F. (1951). Idem, idem, pp. 71/2.
34) RESENDE, Sebastião Soares de. (1950) Ordem Anticomunista. L. Marques, Imprensa Nacional, p.145.
429


ENSAIO INÉDITO
A Educação dos Africanos no Moçambique Colonial
Aspetos ideológicos

As matérias que se pretendem abordar são de tal maneira vastas e complexas que não é
possível dedicar muito tempo a explicar a ideologia subjacente ao sistema educativo que foi
imposto em todo o império colonial e, sobretudo, as razões pelas quais ignorava, quase por
completo, os valores e as culturas africanas em geral e moçambicanas em especial. É este o
motivo por estas linhas, dedicadas aos aspetos ideológicos, irem ser breves e quase limitadas à
transcrição de textos significativos.
Como se sabe, foi o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre quem melhor apresentou e
defendeu a teoria de que os povos ibéricos – os Portugueses em especial – constituíram casos
únicos na moderna história colonial (1). Teriam o enorme mérito de entrar em contacto com
outros povos, levando consigo os valores próprios de uma sociedade bem definida na sua
globalidade e, acima de tudo, cristã nos seus fundamentos. Não seriam valores baseados
apenas no indivíduo, como aconteceu com os povos do norte da Europa, profundamente
influenciados pelas ideias defendidas pela Reforma Protestante. Assim, o esforço português
nos Trópicos e no Oriente foi, em termos sociológicos, de natureza cristo-cêntrica e, portanto,
tendente a comunicar aos povos não-cristãos valores por completo alheios à noção de raça.
Esse esforço ímpar não teria sido etnocêntrico como o de outros europeus (Holandeses,
Ingleses e Franceses) incapazes de se libertarem das suas particularidades específicas e
inclinados a impor a sua aceitação por as considerar de nível superior e do tipo messiânico. Os
portugueses da época da expansão ultramarina classificavam a catequização dos indígenas
como o único instrumento de elevação e de formação moral. Não se podia atingir suficiente
perfeição, nem se tornar Português, i.e. ser homem no sentido completo da palavra, sem a
prévia conversão ao cristianismo militante (2).
***

Ainda nos últimos anos da monarquia, já sob predomínio dos ideais republicanos e
liberais favoráveis à separação entre o Estado e a Igreja, um especialista em questões
coloniais, L. V. Sampayo e Melo, ciente dos perigos da expansão islâmica em África, escrevia
(3):

“O que atualmente existe nas nossas colónias, preciso é dizê-lo, no


interesse de todos, salvo honrosas exceções, é pouco e muito deficiente como
meio educativo e civilizador… O fim principal das missões é a moralização do
indígena e a sua preparação para o trabalho por intermédio do ensino
profissional. Entretanto, a doutrinação religiosa… é uma excelente medida
preventiva contra o alastramento da lei corânica… Os numerosos tentáculos do
grande polvo mahometano ameaçam prender num abraço indissolúvel a grande
maioria das populações africanas… A política religiosa e educativa deve ser
uma das principais preocupações da administração local, e para ela devem ser
orçamentadas verbas que permitam a mais completa e latitudinária expansão da
propaganda moral e religiosa no seio da sociedade indígena, a fim de iluminar
mais rápida e proficuamente, e com mais intensa e duradoira claridade, as
trevas nefastas da ignorância negra”.
430
Estas convicções tradicionalistas que fazem lembrar os esforços feitos no Séc. XVI para
erradicar o Islamismo do Oceano Índico, sofreram forte contestação após a proclamação da
República em 1910. Nos quinze anos caóticos da I República tiveram preponderância os
ideais inspirados no ateísmo e no anticlericalismo. A necessidade de levar a “civilização” até
às populações nativas que se dispersavam pelos sertões do interior, levou à criação das
Missões Laicas, que procuravam acumular as funções de escolas, oficinas e hospitais.
As forças católicas, conservadoras e tradicionalistas, conseguiram impor-se novamente
após o golpe militar de 1926. À hostilidade atávica contra o Islamismo vieram a acrescentar-
se sobejas suspeições contra as igrejas protestantes consideradas como promotoras da
“desnacionalização” do Africano, tanto mais que durante, o precedente período anárquico,
tinham elas reforçado de forma considerável a sua implantação. Repare-se nesta passagem de
uma conferência feita em 1929 pelo professor da Universidade de Coimbra, L. W. Carrisso,
após uma excursão académica a Angola (4):

“Julgo não faltar à verdade afirmando que todos adquiriram a convicção


de que é absolutamente necessário dispensar à ação missionária católica o mais
desvelado apoio e os auxílios de toda a ordem de que ela bem precisa para se
desenvolver. Precisamos de muitos missionários portugueses, ardendo em fé e
repassados de espírito de sacrifício. Não podemos, nem devemos fechar a porta
às missões estrangeiras; mas devemos dar àqueles que representam a secular
tradição portuguesa os indispensáveis recursos para poderem exercer a sua
nobilíssima função. Só assim se evitará o espetáculo confrangedor de vermos
nas mãos de estrangeiros, que nenhumas afinidades têm com o nosso espírito e
com a nossa raça, completamente indiferentes às nossas aspirações nacionais, o
mais poderoso instrumento de civilização e aperfeiçoamento moral de que se
utilizam as nações coloniais”.

Álvaro de Fontoura foi outro ideólogo que expressou idênticas opiniões. Na sua
comunicação ao III Congresso Colonial Nacional realizado em Lisboa, entre 8 a 5 maio 1930,
afirmou (5):

“O resultado foi que Angola e Moçambique se encheram de missões


estrangeiras, subsidiadas por sociedades ricas e com o espírito oposto ao
português, não poucas vezes originando conflitos internacionais (caso da
Comissão Ross que foi averiguar as práticas de trabalho forçado) e a
insubmissão dos indígenas às nossas autoridades… Torna-se absolutamente
indispensável a existência de missões religiosas portuguesas que possam
combater a ação desnacionalizadora das estrangeiras… Refere-se o (coronel)
Roma Machado que nas missões anglicanas e suíças de L. Marques e Gaza
pouco mais que o ensino da religião se ministrava, não se ensinando o
português e instigando-se os indígenas ao serviço obrigatório, convencendo-os
de que sendo educados na missão inglesa e suiça, só a Inglaterra ou a Suiça
podem ter sobre eles autoridade… O ensino do indígena deve ser ministrado de
forma a criar-lhe lentamente a ideia da Pátria Comum – Metrópole e Colónias.
O ensino do indígena das Colónias Portuguesas deve principalmente ser
ministrado por missionários religiosos católicos, por ser o catolicismo a religião
da maioria dos portugueses e ter sido à sua sombra que a Nação se lançou na
obra de colonização”.
431
Simultaneamente apresentou uma breve estatística das missões estrangeiras
concentradas no sul de Moçambique. Em Inhambane havia setenta e cinco postos
missionários das seguintes instituições: American Body, The Board Mission, Salvation Army,
American Free Methodist Mission, Anglican Mission e outras. Não fugindo à distorção
estrutural que levava todas as atividades não africanas, portuguesas ou estrangeiras, a
concentrarem os seus esforços na província de L. Marques, a ocupação missionária
protestante era aí ainda mais densa. Distribuíam-se assim os respetivos postos missionários:

163 Methodist Episcopal Church Mission


88 Anglican Mission
83 Wesleyan Methodist Church of South Africa
11 Mission Suisse Romande

Claro que estas e muitas outras intervenções influenciaram as iniciativas dos políticos
nacionalistas – entre os quais se encontrava Salazar – que vieram a dominar o governo após o
golpe militar de 1926. E deve reconhecer-se que tinham algum fundamento os receios
expressos nas três passagens que selecionámos (6). No norte de Moçambique o Islamismo, já
solidamente implantado antes da chegada dos Portugueses, encontrava-se em nítida expansão.
No sul as missões protestantes também se espalhavam a ritmo acelerado, suportadas pelos
donativos generosos das organizações mais ricas baseadas nos países desenvolvidos. Estavam
em manifesta inferioridade as missões católicas, pobres e raras, oriundas de um país
subdesenvolvido e, para cúmulo, com o seu prestígio minado pelos ideais laicos que
prevaleceram durante a I República.
Apesar deste panorama preocupante e apesar do novo regime ditatorial ter aprovado o
Estatuto Orgânico das Missões Católicas no mesmo ano revolucionário (1926) em que
nomeou José Cabral como governador-geral de Moçambique, este, só passados três anos
regulamentou a criação e atividade das missões religiosas de diversas confissões e
nacionalidades e o funcionamento das duas escolas particulares do ensino primário (Dip. Leg.
167/8, de 3/8/1929). A par de decisões que visavam normalizar o ensino, como a exigência de
habilitações mínimas aos professores e o seu registo nos Serviços de Educação Pública e
também o princípio de liberdade de matrícula e de assistência voluntária às aulas, tomou
outras de algum modo irrealistas e demagógicas: a proibição do uso de escritos em línguas
nativas; a limitação das matrículas dos sete aos catorze anos, impossível de cumprir por falta
de registos de nascimento; a exigência de edifícios de alvenaria para as escolas missionárias
mesmo nas regiões mais primitivas; a assistência médica privativa nos internatos para o
ensino profissional, inexequível já que os raros médicos se concentravam nos principais
centros urbanos.
A imposição das conceções imperiais, nos programas dedicados aos estudantes
africanos, só veio a efetivar-se no ano seguinte com o regulamento do ensino primário
rudimentar que tinha por finalidade “conduzir gradualmente o indígena selvagem para a vida
civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo para a luta da vida,
tornando-o mais útil à sociedade e a si próprio” (Dip. Leg. 238, de 7/5/1930). Prolongava-se
por três anos, dava direito à matrícula na 3ª classe das escolas primárias elementares e o seu
ano letivo durava de 1 fevereiro a 30 novembro. Mas de novo a utopia veio à superfície
quando determinou que o catecismo e a Bíblia só poderiam ensinar-se em língua portuguesa.
Por curiosa coincidência, apenas doze dias depois foi publicado em Lisboa o célebre
Ato Colonial cujo Artº 24 consagrou finalmente: “As missões religiosas do Ultramar,
432
instrumento de civilização e influência nacional e os estabelecimentos de formação do pessoal
para os serviços delas e do Padroado Português, terão personalidade jurídica e serão
protegidos e auxiliados pelo Estado, como instituições de ensino”.
Entre 1930 e a aplicação do Acordo Missionário decorreu um período de nacionalismo
exaltado em que a ideologia subjacente a toda a orientação, organização e programação dada à
educação em Moçambique era frequentemente expressa em escritos e discursos quer de um
patriotismo primário quer de um lirismo mais apropriado a poetas do que a homens de Estado
e a diretores de serviços que, pelo exercício dos seus cargos, se esperava que fossem mais
friamente objetivos e melhor conhecedores das brutais realidades africanas. Repare-se neste
texto escrito pelo diretor (principal) da escola de artes e ofícios da Moamba: “… (o filho do
Império Português) poderá nascer em plena selva, no mais recôndito do sertão, em primitiva
choupana de capim, mas assim mesmo, essa criança, esse filho de Portugal, branco, amarelo
ou preto, se os fados o houverem marcado com as qualidades que vencem, de grau em grau
subirá ou poderá subir a culminâncias que nenhuma lei ou preconceito lhe interdizem ou
sequer dificultam” (7).
Mas em Moçambique foi Braga Paixão o mais típico representante desta fase: delirante
retórica; fortalecimento da unidade imperial por elaborações mitológicas; admiração
incondicional pelos dirigentes do Estado Novo; transformação das escolas em auxiliares dos
serviços de propaganda; desperdício de tempo e energias em atividades políticas, em sessões
solenes e em festas celebrando datas pretensamente gloriosas.
Vamos transcrever uma relação e alguns trechos da coletânea de artigos e discursos que
escreveu e pronunciou durante os três anos em que chefiou os Serviços de Educação de
Moçambique, antes de ser transferido para o ministério das Colónias (8). Não o fazemos para
obter fáceis efeitos anedóticos mas, bem pelo contrário, movidos por profunda seriedade
porque demonstram um elemento fatual que prevaleceu durante longos anos e exerceu
pronunciados efeitos psicológicos de sugestão na sociedade portuguesa em geral e
moçambicana em especial:
– pg.13 (discurso por ocasião da partida duma excursão de estudantes liceais de
Moçambique a Portugal, denominada “Cruzeiro à Metrópole”) “Bela, deleitosa, cheia de
proveitos e compensações de toda a ordem, como disse, será a viagem para que o ministro das
Colónias os convidou. Lindas paisagens, muitos e belos monumentos de quase todas as
idades, quadros variados que oferecem cidades e campos, serras e praias, matizes complexos
de que é suntuosamente decorada a terra portuguesa, em uma palavra, o amplexo maternal da
Pátria que vos espera”;
– pg. 15 (discurso na sessão solene realizada na Câmara Municipal de L. Marques pelo
11º aniversário da Revolução Nacional) “Pelo poder privilegiado da sua inteligência, Salazar
é uma glória desta geração de Portugueses… o seu pensamento é perfeito como a sua
expressão…”;
– pg. 24 (discurso pronunciado na abertura da “Semana da Metrópole”);
– pg. 33 (discurso no serão académico realizado na Câmara Municipal de L. Marques,
depois do regresso do “Cruzeiro à Metrópole”);
– pg. 37 e 42 (artigos de propaganda política);
– pg. 59 (discurso na sessão solene de abertura do ano escolar de 1938 no Liceu
Nacional Salazar) “Estas horas de abertura são sempre o sorriso de uma primavera, o afago de
um amanhecer”;
– pg. 68 (sarau no teatro Gil Vicente, em homenagem à Universidade de Coimbra)
“Somos uma sociedade ordeira, organizada, hierarquizada. Vivemos na Paz para o Trabalho,
sem ódios, sem divisões, sem animadversões, sem invejas”;
433
– pg. 81 (conferência na Câmara Municipal de L. Marques no 80º aniversário da
abolição da escravatura);
– pg. 100 (receção ao presidente da República na Câmara Municipal de L. Marques)
“Tudo quanto no passado português existe de glorioso está aqui presente e incorrupto. O
grande sonho de dilatação da Fé e do poder português da época de Quinhentos, ressuscita-o
agora Portugal, volvidos séculos…”;
– pg. 104 (artigo sobre o ensino aos indígenas, obra de civilização) “Mas a nossa ação
junto das populações indígenas é de civilização e de nacionalização. Não trilhámos os mares,
nem implantámos a nossa soberania em terras distantes por intuitos de torpe ganância ou de
ambição material. Acercámo-nos dos indígenas para fazermos deles outros portugueses…
Temos uma vida, que é a emanação de uma alma e realização de uma fé, a transmitir aos
povos que queremos trazer até nós. Essa comunicação da nossa vida é a mais nobre
característica da obra de amor que pretendemos efetivar. Ela não cabe portanto no simples
ensino de um sistema de noções. A par desta obra de extensão de sentimentos, o ensino tem
um fim prático e utilitário”.
Nos anos seguintes, já no Ministério das Colónias, continuou a propagandear e a aplicar
as suas doutrinas centralizadoras, bem expressas nesta passagem do discurso que proferiu no
ato de posse do diretor-geral do Ensino: “Seria absurdo confiar totalmente as soluções
respeitantes a esta ou àquela Colónia aos seus órgãos diretivos próprios, gerindo-a
exclusivamente dentro de si mesma e abstraíndo da Mãe-Pátria e das outras…” (9).
Erra quem suposer que esta intensa propaganda ideológica fosse da responsabilidade
exclusiva e ocasional de algumas mentalidades fanatizadas. Ela radicava-se, pelo contrário,
em experimentadas técnicas de doutrinação política das massas. A conhecida obra de Serge
Tchakhotine (10) – cuja primeira edição surgiu em 1939 – é bem elucidativa a esse respeito.
Lembramos ao leitor cético o facto de que ainda se não encontravam em funcionamento duas
instituições organizadas e especializadas que só mais tarde foram desenvolvidas com o
propósito específico de propagarem entre a juventude a ideologia religiosa e política do
regime: as escolas das missões católicas e, enfim, a Mocidade Portuguesa, versão menos
rígida dos modelos nazis e fascistas. A desmedida exaltação de heróis missionários (ex. o
mártir D. Gonçalo da Silveira), de descobridores (ex. Vasco da Gama), de exploradores (ex.
Lacerda e Almeida) e de militares (ex. Mouzinho de Albuquerque) iniciou-se durante este
período. Não foi por acaso que a extensão da Mocidade Portuguesa às Colónias (Dec. 29.453,
B. O. 14/1939) e a assinatura do Acordo Missionário tenham ocorrido aproximadamente na
mesma ocasião. Consagrada, finalmente, pelo Acordo (1940) e pelo Estatuto Missionário
(1941) a secular ideologia católico-cêntrica da expansão colonial portuguesa, a educação das
crianças africanas cujos pais tinham o estatuto jurídico de “indígenas”, foi por completo
confiada ao pessoal missionário católico e seus auxiliares. Esta educação passou a obedecer à
orientação doutrinária fixada na Constituição e os seus planos e programas – elaborados pelos
governos coloniais – tinham por objetivo “a perfeita nacionalização e moralização dos
indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho…” tendo em consideração “… o
estado social e a psicologia das populações a que se destina”. Tornou-se obrigatório o ensino
e o uso da língua portuguesa. Apenas na catequese se poderia recorrer às línguas africanas.
Reconhecendo-se, implicitamente, a enorme falta de recursos humanos com que iriam lutar as
organizações católicas portuguesas, previu-se a admissão de pessoal missionário de
nacionalidade estrangeira ainda que sob apertados condicionalismos que visavam evitar a sua
transformação em agentes de “desnacionalização” para os educandos.
Mesmo para os ideólogos do regime, este Acordo Missionário foi recebido com
reservas. O próprio Marcello Caetano opinou, logo em 1948: “A entrega total do ensino dos
indígenas às Missões terá sido feliz? Temos as maiores dúvidas. Pondo de parte a questão de
434
saber se o Estado pode ou não, pelos seus funcionários, ser capazmente educador dos
indígenas, a verdade é que o número de missões católicas nas nossas colónias é insuficiente, a
maior parte do seu pessoal é estrangeiro e raríssimos missionários estão habilitados a dirigir a
execução da grande tarefa cometida pelo Estatuto” (11).
Como desenvolveremos em outro capítulo, o primeiro abalo em toda esta estrutura
ideológica surgiu, no interior do próprio regime, em 1945, com as denúncias públicas
formuladas pelo Inspetor Superior da Administração Colonial Henrique Galvão. Eleito
deputado, os seus “avisos prévios” apresentados a partir de 1947 – embora concentrados nos
problemas da exploração do trabalho forçado – classificaram a vida administrativa de Angola
como “uma mentira colossal”. Mas as suas intervenções não tiveram efeitos visíveis na
opinião pública, já que a Assembleia Nacional era estritamente controlada pelo governo e a
censura à imprensa proibira que se desse relevo aos debates. Em 1951, no próprio ano em que
Henrique Galvão acabou por ser preso, outro diretor dos Serviços de Educação de
Moçambique, L. Moreira de Almeida – que nos seus escritos e decisões revelou genuína
preocupação com os aspetos económicos – pronunciou-se contra a criação de escolas para
formação de professores primários em Moçambique, recorrendo aos velhos argumentos
ideológicos, centralizadores e nacionalistas (12):

“Impõe-se estabelecer o contacto entre a juventude não indígena da


Colónia e a vida e cultura metropolitanas… Só se ama verdadeiramente o que
se conhece. Há vantagens e só vantagens em que os rapazes e as raparigas
nascidas em Moçambique e aqui criados na infância e adolescência, passem
uma parte da sua juventude na atmosfera de hábitos e sentimentos mais
puramente portugueses, em convívio com a mocidade da Metrópole, em
contacto com alguns dos melhores valores inteletuais do nosso país”. E mais
adiante acrescentou: “… tudo se deve fazer neste campo da educação e da
cultura para garantia de que a alma de Moçambique, no porvir como no
presente, vibrará sempre em perfeito uníssono com a de Portugal”.

Por estranho que pareça, nada fez para defender a concessão de bolsas a estudantes que
quisessem frequentar o magistério primário em Portugal. Seja como for, quando a Igreja
Católica assumiu em 1941 a responsabilidade pela educação exclusiva da esmagadora maioria
da população moçambicana, encontrou já os “indígenas” submetidos a uma discriminação de
facto e a evidentes atrasos educativos relativamente a outras colónias ou territórios autónomos
dirigidos por potências mais ricas e evoluídas do que Portugal.
A orientação católico-cêntrica foi reforçada em 1953, com a publicação da encíclica
papal Evangelii Praecones. A propósito da educação nos territórios ultramarinos foi
reconhecido (13):

“De facto estes centros educativos têm principalmente a possibilidade de


fomentar relações frutuosas entre os missionários e os pagãos de todas as
classes e facilitar principalmente à juventude, moldável como a cera, a
compreensão íntima e a aceitação da doutrina católica… São, além disso, as
escolas e colégios instituições utilíssimas para se refutarem os erros de toda a
sorte que hoje grassam cada vez mais e, às claras ou solapadamente, se
insinuam de modo especial nas almas juvenis, devido à ação dos não católicos e
dos comunistas”.
435
Curiosamente teve apenas vinte e quatro dias o intervalo entre essa encíclica e a data da
Lei Orgânica do Ultramar, que substituiu a Carta Orgânica do Império, promulgada em 1933.
Apesar da orientação mais descentralizada que por Marcello Caetano, Sarmento Rodrigues foi
dada a essa nova Lei Orgânica, ela dedicou uma das suas Bases ao ensino dos “indígenas”
reproduzindo, mais ou menos, o que constava do Estatuto Missionário. Visando em especial
as missões protestantes e a ameaça islâmica, decretou que “o ensino dos indígenas em escolas
particulares deve subordinar-se à mesma orientação geral a que é submetido quando
ministrado pelo Estado”. Fez-se uma importante concessão às línguas africanas, cujo emprego
foi autorizado nas escolas mas apenas “como instrumento de ensino da língua portuguesa”.
Quanto à Mocidade Portuguesa, desenvolveu ações positivas na promoção do desporto,
na ocupação dos tempos livres e na satisfação das tendências gregárias da juventude. Pode até
afirmar-se que gozavam de popularidade e tinham carácter voluntário as atividades
paramilitares da sua organização e o enquadramento por jovens oficiais do exército que se
comportavam mais como camaradas do que como comandantes.
Só mais tarde ocorreu um curioso fenómeno de separação racial nesta organização
estadual. Os rapazes não-africanos concentraram-se nas facilidades desportivas, recreativas e
culturais mais sofisticadas que exigiam capacidade económica e preparação técnica: vela,
hipismo, campismo, excursões, aviação, paraquedismo, jornalismo, programas radiofónicos,
etc. As atividades que para os não-africanos representavam incómodos e para os africanos
prestígio (uniformes, paradas, milícia armada, bandas de cornetas e tambores) ou formas
apreciadas de assistência (cantinas e refeitórios) passaram a ser quase exclusivamente
preferidas por estes últimos. O estudo das causas desta divergência de motivações merece
alguma atenção. A título de curiosidade recordamos que o futuro primeiro-ministro, Pascoal
Mucumbi, efetuou o seu exame de admissão à Universidade, como graduado da Mocidade
Portuguesa. Esta instituição – da mesma maneira que o partido único (União Nacional ou
Ação Nacional Popular) – sofreu, com o decorrer do tempo, um processo de esvaziamento
ideológico. Mas que a sua doutrinação patriótica teve alguma duração e eficácia, é
comprovado pelo facto de ser parcialmente responsável pelo suporte popular dado não só à
política colonial de Salazar-Caetano, mas também, durante alguns anos, às guerras
ultramarinas mantidas em três frentes longínquas que mobilizaram quase um milhão de
homens.
Mas em muitas mentalidades as ideologias políticas têm espantosa capacidade de
sobrevivência. Já em 1966, quando as restantes potências haviam completado a sua
descolonização em África, M. Dias Belchior, antigo administrador que bem conhecia
Moçambique, não hesitou em distorcer completamente a realidade no artigo sobre educação
que escreveu numa compilação de algum nível científico: “A uniformização do ensino no
Ultramar e o seu alinhamento com o ensino metropolitano… são uma velha aspiração das
populações ultramarinas, que têm merecido a atenção do governo central e por vezes também
dos governos provinciais” (14).
436
Notas à secção

1- P. V. Show (1957);
2- A. de Azevedo (1963), p. 13;
3- L. V. de Sampayo e Mello (1910), p. 86;
4- L. W. Carrisso (1934), p. 7/8;
5- A. da Fontoura (1934), p. 5, 42/3;
6- Trinta e cinco anos mais tarde a história confirmou os receios dos pensadores e políticos nacionalistas.
As provas surgiram quando os Missionários quer protestantes quer estrangeiros ao serviço das missões católicas,
alinharam ideologicamente, em maior ou menor grau, com os movimentos de libertação;
7- J. J. Sousa (1938), p. 63;
8- Braga Paixão (1948);
9- Braga Paixão (1944), p. 13;
10- S. Tchakhotine (1952);
11- Marcello Caetano (1948), p. 247/8;
12 - L. Moreira de Almeida (1951), p. 208;
13- A. de Azevedo (1963), p. 96;
14- M. Dias Belchior (1966), p. 647.

Organização e estatísticas

Segundo Sampayo e Mello (1) em 1900 encontravam-se escolarizados 1.215 africanos.


Distribuíam-se assim: escolas régias, 146; idem municipais, 412; idem particulares, 48; idem
missionárias protestantes na maioria, 609. Foi em 1926 que se extinguiram as Missões
Civilizadoras Laicas, criadas em 1913 sob influência dos ideais republicanos e anticlericais.
Tinham resultado em humilhante fiasco. A internacional “African Education Comission” que
visitou Moçambique em 1924, concluiu que aqui as facilidades postas à disposição dos
africanos eram bastante inferiores às existentes nos territórios sob a soberania das restantes
potências europeias. Estas e outras críticas podem explicar a rápida decisão tomada pela
Ditadura no sentido de abolir essa estranha estrutura secular. O ensino de base foi, em
princípio, entregue às missões católicas que receberam, para o efeito, subsídios orçamentais,
concessões de terrenos e vários edifícios para fins escolares. Também lhes foi concedida
personalidade jurídica.
Todavia, tanto em termos quantitativos como qualitativos, era assaz humilhante a
situação em que se encontravam, pobremente subsidiadas por um país instável,
subdesenvolvido e desorganizado, dividido pelo agnosticismo, o anticlericalismo ou pelo
menos a indiferença da maioria dos dirigentes republicanos. Não admira que a escola para
preparação de professores indígenas sita em Chobela (Manhiça) só haja começado a funcionar
quatro anos após a sua criação em 1926. O curso, pós-primário, prolongava-se por quatro
semestres letivos, onde, além de cultura geral, os alunos recebiam treino pedagógico. Tinha
73 alunos em 1930, sendo 42 internos. A Missão Suiça possuía ali um internato próprio (2).
O primeiro liceu da colónia – embora tivesse sido criado na capital oito anos antes – só
em 1926 passou a ministrar o ensino secundário completo, com a abertura dos cursos
complementares de letras e ciências (6º e 7º anos). Dois anos depois já era frequentado por
207 alunos, sendo 78,8% de origem europeia e os restantes de origem asiática e mestiça. O
sexo masculino constituía 73,5% (3).
Para a Exposição Colonial Internacional de Paris, realizada em 1931, foram elaboradas
várias monografias. Apenas nos interessam as referentes ao ensino quer nas províncias sob
direta administração estadual quer no território específico da Companhia de Moçambique.
437
Quanto às primeiras, cremos que Mário Malheiros exagera ao afirmar que, em 1929,
funcionavam 258 escolas para indígenas, subvencionadas ou privadas, com um total de
30.613 matriculados. Informa que os cursos duravam três anos mas é omisso quanto às
passagens e ao aproveitamento escolar (4). A monografia da supracitada Companhia ainda é
mais obscura, não fornecendo elementos estatísticos e dando apenas algum relevo à Escola de
Artes e Ofícios da Beira e aos postos escolares das missões de Amatongas e da Chupanga (5).
Ambas as monografias são mais precisas no que respeita ao ensino primário para não-
indígenas. Era simultaneamente gratuito, obrigatório e dividido em dois estádios; elementar (7
a 11 anos de idade) e complementar (11 a 13 anos de idade). No território do Estado havia 54
professores com 3.167 alunos. No território da Companhia haviam terminado em 1929 o
ensino elementar e complementar, respetivamente, 47 e 27 estudantes não-africanos. Os
programas eram idênticos aos de Portugal.
Em 1929/30 sofreu profunda remodelação a base legislativa em que assentava o ensino
para Africanos. Foi regulamentado o funcionamento e os programas do ensino primário e
rudimentar ministrado pelas missões católicas e protestantes. Havia três classes onde se
aprendia português, aritmética, desenho, geometria, trabalhos manuais e agricultura, educação
física e higiene, educação moral e cívica. A par do ensino rudimentar haveria escolas
profissionais para africanos dos dois sexos. Um facto que parece ser geralmente ignorado é
que, depois desta reorganização, vigorou um regime que proporcionava aos Africanos a
frequência das escolas primárias para não-africanos. De facto, os que completassem o ensino
rudimentar – pela lei gratuito e obrigatório dos 7 aos 12 anos – podiam matricular-se na 3ª
classe do ensino primário elementar, gozassem ou não ou seus pais do estatuto de
“assimilados”. Mas na prática poucos puderam aproveitar-se desta facilidade porque esse
ensino elementar só era frequentado por crianças entre 7 e 12 anos de idade e, infelizmente,
raríssimos africanos conseguiam terminar o ensino rudimentar dentro desse limite de idade
(6).
A Direção dos Serviços de Instrução Pública iniciou o seu funcionamento em 1932.
Significativamente, uma das suas primeiras medidas foi legislar sobre os nomes nacionalistas
que deveriam ser escolhidos para as escolas (Port. de 10/8/1933). Entre 1933 e 1935 publicou
vários regulamentos das escolas profissionais e do ensino primário rudimentar.
De um estudo insuspeito de Carlos Moreira retirámos as seguintes estatísticas referentes
a 1930/5 (7):

QUADRO I

Tipos de Ensino
Para "não-indígenas" Para "indígenas"
Origem Anos
Elementar Rudimentar Profissional
Escolas Matriculas Escolas Matric. Escolas Matric.
1930 27 3.405 65 8.795 1 ––––
Estado
1935 41 3.426 171 10.883 4 279
Missionário a) 1935 20 1.882 125 10.692 20 1.306
a) Com exceção da Companhia de Moçambique

Cunha Jardim também fornece elementos sérios sobre o número de professores


africanos preparados pela única escola existente, então denominada “José Cabral”. De 1930/7
concluíram o curso 138 professores sendo 119 provenientes do sul do Save e 19 vindos da
438
Zambézia (8). Estes números (de uma escassez confrangedora se repararmos na média de
dezassete professores por ano) denunciam, mesmo assim, a situação privilegiada que já então
gozava o sul do Save.
J. Granjo Pires foi quem realizou, relativamente a este período, o estudo mais completo.
Concluiu que, no ano letivo de 1937/8, dos 483 estudantes matriculados no ensino secundário
apenas um era de origem africana (9).
Interessante informação foi prestada por Moreira de Almeida no seu estudo sobre a
evolução do ensino em Moçambique de 1938/51. Esclarece que até 1942/3 as escolas
primárias do Estado estiveram indevidamente “cheias de indígenas” já que “o seu destino
legal e natural seria a escola rudimentar”. Acrescenta “tratar-se de abuso do professorado que
gradualmente vai desaparecendo”. A aplicação rigorosa das disposições que permitiam a
matrícula apenas aos filhos dos “assimilados” e aos “indígenas” aprovados na 3ª classe
rudimentar, dentro da idade, reflete-se nesta estatística dos africanos nas escolas primárias do
Estado (10):

QUADRO II

Anos Letivos
Sexo
1938 1942/3 1947/8 1950/1
Masculino 349 52 144 149
Feminino 61 24 70 80

Após a entrada em vigor do Estatuto Missionário (Dec.-Lei 31.207, B. O. 22/1941), as


escolas destinadas aos africanos que gozavam do estatuto jurídico de “indígena” foram
entregues à Arquidiocese de L. Marques e às Dioceses da Beira, Nampula e Quelimane.
Apenas as três escolas de artes e ofícios continuaram sob a direção do Estado.
As dificuldades enormes que enfrentaram as missões católicas quanto à escassez de
verbas para professores qualificados também ressaltam dos cálculos efetuados por António
Augusto, autor de estudos psicotécnicos sobre estudantes africanos. Em 1942 o rendimento do
ensino primário (percentagem dos que obtiveram passagem de classe) foi de 26% nas missões
protestantes, 21% nas escolas oficiais e apenas 8% nas missões católicas. Doze anos depois o
rendimento destas continuava muito baixo. De facto em 1954 subiu para 34% nas missões
protestantes e meramente 9% nas missões católicas (11).
O missionário protestante John Paul tinha razão quando decidiu acusar o governo
português de cometer “o gravíssimo erro de mandar encerrar quase todas as escolas que não
eram dirigidas pelas missões católicas”. As mais de 60 escolas mantidas em todo o
Moçambique pelos Anglicanos encontravam-se reduzidas, por volta de 1955, a apenas duas
no norte e a seis no sul. Mas apenas duas conseguiam ministrar o primário completo.
Acrescentou que, a partir de 1945, passou a ser reservada aos estudantes católicos a admissão
à única escola de preparação para professores indígenas (12).
Em 1956 quando foi tornado obrigatório o ensino primário elementar que dava acesso
direto à ambicionada 4ª classe, encontravam-se nele matriculados, tanto nas escolas estaduais
como nas missionárias, 4.339 rapazes e 1.297 raparigas de origem africana. Claro que a
grande maioria pertencia às escolas missionárias. Uma estatística elaborada nesta época por
uma médica escolar, encontrou, na própria cidade de L. Marques, as seguintes percentagens
439
de africanos matriculados nos estabelecimentos do Estado: 6% no ensino primário; 5% no
ensino secundário e técnico (13).
Contudo, não se pode negar que foi considerável o esforço educativo desenvolvido
pelas missões católicas durante os vinte anos que decorreram entre 1941/61, quando foi
abolido o regime jurídico de indigenato e transformado o ensino “rudimentar” em ensino “de
adaptação”. Mas, para se fazer uma avaliação mais objetiva seria preciso que as estatísticas de
educação tivessem sido organizadas em bases diferentes, especificando o número de alunos
que, em cada classe e em cada tipo de ensino, se tivessem matriculado e houvessem concluído
o ano letivo, distinguindo sempre “africanos” e “não-africanos”. A verdade é que os
matriculados na pré-primária e nos dois primeiros anos do ensino rudimentar correspondiam a
80% do total existente em todas as escolas de Moçambique. Era a grande massa de crianças
rurais que apenas “apareciam” nos postos escolares dirigidos pelas missões, sobretudo
católicas. Aí a frequência e o aproveitamento eram muito aleatórios por razões que adiante
exporemos. Enfim, para avaliar os resultados quantitativos dessa infra-estrutura educativa
melhor seria indicar apenas o número dos que concluíram os cursos. Mas o defeito das
estatísticas publicadas era tão grave que nem se chega a saber quantos completavam, em cada
ano, a 4ª classe da instrução primária. Com toda a honestidade, é inaceitável a cifra de 10.935
africanos que, durante o censo geral de 1960, declararam – naturalmente sem provas – que
possuíam a referida 4ª classe.
Entre 1956/60 as estatísticas oficiais continuaram a acentuar sem nexo o número total
de alunos matriculados e a usar expressões vagas como “passagens de classe” que não
esclareciam qual o desperdício de efetivos de ano para ano. Apenas um ou outro dado mais
claro permitia atingir conclusões deprimentes como os dezaseis alunos africanos matriculados
em 1956 nas escolas comerciais estaduais que tinham cursos de três anos e para cuja admissão
era necessário obter aprovação prévia nos dois anos do “ciclo preparatório” que se sucedia à
4ª classe. Uma estatística bastante cuidadosa elaborada em fins de 1960 pela Direção dos
Serviços dos Negócios Indígenas apurou os seguintes alunos africanos que haviam terminado
os diversos estádios do ensino secundário:

QUADRO III

CICLOS 1956 1957 1958 1959 1960


1º Ciclo do liceu (2 anos) 14 16 22 35 18
2º Ciclo do liceu (3 anos) 2 3 3 4 4

Ciclo preparatório das escolas comerciais e


–– 1 5 6 7
industriais (2 anos)

Para bem avaliar a enormidade do atraso, bastava estabelecer comparações com a


vizinha Rodésia, cuja população total se reduzia a metade da moçambicana. Ali, em 1960,
atingiam já 4.139 os africanos matriculados no ensino secundário de seis anos que se seguia a
um ensino primário de sete anos (14). Isto é, um total de treze anos de escolaridade,
ultrapassando em dois anos o que desde há muito fora formalizado em todos os territórios
portugueses.
Nos fins de 1961 pudemos elaborar uma estatística comparativa que demonstra o
invulgarmente elevado desperdício anual de efetivos dos estudantes africanos nas quatro
440
classes do ensino primário oficial, compreendendo menores dos seis aos catorze anos de
idade:

QUADRO IV

Origem racial e étnica


Classes
Africanos Europeus Mistos Indianos Chineses
1ª 2.093 2.265 1.740 718 36
2ª 960 1.726 1.188 588 32
3ª 757 1.728 965 548 25
4ª 426 1.775 854 554 34

É especialmente significativa a comparação entre africanos e mistos, visto os outros


grupos raciais poderem ter os seus números distorcidos pela introdução de filhos de
imigrantes recém-chegados a Moçambique. As autoridades competentes estavam de algum
modo conscientes deste atraso dos Africanos e por isso resolveram fundar o Serviço Extra-
Escolar (Dip. Leg. 2.118, B. O. 34/1961 – Supl). No ano seguinte também foram criados
cinquenta cursos noturnos no ensino primário.
Por esta época e sem dúvida por o “ensino técnico elementar” (antigo ciclo
preparatório) ser menos exigente, começou a manifestar-se decidida preferência dos Africanos
pelas escolas comerciais e industriais onde, em 1962, atingiam respetivamente 20% e 25% do
total dos matriculados. Mas a estas percentagens de algum modo elevadas não deve ser dada
muita importância porque a esmagadora maioria era constituída pelos chamados “cursos
noturnos de aperfeiçoamento”, em teoria destinados apenas a trabalhadores assalariados e que
por serem mais fáceis e curtos e por não exigirem exame de admissão, eram preferidos por
adolescentes africanos que obtinham, sem aparente dificuldade, declarações falsas de
pretensos patrões. De facto, em 1962, dos 318 africanos matriculados nas escolas comerciais
nada menos do que 271 estavam nesses cursos noturnos. Nas escolas industriais eles eram 311
num total de 347 matriculados. Já nos três liceus existentes havia apenas 78 africanos num
total de 2.203 estudantes. No Instituto Comercial (entre a Escola Comercial e a Universidade)
havia apenas sete africanos matriculados em 1964/5. E no Instituto Industrial (do mesmo
nível) não havia nenhum.
Em 1961, só após a abolição do estatuto de indigenato e da transformação do ensino
“rudimentar” em ensino “de adaptação” com programas diferentes, aumentaram
consideravelmente as matrículas dos estudantes africanos no “ensino primário comum” até
então reservado aos “não-indígenas”.
Uma nova etapa surgiu em 1964 com a reforma do ensino primário elementar (Dec.-Lei
45.908, B. O. 38/1964 – Supl). Como se afirma no seu preâmbulo, manteve-se a tradicional
orientação doutrinária que visava a unidade dos ensinamentos transmitidos e a sua
equivalência no plano nacional. A cooperação das missões católicas foi consagrada pela
oficialização do ensino primário elementar nelas ministrado, pela participação financeira na
formação dos professores e pela integração dos professores de posto escolar nos quadros dos
Serviços de Educação, o que garantiu o seu futuro profissional e outras regalias inerentes à
função pública. A criação de novos lugares desse tipo de professores, pagos pelo orçamento
do Estado, passou a ser da competência do governo. Porém, devido às despesas militares, a
consequente escassez de recursos financeiros só permitiu a criação de 150 lugares em 1966.
441
Os desníveis regionais continuavam a ser muito acentuados, privilegiando-se as duas
maiores cidades: L. Marques e Beira. Por exemplo, no ano letivo de 1966/7, 2.361 estudantes
terminaram a 4ª classe na Província de L. Marques, com 647.000 habitantes. Na Província de
Nampula, então com 1.621.000 habitantes, apenas 765 completaram aquele grau de ensino.
Refere-se a 1970 a última estatística racial que o presente autor conseguiu elaborar com
bastante dificuldade e utilizando todos os elementos então disponíveis em Moçambique. Dela
constam apenas os estudantes matriculados, incluindo adultos:

QUADRO V

Graus de ensino Africanos Não-africanos


1ª, 2ª e 3ª classe da instrução primária c. 270.000 21.657
4ª classe da instrução primária c. 18.000 6.835
1º ciclo liceal ou equivalente (2 anos) 5.437 13.053
2º ciclo liceal (3 anos) 570 5.180
3º ciclo liceal (2 anos) 180 1.463
Técnico (todos os graus) 1.517 9.700
Magistério primário, incluindo o de postos escolares 1.265 80
Eclesiástico, incluindo seminários protestantes 3.300 50
Superior 100 1.852
Outros (serviços públicos, etc.) 500 935

Como se vê, o esforço desenvolvido nos anos precedentes com a promoção educativa
dos Africanos já começava a dar alguns frutos. Mas apesar de constituírem 97,5% da
população, continuavam em flagrante minoria no ensino secundário e superior, exceto nos
cursos para professores de postos escolares das missões e nos seminários de preparação para a
carreira sacerdotal.
Eis alguns elementos finais extraídos do último “Anuário Estatístico” publicado até
1977, com dados referentes a 1972. Foram selecionados alguns resultados concretos, de maior
significado e confiança, alcançados no final do ano letivo de 1970/1. Concluíram os dois anos
do ciclo preparatório do ensino secundário – ficando portanto em condições de ingressar nos
liceus e escolas técnicas – o seguinte número de alunos de todas as raças: 2.873 no ensino
oficial; 1.092 e 1.029 no ensino particular respetivamente em escolas e em residências.
Em 1971, aproximadamente com os mesmos anos de escolaridade, concluíram os seus
cursos de carpinteiro, sapateiro, tipógrafo, alfaiate, serralheiro, mecânico, etc. os seguintes
estudantes das três escolas estaduais de artes e ofícios reservadas aos Africanos: Moamba
(Província de L. Marques) 31; Inhamússua (Província de Inhambane) 13; Ilha de
Moçambique, 16. No mesmo ano letivo, apenas doze estudantes concluíram o curso nas
escolas de práticos agrícolas em Gaza e Inhambane.
As estatísticas do ensino secundário são de tal modo deficientes que não permitem
selecionar números significativos. Apontaremos unicamente os resultados obtidos pelos
Institutos Comerciais e Industriais (entre o secundário e o superior) que preparavam técnicos
como mestres-de-obras e peritos contabilistas. Os institutos de L. Marques e da Beira tinham
116 professores e 1.100 alunos. Assim, em 1971, concluíram cursos comerciais e industriais,
66 e 21 estudantes, sobretudo não africanos.
442
Modestos eram também os resultados nas escolas mantidas pelos serviços públicos, a
mais importante pertencia aos Serviços de Saúde. Aí, em 1971, foram formados os
especializados de todas as raças:

Curso geral de enfermagem 22


Auxiliares de enfermagem 114
Preparadores de laboratório 9
Ajudantes técnicos de farmácia 13
Ajudantes técnicos de radiologia 3

Quanto à Universidade só em 1970 começou a produzir os seus primeiros licenciados


(em cursos de 6 anos) distribuídos como se segue:

QUADRO VI

Anos
Licenciaturas concluídas
1970 1971 1972
Engenheiros mecânicos – 1 5
Engenheiros quimico-industriais – 2 7
Engenheiros eletrotécnicos 2 11 11
Engenheiros civis 4 8 11
Médicos e cirurgiões 1 8 11
Agrónomos e silvicultores 4 9 4
Veterinários 6 7 5

De 1964 a 1972 produziu ainda 171 diplomados em Ciências Pedagógicas, cadeira


especializada com um ano de duração, destinada a professores do ensino secundário. Estes
beneficiaram ainda de 43 diplomas após cursos de dois anos. E em 1972 foram também
concedidos 24 bacharelatos em Românicas, História e Geografia (com cursos de 3 anos).
Antes do golpe militar de 1974, o secretário Provincial de Educação apresentou ao I
Congresso de Ação Nacional Popular, realizado em Tomar, uma comunicação onde, pela
última vez, transparece o incorrigível triunfalismo oficial do regime moribundo. Dela constam
os seguintes números globais, relativos ao ano letivo 1972/3, que também omitem o
aproveitamento efetivo:

QUADRO VII

Escalões Escolas Professores Alunos


Primário 5.500 10.500 603.000
Secundário 160 2.838 45.693
Médio 8 167 1.498
443
Segundo este alto-funcionário, a taxa de escolarização seria de 40% entre os 6 e os 12
anos, superior portanto à de grande parte dos Estados africanos (15). Quanto à Universidade
de L. Marques tinha, no ano letivo 1972/3, cerca de 2.500 estudantes. Em 1975, com o início
do êxodo dos professores e funcionários públicos, e com o ambiente generalizado de anarquia,
era já praticamente impossível obter elementos dignos de confiança. As últimas “Estatísticas
da Educação” referiam-se ao ano letivo de 1968/9 e dela foram eliminadas as indicações sobre
a origem racial dos alunos. Entre 1972/7 não foram publicadas estatísticas oficiais sobre
educação.

Notas à secção

1- L. V. de Sampayo e Mello (1910), p. 129;


2- A. da Fontoura (1934), p. 22;
3- Mário Malheiros (1931), p. 13;
4- Idem, p. 9;
5- Instruction: Comp. de Mozambique (1931);
6- António Augusto (1957), p. 12;
7- Carlos Moreira (1936), p. 53;
8- A. P. da Cunha Jardim (1938), p.71/2;
9- J. Granjo Pires (1938/39), p. 159, quadro 1;
10- L. Moreira de Almeida (1954), p. 69;
11- António Augusto (1957), p.12;
12- John Paul (1979), p. 37;
13- Deolinda da Costa Martins (1958);
14- J. K. Buckley (1974), p. 22, quadro 1;
15- A. A. Marques de Almeida (1963), p. 22.

Causas do atraso

Estrutural debilidade económica

As restantes potências coloniais, industrializadas, desenvolvidas e com governos


estáveis, dispunham de vastos recursos financeiros, de grande número de pessoal qualificado
e de superiores conhecimentos técnicos e científicos. Uma vez consolidada a ocupação efetiva
puderam iniciar rápida e eficazmente, o combate contra o flagrante e histórico primitivismo
tecnológico africano. Para atingirem esse objetivo, puderam mobilizar, sem dificuldade,
abundantes recursos humanos e financeiros. Naturalmente que, deram preponderância à
dispendiosa planificação e construção de toda a espécie de infra-estruturas modernas,
condição sine qua non para que se iniciasse o ambicionado arranque económico.
Portugal não revelou capacidade para seguir este rumo. Era um país económica e
tecnologicamente subdesenvolvido, gravemente afetado por uma elevada taxa de
analfabetismo (1), debilitado por graves carências em matéria de pessoal estável, honesto,
competente e dedicado. Além disso encontrava-se mergulhado numa crise política e
financeira que se prolongou por décadas até à consolidação, em 1933, do regime autoritário
concebido por Salazar.
Não podia, com toda a evidência, dispor de suficientes recursos humanos e financeiros
para aplicar na educação desses milhões de autótones dispersos pelo seu vasto império que,
além de uma forte maioria de Africanos, incluía também Indianos, Indonésios e até Chineses.
444
Mas confessar estas limitações seria o mesmo que admitir a sua inaptidão como potência
colonizadora e civilizadora, seria ferir o orgulho e os interesses nacionais. Por seu lado, a
Igreja Católica encontrava-se tão mal equipada em dinheiro e pessoal qualificado como o
próprio Estado e a própria Nação. É uma razão pela qual se considera ter sido tão importante
o contributo dado pelas missões protestantes no que concerne à educação dos Africanos.
O certo é que cada colónia ficou na prática corrente entregue a si própria em matéria de
finanças públicas. Partindo do nada, teve que ir, com bastante dificuldade, reservando nos
seus diminutos orçamentos, algumas verbas destinadas a “civilizar” milhões de nativos que
viviam em comunidades tradicionais de tipo tribal, com uma economia de simples
subsistência que poucas receitas podia gerar a favor do Estado. Nativos que, para cúmulo,
foram alimentando certos cepticismos e ressentimentos e até mesmo secretas hostilidades
devido à sobrevivência do regime feudal dos Prazos nos enormes arrendamentos feitos pela
Companhia da Zambézia, às descapitalizadas companhias majestáticas de Moçambique e do
Niassa, à imposição de impostos de capitação aos dois sexos, aos mortíferos recrutamentos de
carregadores para as distantes operações militares no decorrer da I Guerra Mundial, aos
castigos corporais por vezes aplicados na implementação do trabalho compelido e das culturas
obrigatórias, etc. Não surpreende que, do norte ao sul de Moçambique, o êxodo da população
rural para os territórios vizinhos sob administração britânica, se haja transformado numa
característica estrutural da situação sócio-económica.
Face à escassez de recursos humanos e financeiros que afligia Moçambique, esperava-se
que o novo regime político, que mais tarde veio a assumir o título de “Estado Novo”,
reconsiderasse os problemas que se tinham acumulado até 1926 e introduzisse modificações
de fundo após Salazar ter conseguido firmar a estabilidade política e obter a aprovação do seu
primeiro e famoso orçamento nacional equilibrado relativo ao ano financeiro de 1928/9.
Porém, uma pungente realidade logo se impôs: cada colónia deveria tornar-se financeiramente
autossuficiente e abandonar a esperança de ser subsidiada por essa “Metrópole” de raízes
seculares. Por incrível que pareça, os arautos do novo regime consideravam esse exemplo não
como mesquinhez ou diminuta capacidade financeira mas como motivo de orgulho e
exaltação nacionalista. Merece ser transcrito o seguinte excerto de uma comunicação
apresentada em Londres, cerca de 1933, numa conferência internacional, pelo próprio
ministro das Colónias, Prof. Armindo Monteiro (2):

“… I may assure you that Portuguese Colonisation has grown and


prospered without burdening the State finances with exaggerated expenditure…
Much achieving and asking little… It is in this marvellous spirit of adaptation
that stands the great secret of our colonizing triumph. And to help it we should
mention three more splendid fators: the spirit of the initiative of the Portuguese
settlers; their earnest and profound nationalism; their talent to deal with inferior
races of mankind”.

Esta política de autossuficiência, aplicada a todas as colónias foi rigorosamente


mantida durante décadas. Mesmo quando Portugal conseguiu acumular consideráveis meios
financeiros devido à neutralidade que observou durante a II Guerra Mundial. Esta política do
governo central não deixou de ser criticada por especializados nos problemas ultramarinos,
entre os quais se veio a distinguir Ávila de Azevedo. No seu estudo comparativo publicado
em 1958 lamentou o facto de Portugal nem sequer prestar ajudas meramente simbólicas, ao
passo que outras potências coloniais primavam em despender somas consideráveis na
educação dos seus súbditos africanos. Mencionou o exemplo do “Colonial Development and
Welfare Fund” que, para promover a educação primária e secundária entre 1946/54, oferecera
445
a quinze territórios da África, sob administração britânica, nada menos do que 8.765.000 (oito
milhões, setecentas e sessenta e cinco mil libras) (3).
Nestas condições, face à debilidade da economia moçambicana, a admissão de pessoal
docente em número satisfatório era, como no resto da África, limitada pelos salários
relativamente elevados auferidos pelos professores qualificados. Enquanto nos Estados
Unidos da América o vencimento médio de um professor primário era 1,5 vezes inferior à
capitação do Rendimento Nacional, sucedia que em Gana e na Nigéria ele era cinco e sete
vezes superior a esse indicador económico (4). Pois em Moçambique onde, por essa época, os
professores do ensino primário estadual eram quase todos de origem europeia, o respetivo
vencimento representava, pelo menos, trinta vezes o Rendimento Nacional per capita. E o
custo de um professor do ensino secundário que, no referido país norte-americano, rondava
por duas vezes o dito rendimento, subia a 30 vezes na Nigéria e mais de 45 vezes em
Moçambique, segundo cálculos efetuados pelo Grupo de Trabalho para a Promoção Social.
A comparação entre o custo dos vários graus de ensino, embora inútil como medida de
qualidade e eficiência, também pode servir para melhor acentuar os problemas económicos
que afetavam a educação em África. Ainda em 1964, o mesmo grupo de trabalho concluiu que
nos Estados Unidos da América a despesa anual feita, em média, por cada estudante
universitário era dois, cinco e seis vezes maior do que a correspondente no ensino secundário
e primário. Pois na generalidade da África esta relação era dez e cinquenta vezes maior. Em
Moçambique atingia números ainda mais elevados. No primeiro ano da sua fundação, a
despesa efetuada com cada estudante da Universidade de L. Marques, foi, respetivamente,
vinte e sessenta vezes maior do que a correspondente no ensino secundário e primário
comum. Aliás em todas as universidades criadas em África após a Segunda Guerra Mundial o
custo de formação por estudante era de três a cinco vezes mais elevado do que nas
universidades europeias.
O Grupo de Trabalho concluiu que em quantias absolutas, se escalava da seguinte
maneira, em Moçambique, cerca de 1964, o custo por aluno e por ano:

QUADRO VIII

Tipo de ensino Custo anual por aluno


Ensino de adaptação (missões católicas) 70$00 a 100$00
Ensino primário comum (Estado) 1.600$00 a 2.600$00
Ensino secundário 7.600$00
Ensino universitário 120.000$00

Claro que situação semelhante se encontrava nas restantes colónias africanas, em que a
educação destinada aos europeus era também e sem comparação, mais dispendiosa do que a
reservada aos nativos, como acentuou, Ávila de Azevedo, no seu livro sobre política de ensino
em África (6).
No meio da retórica, do lirismo e da propaganda dos políticos, surgiam, por vezes,
homens preocupados com os aspetos económicos. Um deles foi Moreira de Almeida, diretor
dos Serviços de Educação que, em 1950, estimou que a criação em Moçambique de institutos
comerciais (entre o secundário e o universitário) representaria uma despesa de 40.000$00 por
aluno e por ano. Acentuou que entre 1946 e 1950 apenas dez e quatro alunos tinham
terminado o curso de preparação para ingresso, respetivamente, nos institutos comerciais e
industriais. Ora esses alunos, caso decidissem prosseguir os seus estudos em Portugal, teriam
446
gasto ao Estado apenas 12.000$00 por ano, além dos 6.700$00 necessários à passagem de ida
(7).

Elevado custo das construções escolares

Outro importante aspeto económico onde se verificaram deficiências de conceção e


planeamento relaciona-se com os custos de construção e equipamento dos estabelecimentos
escolares. Esses custos eram por vezes excessivos, mesmo levando em consideração que, na
generalidade da África, as construções escolares exigiam investimentos que chegavam a
quintuplicar os normais na Europa para o mesmo nível e capacidade. Por exemplo, em
Inglaterra era possível construir uma boa escola secundária por 50.000£ (cinquenta mil libras)
mas em Gana um estabelecimento de capacidade análoga custaria algo como 250.000£
(duzentas e cinquenta mil libras) (8).
Em Moçambique a megalomania nacionalista evidenciou-se logo em 1929, com o
diploma legislativo publicado por José Cabral, ao exigir que todas as escolas missionárias
funcionassem em edifícios de alvenaria. Mais tarde, surgiram edifícios que pareciam ter o
propósito exclusivo de impressionar nacionais e estrangeiros. Foi a grandiosidade do Liceu
Salazar, em L. Marques, “um dos mais luxuosos de toda a África” (9) cujos mármores
contrastavam simbolicamente com o tijolo à vista das escolas secundárias sul-africanas. Não
admira que o custo de construção desse liceu subisse, em 1964, a cinquenta mil escudos por
aluno, já com uma frequência dupla da projetada no início. Em outros estabelecimentos do
nível secundário gastaram-se verbas mais modestas mas mesmo assim bem superiores à
média europeia e norte-americana: o Liceu da Beira, o Liceu António Enes (L. Marques) e a
Escola Técnica Elementar Joaquim Araújo (L. Marques) importaram, respetivamente, em
vinte e cinco mil escudos, dezoito mil escudos e doze mil escudos por aluno.
O gosto pela ostentação revela-se novamente em 1972 quando a própria Comissão de
Assistência Pública mandou construir, no bairro mais elegante da capital, um internato
feminino para setenta e cinco jovens o qual importou em mais de sessenta e seis mil escudos
per capita. O irrealismo ressurgiu com a construção de piscinas nas escolas dos subúrbios
africanos de L. Marques, piscinas que cedo se transformaram em lixeiras. Claro que o
princípio sagrado da propriedade privada dos terrenos urbanos agravava consideravelmente o
custo das instalações. Só a expropriação dos terrenos destinados à nova universidade de L.
Marques custou ao orçamento do Estado a quantia de trinta e dois milhões de escudos (Port.
796, B. O. 16/1971).
Mesmo no ensino primário comum o custo das construções excedia largamente as
possibilidades orçamentais. Em Portugal o custo de uma sala de aula rondava pelos cem mil
escudos quando em Moçambique este montante triplicava. E chegava ao ponto de sextuplicar
sempre que fosse necessário construir a residência para o professor, facilidade indispensável
nas povoações do interior.
No extremo oposto estavam os postos escolares construídos com precários materiais
tradicionais e muito deficientemente equipados. As tentativas para os instalar em edifícios de
alvenaria provaram ser impossível reduzir o seu custo a menos de cem mil escudos por cada
sala de aula, o que, multiplicado por milhares, exigia verbas incompatíveis com as
possibilidades do orçamento do Estado. Em bastantes casos recorreu-se ao prolongamento
arbitrário da “contribuição braçal” regulamentada em 1942 (Port. 4.963, B. O. 51/1941) que
obrigava cada varão adulto a prestar, por ano, apenas cinco dias de trabalho gratuito em obras
447
de interesse público. Por norma as administrações e os respetivos postos procediam ao fabrico
local de tijolo, em grandes fornos, graças ao qual foi possível construir, no interior, a quase
totalidade dos edifícios do Estado e das missões católicas.

Carência de professores qualificados

Houve graves carências quantitativas e qualitativas de pessoal docente. Até 1950 todos
os professores das escolas primárias estaduais eram provenientes de Portugal, país que
também lutava por elevar a sua reduzida taxa de alfabetização. Nesse ano o curso do
magistério primário de Goa foi equiparado aos metropolitanos, mas poucos professores
goeses foram para Moçambique. Durante o censo populacional de 1960 apenas novecentos e
quarenta e quatro não-africanos declararam possuir esse curso especializado. As primeiras
escolas do magistério primário comum foram fundadas em L. Marques e Beira apenas em
1962. Mas em 1970/1 quando já tinham vinte e oito elementos no corpo docente, havia nelas
matriculados somente noventa estudantes, predominantemente jovens não-africanas. O pior é
que essas jovens uma vez terminado o seu curso, detestavam ser colocadas nas escolas do
“mato”, sobretudo as situadas nas sedes das isoladas e longínquas circunscrições. Daí
abandonarem a carreira docente e empregarem-se em atividades mais atrativas nos grandes
centros urbanos.
Dos dez mil e quinhentos docentes existentes em todas as escolas do ensino primário
em 1973, nada menos do que nove mil eram professores de posto escolar admitidos, sem
grandes exigências, pelas missões católicas (10). E dizemos sem grandes exigências porque o
número dos que concluíam o curso do magistério de posto escolar nunca ultrapassou os cento
e quarenta por ano. Em 1969, quando recolhemos as últimas estatísticas fidedignas, tinham-no
concluído cento e dezassete estudantes africanos.
Só após o profundo choque psicológico de 1961, decidiram os responsáveis tomar
algumas medidas que facilitassem a ascensão dos africanos. Subiu, sem dúvida, o número de
matriculados. Por outro lado, como as atividades privadas pagavam salários mais elevados e
absorviam os licenciados formados em Portugal, não admira que fossem rareando, até à
extinção, nos liceus e nas escolas técnicas, os tradicionais professores dedicados, austeros e
competentes. Tanto quanto podemos ver, veio a cair-se num extremo contrário, aligeirando-se
cada vez mais os programas e os exames e admitindo-se professores instáveis e algo tolerante.
A instrução primária e mesmo a secundária degradaram-se irremediavelmente. Bastava fazer
um ditado ou uma redação a um desses “diplomados” africanos para se concluir que o seu
português era péssimo e que o seu nível de conhecimentos era bastante reduzido. Não admira
que fossem rejeitados pelas atividades privadas e que procurassem desesperadamente
empregos nos serviços públicos.

Absentismo descontrolado

Em regiões onde as famílias já reconheciam o interesse da alfabetização para melhorar o


seu futuro, acontecia que as escolas missionárias do ensino rudimentar ou de adaptação não só
se encontravam sobrelotadas como também não efetuavam qualquer controlo das presenças
nem participavam as faltas de comparência às aulas. Só tardiamente vinham as famílias a
448
saber que as crianças simulavam dirigir-se à escola e faltavam efetivamente durante longo
períodos, agregando-se em bandos que preferiam jogos e brincadeiras quando não ociosidade
e delinquência. Como, por falta do seu registo de nascimento, também era desconhecida a
idade exata dos estudantes, acontecia que chegavam a permanecer nas escolas por um número
indefinido de anos, praticamente até aparentarem o físico de adultos.

Difícil ascensão ao nível secundário

A idade máxima legalmente fixada para admissão ao ensino secundário constituía outra
fonte de dificuldades. Não tendo o português como língua doméstica (o que diminuía o
aproveitamento) não sendo guiados por motivações precoces e também porque não sofriam
fortes pressões familiares para iniciarem os seus estudos aos seis anos, acontecia que a
maioria dos africanos terminava a 4ª classe depois de haverem completado os 14 anos de
idade, o que automaticamente os afastava da possibilidade de se matricularem no “ciclo
preparatório” ou no “primeiro ciclo”. No seu recente livro, Serapião e El-Khawas mostraram-
se mal informados sobre os pormenores deste mecanismo e por isso prestaram a seguinte
explicação errónea (11):

“… the missionary educational program retarded black advancements in


other ways. Although the regular primary school consisted of four years the
missionaries following government regulations insisted that black children first
spend a separate two years learning Portuguese. These extra years became a
drawback for black children who wanted to attend high school and college
because the law forbade Blacks from entering primary schools after the age of
thirteen. Since most black children started school at a late age (because of the
shortage of schools) by the time they finished the two years, they were no
longer qualified to enter the primary schools”.

Ínfima assistência direta aos carenciados

Mesmo que terminassem a 4ª classe antes dos 14 anos de idade, mesmo que vivessem
em centros urbanos com liceus e escolas técnicas, mesmo que conseguissem vencer as
barreiras burocráticas e pedagógicas do exame de admissão, os estudantes africanos não
encontravam ao seu dispor uma intensa e bem planificada ação social escolar que
contrabalançasse os efeitos perniciosos das más condições de saúde, de alimentação, de
habitação e de nível cultural das respetivas famílias. Viviam em promiscuidade nos pardieiros
sobrelotados dos subúrbios, onde era impossível a privacidade e a concentração necessária ao
estudo. A sua alimentação era quantitativa e qualitativamente deficiente. Sofriam de doenças
mal diagnosticadas e tratadas. Na sua maioria não dispunham de eletricidade, estudando à luz
de velas e candeeiros de petróleo ou debaixo dos postes de iluminação pública. Dormiam em
esteiras ou quando muito em catres sujos e desconfortáveis, não raro infestados de parasitas.
Por falta de dinheiro para transportes ou para carreiras regulares de omnibus, eram obrigados
a percorrer grandes distâncias a pé para chegarem às escolas. A carência de vestuário e
calçado decente originava complexos de inferioridade, tanto mais que os não-africanos, assaz
449
cruéis como todos os adolescentes, não lhes poupavam chacotas. Continuavam a dominar
imperfeitamente a língua portuguesa devido à falta de contactos sociais com europeus e ao
persistente uso doméstico das línguas vernáculas.
Também o nível baixo dos salários ganhos pelos familiares de quem dependiam não
permitia o uso intensivo de explicadores particulares. A tentativa feita por alguns africanos
instruídos para organizarem, em suas casas, aulas privadas de disciplinas do ensino liceal foi
suprimida pelas autoridades ao abrigo duma disposição legal (artº 14 do Dip. Leg. 2.287, de
25/09/1962) que mandava depender de autorização do governador-geral a abertura e o
funcionamento de estabelecimentos do ensino particular.
Compreende-se que, nestas condições deprimentes, fosse de importância fundamental
organizar, a seu favor, uma intensa e bem planificada ação social escolar que fornecesse
bolsas de estudo, assistência médica e farmacêutica e também facultasse refeições, vestuário,
calçado, livros e material escolar. Infelizmente, pouco se fez nesse sentido.
Havia, é certo, várias modalidades tímidas de auxílio aos alunos necessitados mas,
sintomaticamente, todas privilegiavam a Província de L. Marques, onde se concentravam as
sedes dos serviços. Por exemplo, as caixas escolares existentes nas escolas primárias do
Estado forneceram no ano letivo de 1964/5, trezentos e seis mil refeições gratuitas só naquela
Província e seiscentos e vinte mil em todo o restante país, com a agravante do custo unitário
das primeiras ser três vezes superior ao das segundas. Os refeitórios da Mocidade Portuguesa
foram em 1965/6 frequentados por trezentos e cinquenta e um estudantes só no distrito de L.
Marques e duzentos e cinquenta no resto de Moçambique. O Instituto do Trabalho, com um
fundo autónomo e uma verba concedida pelo orçamento geral do Estado, para efeitos
assistenciais, tinha internado em missões católicas em 1968, respetivamente duzentos e
sessenta e seis e duzentos e cinquenta e quatro estudantes nas supracitadas regiões
administrativas. A Comissão de Assistência Pública distribuía assim os subsídios concedidos
a centenas de estudantes pobres:

QUADRO IX

Distrito de
Escalões de ensino Resto da colónia
L. Marques
Pré-primário 216.000$00 399.400$00
Primário 3.857.000$00 1.563.900$00
Secundário 1.017.000$00 83.000$00

Acrescentemos apenas mais dois exemplos que revelam a insensibilidade dos


governantes estatais quanto aos problemas que afligiam os estudantes africanos.
Os peritos internacionais vinham chamando a atenção dos responsáveis para a
importância fulcral que o escalão secundário desempenha no processo de desenvolvimento.
Pois, irracionalmente, os legisladores em Portugal eliminaram o ensino liceal e técnico do
sistema de concessão de bolsas de estudo (Dec. 46.945, de 1966). E não contentes com esse
erro de consequências profundamente negativas, tornaram a medida extensiva a todo o
Império. A comissão cedo criada em Moçambique para colmatar a gravíssima e impopular
lacuna, limitou-se a conceder, no ano letivo de 1966/7, vinte e nove bolsas mas apenas para o
ensino médio e superior. No ano letivo seguinte ousou, de modo algo tímido, conceder não
propriamente “bolsas” mas meras “ajudas” de oitocentos escudos mensais, a vinte ou trinta
estudantes do ensino secundário, na sua maioria, africanos.
450
Outro exemplo de deficiente consciencialização geral foi fornecido pela comissão
administrativa do supracitado Fundo de Ação Social no Trabalho, que tinha como função
facilitar “as condições consequentes da transição do meio costumeiro para o local de
trabalho”. Pois, em 1971, apesar de ver as suas receitas aumentadas para cerca de cem mil
contos, graças a uma taxa paga por empregadores e empregados, tomou a decisão de abolir a
concessão, aos filhos dos trabalhadores, de novas bolsas e novos subsídios para compra de
livros e material escolar (12).
Contudo, aplicável a todos os escalões de ensino, havia um outro sistema que o autor
sempre defendeu como oferecendo maiores vantagens do que a concessão de bolsas e
subsídios. Recordemos que as condições de pauperismo e parasitismo que afligiam a maioria
dos urbanizados, levavam a consumir coletivamente o dinheiro dado aos estudantes,
influenciados como eram pelos tradicionais valores de solidariedade da família extensa.
Lembremos também que a maioria dos estudantes que, com grande custo, terminavam a sua
4ª classe nas escolas dispersas pelo interior, não conseguiam encontrar alojamento nas cidades
onde se situavam os estabelecimentos de ensino secundário. Por estas razões foi defendido,
nas instâncias oficiais, na imprensa diária e em outras publicações periódicas, a oportuna
adoção e generalização de uma forma de auxílio aos estudantes, que era reconhecido alcançar
resultados muito encorajadores no resto da África e mesmo dentro de Moçambique: os
internatos gratuitos ou de pequenas mensalidades para estudantes necessitados. Era o sistema
seguido por quase todas as missões católicas e protestantes, mas unicamente para o ensino
primário e profissional e, quando muito, para o 1º ciclo do liceu. Em 31 dezembro 1969 as
missões católicas mantinham em internato onze mil e setecentos estudantes de ambos os
sexos, nesses diferentes graus de ensino. Era igualmente este sistema que vigorava na Escola
dos Serviços de Saúde, nas Escolas Práticas de Agricultura e nas Escolas de Artes e Ofícios,
todas dirigidas pelo Estado.
Os Serviços de Educação aguardavam, como sempre, as decisões de Lisboa. Ora, ao
nível do governo Central, a necessidade de criar “lares de estudantes” foi reconhecida só em
1963 (Dec. 45.240, B. O. 39/63). Mas a comissão nomeada, no ano seguinte, para estudar o
assunto em Moçambique não produziu obra visível. Em 1970 voltou a publicar-se legislação
sobre o assunto (Dip. Leg. 3.047, de 24/11/1970). Tanto quanto sabemos, houve apenas a
tentativa de criar dois desses lares em Inhambane. Essa tentativa surgiu já tarde demais,
quando a causa de Portugal já estava irremediavelmente perdida. Houve um governador-geral,
Pimentel dos Santos, que no seu “Programa de Ação governativa para 1972/5 inscreveu a
fundação de vinte e dois lares para mil estudantes, lares que ficariam a cargo da Mocidade
Portuguesa.

Sobrecarregados programas de ensino

O ensino em Portugal era orientado pelo ideal de fornecer ao estudante o que ainda se
designava por “sólida cultura geral”. A preparação iniciava-se logo na escola primária e,
naturalmente, acentuava-se durante os sete anos do liceu. Ao comparar as oito grandes
reformas do ensino secundário que se estenderam de 1927 a 1961 (intercaladas com
numerosas alterações) encontra-se sempre este mesmo objetivo que, segundo alguns autores,
se radica nas tendências elitistas das reduzidas mas poderosas classes da sociedade
portuguesa. Não é este, decerto, o lugar próprio para considerar os méritos ou deméritos de tal
opção. Se chamamos para ela a atenção geral é porque constituía, seguramente, outro dos
451
fatores que dificultavam a ascensão dos estudantes africanos a mais elevados níveis de
instrução.
Logo no final do ensino primário ressaltavam as dificuldades na progressão dos não-
indígenas. Por exemplo, de entre aproximadamente oito mil setecentos e cinquenta alunos que
frequentaram a mítica 4ª classe, durante o ano letivo de 1961/2, apenas algo como três mil e
quinhentos vieram a matricular-se no 1º ano do ensino secundário, o que representa uma taxa
de transição de apenas 36,8%. Mais em pormenor, em 1957 matricularam-se no 1º ano do
Liceu Salazar trezentos e sete estudantes. Pois, em 1962 o 2º Ciclo (5º ano) nos dois liceus
Salazar e D. Ana (feminino) estava reduzido a cento e sessenta e um alunos, isto é, a taxa de
aproveitamento foi limitada a 52,4%. Os programas eram, na verdade, algo excessivos.
Incluíam, obrigatoriamente, disciplinas tão díspares como português, latim, francês, inglês,
filosofia, geografia, história, física, química, zoologia, botânica, matemática (com álgebra e
trigonometria), desenho visual e geométrico, educação moral e cívica, organização política,
educação física e, durante algum tempo, até música. Claro que grande parte da matéria era
dedicada ao conhecimento minucioso de Portugal (nomes das estações da rede ferroviária,
afluentes dos principais rios, etc.). Moçambique, mesmo nas disciplinas de geografia e
história, não merecia mais do que escassas páginas.
Para melhor se compreenderem as dificuldades de aprendizagem de tais programas,
acrescentaremos ainda que apenas 10% dos alunos não-africanos conseguiam concluir o 7º
ano dos liceus sem nunca reprovarem. Claro que, durante décadas, a minoria que conseguia
ultrapassar esta rigorosa seleção era composta quase exclusivamente por europeus, goeses e
alguns mistos e chineses. Dela são produto alguns dos mais importantes e antigos quadros
superiores da Frelimo como Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira, Jorge Rebelo e Mário
Monteiro.
Os docentes que ministravam este tipo de ensino possuíam graus académicos obtidos
em universidades e institutos superiores técnicos portugueses. Gozavam de grande prestígio,
viviam nos melhores bairros, definitivamente fixos com suas famílias e pertenciam à camada
superior da estratificação social. Eram tratados, com devido respeito, por “senhor(a)
doutor(a)”.
Assim sendo, os poucos estudantes africanos estavam, por motivos óbvios, em
manifesta desvantagem para absorver tão extensa variedade de conhecimentos, sobretudo os
ligados às disciplinas mais científicas. Os baixos rendimentos familiares não lhes permitiriam
recorrer a “explicadores” particulares, que, até hoje, continuam merecedores de grande estima
no seio da sociedade portuguesa na Europa. E conforme já referimos, as atividades ligadas ao
ensino privado doméstico necessitavam de prévia autorização do governador-geral, sob pena
de proibição formal e multa de quinhentos a cinco mil escudos. Que algo estava errado no
sistema, é comprovado pelo facto de os supracitados 90% de estudantes que falhavam no
escalão secundário e cujas famílias tinham posses para os manter internados em escolas
secundárias sul-africanas e rodesianas, conseguiam aqui obter, por norma, bons e até ótimos
resultados, apesar das dificuldades linguísticas. É claro que para esse sucesso contribuíram
outros fatores como o regime de internamento, o clima benigno e estimulante, a ausência de
doenças tropicais, o desporto intensivo e talvez a alimentação mais racional. Largos milhares
de Portugueses e outros europeus radicados em Moçambique fizeram os seus estudos na
África do Sul, na Rodésia e até no Malawi e na Suazilândia. A percentagem de mulheres era
entre eles muito elevada. Levantaram-se alguns clamores oficiais contra essa
“desnacionalização” dos estudantes, clamores que tiveram eco nos escritos de responsáveis
entre os quais os diretores dos Serviços de Instrução Braga Paixão (13) e Moreira de Almeida
(14). Porém, o fenómeno prosseguiu bem dentro das décadas sessenta e setenta, naturalmente
452
já com bastantes moçambicanos nas universidades sul-africanas. Entre eles contava-se um
Africano: o futuro Professor Eduardo Mondlane, fundador da Frelimo.

Admissão seletiva e excesso de exames de avaliação

Os africanos enfrentavam outra grande dificuldade: os exames finais dos ciclos e os


exames de admissão aos liceus, escolas técnicas e universidades. Pode apresentar-se desta
forma esquemática o curriculum escolar de um médico, agrónomo, veterinário, engenheiro:

Instrução primária _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 4 anos


Exame de admissão ao ensino secundário
1º ciclo ou ciclo preparatório _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 2“
Exame final do 1º. Ciclo
2º ciclo do liceu ou curso técnico_ _ _ _ _ _ _ _ _ 3“
Exame final do 2º. Ciclo
3º ciclo do liceu ou instituto técnico _ _ _ _ _ _ _ 2“
Exame final do 3º ciclo ou institutos técnicos
Exame de admissão à Universidade
Licenciatura _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ 6“
Exame final de licenciatura

A habilitação completa em cada um destes graus era extremamente importante na vida


profissional. Pelo menos a 4ª classe era exigida para admissão em muitos serviços públicos
como a Polícia ou para inscrição nos Sindicatos Nacionais, que beneficiavam de salários
mínimos bastante superiores aos dos trabalhadores abrangidos pelo Código do Trabalho
Indígena (mais tarde chamado Rural). Os exames finais do 1º, 2º e 3º ciclo eram
indispensáveis para admissão nos quadros médios dos serviços públicos. As atividades
privadas só admitiam trabalhadores de escritório com pelo menos o 2º ciclo e os bancos
chegaram a exigir o 3º ciclo. Nas Forças Armadas só podiam ser admitidos no curso de
sargentos milicianos os que possuíssem o exame do 2º ciclo. E no curso de oficiais milicianos
quem tivesse concluído pelo menos o 3º ciclo.

Ano escolar inadaptado às locais condições climáticas

Em 1939 foi tomada uma decisão que, fora de dúvida, prejudicou o aproveitamento
escolar: a alteração temporal do ano letivo. Por estranho que pareça não houve na sua origem
qualquer ordem recebida do Governo de Lisboa, a menos que tenha tido carácter secreto. O
certo é que a proposta foi apresentada ao Conselho Legislativo pelo então diretor dos Serviços
de Instrução, o ultra-nacionalista Braga Paixão. Ela mostra, mais uma vez, como a política de
unidade imperial e os interesses duma minoria estreitamente ligada a Portugal sacrificaram a
esmagadora maioria da população de Moçambique. Vale a pena transcrever o preâmbulo da
lei aprovada sem dificuldades (Dip. Leg. 625, de 14/1/1939):
453
“A portaria nº 133, de 20 fevereiro 1906, determinou que fossem de
férias, nos estabelecimentos de ensino da Colónia, os meses de dezembro e
janeiro, por serem aqueles “em que a ação do clima mais prejudica e dificulta
os trabalhos escolares e em que, segundo as estatísticas, a frequência é sempre
menos numerosa”. Por se julgar que aquele período teria forçosamente de recair
entre dois anos letivos, têm os serviços escolares da Colónia funcionado,
quanto às épocas de abertura e encerramento, em regime que não coincide com
o da Metrópole. São muito grandes os inconvenientes que resultam desta falta
de coincidência, não só para as famílias, muitas vezes sujeitas a deslocação
para a Metrópole ou desta para a Colónia, como também para os estudantes
que, terminados os estudos que nesta se podem seguir, pretendem obter
admissão em cursos superiores. Estes inconvenientes nem sequer são
compensados por melhores condições de rendimento para os serviços escolares
da Colónia, pois os exames e serviços de verificação ou apuramento sofrem por
ser realizados em quadra já imprópria para a sua execução, e o período de
férias, excessivamente extenso (mais de três meses no ensino liceal), entre o
encerramento de um ano letivo e a abertura do seguinte, compromete os hábitos
de trabalho que na escola se devem adquirir.”

Particularmente falacioso era o argumento baseado no conforto dos professores (fazer


exames de apuramento na época fresca) e a sua altaneira indiferença pelas centenas de milhar
de estudantes que durante trinta e cinco anos tiveram que sofrer o suplício de aulas durante a
estação quente, húmida e chuvosa, o que reduzia drasticamente o aproveitamento durante os
meses de dezembro, fevereiro e março, como reconheceu a portaria de 1906. Falacioso era
também o argumento de ser excessivo o período de três meses entre o encerramento do ano
letivo e a abertura do seguinte, o que “comprometia os hábitos de trabalho”. O certo é que
entre o primeiro e o segundo período, do mesmo ano letivo, o verão obrigava, de qualquer
modo, a uma interrupção de cinquenta dias (23 dezembro a 10 fevereiro) ao passo que entre o
segundo e o terceiro período não havia qualquer interrupção. Acresce que entre o fim do ano
letivo (5 julho) e o começo do seguinte (15 setembro) mediavam setenta e um dias de época
fresca e escolarmente mais rentável, o que não preocupava aquele político, mas que, se o seu
argumento fosse válido, também “comprometeriam os hábitos de trabalho”. Verdadeiro era
apenas o argumento resumido no segundo e terceiro parágrafos do supracitado preâmbulo.
Não admira que uma das primeiras medidas do governo da Frelimo tivesse sido o retorno ao
ano letivo que vigorou até 1938.

Receção tardia dos manuais adotados

O problema dos livros escolares também afetou o aproveitamento dos estudantes. O


ideal da dispersão imperial da cultura portuguesa e da uniformização do sistema educativo,
forçou a que se adotassem exclusivamente livros editados em Portugal. Apenas a partir de
1962 se começou a trabalhar a sério na edição local de alguns livros para a instrução primária
(15). Quanto aos livros para o ensino liceal e técnico era necessário aguardar a publicação no
Boletim Oficial da escolha feita, em cada ano, pelo governo central. Só então as livrarias os
encomendavam. O transporte marítimo e o cumprimento das formalidades aduaneiras davam
como resultado que os estudantes só pudessem adquirir os livros quando o ano letivo já ia
adiantado. Por razões difíceis de compreender e aceitar, a referida escolha oficial era
modificada de ano para ano.
454
Rejeição deliberada de contactos internacionais. Intervenção da Comissão
de Censura contra a publicação de críticas internas

Foi crescendo o antagonismo da maioria das nações contra a política colonial do regime
criado e implantado por Salazar e, com ele, o isolamento que penalizou as colónias
portuguesas face às iniciativas promovidas por organizações internacionais como a UNESCO.
Mais uma vez repetimos: os problemas que afligiam Moçambique, longe de serem
específicos estendiam-se à quase totalidade da África subsahariana. Por isso eram debatidos
com minúcia nas reuniões e nos organismos apropriados.
Relembremos, a título de exemplo, o que aconteceu na 32ª Conferência Internacional
sobre Educação que a UNESCO organizou em Genebra em meados de 1970. Cento e
cinquenta ministros, peritos e altos-funcionários reconheceram, pela primeira vez, a
ineficiência, a inadequação às necessidades nacionais e a qualidade inferior do sistema
educativo de tantos países africanos que ansiavam vencer o seu subdesenvolvimento. O
ministro de Educação do Dahomé proferiu então as seguintes afirmações desassombradas: “O
nosso sistema escolar contribuiu para a criação de ociosos, desenraizados e desempregados.
No entanto, reservamos para a educação a quarta parte do nosso orçamento. Em tais
condições valerá a pena continuar a investir quando os resultados se revelam tão
infrutíferos?”. O excessivo desperdício de alunos, por abandono ou repetição, que tanto
contribuía para agravar os custos por unidade, foi definido como um dos sintomas dessa
ineficiência. As suas principais causas assim se resumiam: classes sobrelotadas, escassez de
equipamento escolar, deficiente preparação de professores, ambiente sócio-económico
primitivo, programas abstratos e alheados das realidades quotidianas vividas pela grande
massa dos estudantes.
Pois o distante Ministério do Ultramar e, sobretudo, a sua omnipotente Direção Geral do
Ensino, de quem dependiam todas as decisões básicas, não dava sinais de que a sua política
fosse afetada por esses debates internacionais. Para abandonar este tipo de generalidades e
tratar, com algum desenvolvimento, de problemas bem concretos, o autor selecionou os
seguintes:
a) Reconhecimento do fracasso dos esforços de alfabetização em massa;
b) Criação de uma literatura especialmente dedicada aos alfabetizados;
c) Espécie de ensino a ministrar nas escolas rurais: literário ou agrário;
d) Desinteresse quanto à superioridade pedagógica dos países vizinhos e das igrejas
protestantes.
Razões sólidas levaram a própria UNESCO a mostrar grandes reservas sobre os
programas intensivos de alfabetização em massa. Os peritos reunidos em abril 1964 foram
unânimes em recomendar a alfabetização seletiva, ligada à formação profissional e
beneficiando apenas os grupos sociais que sentissem a efetiva necessidade de escolarização.
Concluíram que, quando as populações vivem em estádios primitivos, onde a comunicação
escrita não tem qualquer sentido ou utilidade, os recém-letrados cedo esquecem aquilo que
lhes foi ensinado com tantos esforços e tantas despesas. Mais tarde, outra conferência
realizada em Teerão homologou esta recomendação após acentuar que a necessidade de
alfabetização se encontrava intimamente associada ao desenvolvimento social e económico e
à criação de novos tipos de relação com o mundo exterior.
Pois em Moçambique, a Igreja Católica, levada quer por zelos de evangelização, quer
pelo cumprimento do Estatuto Missionário vigente desde 1941, cometia com frequência o
desacerto de desbaratar os seus paupérrimos recursos humanos e financeiros criando “postos
455
escolares” em áreas remotas, entre populações hostis e ainda regidas pelos usos e costumes
ancestrais. Ali colocava monitores mal preparados, estranhos à comunidade local, que podiam
minar o prestígio e a autoridade dos chefes tribais e dos próprios guardiães das linhagens
tradicionais. O resultado é que os missionários tentavam pressionar os administradores no
sentido de forçarem as crianças a frequentarem os tais “postos escolares”. O próprio Bispo da
Beira – que se notabilizou pelas suas posições liberais – escreveu numa sua pastoral datada de
1 dezembro 1951 (16):

“É necessário… que se ponha em execução por parte da autoridade


administrativa… a obrigatoriedade do ensino… regiões há também em que
funcionam regularmente escolas rudimentares mas os alunos e as crianças são
refratárias ao ensino e espontaneamente se afastam dele… Dado o natural
retraimento das raparigas indígenas e a (sua) frequente participação nos
trabalhos das culturas de alimentação, se a tudo isto se vêm juntar novos
trabalhos em outras machambas… nunca se conseguirá já não digo levar os
indígenas em idade de instrução a aprender a ler e a escrever mas nem sequer
ao estudo do catecismo e à preparação para o batismo e demais sacramentos”.

Por seu lado, o governo central de Lisboa procurou vencer a resistência dos pais
protestantes, e sobretudo islâmicos, publicando em 1953 uma disposição legislativa
esclarecendo que o ensino dito rudimentar se destinava a toda a população escolar com o
estatuto jurídico de “indígena”, sem distinção do credo religioso que professasse (17).
Passo agora a abordar o segundo problema concreto supracitado: a inexistência de uma
literatura especialmente dedicada aos alfabetizados, ignorando as recomendações
internacionais e a prática corrente nos países anglófonos circunvizinhos. É que uma
permanência maior ou menor nos estabelecimentos de ensino bastou a muitos para que
assimilassem a técnica da escrita. Outros puderam ganha-la graças a familiares ou a colegas,
nas suas povoações e nos locais de trabalho, como nos grandes centros mineiros da África do
Sul. Estes elementos mais ou menos integrados na economia monetária e na civilização
tecnológica não só eram alfabetizados como viviam num contexto sócio-económico em que já
reconheciam a utilidade da comunicação escrita. Porém, dadas as suas dificuldades com a
língua portuguesa, escreviam quase sempre no seu próprio idioma vernáculo. Em 1970 o
censo da população encontrou cerca de quatrocentos mil adultos nestas condições.
Argumentando que o uso das línguas vernáculas encorajaria o nacionalismo africano e a
oposição ao domínio colonial, as autoridades competentes nunca consideraram a possibilidade
de publicar uma literatura específica de origem portuguesa. E a Igreja Católica tinha, no seu
seio, missionários que conheciam bem as línguas nativas como demonstram as numerosas
obras léxicas e gramaticais, de elevado nível científico, que foram sendo editadas por
organismos estatais. Esta posição era tanto mais lamentável quanto é certo que os
alfabetizados, em especial os emigrantes trabalhando nos países vizinhos, tinham ao seu
dispor uma grande variedade de obras editadas, a baixo preço, pelas Igrejas Protestantes e até
pelos Serviços de Educação locais. Ao contrário do que supunham algumas autoridades
portuguesas – cujo nível de conhecimentos sobre as populações africanas era bastante
reduzido – essa atividade editorial não tinha qualquer finalidade subversiva. A par de
literatura religiosa era publicada outra com propósitos pedagógicos, educativos, recreativos.
Recolhiam tradições antigas, divulgavam o saber tradicional, transmitiam modernos
conhecimentos técnicos e científicos, acolhiam autores de novelas e de poesias, etc.
456
Gerhard Liesegang mais uma vez se destinguiu com a publicação de um estudo em que
dá conhecimento de alguns desses novelistas, poetas e historiadores que deixaram obras
publicadas e de valor indiscutivel redigidas nas suas línguas maternas (18)
Em relação às línguas e dialetos do sul do Moçambique distinguiram-se as editoras
Lovedale (19), Cleveland, Sasavona e Missão Suiça. No centro de Moçambique, onde
predominava o grupo étnico Chona-Caranga, a literatura em vernáculo era encorajada pelas
autoridades britânicas, seguindo as regras sugeridas pelo Prof. Clement M. Doke, no seu
relatório de 1931 sobre a unificação dos dialetos (20). O norte do então Distrito de Tete era
atingido pela literatura publicada na Zâmbia, estudada por S. Ohannessian e M. E. Kashoki
(21). Quanto ao Chi-Cheua, principal língua falada nessa região, admire-se o facto de a
bibliografia selecionada para edição pela Universidade do Malawi no ano de 1976, mencionar
centenas de obras para celebrar um século de atividade naquele domínio (22). A adoção do
Suahili como língua oficial da Tanzânia, teve decerto alguns efeitos no norte de Moçambique.
Para terminar. O conhecido argumento nacionalista dos que entendiam não ser de
encorajar o emprego escrito de línguas africanas porque se impunha a necessidade de radicar
e expandir o conhecimento do português como “língua franca”, como língua de unidade
nacional, perderia todo o seu valor se uma literatura moçambicana fosse, em colunas ou
páginas paralelas, até mesmo em linhas justapostas, redigida em simultâneo quer em
português quer na língua falada pela população destinatária. Sistema semelhante a este era
usado pelo prestigioso semanário “Brado Africano”, editado na capital, em português e em
Chi-Ronga, mas com uma tiragem de apenas quatro mil e duzentos exemplares. A atitude de
repúdio acima referida era tanto mais incompreensível quando se sabe que nas emissões
radiofónicas fora adotado o sistema paralelo. Desde 1960 começaram a ser organizados
programas especiais dedicados à população africana. Em 1966 foi criado o Serviço de
Radiodifusão e Cinema Educativo, sob o nome de “Voz de Moçambique”. Chegou a emitir
programas em oito línguas. A sua popularidade podia avaliar-se, com a maior objetividade,
pelas quatrocentas a quinhentas cartas que recebia em cada dia, na sua maioria escritas pelos
ouvintes nas suas línguas vernáculas. E isto apesar do número de aparelhos recetores atingir
apenas quarenta mil unidades.
Claro que o eventual desenvolvimento dessa literatura para africanos obrigaria à criação
de organismos especializados semelhantes ao “Tsonga Language Committee”, da África do
Sul, que estabeleceu regras sobre o vocabulário e a ortografia. E também a intervenção de
qualificados linguistas. O único esforço que, nesse sentido, feito em Moçambique, deve-se ás
igrejas cristãs que organizaram nos dias 23 e 24 outubro 1968, em L. Marques, uma “reunião
de estudos para se uniformizar a ortografia da língua ronga”, na qual participaram dois
linguistas da Universidade de Pretória, E. J. M. Baumbach e C. T. D. Marivate, autores da
grande coletânea ilustrada “Xironga Folk-Tales”.
Há mais exemplos da alienação dos responsáveis portugueses face aos debates travados
nas instâncias internacionais sobre as políticas educativas. Tal atitude esteve na origem de
decisões avulsas e titubeantes, cujos resultados nulos agravaram outros desperdícios de
tempo, trabalho e recursos.
Outro debate internacional visava a espécie de ensino a ministrar nas escolas rurais.
Surgiram perspetivas bem diferentes da preferida pelos modelos econométricos baseados no
resultado dos investimentos em formação humana. Concentrava-se, sobretudo, no conteúdo
dos programas educativos e no impacto provocado nas instituições.
Uma corrente de pensamento afirmava que os métodos modernos violentavam as
culturas tradicionais, provocando resultados fracos e contraproducentes. As crianças dos
meios rurais escassos proveitos poderiam beneficiar de programas teóricos concebidos para
meios evoluídos e urbanizados. Na verdade, estavam elas privadas de contactos inter culturais
457
e de condições sócio-económicas que fomentassem o uso intensivo da leitura, da escrita e da
contagem. A agropecuária, a fruticultura, a apicultura, etc., eram e continuariam a ser as
principais fontes de riqueza, oferecendo vastas modalidades de exploração produtiva. Assim
sendo, apenas um ensino técnico-agrário poderia conquistar a colaboração dos estudantes e
das suas famílias. Os programas deveriam organizar-se em torno de pequenos projetos de base
artesanal, comercial e agropecuária, de maneira a facilitar a adaptação dos alunos quer à
economia mercantil e monetária, quer a tecnologias simples mas de assegurada eficiência e
rentabilidade. Os produtos obtidos poderiam ser utilizados no fornecimento de refeições a
alunos e a professores, assim incentivando a frequência, fornecendo complementos
alimentares, constituindo atrativos para o pessoal docente. Seria possível, até mesmo,
sustentar em internato os alunos oriundos das povoações mais longínquas. Os excedentes
poderiam ser vendidos sob forma cooperativa, desse modo treinando os estudantes em
práticas de gestão familiar ou coletiva.
Esta orientação – perfeita em teoria – enfrentava contudo vigorosos refutadores que se
baseavam nos frustrantes resultados alcançados pelas experiências já tentadas em África,
marcadas por fracassos não só generalizados mas também persistentes, o que indiciava causas
profundas e estruturais. As refutações podiam agrupar-se do modo como se segue.
Em primeiro lugar ressaltavam as dificuldades práticas na manutenção duma exploração
agrária. Mesmo que a escola pudesse dispor de uma parcela fértil e irrigada, acontecia que o
gado, as culturas, os celeiros, etc., exigiam atenção permanente, em desacordo com horários
escolares, exames, períodos de férias, etc. Daí tais tarefas de manutenção serem detestadas
pelos estudantes cujo interesse pelas atividades lúdicas se sobrepunha a todas as teorias.
Em segundo lugar, seria impossível encontrar significativo número de professores
estabilizados, dedicados, ruralizados e, por acréscimo, responsabilizados por gestões de tipo
mini-empresarial. O que se encontrara, no terreno, fora uma maioria esmagadora de docentes
que considerava ser ofensivo para o seu prestígio pessoal despender tempo e esforços para
transmitir tal tipo de ensinamentos a crianças e adolescentes.
Em terceiro lugar surgia a argumentação dos que consideravam como erróneo
classificar o ensino primário como antirrural por natureza. É verdade que este, ao defender
valores humanísticos e ao desenvolver aspirações por melhores níveis de vida, desencadeava
em simultâneo frequentes reações de frustração. Mas tal se devia às condições de atraso, de
pauperismo e de doença que afligiam as comunidades rurais. De resto, eram os inevitáveis
contactos com aspetos modernos (p. ex. a bicicleta, a charrua, a carroça) e não as escolas
primárias que forneciam os modelos de referência capazes de levar os estudantes a sonhar
com valores e modos de vida dignos de imitação.
Em quarto lugar, acentuavam os perigos inerentes a uma instrução primária rural, com
programas distintos da sua congénere urbana. Além de prejudicar a ascensão dos alunos ao
ensino secundário, ela bem poderia derrocar qualquer sistema educativo nacional e integrado,
assim aumentando o fosso entre citadinos e camponeses e desenvolvendo ressentimentos entre
estes últimos porque se julgariam vítimas de mais outra intolerável discriminação por lhes ser
ministrado um ensino de segunda ordem, radicalmente diferente do dispensado aos
previlegiados.
Em quinto lugar ressaltava o facto de os próprios diplomados por algumas escolas
agrícolas e pecuárias depararem com insuperáveis dificuldades para dar aplicação prática ao
que lhes havia sido ensinado. Não dispunham de meios para adquirir equipamentos modernos,
nem mesmo os mais simples arados e muito menos quaisquer animais de tiro. Assim, os
problemas não eram propriamente educativos mas sim de ordem económica e administrativa
como os créditos, os transportes, a comercialização, a cooperação, a assistência técnica, a
concessão de terras, etc.
458
Naturalmente que as complexidades e as perplexidades que acabámos de desenvolver
também se refletiram em Moçambique. Entre os tipos de ensino criados em 1930 (rudimentar,
normal e profissional) apenas o último previa que, anexa a cada escola de artes e ofícios,
poderia haver uma pequena granja para promover conhecimentos agrários. Os regulamentos
de 1933/5 aplicados às mesmas escolas previam um dia por semana dedicado ao ensino
agrícola. Os regulamentos do ensino rudimentar aprovados em 1934/5 ordenaram o cultivo de
pequenas hortas para fins pedagógicos. A reorganização feita em 1937 da escola de formação
de professores sita em Alvor determinou que os estudantes deveriam receber ensinamentos
agrícolas e trabalhar na respetiva granja, revertendo para a caixa associativa as receitas
obtidas. As normas do ensino publicadas em 1946 (cinco anos após o Estatuto Missionário)
determinavam que, nos estabelecimentos para formação de professores, se efetuassem sessões
especiais de prática agrícola. Para as escolas rudimentares foram previstos trabalhos agrícolas
adequados à idade dos alunos e às possibilidades locais. Já nos programas ditos de
“adaptação” aprovados em 1961 foram excluídas as referências às granjas. Esta decisão pode
ter origem nas críticas generalizadas contra as culturas obrigatórias organizadas pelos
missionários e até mesmo contra a recoleção de produtos espontâneos como a castanha de
caju com que os mesmos procuravam equilibrar os seus míseros orçamentos. Contudo as
“novas bases” surgidas no ano seguinte, voltaram a mencionar hortas e jardins, devendo o
professor desenvolver a participação ativa dos estudantes na sua manutenção. A reforma do
ensino elementar decretada pelo Governo de Lisboa em 1964 exalta de novo as práticas
agropecuárias na formação de professores de posto escolar. No respetivo regulamento,
publicado cinco anos depois, surgiu uma inovação impraticável: cursos para adultos, com
programas de objetivos diferentes para urbanos e rurais, constando destes últimos quatro
horas e meia por semana dedicadas à educação agropecuária.
Por estes confrangedores exemplos se conclui que as flutuações legislativas seguiam
sempre a reboque das decisões tardias do governo central, obcecado em sustentar o mito da
unificação imperial. Tais decisões dependiam, naturalmente, das limitações de tempo, vontade
e competência de alguns altos-funcionários do Ministério do Ultramar, por vezes
inexperientes ou desatualizados quanto à evolução dos sistemas educativos que vigoravam no
continente africano. Por sua vez a aplicação prática dependia das possibilidades de
cooperação entre os sobrecarregados funcionários locais e os sacrificados missionários
católicos, aos quais se exigia que executassem, na cruel prática quotidiana, a legislação
nefelibata cogitada no remanso dos confortáveis gabinetes lisboetas. A aguda carência de
meios de ação, quer em pessoal qualificado quer em meios materiais, podia minar, de
qualquer maneira, as piedosas intenções de certos dirigentes. O certo é que o ensino primário
reservado aos indígenas – não raro prolongado até à plena adolescência – não conseguiu
fomentar o interesse pela vida agrária. Antes pelo contrário, contribuiu para engrossar o
êxodo, para os centros urbanos, dos mais instruídos e ambiciosos.
Todas estas consequências negativas do isolamento internacional, poderiam ser de
algum modo colmatadas pelo aumento da colaboração pedagógica com os países anglófonos
circunvizinhos. Estes formavam, com Moçambique, uma região com mútuos interesses e
intercâmbios: rede ferroviária ligada aos portos marítimos, em complemento com a rede
rodoviária; movimentos migratórios para os centros de trabalho, sobretudo da indústria
extrativa; sistema fluvial transfronteiriço; importações e exportações de conveniência mútua;
quantidade substancial de visitantes em turismo, em negócios, em busca da assistência médica
especializada, etc. Mas, em variados aspetos melindrosos, aos dirigentes políticos dos
governos lisboetas e aos governadores coloniais sob seu mandato, não convinha encorajar
contactos oficiais e até mesmo oficiosos com os países vizinhos. Talvez por recearem
acusações internacionais de colaboração com regimes apegados a práticas de discriminação
459
racial. Talvez por temerem a disseminação de perigosas ideias de autonomia e até de
“desnacionalização”. Talvez por sofrerem de elementares complexos de inferioridade. Os
próprios funcionários superiores dos Serviços de Educação, não só evitavam contactos
pessoais com os seus congéneres oficiais dos países vizinhos como também assumiam
atitudes altaneiras e autossuficientes, negando que tivessem algo a aprender com experiências
estrangeiras. Estavam, por conseguinte, de acordo com a posição subjacente ao conhecido dito
de Salazar: “orgulhosamente sós!”. É neste contexto que, mais uma vez, se distingue Ávila de
Azevedo ao reconhecer em 1958: “A influência crescente da União da África do Sul… os
investimentos poderosos consagrados ao ensino, a excelência dos seus institutos, a perfeição
dos seus métodos de investigação nas ciências que se ligam com o conhecimento africano,
dão relevo excecional a este país como um dos mais adiantados de todo o Continente” (23).
No que concerne às iniciativas que alguns tentaram lançar visando a aberta discussão e a
rigorosa divulgação do problema educativo dos Africanos, há a acentuar que os dirigentes
políticos do regime as consideravam potencialmente destabilizadoras. Convinha, por
conseguinte, que fossem devidamente expurgadas e, se necessário, sufocadas, sem rebuço,
pelas Comissões de Censura.
Era tão marcada a já referida relutância em efetuar comparações decerto vexatórias, que
ninguém procurou apurar as causas reais dos nitidamente superiores resultados educativos
conseguidos, dentro de Moçambique, pelas missões estrangeiras mantidas por diversos credos
protestantes. Pelo contrário, eram vistas com a maior suspeição pela Igreja Católica. O
cardeal-arcebispo D. Teodósio Clemente de Gouveia chegou a classificá-las como “escalracho
daninho infestando o nacionalismo e o catolicismo português” (24). Todavia, os deveres de
honestidade intelectual levam o autor a reconhecer que existia, eventualmente, liberdade de
expressão em matérias tão melindrosas como aquelas que aqui procura estudar e
compreender. Ficou célebre, em princípios de 1960, uma polémica longa e até violenta
travada entre Manuel Vaz (membro do Conselho Legislativo e proprietário/diretor do
principal quotidiano “Notícias”) e os membros do clero que dirigiam e redigiam os dois
quotidianos católicos: o “Diário”, da Diocese de L. Marques, e o “Diário de Moçambique”, da
Diocese da Beira. A compilação que posteriormente foi publicada por Manuel Vaz é preciosa
por diversas razões, entre as quais avultam as quantificações sobre verbas, pessoal e
educandos (25). Advertiu M. Vaz no seu “esclarecimento inicial: “Temos quase a certeza de
que este artigo não será publicado… não só porque trata de um assunto “tabu” em que
ninguém está autorizado a tocar, mas ainda porque será considerado inconveniente e
antipatriótico…”.
As suas acusações contra o ensino missionário podem assim ser resumidas:
a) Gestão descontrolada dos subsídios estatais;
b) Incompetência do pessoal docente, sobretudo dos monitores;
c) Exames livres da ação fiscalizadora dos Serviços de Educação;
d) Práticas comerciais ilícitas, sobretudo por missionários italianos;
e) Exagero estatístico dos aproveitamentos e das matrículas visando o aumento das
verbas concedidas pelo orçamento do Estado;
f) Imposições feitas sobre os alunos no que respeita aos trabalhos agrícolas. No entanto,
não deixou de reconhecer que aos missionários não eram fornecidos os indispensáveis meios
de trabalho, sendo miseráveis os honorários mensais que recebiam (dois mil escudos para os
portugueses, e mil escudos para os estrangeiros e para as freiras).
As acusações formuladas foram vigorosa e minuciosamente refutadas. Na sequência da
polémica, o próprio cardeal-arcebispo veio a rebater M. Vaz, na sua Pastoral de 13 março
1960, ondel acentuou: “… a realidade, a fatal realidade, é que os Missionários de
460
nacionalidade portuguesa não aparecem em número suficiente… (em) Moçambique trabalham
aqui trezentos e sessenta e quatro missionários dos quais apenas cento e cinquenta são
portugueses… se não há maior número não é por falta de pedidos insistentes junto da
Hierarquia eclesiástica da Metrópole e dos Superiores maiores das Corporações
Missionárias”.
É neste contexto que se pode sinceramente lamentar não haver sido conseguida, entre
1941 e 1974, uma significativa contribuição de missionários e irmãs provenientes do Brasil e
da própria Galiza. Não oferece dúvidas que seria fácil, imediata e relevante a sua participação
na catequese e na educação dos estudantes africanos. Até mesmo porque os galaicos, do
mesmo modo do que os brasileiros, conservam a antiga pronúncia do português com forte
acentuação das vogais, acentuação que também caracteriza as línguas bantos (p. ex. os termos
ingleses steamer e breakfast foram transformados nas palavras graves chitimela e
bulacafessa). Mas para atrair os religiosos brasileiros e galaicos seria indispensável modificar
radicalmente o sistema das remunerações. O próprio cardeal Gouveia, na sua supracitada
Pastoral, reconheceu que os missionários e as irmãs recebiam “salários de miséria e de fome”.
Tratando ainda das facilidades e dificuldades de discussão interna, merece destaque
especial o papel desempenhado pelos institutos de investigação criados pelo Ministério do
Ultramar: a Junta de Investigações do Ultramar e os Institutos de Investigação Científica
próprios de cada colonia. Foi graças à sua existência que os especialistas mais competentes
dos diversos serviços ultramarinos puderam publicar, com inteira liberdade, o resultado das
suas pesquisas. Em matéria de educação africana são exemplares os casos de Ávila de
Azevedo e de Eduardo dos Santos, citados na bibliografia. Os quadros públicos podiam assim
tornear as disposições legais que os impediam de colaborar na imprensa.
Um caso que merece divulgação ocorreu com o Grupo de Trabalho da Promoção Social,
formado pela Comissão de Estudos de Planos de Fomento com o objetivo de basear políticas
que conduzissem à melhoria global, eficiente e harmoniosa das condições de vida da
população. Do relatório que apresentou no final de 1962 constavam propostas inovadoras. Foi
editado pela supracitada Junta, na prestigiada coleção de “Estudos de Ciências Políticas e
Sociais” (27), podendo estar na origem das medidas sobre educação africana tomadas pelo
Dec. nº 45.908, de 1964. Já um segundo relatório contendo quantificações e comparações
mais concretas foi considerado confidencial e, por conseguinte, não passível de publicação
(28). Para finalizar, o presente autor veio a sentir quão pesada e inclemente podia ser a
Censura. Aconteceu que, por sua livre iniciativa, decidiu elaborar uma série de quatro
editoriais sob o título “Moçambique e o Problema da Educação”. Pois os censores só
deixaram publicar o primeiro (29). Este episódio teve a vantagem de fornecer um plausível
pretexto para dar por encerrada uma obscura, fatigante, quixotesca e totalmente inútil
campanha jornalística que se prolongou de abril 1963 a março 1972 e totalizou mais de
duzentos e trinta editoriais, subscritos com iniciais fictícias. Animava-o a esperança quimérica
de alertar a população dita “civilizada” para os problemas que se iam agigantando e que tanto
contribuíram para o descontentamento da população africana.
461
Notas à secção

1- Cinquenta anos após o advento de Salazar, durante o I Congresso Nacional dos Professores que, em
fins de abril 1983, decorreu na Aula Magna da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, foi referido que
Portugal continuava a manter a mais baixa taxa de escolarização da Europa: só 11% do grupo etário dos 3 aos 6
anos frequentava a educação infantil; pouco menos de 20% dos jovens não haviam cumprido a escolaridade
obrigatória de seis anos; 45% deles não chegaram a completar o 9º Ano; apenas 8 a 10% alcançavam o ensino
superior; 25% da população era literalmente analfabeta. Era gritante o insucesso escolar precedente: das 286.007
crianças que em 1969/70 se matricularam na 1ª classe do ensino primário, apenas 39.095 obtiveram, em 1977/8,
aprovação no 9º ano de escolaridade, isto é, meramente 13,5%.
2- Armindo Monteiro (1933), p. 19.
3- Ávila de Azevedo (1958), p. 83.
4- Economic Aspects… (1962), p.740.
5- Relatório apresentado em fins de 1964, pelo Grupo de Trabalho da Promoção Social, formado no
âmbito da Comissão de Estudos de Planos de Fomento.
6- Ávila de Azevedo (1958), p. 65.
7- L. Moreira de Almeida (1951), p. 208.
8- Economic Aspects… (1962), p. 745.
9- Ávila de Azevedo (1958), p.155.
10- A. Marques de Almeida (1973), p.22.
11- L. B. Serapião e M. A. El-Khawas (1979), p.76.
12- A. Rita-Ferreira (1973), p.67/68.
13- Braga Paixão (1948), p.50. Leia-se: “como a realidade faz saltar as teorias pelos ares e até as simples
distrações, a verdade é que boa parte da atual geração escolar virou costas a este lar português e busca em terra
estrangeira a formação útil que a pátria lhe não proporciona”.
14- L. Moreira de Almeida (1951), p.209. Leia-se: “O fenómeno da emigração académica não é sinónimo
ou sequer sintoma de desnacionalização. É resultante de fatores psicológicos de natureza muito diferente e do
condicionalismo da Colónia, que confrontada, por todos os lados, com elementos do Império Britânico, onde por
excelência do clima, riquezas naturais, recursos populacionais e financeiros da respetiva metrópole, se tem
desenvolvido uma obra civilizadora em escala impressionante”.
15- E. Andrade Pires (1966), p.10.
16- S. Soares de Rezende (1952), p.59.
17- Portaria Ministerial nº 14.440/1953.
18- Gerhard Liesegang (1992).
19- J. Peires (1979).
20- Clement M. Doke (1931).
21- S. Ohnnessian e M. E. Kashoki eds. (1978).
22- S. M. Made et alli. (1976).
23- Ávila de Azevedo (1958), p.56.
24- Cardeal D.Teodósio C. de Gouveia (1961).
25- M. Vaz (1965).
26- É extremamente perniciosa para a divulgação e compreensão falada do atual português (até mesmo
para as gerações mais idosas) a tendência que se verifica entre a juventude para a atonia senão eliminação das
vogais (p. ex. escreve-se síntese e pronuncia-se sintz).
27- Promoção Social… (1964).
28- Planificação do Ensino (1964).
29- A. Rita-Ferreira (29 março 1972).
462
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ÍNDICE

▪ Agradecimentos e alguns lamentos p. I


▪ Despedida p. IX

p. 1
Parte I – Documentos

 Documento 1 – Os “Quatrocentos” que salvaram o Cristianismo monofísita da Etiópia p. 3


 Bibliografia p. 8

 Documento 2 – Novas sugestões para a retificação dos itinerários de António Fernandes


(Sofala) p. 9
 Bibliografia p. 14

 Documento 3 – A origem histórica das “quatro casas reais” do Império de Gaza p. 15


o Guerra de sucessão entre Muzila e Mauheue p. 16
o O Reinado de Muzila p. 17
o Ascende ao poder Ngungunhane, o fundador da quarta casa real p. 20
o Ata da magna reunião realizada em Mossurize, próximo da Capital de Gaza, entre
seis delegados do Governo Português e os representantes das quatro casas reais p. 24
 Bibliografia p. 30

 Documento 4 – Três gerações de uma família de historiógrafos africanos em Sofala p. 31


 Bibliografia p. 32

 Documento 5 – Publicação oficial dos “mapas-cor-de-rosa” em 1887. Suas consequências p. 33


o A ação de Paiva d’Andrada p. 33
o Expedição a Sofala p. 35
o Expedição aos sertões p. 37
o Cronologia da documentação existente no Arquivo Histórico Ultramarino p. 39
– Sobre a “Expedição a Sofala” p. 40
– Sobre a “Expedição aos sertões” (concebida pelo ministro H. de Macedo, e
mobilizando três oficiais: Paiva d’Andrada, V. Cordon e A. Maria Cardoso) p. 41
o A micro política tribal, segundo David Beach p. 42
o O caso específico do régulo Metoco p. 43
o António Maria Cardoso e os Padres Brancos p. 44
 Bibliografia p. 48

 Documento 6 – A 1ª Companhia de Moçambique e o início da ocupação efetiva exigida


pelas decisões finais da Conferência de Berlim p. 49
o Ofício do Eng.º Charles de Llamby dirigido ao Administrador Delegado da
Companhia de Moçambique p. 50
 Bibliografia p. 58

 Documento 7 – A decisão de avassalar o Alto Niassa. As intervenções de Serpa Pinto e


Augusto Cardoso p. 59
o Contactos preferenciais dos chefes do interior com os negociantes do litoral p. 65
– Vassalagem do Régulo Metarica e seu Povo p. 67
– Vassalagem do Régulo Cuirrássia e seu Povo p. 68
 Bibliografia p. 69
II

 Documento 8 – A origem dos Macololos do vale do Chire. A instalação dos missionários


escoceses, após as explorações de David Livingstone. A ofensiva portuguesa contra os
Macololos. Ultimatum Britânico de 1890 p. 71
o As intervenções de Harry Johnston p. 75
o Incidentes anteriores ao início dos combates p. 78
o Solução final: telegrama do cônsul int.º Churchill, remetido da Ilha de
Moçambique a Lorde Salisbury. O Ultimatum de 11 janeiro 1890 p. 82
o Texto do Ultimatum entregue por George Glynn Petre a Henrique de Barros
Gomes p. 82
o Apreciações sobre o Ultimatum p. 83
 Bibliografia p. 86

 Documento 9 – “Nos Cem Anos do Tratado de Delimitação de Fronteiras 1891-1991”, por


Manuel Jorge C. de Lemos p. 87
o Texto do tratado para regular definitivamente a delimitação das respetivas esferas
de influência em África e assegurar as relações de amizade entre as duas potências,
assinado em Londres a 11 junho 1891, onde foram trocadas as ratificações a 3
julho do mesmo ano p. 88
o Vantagens que trouxe a Moçambique o superior desenvolvimento dos países
integrados na esfera de influência britânica p. 93
 Bibliografia p. 96

 Documento 10 – Origem do Reino de Cambane-Mondlane que unificou parte dos Chopes p. 97


o As razões da hostilidade de Ngungunhane contra os Chopes p. 99
o A intervenção de Cecil Rhodes e da sua Companhia Majestática B.S.A.C. p. 100
o Papel desempenhado por Dennis Doyle p. 103
o Tratado entre a “British South African Company” e Ngungunhane p. 103
o Ata da reunião celebrada em Violante (Zefunha) aos 29 dias do mês de dezembro
1890, a convite do régulo Ngungunhane p. 104
o Viagem de D. Doyle a Londres, com dois representantes de Gaza. Conferência na
Real Sociedade Britânica, a 29 junho 1891 p. 107
o Ratificação ao tratado de 4 outubro 1890, entre a “B. S. A. C.” e o régulo
Ngungunhane (15-11-1891) p. 109
 Bibliografia p. 111

 Documento 11 – Resumo dos acontecimentos ocorridos na região setentrional de Tete,


atribuída a Portugal pelo Tratado de 11 junho 1891 p. 113
 Bibliografia p. 114
o O Reino dos Undis e a irmandade do nhau p. 115
 Bibliografia p. 118
o Carl Wiese, o sertanejo de origem germânica que amou e lutou por Moçambique p. 119
 Bibliografia p. 120
o A expedição portuguesa ao Mpezene p. 121
 Bibliografia p. 122
o O enigma das máquinas trituradoras p. 123
 Bibliografia p. 125
o O êxodo da população p. 126
 Bibliografia p. 127
o A intervenção do agente britânico Alfred Sharpe, ao serviço de Cecil Rhodes p. 128
 Bibliografia p. 128
o Jack, a fiel, prestimosa e inseparável montada de C. Wiese p. 129
III

 Documento 12 – Ngungunhane, o vencido imperador de Gaza e a sua comitiva. Exílio e


morte nos Açores p. 131
 Bibliografia p. 133

 Documento 13 – A história do Derre e dos prazos Massingire e Marral p. 135


o Apêndice geográfico e etnográfico p. 142
o Conclusões p. 142
o Seguem-se, por ordem quer de interesse quer de citação, as reflexões merecidas por
este valioso documento inédito p. 143
 Bibliografia p. 145

 Documento 14 – Esforços colonizadores da Companhia da Zambézia p. 147


o “Relatórios e Contas” p. 148
o Coleção de Volumes, numerados e datados, reunindo a correspondência da
Administração em África da Companhia da Zambézia (1892 a 1908) p. 151
– Cartas e relatórios de Paiva d’Andrada – Vol. 1 e 2 p. 151
– Cartas e relatórios de Mariano Machado – vol. 3 a 9 p. 154
– Cartas e relatórios de Moctezuma – Vol. 9A p. 168
– Relatórios dos empregados – Vol. 9B p. 171
– Vários – Vol. 10 a 24 p. 172
o Copiador encadernado e numerado dos ofícios dirigidos ao Comissário do governo,
ao Ministro das Colónias e outras entidades oficiais (1914 a 1923) p. 196
o Copiador encadernado e numerado dos ofícios dirigidos ao Comissário do governo,
ao Ministro das Colónias e a outras entidades oficiais (1923 a 1940) p. 200
 Bibliografia p. 207

 Documento 15 – Arquivo da Companhia da Zambézia. A Última Carta de Paiva


d’Andrada (datilografada, sem data mas recebida a 10 maio 1923) p. 209

 Documento 16 – Evolução moderna da corrente migratória entre o sul de Moçambique e a


África do Sul p. 215
 Bibliografia p. 217

 Documento 17 – A inexequível concentração de poderes nos Serviços de Administração


Civil p. 219

 Documento 18 – Aspetos Negativos da Implantação do Regime Corporativo em


Moçambique p. 227

 Documento 19 – Homenagem aos que contribuíram para demarcar e cartografar as


fronteiras acordadas pelos tratados políticos p. 233
o Relatório enviado de Quelimane, a 22 fevereiro 1901, ao conselheiro governador-
geral da Província de Moçambique pelo Comissário da Delimitação, então 1º
tenente Gago Coutinho (exemplo de uma expedição mal preparada) p. 233
o Gago Coutinho – BSGL, 33ª Série (1915) nº 5 e 6, maio e junho, pp. 182-192,
comunicação efetuadas a 11 janeiro (exemplo de uma expedição bem preparada) p. 235
 Apreciações pessoais de Gago Coutinho p. 237
IV
 Documento 20 – Três gerações de anglicanos fixados em Moçambique. A Frelimo
ascende ao poder e recebe as instalações e os equipamentos das forças portuguesas. O
partido reconhece o marxismo-leninismo como base teórica e ideológica, dando prioridade
à destruição do capitalismo. Acontecimentos sanguinários durante o Governo de Transição p. 239
o A admirável família de Charles Francis Spence p. 239
o O acordo de Lusaca p. 240
o Mais distúrbios sangrentos iniciados a 21 outubro 1974 p. 245
o A cerimónia da Independência no dia 25 junho 1975 p. 247
o Deportação das Testemunhas de Jeová para ignotos e distantes campos de
reeducação p. 247
o Homenagem pessoal ao pastor Francisco Xavier Dengo p. 249
o A grande rusga efetuada na noite de 30 para 31 outubro 1975 p. 249
o O assédio contra C. F. Spence, no sábado de 29 outubro 1975 p. 250
o A sublevação dos soldados macondes (17 e 18 dezembro 1975) p. 252
 Bibliografia p. 253
V

Parte II – Notas Soltas p. 255

 Nota Solta 1 – O túmulo de M’Bire Nhantécuè p. 257


 Bibliografia p. 262

 Nota solta 2 – As pinturas rupestres de Chifunbazi e Chicolone p. 263


 Bibliografia p. 265

 Nota solta 3 – Importância secular da baía de L. Marques (Delagoa Bay) nas trocas
comerciais com o interior p. 267
 Bibliografia p. 273
o Restabelecimento da soberania portuguesa nas terras do Maputo p. 274
 Bibliografia p. 275

 Nota Solta 4 – Brief Sketch of Tawara Society p. 277


o Administrative Divisions p. 277
o The Village p. 278
o Economy p. 279
o Kinship and Marriage p. 281
o Life cycle and ceremonies p. 282
o Spirits and some religious beliefs p. 285
o Concluding remarks p. 287
 Bibliografia p. 287

 Nota Solta 5 – Tentativas holandesas para captar a produção aurífera do planalto p. 289
 Bibliografia p. 294

 Nota Solta 6 – A celebração anual da Inquaia. Táticas e hinos guerreiros. Valores de


honra, heroísmo, verdade e solidariedade p. 295
 Bibliografia p. 298

 Nota solta 7 – Datas e factos acerca das ilhas de Quirimba p. 299


o Os Portugueses e as ilhas de Quirimba, por José Ribeiro Torres p. 305
 Bibliografia p. 308

 Nota Solta 8 – Zuanguendaba e os Angonis Guanguaras p. 309


 Bibliografia p. 313

 Nota solta 9 – Oficiais britânicos, em turismo cinegético, ao longo do vale do Chire, no


ano de 1868 p. 315
o Notas p. 320

 Nota Solta 10 – Homenagem a Manuel Simões Alberto p. 321


o Preâmbulo p. 321
o Transcrição integral da carta inédita, datada de 16 dezembro 1951 p. 323

 Nota Solta 11 – Tenente (dep. Capitão) A. F. Mesquita e Solla p. 327


o Admissão de Solla ao Serviço da Companhia da Zambézia p. 330
VI

Parte III – Ensaios Inéditos p. 333

 Ensaio Inédito 1 – Influência dos árabes iemenitas e omanitas. Civilização Suahili.


Mulunguanas e Muzungos. Mutapas e Changamires. O reino de Butua-Tórua e o seu direto
sucessor: o Estado Rozui p. 335
o A civilização Suahili p. 337
o Exemplo de abusos cometidos por representantes da Coroa p. 339
 Bibliografia p. 346

 Ensaio Inédito 2 – Uma perspetiva antropológica das origens do subdesenvolvimento


africano p. 347
o Adversidade do ambiente físico p. 350
o Primitivismo tecnológico p. 353
o Heterogeneidade étnica e linguística p. 355
o Dispersão do habitat p. 357
o Elevada taxa de natalidade p. 358
o Excessivas densidades rurais p. 359
o Casamento por lobolo. Exclusividade feminina na agricultura. A importância da
caça na hegemonia masculina p. 360
o Estrutura familiar matricêntrica p. 361
o Solidariedade da família extensa p. 362
o Instrumentalização da mulher p. 363
o Crenças no sobrenatural p. 364
– O culto dos antepassados p. 364
– A magia p. 365
– A feitiçaria p. 365
o Aceitação social do consumo de bebidas alcoólicas e do estupefaciente Canabis
Sativa p. 368
 Bibliografia p. 369

 Ensaio Inédito 3 – História monetária, por Alexandre Lobato p. 371

 Ensaio Inédito 4 – Trabalho compelido no Moçambique Colonial p. 377


o Trabalho compelido em geral p. 377
 Notas bibliográficas p. 395
o Contribuição braçal p. 395
o Trabalho correccional p. 399
 Notas bibliográficas p. 400
o S. Tomé p. 401
o O trabalho compelido no meio urbano p. 403
 Notas bibliográficas p. 406
 Totalidade da bibliografia citada p. 406

 Ensaio Inédito 5 – Culturas obrigatórias no Moçambique Colonial p. 409


o Algodão p. 409
o A situação da industria têxtil em Portugal p. 410
o Obrigatoriedade da cultura. Gratificações em Angola mas recusadas em
Moçambique p. 415
o Classificação dada ao algodão-caroço p. 416
o Pesagens, pagamentos, aproveitamento da semente com prejuízo para os
produtores p. 417
o Fixação de preços pelo Governo Central de Lisboa p. 419
VII
o O Fundo do Algodão p. 420
o A indústria têxtil em Moçambique p. 422
o Observações sobre o estudo de Allen Isaacman et alli p. 422
o Considerações finais p. 424
o Arroz p. 426
 Bibliografia p. 428

 Ensaio Inédito 6 – A Educação dos Africanos no Moçambique Colonial p. 429


o Aspetos ideológicos p. 429
 Notas à secção p. 436
o Organização e estatísticas p. 436
 Notas à secção p. 443
o Causas do atraso p. 443
o Estrutural debilidade económica p. 443
o Elevado custo das construções escolares p. 446
o Carência dos professores qualificados p. 447
o Absentismo descontrolado p. 447
o Difícil ascensão ao nível secundário p. 448
o Ínfima assistência direta aos carenciados p. 448
o Sobrecarregados programas de ensino p. 450
o Admissão seletiva e excesso de exames de avaliação p. 452
o Ano escolar inadaptado às locais condições climáticas p. 452
o Receção tardia dos manuais adotados p. 453
o Rejeição deliberada de contactos internacionais. Intervenção da Comissão de
Censura contra a publicação de críticas internas p. 454
 Notas à secção p. 461
 Bibliografia p. 462

AUXILIADO NA FORMATAÇÃO POR:


JOANA FÉLIX
E-MAIL: JOANAFELIX1987@HOTMAIL.COM
FACEBOOK: http://WWW.FACEBOOK.COM/Joanafelix1987

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