Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DE
DOCUMENTOS,
NOTAS SOLTAS
E
ENSAIOS INÉDITOS
PARA A
HISTÓRIA
DE
MOÇAMBIQUE
por
ANTÓNIO RITA-FERREIRA
I
***
***
***
Tirei proveito das numerosas e inéditas fontes consultadas para elaborar três dos meus
estudos, para cuja bibliografia peço a atenção dos interessados:
Pouco antes do seu falecimento, sugeriu o ilustre historiador que, nos arquivos que pretendia
pesquisar, procurasse elementos relacionados com o sequestro dos bens do governador citado no
título. É que, durante os longos anos que dedicara a historiografia de Moçambique, com conhecimento
impar da documentação primária, nada conseguira descobrir sobre esse assunto. Quis a sorte que,
durante as investigações, tivesse efectivamente deparado com alguns registos suficientemente
significativos.
Para terminar, julgo ser possível elaborar uma síntese válida sobre um caso precoce do
que hoje se designa por “economia global”, caso que envolvia simultaneamente quatro
continentes: A Europa, a Ásia, a África e a América do Sul.
Refiro-me à política económica pombalina, de protecionismo declarado aos
monopólios, sobretudo ultramarinos, dominados pela burguesia lisboeta. Refiro-me a todas
aquelas medidas legislativas que aboliram a liberdade de navegação para os portos da Ásia,
além do Cabo da Boa Esperança, liberdade concedida pela Lei de 10 setembro 1765.
Essa liberalidade degenerou em abusos de diversa ordem. Por tal motivo foi
determinado que, de futuro, ninguém pudesse navegar para os portos da Ásia, sem autorização
da Junta do Comércio. Tempos depois o Alvará de 19 junho 1772 proibiu os navios partidos
do Índico de escalarem o Brasil. Termina por ordenar que das naus provenientes da Índia “não
pudessem desembarcar fazendas da Ásia nos portos de Angola”. No seu preâmbulo ficou
definido, sem quaisquer equívocos, o direito de ser centralizado em Lisboa o comércio de e
para as possessões ultramarinas: “… da Metrópole Dominante é que se deve fazer o Comércio
e Navegações para as Colónias e não as Colónias entre si.”
No preâmbulo de outro alvará de 12 dezembro do mesmo ano, foram expostos, com
peregrina clareza, os prejuízos que, para os interesses do governo central e dos grandes
monopolistas e comerciantes de Lisboa, advinham dos contactos comerciais diretos entre a
Índia, Moçambique e o Brasil. Critica o facto de alguns negociantes brasileiros mandarem
carregar escravos a Moçambique comprados por preços rebaixados. Esta prática causava
grandes prejuízos ao comércio e à navegação de Lisboa. Por esses motivos determinou que
todos os navios que frequentassem os portos do Índico fossem obrigados a regressar em
viagem direta para Lisboa, fazendo apenas escala em Luanda mas proibidos de ali
descarregarem fazendas. Não repugna a hipótese de que a publicação destas e de outras
disposições visavam, sobretudo, proteger os interesses de duas companhias monopolistas,
afastando os concorrentes que conseguissem introduzir no Brasil escravos da África Oriental,
a preços competitivos, utilizando, para tanto, os tecidos indianos.
É fácil compreender a razão pela qual até 1794 os escravos moçambicanos destinados à
exportação tivessem como destino as ilhas francesas do Índico e das Caraíbas e, em menor
número, a costa da Índia. É que na sua compra predominavam os tecidos indianos importados,
praticamente em regime de monopólio, pelos comerciantes hindus (vulgo “baneanes”)
concentrados na Ilha de Moçambique.
***
Mesmo após 1808, apesar da corte se haver fixado no Brasil, os negociantes da praça de
Lisboa conseguiram assegurar uma posição dominante no tráfico negreiro da África para o
Brasil. Os circuitos comerciais aparecem quantificados e qualificados nos registos e
documentos avulsos da Casa de Índia, da Junta do Comércio, do Erário Régio e em outros
núcleos.
Apresentamos a seguir dois exemplos desses circuitos que exigem aturado estudo
econométrico: a) o escravo negro era indispensável à produção de tabaco no Brasil; parte
deste era enviado para Goa a troco do salitre consumido na Real Fábrica de Barcarena; a
pólvora aqui produzida era vendida aos negociantes que a despachavam para o Brasil e costa
de África com a finalidade de se conseguirem mais escravos e mais marfim; b) a indústria
açucareira e a extração e transporte de pau-brasil não podiam funcionar sem a mão-de-obra
VII
africana; através de Lisboa eram essas produções exportadas para a Alemanha, Flandres e
Países Baixos, regiões consideravelmente mais industrializadas do que Portugal. Os milhares
de armas de fogo e mesmo de armas brancas (terçados) nelas adquiridas pelos «Negociantes
da Praça de Lisboa» (entre os quais se notam muitos nomes germânicos) eram remetidas para
o Brasil e para a costa de África com a finalidade acima referida.
Malgrado a concorrência dos têxteis britânicos, facilitada pelo Tratado de 1810,
continuou a ser significativa a importação de tecidos indianos e chineses destinados ao tráfico
negreiro. É bem elucidativa a Relação dos Negociantes de Fazendas da China e da Ásia. Se
estes beneficiaram ou não da publicação do Alvará de 4 fevereiro 1811, que procurou
defender o comércio com a Índia, é questão que também merece ser aprofundada. Um parecer
da Junta do Comércio de 1814 louva «as providentes regulações com que até agora muito
sabiamente se tem procurado concentrar nesta capital (Lisboa) o negócio da Ásia a favor da
navegação portuguesa».
Pode afirmar-se que, pelo menos, até à independência do Brasil, as fazendas indianas
tiveram importância preponderante no tráfico escravagista. Nessa mesma data foi determinado
pelo Decreto 169, de 2 maio 1822, que podiam «ser admitidas a despacho fazendas dos Portos
d’Além Cabo da Boa Esperança, carregadas em navio português, ainda que de construção
estrangeira».
Pela leitura dos Livros de Registo com a cota MR 3 conclui-se que a Junta do
Comércio concedeu, nas primeiras décadas do Séc. XIX, grande número de pareceres
favoráveis em requerimentos de armadores que pretendiam enviar os seus navios para
comerciar na Índia e em Macau. Os «Negociantes Capitalistas dos Portos da Ásia», como a si
próprios se chamavam ainda em 1826 constituíam, sem dúvida, um grupo de pressão,
havendo suficientes provas de que se encontravam paralelamente envolvidos no tráfico
escravistas entre a costa Oriental de África e os portos brasileiros, tráfico que prosseguiu após
1822, já envolvendo, como é obvio, negreiros e navios da nova nacionalidade.
***
Julgo ser conveniente que todos os interessados por esta matéria tenham conhecimento
de que a minha intervenção na microfilmagem se prolongou de julho 1983 a maio 1988.
Foram 58 os relatórios efetuados. Necessitaram de 124 páginas datilografadas em A4, sem
espaços entre as linhas e com um espaço entre os parágrafos. A consulta destes relatórios é
indispensável para quem pretenda aprofundar os seus conhecimentos quer sobre os
microfilmes quer sobre a documentação microfilmada.
Estarei á disposição dos interessados que pretendam esclarecer legítimas dúvidas
durante as suas investigações.
IX
DESPEDIDA
***
Sem dúvida que Aquino Bragança sentia por mim singular simpatia. Samora Machel
considerava este ilustre goês como seu braço direito e junto dele pereceu no célebre acidente
aeronáutico. Foi ele que insistiu em apresentar-me a Marcelino dos Santos, durante o primeiro
jantar oficial oferecido pelo Governo. Este dirigente limitou-se a estender-me a mão de modo
sacudido e, sempre mudo e mal-encarado, olhou-me fixamente e com visível rancor.
Aquino, possivelmente enredado na diplomacia secreta, veio algumas vezes a Lisboa e
teve a gentileza de me convidar para almoçar na Sociedade de Geografia. Falámos de Goa,
essa jóia do Oriente. Criticámos duramente as opiniões obtusas de Salazar, origem da
catástrofe que destruiu séculos de História.
Certo dia falando do comportamento da Frelimo, ousei acentuar: “Os vencedores
cometeram muitos erros. Pode compreender-se que hostilizassem os odiosos colonos, como
me classificavam. Mas é inaceitável que hajam hostilizado os nossos filhos, esses milhares de
jovens altamente qualificados, que se consideravam moçambicanos, que repudiaram o
passaporte português, que receberam a FRELIMO com entusiasmo delirante!
XI
Aquino, cabisbaixo, deu a explicação certa para os numerosos sintomas da governação
menos sensata que veio a desencadear a longa, sangrenta e destrutiva guerra civil: «Nós não
sabíamos …».
Tempos houve, em pleno Governo de Transição, em que a concessão de licenças pelo
Departamento do Turismo fosse gravemente prejudicada pelas sucessivas alterações do elenco
ministerial. Face a esta instabilidade, os Ministros evitavam exarar despachos alegando que
não dispunham de tempo suficiente para estudarem cada um dos assuntos. De facto, ao
saberem que iriam ser substituídos, devolviam em caixotes a numerosa documentação que
continuava pendente.
Foi com geral aplauso que, finalmente, surgiu um Ministro que sabia o que queria! Era
do conhecimento geral que importantes empresários (entre os quais se contava
Champalimoux) tinham já requerido a abertura de modernos casinos em ilhas e baías com
acesso marítimo. O seu objetivo consistia em captar endinheirados turistas da África do Sul e
de outros países sob influência britânica. Os processos iam-se arrastando sem solução.
Foi com geral apoio e admiração que um dos ministros referidos, julgo que o Dr. Jaime
Rebelo, lançou sobre o volumoso lote o seguinte despacho coletivo: “Arquive-se. Não está na
política da FRELIMO fomentar jogos de fortuna e azar”.
É com amargura que termino esta despedida exaltando a figura de um dos principais e
mais antigos defensores de uma “pátria moçambicana”: o Prof. Luís Polanah, que foi vítima
de um ato traiçoeiro praticado por alguém que tinha o dever de o defender. Este caso funesto,
junto com o sucedido com o do Pastor das Testemunhas de Jeová, Francisco Xavier Dengo,
bastariam para que rejeitasse a nacionalidade moçambicana, apesar de ali ter vivido e
trabalhado mais de meio século.
L. A. Domingues Polanah (adiante Polanah), nasceu no Chinde em junho 1921. Seu pai
era mauríciano e fora contratado pela Sena Sugar como perito provador. Após conclusão do
ensino secundário, Polanah ingressou no quadro dos Correios, Telégrafos e Telefones, onde
permaneceu de 1941-51. Desde esta última data até 1959 foi funcionário da Câmara
Municipal de Lourenço Marques, mais precisamente como encarregado do seu Bairro Social.
Entre 1950-58 participou em várias exposições artísticas promovidas pela “Casa da
Metrópole” e pelo “Núcleo de Arte” com desenhos, aguarelas, monotipias e óleos. Entre
1955-59 escreveu para o semanário “O Brado Africano” e em outras duas publicações,
numerosos artigos em defesa dos direitos da população indígena. Graças ao seu talento
artístico obteve uma bolsa que lhe permitiu concluir em 1963 o curso Geral de Pintura pela
Escola Superior de Belas Artes em Lisboa.
Logo a seguir ingressou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina
de Lisboa e em janeiro 1966 foi-lhe concedida uma licenciatura, com excelente classificação.
Até 1968, efetuou um estágio no Centro de Estudos de Antropologia Cultural e Museu
de Etnologia do Ultramar, sob a direção do Prof. Jorge Dias. Auxiliou também o professor
americano Donald Pierson, na tradução de textos clássicos da sociologia americana. Ao
contrário do que julgava esta atividade artística, literária e administrativa veio a transformar-
se em sério obstáculo no que respeita ao seu regresso a Moçambique. Tinha sido objecto de
uma acusação de atividades subversivas, acusação que oportunamente o levou à barra dos
tribunais onde foi absolvido. Todavia o Ministério do Ultramar, tornou bem claro que, caso
desejasse regressar ao Ultramar teria que escolher qualquer outra província alternativa.
Foi esta obstrução que o decidiu a optar por Angola, partindo para Luanda em dezembro
1968, onde tomou pose do cargo de Técnico de 1ª classe da Junta Provincial de Povoamento
de Angola. Realizou um trabalho brilhante e internacionalmente conhecido em prol das
populações rurais de Angola.
XII
Após o golpe de estado de 25 de Abril, pede a sua colocação, em comissão de serviço,
como Assistente da Universidade de Luanda, na Secção de Letras da cidade de Sá da
Bandeira (Lubango).
Contudo, a situação militar veio a agravar-se de tal maneira que foi obrigado a
abandonar o cargo para partir no último avião. Levando apenas alguma roupa e a
documentação indispensável, conseguiu atingir L. Marques, onde viviam suas tias. Entre
1975-76 foi admitido como assistente na Universidade de Eduardo Mondlane. Mas a
ignorância ou perversidade de qualquer subalterno ligado à Universidade, expulsou de
Moçambique, para sempre, o mais antigo, o mais valoroso, o mais humano, direi mesmo, o
mais ilustre de todos os moçambicanos. Aquele criminoso ilicitamente evocara a Resolução
do Comité Político Permanente – Decreto nº 15/77 (BRM nº 47, de 26/4/1977).
Na “Lição de Vida” da sua Jubilação, onde estive, a 27 Maio 1994, escreveu:
“Quando em 1976, procedente do Maputo me desloquei a Lisboa para tratar do
meu tempo de serviço durante o período colonial, o regime de Samora Machel
despediu-me sem qualquer justificação. Fiquei desempregado em Lisboa com três mil
escudos na algibeira, uma maleta de roupa para uma estância de quinze dias”.
3
“Muito do que escrevi precisaria de ser corrigido. A história é
sempre inacabada! Tudo quanto se escreve corresponde a um
estádio da investigação. A história é uma ciência viva, que se faz e
refaz. Há sempre equívocos e novas interpretações. Preciso é que
haja material e talento para a atualizar… Em história, temos de
utilizar todos os documentos e não só alguns.
José Mattoso, Expresso (Lisboa)
20 Março 2010”
1º
DOCUMENTO
Os “Quatrocentos” que salvaram o cristianismo monofisita da Etiópia
Justus Strandes (1) sintetizou a intervenção portuguesa no Preste João de maneira que se
afigura desprovida de simpatia e até de veracidade:
“The route to Abyssinia via the Red Sea and Massawa had then been
known to the Portuguese for a long time, but was now again barred to them by
the Turks. Four hundred Portuguese, under Dom Christovão da Gama had been
sent, in a typically bold and chivalrous gesture, to the Abyssinian Christians
as reinforcements and had remained in the country, and it was this which
caused thought to be given again to establishing the overland route… After the
occupation of Mombassa in 1593, orders were repeatedly sent from Lisbon and
Goa to open up a route from Mombassa, Malindi or Barawa… But that the
route was now closed because of the Galla…”
Resumiremos a seguir os elementos que parecem ter maior interesse para objetiva
compreensão. Como se sabe, as determinações oficiais do Concílio de Calcedónia sobre a
dupla natureza de Cristo (divina e humana) não foram aceites na Palestina, na Síria e no
Egito. Isso deu origem a várias igrejas de tipo separatista, na sua generalidade designadas por
“monofísitas”: arménia, jacobita, copta, etc. Entre outras distinções, representavam Cristo
sentado em tronos mas nunca pregado em cruzes porquanto não possuía natureza humana. O
copta era o idioma que nessa altura se falava no Egito, sobretudo em Alexandria,
reconhecendo-se como simples derivação do milenar idioma vernáculo dito faraónico. Possuía
um alfabeto próprio, baseado no Grego e era defendido por um movimento ideológico e
monástico bastante vigoroso que subindo o Nilo Azul – talvez para fugir a perseguições –
conseguiu encontrar refúgio nas enormes escarpas da Etiópia Alta.
A casa reinante que aqui se formou guardava uma sólida tradição que a ligava às épocas
gloriosas de Israel. Salomão teria sido oficialmente visitado pela rainha de Sabá a quem
concedera hospedagem. Esta, após o seu regresso, dera à luz um filho do grande monarca
hebraico. Salomão reconheceu o recém-nascido como seu herdeiro, atribuiu-lhe o nome de
Menelique e o cognome de “Leão de Judá”. Este, já adulto, fora visitar seu pai. No regresso
conseguira, misteriosamente, trazer para a Etiópia a célebre Arca da Aliança que guardava as
fundamentais tábuas dos Dez Mandamentos que, no Monte Sinai, foram entregues por Jeová a
Moisés. Daí os Etíopes respeitarem preceitos judaicos como a circuncisão no sétimo dia, o
respeito pelo Sábado e a abstenção da carne de porcinos.
4
Chamava-se Ezana o grande monarca que, durante o Séc. IV, foi convertido ao
cristianismo monofisita por S. Frumêncio. Mais tarde, Ezana expandiu-se para ocidente e
chegou a conquistar Meroe. O reino assumita que se seguiu teve existência comprovada até
700 d.C. Ficou isolado do resto da cristandade após a conquista islâmica do Egito. Foi o rei
Lalibela, durante o Séc. XIII, que aproveitou a perícia dos canteiros que sabiam talhar estelas
em pedras rochosas, para confecionarem mais de dez igrejas monolíticas que, ao presente,
mereceram ser incluídas entre os mais belos monumentos da Humanidade.
Francis Robinson (2) acentuou a rápida expansão do império otomano a partir de 1500,
tanto em direção ocidental como meridional. Esta última foi motivada pela hegemonia
portuguesa no Oceano Índico, hegemonia considerada como ameaçadora para o comércio
islâmico e para as rotas dos peregrinos que se dirigiam a Meca. Inicialmente os Otomanos
procuraram resolver o problema recorrendo aos Mamelucos instalados no Egito. Constatada a
inépcia desta fação religiosa, impuseram-se no Egito em 1517 e, logo a seguir, em Meca e no
Iémen. Aconteceu que, à entrada do Mar Vermelho, os Etíopes tinham pouco a pouco
subjugado pequenas tribos já de confissão islâmica que vieram a ser designadas pelo
etnónimo de Adal.
Deve notar-se que o P.e Francisco Álvares (3) reservou o seu capítulo CXIV para
descrever em pormenor “a batalha que o Preste houve com El-Rei de Adel e de como
desbaratou o Mafamede capitão”.
Sendo assim, este outro dirigente islâmico pode considerar-se como um dos precursores
da hostilidade coletiva contra os cristãos etíopes. Na fase final, o glorioso Mafamede desafiou
para combate singular qualquer um dos cavaleiros inimigos. Foi um frade com o nome
italiano (?) de Gabriel Andreas que aceitou o desafio. Este não só conseguira vencer mas até
decapitar o cruel fundamentalista. Depois ofereceu a cabeça ao jovem Negus reinante. Em
recompensa foi nomeado “pessoa muito honrada e fidalgo de muito grandes rendas”. Era
“amigo dos Portugueses e entendia bem cousas da Igreja”. Os especialistas têm a
possibilidade de datar este decisivo frente a frente. O autor cita o mês de julho mas não o dia
nem o ano. Garante, contudo, que coincidiu exatamente com o êxito alcançado pelo vice-rei
Lopo Soares quando conquistou, destruiu e incendiou a importante cidade portuária de Zeila,
nessa entrada do Mar Vermelho.
Para abreviar, tentarei recapitular outros acontecimentos mencionados pelo mesmo
sacerdote que participou ativamente na primeira embaixada enviada pelo vice-rei, em 1520,
sob o comando de D. Rodrigo de Lima. Por felicidade ainda encontrou Pero da Covilhã não
só com satisfatória saúde mas também com invejável memória. Dele ouviu os seguintes
pormenores da viagem de exploração que, sob o disfarce de pacífica atividade mercantil, tinha
efetuado com Afonso de Paiva, por ordem direta de D. Manuel – ainda duque. Partiram de
Santarém a 7 maio 1487. Note-se a referência à África Oriental e, em especial, a Sofala.
***
Tenha-se em mente que esses homens não se limitaram a defender um credo religioso.
Eles defenderam a única nação dos imensos sertões africanos que desenvolveu uma
civilização milenária, sempre independente e dispondo de escrita própria. Da única nação
africana que soube desvendar, domesticar e expandir a planta que produz esse apreciado
estimulante que se espalhou por toda a Humanidade: o café dito arábica. Da única nação
africana que pela primeira vez, em 1896, conseguiu resistir e vencer uma potência europeia,
mais precisamente a famosa expedição militar italiana constituída por dezassete mil homens.
A literatura nacional e internacional sobre a Etiópia excede todas as expectativas, talvez
devido às célebres igrejas de Lalibela, esculpidas com grande engenho em enormes penhascos
graças ao uso apropriado de picões. Por ter sido reeditada em 1989 – e por os factos terem
sido confirmados pela documentação islâmica – limitar-me-ei a mencionar a compilação
organizada pelo P.e Baltasar Teles, mas sugerindo ao leitor que, para melhor elucidação, leia
de início o conciso e meritório comentário final redigido pelo Prof. Luís de Albuquerque, esse
sábio inesquecível que até ao final da sua vida dedicou corpo e alma a investigações sobre a
história da nossa expansão ultramarina (5).
***
Francis Robinson (7) apresentou no seu sintético Atlas uma elucidativa representação
cartográfica na qual constam estes dados fundamentais:
a) A expansão otomana até ao Iémen;
b) O trajeto seguido por Ahmad Gran, que iniciou a guerra santa em 1531;
c) O auxílio que lhe foi prestado em 1541 pelas hostes otomanas que já dispunham de
armas de fogo e até mesmo de artilharia;
d) O local da batalha de Woina Dega onde em 1543 os portugueses sobreviventes se
bateram com tal vigor e coragem que derrotaram os invasores, como já foi mencionado. Os
otomanos bateram em retirada abandonando para sempre as inóspitas serranias da Etiópia,
onde nasce o Nilo Azul. A guerra santa perdeu o seu ímpeto e a velha nação conseguiu
sobreviver até ao presente.
Mais tarde os jesuítas vieram a dedicar-lhe especial atenção e tentaram até mesmo
impor a sua específica interpretação religiosa àqueles adeptos do monofisismo. Acabaram por
ser executados ou pelo menos expulsos. A propósito desta conversão frustrada, Oliveira
Marques escreveu o seguinte comentário judicioso (8):
1) STRANDES, Justus (1971). The Portuguese Period in East African…. Nairobi, Quénia, E. Afr. lit.
Bureau, p. 275.
2) ROBINSON, Francis (1991). Atlas of the Islamic World since 1500. Amsterdão, Time-Life Books, p.
72.
3) ALVARES, P.e Francisco (1974). Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias.
Lisboa, Agência do Ultramar, pp. 317-321.
4) MARQUES, A. H. de Oliveira (1974). História de Portugal. Das Origens às Revoluções Liberais.
Lisboa, Palas Editores, Vol. I, p. 321.
5) Como oportunamente mencionarei, o Prof. Luís de Albuquerque afirmava-se competente para “ler
qualquer documento”. Testemunhei, no Arquivo Histórico Ultramarino, as dificuldades que a paleografia
levantava a esse dedicado investigador do Zimbabué que foi S. I. G. Mudenge.
6) TELES, P.e Baltasar (1989). História da Etiópia. Lisboa, Publicações Alfa/Biblioteca da Expansão
Portuguesa, 22, pp. 206/7.
7) ROBINSON, Francis (1991). Idem, p. 95.
8) MARQUES, A. H. de Oliveira (1974). Idem, p. 458.
9
2º
DOCUMENTO
Novas sugestões para a retificação dos itinerários de António
Fernandes (Sofala)
***
Ponderando estes pormenores, não é para surpreender que o rei de Inhacoro, sem dúvida
islamita, dispusesse de embarcações próprias e de pilotos competentes e que, com claras
intenções, tenha insistido com Fernandes para que aceitasse a oferta de um confortável
retorno a Sofala, assim aproveitando tão rápida, cómoda e talvez gratuita via fluvial e
marítima. Recorde-se que, logo no primeiro contacto com o visitante, deixara bem esclarecido
que, embora a presença do estrangeiro fosse do seu agrado, não lhe podia esconder a
indignação que sentia face aos comportamentos danosos e agressivos que, segundo era voz
corrente, os portugueses vinham adotando contra os mercadores mouros que negociavam nas
suas terras. Perguntou-lhe, sem rebuço, se tal correspondia à verdade.
Deste interessante diálogo quinhentista ressalta, de imediato, a importância fundamental
dos intérpretes bilingues. Fernandes dominava bem a língua de Sofala mas não outra também
vernácula mas assaz diferente, popularmente designada por “botonga”, falada pelos habitantes
da mesma margem direita onde se situava Inhacoro. Esta marcada diferenciação linguística foi
mais tarde confirmada pelo insuspeito Fr. João dos Santos, também fluente na língua de
Sofala (10).
Valeu a Fernandes ser acompanhado pelos islamizados mulunguanas que conheciam os
povos, as línguas, os chefes, as rotas, as feiras, as minas, as águas potáveis, os vendedores de
alimentos, etc. Por nascimento local ou mestiçagem, gozavam também de maior resistência
contra as doenças tropicais. O seu conhecimento das línguas indígenas tornava-os
imprescindíveis tal como o eram, durante o período colonial, os milhares de intérpretes
oficiais que se distinguiam em muitos serviços públicos e em parte das atividades privadas.
Mas retomando à viagem de Fernandes. Por haver recebido ordens terminantes para
visitar de novo o Muene Mutapa, não pode aceitar o tentador convite. No entanto ofereceu ao
potentado que o hospedara, um arcabuz e um escravo decerto já familiarizado com o
manuseamento eficaz dessa terrífica e desconhecida arma de fogo.
Logo à partida foi de novo ludibriado pelos seus guias. Não o conduziram a Tete, como
seria lógico, mas sim a outra grande feira semanal, chamada Ynhacouce, que não produzia
ouro mas o empregava como meio de troca para todos os produtos. Julgo pertinente apresentar
algumas sugestões que poderão facilitar a localização desta feira interior.
O facto do respetivo rei ser também capitão-em-chefe do Muene Mutapa, reforça a
hipótese de que as suas terras se situassem na parte mais oriental do império. Com esta
extensão territorial os Mutapas procuraram, decerto, alcançar o oceano e dominar a margem
direita do Zambeze para poder controlar eficazmente as rotas comerciais com o mundo
ultramarino. Foi, por conseguinte, um precursor do Caronga Muzura que atuou do mesmo
12
modo e pelas mesmas razões, em meados do Séc. XVII, mas em relação à margem esquerda
do grande rio.
Aquele largo corredor foi atravessado em 1590 por Fr. João dos Santos que definiu de
modo preciso a fronteira entre o império dos Mutapas e o reino de Teve: o rio Tendaculo, cujo
nome foi mais tarde mudado como convinha para Sambazo, derivado do verbo chi-sena ku-
sambadza que significava “negociar em viajem”. Assim sendo, aquela feira e capital
provincial visitada por Fernandes, tinha alguma relação com o topónimo “Inhacoche” cuja
exata posição não consegui descobrir mas que um documento do Séc. XVII classificou como
“importante povoação e capital das terras da Gorongosa”. De facto, cerca de 1750 constituía o
centro, talvez fortificado, onde residia e dominava D. Ignez Gracias Cardozo que M. Newitt
classificou como “personalidade formidável”. E aqui abro mais uma vez parênteses para
exaltar um desses estudos baseados na imensa documentação portuguesa, estudo concretizado
pelo investigador Luís Frederico Dias Antunes (11) que em 1994 apresentou uma
comunicação de surpreendente minúcia, onde conta ter descoberto uma conspiração de
jesuítas contra essa sertaneja “mulher de armas”, mestiça natural de Goa. Esclarece que, com
efeito, ela se refugiou na sua fazenda de Inhacoche quando mobilizou fiéis guerreiros e
proclamou revolta contra as brutalidades cometidas por um ferocíssimo Telles de Menezes
com quem tinha contraído um matrimónio de conveniência que teve final desastroso. Luís
Antunes, por comunicação pessoal, confirmou que também não conseguira localizar o sítio de
Inhacoche. Sabemos, contudo, ser lugar rico em caça grossa e beneficiando de pluviosidade
elevada, situado algures na vasta região compreendida entre o oceano, o Zambeze e, ao sul
deste grande rio, um outro menor, perpendicular à costa que outrora se chamava Tendaculo.
Como já acentuámos, Fr. João dos Santos, que fez o trajeto terrestre a partir de Sofala até à
foz do Zambeze, deixou bem explícito que o então Tendaculo servia de fronteira entre o
Muene Mutapa e o reino de Quiteve. Sugiro que a feira de Inhacoche visitada por Fernandes
se situasse no local onde em tempos recentes foi construída a povoação de Inhaminga. Pode
afirmar-se que aquele topónimo é alheio à conhecida mina de ouro de Inhaoxe, situada perto
do monte Xiluvo, a cinco quilómetros do meridiano 34, local depois atravessado pela linha-
férrea da Beira. Mais ainda. Axelson errou na leitura do manuscrito quando escreveu:
“Dizem que aquela feira é tão grande como a das vir tendes e não há
outra moeda senão ouro por pesos”.
***
E mais adiante:
14
Bibliografia
3º
DOCUMENTO
A origem histórica das “quatro casas reais” do Império de Gaza
Foram os invasores dirigidos por Sochangana que vieram a fundar o Império a que deu
o nome de Gaza, em homenagem a um bisavô. Esse império, na sua máxima extensão,
compreendia o território entre o Zambeze e o Incomati e entre o Oceano Índico e o curso
superior do Save, a partir da sua inflexão para norte. Atingiu, por conseguinte, a maior
superfície e o mais elevado potencial demográfico entre as diversas unidades políticas que
nasceram das colossais convulsões do Séc. XIX. Certamente que, para esse notável fenómeno
de «alargamento de escala», contribuíram as superiores potencialidades que a região oferecia
ao poder central, para que pudesse acumular riqueza por meio de tributos e confiscações.
É sabido que Sochangana foi, pela primeira vez, visto e descrito por insuspeitos
europeus, no dia 8 outubro 1822. Pertenciam à guarnição de um dos barcos da Armada
Britânica que, sob o comando de William F. Owen, patrulhava o Canal de Moçambique. Um
dos seus escaleres fazia usuais reconhecimentos – dessa vez no rio Tembe que desagua na já
cartografada e nomeada “Delagoa Bay”. Distinguia-se dos seus acompanhantes por uma pena
especial espetada no cabelo encerado em forma de coroa. Era algo barbudo e, como todos,
empunhava larga azagaia e grande escudo de pele endurecida.
A irrupção desses invasores aparece, nos documentos do presídio português, datada de
julho 1821. É possível que Sochangana se haja inicialmente fixado, cerca de 1820, nas
margens do rio Maputo que atravessava as terras pertencentes a um chefe assim denominado,
mas de uma etnia subalterna, designada por “tsonga”. O grande rio era conhecido, pelas
populações meridionais – mais precisamente chamadas “angunes (Nguni)” – não pelo nome
de “Maputo” mas pelo de “Pongolo/a”.
Como foi referido, tudo prova que haja ocorrido em 1818/9 a grande batalha em que a
confederação chefiada por Chaca-Zulo venceu a sua rival que tinha sido formada por Zuíde.
Foi essa incontestável derrota que levou os vencidos “indunas” a partirem, com a sua gente e
os seus regimentos, para as desconhecidas terras nortenhas. Tal foi a origem desses violentos
conflitos e dessas grandes deslocações populacionais que chegaram a afetar as margens
orientais do lago Tanganica. Alguns propuseram para esse colossal fenómeno, de
consequências tão trágicas e sangrentas, a designação genérica de “m’fecane”.
Sochangana foi prosseguindo, lenta mas firmemente, em sucessivas deslocações para as
regiões nortenhas, em busca de condições propícias para reconstituição das manadas, para o
recrutamento de futuros guerreiros e, enfim, para captura de mulheres com melhor aparência
física. Atingiu o Limpopo cerca de 1827 e ali decidiu fundar a primeira casa real
denominada Chidoache ou Legóte, onde se fixaram definitivamente todas as viúvas de seu
pai, com os respetivos descendentes.
Talvez devido às conhecidas ofensivas de Dingane, irmão e regicida de Chaca-Zulo,
Sochangana prosseguiu a sua rota migratória atingindo o interior de Inhambane em 1834, ano
em que derrotou e massacrou a expedição militar organizada pelo próprio governador.
Continuou em direção ao rio Save que atravessou, infletindo depois para o afamado noroeste,
tão pródigo em montanhas férteis, regadas e salubres como eram as da sua natalícia
Cordilheira do Drakensberg. Em 1836/7 não tardou em atacar, derrotar e expulsar N’qaba, o
seu rival e conterrâneo então instalado no presente território do Zimbabué, perto da atual
16
fronteira. Porém, esta presença nortenha de Sochangana e da sua gente limitou-se a uns dois
anos porque foi dizimada por mortífera e incontrolável epidemia de varíola. Apaziguou os
espíritos de antepassados vingativos mudando de nome e abandonando essas terras altas.
Passou a chamar-se Manucusse e regressou sem demora ao vale do Limpopo, deixando
indunas de confiança – entre os quais seu filho Muzila – a completarem a ingente tarefa de
conquista e governação do vasto território que se estende do Save ao Zambeze. Como se sabe,
fixou-se finalmente em Chaimite. Entre 1840/5 as constantes investidas dos seus guerreiros
provocaram a partida para o Transval de algo como cem mil habitantes da etnia tsonga.
Faleceu em 1858 em Chaimite, onde ficaram as suas viúvas e descendentes. Foi assim que
nasceu a segunda casa real.
O Reinado de Muzila
Após vencer seu irmão, Muzila voltou a fixar a sua capital na cordilheira montanhosa
que, ao sul do rio Buzi, se estende de ambos os lados da fronteira entre Moçambique e a
antiga Rodésia. As relações hostis com o reino suazi – que tinha acolhido seu irmão vencido –
parecem ter cessado graças ao processo drástico a que recorreram outros soberanos angunes: a
criação de uma “terra-de-ninguém”, com a largura de quatro dias de marcha, que seguia os
cursos dos rios Incomati e Sabie.
Muzila, muito ciosamente, soube manter a sua independência política, malgrado o preito
e a vassalagem que em 1863 prestara a Portugal por intermédio do governador de L. Marques.
Não é para admirar que em 1868, tenha resolvido enviar uma primeira embaixada ao
governador da colónia britânica do Natal. Mais provas de autonomia demonstrou quando,
nesse mesmo ano, fez reféns e exigiu resgates pelos militares portugueses naufragados com o
brigue “Na Sra. da Conceição”.
Eric Axelson (4) baseado em documentação oficial sul-africana, afirma que Muzila,
decorridos dois anos, tornou a enviar segunda embaixada ao Natal, solicitando que esta
colónia o aceitasse não só como “aliado, amigo e tributário” mas também como parceiro
comercial, propondo-lhe que recebesse as suas exportações de marfim e de mão-de-obra.
Sugeriu que, para discutir tais assuntos, lhe fosse enviado por via marítima um delegado que
poderia desembarcar na foz do Limpopo. Mais propôs que determinado chefe, subordinado ao
Natal mas pertencente à sua família, fosse autorizado a instalar-se com os respetivos súbditos
entre os domínios de Gaza e dos seus grandes inimigos, os Suazis. Só assim seria possível
formar uma “zona tampão” que facilitasse o mútuo intercâmbio. Sir T. Shepstone, Secretário
dos Negócios Indígenas, interrogou os elementos da embaixada sobre a suposta submissão do
Império de Gaza à Coroa de Portugal. Responderam negativamente. Referiu-se depois às
18
objeções que os Portugueses poderiam levantar contra a entrada de qualquer navio pela foz do
Limpopo e também contra os prejuízos que sofreriam com o desvio do comércio do marfim.
Pronunciaram então algumas metáforas surpreendentes:
Muzila ficara muito impressionado com o facto do governo do Natal ter convencido os
Zulos a não atacarem os Suazis. De certo que esse governo poderia também evitar que os
Suazis atacassem os Changanas. Mais acrescentaram:
“Muzila disse: eu sou (como) uma rapariga que deseja tornar-se noiva e
vir a casar, como casaram as noivas zulos e suazis, com um marido forte e
vigoroso que seja capaz de me proteger servindo-se apenas das suas palavras”.
Talvez mais depressa do que imaginava Muzila, o marfim começou a escassear e, com
ele, o antigo poderio dos monarcas de Gaza. A par disso prosseguiu sem demora o
desenvolvimento económico da África do Sul e, em consequência, a dispersão das libras
esterlinas trazidas pelos trabalhadores migratórios. António Maria Cardoso (6) apresentou
algumas observações pertinentes e que resumem de modo conciso a nova conjuntura:
Convém desde já acentuar que o ofício nº 55, de 3 julho 1886, que dirigiu ao
governador de Inhambane é fundamental para se compreender essa tão discutida sucessão
inusitada de acontecimentos dramáticos:
a) A intromissão precoce e maligna de Cecil Rhodes e dos seus mandatários;
b) A atividade frenética de Paiva d’Andrada quer em proveito próprio quer em
obediência a diretrizes ministeriais;
c) A decisão algo inesperada que Ngungunhane tomou em 1889 de transferir a sua
capital para o delta do rio Limpopo;
d) A derrocada final do Império de Gaza.
O referido ofício teve grande importância porque, pela primeira vez, Ngungunhane
manifestou a grande hostilidade dele e dos seus conselheiros contra os régulos rebeldes que
atacavam e saqueavam os domínios de Gaza no chamado sul do Save, donde recebia tributos
em libras esterlinas e onde possuía largos milhares de cabeças de gado bovino.
Voltando a José d’Almeida. Só em 22 julho, decerto convalescente, conseguiu redigir o
ofício nº 70. Teve o mérito de nele fornecer mais pormenores interessantes sobre os
acontecimentos ocorridos na longínqua capital de Gaza. Guiuza, tio do monarca, tinha
proposto que as discordâncias entre os dirigentes fossem eliminadas graças a uma nova e mais
abrangente assembleia composta por trinta e cinco notáveis, que se efetuou no dia 14; José
d’Almeida foi convidado, dois dias depois, para nova conferência que formalizou um acordo
entre as duas partes; após longos debates aceitaram arvorar a bandeira portuguesa sendo a
cerimónia efetuada no dia 17, perante grande multidão de súbditos, com o potentado
envergando já a sua farda de coronel; quanto às minas de Manica ficou o assunto pendente,
aguardando que regressassem de Lisboa os dois confidentes de Ngungunhane, com os nomes
de Comaianga e N’Tonga.
23
Trindade Coelho intercala aqui, muito a propósito (pp. 107/9), a ata da sessão
extraordinária realizada em Chiloane, pela comissão municipal de Sofala. A ela assistiram os
moradores mais importantes. Os primeiros subscritores foram o sacerdote, o médico e o
célebre professor e historiador Guilherme Hermenegildo Ezequiel da Silva. Contavam-se por
vinte e quatro os comerciantes asiáticos. Só hindus (baneanes?) da família Salmanegy havia
cinco. O número de maometanos atingia treze. O documento foi por todos subscrito e nele
expressaram admiração e reconhecimento pelo sucesso alcançado por José d’Almeida que:
Foi dada por finda a comissão e prestado rasgado louvor a José d’Almeida.
Mas, pouco tempo depois, foi novamente mobilizado. Pela Port. de 18/9/1886, foi
mandado regressar às terras de Gaza mas por via de Inhambane, chefiando uma delegação
composta por diversas autoridades de Inhambane, de Manica e até de L. Marques (p. 123/4).
Esta portaria ficou sem efeito porque, entretanto, as autoridades de Sofala tiveram
conhecimento de que Ngungunhane mandara avançar para Inhambane um poderoso exército
sob o comando de Maguiguana, com o objetivo expresso de punir exemplarmente os régulos
nortenhos de Massinga, Inguana, Savanguana e Zunguza que tinham ousado atacar e saquear
as populações de Macovane, responsáveis pela manutenção das grandes manadas de bovinos
pertencentes ao monarca. Contudo M. S. Alberto e F. A. Toscano, na sua quase exaustiva
síntese cronológica (9) registaram que o monarca tinha enviado dois emissários ao governador
de Manica, emissários que, a 27 julho, lhe deram conhecimento oficial de que, dentro em
breve, seriam atacadas as terras de Inhambane. Mais tarde Paiva d’Andrada e Alegria
Rodrigues confirmaram que – face à passividade das autoridades inhambanenses –
Ngungunhane se vira forçado a ceder às pressões dos grandes que o rodeavam. No
Mossurize, a 23 setembro, ambos tinham assistido à efetiva partida de cerca de vinte mil
guerreiros agrupados em numerosos regimentos. A 16 outubro este exército já tinha
atravessado o rio Save e iniciado o ataque ao norte do distrito. Os “caçadores” – sobrenome
das forças irregulares mobilizadas apressadamente pelo governador do distrito, capitão Vital
de Sousa – tinham sido esmagados sem dificuldade na grande planície de Chicunguza. Há
24
documentação comprovativa de que esta derrota se deveu exclusivamente ao facto de se haver
esgotado a pólvora que lhes tinha sido distribuída.
O governador-geral tentou em vão acudir com um pequeno destacamento militar
embarcado na Ilha de Moçambique. Também procurou mobilizar os guerreiros de régulos
avassalados da região de Inhambane. Falhadas estas intenções, logo regressou à sua capital na
companhia de José d’Almeida. Durante este descalabro correram rumores contraditórios sobre
uma pretensa autorização que o governador-geral teria concedido ao potentado de Gaza para
lançar a ofensiva acima referida. Esta hipótese não merece crédito porque não existiam, nessa
época, meios de comunicação direta entre ambos. Nesta conjuntura esteve também envolvido
Miarios F. A. Amiel, gerente da casa Regis em Chiloane, que não hesitou em confirmar que,
juntamente com outros residentes, tinha ouvido o governador Sarmento afirmar que Augusto
de Castilho autorizara Ngungunhane a atacar os régulos insubmissos do distrito
inhambanense. O mesmo gerente esclarecera que esta informação escrita e reconhecida fora
prestada a pedido do coronel Fornasini por carta de Quelimane e data de 5 janeiro 1887.
Tendo Ngungunhane lamentado os acontecimentos de Inhambane e manifestado total
disposição para reparar os danos que causara – não por vontade própria mas agindo sob
pressão dos dignitários que o cercavam – o Secretário-geral foi mandado seguir novamente
para a capital setentrional de Gaza chefiando mais uma comissão que seria composta pelas
seguintes individualidades: tenente-coronel R. Pedro Rodrigues; tenente-coronel J. C. P. de
Moraes Sarmento, governador de Sofala; Major F. I. Gorjão Moura, governador de Manica;
Residente-chefe J. C. Alegria Rodrigues; alferes J. J. d’Almeida Pirão, oficial às ordens. Em
conclusão, voltamos à data de 14 fevereiro 1887, para se transcrever o mais importante
documento da conjuntura.
Aos catorze dias do mês de fevereiro do ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus
Cristo de mil oitocentos e oitenta e sete no vasto alpendre destinado às escolas de instrução
primária junto à Residência no Mossurize próximo do curral do Manjacaze, povoação do
régulo Ngungunhane, pelas nove horas da manhã, tendo-se reunido, em virtude da portaria do
governo-geral da Província de Moçambique número quinhentos e trinta, de onze de dezembro
último, o Secretário-geral do mesmo governo José Joaquim d’Almeida; o tenente-coronel do
quadro de comissões da guarnição da referida província Rogaciano Pedro Rodrigues; o
governador do Distrito de Sofala, tenente-coronel de Cavalaria do Exército de Portugal Jorge
Correia Pinto de Morais Sarmento; o governador interino do distrito de Manica Major do
Estado-maior de Artilharia do mesmo exército Joaquim Carlos Paiva d’Andrada; o Residente-
chefe José Casaleiro d’Alegria Rodrigues e eu João José d’Almeida Pirão, alferes de
Caçadores nº1 d’África Oriental, servindo de secretário, compareceram o régulo
Ngungunhane e os representantes das casas da família Jaméne (Dlamini); sendo da de
Manjacaze (Mandlakazi), ou de Uzio, mãe substituta do régulo, o primeiro secretário
Medumana (Modumana) e os secretários Bogôto, Manhune e Mezenha; da de Uduengo
(Nodwengu), casa ou curral do Muzila, os irmãos deste falecido régulo; – Cuio (Nkuyu),
Guiuza (Nguyuza), Mpissana (Mpissane), Guêto e Muiungo; os irmãos do atual régulo
Mpicanisso, Mgomogomo (Komokomo), Mfungo e Mafambane e secretário Cornaianga; da
casa Chaimite ou de Manucusse, pai de Muzila; os secretários Dada e Chissoie e da de
25
Chidoache ou de Legóte, pai de Manecusse, o secretário Manhangue, todos acompanhados
por grande número de Chefes e Matotas.
Mais compareceram, servindo como intérpretes da parte dos delegados do governo,
João Pinto Rodrigues, Amad Abdula e Luiz Vieira e da parte do régulo Alexandre Pinto, o
Mchica Chica, Matande Encosse e Mapuirda. Trocados os respetivos cumprimentos declarou
o Secretário-geral que desejava, antes de tudo, ser informado dos motivos que levaram o
régulo a pedir insistentemente a sua vinda aqui, quer por intermédio do Major Paiva
d’Andrada e do Residente-chefe, quer pelo vátua Ntonga mandado a Moçambique com o fim
único de reforçar esse pedido.
O primeiro secretário Medumana, em nome do régulo disse: que a chegada aqui do
Ntonga na lua de Mpaia correspondente ao mês de novembro vindo de Inhambane por
Chiloane, portador de notícias da costa, deu claro e bem frisante conhecimento ao
Ngungunhane da indignação com que tinha sido recebida pelo Rei e pelos brancos a notícia da
invasão da algumas terras de régulos de Inhambane, por forças vátuas, o que veio a confirmar
os avisos que neste sentido lhe foram feitos pelos Major Paiva e Residente, antes da guerra
marchar de Mossurize, a que não deram inteiro crédito por suporem que El-Rei só veria
nessas hostilidades (?) questões entre rapazes todos seus filhos, que ele depois castigaria
como julgasse conveniente e por acharem que não deviam mais ficar quietos quando os outros
não cessavam de os agredir. Por isso desejou o régulo a vinda do Secretário-geral afim de
poder solenemente declarar-lhe que aquela invasão não significava de forma alguma quebra
de vassalagem à soberania da coroa, e tanto que formalmente foi ordenado a Maguiguana,
primeiro chefe da guerra vátua e comandante da expedição, absoluto respeito pela pessoa e
propriedade dos brancos e que por forma alguma passasse além das terras dos régulos
coniventes nessas continuadas agressões, ordem que foi cumprida à risca. Além disto que a
marcha sobre esses régulos não tinha sido subitamente resolvida nem a ocultas dos brancos e
que já quando aqui esteve pela primeira vez o Secretário-geral, se lhe havia queixado de
correrias daquela gente contra Macumasse onde existia grande quantidade de gado. Que é
verdade ter-lhes recomendado então o Secretário-geral que eles da sua parte se abstivessem de
hostilidades até que o governo providenciasse; mas que mais tarde, porém, novos e violentos
ataques tiveram lugar contra vátuas que habitavam a sul e leste do Guvuro e que todos
pereceram, ou pela zagaia e pelo incêndio posto às povoações, ou afogados naquele profundo
rio quando precipitadamente fugiam; nascendo disto um desejo geral de pôr imediato termo
por meio das armas, a estas não motivadas mortandades. Que o régulo em vista das instâncias
e conselhos do Mafambissa e do Manhanga, nomes vátuas do Major Paiva e do Residente-
chefe, ainda procurou opor-se à partida da guerra; mas a opinião unânime dos chefes e
grandes já reunidos excitada pelas notícias que quase quotidianamente chegavam das
fronteiras fez decidir o levantar da guerra. Hoje reconhecem bem que, apesar de todos os
motivos que os levaram a proceder como fica dito, mal andaram em não aguardarem as
providências do governo como tinham prometido fazer, estando por conseguinte dispostos,
para remir tal erro, a pagar o tributo que lhes for exigido.
O próprio régulo confirmou em seguida o que em nome dele disse o primeiro secretário,
reconhecendo quanto a sua fraqueza perante os que a todo o transe queriam a guerra imediata,
o levou a cometer uma grande falta, por a qual pede humildemente perdão a El-Rei,
prometendo que jamais, em qualquer caso, sem prévio consentimento mandaria bater
indígenas que se achem sob o domínio direto de Portugal. Por esta ocasião avisou que
desejava fazer castigar Sparjana, filho do régulo Binguana que em continuas correrias
rouba gados e estraga as povoações do Bilene que lhes são vizinhos e também estender o seu
domínio mais para oeste para além das terras de Dumas, abrindo assim uma mais vasta
região à soberania efetiva dos portugueses, acrescentando que já tem ultimamente
26
distribuído grande número de bandeiras nacionais aos régulos seus tributários que se
encontram espalhados por postos muito avançados no sertão. Estará sempre pronto a fornecer
em qualquer tempo as forças que pelo Rei lhe forem pedidas para reprimir rebeliões ou
auxiliar guerras, como simples comprimento dos seus deveres de fiel vassalo.
O secretário-geral disse que a propósito do castigo que o régulo deseja dar a Sparjana
tinha a recomendar-lhe que a não fizesse sem que do governo recebesse para tal expressa
autorização pois lhe parecia estar este chefe já sujeito a Inhambane, quando ao mais que pode
asseverar que a El-Rei será agradável ter conhecimento dalgumas das declarações que ele
acaba de fazer. Que o Rei desejando a paz entre todos os seus filhos não tinha autorizado
qualquer procedimento hostil por parte da gente de Inhambane contra os vátuas desde a
nomeação dum residente junto ao régulo e estando arvorado, como está, o pavilhão português
sobre a povoação de Manjacaze. Que de facto é sabido agora que a esses lamentáveis
acontecimentos não foram estranhas as autoridades de Inhambane, e por isso contra já se
procedeu tendo sido daí retirados o governador do Distrito e o capitão-mor das terras. Que a
prova das conciliadoras intenções de Sua Majestade a tem os vátuas no conhecido facto de
pela mesma época em que daqui partiu a guerra, achar-se em Inhambane ele secretário com
outros funcionários e o próprio capitão-mor das terras hoje exonerado, prestes a largar para o
Mossurize, afim de todos reunidos aqui em conferência amigável narrarem de uma e doutra
parte factos sucedidos e porém cobro a tais contendas da melhor forma que fosse combinada e
que não pode infelizmente realizar-se por ter chegado a notícia da aproximação das forças
invasoras, na própria véspera do dia destinado para a partida.
Que vê com satisfação que o régulo reconhece tão francamente e numa reunião tão
solene, a grave falta que praticou; e que igualmente confessa o direito que a El-Rei cabe de
lhe aplicar um castigo e que portanto o seu dever agora se limita a comunicar-lhe as
exigências a que tem de satisfazer.
1º Quer o Rei que os vátuas reconheçam como sujeitos ao distrito de L. Marques os
régulos Changane, Entimane e Magude, e ao de Inhambane os régulos Meabze, Magiva
e Teuana que de há muito diligenciavam avassalar-se nestes distritos, sendo só aceites tais
avassalamentos depois da recente invasão. Não ignora o Ngungunhane que o governo sempre
recusou entregar aos referidos régulos bandeira e cabaia, pois que disso lhe deu em tempo
próprio notícia oficial o Residente-chefe e se agora se adotou diverso procedimento só de si se
devem queixar os vátuas.
2º É indispensável que acabe o erro em que os vátuas se encontram com relação à
autoridade que têm exercido nas terras situadas a norte do rio Punguè. Os prazos
Cheringoma, Gorongoza, Chupanga e todos os mais das terras de Sena foram sempre do
domínio da Coroa e como tais nunca deixaram de pagar tributo ao Rei.
Embora numa ou noutra época os vátuas tenham feito correrias a esses prazos, e
recolhido deles fazendas mesmo voluntariamente, dadas pelos habitantes com o fim de
garantirem a sua segurança e tranquilidade, embora ali haja tido por vezes, e por ventura,
ainda tenham nalguns pontos, destacamentos de forças suas, não são estas razões argumento
para prejudicar os direitos de propriedade que única e incontestavelmente ao Rei pertencem.
As terras de Manica, como os vátuas não ignoram, foram por muito tempo ocupadas
pelos portugueses; ainda aí se podem ver ruínas de uma vila e de casas que pertenceram a
avós de atuais habitantes de Sena; ainda aí se encontra uma velha fortaleza com a sua igreja
de pé atestando permanência demorada de brancos. Resolveu o Rei mandar novamente povoar
estas suas antigas terras e a isto é mister que não levante a Ngungunhane obstáculos alguns.
Respondeu o régulo que das terras que formam o vasto território em que governa,
nenhuma foi tomada aos brancos pelos seus antepassados; que Manica, como outros pontos,
27
foram atacados por forças do Muava o qual, mais tarde, por toda a parte foi vencida pelo
Manucusse que ficou por isso na posse dos países que este havia conquistado. Que já Segote e
Manucusse se consideravam portugueses; que ele Ngungunhane é do Rei e tudo que lhe
pertence, mas que havendo-se obrigado, por ocasião de suceder a seu pai, a conservar as terras
em que ele governara não pode abandonar qualquer delas; que é o chefe de todos os pretos e
não vê motivo para continuar a governar uns deixando de exercer governo noutros; que os
portugueses brancos podem transitar por toda a parte, estabelecer-se onde quiserem contanto
que os pretos se lhe conservem obedientes.
O Secretário-geral declarou que sendo assim, Ngungunhane não deveria levantar
objeção alguma a que daqui se dirigisse, segundo as instruções recebidas, a organizar em
Manica um núcleo de povoação branca.
Neste ponto foi o secretário interrompido por Cuio, o mais velho dos tios do régulo, que
dirigindo-se a seu sobrinho lhe disse que não podia consentir que os brancos (sic) sendo
apoiado com murmúrios de aprovação por todos os seus irmãos. O régulo debaixo, pois, da
mais evidente pressão da vontade dos tios declarou que, com relação ao estabelecimento dos
brancos, se referira aos pontos já ocupados por eles e a outros próximo da costa, porém não às
terras de Manica.
Notou-lhe o Secretário-geral que ponto de vista era oposto às exigências que em nome
do governo acabava de fazer-lhe e que portanto achava muito conveniente que refletissem,
discutissem entre si e dissessem depois, em nova reunião, qual a definitiva resposta a levar ao
Rei, fazendo-lhe ver igualmente, as vantagens que lhe podiam advir da sua concordância com
o que lhe era exigido.
O Ngungunhane respondeu que lhe parecia desnecessária nova conferência porque,
como já disse, não podia ceder parte das terras em que governa, que reconhece ser o Rei o
mais forte e que se lhe não pode nem deve resistir e, portanto, que se os brancos forem para
Manica não lhe mandará fazer guerra sendo-lhe porém impossível declarar que permite a
ocupação daquele país.
Afirma ser ardente vontade sua manter-se vassalo respeitoso e dedicado ao seu Rei a
quem deseja dar todas as possíveis provas de arrependimento pela grande falta ultimamente
praticada; que se soubesse escrever, ele mesmo contaria todas as circunstâncias que o
decidiram à guerra parecendo-lhe que El-Rei então o desculparia. Que o tempo mostrará a
lealdade dos seus sentimentos mas que desde já pede que lhe permitam mandar dois dos seus
nobres até à presença do monarca português aos pés dos Rei a repetirem as declarações que
nesta reunião acaba de fazer e a levarem um tributo que testemunhe a sua submissão e a
convicção do seu erro.
Disse o Secretário-geral que por se ter o régulo recusado a dar completa satisfação às
exigências que vinha incumbido de lhe apresentar, não podia considerar o Zindava (litígio)
resolvido; que os dois emissários que o Ngungunhane deseja mandar a Lisboa o podiam
acompanhar e que ali ouviriam as decisões definitivas e as ordens do Rei. Que entretanto se
compromete aqui perante todos a que durante a ausência do Mossurize dos dois indunas
enviados, nenhum procedimento hostil será empreendido contra os vátuas, não podendo
porém garantir, da mesma forma, que lhes será aceite o tributo que levarem nem concedido o
perdão que solicitam.
E depois disto se deu esta conferência por terminada sendo já doze horas do dia e dela
se lavrou a presente ata que por todos os delegados do governo vai ser assinada comigo João
José d’Almeida Pirão que a escrevi e assino como prova do que tudo assim se disse e se
passou.
Acampamento no Mossurize, 14 fevereiro 1887.
28
(Ass:) José Joaquim d’Almeida, secretário-geral, presidente; Rogaciano Pedro
Rodrigues, tenente-coronel; Jorge Correia Pinto de Morais Sarmento, tenente-coronel,
governador de Sofala; Joaquim Carlos Paiva d’Andrada, major do Estado-maior de Artilharia;
José Casaleiro d’Alegria Rodrigues, Residente-chefe; João José d’Almeida Pirão, alferes.
***
José d’Almeida também chamou a atenção para o facto dos dirigentes de Gaza haverem
deliberado que os súbditos portugueses não seriam proibidos de construir habitações no
Banguè ou em qualquer outro ponto da costa onde outrora tivessem morado, como na
Chupanga (pp. 136 a 140). Convém relembrar que foi nesta concessão que se baseou a
posterior fundação do comando militar do Aruangua que, no futuro, iria dar origem à atual
cidade da Beira. Na resposta que, a 6 março, enviou a José d’Almeida, o governador-geral
congratulou-se especificamente com esse compromisso categórico de Ngungunhane (p.143).
A 4 abril oficiou ao ministro da Marinha fazendo largos elogios a José d’Almeida e referindo
a sua partida para Lisboa acompanhado pelos vátuas N’Tonga e Udaca, representantes
respetivamente das casas reais de Manjacaze e Uduengo, que levavam sete magníficas pontas
de elefante como oferta de Ngungunhane a Sua Majestade. Foi julgado conveniente evitar
navios estrangeiros e, por tal motivo, seguiram no transporte da Marinha “África”. Devido à
fortíssima tempestade que enfrentaram na zona do Cabo e aterrorizou os dois vátuas,
retrocederam caminho e optaram pela rota do Canal do Suez.
Por proposta do presidente do Conselho de Ministros Henrique de Macedo, El-rei D.
Luís concedeu a José d’Almeida, pelo decreto publicado no Diário do Governo de 26 janeiro
1888, a Comenda da Ordem Militar de N.ª S.ª da Conceição de Vila Viçosa. Os vátuas foram
levados a visitar um número suficiente de instalações e dispositivos das forças armadas como
paiois, campos de tiro, fábricas de pólvora, desfiles de regimentos, artilharia pesada, cavalaria
de combate, navios de guerra, etc. Sem dúvida que ficaram fortemente impressionados com o
poderio militar de Portugal.
Entretanto surgira nova complicação em Moçambique. O Banguè fazia parte do Prazo
Cheringoma, atribuído a um irmão, talvez classificatório, do próprio Ngungunhane,
denominado Mogudo-Gudo. Este, receando que o posto militar viesse a exceder a área
autorizada, decidira enviar para o local um destacamento de guerreiros. O governador-geral
reclamou o regresso imediato de José d’Almeida. Este partiu logo para Moçambique na
29
corveta “Mindelo”, levando consigo os dois enviados vátuas. Passou por Chiloane, subiu o rio
Buzi e atingiu a capital de Gaza. Os compromissos que obteve de Ngungunhane encontram-se
minuciosamente relatados no ofício nº 229, de 20 julho 1888 (pp. 165/9) dirigido ao
MSENMU durante a ausência do governador-geral, ofício que vai ser parcialmente transcrito:
Para finalizar esta síntese sobre a génese, o apogeu e o colapso do chamado Império de
Gaza, ocorre citar as considerações feitas pelo missionário suíço A. Grandjean (10):
“Como foi possível ter ocorrido esta queda tão rápida? É muito simples.
Uma dinastia inteira não vive de massacres e de razias durante setenta anos sem
provocar por toda a parte profundos descontentamentos. Enquanto
Ngungunhane foi todo-poderoso esse descontentamento não ousava revelar-se;
mas logo que surgiu a esperança de que outro poder mais forte o conseguiria
vencer, tribos após tribos se foram secretamente afastando. Apenas se esperava
uma manifestação de hostilidade (contra Ngungunhane) isto é, o predomínio
dos militares portugueses para que tomassem partido a seu favor.
Ngungunhane, como dizemos, foi o último representante da raça Zulo, ao sul
do Zambeze. Quando ele caiu, a era dos Zulos terminou para sempre em toda
esta região. Essa era durou um pouco mais de setenta anos, o período da vida de
um homem. Essa duração foi curta mas necessária. Tanto sangue derramado,
tantas criaturas livres reduzidas à escravidão, tantos territórios devastados iriam
exigir que a ruína esmagasse as cabeças dos invasores e a ruína chegou,
fulminante para todos. Para Chaca, para Dingane, para Cetchuaio, para
Lubengula e para Ngungunhane.
Quer isto dizer que o poderio zulo apenas tenha trazido malefícios e que
melhor fora para a África Austral que ele nunca tivesse aparecido? Não, porque
toda e qualquer potência que se engrandeça e que passe sobre a superfície do
nosso globo, deve cumprir a missão que lhe foi providencialmente consignada
nos destinos da humanidade. Ela cumpriu a sua missão, quisesse ou não,
estivesse ou não em desacordo com a vontade soberana que regula tanto os
destinos das nações como dos indivíduos. E como a história se repete, direi que
o papel desempenhado pelo império zulo em África foi idêntico ao do império
romano na Europa. Uniu sob o mesmo ceptro de ferro raças diversas que se
odiavam ou se ignoravam; moldou essas raças para que se transformassem
numa massa única; conseguiu que tivessem dado um passo dianteiro no sentido
da civilização”.
30
Bibliografia
1) LOBATO, Alexandre (1961). A Invasão Vátua de Lourenço Marques em 1833. In: Quatro Estudos e uma
Evocação para a História de Lourenço Marques. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, pp.119/44.
O general Ferreira Martins, na biografia sobre João Albasini que publicou em Lisboa no ano
de 1957, não conseguiu encontrar e incluir dados verídicos sobre a origem paterna deste
célebre sertanejo. Deve-se a Alexandre Lobato a investigação documental e a publicação em
1961 da veracidade histórica. A Companhia Comercial das Feitorias de L. Marques e
Inhambane, que recebera o monopólio legal do marfim, foi fundada em Lisboa a 13 novembro
1824. Enviou a sua primeira expedição em 1826. A segunda expedição saiu em março 1832.
Levava como gerente António José Nobre, como fiscal António Albasini e como escriturário
João Albasini. Para a feitoria de Inhambane seguiu um tal Fornasini. Todos estes empregados
assistiram à trágica execução do governador Dionísio Ribeiro, ordenada em 1833 por Dingane,
fratricida e sucessor do famoso Chaca-Zulo. Por ter sido abolido em 1834/5 o monopólio de
marfim concedido à firma, António regressou a Lisboa. Seu filho João estabeleceu-se por
conta própria, casou cafrealmente com a filha de um régulo e, apenas em 1845 tomou a
decisão de emigrar sem família para o Transval. Encontrava-se estabelecido no Zoutpansberg
quando ali chegou a conhecida expedição inhambanense de 1855, dirigida pelo padre Santa
Rita Montanha.
2) ANDRADE, Onofre Lourenço de (1887). Presídio de Lourenço Marques: no Período de 24 de
novembro de 1859 a 1 de abril de 1865. Lisboa.
3) MYBURGH, A. C. (1949). The Tribes of Barbeton District. Pretoria, África do Sul, Department of Native
Affairs.
4) AXELSON, Eric (1967). Portugal in South-East Africa (1875-1878). In: “Portugal and the Scamble for
Africa (1875-1891)”. Joanesburgo, África do Sul, Witwatersrand University Press, representação
cartográfica de 1880, pp. 1-19.
5) A Manica e o Muzila. I – Parecer da commissão africana, II – Informação do sócio Paiva de Andrade,
capitão de artilharia (1982). Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 3.ª série, 1, pp. 57-64.
6) CARDOSO, António Maria (1887). Expedição às terras do Muzila (1882). Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 7.ª
série, 3, pp. 153-240.
7) HOBSON, Dick (1983). A Hunting Trip to Mozambique in 1868. Londres, Geogr. J., 149, 2, pp. 202/10.
8) COELHO, Trindade (1898). Dezoito Anos em África: Notas e Documentos para a Biografia do
Conselheiro José d’Almeida. Lisboa, Tipografia de Adolfo de Mendonça.
9) ALBERTO, M. Simões e TOSCANO, Francisco A. (1942). O Oriente Africano Português: “Síntese
Cronológica da História de Moçambique”. L. Marques, Edição da Minerva Central, pp. 175/6.
10) GRANDJEAN, A. (1899). L’Invasion des Zoulou. Neuchâtel (Suiça), Bull. Soc. neuchâtel. Géogr., 11, pp.
91/2.
31
4º
DOCUMENTO
Três gerações de uma família de historiógrafos africanos em Sofala
No seio desta família surgiram os servidores públicos que vieram a ganhar fama por,
espontaneamente se terem dedicado a registar os acontecimentos históricos que, tanto no seu
tempo como nos tempos passados, tinham ocorrido desde o litoral até aos recônditos sertões,
nessa vasta região onde primeiro se fixaram os mandatários da coroa portuguesa. Esses
preciosos manuscritos encontravam-se dispersos e quase desconhecidos.
Para nossa vergonha coletiva foi mais uma vez um historiador estrangeiro que, no A. H.
U., se apercebeu do valor da documentação subscrita por João Julião da Silva. Chama-se
Gerhard Liesegang e, em meados de 1968, quando se deslocou ao Estoril para me conhecer e
para me mostrar a tese de doutoramento que acabara de escrever, em alemão, sobre o Império
de Gaza, não podia imaginar que aquele tímido jovem iria dedicar o resto da sua vida não
apenas à historiografia de Moçambique – especialidade em que alcançou renome
internacional – mas sobretudo à própria nação moçambicana que adotou como segunda pátria.
José Fialho Feliciano e Víctor Hugo Nicolau tomaram a iniciativa de publicar em 1998,
no âmbito das Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, seis dos manuscritos
produzidos por aquela família (1). Os seus subscritores foram João Julião da Silva, seu filho
Zacarias Herculano da Silva e seu neto Guilherme Hermenegildo Ezequiel da Silva.
Esses documentos descrevem quase um século (1790-1884) das vicissitudes históricas
ocorridas na região que, a partir de Sofala, se estende para norte até ao rio Pungué, para sul
até ao paralelo do Cabo de S. Sebastião e, para oeste, até ao interior do planalto do Zimbabué.
Do espólio deixado por Guilherme, o mais novo desta família talentosa, existem dois
manuscritos na coleção de Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Só o primeiro (com a cota 145, Pasta E-19) foi incluído na compilação acima referida
com o título exato. Quanto ao segundo manuscrito, com a cota 145-E-22, nomeado Breves
noções sobre a medicina cafreal, os compiladores não cuidaram de conferir uma segunda
parte bem diferente e mal conhecida. Pelo menos não lhe fazem qualquer referência. É essa
lacuna que aqui e agora tentarei colmatar.
Os pormenores (para mim fascinantes) sobre sessenta e quatro plantas medicinais
ocupam apenas as nove primeiras páginas. Daí até à pág. 32 verso constam bastantes
elementos dispersos mas de inegável relevância histórica. Entre parênteses, convém
mencionar que, na respetiva introdução, Guilherme se refere a um caixote grande e com
muitos documentos antigos que um tal António Xavier Pereira viu em Chiquanda, a vinte dias
de Sofala, numa casa construída com blocos de pedra. Infelizmente, o régulo local não
autorizou que consultasse este acervo tão estranho e decerto precioso.
Quanto a essa segunda parte, menciono apenas alguns dos temas que transcrevi para uso
pessoal:
a) Arquipélago do Bazaruto;
b) Terras de Vuoka;
c) Raptos efetuados por corsários franceses;
d) Naufrágio de uma barca britânica em 1857;
e) Saques praticados por landins, vátuas ou mathaos;
32
f) Monarcas do império de Gaza, Manucusse, Mauheue e Muzila;
g) Lista dos régulos sujeitos a Mauherere (?) em 1857;
h) “Breve notícia” sobre a expedição que foi encarregada de ocupar as Ilhas do Bazaruto
em 1855;
i) Carta de 11/11/1804, copiada de um caderno do avô e subscrita pelo diretor da feira
de Cassange, Francisco Honorato da Costa, dirigida ao governador de Sena e Tete, por
incumbência de D. Fernando António de Noronha, governador de Angola, tratando do
problema da travessia da África pelos pombeiros Pedro João Batista e António Nogueira da
Rosa;
j) “Notável mortandade que aqui fez o inimigo selvagem Mathao nos dias 10 a 12
outubro 1836”;
k) Relações com Manucusse e ataque dos vátuas a Mambone em junho 1842;
l) Inscrição em lâmina de chumbo comemorando a visita do governador-geral a 3
novembro 1844.
Bibliografia
1) SILVA, João Julião da, et alli (1998). Memórias de Sofala – Etnografia e História… no Centro de
Moçambique, Séculos XVIII e XIX. (Edição e notas de José Fialho Feliciano e Victor Hugo Nicolau)
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
33
5º
DOCUMENTO
Publicação oficial dos “mapas cor-de-rosa” em 1887.
Suas consequências
Convém agora referir uma outra iniciativa intrigante de Andrada que conduziu à criação
inesperada, em Lisboa, de uma “Expedição de Sofala” (adiante Exp. Sofala), cuja chefia lhe
foi entregue. Seguem-se os elementos que foram encontrados sobre este assunto pouco
transparente.
Durante o tempo que permaneceu em Lisboa, Andrada escreveu, no dia 19 maio 1886,
uma carta urgente e confidencial ao secretário de Estado dos Negócios de Marinha e
Ultramar (adiante SENMU). Foi decerto esta carta que induziu este alto funcionário a enviar-
lhe dez dias depois o ofício também urgente e confidencial nº 253 no qual refere a existência
de jazigos de prata perto da junção do rio Save com o seu afluente Lundi e na lógica
conveniência em encarregar Andrada e o Major Machado de organizarem uma expedição que
fosse efetuar o reconhecimento in loco. Tudo leva a crer que estiveram envolvidos neste
assunto outras entidades oficiais porque se conhece o teor do ofício do diretor-geral da
Secretaria da Guerra, dirigido ao seu colega da Marinha, tendo como anexo uma cópia do
despacho exarado por Henrique de Macedo, no Paço, a 18 junho, nomeando Andrada para
chefiar a referida “Exp. Sofala”. Foi ele autorizado a despender até quatro milhões de reis
e também passou a ter direito a um subsídio diário de nove mil reis, a contar do
embarque. Já em Londres Andrada enviou, a 5 julho, a carta nº 1 da “Exp. Sofala” ao
Conselheiro secretário-geral do Ministério da Marinha e Ultramar (adiante CSGMMU) e ao
diretor-geral do Ultramar (adiante DGU), tendo em anexo:
a) o acordo que celebrara, no dia 29 junho, com William John Mayers;
b) a carta geográfica localizando os jazigos de prata;
c) o esboço manuscrito do referido Mayers.
A dita “Exp. Sofala” continuou as suas atividades porque o ofício nº 262, do governo-
geral de Moçambique remeteu ao SENMU, a 19 setembro, uma cópia da nota nº 78, de 7
setembro, enviada pelo governador de Sofala J. C. P. de Moraes Sarmento, dando
informações sobre a chegada e a partida dos expedicionários. Andrada, por seu lado, remeteu
no dia 25 do mesmo mês, do acampamento no Mossurize, junto à povoação do Residente, a
carta nº 5 sobre a “despedida de Mayers”, dirigida por Andrada ao Conselheiro Secretário-
geral e ao DGU. Logo no dia seguinte Andrada remeteu ao mesmo a carta nº 8, com “breves
observações acerca do país percorrido desde a Costa até ao Mossurize”. Finalmente pela carta
nº 10, de 16 outubro, denunciou as afirmações falsas de Mayers e admitiu a “pesquisa inútil
de depósitos argentíferos”.
David Beach classificou esta putativa fraude como “uma jogada muito hábil” planeada
por Andrada. Mas – como mais adiante veremos – a “Exp. Sofala” não se ficou por aqui e,
com ela, os rendosos proventos pessoais que proporcionou. Na verdade, a simples consulta da
correspondência que subscreveu permite concluir que, durante largos meses, Andrada, sempre
na qualidade de chefe daquela iniciativa oficial – e ao que parece agindo por seu livre arbítrio
– lançou-se em sucessivas iniciativas que nada tinham a ver com a vassalagem dos regulados
que ocupavam esse famoso planalto interior, tão apetecido e aproveitado pelos portugueses
dos dois primeiros séculos, planalto que ele havia percorrido e até mesmo descrito com a
designação assaz vaga de “Terras do Changamire” (7). Tudo indica que tenha conseguido
cartografar com espantosa minúcia essas vastíssimas terras altas. No Arquivo Histórico
Ultramarino deparei com uma volumosa capilha contendo esboços topográficos manuscritos
em folhas quadradas de vinte e um cm., elaborado na incrível escala de 7,7 km. por cm. Com
papel transparente consegui copiar, a custo, os abundantes dados hidrográficos, orográficos,
etnográficos, etc. entre os paralelos 24 e 28 e os meridianos 30 a 34. Talvez tenha servido de
36
base à carta nº 8, existente na Biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros (3º piso,
armário nº 11, pacote 4 da documentação da Batalha Reis, no 1 – 18). O Prof. David Beach
em pessoa garantiu-me que nem o oficialato da polícia montada nem os primeiros
mandatários a soldo de Cecil Rhodes – como o Dr. Leander Starr Jameson – dispunham de
quaisquer outros levantamentos cartográficos que se assemelhassem a esse – aparentemente
ignorado – pioneiro e meticuloso documento sobre o ambicionado planalto. Não consegui
apurar se foi exibido, nas instâncias internacionais, como prova da “ocupação efetiva” pelos
Portugueses!
Seja como for, com essas iniciativas avulsas que depois se revelaram prejudiciais ao
futuro traçado das fronteiras, Andrada conseguiu até mesmo depauperar quer o tempo quer os
recursos do célebre e patriótico sertanejo indo-português Manuel António de Sousa. A mais
desgastante dessas iniciativas – em aparência tomada com o intuito de reforçar a sua glória
pessoal – foi a pretensa guerra contra o Bonga reinante, no desfecho da qual se limitou a
proclamar uma vitória que depois se veio a revelar efémera e traiçoeira. Na verdade, as hostes
chefiadas por Andrada e por M. A. S. atacaram, no dia 13 setembro, a aringa de Massangano,
até então ocupada pelo Bonga conhecido pelo cognome de Chatara. Pouca ou nenhuma
resistência encontraram porque o grosso dos revoltosos havia feito uma retirada estratégica.
Os atacantes apenas se limitaram a incendiar as casas de habitação. Dois dias depois
aconteceu que o Chatara, devidamente manietado, foi entregue às autoridades de Tete pelo
seu próprio irmão conhecido por Motontora. No dia seguinte, os chefes de guerra
apresentaram-se pedindo para serem perdoados.
Com base neste pretenso triunfo, Andrada e M. A. S. deslocaram-se a Lisboa e foram
recebidos como heróis nacionais. Só então se extinguiu a famosa “Exp. Sofala”. Azevedo
Coutinho (8) escreveu o seguinte comentário satírico a propósito da excessiva credulidade de
Andrada nos seus contactos com os chefes tribais:
Em meados de 1887 – após prévia aprovação nas Cortes – o ministro Barros Gomes
mandou publicar oficialmente o famoso “mapa cor-de-rosa”. O primeiro-ministro do Reino
Unido Lorde Salisbury (adiante Salisbury) não tardou em apresentar o seu formal protesto.
Foi nessa ocasião que surgiu, inesperadamente, um anónimo “João” – sem dúvida desleal mas
prestável alto funcionário lisboeta cuja identidade nunca foi apurada. A 5 junho o embaixador
britânico George Glynn Petre (adiante Petre) recebeu uma carta sua garantindo que conhecia
em pormenor planos elaborados pelas competentes autoridades portuguesas com o objetivo de
ser redobrada a resistência contra as intenções imperialistas dos súbditos britânicos que, por
moto próprio ou em obediência a mandatários, percorriam o interior da África. Também sabia
que o Major Paiva d’Andrada tinha sido escolhido para coordenar e efetivar esses planos. O
pérfido “João” insistiu que era guiado por motivos puramente ideológicos. Todavia, não lhe
repugnaria receber uma “entrada” de dez mil libras (9). Salisbury não deu importância ao
traidor mas, à cautela, recomendou maior vigilância sobre as atividades frenéticas de
Andrada.
Não interessa aqui discutir as reações britânicas contra os novos objetivos dos
governantes portugueses. Interessa saber, outrossim, que Henrique de Macedo, ministro do
Ultramar e das Colónias – embora próximo do fim do seu mandato – decidiu organizar
diversas expedições com objetivos que pretendia manter em segredo. Convocou três oficiais
prestigiados: Paiva d’Andrada, António Vítor Cordon e António Maria Cardoso, para lhes dar
conhecimento dos seus planos. Considerou como finalidade principal e imediata, a ocupação
efetiva dos territórios planálticos compreendidos entre o Zambeze e o Alto Limpopo. Seriam
assim lançadas as bases para Portugal proclamar os seus direitos quando chegasse a altura das
diversas potências iniciarem as conversações relativas aos traçados fronteiriços. No entender
do ministro, além de se aproveitar o auxílio direto de Ngungunhane e de outros chefes
situados ao longo da costa e dos principais rios, conviria que as anexações fossem
classificadas como legítimas reconquistas de regiões outrora pertencentes à Coroa Portuguesa.
Essas reconquistas deveriam atingir regiões longínquas como as banhadas pelo afluente
Sanhati que desagua na margem direita do Zambeze. Considerou preferível concentrar todos
os recursos em áreas onde a ocupação pudesse ser firmemente mantida, por meio de postos
fortificados, capazes de apoiar eficazmente os responsáveis pela manutenção da Lei e da
Ordem. Não se tratava pois de arrebatar apressadamente novos territórios mas apenas de
castigar antigos chefes que se haviam revoltado.
Os dois primeiros-oficiais ficariam a dirigir as operações no planalto situado a Leste do
vale formado pelos rios Save e Sanhati. A chefia máxima pertenceria a Paiva d’Andrada,
devido ao conhecimento mais profundo que tinha das populações e dos potentados gentílicos.
Henrique de Macedo terminou por esclarecer que as necessárias instruções já haviam
sido enviadas ao governador-geral e aos governadores de Quelimane, de Tete, de Manica e
Sofala. Caso as autoridades locais não tivessem delas conhecimento, Andrada poderia recorrer
a medidas de exceção que considerasse indispensáveis. As ordens finais do ministro foram
assinadas a 5 julho (10).
David Beach dedicou vários anos a aprofundar esta problemática. Como já referimos, as
suas conclusões foram oportunamente publicadas em português. Baseou-se nos arquivos
portugueses e nos da British South African Company, muito embora saibamos por A. J.
Hanna (11) que a grande maioria dos chamados “Rhodes Papers” desaparecera no incêndio da
sua residência no Cabo, em Groote Schuur. Também se sabe que os arquivos da sede londrina
38
da Companhia foram completamente destruídos por um dos bombardeamentos aéreos da II
Grande Guerra.
Não surpreende que Beach aponte vários erros clamorosos cometidos por Andrada. O
próprio governador-geral Augusto Castilho, aludindo à promessa que lhe fora feita por
Andrada sobre fornecimento de material de guerra para o ataque final à aringa do Bonga,
comentou (12):
Na época, também foram notadas as críticas mordazes que lhe foram feitas, em agosto
1890, por J. D. Leotte do Rego quando Andrada defendeu a solução visionária de desmontar a
lancha-canhoneira “Marave” antes das cataratas de Cabora-Bassa, transportar milhares de
peças às costas de centenas de carregadores indígenas, para voltar a ser montada na Chicoa!
Deve-se a David Beach a redescoberta do paradeiro da vasta correspondência elaborada
por Andrada durante as Expedições de Sofala e aos Sertões. Acaba a nota 277 do seu trabalho
com a seguinte informação:
1881 – Governo-geral de Moçambique: cópia do ofício do Governo do Distrito de Tete, n.º 56,
de 31 julho, sobre a “Concessão Paiva de Andrada e estado do país”.
1884 – Folha n.º 484 do Diário de Governo n.º 45, de 25 fevereiro, com o Decreto de Pinheiro
Chagas concedendo à Companhia de Ofir as minas de Manica, Quiteve, Bandir e Inhaoxo.
1885 – As primeiras provas e o manuscrito de Andrada intitulado “Relatório de uma Viagem às
Terras dos Landins”, editado em Lisboa, pela Imprensa Nacional.
– Carta a desconhecido, escrita nas “Terras de Ngungunhane”, a 11 fevereiro
– Carta ao Conselheiro Secretário-geral do Ministério da Marinha e Ultramar (CSGMMU)
e diretor-geral do Ultramar (DGU), escrita em Gouveia, a 16 março (13 fls.).
– Carta aos mesmos, enviada de Gouveia a 24 abril, tendo em anexo cópia da que lhe foi
escrita em Sofala por Alegria Rodrigues, a 21 fevereiro e a resposta que Andrada lhe enviou de
Gouveia a 6 abril. Andrada aconselha ser urgente que Ngungunhane facilite a ocupação de Manica
e do Vale do Limpopo. Inclui um recorte do “Natal Mercury” de 13 março (10 fls.).
– Parecer sobre o seu relatório de março (3 fls.).
– Carta ao mesmo, sobre “rio Aruangua e notícias de Manica”, em Gouveia, a 17 maio.
1886/7 – Carta “confidencial e urgente” ao secretário de Estado dos Negócios de Marinha e
Ultramar (adiante SENMU), escrita em Lisboa, a 19 maio.
– Ofício confidencial e urgente nº 253, de 29 maio, da 2ª Repartição da SENMU sobre a
existência de jazigos de prata perto da confluência do Save com o Lundi e a conveniência em que
Andrada e o major Machado organizassem uma missão de reconhecimento.
– Ofício do diretor-geral da secretaria da Guerra (adiante DGSG) dirigido ao seu colega
da Marinha, tendo anexa uma cópia do despacho exarado no Paço, por Henrique de Macedo, a 18
junho, nomeando Andrada para essa missão especial, sendo autorizado a despender até quatro
milhões de réis, com o abono diário de nove mil réis, a contar do embarque.
40
Sobre a “Expedição a Sofala”
Para melhor compreensão dos factos que adiante irão ser citados, interrompo esta
narrativa para resumir a opinião qualificada do mesmo autor sobre a desintegração ocorrida
após o colapso dos Mutapas e dos Changamires, desintegração que deu origem a numerosas
comunidades de tipo tribal. Na área compreendida entre o rio Zambeze, o Império de Gaza e o
Estado Matabele (Ndebele), existiam cerca de duzentas pequenas tribos, na sua maior parte de
origem Chona mas também com núcleos de origem Sena e Tonga. Note-se, de passagem, ser
este o número aproximado das tribos de origem Angune (Nguni) antes do espantoso
fenómeno de expansionismo militarizado, conhecido por m’fecane.
Mas continuando. As maiores das supracitadas tribos, como N’houe e Maunguè,
chegavam a ter setenta quilómetros de diâmetro, com muitas povoações; contudo as mais
43
pequenas não ultrapassavam dez a vinte quilómetros e eram compostas por menos de cinco
povoações. Sabe-se, pela antiga documentação portuguesa, que a existência de algumas delas
remontava a dois e mesmo a três séculos. Os seus chefes dispunham de menor poder do que
os monarcas angunes; mas mesmo esse poder limitado era objeto de rivalidades por parte das
famílias descendentes dos anteriores chefes, primo contra primo e irmão contra irmão. O
resultado era um quadro caleidoscópio de alianças, emulações e inimizades, que se alteravam
de tempos a tempos e que envolviam não só a dinastia reinante mas também as linhagens
dominadas, os territórios vizinhos e qualquer potentado que pudesse ser manipulado para
apoiar uma fação contra outra. Os assaltos às caravanas e o comércio a longa distância
coexistiam em maior ou menor grau. Embora muitas dessas tribos fossem antigas, com
fronteiras reconhecidas, isso não impedia os governantes ambiciosos de tentarem conquistar
terra aos seus vizinhos, muitas vezes com sucesso. Dado que a violência ou a ameaça de
violência influenciavam de modo determinante as políticas dessas sociedades tribais, não é de
admirar que o refúgio situado no topo da montanha (ou a aringa, fortificação na planície do
vale do baixo Zambeze) fosse tão importante, ou que os alienígenas de origem lemba,
mazdeista, islâmica ou cristã, que faziam o seu aparecimento, fossem tão solicitadas por
fações locais que procuravam concretizar as suas ambições pessoais. Muitos dos casos de
aberta hostilidade dos chefes indígenas e naturalmente das próprias populações, tiveram a sua
origem em intoleráveis violências e extorsões praticadas quer por súbditos portugueses quer
pelos seus descendentes e mandatários.
Na pg. 43, o mesmo investigador cita uma segunda ofensiva de M. A. S. contra Mutoco,
da qual, como anteriormente, o capitão-mor saiu vencido. Assim reposta a verdade histórica,
cabe ressaltar de novo a minúcia de Malyn Newitt (19), ao incluir este acontecimento entre os
quatro que mais influenciaram o traçado definitivo das fronteiras moçambicanas.
No início do ano seguinte, após o governo lisboeta ter considerado positivos os êxitos
alcançados por Cardoso, foi finalmente assinado o acordo entre o Cônsul português e o
representante de Lavigerie. Nele se formalizou a fundação de um estabelecimento missionário
(25).
No que competia a Cardoso apenas se podem imaginar os esforços que desenvolveu
para alimentar e manter em harmonia os diversificados elementos da caravana. Convêm
acentuar, aqui e agora, que nunca foi encontrado qualquer relatório sobre as atribulações
sofridas pela denominada “Missão Civilizadora Henrique Macedo”. O pouco que se sabe
consta dos arquivos britânicos e é baseado na conferência que Cardoso pronunciou, após o seu
regresso a Lisboa, no Clube Militar e Naval. Como seria de esperar, o embaixador Petre teve a
46
meticulosidade de elaborar e de remeter a Salisbury um resumo do que se passou na
conferência, resumo que é datado de 4 maio 1890 (26).
Voltando à caravana. A. M. Cardoso tinha planeado seguir pelos contrafortes do Monte
Milange (1.542 m. de altura) atravessando desse modo as terras do chefe Matapuirre. Este era
bem conhecido como indivíduo intratável desde que, em 1886, implicara com Augusto
Cardoso. Também desta vez exigiu pesados “direitos de trânsito”. A caravana continuou na
sua rota setentrional, passando a leste do lago Chirua. Foi nesta região que Cardoso começou
a revelar os objetivos políticos de que tinha sido incumbido. Na verdade, como veio a relatar
na referida conferência lisboeta, conseguiu obter um compromisso de vassalagem por parte do
chefe Malema. Atingiu depois a margem esquerda do Chire, algo a montante das cataratas
Murchison. Em seguida procurou arduamente saber onde se situava a nova povoação do chefe
Cuirrássia, avassalado pelo seu homónimo. Conseguiu esse objetivo no dia 12 dezembro,
depois de ascender a uma montanha com 1.500 metros de altitude. Decerto que foi recebido
com júbilo. O régulo aceitou uma nova bandeira portuguesa, bem como uma garrafa de
aguardente e, para rematar, uma bela carabina Kropatschek. Ficou de tal modo satisfeito e
envaidecido que passou a noite inteira a disparar desatinadamente até esgotar as munições!
Seguiu-se um período confuso porque o potentado Macanjila considerava Cuirrássia
como simples vassalo. Felizmente que Cardoso – embora já abatido por doenças – conseguiu
concretizar uma reconciliação. Este talento diplomático abriu caminho para a vassalagem de
outros régulos da região entre os quais sobressaiu M’ponda.
***
***
1) Captain Paiva de Andrada’s Zambesi Expedition, 1881. (1882) Londres, Proc. roy. geogr. Soc., 4 (6), pp.
372-374.
2) Captain P. de Andrada’s Journeys to Maxinga and the Mazoe, 1881. (1882) Londres, Proc. roy. geogr.
Soc., 4, 7, pp. 417-419.
3) ERSKINE, St. Vincent (1875). Journey to Umzila’s S.-E. Africa, in 1871-72. Londres, J. roy. geogr. Soc.,
45, pp. 45-128.
4) BEACH, David N. (1993). As origens de Moçambique e Zimbabwe: Paiva de Andrada, a Companhia
de Moçambique e a diplomacia africana, 1881-91. Maputo, Moçambique, Arquivo – Boletim do Arquivo
Histórico de Moçambique, 13, abril, pp. 1-154.
5) KUSS, H. (1882). Notes sur le Geographie de Quelques Régions Voisines du Zambeze. Bull. Soc.
Geogr., VII, iii, pp. 365-383.
6) GUYOT, P. (1882). Voyage au Zambeze. Bull. Soc. Geogr. de l’Est, IV, p. 635.
7) ANDRADA, J. C. Paiva d’ (1886). Relatório de uma viagem às terras do Changamira. Lisboa, Imprensa
Nacional, p. 155.
8) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand.
9) NOWELL, E. Charles (1982). The Rose-Colored Map. Lisboa, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar/Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, p. 143.
10) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 144.
11) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford, at
the Clarendon Press, p. 143.
12) CASTILHO, Augusto (1891). Relatório da Guerra da Zambézia em 1888. Lisboa, Imprensa Nacional.
13) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Idem, p. 144.
14) BOTELHO, J. J. Teixeira (1921). Alguns pontos da história de Moçambique. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 39,
nº 7-12, p. 175.
15) An. Cons. Ultram. (Parte não Oficial) Série I, Fev. 1854 a Dez. 1858. Lisboa, Imprensa Nacional.
16) SELOUS, Frederick Courteney (1893). Travel and Adventure in South-East Africa. Londres, Rowland
Ward and Co, Ltd.
17) BRENDON, N. J. (1959). Chiuzingu. Salisburia, Rodésia do Sul, NADA, 36, pp.19-25.
18) ALBERTO, M. Simões e TOSCANO, Francisco A. (1942). O Oriente Africano Português «Síntese
Cronológica da História de Moçambique». L. Marques, Moçambique, Minerva Central, p.8.
19) NEWITT, Malyn (1995). A History of Mozambique. Londres, Hurst & Company, p. 352.
20) RAMOS, P. Ferreira (1993). As Principais Datas da História de Portugal. Lisboa, Publicações Europa-
América, p. 76. Deve ter-se inspirado na cronologia de Joel Serrão publicada vinte anos antes o qual
escreveu “A. M. Cardoso chega ao Niassa (Moçambique), onde instala a sua missão de estudo”!!!.
21) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 5.
22) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 1.
23) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 2.
24) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 3.
25) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 20.
26) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 4.
27) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 247, nota nº 10.
28) LINDEN (1974). Mponda Mission Diary. Boston, E. U. A., Internat. J. Afr. Stud., 7, p. 297.
29) HANNA, A. J. (1956). Idem, p. 155, nota nº 2.
30) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 154.
31) NOWELL, E. Charles (1982). Idem, p. 224.
49
6º
DOCUMENTO
A 1ª Companhia de Moçambique e o início da ocupação efetiva exigida
pelas decisões finais da Conferência de Berlim
Notas e documentos
No mesmo ano em que se registou uma epidemia de cólera na Zambézia – ano que os
residentes julgam ser 1874 – travou-se uma longa guerra na qual os chefes Macombe e
Macone se aliaram para derrotar as forças não só do rei Mutassa, mas também as enviadas por
Muzila em seu socorro. Aquele rei de Manica acabou por se refugiar na densa floresta do
monte Inhagana. Encontrando-se em tão difícil situação, Mutassa tomou a decisão de solicitar
a ajuda de Manuel António de Sousa. Obedeceu assim à vontade dos seus muzimos, isto é, os
indivíduos que nas crenças tradicionais encarnam as almas dos antepassados da realeza. Os
muzimos são consultados unicamente em situações de magna importância como as guerras e a
propriedades do solo. Mutassa enviou então àquele capitão-mor uma oferta simbólica do seu
solo por meio de uma embaixada composta por vários chefes entre os quais se destacavam
Mugudo, seu primo que residia no Báruè e, ainda, Tonto, seu irmão posteriormente falecido
com cólera. A embaixada obteve o socorro de M. A. S., sob a forma de armas de fogo,
munições e uma força de caçadores e sipais comandada pelo muzungo Agostinho já falecido e
pelo “capitão” Chitengo. Graças a este auxílio, Mutassa conseguiu expulsar os inimigos das
suas terras e a partir de então pode reinar tranquilamente. A maneira como Mutassa realizou a
cerimónia da concessão a M. A. S. da propriedade do solo de Manica foi a seguinte: enviou
para o seu luane de Inhacombe, no prazo Gorongoza, uma ponta de elefante, uma porção do
solo de Manica recolhido no soalho da palhota do muzimo Mazina, em presença dos muzimos
e dos chefes reunidos.
57
21 novembro 1890.
Caro senhor, tendo sido informado pelo Barão de Resende que continua a mostrar
alguns escrúpulos em deixar a sua residência sem autorização, venho informá-lo que pode
sem impedimentos continuar os seus trabalhos em completa liberdade, bem como de circular
livremente por todo o país. Claro que nestas condições nada deverá fazer que prejudique a
minha autoridade como representante da B. S. A. C. Devo também frisar que tem plena
liberdade para isso caso escolha abandonar o país. Henry J. C. Hoste representante da B. S. A.
C. em Macequece.
Tradução: Parti porque a isso fui forçado pelos ingleses. Encontro-me na povoação de
Guanjere e penso regressar dentro de algumas horas, Sarmento, 4 dezembro 1890. O chefe de
estação: J. Tomás de Almeida.
O Sr. capitão Forbes entregou ao Sr. Almeida o documento seguinte para justificar a sua
ausência.
58
“Tendo sido informado que o Sr. Almeida tinha feito tentativas para levantar os
indígenas contra os Ingleses e tinha procurado intimidar o chefe de Guanjere, insisti para que
ele me acompanhasse durante a minha visita ao mesmo chefe para apurar se esta acusação era
verídica.
Eu tinha previamente concluído que o Sr. Almeida era incapaz de contar a verdade
sobre fosse o que fosse, e assim sendo, não podia pedir-lhe que me desse a sua palavra sobre
esse assunto. O Sr. Almeida ausentou-se de Sarmento durante cerca de seis horas. W. Forbes,
capitão, 4 dezembro 1890”.
Bibliografia
7º
DOCUMENTO
A decisão de avassalar o Alto Niassa.
As intervenções de Serpa Pinto e Augusto Cardoso
“Todas estas terras são de ouro, e em uma delas por nome Macequece,
tínhamos umas taipas, a que aqui chamam Chuambo, dentro das quais estava a
Igreja com Vigário, que era Religioso de S. Domingos, e capitão somente. Os
mais moradores moravam pelos arrabaldes distantes uns dos outros a perder de
vista, o que era grande desordem não só contra o bem comum temporal, porque
desunidos estavam mais incapazes de se defenderem, mas também contra o
bem de seu espírito, porque raro era o que morria com todos os sacramentos; e
por mais que nisto se trabalhou, nunca ouve remédio para os reduzir a viverem
juntos em modo de povoação, e a causa de o não fazerem, diziam eles, que era
por não terem guerras uns com outros, mas os de fora assentavam que era por
suas conveniências e trapaças de contratarem às furtadelas uns com os Cafres
dos outros”.
***
60
Tenho com alguma frequência acentuado que – para maior credibilidade da
interpretação histórica relativa aos sérios e bastante conhecidos atritos surgidos entre Portugal
e a Grã-Bretanha – é imperioso que o investigador estude simultaneamente a documentação
mais relevante produzida não só por súbditos destas duas potências mas também por outras
testemunhas fidedignas, eventualmente de outras nacionalidades, que, por razões de diversa
ordem, puderam manter contacto direto ou com os acontecimentos no terreno ou com os
diretórios das longínquas retaguardas.
Desde janeiro 1881 que a Comissão Africana da Sociedade de Geografia de Lisboa,
vinha pressionando o governo para a necessidade de se tomarem medidas no sentido de ser
efetuada, sem equívocos, a ocupação efetiva da região do Niassa. Por indiferença ou por falta
de recursos financeiros, a questão foi protelada até Pinheiro de Chagas assumir a pasta
ministerial da Marinha e das Colónias. Uma vez empossado no cargo, planeou não uma
medida que viesse confirmar a soberania portuguesa mas, em sua substituição, uma expedição
que embora oficial fosse na aparência movida por sublimes objetivos científicos. Temia
decerto as reações do governo londrino que já havia, em 1883, nomeado o seu primeiro cônsul
para a região do Niassa. Também pedira a Lisboa, a 11 junho 1884, que desse instruções às
autoridades locais para não hostilizarem os Macololos “muito principalmente a norte do Ruo”.
Para chefiar essa missão dita científica, tomou a decisão, que se revelou pouco acertada, de
escolher Serpa Pinto. Como não existissem, nessa ocasião, problemas fronteiriços com o
Sultanato de Zanzibar, tomou a decisão de o nomear como cônsul de Portugal junto desse
soberano de origem omanita. Com efeito, foi empossado em julho 1884.
Iniciou pouco depois as suas funções como comandante da expedição a que deu o nome
de “Pinheiro Chagas”, em homenagem ao ministro. Oportunamente embarcou para Durban –
moderno centro comercial britânico, a sul da Baía de L. Marques – com o objetivo de
proceder à aquisição de todo o equipamento considerado necessário. Para seu adjunto
convidou o jovem cadete naval Augusto Cardoso que ocasionalmente tinha conhecido em L.
Marques e a quem, depois de solicitado, ministrou lições de equitação e de manejo de armas
de infantaria.
No seu regresso à Ilha de Moçambique, passou algum tempo em Inhambane para
contratar cerca de uma centena de guerreiros que designou por landins. Devido à coesão,
eficiência e disciplina que veio a demonstrar esta força militar exclusivamente africana,
aventamos que tenha sido recrutada no reino de Macuácua, que durante longos anos foi
dirigido pelo famoso Mauntse que prestara incondicional vassalagem a Muzila e que, no seu
reino, impusera a orgânica política e militar do Império de Gaza. Devido ao papel relevante e
duradouro que a seu tempo vieram a desempenhar, passarão a ser designados por Landins de
Inhambane.
Para se compreenderem as causas verídicas de tantas decisões fantasiosas tomadas por
S. Pinto, decisões que causaram grandes sofrimentos a tantas centenas de nativos dos dois
sexos, humildes e crédulos, parece oportuno citar desde já a opinião amiga e íntegra de
Azevedo Coutinho sobre a personalidade de S. Pinto:
Foi essa imaginação fogosa e indisciplinada que o levou a desbaratar os recursos postos
à sua disposição. Ivens calculou entre vinte a trinta contos (conto = milhão de reis) as
despesas iniciais feitas por S. Pinto, quantia exorbitante para a época e que era muito superior
61
à que tinha sido atribuída à expedição que atravessou a África. E note-se que o trajeto entre o
litoral e o lago Niassa era pelo menos seis vezes menor do que o percorrido pelos dois
conhecidos exploradores durante a travessia do continente.
É possível que S. Pinto – quando ainda dispunha de fundos – tenha decidido recrutar os
seus carregadores no Mossuril, onde sabia que operava a Capitania-Mor das Terras Firmes.
De facto, o seu protetor, Perry da Câmara (4) governador de Cabo Delgado, nos primeiros
documentos que juntou ao artigo publicado em 1886, com a segunda parte dedicada apenas à
“Expedição Pinheiro Chagas”, informou que o chefe Mugabo lhe escrevera em arábico sobre
o fornecimento de carregadores. A este documento segue-se uma carta pessoal de S. Pinto,
escrita na Ilha de Moçambique, a 20 setembro 1884, comunicando que estava pronto para
partir. Porém, na sua segunda carta, escrita em Fernão Veloso, a 10 dezembro 1884, já deu
conhecimento que se encontrava “paralisado por carências de toda a ordem”. Tinha portanto
esgotado em apenas oitenta e dois dias os recursos financeiros postos à sua disposição. Em
outra carta relatou mais privações e dificuldades, para cúmulo sob chuva torrencial.
Utilizando a canhoneira “Quanza”, o governador conseguiu fornecer à caravana uma
quantidade significativa de mantimentos. Chegaram a Quissanga no dia 15 fevereiro. No mês
seguinte, ainda em Quissanga, deu conta de mais privações e acentuou o facto dos próprios
guerreiros landins se apresentarem esquálidos devido à fome que os afetava. Também
informou que decidira reagrupar-se no Ibo onde o comerciante Gonzaga, solicitado pelo
governador, conseguira obter na praça oito contos em créditos. S. Pinto, com a saúde afetada,
permaneceu durante algumas semanas no Ibo. A 9 maio, Perry recorreu ao Secretário-geral
solicitando um médico. Mesmo assim sofreu nova recaída. Depressa se restabeleceu porque
veio a efetuar o levantamento cartográfico da vila do Ibo, nele incluindo a identificação de
setenta e cinco moradores e destacando os diversos edifícios públicos. O documento nº 17 é
representado por outra carta desesperada de S. Pinto pedindo alimentos para setenta e quatro
acompanhantes concentrados em Quirambo. Não admira que viesse a adoecer (talvez sob
distúrbios psicossomáticos) perante as dificuldades com que deparou para substituir nada
menos do que trezentos e cinquenta carregadores que haviam desertado.
S. Pinto, algo restabelecido e de novo na Quissanga, voltou à carga a 13 junho
insistindo sempre no fornecimento de mais carregadores porque preparara cerca de
quinhentos volumes, neles incluídos nada menos do que setenta sacos de arroz. Pela carta
que escreveu a 18 junho verifica-se que, embora já se encontrasse em Montepuez, continuava
a enfrentar os problemas da alimentação de setecentos carregadores que ameaçavam desertar.
Ignora-se como conseguiu completar o trajeto até ao Medo, onde dominava o régulo Mualia,
que em julho 1878 se deslocara ao Ibo para prestar vassalagem. Das suas terras saía a maior
parte das exportações que passavam pelo Ibo. S. Pinto sofreu outra grave recaída e teve que
ser transportado em maca. A 30 agosto, já em ambiente mais urbano e mesmo cosmopolita,
reassumiu o seu cargo de Cônsul em Zanzibar. Persistiu com os habituais rasgos
imaginativos, como se pode constatar pela afirmação de que, em qualquer caso, não tinha
abandonado as responsabilidades como chefe da expedição. Assim sendo, os restantes
membros deveriam continuar sob as suas ordens.
A. Cardoso permaneceu quase dois meses no país do Medo, procurando angariar
carregadores que levassem até ao lago Niassa o restante material da expedição. Falhadas as
tentativas, limitou-se a transportar o material que os Landins pudessem carregar. Deixou
mantimentos (e, na confusão, até os imprescindíveis documentos oficiais) conservando apenas
setenta peças de algodão, trinta barris de pólvora e alguns quilos de missangas. Iniciou a
marcha a 31 outubro, servindo de guia um parente do régulo Metarica, que regressava do Ibo.
A caravana era composta por cento e quarenta pessoas. Tresmalharam-se os cabritos
destinados à alimentação.
62
Os piores momentos ocorreram mais adiante. O chefe da caravana Bakar Abdul
Madjide, decerto autorizado e acompanhado, ausentou-se por mais de duas semanas para se
dedicar à caça, alegando posteriormente que havia perdido o rumo. Logo a 14 novembro, A.
Cardoso adoeceu gravemente e teve crises de delírio durante doze dias. Foi colocado numa
maca improvisada e deixou de se alimentar. Perdeu por completo a visão. Por mero acaso
pode ser medicado pelo explorador britânico Joseph Last que, ao serviço da Sociedade de
Geografia de Londres, vinha cartografar os Montes Namuli. Também lhe valeu o contingente
disciplinado dos Landins que cumpriram a preceito as instruções que conseguia
balbuciar. Atingiram o rio Lugenda no primeiro dia de dezembro. Foi aqui que ocorreu o
providencial reencontro com o chefe da caravana B. A. Madjide. Cardoso garante que Bakar
foi:
Entre parênteses diremos que esta inoportuna ausência do chefe da caravana parece
merecer alguma atenção porque poderá, eventualmente, explicar a existência de duas grandes
pontas de elefante que Cardoso, ao ser inquirido, sempre classificou como “oferendas dos
chefes gentílicos” e que se recusou a vender aos súbditos britânicos quando, em desespero,
lhes rogou auxílio financeiro.
Mas continuando. Foram bem acolhidos pelo chefe Metarica, que forneceu suficiente
alimentação apesar das suas terras terem sido saqueadas, três meses antes, pelos Angonis
Guanguaras. O régulo deu grandes demonstrações de amizade e submissão e pediu a oferta de
uma bandeira portuguesa, acentuando as estreitas relações comerciais que mantinha com o
Ibo. A. Cardoso elaborou em 16 dezembro a respetiva Ata de Vassalagem.
Por se aproximar a época das chuvas e ser imperioso procurar recursos entre os
escoceses estabelecidos no grande lago, A. Cardoso tomou a decisão de partir com a caravana,
a 3 janeiro 1886, em direção à povoação de Cuirrássia Checapoto, irmão classificatório do
régulo Metarica. A região era bastante montanhosa o que retardou o trajeto ao longo da
margem esquerda do Lugenda. Foi no dia 20 que se realizou a cerimónia descrita mais
adiante. Foi rematada por um grande batuque de guerra em que todos participaram incluindo
os ditos landins que tiveram enorme sucesso com os seus impressionantes coros ao compasso
das habituais representações e gesticulações combativas.
Quando Bacur, comandante dos landins, comunicou que se esgotara a pólvora, as
missangas e os tecidos de algodão, o explorador tomou a decisão de se deslocar a
Livingstónia. Pediu a Cuirrássia que, a crédito, alimentasse a caravana durante a sua ausência,
com a promessa de ser largamente retribuído. Partiu acompanhado por um criado que servia
de intérprete. Revelou mais que se viu forçado a vender o único cobertor de que dispunha para
poder comprar algum milho para alimentação. Sabendo que estava para breve a chegada do
vapor Ilala, da Companhia dos Lagos, resolveu nele seguir até Blantyre e Mandala, depósito
central da African Lakes Company. Foi aqui que, pela primeira vez, se reuniu com Hawes, o
cônsul britânico. Pediu-lhe informações sobre a possibilidade da aquisição, a crédito, de
mantimentos no valor aproximado de £ 200.
Em obediência ao critério que de início deixei explícito, passarei a basear-me no estudo
que o Prof. Hanna dedicou à presença britânica na região que mais tarde veio a constituir o
63
protetorado do Niassalândia (5). O Cônsul Hawes, no seu ofício de 13 fevereiro para os
Negócios Estrangeiros, forneceu os seguintes pormenores:
Perante esta situação, Hawes aconselhou o inexperiente Cardoso a suspender por algum
tempo os seus planos científicos e a deslocar-se até Quelimane para expor ao governador
esses e outros assuntos práticos e correntes. O jovem alegou que essa solução não lhe
convinha porque já havia recebido de Cuirrássia o adiantamento que lhe permitira levar a
caravana até Mandala. Caso se demorasse, esse chefe poderia apoderar-se dos seus
instrumentos e de outros objetos pessoais. Hawes, complacente, sugeriu-lhe que poderia
conduzir a sua gente diretamente até Quelimane desde que Frederick Moir, gerente da
Companhia do Lago, lhe adiantasse o que fosse necessário. Hawes convenceu então Moir a
aceitar uma declaração de crédito, a qual seria paga oportunamente pelo governador de
Quelimane. A quantia recebida seria suficiente para concentrar em Mandala todos os
membros da expedição.
O jovem tenente decidiu então regressar a Cuirrássia assim dando por terminada uma
curta mas angustiante ausência de quinze dias. Foi recebido com entusiasmo pelos “seus
landins”. Dedicou uma semana a observações astronómicas. Com o dinheiro ou os bens
emprestados por Moir pagou o que devia ao hospitaleiro chefe e partiu com a sua caravana
para Blantyre, via lago Chirua e Zomba.
Em Blantyre ocorreu um incidente algo desagradável. Quando a caravana já iniciara
preparativos para acampar nas cercanias da missão escocesa, Cardoso foi abordado pelo
reverendo Alexander Heatherwick, já conhecedor da identificação e dos objetivos dos recém-
chegados. Solicitou-lhe que não acampasse naquele local porque, existindo na missão um
internato feminino, não era conveniente que perto dele se instalasse tão temível e numeroso
contingente de “guerreiros zulos”. Sugeriu, como alternativa, outro sítio mais conveniente.
Cardoso acedeu e, a 15 fevereiro, transferiu-se para as terras de Mandala, pertencentes ao
chefe Capeni. Este, depois de solicitado e devidamente presenteado, veio a conceder a
competente autorização.
O cônsul Hawes ausentara-se em visita a um dos importantes chefes gentílicos. Só no
dia 23 teve novo encontro com Cardoso que aguardava as notícias e a assistência financeira
do governador de Quelimane. Aconteceu, entretanto, que aos ouvidos do cônsul chegaram
rumores de que o oficial português, durante a viagem, tinha recebido mulheres a título de
oferendas e que, por vezes, até havia comprado algumas delas. Julgou – e bem – que seria
preferível dar-lhe direto conhecimento destes rumores tão daninhos para o seu prestígio. De
facto, Cardoso explodiu com a maior indignação perante tantas e tão infames calúnias. Logo
pediu licença para lhe apresentar a seguinte declaração escrita que se encontra nos arquivos
britânicos.
64
“Sir: Knowing that news are being reported over the country that this
expedition had bought women in several places on its way over the continent –
I beg your permission to state before you as an established authority that these
reports are quite spurious. It happening that there are some European residents
here about and this news can reach them so or much easier than they had reach
myself and the African news always come in Europe through a refrangible
prism, I have the honour to inform you that women which take part in the
expedition are wives of some men in it. I always permit them to be married
where they please but do not permit the women to come along with the
expedition till I am quite sure they do this by their own fancy and will. The
camp is always open and everyone can come in and assure itself of the
(illegible) of my statement”.
No litoral do Cabo Delgado, a influência era tão intensa que muitos dos mestiços se
tinham convertido à religião islâmica.
Em 1790 escreveu Nogueira de Andrade: “… Digo a verdade quando certifico que
todos estes moradores são mouros ou semi-mouros em costumes e abusos…”. Em 1807
escreveu o então governador: “… Quase todos os naturais destas ilhas acreditam mais na seita
de mafona e no rito cafreal do que na religião cristã…”. Em 1850 escreveu António Gamitto:
“… Mais parece domínio árabe do que português…”.
Na verdade, com a reconquista, pelos árabes omanitas, dos portos ao norte do Rovuma,
restabeleceu-se a preponderância maometana. Esta compreendia não só o litoral setentrional
moçambicano mas também – por intermédio dos Ajauas depois convertidos – parte da região
sita entre o Oceano e o lago Niassa. Sob a direção enérgica do Sultão de Oman que para ali
transferiu a sua capital, a ilha de Zanzibar atingiu incontestável supremacia comercial em toda
a costa oriental africana. Ocupou Tungue, na margem direita do Rovuma e, a partir de então,
cresceram ao sul deste rio as tendências autónomas dos chefes do litoral e do interior.
66
É incontestável que aqueles potentados do interior sabiam perfeitamente que os portos
do litoral, devido aos contactos transoceânicos, estavam muito melhor abastecidos dos
produtos que lhes eram necessários e que lhes eram vendidos por preços mais convenientes.
Na citação que se segue, o governador Ernesto Jardim de Vilhena (7) também oficial da
Armada, procurou sintetizar a existência dessas seculares ligações:
É a todos os títulos exemplar o espírito empresarial que, desde há muito, levara o régulo
Metarica a tirar proveito de uma planta útil introduzida pelos Portugueses, o tabaco. Augusto
Cardoso foi perentório (8): “Toda a terra é muito cultivada. As plantações de tabaco são
enormes e com ele se faz grande negócio, chegando a ser trocado por marfim no lago Niassa,
onde é bastante raro”.
As duas cerimónias que se transcrevem são prova concludente que os potentados
gentílicos dispersos pelos territórios a leste do lago Niassa tinham perfeita consciência de
como lhes eram mais vantajosos os contactos comerciais com os portos oceânicos. Era neles
que poderiam efetuar com maiores proveitos as trocas dos seus produtos, sobretudo o marfim,
com as apetecidas manufaturas ultramarinas: sal, açúcar, tecidos, ornamentos, pólvora,
chumbo, armas de fogo, fósforos, etc. Depressa verificaram que as missões protestantes já
instaladas nas margens e nas ilhas do lago Niassa não estavam vocacionadas para esse tipo de
negócios. Também os artigos expostos pela African Lakes Company eram vendidos por
preços mais elevados devido à carestia dos transportes que utilizavam os rios Zambeze e
Chire.
Augusto Cardoso citou o caso sintomático do mercador mouro Majanira que veio a
conhecer em Metarica. Tinha aqui mesmo o seu centro de operações, com grandes armazéns,
a partir do qual organizava viagens comerciais em todos os sentidos que chegavam a atingir as
longínquas regiões a oeste do lago Niassa onde ainda abundavam elefantes. Depois de
acumular uma carga suficiente de marfim, seguia o curso do rio Lúrio para a transportar até à
costa. Utilizava depois pangaios para atingir qualquer das ilhas de Moçambique, do Ibo ou de
Zanzibar, conforme julgasse mais lucrativos os preços das fazendas e de outras manufaturas
importadas. Entre a Niassalândia e a vila de Quelimane encontrou outra caravana, também de
um mouro de Zanzibar, que marchava para o interior com mercadorias que ocupavam nada
menos do que trezentos carregadores.
67
Vassalagem do Régulo Metarica e seu Povo (9a)
Aos 28 dias do mês de julho do ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de
1888, nesta vila do Ibo, capital do distrito de Cabo Delgado, na sala da residência do governo,
achando-se presente o governador do distrito Francisco Isidoro Gorjão Moura, major de
cavalaria do exército de Portugal, os funcionários públicos e grande número de moradores da
vila, compareceram: Saíde Bin Metarica, filho maior do régulo Metarica, Imperemende, tio do
régulo; Muzigala, secretário, e mais pessoas do seu séquito; declarando os três primeiros que,
em nome do régulo Metarica, que livre e espontaneamente os incumbira desta missão, vinham
ratificar a vassalagem por ele prestada em 16 dezembro 1885 a Sua Majestade El-Rei de
Portugal nas mãos de Augusto de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe e encarregado da Expedição
Científica Pinheiro Chagas, apresentando para esse fim a cópia do auto de vassalagem, que é
de teor seguinte:
Aos 13 dias do mês de maio do ano do nascimento do Nosso Senhor Jesus Cristo de
1888, nesta vila do Ibo, capital do distrito de Cabo Delgado, na sala da residência do governo,
achando-se presente o governador do distrito Francisco Isidoro Gorjão Moura, major de
cavalaria do exército de Portugal, os funcionários públicos e grande número de moradores da
vila, compareceram: Insá Cuirrássia, Buraímo Cuirrássia, Selemane Cuirrássia, filhos do sova
das terras de Cuirrássia, na extremidade S. do lago Niassa, Cuirrássia Checapoto; Macarone,
irmão; Musselimo, sobrinho; e Maponda Cumieheze e Matiane, secretários; declarando que,
em nome desse potentado, que livre e espontaneamente os incumbira dessa missão, vinham
ratificar a vassalagem por ele prestada em 20 janeiro 1886 a Sua Majestade El-Rei de Portugal
nas mãos de Augusto de Melo Pinto Cardoso, sub-chefe e encarregado da Expedição
Cientifica Pinheiro Chagas, apresentando para esse fim a cópia do auto de vassalagem, que é
do teor seguinte:
Bibliografia
1) SANTOS, Fr. João dos (1999). Etiópia Oriental e Vária História de Cousas Notáveis do Oriente.
(Introdução e notas de Manuel Lobato e Eduardo Medeiros). Lisboa, Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 259 e seg.
2) CONCEIÇÃO, Frei António da (1867). Tratado dos Rios de Cuama – 1696. Goa, Índia Portuguesa, “O
Chronista de Tissuary”.
3) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand, p. 443.
4) CÂMARA, Perry da (1886). Districto do Cabo Delgado. Bol. Soc. Geog. Lisboa, 6, 2, pp. 67-115.
5) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press.
6) LOBATO, Alexandre (1966). Augusto Cardoso e o Lago Niassa. Lisboa, Centros de Estudos
Ultramarinos.
7) VILHENA, Ernesto Jardim (1966). Bosquejo Histórico das Explorações Geográficas do Niassa. In:
Lobato, Alexandre; “Augusto Cardoso e o Lago Niassa”. Lisboa, Centro de Estudos Ultramarinos.
8) CARDOSO, Augusto (1966). Breve relação da expedição de 1885-1886. In: Lobato, Alexandre; “Augusto
Cardoso e o Lago Niassa”. Lisboa, Centro de Estudos Ultramarinos.
9) Integração de Territórios e Povos a Leste do Lago Niassa. (1966) In: Lobato, Alexandre; “Augusto
Cardoso e o Lago Niassa”. Lisboa, Centro de Estudos Ultramarinos.
10) Vassalagem do Régulo Metarica e seu Povo – Autos de 16 dezembro 1885 e 28 julho 1888.
11) Vassalagem do Régulo Cuirrássia e seu Povo – Autos de 20 janeiro 1886 e 13 maio 1888.
71
8º
DOCUMENTO
A origem dos Macololos do vale do Chire. O estabelecimento dos
missionários escoceses, após as explorações de David Livingstone. A
ofensiva portuguesa contra os Macololos. Ultimatum britânico de 1890
***
Como é natural, esta incapacidade era redobrada pelos constantes atrasos nos soldos.
Assim sendo não causa admiração o que se passou em 1875 quando o previdente
Andrade Corvo, no exercício de funções ministeriais, conseguiu que o próprio governo central
lisboeta enviasse ordens formais para que o governador-geral estabelecesse uma ou mais
guarnições no Chire. O governador-geral, sem hesitação, respondeu ser totalmente impossível
cumprir aquelas ordens: a foz do Chire estava sob domínio português; mas o mesmo não
acontecia no resto do vale. Não dispunha de forças suficientes para submeter os povos
gentílicos dispersos pelos territórios atravessados pelo famoso rio (5).
O episódio que se segue tem o mérito de realçar que os chefes macololos gozavam de
autonomia tão completa que podiam condenar à morte os próprios súbditos britânicos.
Aconteceu que, em 1880, a Comissão de Inquérito da Igreja Escocesa decidiu despedir, por
mau comportamento, um truculento adjunto de nome Fenwick. Recusou regressar à sua pátria.
Entretanto, conseguiu outro emprego na “African Lakes Company”. Sempre dominado por
instintos perversos, chegou ao ponto de ameaçar de morte o conhecido gerente John Moir. De
novo despedido resolveu dedicar-se a atividades mercantis. Em certa ocasião deslocou-se a
Quelimane para negociar o marfim pertencente a Chipatula, o chefe macololo que dominava a
região de Chilomo. Quando Fenwick regressou com as mercadorias adquiridas, ambos
celebraram o negócio com um serão divertido e bem regado. Mas na manhã da ressaca,
quando procuravam acertar as contas, as exigências do régulo parece terem sido tão
extravagantes que Fenwick, ensandecido pela cólera, o matou à queima-roupa, pondo-se de
imediato em fuga. Foi logo perseguido e sumariamente abatido.
Alexandre Lobato deu importância às consequências destes homicídios. Refere o facto
de terem chegado ao conhecimento do já citado governador-geral, coronel Agostinho Coelho.
De uma informação prestada por este a 27 maio 1884 ficou a saber-se que mandara o
governador interino de Quelimane a Massingire para esclarecer o incidente. Mas, na ocasião
do encontro, os grandes do Chipatula garantiram que o régulo fora morto por feitiço dos
brancos; de resto já tinha sido substituído por seu filho Chicusse. Deram altivamente a
73
conhecer que “não queriam brancos nas suas terras e que, se o governador desobedecesse,
haveria guerra”. De facto, nessa mesma noite, a povoação onde estava a autoridade visitante e
a sua comitiva, foi atingida por três tiros. Além disso, durante o longo batuque noturno,
entoaram cantos guerreiros e proclamaram o seu ardente desejo de combater. Se o governador
não iniciasse a guerra, eles próprios se encarregariam de atacar.
O caso de Chicusse merece ser aprofundado por razões que, direta ou indiretamente,
envolveram a autoridade portuguesa. Além disso constitui um exemplo das malfeitorias que
também podia cometer um mancebo oriundo da aristocracia gentílica que, nas missões
escocesas, não só recebera ensinamentos sobre a “ética protestante” mas também aprendera a
escrever em bom inglês. Julgo oportuno reproduzir o comentário que sobre o assunto escreveu
Victor Giraud (6):
Veremos, mais adiante, o caso semelhante de um tal Chinsoro que, pelos missionários
escoceses no Chire, havia sido selecionado, com outros quarenta, para receberem educação
superior na mítica Cidade do Cabo. Em 1868 aceitara servir como intérprete no “hunting trip”
ao Zambeze. Por falta cometida nos meandros sertanejos, fora julgado, incriminado e
mandado fuzilar pelo “conselho de guerra” ali legalmente constituído pelos oficiais britânicos.
Chicusse foi sucessor de Chipatula na chefatura da comunidade tribal que dominava as
terras situadas zona onde o famoso Ruo desagua no rio Chire. Foi descrito por Hanna como
um mancebo com cerca de vinte anos, que já acumulava dois defeitos: arrogância e
alcoolismo. Exigiu que lhe fosse entregue a viúva de Fenwick que, como referimos,
assassinara seu pai. A pequena colónia britânica ficara alarmada quando soube que era de
algum modo apoiado por seu avô Ramacucane – com alguma supremacia sobre os restantes
chefes de origem macololo. O explorador francês V. Giraud também ficou pessimamente
impressionado com o jóvem Chicusse. Relata o caso de ter mandado matar um dos
mensageiros que lhe trouxeram um bilhete do gerente da Companhia do lago. Depois
falsificou uma carta em inglês que remeteu pelo mensageiro sobrevivente.
Mas o diabólico carácter de Chicusse levou-o mais longe. Em abril 1884 apoderou-se
do pequeno vapor “Lady Nyassa”, bem como do recheio e das cargas. Chegou ao extremo de
enviar aos colonos o respetivo capitão em completa nudez, apenas encoberto por uma folha de
palmeira.
Quando o capitão Foot assumiu o cargo de cônsul britânico, a sua primeira diligência
foi pedir audiência a Ramacucane. Este, depois de proclamar a sua supremacia, deu-lhe os
auxílios de que necessitava para desencalhar o pequeno vapor.
Na sua última carta, datada de 7 agosto 1884, o capitão Foot queixou-se de febres altas.
Faleceu nove dias depois. Foi substituído por L. G. Goodrich. Em meados de agosto 1886
tomou posse o cônsul Hawes. Teve logo que enfrentar outro crime selvático cometido por
Chicusse: para se apoderar de uma preciosa carga de duzentas armas de fogo, algum marfim e
barris com pólvora, mandou matar o “mercador volante” Hinkleman, parece que de origem
austríaca mas de nacionalidade britânica. Graças ao testemunho de outro europeu que escapou
ileso, o mercador foi morto com armas brancas. O seu coração foi retirado para ser comido. O
cadáver foi lançado aos crocodilos.
Este crime de canibalismo fundamentado em antigas crenças mágicas, foi reprovado
pelos restantes chefes macololos. Ramacucane comunicou ao cônsul Hawes que ordenara a
74
prisão do seu sanguinário neto para que pudesse mandá-lo a Quelimane para ser castigado.
A reação de Hawes foi tão eficiente como imediata. Conseguiu dissuadir o idoso soberano
repetindo e desenvolvendo o argumento de que os Portugueses poderiam interpretar a
decisão como prova do reconhecimento da sua soberania.
Só nos finais de novembro Ramacucane decidiu lançar uma ofensiva em grande escala
contra as terras de Chicusse. A população pouca resistência ofereceu. O seu chefe debandou
mas depressa foi capturado e executado. Grande foi o regozijo do cônsul Hawes, dos
missionários escoceses e dos restantes britânicos.
Em Londres, os serviços competentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros
louvaram esta eliminação do turbulento Chicusse sem qualquer intervenção portuguesa. Um
dos altos funcionários E. W. Wylde comentou por escrito (sic) “a good riddance of a
drunken vagabond, so long as it has not brought about by the Portuguese” (7).
Pode aplicar-se à Niassalândia o mesmo comentário resignado que me recordo ter lido
em uma das numerosas cartas de Paiva d’Andrada sobre a Machonalândia:
***
***
“It is one of the limitations of this work that foreign sources (particularly
Portuguese) have not been drawn upon”.
Foi a 2 fevereiro 1889 que Harry Johnston (1858-1927) apresentou a petição oficial
solicitando as indispensáveis decisões superiores referentes à sua partida para o Zambeze, em
maio ou junho, com o objetivo de estudar e relatar, confidencialmente: “A exata condição e
extensão da influência portuguesa nas terras banhadas por este grande rio até à povoação do
Zumbo, sem visitar a Niassalândia nem celebrar tratados com as autoridades gentílicas”.
O primeiro-ministro Lorde Salisbury deu a sua concordância. Porém, quando Johnston
já tinha concluído os seus preparativos para embarcar, tomou esta inesperada decisão: o
76
jovem cônsul deveria, em primeiro lugar, deslocar-se a Lisboa para que, recorrendo aos seus
conhecimentos da língua portuguesa, tentasse negociar: “Um entendimento sobre fronteiras
que afastasse os Portugueses do planalto e da Zambézia Central”. O embaixador Petre
cumpriu os deveres do seu cargo e concedeu pronto e total auxílio ao seu conterrâneo.
Quando remeteu para Londres o memorando que continha as bases do acordo alcançado,
teceu rasgados elogios a Johnston e até acentuou que ele fora “muito bem sucedido” (10). É
da autoria de Marcello Caetano um relato minucioso sobre o que se passou, nos bastidores,
durante estas negociações (11).
O regresso de Johnston a Londres ocorreu a 22 abril. Logo iniciou diligências para que
o tratado fosse aceite. Usava argumentos exclusivamente concentrados nos interesses
materiais britânicos, marginalizando por completo as exigências espirituais e filantrópicas.
Escreveu a Salisbury (12):
Ele próprio assumiu a difícil tarefa de se deslocar à Escócia para convencer a hierarquia
das instituições missionárias a aceitar as suas pragmáticas soluções. Já suspeitava que iria
enfrentar atitudes intransigentes e até mesmo animosidades flagrantes. Na verdade, quando
finalmente foi realizado o plenário, logo notou que a maioria dos presentes escutara os seus
argumentos com total indiferença e até mesmo com ostensivas cataduras adversas. Nessa
mesma noite, a mais importante autoridade religiosa da região escreveu a Lorde Balfour
confirmando que os escoceses eram totalmente contrários ao tratado proposto por Johnston.
No dia seguinte Balfour conseguiu falar com o primeiro-ministro na Câmara dos Lordes e
participou-lhe o insucesso. Salisbury limitou-se a esclarecer que o seu parecer pessoal era
coincidente mas acrescentou:
No que respeita a Serpa Pinto, era sabido que havia chegado à Ilha de Moçambique em
maio 1889, com o objetivo de dirigir uma força de socorro ao já mencionado António Maria
Cardoso que se debatia com o problema dos Padres Brancos. Contudo foi informado de que,
afinal, a situação se tinha normalizado e que os seus serviços já não eram necessários. Não
desejando regressar a Portugal sem se notabilizar com algum feito heroico, concebeu novos
planos em acordo com as autoridades lisboetas e com o novo governador-geral, o oficial da
Armada J. P. de Neves Ferreira.
Como principal objetivo, propunha-se subir o Zambeze até ao Zumbo e, a partir daqui,
seguir o curso do Luangua até alcançar a margem ocidental do lago Niassa, de onde poderia
navegar até ao Chire. Tratava-se, portanto, de mais outra expedição “científica” cujo
77
propósito verídico seria a vassalagem dos chefes independentes. O plano combinava-se assim
com a expedição de Vítor Cordon até ao afluente Sanhati e, enfim, com a projetada criação do
Distrito do Zumbo. S. Pinto seria acompanhado pelos engenheiros J. R. Temudo e Álvaro
Ferraz (Visconde Castelhões), que tinham sido incumbidos de estudar o traçado da linha-
férrea entre Quelimane e a confluência do Chire com o Zambeze.
Por seu lado, Harry Johnston foi informado, a 27 maio, de que o agravamento da
situação no Chire exigia a sua partida para Moçambique e a tomada de posse do cargo
governativo na região que veio a constituir o protetorado da Niassalândia. Durante as cinco
semanas que esteve em Londres surgiram, por mera coincidência, certos fatores inesperados
que, no futuro, iriam assumir enorme importância. O principal foi, naturalmente, o encontro
casual mas decisivo com Cecil Rhodes que procurava obter a concessão de uma companhia
majestática. Dominado como era por ideais patrióticos e imperialistas semelhantes aos de
Johnston, logo lhe concedeu incondicional apoio financeiro (14). Fundamental também foi a
descoberta da barra navegável do Chinde, na foz do Zambeze, que tornava possível o tráfego
fluvial entre o oceano e o rio Chire, assim podendo ser contornado o território português (15).
Johnston chegou à Ilha de Moçambique a 9 julho 1889. Solicitou ao governador-geral
uma carta de recomendação para ser apresentada aos oficiais portugueses que encontrasse no
seu caminho. No dia 28 embarcou na canhoneira britânica “Stork” aproveitando e
confirmando a navegabilidade da nova barra que havia sido descoberta. Atingiu o afluente
Ruo no início de agosto, constatando que a expedição de S. Pinto o tinha precedido.
No dia 9 do mesmo mês remeteu a Salisbury uma confidencial dando conta de que este
oficial português se propunha continuar o seu caminho, a despeito da hostilidade dos
Macololos. Precisou que só em última instância proclamaria o protetorado britânico sobre a
região. Manteria segredo sobre os tratados que esperava celebrar. Desse modo deixaria à
decisão exclusiva do governo britânico declarar a sua “esfera de influência” ou o seu
“protetorado”. Mais esclareceu que, devido à afluência de vultuosos recursos financeiros (i.e.
os donativos generosos de Cecil Rhodes) a própria Africa Lakes Company, por ora tão
gravemente descapitalizada, gozaria dentro em breve de condições mais do que suficientes
para manter a Lei e a Ordem nos territórios meridionais ao redor do grande lago.
Pouco depois encontrou-se, frente a frente, com o próprio S. Pinto. Foi por este
convidado para tomar chá à maneira britânica, a bordo da canhoneira portuguesa. Johnston
ignorou os seus parcos conhecimentos de português quando constatou que o adversário se
exprimia corretamente em inglês. Este, com a maior cortesia, solicitou-lhe que intercedesse
junto dos chefes macololos para permitirem que o território fosse atravessado pela sua
expedição científica. Johnston lamentou não lhe ser possível obter tal autorização. Os motivos
eram vários, destacando-se entre eles o facto da caravana portuguesa compreender uma
maioria de guerreiros zulos (alusão aos cerca de cem landins contratados em Inhambane). O
futuro cônsul insistiu não apenas nos inconvenientes que a caravana iria provocar aos súbditos
britânicos mas sobretudo no previsível agravamento das relações entre os dois países caso
ocorressem confrontos armados. No prolongamento do diálogo, S. Pinto acabou por esquecer
o pretenso carácter científico da sua expedição e passou a referir-se, de modo direto, ao
projeto do governo lisboeta que visava alongar a influência portuguesa até ao lago Bangueulo
(Bangweulu).
A 26 agosto Johnston telegrafou esta informação ao primeiro-ministro londrino.
Acreditando que convencera S. Pinto a desistir da ideia de invadir os territórios macololos,
prosseguiu em direção a Catunga para se aconselhar com o cônsul interino J. Buchanan que,
entretanto, havia sido contactado por Melaure (Mlauri) que tinha sucedido a Ramacucane.
Tempos antes, Buchanan tinha convocado uma reunião com cinco outros súbditos britânicos
para subscreverem, a 12 agosto, um protesto formal a ser apresentado ao comando português.
78
Este protesto foi, no dia 20, refutado por um contra-protesto no qual os quatro oficiais
denunciaram as intrigas e jogadas dos “ingleses de Blantyre” que procuravam acicatar o furor
dos chefes macololos garantindo-lhes que os Portugueses estavam determinados a lançar
contra eles ataques devastadores. No dia 10 setembro, Buchanan remeteu a Salisbury toda esta
correspondência, enriquecida com os necessários anexos. S. Pinto também escreveu a esse
cônsul interino, acentuando o carácter “científico” da expedição e o facto dos guerreiros
landins entrarem em ação apenas em casos de legítima defesa. Mais declarou não poder
admitir que alguém quisesse restringir os seus direitos de passagem. Caso fosse atacado no
território macololo: “Passaria imediatamente à ofensiva e acabaria de uma vez para sempre
com essa perpétua causa de distúrbios” (16).
Esta atitude provocatória de S. Pinto é assaz difícil de compreender. Buchanan, ao
remeter o protesto dos moradores, tinha esclarecido na sua carta de 19 que:
Antes de iniciar o relato dos confrontos bélicos que tiveram tão graves consequências,
convém citar um caso que pode ter inclinado os empregados da African Lakes Company a
incitarem os Macololos contra as forças sob comando português. A. Coutinho narra o seguinte
episódio (17):
***
S. Pinto mostrou o seu apreço mudando oficialmente para “Vila Coutinho” o nome da
antiga Chilomo.
80
Os comandos portugueses, por intermédio de sucessivos mensageiros, pediram aos
chefes macololos que procedessem à entrega das bandeiras britânicas e que confirmassem a
sua vassalagem ao Rei de Portugal. Nenhum obedeceu. Buchanan aconselhou-os a não
aceitarem qualquer tipo de rendição e a buscarem refúgio nos territórios nortenhos. Mais tarde
escreveu a S. Pinto no dia 10 dezembro prevenindo-o de que, caso ordenasse qualquer ataque
teria que responder imediatamente por essa decisão. No dia seguinte remeteu mais uma
confidencial a Salisbury. Deve estar aqui a causa da nota do embaixador britânico, enviada ao
ministro Barros Gomes a 18 dezembro, protestando contra a ofensiva iniciada por S. Pinto
contra os Macololos.
Algo de insólito aconteceu depois. Durante um jantar a bordo da “Cherim”, oferecido
por A. Coutinho aos oficiais portugueses, surgiu o estafeta de Quelimane com um misterioso
telegrama. Era de 19 outubro e anunciava o falecimento do rei D. Luís. Serpa Pinto, muito
abalado, desembarcou imediatamente e regressou à sua cabana. No dia seguinte chamou A.
Coutinho e, depois de lamentar a morte do rei, seu amigo e protetor, revelou:
***
1) KOCK, W. J. de (1972). História da África do Sul. Pretoria, África do Sul, Ministério da Informação.
2) LACERDA E ALMEIDA, F. J. de (1798). Diário da viagem da vila de Tete, capital dos rios de Sena,
para o interior de África. In: “Textos para a História da África Austral – Séc. XVIII”. Lisboa, Publicações
Alfa/Biblioteca da Expansão Portuguesa, pp. 81-131.
3) GAMITTO, A. C. Pedroso (1854). Memória sobre um systema para as Cólonias Portuguesas. Ann.
Cons. Ultram. (parte não oficial) Série I.
4) COELHO, Ten-Cor. Agostinho. Relatório (do governador-geral de Moçambique de 8/4/1882 a
31/10/1883). Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, com a cota 59-D-15.
5) AXELSON, Eric (1967). Portugal in South-East Africa (1875-1878). In: “Portugal and the Scramble for
Africa (1875-1891)”. Joanesburgo, África do Sul, Witwatersrand University Press, p. 1-19. Na interpretação
deste autor, pecariam por utópicas quaisquer exigências baseadas nos chamados “direitos antigos e
irrefutáveis”.
6) GIRAUD, Victor (1890). Les Lacs de l’Afrique Équatoriale (voyage d’exploration exécute de 1883 a
1885). Paris, Librairie Machette, p. 570.
7) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press, p. 70.
8) COUTINHO, João de Azevedo (1941). Memórias de um Velho Marinheiro e Soldado de África. Lisboa,
Livraria Bertrand, pp. 402/5 e 414.
9) NOWELL, E. Charles (1982). The Rose-Colored Map. Lisboa, Junta de Investigações Científicas do
Ultramar/Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga, p. 143.
10) É paradigmática a regra de relações públicas que o jovem mas já astucioso Johnston se vangloriou de
desenvolver na conquista generalizada de simpatias, tanto em Portugal como em Moçambique, isto é, o
fingido mas cansativo embevecimento baboso perante tudo quanto lhe fosse mostrado como exemplo da
excelência nacional, incluindo, como é evidente, o Mosteiro dos Jerónimos.
11) CAETANO, Marcello (1971). Portugal e a Internacionalização dos Problemas Africanos (História
duma Batalha: da Liberdade dos Mares às Nações Unidas). Lisboa, Edições Ática, 4ª ed., rev. ampl., pp.
273, ver o apêndice final sobre os antecedentes do ultimatum e a missão de Johnston a Lisboa em março
1889.
12) HANNA, A. J. (1956). Idem, p. 131.
13) HEAD, Judith (1978). Sena Sugar Estates and migrant labour. In: “Mozambique”. Seminar, Centre of
African Studies/University of Edinburg, December.
14) NOWELL, E. Charles (1982), Idem, p. 181 (cita o cheque de £2.000 oferecido por C, Rhodes a Johnston e a
confirmação pelo Banco Rotchild de uma conta excedendo um milhão de libras; a esse gesto comentou
Johnston. (sic) “A man had come forward offering virtually to let us take over any degree of Central Africa
between the Zambesi and the White Nile and find the money to run it”).
15) 15/16) HANNA, A. J. (1956), Idem, p. 142.
16) 17/18) COUTINHO, João de Azevedo (1941), Idem.
17) MACEDO, Jorge Borges de (1990). Ultimatum em discussão na Faculdade de Letras. Lisboa, Público,
13 dezembro.
18) COELHO, J. P. Borges (1991). Tete, 1900-1926: o estabelecimento de uma reserva de mão-de-obra.
Arquivo/Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, nº 10 Especial, pp. 103-132.
19) VAIL, Leroy (1977). Railway development and colonial underdevelopment: the Nyasaland case. In:
“The Roots of Rural Poverty in Central and Southern Africa”. Londres, Heinemann Educ. Books.
20) CHANOCK, Martin (1977). Agricultural change and continuity in Malawi. In: “The Roots of Rural
Poverty in Central and Southern Africa”. London, Heinemann Educ. Books.
21) VOS, Antoon de (1975). Africa, the Devastated Continent? Haia, Holanda, W. Junk Publishers.
22) BIRMINGHAM, David (1996). Britain and the African background to the Ultimatum of 1890. Lisboa,
Studia, nº 54/5, pp. 21-32.
87
9º
DOCUMENTO
“Nos Cem Anos do Tratado de Delimitação de Fronteiras 1891-1991”,
por
Manuel Jorge C. de Lemos
[“ARQUIVO – Boletim do Arquivo Histórico de Moçambique”, Maputo, nº 9 (abril 1991) pp. 69-78]
Artigo I
Artigo II
Artigo III
Artigo IV
Artigo V
Artigo VI
Artigo VII
Todas as linhas de demarcação traçadas nos Artigos I a VI serão por acordo entre as
duas potências, retificáveis em harmonia com as necessidades locais. As duas potencias
90
acordam em que no caso de uma delas desejar alienar quaisquer territórios, ao sul do
Zambeze, incluídos na sua esfera de influencia pelos presentes Artigos, será reconhecido à
outra o direito de preferência a esses territórios ou a qualquer parte deles, sob condições
idênticas às condições que tiverem sido propostas.
Artigo VIII
Cada uma das potências obriga-se a não intervir na esfera de influência que
respetivamente for determinada à outra pelos Artigos I a VI. Nenhuma das potências fará
aquisições, celebrara tratados, aceitara direitos soberanos, ou protetorados na esfera da outra.
Fica entendido que nem companhias, nem particulares dependentes de uma das potências
poderão exercer direitos soberanos na esfera reconhecida à outra, a não ser que para isso
tenham o consentimento desta.
Artigo IX
Artigo X
Artigo XI
Artigo XII
Artigo XIII
Os navios mercantes das duas potências terão no Zambeze e nas suas ramificações e
embocaduras, quer em carga, quer em lastro, igual liberdade de navegação para o transporte
de mercadorias ou passageiros. No exercício desta navegação os súbditos e as bandeiras de
uma e outra potência gozarão em todas as ocasiões de uma completa igualdade, não só no que
disser respeito à navegação direta do mar alto para os portos interiores do Zambeze e vice-
92
versa, como à navegação de grande e pequena cabotagem, e ao comércio efetuado em botes
em todo o curso do rio. Não haverá por consequência em todo o curso do Zambeze ou nas
suas embocaduras direitos diferenciais para os súbditos de uma ou outra potência; e nenhum
privilégio exclusivo de navegação será por uma ou outra concedido a quaisquer companhias,
corporações ou particulares. A navegação do Zambeze não será sujeita a restrição ou
obrigação fundada exclusivamente no facto da navegação. Não lhe será imposta obrigação
alguma enquanto a lugares de desembarque, ou a depósito de mercadorias, nem por descarga
parcial ou arribada forçada em qualquer que seja a sua proveniência ou destino. Não será
lançado imposto algum marítimo ou fluvial baseado no facto único da navegação, nem serão
coletadas as mercadorias a bordo dos navios. Serão unicamente percebidos os impostos ou
direitos que signifiquem uma retribuição por serviços prestados à própria navegação. A tarifa
destes impostos ou direitos não estabelecerá tratamento algum diferencial. Os afluentes do
Zambeze ficam a todos os respeitos sujeitos às disposições que regem o rio de que são
tributários. As estradas, os caminhos, as vias férreas e os canais laterais construídos com o fim
especial de corrigir as imperfeições da via fluvial em certas secções do curso do Zambeze,
seus afluentes, ramificações e embocaduras, serão, na sua qualidade de meios de
comunicação, considerados dependências do rio e como tais igualmente abertos ao comércio
das duas potencias. E, conforme sucede para com o rio, serão percebidas nestas estradas, vias-
férreas e canais apenas as taxas correspondentes ao custo da construção, custeio e exploração,
e proventos devidos aos iniciadores. Relativamente às tarifas destas taxas, tanto os
estrangeiros como os indígenas dos territórios respetivos, serão tratados com completa
igualdade. Portugal obriga-se a estender os princípios de livre navegação enunciados neste
Artigo a todas as águas do Zambeze e de seus afluentes, ramificações e embocaduras, que
estão ou vierem a estar sob a sua soberania, proteção ou influência. Os regulamentos que
Portugal estabelecer para a segurança e fiscalização da navegação serão elaborados, de modo
a facilitar quanto possível a circulação de navios mercantes. A Grã-Bretanha aceita, sob as
mesmas reservas e em termos idênticos, as obrigações impostas nos Artigos antecedentes e
extensivas a todas as águas do Zambeze e de seus afluentes, ramificações e embocaduras, que
estão ou vieram a estar sob a sua soberania, proteção ou influencia. Todas as questões que
derem motivo às disposições deste Artigo serão sujeitas a uma comissão mista, e, em caso de
desacordo, à arbitragem. Qualquer outro sistema de administração e de fiscalização do
Zambeze poderá por consenso comum das potências fluviais substituir as disposições acima
expostas.
Artigo XIV
Artigo XV
Artigo XVI
***
***
Se a leitura atenta do Art. III for acompanhada pela sua reprodução cartográfica, logo se
constata que foi cometido um erro que exige correção imediata. O Pongolo/a não é afluente
do rio Maputo, mas simples topónimo indígena aplicado a este último pelas populações das
terras situadas ao sul da fronteira, terras designadas quer por “Maputaland” quer por
“Amatongaland” (1). Por mero acaso foi encontrada a referência que forneceu a resposta
certa. Consta ela de uma obra editada em 1920 pela Almirantado, em Londres (2).
Eis como foi oficialmente enunciado o extremo sul de Moçambique:
“… The short southern frontier runs west from Oro Point (Ponta do
Ouro) to the junction of the Pongola and Usutu rivers, thence following the
latter for a few miles upward. At this point it reaches the Lebombo Mountains”.
95
Eis a tradução:
***
Basta saber que Moçambique tem de superfície 785 mil kms2 e basta reparar na sua
enrugada raia marítima para concluir que nesse país o problema das comunicações reside,
fundamentalmente, na ligação entre um litoral com 2.800 kms e um interior de largura
bastante variável que oscila de um mínimo de 50 km no extremo sul e um máximo 640 km no
extremo norte.
A questão dos portos sempre foi da maior importância no seu desenvolvimento
económico. Quis a natureza ou a previsão dos navegadores do Séc. XVI, que o litoral fosse
favorecido por uma cadeia de magníficos portos com águas profundas e com capacidade para
conceder abrigo, durante as intempéries, a todo o tipo de embarcações, desde o grande
transoceânico até ao mais humilde caíque de velas triangulares. O mapa de “vias de
comunicação” do Atlas de Moçambique (3) merece aplausos para quem o concebeu: dele
constam onze e seis portos, respetivamente para navios de cabotagem e de longo curso.
No início da ocupação efetiva, a costa teve que ser dotada com farolagem de aceitação
internacional.
Nos principais portos foram criadas capitanias, gozando de larga autonomia,
dependentes do Ministério da Marinha e guarnecidos por oficiais da Armada. Eram
responsáveis pela pilotagem e pela balizagem. Desde cedo os portos e as costas foram
estudados por peritos qualificados. A título de exemplo, basta citar os trabalhos hidrográficos
e cartográficos que, nos inícios do Séc. XX, efetuaram Hugo Lacerda (4) na Baía de Lourenço
Marques e Ivens Ferraz (5) na costa de L. Marques até ao Bazaruto.
***
Bibliografia
10º
DOCUMENTO
Origem do Reino de Cambane-Mondlane que unificou parte dos
Chopes
***
Os Chopes, já preparados para a guerra de extermínio que iria ser movida por
Ngungunhane, construíram grandes paliçadas, no meio de mato serrado, os célebres Cocolos
(khokholwene) (11).
Erskine (12) que em 1871, no próprio reinado de Binguana, fez o percurso de
Mandlacazi a Inhambane, observou em pessoa quatro cocolos. Matshunculu era o mais
extenso e abrigava cerca de 1.500 habitantes. Também prestou a interessante informação de
que todos os cocolos dispunham de colmeias com abelhas domesticadas que, além de
produzirem mel, circulavam sem perigo.
100
Armando Longle (13) que, em 1885, transitou de Inhambane para L. Marques, visitou
os cocolos de Binguana situados entre a respetiva capital e o Xai-Xai. Recordemos que esse
régulo só veio a falecer em 1889 e que, por esta altura, o seu território se alongava do rio
Inharrime até ao Limpopo. Eram quatro os cocolos que primeiro visitou. Foi tuijane que veio
a sofrer os mais duros ataques. Era o melhor preparado para a defesa devido à espessura das
matas. Apresentava, do lado sul, os furos das balas dos atacantes. Os cadáveres dos inimigos
estavam espalhados pelo mato. Longle ainda viu as cabeças espetadas em troncos. Reparou
que em nenhuma destas aringas se encontrava água.
Serrano (14), viajante em 1890, ainda constatou, ao redor das povoações destruídas, a
enorme extensão de terras que a população tinha cultivado, sendo evidente a sua antiga
prosperidade. Mais acrescentou: “As plantações de mandioca, tabaco e ananás eram feitas
com regularidade, ou circundando os caminhos, ou em linhas perfeitamente paralelas; os
terrenos eram cercados para evitar a invasão dos gados… a povoação de Zebute… era muito
importante por ser nela que o Binguane tinha as suas mulheres; as palhotas que ainda se
conservam de pé, são grandes, circulares e todas revestidas de barro interior e exteriormente;
as portas têm relevos curiosos e pinturas extravagantes”.
Duas são as razões que me levaram a interromper o relato sobre a cultura e prosperidade
dos Chopes para apresentar algumas explicações sobre o famoso magnate sul-africano. A
primeira baseia-se no facto de os participantes na grande emigração já referida, necessitarem
desesperadamente de alimentos para poderem sobreviver até à próxima colheita. A segunda
têm como objetivo dar a conhecer as razões que levaram Cecil Rhodes e os seus mandatários
a concentrarem as suas atenções na difícil personalidade de Ngungunhane e nas
idiossincrasias dos seus conselheiros mais próximos. São muito difíceis de resumir os
acontecimentos ocorridos nos últimos anos do Império de Gaza. Nem tão pouco há interesse
em elaborar esse resumo. Tantos são os intervenientes e tantas são as “lendas e narrativas” por
eles publicadas que se torna supérfluo fazer qualquer esforço de síntese histórica.
A presença britânica na África Austral e Oriental teve a particularidade de nela se
haverem empenhado, em simultâneo, missionários, caçadores, exploradores, militares,
capitalistas, empresários, comerciantes, agricultores, etc. Só mais tarde surgiram os minerais
como fontes de riqueza capazes de gerar impulsos expansionistas bem determinados. Graças
às descobertas diamantíferas, a África do Sul depressa atingiu lugar cimeiro na economia
mundial. Os lucros foram tão vultuosos que os produtores conseguiram não apenas cobrir as
despesas efetuadas com a erupção dessa indústria extrativa mas também de dispor de capitais
suficientes para investir em atividades diversificadas e em aquisições territoriais com
potencialidades bem asseguradas.
Entretanto, apareceu em cena a figura de Cecil John Rhodes, (1853-1902) com
preponderância absoluta no domínio da produção diamantífera de Kimberley. Acalentava o
sonho de construir o seu próprio império. Não surpreende que fosse intransigente adversário
político de Paul Kruger.
A fama mundial do “ouro do Rand” atraira para a região uma plebe cosmopolita, os
“uitlanders”, na sua maioria anglófonos que Rhodes procurou utilizar no falhado atentado de
1895/6 contra Kruger, conhecido por “Jameson raid”. Este insucesso levou Rhodes a desistir
do método de utilizar terceiros para concretização dos seus objetivos. Felizmente para si,
101
forças mais poderosas deram forma aos seus planos. A disputa britânica com o Transval
passou a ser conduzida, após 1895, pelo próprio Marquês de Salisbury (adiante Salisbury)
primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido. O seu governo iria
conduzir até 1905 os destinos do Império Britânico, então no auge do poderio universalizado.
Quando em 1886 foram descobertas as riquezas auríferas de Witwatersrand, Rhodes
nunca conseguiu ganhar ali uma posição comparável à que tinha alcançado em Kimberley.
Para compensar este fracasso relativo, acreditava que um segundo Witwatersrand poderia ser
encontrado mais a norte, com os filões que se dizia existirem entre o Limpopo e o Zambeze.
Para concretizar esta ambição decidiu lançar-se na vida política e cedo foi eleito como
deputado no Parlamento do Cabo. Datam dessa época as suas primeiras ligações com os
políticos africaners. Também obteve posição dominante na imprensa para poder defender os
seus interesses nos órgãos de informação pública.
Deve acentuar-se, contudo, que Rhodes nunca defendeu o direto envolvimento britânico
nestes assuntos sul-africanos. Assumiu-se mais como um imperialista que queria reforçar o
poder dos sul-africanos de origem europeia mas não o da supremacia londrina. Assim sendo,
almejava transformar as vastas regiões situadas ao norte do Limpopo numa espécie de império
privativo. Fixou como primeiro objetivo o controlo do reino Matabele dirigido por Lubengula,
herdeiro de Mezilicazi que, como é sabido, também se afastou definitivamente de Chaca.
Uma vez consolidada essa base, procuraria, a partir dela, controlar o saudável e fértil planalto
habitado por pequenas unidades políticas de origem chona, planalto para onde mandou
prospetores fazer o levantamento parcial das milhares e antiquíssimas minas.
Calculou com objetividade os passos a dar para aumentar a sua influência junto de
Lubengula. Começou por solicitar a John Moffat, filho do famoso missionário, que
convencesse Lubengula a aceitar uma modalidade de tratado pelo qual se comprometesse a
não ceder o seu reino quer à Grã-Bretanha quer à África do Sul, ficando desse modo excluídos
outros rivais menos importantes como Portugal, Alemanha e Transval. Esse objetivo foi
atingido a 11 fevereiro 1888. De seguida, encarregou C. Rudd, agente da sua confiança, de
obter na corte de Lubengula uma concessão sem direitos de soberania mas que autorizasse
formalmente a exploração exclusiva e consumada de todos os jazigos minerais existentes no
reino e nas tribos avassaladas e, ainda, que proibisse quaisquer outras entidades de
procurarem nesses domínios tanto terras como minerais. Em troco dessa concessão, forneceria
modernas armas de fogo, munições, equipamentos e toda a espécie de recursos que fossem
solicitados, incluindo os de natureza financeira. Essa concessão foi formalizada a 30 outubro
do mesmo ano. Os direitos foram delegados em uma empresa distinta, da qual Rhodes se
considerava proprietário embora bem apoiado por desconhecidos investidores. Precisamente
um ano depois, por graça real, foi-lhe concedida, em Londres, a cobiçada carta da majestática
British South African Company.
Estes pormenores são aqui deliberadamente relembrados. Eles são indispensáveis para
se compreenderem os resultados, não raro trágicos, da entranhada hostilidade que Rhodes
alimentava contra os interesses de Portugal, hostilidade que o levou a revelar total falta de
escrúpulos quando se esforçou por concretizar esses ideais imperialistas de que não abdicava
e que conseguiu transmitir àqueles subalternos que, quase cegamente, obedeciam às suas
ordens.
São conhecidas as razões que levaram Salisbury a patrocinar a concessão majestática a
Rhodes. O império quase privativo que este sonhava fundar e desenvolver, consolidaria a
presença britânica na África Central trans-zambeziana, sem as limitações orçamentais
exigidas pelo Parlamento, ficando assim neutralizadas as possíveis reivindicações de dois
outros rivais: o rei Leopoldo da Bélgica (e também do Congo) já conhecedor das enormes
potencialidades minerais de Catanga; mais para leste, o controlo das ligações amigáveis e
102
suspeitas mantidas entre os dirigentes alemães instalados no Sudoeste Africano e no
Tanganica e os Africaners do Transval, presididos por Paul Kruger.
Voltando a Lubengula. Nenhuma impressão causaram, a este monarca, os poderes
majestáticos de que se arrogava Rhodes. Recusou, sem explicação, atribuir outras concessões
que ultrapassassem as relacionadas com a exploração mineira. Para sair do impasse, Rhodes
tomou, nos finais de 1889, a radical decisão de que Lubengula teria que ser derrubado à força.
E, se tal fosse necessário, poderia ser eliminado. Como já procedera em relação a Kruger,
mandou organizar um comando de centenas de mercenários com o objetivo de raptar ou
suprimir o rei Ndebele. Mas Lubengula, com a astúcia e resistência de um veterano,
conseguiu escapar a tempo (15).
Após o fracasso de ambos os atentados, Rhodes não sofreu quaisquer represálias nem
mesmo admoestações. Pelo contrário: seis meses depois ascendeu gloriosamente ao cargo de
primeiro-ministro da Colónia do Cabo! Deste modo, a única entidade imperial que poderia
refrear as atividades menos lícitas da B. S. A. C. exercidas nos vastos domínios situados ao
norte do Limpopo, passou a ser chefiada pelo próprio diretor dessa mesma companhia!
Durante cinco longos anos Rhodes governou efetivamente toda a África Austral. Porém, foi
impotente para evitar a segunda e tão sangrenta guerra anglo-Boer, iniciada a 11 outubro
1899. Terminado este sumário sobre o “imperialismo rodesiano”, regresso de novo ao Império
de Gaza. Como se sabe, foi em 9 junho 1888 que Ngungunhane, ainda residindo no
Mossurize, concedeu a Portugal a livre exploração mineira de Manica e Macequece, embora
nunca abdicando das suas naturais prerrogativas de soberania. As melindrosas negociações
que precederam essa decisão real encontram-se minuciosamente relatadas na biografia do
Cons. José d’Almeida (16).
Foi por intermédio do famoso “João” – alto-funcionário governamental e bom
informador com quem comunicava em absoluto segredo – que G. G. Petre, ministro-
embaixador em Portugal, teve conhecimento de um facto consumado e de inegável
importância que, logo a 30 março 1890, se apressou a comunicar a Lord Salisbury. Afinal o
Barão de Rezende (adiante Rezende) já se encontrava instalado em Manica, em simultâneo
com as funções representativas de: a) Oficial do governo português; b) Executivo da (1ª)
Companhia de Moçambique, a qual pagava o grosso dos seus honorários (17).
Uma das suas primeiras decisões, acordada com Paiva d’Andrada, foi a admissão de
arrendatários de quinhões mineiros que iniciassem no terreno as explorações auríferas. Eis os
seus títulos oficiais: Ophir Concessions Limited; East Africa Exploration and Trading
Syndicate; Barbeton Syndicate; Umzilaland Syndicate; Madeira Syndicate; L. R. S.
Watherley; African Prospecting Syndicate; J. H. Jeffreys; Robert Clement; Edmund de
Kergariou; Zambezi (Gaza) Concession Company, Limited; Sabi Ophir Mining Company;
Zambezi (Sofala) Concession Company, Limited. O diretor Resende não podia imaginar que
os dois últimos, chefiados por Moodie e por N. Harrison, já exercessem espionagem a mando
de Rhodes.
Na sua qualidade de Intendente dos Negócios Indígenas em Manica, o referido Rezende
remeteu ao governador-geral de Moçambique dois ofícios datados de 17 setembro e 3 outubro
1890, contendo informações de muito interesse sobre o número e o comportamento dos
célebres pioneiros que atravessaram o Limpopo para ocupar o planalto concedido à
majestática de Rhodes. Seguem-se algumas dessas informações:
Esta outra conjuntura – aliada à vassalagem que Mutassa transferiu de surpresa para a
coroa britânica, originando a traiçoeira prisão de Rezende, Paiva d’Andrada e Manuel
António de Sousa – acicatou a decisão de Rhodes para expulsar os Portugueses e de
conquistar uma “saída para o mar”. Também ajuda a compreender a verdadeira razão que
levou Salisbury a exigir a retirada das forças militares portuguesas não apenas da região
banhada pelo Chire e povoada pelos Macocolos, mas também da dos Machonas do planalto
entre o Zambeze e o Alto Limpopo.
Iremos apenas apresentar provas bem documentadas sobre um agente rodesiano com
grande influência, que também procurou prejudicar Portugal quando se esforçou por
consolidar a sua presença em Moçambique. Chamava-se Dennis Doyle. Aparece pela primeira
vez citado no ofício do Eng.º Llamby sobre os acontecimentos de Manica: “La femme de
Manuel Antonio avait aussi été conduite au campement. Mr. de Rezende et moi lui cedâmes
une de nos tentes. Mr. de Rezende m’a dit depuis qu’il avait dû défendre cette femme contre
les obsessions d’un mr. Doyle, qui était en realité le chef de l’expédition, dont mr. le capitaine
Forbes n’était que le bras”. Mais adiante volta a falar em Doyle e desmascara Moodie e
Harrison nestes termos: “… Mr. Forbes partit avec mr. Doyle et un certain nombre de
cavaliers dans la direction de la côte guidés par mrs. Moodie et Harrison… qui, ayant jeté le
masque, ont ainsi affirmé leur cumplicité dans les attentats qui avaient été commis”.
Segundo se infere de um tratado que Ngungunhane efetuou com B. S. A. C. – tratado
que Dennis Doyle subscreveu e no qual foi testemunha importante – já ele se encontrava na
capital de Ngungunhane no início de outubro 1890. Foi Mário Costa (19) que apresentou o
conteúdo deste documento, limitando-se a informar que fora extraído do livro de Eduardo de
Noronha “O Distrito de L. Marques e a África do Sul”. Infelizmente não encontrámos em
qualquer outra fonte, confirmação da existência deste tratado. É, por conseguinte, com a
devida reserva que o vamos transcrever:
***
Aos 29 dias do mês de dezembro de ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
de 1890, perto do chigacho de régulo Ngungunhane, em Violante, pelas 11 horas da manhã,
onde se achavam reunidos o mesmo régulo e seus mais classificados indunas, bem como o
Intendente Geral de Negócios Indígenas em Gaza, o Conselheiro José Joaquim d’Almeida, o
105
Intendente do Mossurize, Arthur António Matheus Serrano, o Intendente do Alto Save,
Adrião Miguel Xavier, o Subintendente do Inhaoxe, Ricardo Moreira de Sousa e Faro, os
alferes do Exército de Portugal, António Moreira de Sousa, José Augusto de Quadros, e
Manoel de Jesus Barreira, o súbdito russo Maurice Torbin Bretterman, o súbdito britânico
Alexander Deans, os intérpretes Quelimane e Victorino, comigo Ignácio de Paiva Rapozo,
Intendente do Biléne, servindo de secretário da expedição a Gaza, aí compareceram, por
intimação do poderoso potentado vátua, os ingleses Aurel Schulz, Frank Colquhoun, J. Mac
Killican, M. A. Barnett, Fels e sua mulher, que há algum tempo, se encontram acampados
nestas terras, e perante os quais o referido potentado desejava espontaneamente fazer,
segundo afirmou, algumas declarações que reputava indispensáveis, embora elas fossem a
repetição de outras iguais que já por várias vezes, e em épocas diferentes, tem solenemente
feito.
Tomando-se lugares, ficou à direita do régulo S. Ex.ª o Conselheiro Intendente Geral, e
em seguida a este todos os seus empregados, e os Srs. Bretterman e Deans, passando os
indunas para a esquerda de Ngungunhane, que fez sentar na sua frente, e bem separados de
portugueses e vátuas, o Sr. Colquhoun e seus companheiros. Depois de disposta assim a
assembleia, foi o régulo convidado por S. Ex.ª o Conselheiro Intendente Geral a tomar a
palavra e a expor o que tinha a dizer, o que este então fez, dizendo que o seu fim consistia em
tornar bem público, em face dos estrangeiros presentes, que ele e seu povo, assim como seu
avô Manicusse, e seu pai Muzila, eram vassalos fiéis e submissos de Sua Majestade El-Rei de
Portugal; e que, por mais que se dissesse e intrigasse, as terras de Gaza seriam portuguesas,
enquanto ele tivesse vida, e delas fosse governador. Que a bandeira que todos estavam vendo
erguida perto da sua residência nunca seria substituída pela de outro qualquer estado; e que,
tão sincera era esta sua promessa, que no intuito de que seus filhos a respeitassem, os tinha
entregado ao secretário (Intendente Geral), com algumas outras crianças, que no futuro
seriam os grandes do país, para que todos fossem educados em Portugal, e aí estudassem a
língua e os costumes da nação e que deviam pertencer, e se compenetrassem do amor, da
fidelidade e do respeito que lhe deviam tributar.
Que ele, como toda a família Jamine, descendente dos grandes chefes zulus, só tinha
uma palavra; e que, se no seu coração houvesse a mais leve tendência para aceitar a bandeira
inglesa, teria a coragem de o dizer aqui ante os portugueses, como tinha a coragem de dizer
que a recusava, ante os ingleses que o estavam ouvindo. Que isto ficava por uma vez assente,
e que pedia ao secretário que nunca mais duvidasse da sua lealdade, pois que essa dúvida era
para ele um desgosto tão profundo, como o que sentia a mulher inocente e honesta quando
acusada de infiel.
Que é facto que muito ingleses, confessando-se todos seus amigos, e dando-lhe
presentes mais ou menos preciosos, o vinham visitar, procurando uns fazer negócio de peles e
de marfim, outros obter dele concessões de terrenos auríferos, e alguns persuadi-lo a passar-se
para a Grã-Bretanha; mas que, também era certo, que com os primeiros se limitava a negociar,
se isso lhe convinha, respondendo aos segundos, e que nesse número entrava o Shiboquana
(Colquhoun) aqui presente, e Dr. Bertrand que há dois meses se retirou destas terras, que só
El-Rei, e o secretário, podiam atende-los. Aos terceiros, a resposta era invariavelmente a
mesma: que queria ser amortalhado numa bandeira igual àquela que amortalhou o corpo de
sua mãe, a veneranda Uzio.
Que já uma vez disse, e agora repetia, que mandara há tempos o Guio-Guio ao Natal
quando, vendo-se abandonado pelos residentes, e ameaçado por Inhambane e L. Marques,
julgou ter perdido a estima de Sua Majestade, e que Portugal lhe queria fazer guerra, por ele
haver batido o Binguana; mas que, como então, afirmava que esse emissário não fora
incumbido de dizer coisa alguma que comprometesse a sua nacionalidade portuguesa. Que ia
106
apenas informar-se se lá se sabia se nós portugueses projetávamos alguma guerra contra ele, e
pedir aos ingleses que, no caso afirmativo, interviessem perto de El-Rei em seu favor. E, se
voltava agora a este assunto, é porque também aqui estava presente o inglês Bubé (Aurel
Schultz), que vem por parte do governo do Natal a saber do pé de relações em que ele
Ngungunhane está hoje com Portugal, bem como trazer-lhe um saguate, e a quem empraza
por essa ocasião a desmenti-lo.
Que eram estas, e só estas as declarações que bem publicamente desejava fazer, e que,
sentindo-se agora aliviado por as ter feito, nada mais tinha a acrescentar.
S. Ex.ª o Conselheiro Intendente Geral, tomando então a palavra, pediu ao
Ngungunhane para dizer diante de todos a quem pertencia o Chifambobsico, filho do falecido
Mutassa, e régulo de Manica.
A este pedido respondeu o régulo vátua que toda a gente sabia que o Chifambobsico era
seu, desde a submissão imposta ao Mutassa pelas armas de Manicusse; que a tal respeito não
podia haver dúvidas, nem por parte do secretário, que há muito tem na Manica gente a
explorar minas, e uma autoridade portuguesa, nem por parte dos ingleses, visto que estes a ele
se dirigem todos os dias a solicitarem-lhe concessões naquele território. E que nem tal região
podia deixar de pertencer-lhe, desde que o seu domínio se estende até aos Dumas (Machonas)
e vai até ao Motoco. Que além disso a Manica sempre teve desde a sua conquista um
governador vátua: o Maguiguana, no tempo de Manecusse e Muzila, e o Michava atualmente;
e que, com este se encontrava em Violante, o ia mandar chamar à nossa presença.
Perguntando neste momento o mesmo Ex. mo Conselheiro, se o régulo tinha regularmente
recebido impostos de Manica, respondeu afirmativamente, dizendo que os últimos bois que de
lá trouxe o Michava, como tributo, ainda não há dois meses que chegaram, e que se
encontram pastando nas terras abachope de Matinhe, a pequena distância deste lugar. Passado
um quarto de hora apareceu o Michava, que o Ngungunhane a todos apresentou. Depois disto
o Intendente Geral, usando da palavra, disse que acreditava na lealdade do Ngungunhane, e
que folgava de o ter ouvido; mas que os estrangeiros que vinham visitá-lo, é que procuravam
no litoral fazê-lo passar por pouco sincero e por mau português.
E que isto não era uma afirmativa vaga, pois que diante de todos acusava o Sr.
Colquhoun, também presente, de ter asseverado em L. Marques ao Intendente Ignácio de
Paiva Rapozo, que o facto de se encontrar aqui arvorada a nossa bandeira nada significava,
visto o Ngungunhane lhe haver dito, que ele Colquhoun também cá poderia erguer a sua. Que
ao Sr. Bretterman também o mesmo individuo dissera na referida cidade, que os indunas lhe
ofereceram seus filhos para serem educados em Inglaterra, e que havia mesmo entre eles um
que desejava fazer-se inglês.
O régulo e os indunas respondem que tudo isto é falso, e dizem ao Sr. Colquhoun que
apresente a sua defesa, se não são verdadeiras as acusações que, face a face, se lhe estão
fazendo; mas este limita-se a declarar que efetivamente o Sr. Bretterman e Rapozo dizem a
verdade, e que foi ele que faltou a ela, por se encontrar embriagado quando conversou com
eles.
A pedido do Ngungunhane perguntou então o Conselheiro Intendente Geral ao Sr.
Colquhoun, se ele obteve dos vátuas alguma concessão; o interrogado, porém, recusa-se
a responder, apesar do mesmo Ex.mo Sr. lhe ter feito sentir que, sendo aqui legítima e
reconhecida autoridade de Portugal, o estava interrogando oficialmente, e que sabe o
que lhe cumpre fazer para obter a resposta que deseja.
E sendo já três horas da tarde, se deu depois disto a reunião por finda, da qual se lavrou
a presente ata, que vai ser assinada pelo Conselheiro Intendente Geral, pelos demais
funcionários, pelos Srs. Bretterman e Deans, e por mim Ignácio de Paiva Rapozo, Intendente
107
do Biléne, servindo de secretário, que a escrevi, subscrevi e assino. = José Joaquim
d’Almeida. = Arthur António Matheus Serrano, Intendente em Mossurize. = Adrião Miguel
Xavier, alferes de cavalaria. = Ricardo Carneiro de Sousa e Faro. = António Moreira de
Sousa. = José Augusto de Quadros. = Manoel de Jesus Barreira. = Maurice Torbin
Bretterman. = Alexander Deans. = Sinal do Interprete Quelimane + – Sinal do Interprete
Victorino + = Ignácio de Paiva Rapozo, secretário.
***
A intervenção de Dennis Doyle não cessou após esta posição firme tomada
publicamente por Ngungunhane. Merecem meditação os acontecimentos que a seguir são
resumidos.
“Devo explicar que isto foi causado pelo facto da totalidade da tribo
de Ngungunhane se ter deslocado para o sul com o propósito de punir
Sepelanhana que tinha arvorado contra ele a bandeira da revolta”.
Mais afirmou Doyle que, após a chegada à corte, tinha sido informado que a força de
combate de Gaza era constituída por vinte mil guerreiros de puro-sangue Zulu, dos quais
dois mil se encontravam armados com carabinas Martini-Henri. As grandes plantações de
árvores de fruto e a extensão dos campos cultivados asseguravam não haver carência de
alimentos.
No final da conferência o presidente agradeceu a Doyle – como ao outro conferente – as
informações que tinham fornecido e que constituíam contribuições válidas para melhorar os
conhecimentos geográficos. Terminou por agradecer aos dois cavalheiros oriundos do
108
sudoeste africano a quem gostosamente apresentou boas vindas – os enviados do rei
Ngungunhane. Fez votos para que lhe comunicassem que o seu nome tinha ali sido recebido
da maneira muito amigável e que agora se sabia, com geral agrado, que as suas forças
militares atingiam o poder que o senhor Doyle tinha referido. Entre parênteses, é de notar que
esta opinião responsável dá consistência à conhecida hipótese de F. A. Toscano:
Não se podem deixar passar sem enérgica contestação estas arengas pronunciadas
na Sociedade de Geografia de Londres. Houve evidente má fé por parte do conferencista. É
vastíssima a literatura dedicada à deslocação forçada de muitos milhares de famílias vandaus,
com idosos, mulheres e crianças, deslocação que Ngungunhane julgou indispensável quando
transferiu a sua capital para o território meridional de Cambane. Abundam os testemunhos
dos sofrimentos e morticínios provocados por essa longa migração que se arrastou durante
seis meses. A decisão do monarca esteve decerto ligada ao facto da maioria dos guerreiros
que compunham o seu exército serem de origem vandau. Conhecem-se até os nomes dos
regimentos constituídos por guerreiros desta etnia que atacaram o quadrado de Coolela.
Merece ser denunciada a afirmação de Doyle sobre as características étnicas dos vinte
mil guerreiros que pretensamente faziam parte do exército do Ngungunhane. A distorção
deliberada da verdade ressalta claramente quando se repara no reino Matabele (Ndebele),
dirigido por Lubengula, que conquistou a parte mais fértil e saudável do planalto onde, no
Séc. XVIII, se tinha instalado o celebre Changamire Dombo, fundador do reino dito Rózui. A
documentação já citada comprova que Doyle sabia que os invasores de origem
“zulo”constituíam uma minoria e que, depois de conquistarem as terras altas dominadas pelos
Montes Matopos, chegaram a criar um rigoroso sistema de castas que reduziu os vencidos
rózuis a níveis semelhantes aos dos párias hindus. No reino de Gaza o número de guerreiros
de pura origem zulo (mais propriamente angune) não ultrapassava os dois mil, como foi
constatado em 1887, por Paiva d’Andrada e outros observadores. Concentravam-se em torno
da capital no Mossurize e também na área de Chaimite, onde Sochangana-Manucusse fundou
a capital da segunda casa real.
Também não é verdade que a população deslocada dispusesse de alimentos em
quantidade suficiente. Entre vários outros salienta-se o testemunho de Serrano que observou
famélicos vandaus tentando sobreviver com raízes e frutos silvestres, parcamente alojados em
toscos abrigos de capim.
***
Faço saber pelo presente, que eu, Ngungunhane Umdungasua, rei absoluto de Gaza,
com a assistência do conselho, recolhidos os votos dos meus conselheiros, reunidos em
conferência a 15 novembro 1891, fiz a seguinte concessão a Dennis Doyle, representando a
“British South Africa Company”:
***
Na verdade esta pretensa concessão ficou sem efeito devido à conclusão do tratado
definitivo sobre fronteiras, assinado pelos representantes da Grã-Bretanha e de Portugal, a 11
junho 1891. A finalizar todo este conturbado período da história moçambicana pode citar-se a
seguinte observação de Newitt (23): “The ultimate satisfaction for Portugal must have been
the anger of Rhodes at a settlement which efectivelly pulled the carpet from under his
territorial privateering”.
***
11º
DOCUMENTO
Devido à complexidade da matéria, foi aqui
seguido um critério diferente na citação das
referências bibliográficas. Passam para o final
de cada subtítulo e têm numeração própria.
1) NEWITT, Malyn (1995). A History of Mozambique. London, Hurst & Company, p. 342.
2) BARRETO, Manuel (c. 1667). Informação do Estado e Conquista dos Rios de Cuama. In: G. M. Theal,
“Records of Southeast Africa”, 1898-1903. Cidade do Cabo (África do Sul).
3) SÁ da BANDEIRA, Marquês de (1867). Zambézia e países adjacentes. Lisboa, 2ª Edição.
4) MONTEIRO, José Manuel Corrêa (1859/61). A feira do Aruangua do Norte. Lisboa, Anais do Conselho
Ultramarino. Consta de uma anotação ainda bem legível que este mesmo oficial subscreveu o “extrato de
um ofício dirigido em 13 junho 1830 a M.J.M. de Vasconcelos Cirne, tenente-coronel e governador de
Quelimane”. Presta os seguintes e valiosos pormenores: cerimónias fúnebres do régulo cheua Muasse,
falecido em 1829; sacrifícios humanos (raparigas); dois menores empalados para guardar a sepultura;
recebera a visita do embaixador do Cazembe que tinha iniciado a viagem com vinte pontas de marfim e
cinquenta escravos, contudo na sua rota não só fôra roubado por Muízas mas também perdera homens
devido à fome, restando apenas cinco cazembistas. Termina por informar que durou sessenta e seis dias o
percurso efetuado entre a feira do Aruangua Norte e a povoação de Tete. A mesma referência menciona quer
a “parte não oficial” dos supracitados Anais, quer a “2ª série” e o ano de 1861.
5) JUNIOR, J. R. dos Santos (1940). Missão Antropológica de Moçambique. Lisboa, Agência Geral das
Colónias, 2ª Campanha, agosto 1937 a janeiro 1938.
115
Carl Wiese nasceu na Alemanha cerca de 1860. Emigrou para Moçambique em 1883.
São escassas as informações sobre os seus laços familiares e a sua formação académica ou
profissional.
Dominando tanto o inglês como o francês, depressa conseguiu emprego como guarda-
livros. Facilmente aprendeu a língua portuguesa. Pouco a pouco se foi integrando nos núcleos
comerciais de Quelimane e de Tete, principalmente interessados no negócio do marfim. Em
1885, devido à crescente escassez desse precioso despojo, tomou a decisão de averiguar, por
sua conta e risco, quais os sertões do interior onde ainda abundassem os proboscídeos. Em
março, com uma caravana de trezentos carregadores, partiu de Tete e seguiu o curso do
Zambeze até Cachomba.
Wiese seguiu a rota do noroeste em direção ao Aruângua. Ocasionalmente, alguns dos
seus caçadores vieram a cruzar-se com um pelotão de guerreiros angonis. Pertenciam ao
famoso Mpezene que, na década de 1860, tinha decidido estabelecer-se naquela zona salubre,
após a fragmentação do reino sedentarizado e engrandecido na margem oriental do lago
Tanganhica, reino fundado pelo conhecido Zuanguendaba, senhor seu pai. Wiese pediu ao
comandante que fosse portador de uma oferenda para o soberano. Dois meses depois, já no
início de 1886, foi visitado por uma embaixada de alto nível transmitindo o convite de
Mpezene para se estabelecer nos seus domínios. Agradeceu e, quando julgou oportuno,
deslocou-se à capital para prestar homenagem pessoal ao monarca. Este ficou bem
impressionado e concedeu-lhe autorização para fixar residência em Metengulene.
Ao tomar esta decisão, Wiese levou em consideração vantagens de diversa ordem:
dispor de maior liberdade de ação, beneficiar da proteção das forças angonis, viver afastado
das questiúnculas políticas e também da concorrência de rivais munidos de armas de fogo,
como os traficantes árabes ou suahilis oriundos do litoral e os chicundas ao serviço exclusivo
dos muzungos mais ou menos independentes que usavam e abusavam dos títulos oficiais
concedidos.
Metengulene também facilitava a Wiese o início de contactos com unidades políticas
mais longínquas, como aconteceu em relação aos Bisas, a ocidente do Aruângua. Esta grande
atividade proporcionou-lhe um invejável conhecimento dos sertões setentrionais muito
distantes da atual fronteira nortenha de Tete. Convém acentuar que era já fluente em várias
línguas vernáculas e procurava conviver com naturalidade e ampliar os seus conhecimentos
sobre os usos e costumes das diversas etnias.
Graças ao Memorandum, datado de 1891 que publicou em Lisboa, conhecem-se os
percursos que efetuou e as estações comerciais que fundou (1). Naturalmente que se reveste
de redobrada validade histórica a impressionante síntese introdutória elaborada por Harry W.
Langworthy (2) sobre as múltiplas atividades desenvolvidas por este pioneiro, atividades que
podem ter contribuído para a cedência britânica quando se discutiu o prolongamento do
distrito de Tete até ao paralelo 14. Este erudito americano preencheu a contento a lacuna que
parece verificar-se na interpretação de N. Newitt (3) que dedicou cinco magras linhas a
Wiese.
Não é meu propósito discorrer sobre a supracitada introdução. Acrescentarei apenas
informações fidedignas sobre algumas das atividades em que esteve envolvido Carl Wiese.
Durante o escrutínio que tive oportunidade de efetuar, durante dois anos, no arquivo da sede
lisboeta da Companhia da Zambézia, deparei com documentação inédita ou mal conhecida
sobre o dinâmico sertanejo alemão.
120
Entre estes documentos está o mapa publicado em 1892 (4). Antes de se referir a este
importante contributo, Langworthy (5) reconheceu que, como explorador, Wiese possuía
extenso conhecimento da área e das próprias línguas e costumes dos povos nativos. Como
resultado, ele foi simultaneamente mais preciso e mais detalhado nas suas participações para o
conhecimento cartográfico. Muito embora se tenha baseado nos mapas elaborados por
Livingstone nessa área, o seu constitui um documento mais sistemático. Contudo, por razões
que Langworthy não apurou o seu mapa não foi publicado pelos portugueses e, do mesmo
modo aquele que foi publicado em Londres não teria conseguido larga circulação e, como é
evidente, não havia merecido a atenção da “Royal Geogaphical Society” de Londres.
A verdadeira razão parece ser diferente da que foi sugerida pelo historiador americano.
Baseia-se ela no facto do documento estar recoberto por um grande número de informações
impressas em letra miúda, com intenções de carácter publicitário, sobre a orologia, a
hidrografia, os grupos étnicos, as principais rotas, as regiões auríferas, os bens produzidos, as
estações comerciais, os mais antigos mercadores de Tete, os contactos com o litoral, as
ligações marítimas, etc, etc.
Como não me canso de afirmar e de repetir, esse precioso e volumoso acervo
documental, foi mandado destruir, pouco depois, pelos corpos gerentes daquela empresa que,
desde 1892 a 1930, teve importância fundamental desde o Zumbo até ao rio Licungo, e desde
Marromeu até Missale.
Bibliografia
1) WIESE, Carl (1891). Memorandun acerca das expedições realizadas na Zambezia Septentrional
durante os annos de 1885 a 1891. Lisboa, Imprensa Nacional.
2) LANGWORTHY, Harry W. (1983). Expedition in East-Central Africa, 1888-1891, a report by Carl
Wiese. Norman, University of Oklahoma Press, ed., introd. & coment.
3) NEWITT, Malyn (1995). A History of Mozambique. Londres, Hurst & Company, p. 352.
4) Ruggs’ New Map of the Western Nyassaland Gold Fields, Specially Illustrating the Explorations of
Carl Wiese (1892). London, Rowland Rugg.
5) LANGWORTHY, Harry W. (1983), Idem, p. 7.
121
Bibliografia
1) WIESE, Carl (1891/2). Expedição portuguesa a Mpezene. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, de 10ª série (6/7): 235-
273 até 11ª série (8): 519-599.
123
O enigma das máquinas trituradoras
Bibliografia
1) MAUGHAM, R. C. F. (1906). Portuguese East Africa – The History, Scenery & Great Game of Manica
and Sofala. London, p. 276.
2) LEAL, Fernando da Costa (1943). Viagem na África Austral. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 61ª série (5/8) p.
327.
126
O êxodo da população
Langworthy terminou a sua magnífica introdução com uma tentativa séria para
compreender as complexas e antitéticas motivações que levaram Wiese a abandonar
Moçambique, país “onde recebera tantas provas de deferência e que sempre amara e
considerara como segunda pátria”.
127
Sugiro que também tivessem importância outros fatores pessoais como o desgaste pelos
esforços desenvolvidos nos mais primitivos sertões durante mais de trinta anos, sempre sob a
ameaça das temíveis doenças tropicais. E, enfim, o desejo de passar os últimos dias da sua
vida com o regalo de uma aposentação confortável, a exemplo do que fizera Paiva d’Andrada,
quando se fixou em Paris.
Bibliografia
1) WIESE, Carl (1907). Zambezia – a “Labour Question” em nossa casa. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, 25ª série:
241-47.
2) MACHADO, Mariano (1901). Arquivo da Companhia da Zambézia, volume com o nº 13: Administração
em África – julho a dezembro – CENTRAL, carta nº 146, a 5 dezembro, Lisboa.
128
A intervenção do agente britânico Alfred Sharpe, ao serviço de Cecil
Rhodes
Bibliografia
1) LANGWORTHY, H. (1983). Alfred Sharpe. In: Expedition in East-Central Africa, 1888-1891, a report
by Carl Wiese. Pp. 359/60.
2) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press, p. 131.
3) SHARPE, Alfred (1901). Trade and colonisation in British Central Africa. Edimburgo, Scottish
Geographical Magazine, pp. 129/48.
129
Jack, a fiel, prestimosa e inseparável montada de C. Wiese
Tem merecido alguma atenção o facto das sociedades dispersas por toda a África
subsahariana manifestarem pouco ou mesmo nenhum interesse pelo aproveitamento da
energia animal. Nunca houve tentativas persistentes para domesticar animais selvagens como
a zebra, o búfalo, o cudo, o elefante, etc.. Raros europeus conseguiram domesticar alguns
destes animais a partir de crias deixadas por fêmeas abatidas durante caçadas. Ficou célebre,
na tradição oral dos colonizadores, o elefante que diariamente transportava o saco dos
correios, entre Catembe e Bela Vista. Há também uma curta referência de J. M. de Lacerda a
certo povo de Angola que, como montadas, utilizava regularmente bois-cavalos (p. 66).
Pois Carl Wiese teve a brilhante ideia de adquirir um jumento ao europeu João Martins,
residente em Tete. Nesta vila, antes da implantação do moderno conjunto de bombagem,
depósito e canalização de água para consumo doméstico, ainda conheci o recurso
generalizado a esses animais de carga, para distribuir água trepando pela margem direita do
Zambeze. João Martins não cuidou de os domesticar e de os treinar para transporte de pessoas
ou de cargas. Deixara-os crescer em total liberdade e, com isso, desenvolveram instintos
ferozes. Na verdade, com coices e dentadas, afugentavam qualquer manada de bovinos. Wiese
procedeu de forma diferente. Sobrecarregou o animal com pesadas caixas de munições.
Passou a transportar, quando necessário, a carga correspondente à de três carregadores
nativos.
Já Wiese fazia uso normal do seu Jack quando iniciou a expedição ao Mpezene, a 7
março 1889. Durante cerca de vinte meses, percorreu com ele milhares de quilómetros.
Vitimado pela mosca tsé-tsé, só veio a falecer a 15 novembro 1890, isto é, no dia anterior ao
segundo regresso de Wiese à sua povoação de Mtengulene, no reino de Mpezene.
Jack deu, pelo menos uma vez, prova concreta de ser dotado com a chamada
“inteligência animal”.
Antes do relato, devo confessar que – malgrado as falhas de memória que me
dificultaram a vida normal e, por maioria de razão, os esforços de investigação – fiquei tão
vivamente impressionado que retive para sempre esse facto de Jack ter sido o principal ator de
um episódio insólito mas que tem sido injustamente silenciado.
Durante uma paragem em determinada povoação, tinha nela ocorrido um falecimento.
Segundo os costumes, um grupo de carpideiras chorava copiosamente e soltava gritos agudos
e prolongados, Jack aproximou-se com o maior respeito e adicionou os seus zurros aos
prantos das mulheres. Estas ficaram silenciosas e decerto surpreendidas. Jack também
emudeceu e ficou estático. Assim que recomeçaram, Jack voltou de novo a zurrar. Isto
repetiu-se por várias vezes. Terminada a cerimónia funerária, o grupo das carpideiras
debandou. Pouco depois surgiu uma mulher, que trazia nas mãos uma malga com alimentos.
Foi solicitar a Wiese autorização para oferecer aquela recompensa a Jack como
agradecimento por haver participado nas lamentações pelo falecido.
Este episódio tão simples como significativo, transporta-me para outra recordação
duradoura ocorrida em 1947, quando chefiava o Posto de Lioma. Encontrava-me nas
onduladas encostas do monte Maguè, a norte do Namuli, monte que também ultrapassava os
dois mil metros de altitude. Subi a custo e tive a sorte de abater um javali. Foi resolvido ali
passar a noite num descampado, anexo a um afloramento granítico. Os poucos homens que
me acompanhavam acenderam a indispensável fogueira e assaram a carne nas brasas.
Enrolado numa manta, escutei as conversas. Corneta, o veterano sipaio e destemido caçador,
contou um episódio venatório durante o qual tinha conseguido adivinhar o pensamento do
animal que queria abater. Ingenuamente indaguei: “Então os animais selvagens também
130
pensam?”. De imediato, Corneta respondeu em tom perentório e até com laivos de censura,
por o branco ter ousado levantar dúvidas sobre aquela transparente evidência: “Pensam, sim
senhor!”. E assim me calou.
Mais para diante, recordou a sorte que o bafejou quando finalmente conseguiu lobrigar
o velhíssimo e gigantesco elefante solitário que, ano após ano, percorria centenas de
quilómetros, por um trilho bem definido, entre Malema e Milange. Da cabeça daquele Moby
Dick do sertão africano, pendiam enormes pontas de marfim escurecido que se arrastavam
pelo solo. Todo o seu pesado e impenetrável corpo estava marcado por inúmeras feridas
saradas, feitas por balas e por lanças.
Mandei estender a esteira e enrolei-me numa grossa manta. Corneta e os demais
continuaram a cochichar à roda da fogueira, tão insensíveis à frialdade da montanha como o
eram aos grandes calores das terras baixas.
131
12º
DOCUMENTO
Ngungunhane, o vencido Imperador de Gaza e sua comitiva.
Exílio e morte nos Açores
Este epílogo tem como principal objetivo desqualificar certas interpretações que se nos
afiguram algo fantasiosas e até mesmo tendenciosas. Também serão levantadas algumas
questões que merecem mais profunda reflexão. Com o devido respeito, não vemos razão para
que à vida de Napoleão Bonaparte, na ilha de Santa Helena, seja concedida maior importância
histórica do que à vida de Mudungaz Ngungunhane, na Ilha Terceira. Este último foi tratado
com a maior humanidade possível. Comparem-se os pormenores que adiante apresentamos
com o amargo comentário feito por Ch. Moreau-Vauthier (1) biógrafo do grande imperador
francês: “Este cativeiro, que dá uma tão triste ideia da humanidade nos seus rancores e nas
suas vinganças, encontra um contraste magnífico na própria pessoa do prisioneiro. A vítima
eleva-se enquanto o seu carrasco se avilta”.
Porém, antes de apresentar alguns elementos seletivamente verídicos sobre a vivência
quotidiana dos exilados na conhecida comunidade açoriana, parece oportuno fornecer um
resumo retroativo do papel que foi desempenhado por Nuamantibjane, o último régulo da
Zixaxa. Em obediência ao direito consuetudinário em matéria de sucessão, teve a infelicidade
de assumir as rédeas do poder pouco antes do colapso do império vátua. Aconteceu que em
agosto 1894, por razões polémicas, Mahazulo, soberano das terras de Magaia (um de entre
vários outros que se dispersavam pela região que circunda a vasta baía de L. Marques, a
melhor de toda a África Oriental) tomou a grave decisão de se revoltar abertamente contra a
incipiente ocupação efetiva portuguesa. Nessa instância pediu apoio militar ao seu colega que
dominava as terras de Zixaxa, um jovem inexperiente que fôra recentemente empossado. Foi
importante o facto de grande número dos guerreiros ser favorável ao pedido formulado por
Mahazulo. Quando os Portugueses, invocando a vassalagem, ordenaram a Nuamantibjane que
mandasse atacar os domínios de Magaia, aconteceu que os dirigentes de Zixaxa, apoiados
pelos guerreiros, impediram o régulo de cumprir aquela obrigação e optaram por participar no
ataque contra a então vila de Lourenço Marques.
A 4 outubro dá-se o assalto ao Quartel da Polícia pelos homens da Magaia e, segundo
parece, nesta primeira ofensiva contra as posições portuguesas, já tomaram parte alguns
guerreiros de Zixaxa, embora sem o consentimento de Nuamantibjane, o mesmo sucedendo
no dia 14, quando no ataque à cidade, forças da Zixaxa, comandadas pelos secretários do
jovem régulo, Magane, Tinguiça e Machipenguana, ostensivamente alinharam já ao lado dos
atacantes oriundos da Magaia.
Nuamantibjane, como todos os chefes que vêem os acontecimentos marchar avante dos
seus desejos, acabou por consentir. Desde então, a sua ação passa a ser nula. Após a derrota
de Marracuene, o decreto subscrito pelo Comissário Régio, datado de 28 maio, sanciona a sua
deposição, passando desde então a ser considerado rebelde e foragido.
Em fins de maio, Nuamantibjane tinha retirado para Magul e o avanço português
prosseguiu incessantemente. A 25 julho apresentou-se em Manjacaze, acompanhado por
duzentos dos seus guerreiros, para prestar definitiva vassalagem ao senhor de Gaza. Mas logo
a 8 setembro, mesmo com o auxílio de tropas vátuas, foi mais uma vez vencido no memorável
combate de Magul.
132
Desde então, sem guerreiros nem autoridade, Nuamantibjane conformou-se com a
condição de simples refugiado nas terras de Ngungunhane. Perderam quaisquer significados
as formas de resistência que eventualmente tentasse. Mais tarde – após a derrota de Coolela e
da destruição pelas chamas da capital de Gaza – foi localizado pelo tenente Sanches de
Miranda na povoação de Xissamo. Após estes acontecimentos, Nuamantibjane foi removido
para L. Marques, sendo exposto a 6 janeiro 1896 na Praça 7 março, juntamente com os outros
prisioneiros de guerra e suas mulheres Pambame, Oxaca e Debeza. Também foi exilado e
logo embarcado no “África”, onde ocupou com as suas mulheres uma parte do corredor da
coberta da popa de bombordo, tendo como cama a tarimba inferior.
A 13 março o “África” chegou ao Tejo, onde os prisioneiros de guerra eram aguardados
pelo ministro do Ultramar, por António Enes e por muito povo, sendo Ngungunhane e
Nuamantibjane interrogados na sala da Balança, no Arsenal, servindo de intérprete o coronel
Serra, acusando-se mutuamente culpados da guerra contra os brancos.
Cinco carruagens conduziram os vencidos para o Forte de Monsanto. Ocupando o
quinto carro juntamente com o Ngungunhane, ia Nuamantibjane sentado no banco da frente
ao lado de Molungo e assim ladeados por dois soldados de cavalaria atravessaram Lisboa de
lés-a-lés, admirando ruas e praças que nunca haviam sonhado ver, e portando-se com
extraordinária compostura, como se sempre tivessem andado de carruagem.
Apenas lhes faltavam as esposas. Muito embora tivessem embarcado no navio-
transporte “África”, sete das pertencentes a Ngungunhane e três das que dispunha
Nuamantibjane, esses pequenos haréns não chegaram efetivamente à Terceira, ao contrário do
que tem sido afirmado. Em Lisboa, a poligamia dos dois famosos rebeldes foi satirizada por
Bordalo Pinheiro e acabou por ser considerada inaceitável e até ofensiva pelas autoridades
portuguesas, sobretudo religiosas, que, como é natural, acalentavam a esperança de converter
e batizar tão contumazes pagãos. Mas essas autoridades ao pretenderem impor-lhes as
virtudes do matrimónio monogâmico depararam com uma reação insólita e digna de ser
romanescamente explorada: as rainhas, atuando em total solidariedade, apresentaram esta
condição séria e irrevogável: ou partiam todas ou não partia nenhuma para os Açores!
Julgamos ter sido este o motivo que levou à sua deportação coletiva para S. Tomé, onde
parece que vieram a falecer. O régulo ronga (mais conhecido por Zixaxa) conseguiu
compensar com os recursos locais a falta de companhia feminina. Adotou a língua e os
costumes portugueses, incluindo o sacrossanto batismo, casou canonicamente com uma
açoriana e teve dela um filho que veio a exercer o honroso ofício de marceneiro.
Chegados à fortaleza de Angra em 27 junho 1896, Mundagaz, conhecido por
Ngungunhane, seu filho Godide, seu tio Molungo e, finalmente, Zixaxa, o vencido régulo
ronga. Não se deve esquecer que foram sempre acompanhados pelo cozinheiro privativo de
Ngungunhane. Segundo os relatos da época o aspeto dos prisioneiros comoveu o público
açoriano tanto pela “penúria dos trajes como pelo ar deprimido que exibiam, convencidos que
estavam de que vinham para morrer”.
Eis como Pedro de Merelim (2) descreve a chegada, numa antiga publicação terceirense
chamada “Atlântida”: “Ngungunhane caminhava vagarosamente, precedendo os três
familiares – filho, tio e sobrinho –, estatura média, obeso, atarracado, descalço, fralda de fora,
uma trouxa ao ombro, a escorrer suor. Godide, um simples rapazola, alegre, tagarela, ingénuo,
inexperiente da vida. Molungo, a recordar a espécie árabe, feições regulares, delgado, alto,
aprumado, olhar perscrutador, incerto e desconfiado. Zixaxa, o régulo valente e destemido,
rapagão forte e vigoroso, aristocrata da sua raça, porte altivo, os seus movimentos e olhar
incisivo denunciavam vitalidade física e a energia de um selvagem audacioso e traiçoeiro, a
suscitar admiração. As pequenas trouxas que transportavam continham toda a sua roupa.
Vestiam calças de brim que, para a viagem, lhes haviam sido distribuídas em Monsanto.
133
Embora tratando-se de peças novas de vestuário, não lhes serviam. As de Ngungunhane logo
se rasgaram. Os quatro negros, perante o olhar curioso do público numeroso, subiram as ruas
Direita e da Sé, encaminhando-se para a fortaleza de S. João Baptista, onde chegaram pelas
quatro horas da tarde. Após serem entregues às autoridades e ser assinado o devido recibo, a
escolta regressou de imediato a bordo. Fornecida roupa nova aos prisioneiros, foram estes
depois “sempre bem tratados” por instruções expressas do comandante da fortaleza, podendo
circular pelo pátio durante o dia e só à noite recolhendo às casas que lhes serviam de celas.
Ao tempo do governo militar de Pimenta de Castro nos Açores foi concedida aos
exilados africanos autorização para saírem e andarem por toda a ilha, altura a partir da qual o
bom relacionamento com a população terceirense se tornou histórico. Passavam muito tempo
em caçadas a coelhos, em que Zixaxa era perito. Ao jantar, “guisavam-nos com batatas e
banqueteavam-se, sem faltar, regra geral, um litro de vinho de cheiro a cada um”, diz
Merelim. Os quatro confecionavam, para se entreterem, “condessas e outras espécies de
cestos de vime e palha” que vendiam com facilidade aos transeuntes.
E este cronista assinala também: “Os quatro pretos alcançaram nas ilhas tal grau de
popularidade que ao palco do Angrense, a primeira casa de espetáculos da cidade, como
assinala um jornal da época, subiu a opereta “O Ngungunhane nos Açores”, expressamente
escrita por um moço terceirense”. E mais à frente descreve:
Auferiam o soldo diário de 260 réis com direito a vestuário e alimentação (4). António
Godide, seu filho, foi o segundo a perder a vida, vitimado por tuberculose pulmonar com
apenas trinta e poucos anos, no último dia de julho 1911. Catorze meses depois, no final do
dia 5 outubro 1912, bateu a última pulsação, o coração do velho e taciturno Molungo.
Sucumbiu a uma gastrite aguda, segundo diagnóstico oficial.
Roberto Zixaxa viveu, ainda, sozinho, de certo saudoso dos companheiros mortos.
Chegou a exercer, por nomeação em ordem de serviço, as funções de guarda do Monte Brasil.
Sendo o que possuía mais distinto porte, e inteligência superior aos outros, logrou falar
corretamente o idioma pátrio. De uma mulher do povo teve um filho, nascido em Angra, a 27
setembro 1912, ao qual deu o nome de Roberto Frederico Zixaxa e que veio a desempenhar o
ofício de marceneiro.
Bibliografia
1) MOREAU-VAUTHIER, C. (s/d). Napoleão 1769-1821. Porto, Livraria Chardron, Lello & Irmão, L.da.
2) MERELIM, Pedro de (1960). Os Vátuas na Ilha Terceira. Açores, Atlântida, IV, 317-318.
3) MERELIM, Pedro de (1960). Idem.
4) WHEELER, Douglas L (1968). Gungunhana. In: Bennett, Norman R.; “Leadership in Eastern Africa: Six
Political Biographies”, Boston University Press.
135
13º
DOCUMENTO
A história do Derre e dos prazos Massingire e Marral
por:
José de Magalhães de Menezes
Este documento, descoberto no antigo arquivo da sede da Companhia da Zambézia, em Lisboa, tem como
principal objetivo defender a distinção que, em estudos históricos, deve ser observada entre os povos
vulgarmente designados pelos etnónimos de Massingires e Macololos. A ortografia foi atualizada.
Há já alguns anos que entre os dois grandes prazos Massingire e Marral se debate a
questão dos direitos sobre as terras de Derre, sendo apenas há alguns meses resolvida pelo
Ex.mo Sr. João de Azevedo Coutinho, digníssimo governador do Distrito da Zambézia. Fomos
contemporâneos desse debate, temo-lo seguido de perto e, habitando no Massingire há perto
de três anos lembrámo-nos de sucintamente lançar em meia dúzias de folhas de papel,
algumas linhas desapaixonadas referentes àquelas terras.
Não fazemos crítica porque não nos achamos a isso habilitados. Relataremos parte da
história do Derre baseada em testemunhas coevas, suas riquezas e vantagens com que fica o
atual possuidor ou arrendatário. Ao Ex. mo Sr. Mariano José Machado, íntegro diretor da
Companhia da Zambézia em África e atual representante dos arrendatários do Massingire
tomamos a liberdade de oferecer este mesquinho produto da noite de insónia, esperando que
nos releve no atrevimento.
Quelimane, março 1898
José de Magalhães de Menezes
O Derre e as terras de M’Canga e de Berna são, por assim dizer, o principal caminho de
todo o marfim e mais negócios que vêm ao Ingode e a Quelimane, saindo do Matipuir e
Malómuè. Sendo o centro de tão grandes riquezas não se deve admirar que tenha tantos
pretendentes. É um país bastante montanhoso, com serranias de grande altitude, sulcado por
numerosos rios e ribeiros. Os seus vales são fertilíssimos e neles se desenvolvem mantimentos
de toda a espécie como café, amendoim e gergelim. Também são abundantes as madeiras de
alta qualidade. Ali encontramos a imbilla, usada com vantagem em toda a espécie de
construções mas que já vai rareando nas margens do Chire e do Zambeze porque os indígenas
não só a empregam na confeção de lanchas e escaleres, como também abatem o arvoredo para
poderem cultivar plantas alimentares. Também abunda o mtondo, árvore de grandes
dimensões, e muito apropriada para o cavername das embarcações que sulcam o rio Zambeze.
Notável é também a muçukossa, avermelhada, muito consistente e própria para marcenaria.
Outra árvore, m’pique, produz frutos preciosos e semelhantes às atas. A mgonha e a muana
são árvores majestosas de que os indígenas se servem para fabricar grandes almadias de
quatro ou cinco bancos. Podemos também citar a muconite, um ébano cheiroso; o chinio,
empregado em tinturaria; a talala de que se fazem os arcos de guerra; o mango, trepadeira
que produz a borracha quando inciso; o nhamazonzoro, o satombo, o m’kundo-kundo,
todas com propriedades medicinais e, enfim, o muavi, veneno que entra na confeção do
temível ordálio, o julgamento divino, etc., etc. Quando à fauna, ressalta o elefante, njovo; o
rinoceronte, puete; o hipopótamo, penembe; o búfalo, nhumbo; o leopardo, bonga; etc., etc.
Nos rios há variadíssimas espécies de peixes. São inúmeras as espécies de aves, gastaria
folhas a descreve-las. Sobre a qualidade dos solos nada diremos pois a isso não estamos
habilitados. Entre os moradores há a opinião geral de que quem ali intentar a cultura do café,
alcançará resultados ótimos. As árvores-da-borracha são abundantíssimas, pena sendo que os
indígenas, para aumentarem a produção para venda, triturem de tal forma as raízes que
142
ocasionam a morte da trepadeira. Também para obterem a cera destroem por completo as
colmeias quando usam fogo.
Posto isto passaremos à conclusão porque o texto já vai longo em demasia.
Conclusões
A questão do Derre era sem dúvida uma questão de limites, isto é, a qual dos prazos,
Machinjiri ou Marral, deveria o seu mussoco ser adjudicado? Foi esta questão, que já foi
levada a Moçambique em 1894… sabemos nós que fora tomada a decisão de se seguir uma
linha pela cumeeira da serra do Derre de modo a que esta ficasse dividida em duas partes,
uma das quais seria para o Machinjiri e a outra para o Marral, mas esta decisão não passou da
secretaria do governo-geral. Isto efetivamente era racional e justo, mas temos a notar, à vista
do resumo histórico que estas precedem, que o M’Canga, desde os tempos de Matequenha e
mais tarde com Cardoso, também pagou ou o tributo ou o mussoco. Pergunta-se: por que
razão o chefe gentílico mandava o mussoco aos outros tendo o Marral direito a ele?
Mas há mais. O que se entende por Derre? É o território do M’Cangaceiro? Ou também
os distritos de M’Gorro, Negogoro, M’Canga-a-Malimba, Tagui-u-a e Capindo? Se o
M’Canga não pagava mussoco a ninguém, e os aludidos inhacuáuas o pagavam ao Machinjiri,
como é que eles pertenciam ao Derre? Dizemos isto porque na decisão ultimamente tomada,
estes inhacuáuas passaram para o Marral, tendo sido o administrador do Machinjiri obrigado a
devolver os mussocos já recebidos.
Capindo é puro Chiperoni e nunca Derre, Capindo fica na extremidade da serra que olha
para Chilomo, a poucas horas do Sapanda Chiromo no território do inhacuáua Gumbe.
Capinda sempre reconheceu a autoridade do inhacuáua Murille, como ele próprio nos disse
por varias vezes e, quando se apresentou em Netumbe, foi acompanhado pelo inhacuáua
Murille e por mais ninguém. Porque é que quando algum elefante morria nas terras de
Capinda, o Sr. Romão, agente da autoridade do Marral, não mandava apreender os caçadores,
ou pelo menos a “ponta da terra”?
Estas considerações teriam cabimento se a firma beneficiária do arrendamento do
Machinjiri fosse Pereira, Dúlio & C. a ou qualquer outra. Mas desde que é a Companhia da
Zambézia, o caso muda completamente de figura.
Julgamos que nos contratos da Companhia da Zambézia com o governo, há uma
clausula determinando que “todos os prazos cujos contratos de arrendamento forem
rescindidos ou hajam caducado por qualquer motivo, passarão para a administração da
Companhia, e que a todos os terrenos compreendidos nos limites dos territórios da
Companhia, que não estejam aforados ou arrendados, também sofrerão o mesmo destino! É
isto verdade? Então como o Derre não estava debaixo da direta ou indireta administração de
ninguém, ou melhor, como a ninguém estava arrendado, seguramente que deveria passar para
a Companhia da Zambézia, que o poderia juntar ao Machinjiri, ou dele fazer um prazo à parte,
conforme fosse a sua vontade. Lembramo-nos de que, por várias vezes, o Ex. mo Sr. Mariano
Machado, digníssimo diretor da Companhia da Zambézia em África, nos ter dito que
precisava de homens fossem recensear o Malomuè e os picos de Namuli e M’Canga. Qual é o
caminho para os picos de Namuli senão o Derre do M’Canga? Se o diretor da Companhia da
Zambézia em África já contava com M’Canga, decerto que se fundava nas cláusulas dos
Estatutos da Companhia. Quais são os direitos que o prazo Marral pode apresentar para firmar
as suas pretensões ao Derre? Os que se baseiam no facto dos indígenas garantirem preferir o
143
Sr. Romão a qualquer outro arrendatário? Mas nós – como os demais que lá forem – podemos
conseguir o mesmo desde que distribuemos à larga aguardente e dinheiro. Conhecemos os
meios que o Marral empregou para chamar a si o M’Canga Corrio. Pelo primeiro foi dito ao
segundo que, nos primeiros tempos, só pagaria uma pequena porção de tabaco por cada
palhota! Ora no Derre o tabaco é tão abundante que não lhe é dada qualquer valia! Somos
contemporâneos destes factos, estávamos então a meio dia do Derre e ouvimos os
comentários feitos pelos próprios habitantes. Mas meramente por o M’Canga preferir o prazo
Marral, não se pode inferir que a razão e o direito estejam do seu lado. Passando agora para a
geografia. Qual é o limite natural entre os dois grandes prazos Machinjiri e Marral? Não é o
caudaloso Lualua? Sim é esse mesmo, coincidindo com o limite antigo entre o M’Canga e o
Nhamicunguro, outrora enfiteuta do Marral. Sendo este limite natural tão bem colocado, tão
visível, como é que se corta sem piedade o território do Machinjiri?
Temos acabado; já nos não sobra tempo. As dispersas considerações com que
terminamos o nosso trabalho, não envolvem qualquer crítica. São meras conclusões diretas
dos episódios históricos que descrevemos nas páginas anteriores. São a expressão sincera do
que sentem aqueles que, como nós, conhecem palmo a palmo, não diremos para além do
Derre, mas do Chire ao Derre, ao Macumbe, ao Ruo, ao Chindio, e ao Mcombezi, a mais
pequena parcela de terreno, o mais pequeno monte, o regato, a povoação e a gente.
Março de 1898 (a)… José de Magalhães de Menezes
Em primeiro lugar ele demonstra a magna importância que era outrora dada ao respeito
pelos limites territoriais, mesmo nas mais pequenas comunidades políticas gentílicas. A
violação deliberada desses limites era suficiente para desencadear coletivas reações bélicas
que poderiam prolongar-se por tempo indefinido, provocando morticínios ou pelo menos
144
amargos sofrimentos. Tal se devia à enorme concentração de poderes que era atribuída aos
monarcas, com realce para os radicados nas crenças mágico-religiosas. Precocemente
desenvolvemos este tema na nossa “nota sobre o conceito de tribo em Moçambique” (1).
Exigia-se, a todos e quaisquer viajantes mesmo conhecidos, que suspendessem a sua marcha e
enviassem, a quem de direito, delegados portadores de oferendas, mesmo simbólicas,
solicitando a indispensável autorização para ser efetuada a travessia. É a todos os títulos
exemplar a visita efetuada em setembro 1827, à exploração aurífera de Inhaoxe, por uma
comissão de autoridades e moradores de Sofala. Oportunamente solicitámos a atenção dos
historiadores e dos antropólogos para as longas formalidades e para a complexidade dos
rituais e protocolos exigidos para a travessia do território tribal (2). Outra importante
constatação que ressalta do documento escrutinado relaciona-se com a exigência regulamentar
de serem efetuados recenseamentos da população, com o objetivo de se concretizar a
ocupação efetiva e de ser efetuado, dentro das normas vigentes, o pagamento dos tributos
fixados. Só aqueles que foram constrangidos a desempenhar, no chamado “mato”, as duras
tarefas do “arrolamento” podem avaliar os esforços, as privações de todo o género incluindo
na alimentação, nas deslocações, na falta de assistência médica, nas ameaças constantes de
miríades de insetos daninhos, nas inevitáveis precauções contra perigosas e omnipresentes
doenças tropicais, ressaltando a prévia fervura das águas mesmo as destinadas a lavagens.
O governador de distrito da Zambézia referido na carta introdutória foi o célebre oficial
da Armada João António de Azevedo Coutinho Fragoso de Sequeira (vulgarmente
simplificado para Azevedo Coutinho) que exerceu as referidas funções de 17 abril 1897 até
novembro 1898. Nas suas memórias alude ao Guarda-marinha Fernando de Magalhães e
Meneses, Conde de Vilas Boas que “com seu irmão José de Magalhães Meneses, Barão de
Viv’alva, tanto se distinguiram nas suas carreiras de coloniais ilustres e de soldados africanos
cheios de bravura e decisão (3). A autoria do documento deve-se decerto a este último, o que
fornece explicação para o elevado grau de cultura e sensibilidade que emana do relatório
supracitado, é tentador suspeitar que haja quaisquer relações familiares. Mariano Machado
aparece como subscritor das cartas manuscritas da administração em África que fomos
encontrar no antigo arquivo da Companhia da Zambézia, e cujas referências aparecem
reproduzidas nesta coletânea.
O comandante José Cardoso referido na terceira página, desempenhava as funções do
comandante militar de Massingire quando detetou e transmitiu a Serpa Pinto os primeiros atos
de rebeldia dos Macololos que de início abriram fogo contra o vapor Lady Nyassa,
pertencente à “African Lakes Company”.
Romão de Jesus Maria referido na 4ª pg. do mesmo inédito, era também arrendatário de
prazos cuja integridade e eficiente cooperação mereceram justo elogio a Azevedo Coutinho,
como se pode admirar no trecho que se transcreve: “Dos filhos da terra tinha
incontestavelmente a minha consideração e preferência R. J. M., que há muito conhecia,
arrendatário de prazo Marral de quem tenho falado e que tão relevantes serviços prestou à
Nação, auxiliando com sipais e sempre com a maior dedicação, bom conselho e prática, por
vezes com o maior risco e sacrifício, inúmeras expedições ao sertão em missões de paz e de
guerra”.
Durante a revolta de 1884 referida na 6ª pg. do mesmo inédito, foi cruelmente
assassinada a guarnição que ali se encontrava, incluindo alguns oficiais entre eles o próprio
comandante oriundo da família Almeida Queiroz citada por Azevedo Coutinho. O massacre
incluiu a esposa e os dois filhos do referido comandante. Pela carta que aqui se estuda é
possível identificar a proveniência dos revoltosos e a sua relação direta com o famigerado clã
Vaz dos Anjos que na década de 1840 se estabeleceu permanentemente na região de
Massingire, ocupando as terras mais baixas do rio Chire e ali construindo a poderosa
145
fortificação do Chamo. Malyn Newitt fornece suficientes pormenores sobre os malefícios
causados pelas atividades terroristas e escravistas desta dinastia (4).
Os rebeldes avançaram em direção a Mopeia massacrando e pondo em debandada a
população nativa. Foi nesta contingência que sobressaiu a ação heroica de Caldas Xavier que
– em situação de licença ilimitada – dirigia a empresa agrícola que Paiva Raposo tentava
fundar na grande concessão que lhe fora atribuída. Aquele militar, acompanhado por seu
irmão quase cego e pelo cidadão britânico Robert Penderson, técnico da empresa,
entrincheiraram-se num armazém e, reagindo com fogo vivo, resistiram durante sete horas aos
sucessivos assaltos. Já exaustos e feridos foram salvos, como refere Magalhães de Menezes,
por uma coluna de quinze estrangeiros vindos de Quelimane, escoltados pelos seus servidores.
Atacaram pela retaguarda e puseram em fuga os revoltosos. Não foi possível identificar esses
aliados estrangeiros.
Mário Costa faz ponderosas reflexões sobre tão épico combate:
Na sequência desta revolta foi nomeado José Cardoso como comandante militar de
Massingire. Já acima o referimos como colega de Serpa Pinto. Azevedo Coutinho também faz
referências elogiosas ao empresário Dúlio Ribeiro, mencionado por Magalhães de Menezes.
Bibliografia
14º
DOCUMENTO
Esforços colonizadores da Companhia da Zambézia
“Relatórios e Contas”
***
149
A mais imparcial análise dos relatórios da C. Z. quando acompanhada do pleno
conhecimento das condições e das dificuldades em que foi desenvolvida a sua administração
africana, demonstraram cabalmente que a Companhia não descurou a valorização económica
das suas concessões.
No setor agrário diversas foram as experiências levadas a efeito com as culturas da
cana, da borracha, de café, de oleaginosas, de arroz, de algodão e principalmente de coqueiros
que tem plantado e cuidado em elevado número. Entretanto intensificou a criação do gado, e
continuou os ensaios ou a exploração das culturas de quina, baunilha e mandioca para
sustento das populações indígenas. Apesar de todos os contratempos, a C. Z. continuou a
ocupar novas regiões, a fundar novas estações e a explorar as indústrias e culturas já criadas e
iniciou-se a do sisal.
Durante o período de 1904-1906 continuou trabalhando com método e tenacidade,
transformando-se e beneficiando-se os palmares de coco, iniciando-se culturas de coconote e
de algodão e desenvolvendo-se a pecuária. Continuou-se também neste período a instalação
de salinas e a exploração das fábricas para preparo de arroz e do cairo. Tendo sido detestáveis
os anos agrícolas de 1904 e 1905, com o que muito também sofreu a agricultura indígena,
teve a C. Z. no seu ramo comercial de restringir consideravelmente as operações, efectuando
apenas transações solidamente garantidas.
Malgrado o golpe sofrido com o ultimatum de 1890, é de elementar justiça reconhecer à
Companhia da Zambézia a primazia nas iniciativas de desenvolvimento desses sertões com
tão patentes potencialidades. Foram arriscados os investimentos de tipo capitalista mas
conseguiram-se êxitos nos trabalhos mineiros e alcançaram-se brilhantes resultados com as
plantações após tentativas que confirmaram as mais rentáveis.
A título de exemplo, relata-se com mais pormenor o fracasso em que redundou o longo
e considerável esforço que efetuou com a cultura do algodão, apesar de ter conseguido
financiamento estrangeiro e de contar com a dedicação de um qualificado agrónomo. Ela foi
iniciada em 1904, no Prazo de Bompona, com sementes das qualidades “Egípcio Abanni
Mitafifi” e “Americano Geórgia/Upland”. Nesta experiência foram colhidas, em 4,5 ha.s,
nada menos do que 2.335 quilos de algodão-semente depois transformado em 996 quilos de
algodão-fibra. Este obteve muito boa classificação na exposição colonial efetuada na
Sociedade de Geografia de Lisboa, em abril e maio 1905. Dois exemplares foram cotados a £
7 ¼, um exemplar a £ 6 ¼ e outro a £ 5 ¾ de pence. Apresentaram fibras com 1 ½ e 1 ¾ de
polegada. Este notável resultado levou a Companhia a fundar em 1906 o Sindicato de Estudos
para a Cultura de Algodão na Zambézia, o qual foi constituído por ela própria e pelo Banque
de l’Únion Parisienne. O Sindicato contratou e instalou na Zambézia o engenheiro agrónomo
René Ismalun, com o objetivo de investigar e de implementar a cultura. Procurou, desse
modo, tirar proveito das isenções oferecidas, em todas as colónias portuguesas, pelo Decreto
de 20 março 1906, isenções que se prolongavam por vinte e cinco anos. O mesmo decreto
chegou ao ponto de, em Angola, conceder um prémio de 30$00 por cada hectare onde tivesse
sido cultivado o algodoeiro.
O Sindicato logo iniciou, em Bompona, o plantio de dez hectares com a semente do
supracitado algodão egípcio, tendo conseguido produzir, por hectare, nada menos do que 251
kgs de algodão-fibra. Em 1907 a área cultivada subiu para 128 ha.s mas, devido à inesperada
invasão de uma doença criptogâmica, o resultado final foi dececionante. A persistência
daquela doença teve como efeito o esgotamento do capital de 250 mil francos, na base do qual
se havia constituído o dito Sindicato. Esta conjuntura explica a respetiva liquidação em 1909.
Em virtude das condições favoráveis que lhe foram oferecidas para aquisição do ativo,
decidiu a Companhia da Zambézia prosseguir com as experiências, desta vez com o algodão
Caravonica da Austrália e, ainda, com o de Moçâmedes (Angola). Em 1910 e 1911, como as
150
doenças e os parasitas continuassem a atacar as plantações, resolveu tentar a semente do
algodão americano Upland, aclimatado no vizinho protetorado britânico da Niassalândia.
Alcançou-se o magnífico resultado de 650 kgs de algodão-semente por hectare, ao qual
corresponderam 33% de fibra limpa. Em Manchester foi avaliado com a vantagem de 70 a 80
pontos sobre o Midlling Americano. Em 1912 atingiu 700 ha.s a área total semeada em
Bompona, Vila Bocage, Chilomo, Benga, Andone e Anguaze. Por desgraça – devido a
profunda e generalizada seca – a colheita foi praticamente nula.
Desde 1913 até 1927 a situação evoluiu, desastrosamente, como se segue: naquele
primeiro ano foram cultivados 1.186 ha.s e colhidas 147 ton.s, ou seja 125 kgs por ha.s;
Em 1914 a área cultivada foi reduzida para 593 ha.s, devido à entrada em vigor do
Decreto datado de 7 julho 1913 que criou um imposto de 4% ad valorem sobre os produtos
exportados. Naquele ano a produção própria atingiu 72,5 ton.s mas a proveniente dos
indígenas – a quem foram distribuídas sementes, com a garantia de ser fixado um preço para o
algodão-caroço – situou-se na casa das 160 ton.s;
A partir de então a evolução anual pode assim resumir-se:
1915 – Cultivados 371 ha.s, com colheita de 45.206 kgs;
1916 – Idem, respetivamente, com 540 ha.s e 286.148 kgs;
1917 – Colheita de 176.088 kgs;
1918 – A cheia cobriu totalmente a Ilha de Bompona e destruiu a totalidade das terras
cultivadas, o que, juntamente com o aparecimento de doenças, explica a suspensão
determinada em 1919;
1920 – Efetuaram-se plantações algodoeiras em quatro locais distintos, sendo
produzidos apenas 3.165 kgs de algodão-semente;
1921 – Em Bompona e Chilomo colheram-se, respetivamente, 7.885 e 4.778 kgs de
algodão-semente;
1922 – Apenas Bompona produziu 759 kgs de algodão-semente;
1923 – Em Chilomo foram preparadas terras para cultivo no ano seguinte;
1924 – Nesse mesmo local foram produzidas cerca de 30 ton.s de algodão-semente;
1925 – Idem, idem 89.587 kgs;
1926 – Idem, idem cerca de 12.000 kgs;
1927 – A Companhia desistiu completamente da cultura algodoeira por lhe ter causado
demasiados prejuízos. Este fracasso é merecedor de estudos comparativos porque a
investigação arqueológica prova que a cultura do algodão e o fabrico de tecidos se
encontravam largamente divulgados entre as comunidades nativas que entraram em contacto
com os colonizadores oriundos do Médio Oriente, já convertidos ao Islamismo. No ensaio
inédito sobre as “Culturas Obrigatórias no Moçambique Colonial”, serão dados mais
pormenores sobre este assunto.
151
Coleção de Volumes, numerados e datados, reunindo a correspondência da
Administração em África da Companhia da Zambézia (1892 a 1908)
***
153
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 2 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência do Ex.mo
Sr. P. d’Andrada – outubro 1893 a novembro 1894”. A documentação que nele se
encontrou foi classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem.
– Oito cartas em Tete, nas de 51 a 57, de 11 a 24/10, referindo os seguintes assuntos:
“aviso de saque”; “sumário de informações acerca da viagem e do pais e vários assuntos
indicados à margem”; “Angelvy e seu relatório mineiro”; “relatórios quinzenais de Mariano
Machado”; “Cocorico”(?); “aviso de dois saques”; “aviso de saque”. A carta s/n foi escrita por
outrem e assinada por P. A., sobre o Engenheiro de Minas Angelvy. Atenção carta nº 52.
– Cartas nºs 58 e 59, no Guengue e na Ilha Nhamungo, a 30/10 e 7/11.
– Telegramas e minutas sobre a construção de uma linha telegráfica de Cecil Rhodes,
com autorização do governador de Tete.
– Cartas nº 60/1 na aringa Mafambisse (ponta Sangara do prazo Guengue), a 24 e 29/11.
– Cartas nºs 62 e 63, no Sombo e Quelimane, a 14 e 17/12, resumindo as atividades que
P. A. desenvolveu desde 27 julho.
– Carta de Dúlio Ribeiro para P. A., idem, a 2/11, sobre a arrematação do monopólio do
comércio na Maganja da Costa.
– Telegramas. – Quatro cartas, no Sombo, nas de 64 a 67, de 21 a 31/12.
– Nota de despesas de 31/7.
– Caixas do administrador delegado, de agosto a dezembro 1893.
– Cópia de uma carta em francês, de 14/6, em Tete pelo Engenheiro Gaston Angelvy.
– Relatório elaborado e assinado pelo Engenheiro Gaston Angelvy, em Tete, a 15/8.
– Carta de Dúlio Ribeiro, Quelimane, a 29/12.
– Cartas nº 68, 69 e 70, no Sombo, a 1, 5 e 6/1.
– Quatro telegramas. – Carta nº 70-A, “Exposição feita pelo administrador delegado
sobre verbas pagas pelo Comité de Londres à Central African Company”.
– Quatro cartas de P. A., em Londres, desde 25/4 a 4/5.
– Relação de telegramas; seis telegramas diversos.
– Três cartas de P. A., em Paris, nos dias 5 e 6/5.
– Carta da Eastern Telegraph Inc, de 2/5.
– Cópias de telegramas em inglês.
– Três telegramas.
– Carta de P. A., em Lisboa, a 25 ou 28/9.
– Apontamento solto, sem data.
– Parecer elaborado em Paris, “na manhã de 13/10”.
– Proposta em Lisboa, a 15/10.
– Projeto de orçamento, apresentado a 15/11.
– Caixa do administrador delegado (janeiro a março 1894).
– Telegrama de 11/3.
***
154
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 3 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência de
Mariano Machado – agosto 1893 a fevereiro 1895”. A documentação que nele se encontrou
foi classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem:
– Relatórios em Tete, nas de 1 a 4, referentes às quinzenas de agosto e setembro 1893,
mencionando: rio Zambeze, transportes, comunicações, pesquisas, concessões, madeiras,
Kahorabassa, carvão, comércio, pessoal, Macanga (propõe a instalação de famílias boers);
chegada de dezoito almadias, uma das quais foi atacada por feroz hipopótamo.
– Modelos de impressos.
– Cartas nºs 68 e 69, em Maembe, aringa Restauração, a 25 e 29/1. Na primeira pede a
Paiva d’Andrada autorização para se deslocar a Portugal por motivo de doença.
– Cartas nºs 74, 76, 79, 80 e 81, em Tete, de 10 a 13/12. A segunda, que tem anexas
duas cartas em inglês, refere o incidente ocorrido durante a construção da linha telegráfica
Blantyre-Salisbury, protegida por lanchas-canhoneiras britânicas no Zambeze. A última narra
mais pormenores sobre este caso e anexa cópias de sete cartas em papel fino (uma delas
confidencial) e um “protesto” em papel timbrado da C. Z.
– Duas cartas não nas, a lápis, na “Fronteira Leste do Zambeze”, a 17/2/1894: a primeira
para P. d’Andrada e a segunda para o comandante militar Superior de Tete.
– Carta nº 84, a P.A., no rio Combeze, a 19/2/1894, c/ referência a Bívar e a (sua?)
aringa. – Carta nº 85, do mesmo local e data, ao comandante militar Superior de Tete.
Termina assim: “Todos os pretos do prazo Mocaca me afirmam que o seu limite Leste
foi sempre o rio Combeze e que além dele eram terras dos Macololos e do prazo
Maganja”.
– Carta nº 87/7, do mesmo local, a P. A. aos 21/2, enviando croquis geográficos com
indicação dos rios e da localização dos acampamentos (português e inglês).
– Telegrama. – Carta com quatro faces, no Chinde, a 23/2/1894.
– Carta em Tete, a 27/2/1894, acompanhada pela ata da sessão de desagravo realizada
por moradores de Tete, na Sociedade Literária, contra a afronta à soberania portuguesa
constituída pela construção, não autorizada, da linha telegráfica Blantyre-Salisbury. Atenção
ao papel manchado pelo excesso de tinta.
– Carta-protesto destinada à Rainha Victoria, sobre o mesmo assunto. Croquis. Atenção
à escrita muito manchada, quase ilegível.
– Catorze cartas, em Tete, n nas 92, 98, 104, 106, 108, 110, 123, 125/11, 127, 129, 132,
141, 148 e 159, de 27/2 a 2/5/1894, tendo as 108 e 110 anexos, a 123 os balanços de 1892 a
1893.– Carta, em francês, em Tete, a 5/3, ao Comissário de Sua Majestade Britânica, em
Zomba. – Carta, em francês, em Zomba, a 27/2, pelo representante da British Central Africa.
– Carta nº 162, no Chinde, aos 16/5/1894.
– Carta em Figueira da Foz, em julho 1894, reiterando o pedido de demissão.
– Resumo da exposição feita, a 24/8, por Mariano Machado, na sessão da C. Z.
– Carta de 6/9, em Lisboa. Carta a bordo do “Goth”, a 13/9. Carta no Cabo, a 3/10.
– Relatório importante, em Quelimane, de 30/10; entre as folhas 5 e 6 havia uma carta
do Chinde, com a mesma data, ass. pelo Inspetor dos Prazos da Coroa, Gorjão de Moura.
– Duas cartas em L. Marques, a 30/11 e 3/12/1894.
– Três ofícios nº 177, 187 e 202, a 23/11 e 26/12, o primeiro dirigido ao Inspetor dos
Prazos da Coroa. O segundo, com a mesma data, com resposta alusiva à renda devida pelos
Prazos. O terceiro, do mesmo Inspetor-geral Gorjão de Moura.
155
– Carta de Pereira, Dúlio & Cia, em Quelimane, a 24/11.
– Carta pessoal e reservada, em L. Marques, a 3/12.
– Três cartas em Quelimane, nºs 184/5 e 189, de 24 a 29/12; a última protesta contra o
imposto de palmeira acentuando que se exige demasiado dos “pretos fiéis” e nada se exige
dos “pretos rebeldes”.
– Carta de João Martins, em Tete, a 25/10.
– Nº 25, de 13/10/1894, do “Echo da Zambézia”, publicado em Quelimane, com
editorial pedindo a anulação do decreto de 28/6 que cria um imposto sobre o coqueiro.
– Cinco relatórios de Gustavo de Bívar Pinto Lopes, de 16/1 a 17/3: o primeiro foi na
aringa de Sangara (apresentação de chefes); o terceiro na aringa Restauração, em Maembe,
aos 18/2, sobre apresentações de muanamambos, sachekundas e mukatas).
– Relatório de Mário d’Andrade, em Sena, a 22/4.
– Carta e anexos de G. Bívar Pinto Lopes, de 6/5.
– Dois relatórios de Raphael de B. P. L., em Maembe, a 31/5 a 15/6, com anexos.
– Quatro cartas de Machado, em Moçambique, de 3 a 11/1/1895, anexos (29 fls.).
– Duas cartas de M. Machado, em Quelimane, a 20 e 21/1, (37 fls.).
– Carta de Cosme Dias, em Moçambique, a 16/1.
– Carta de R. R. Rodrigues, em Quelimane, a 22/1.
– Carta de J. de Moctesuma, em Quelimane, a 21/1/1895.
– Carta de Raphael Bívar Pinto Lopes, em Sangara, a 12/12/1894.
– Relatório volumoso do tenente A. Trindade dos Santos, em Tete, a 12/11/1894.
– Mapa do mussoco recebido.
– Carta nº 37/7 de Machado, Quelimane, a 14/2/1895 (v. férrea Quelimane – Maquival).
– Carta nº 38/8 de M. M., em Quelimane, a 14/2, com decalques das dirigidas a Carlos
Wiese e ao governador da Zambézia e com uma justificação das despesas.
– Carta s/n, de R. B. Pinto Lopes, em Sangara, a 29/12/1894, no prazo Benga, um tal
Carlos “obrigava os nativos a aceitarem fazendas para trabalharem para os ingleses”.
– Decalque da carta de M. M. ao Inspetor-geral dos Prazos, Quelimane, a 14/2.
– Decalque da carta de M. M. ao governador da Zambézia, Quelimane, a 14/2.
– Carta de Pereira, Dúlio & Cia. ao diretor da C. Z., em Quelimane, a 11/2.
– Carta em inglês da “African International Flotilla and Transport”, Chinde, 4/2.
– Decalques de três letras no valor de 1.000$00; 300$000 e 900$000.
– Carta de Cosme Dias, em Inhambane, a 8/2, com informações sobre o vencimento e as
regalias que auferia na Casa Regis.
– Oficio nº 21, de 15/2/1895, do Inspetor-geral dos Prazos da Coroa.
***
156
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 4 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência de
Mariano Machado – março 1895 a março 1896”. A documentação que nele se encontrou
foi classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem:
– Dez cartas de M. M. nas, com faltas, de 41/9 a 75/18, todas em Quelimane, de 18/3 a
19/5/1895. A nº 49, de 28/3, tem 48 fls., incluindo anexos de Raphael Bívar Pinto Lopes; João
Martins, capitão-mor de Tete; A. Huber, em francês; projeto de casa no Chinde.
– Carta em francês, no Chilomo, a 8/6. – Carta nº 90/19, idem, em Quelimane, a 6/6,
com missiva de 12/6 remetendo o “projeto de regulamento de cortes de madeira e lenha”.
– Três cartas extras, nos de 1 (incomp.) a 3, no Chinde e em Tete, de 19 a 30/6/1896.
– Quatro cartas de M. M., de Tete, nos de 101/20 a 117/24, de 16/7 a 22/8, 23 fls).
– Carta nº 131/25, idem, a 3/9/1895, com: a) decalque do contrato com o capitão
Mesquita e Solla; b) nota dos prazos do distrito do Zumbo; c) decalque de carta dirigida ao
Inspetor-geral dos Prazos; d) letra no valor de £ 400.
– Cartas nº 139/26 e 140/27, de Quelimane, a 29 e 30/9, constando da primeira o
contrato com José Thadeu da Silva. Carta em inglês, do Chinde, a 15/9/1895.
– Carta incompleta, em Quelimane, a 4/10/1895. – Carta nº 152/29, do Chinde, a 10/10.
– Letra no valor de 2.600$000. – Carta nº 156/30, Benga, em Tete, a 21/10.
– Carta com número ilegível, idem, a 28/10/1895.
– Dois decalques das cartas em francês, de Quelimane, a 11/11/1895.
– Duas cartas de M. M., idem, de 5 a 12/12/1895.
– Idem, idem, de dez. 1895, c/ croquis, na escala 1/250.000, entre Boroma e Chicoa.
– Carta em L. Marques, a 21/12, sobre a Portaria que autorizou a ocupação da Macanga.
– Folhas de pagamento, etc. (41fls.). – Relatório anual de 1895 (11 fls.).
– Duas cartas de M. Machado, em Quelimane, com anexos, de 17 a 27/1/1896.
– Cheque no valor de £ 7, do “Bank of Africa”. Carta s/nº, de Tete, a 10/2/1896, com
mapa da receita e despesa em 1895. Carta s/nº, de Tete, a 20/2/1896, com dois úteis mapas de
prazos. Importantíssimo relatório do capitão A. F. de Mesquita e Solla, da “Agência
Principal dos Prazos de entre Chicoa e Zumbo”, referente a 31/12/1895 (25 fls.).
– Duas cartas de M. M., em Quelimane, a 14/3/1896. – Valioso relatório do capitão
Mesquita e Solla, da Chicoa, a 31/1/1896, apresentado ao governador do distrito de
Zambézia. Versa os seguintes assuntos: a) margem esquerda do Zambeze sem ocupação
efetiva; b) arbitrariedades de Ignácio de Jesus Xavier – confidencial; c) posição dos chefes
indígenas; d) pagamento do mussoco em enxadas “a tradicional industria dos maraves”; e)
apontamentos importantes para a história da Marávia no arquivo da Secretaria de Tete; f) o rei
Undi; g) importância do clã Pire; h) incursões dos Angonis de Mpezene; i) famílias de Araújo
Lobo e de José do Rosário Andrade, este último alcunhado “Canhemba” (24 fls.).
– Cinco cartas de Quelimane, de 16 a 19/3, ver “termo de entrega de prazos”.
– Dezoito cartas de M. M., nas de 15 a 32, sendo as seis primeiras de Quelimane sem
data e as restantes do Chinde, com datas de 21 a 23/3/1896. Memória descritiva do Prazo
Nameduro, a 16/3/1896. Três cartas do Chinde, nº 33 a 35, a 23/3, com mapa de receita e
despesa de 1895 e decalque de carta a Freire d’Andrade.
***
157
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado o nº 5 e o seguinte rótulo: “Administração em África – Correspondência de
Mariano Machado – abril a dezembro 1896”. A documentação que aqui se encontra foi
classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem:
– Vinte e seis cartas do Chinde, nas de 36 a 61, de 13/4 a 16/5/1896.
– Idem, idem, nº 62, de 16/5, com carta de 30/3/1896, do capitão Mesquita e Solla,
chefe da Secção entre Chicoa e Zumbo, referindo: a) violências cometidas por policias
ingleses; b) auto de declaração de José Dionísio sobre o Prazo Mocingua; c) seus relatórios de
fevereiro e março; d) praga dos gafanhotos zomba; e) chefe feudal Vicente José Ribeiro, o
Chimbango; f) mussoco e recenseamento; g) incursões de M’Pezene; h) navegação no
Zambeze.
– Vinte e cinco cartas do Chinde, nas de 63 a 86, de 16/5 a 3/6/1896, sendo a nº 71 a
resposta em francês ao questionário sobre jazigos carboníferos e, ainda, revestindo a nº 84
excecional importância chegando a ocupar 35 fls.
– Dezasseis cartas do guarda-livros, no Chinde, nas de 87 a 102, de 3 a 28/6/1896.
– Duas cartas de M. Machado, no Chinde, nas de 103 e 104, de 9 a 10/7/1896.
– Idem, idem, nº 105, de 10/7/1896 denunciando a entrada no Tijungo de dois pangaios
com pólvora para os “rebeldes” da Maganja da Costa e, ainda, a falta de fiscalização naval.
– Vinte cartas de M. Machado, no Chinde, nas de 106 a 125, de 8 a 10/7/1896.
– Idem, carta importante nº 126/7, de 9/7/1896 acusando a prisão arbitrária em Tete, sob
condições desumanas, dos três filhos do arrendatário Araújo Lobo, educados em Lisboa.
– Idem, relatório excecional enviado do Chinde a Couvreur, a 9/7/1896 (24 fls.).
– Continuação de relatório anterior, 10/7/1896 (19 fls.).
– Relatório volumoso e precioso nº 128, no Chinde, a 18/7/1896 (71 fls.).
– Carta nº 129, do Chinde, a 14/7/1896, remetendo os seguintes relatórios: a) do capitão
Mesquita e Solla sobre Chicoa e Zumbo, a 13/6/1896; b) do administrador dos Prazos
Muchena, a 17/6/1896, sobre a resistência do muzungo Luís; c) de Henrique R., a 27/6/1896,
sobre a Muchena; d) de Carlos Chaby, a 30/6/1896, sobre Inhacatipué; e) do administrador
dos Prazos de Tete, na Benga (incompleto); f) de S. Aguas, Prazos Tipue e Massangano, a
31/5/1896; g) de A. F. Silva Júnior, a 4/7/1896, sobre Ankuasi; h) de Júlio Solla, em Pimbe, a
10/6/1896. Onze cartas do Chinde, nas de 130 a 141, de 16/7 a 3/8/1896; incluindo a nº 135,
de 28/7, uma cópia da carta dirigida ao Cor. Paiva d’Andrada, administrador da Companhia
do Báruè (em formação) e uma letra no valor de 659$030.
– Cartas nos 142 a 143, idem, de 13/8/1896, com anexos.
– Dezoito cartas do guarda-livros, nas de 144 a 161, de 21/8 a 14/12/1896.
– Carta de João Martins, s/n, em Tete, a 24/11/1896.
– Carta de Mariano Machado, s/nº, a bordo, a 14/12/1896 (convite de P. d’Andrada para
Inspetor da Companhia do Luabo tendo em anexo uma carta de Kammerman, em francês).
– Carta de M. Machado, s/nº, em Djibouti, de 21/12/1896.
– Sete cartas do guarda-livros, no Chinde, nas de 162 a 168, de 26 a 28/12/1896.
– Quatro Telegramas.
***
158
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 6 e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência de Mariano Machado – janeiro a junho 1897”. A documentação que
aqui se encontra foi classificada e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Quatro cartas do guarda-livros, no Chinde, nos 1/97 a 4, de 2 a 8/1/1897.
– Importante relatório do guarda-livros, no Chinde, referente ao período de 1 a
8/1/1897. Trata dos seguintes assuntos: no Prazo Massangano os colonos recusam-se ao
trabalho alegando que “não são escravos”. Alusão a um relatório de 50 páginas, cujo
paradeiro se desconhece, elaborado por Mesquita e Solla, referente ao período de setembro e
outubro. Nesse relatório o autor referiu-se a diversos assuntos: incursões de landins em Senga
e Pimbe; um chefe árabe, súbdito do Sultão de Zanzibar, pretende estabelecer-se com cerca de
quarenta dependentes nas terras do comando da Chicoa, procurando fugir ao jugo britânico;
afirma que a maioria dos alunos das missões é composta por menores comprados ou
resgatados da escravidão em que se encontravam e tornam-se mais tarde nos Muzungos que
raramente seguem os preceitos da religião que aprenderam. A página 8 o guarda-livros
presta os seguintes esclarecimentos: “São estes os tópicos do extenso relatório do Sr.
capitão Solla – cuja valiosa colaboração perdemos devido à proibição imposta pelo Sr.
governador do distrito”.
– Carta nº 22/2, do guarda-livros, Chinde, 12/1/1897.
– Carta s/n, de M. Machado, Chinde, 18/1/1897 (entrev. Mouzinho de Albuquerque).
– Seis cartas do guarda-livros, Chinde, nos 5 a 10, de 18 a 31/1/1897.
– Carta nº 11, do guarda-livros, Chinde, de 31/1/1897, em que promete remeter
oportunamente o relatório de 1896 (não encontrei este relatório).
– Carta nº 12, do guarda-livros, Chinde, de 31/1/1897 (Sipaio matou um indígena em
Inhacatipué, Rigoni substituído por Trindade, o comandante militar mandou desarmar todos
os sipaios dos Prazos da C. da Zambézia, o que fomentou o desprestigio da Companhia).
– Carta nº 13, do guarda-livros Moctezuma, Chinde, nº 13, de 31/1/1897 (revolta em
Sena, Gustavo de Bívar e F. d’Oliveira feitos prisioneiros, o primeiro conseguiu escapar).
– Quatro cartas do guarda-livros Moctezuma, Chinde, nos 14 a 17, sendo as duas
primeiras de 31/1/1897 e as duas últimas de 5 e14/2/1897.
– Carta nº 18, de Mariano Machado, Quelimane, de 15/2/1897.
– Carta nº 19, de Mariano Machado, Quelimane, de 15/2/1897 (Rigoni prendeu o
coronel Warten na Macanga; depois de transferido para Inhacatipué matou um indígena e
recebeu a tiro o comandante militar; não pode ser agente da autoridade por ter nacionalidade
brasileira. M. M. faz algumas considerações pertinentes sobre as perturbações psíquicas que
afetam muitos europeus na Zambézia após algum tempo de permanência no interior.
Narra o caso do tenente que quis fuzilar um sacerdote por ter recusado propiciar a missa do
galo alegando a falta dos paramentos habituais).
– Três cartas de M. Machado, de Quelimane, nas de 20 a 22, de 15/2/1897.
– Carta nº 23, de M. M., do Chinde, a 15/2/1897 (troca de rupias por moeda portuguesa;
libras; questões cambiais, compra de algodão; comércio indiano).
– Carta nº 24, idem, idem, idem (Contribuição industrial).
– Cartas nº 25/6, idem, de Quelimane, a 15/2/1897 (contrato Pereira e Dúlio).
– Cartas nº 27/8, idem, do Chinde, 14 e 15/2/1897.
– Carta nº 29, idem, a 14/2/1897 (Prazo com café na Macanga, plantado por inglês).
– Três cartas de M. Machado, do Chinde, nas de 30 a 32, de 15 a 16/2/1897.
159
– Carta nº 33, idem, idem, a 16/2/1897, com carta de Hamburgo em francês.
– Oito cartas do guarda-livros, do Chinde, nas de 34 a 42, de 25/3 a 5/3/1897.
– Carta s/n, de M. Machado, de Quelimane, a 5/3/1897.
– Importante carta extra de M. Machado, de Quelimane, a 14/3/1897, (doença e
incompetência dos empregados, insubordinação dos indígenas, violências e negociatas dos
comandantes militares com soldos atrasados durante meses, hostilidade de Mouzinho contra a
Companhia de Moçambique e de Amorim contra os Prazos, o capitão Solla foi proibido de
enviar relatórios e de tratar dos assuntos da Companhia da Zambézia entre a Chicoa e o
Zumbo, necessidade de recrutamento de empregados honestos, humanos e competentes,
importância dos tecidos de algodão importados da Índia, nuvens de gafanhotos que devoraram
cana-sacarina, trigo, grão-de-bico, etc. Conveniência em usar o trabalho braçal indígena em
substituição de maquinaria. Celebre história de feitiçaria de que resultou a morte do potentado
que estava no luane do Guengue, Morrumbala, Massingire.
– Carta extra, de M. M., de Quelimane, 14/3/1897. – Idem (P. & Dúlio).
– Idem, (contribuições João Martins) (25 fls.). – Idem, 15/3/1897 (barca Florinda).
– Idem (incidente Cor. inglês Warton e empregado brasileiro Rigoni, na Macanga).
– Idem, idem, idem, 16/3/1897 (modo de cobrança do mussoco). – Idem (vapores).
– Idem, idem, idem, idem (linha telegráfica Tete-Salisbury).
– Importante carta extra, idem (incidente com o comandante militar de Massangano que
ao tentar prender o empregado Mendonça foi atacado pelos indígenas, na pág. 4 informa que
“os pretos do Báruè tiveram sempre tendência para se alargarem até à margem do Luenha”
Rigoni abate um indígena que atacara os sipais).
– Carta extra, idem, idem (sobre Carlos Wiese opinou: “creio que ele acha muito regular
e natural ter vendido à North Charterland Exploration Company as concessões que lhe foram
feitas por M’Pezene”). Idem (alambiques).
– Idem, (Importante. Mouzinho deu ordens para não arrendar mais Prazos a Ignácio de
Jesus Xavier e à família Araújo Lobo. Retirou ao primeiro as honras de capitão-mor.
Transcreve o oficio de Amorim).
– Idem, idem, idem, idem (Macanga insubmissa. Receio consequências na expedição de
Mouzinho. Governador de Quelimane mandou prender inglês que no rio Revugo perto
fronteira “faz guerras, queima palhotas, rouba gados”. Dificuldade sobre fronteira).
– Cartas nº 43/4, do guarda-livros, do Chinde, de 16/3/1897.
– Carta extra, de M. M., de Quelimane, de 16/3/1897 (67).
– Treze cartas s/n, idem, idem, de 17 a 19/3/1897 (nas a vermelho de 68 a 77) com
alguns anexos, ao Ger. da E. I. A. Inhambane; ao Adm. da C. Z.; Paris; com cópia das ordens
gerais de serviço.
– Cartas nº 45/6, do guarda-livros, do Chinde, de 20/3/1897 (nas de 78 a 80 idem).
– Carta extras nas de 75 e 76, idem, idem, idem (com anexos).
– Carta nº 77, de M. M., idem, 24 e 25/3/1897 (nº 81 e 82 a vermelho).
– Carta nº 47, do guarda-livros, do Chinde, de 27/3/1897 (nº 83 idem).
– Quatro cartas do guarda-livros nas de 48 a 51, de 26 a 31/3 (nas a vermelho de 84 a 87).
– Carta nº 21/1, L. Mello Guimarães, idem, 4/4/1897 (nº 88).
– Carta s/n, de M. M., Moçambique, idem (nº 89).
– Idem, 8/4/1897 (nº 90 a vermelho) (Cópia de carta a Mouzinho d’Albuquerque).
160
– Idem, idem, idem, idem (nº 91 a vermelho) (Linder seguiu para a Macanga “vamos a
ver o que fará na Macanga mas não tenho esperanças que faça coisa alguma de útil enquanto
os pretos daquela região não levarem uma boa lição”. Ganha 90.000$ mensais, 25% do
produto liquido do mussoco e 25% do produto liquido do comércio).
– Idem, idem (nº 92 idem). – Idem, idem, de Quelimane, idem (nº 93 idem).
– Idem, idem, de Moçambique, idem (nº 94 idem) (anexo s/ compra da firma Pereira &
Dúlio). – Duas cartas s/n, idem, idem, idem (nº 95 e 96 idem).
– Carta nº 52, do guarda-livros, do Chinde, de 10/4/1897 (nº 97 idem).
– Carta s/n, de M. M., de Moçambique, de 10/4/1897 (nº 98 idem).
– Carta nº 53, do guarda-livros, no Chinde, de 12/4/1897 (nº 99 idem).
– Carta nº 54, idem, idem, de 14/4/1897 (nº 100 idem).
– Três cartas s/n, de M. M., a bordo, 14/4/1897 (nº 101 a 103 idem) (a seguir a esta
última, com dez páginas, consta a seguinte nota: viagem a Moçambique para falar com o
governador-geral Mouzinho d’Albuquerque).
– Carta nº 55, do guarda-livros, de Quelimane, de 16/4/1897 (nº 104).
– Doze cartas de M. M. em Quelimane, nos 56 a 67, de 19 a 30/4/1897 (nas a verm. de
105 a 118).
– Carta nº 68, idem, idem (nº 119) (inclui “contrato” celebrado com Linder a 31/3/1897
e “instruções especiais” que lhe foram especificadas como chefe da 4ª Secção da
Circunscrição de oeste na Macanga).
– Treze cartas de M. M., em Quelimane, nos 69 a 81, de 1 a 17/5/1897 (nas a verm. de
120 a 132). – Carta nº 82, de M. M., em Quelimane, 18/5/1897 (nº 133).
A partir desta data a correspondência passa a usar papel timbrado, com o mapa
das concessões da C. Z.;
– Três Cartas de M. M., em Quelimane, nas de 83 a 85, de 18 a 19/5/1897 (134 e 136).
– Carta nº 86, idem, (remete os relatórios de junho a outubro 1896, elaborados pelo
capitão Mesquita e Solla, ex-chefe da Secção d’entre Chicoa e Zumbo e pede a sua
devolução visto não ter cópias) (nº137).
– Dez cartas de M. M., em Quelimane, nas de 87 a 95, de 19/5/1897 (nas a verm. de 138
a 147). – Carta nº 96, idem, idem, idem (com excelente relatório anual e relatórios dos
Prazos de Tete em Benga, com o mapa da cobrança do mussoco, nos Prazos Pimbe e
Macanga).
– Seis cartas de M. M., Quelimane, nas de 97 a 102, de 21 a 29/5/1897 (nas a verm. de
149 a 154). O nº 99 refere-se à mesada paga à esposa do Major Queiroz, Inspetor das
Companhias de Guerra.
– Carta nº 103, idem, idem, idem (inclui uma carta dirigida ao governador-geral de
Moçambique, sobre as exigências arbitrárias do diretor da Alfandega) (nº 155).
– Carta nº 104, do guarda-livros, em Quelimane, de 31/5/1897 (nº 156).
– Carta nº 105, idem, idem, idem (informa que Paiva d’Andrada chegou a
Quelimane no dia 27 no vapor “Matabele” seguindo para o Chinde no dia 29 pelo
mesmo navio. O governador parte p/ Vicente no dia 3 por ter recebido um telegrama do
chefe de circunscrição de Sena solicitando sua presença para assumir o comando da
ofensiva. Não há noticias exatas sobre Camboemba. Sabe-se porém que a praça de Sena
já abriu fogo contra os revoltosos que se aproximaram e que a margem esquerda
continua relativamente sossegada) (nº 157).
– Cinco cartas de Moctezuma, Quelimane, nos 106/10, de 31/5 a 1/6/1897.
161
– Carta nº 111, de Moctezuma, Quelimane, de 1/6/1897 (consta que a companhia de
guerra que está em Mopeia foi transferida para a Mutarara, sede do Prazo da Maganja d’Além
Chire. Uma verdadeira calamidade para a ação para a C. Z. naquele Prazo onde um único
oficial que lá havia, o comandante militar, já nos causara tantos incómodos. Imagina-se agora
os vários oficiais, sargentos e soldados – geralmente em menor número que os oficiais –
tudo a mandar e a querer provar aos indígenas que só eles são gente d’El-Rei e que só eles
mandam! O Sr. Machado vai ficar assombrado de quantos milandos resultarão no futuro se os
soldados ali ficam! É ver o que sucedeu em Mahembe onde durante o domínio da companhia
de C. Z. havia… mais de duzentos nativos – Hoje não há ali uma palhota – tudo fugiu depois
que os soldados se viram donos daquilo. Os arrendatários do Delta do Zambeze sentem-se
felizes por estares livres dos comandos militares – e a nós cai-nos em casa uma companhia de
guerra permanente que, dizem, terá cem praças… Seguindo as teorias do ex-comandante, os
sipais, mulheres, moleques (i.e. empregados domésticos), etc. dos militares não devem pagar
mussoco – E o governador confirma… Recebi telegrama do Sr. Machado do teor seguinte: “
Camboemba queimou Chiramba será abatido facilmente – Sigo Vicente Chinde”. O
governador parte em três corrente pelo Quaqua. Dizem que arranjou perto de cem homens de
tropa. Há muita falta mantimentos. Zambézia já se sente fome. Em Tete já se vende mapira a
oitocentos reis). (nº 163).
– Carta nº 112 e 113, idem, idem, idem (nº 164 e 165).
– Quatro cartas de M. M., Quelimane, nos 114 a 117, de 7 e 8/6/1897 (nas a verm. de 166
a 169). – Carta nº 118, de Moctezuma, Quelimane, de 9/6/1897 (nº 170).
– Cartas nos 119 e 120, de M. Machado, Quelimane, de 9 a 11/6/1897 (nos 171 e 172).
– Carta nº 121, idem, idem, 12/6/1897 (devido à proteção dada pelo Intendente do
Chinde, às lanchas inglesas e alemãs, sugere ironicamente que o Ministério da Marinha
autorize os navios da C. Z. a usarem bandeiras d’aquelas nacionalidades. O governador é
camarada do primeiro-tenente da Armada Real da Alcobia, (seria o Intendente?). Este permite
em frente à concessão, uma sentinela inglesa com arma e baioneta. Das cobranças 2/3 são para
o Intendente e 1/3 para o escrivão) (nº 173).
– Carta nº 122, idem, idem, 11/6/1897 (contrato com francês Michel para subarrendar o
Prazo Maganja d’Além Chire e plantar açúcar na Ilha de Inhangoma) (nº 174).
– Carta nº 123, idem, idem, 12/6/1897 (devemos reunir até fins deste mês vinte contos
aproximadamente de marfim… conto guarda-lo porque sendo ele aqui vendido muitas vezes a
cento e dez e cento e vinte e cinco pesos os quinze quilos, hoje está a setenta e cinco e oitenta
pesos;… convém esperar mais seis meses até ver-mos se as coisas melhoram na Índia… A C.
Z. está depositária do celebre marfim de Araújo Lobo, espólio a vender brevemente em leilão,
concorrerei apesar de se tratar de vinte e cinco a trinta contos, é um empate de capital que nos
deve dar grandes lucros… O matical d’ouro (seis gramas) foi sempre vendido de quatro mil e
quinhentos a cinco mil reis a troco de fazendas; hoje não querem dar-nos mais de quatro mil
reis. Tendo a C. Z. em caixa aproximadamente três quilos, conviria saber se há vantagem de
ser vendido em Lisboa. É em pó e puríssimo) (nº 175).
– Carta nº 124 e 125, idem, idem, de 15/6/1897 (pediu a Paiva d’Andrada dispensa do
lugar de Inspetor da Companhia do Luabo) (nº 176 e 177).
– Carta nº 126, idem, idem, idem (devido à guerra, seca, gafanhotos, podemos vender
milho e feijão em depósito. A linha telegráfica continua a funcionar bem para Tete devido ás
medidas do governador e à esquadrilha do Zambeze… Os resultados da campanha contra o
Camboemba devem ser seguros com tais elementos (i. é, bons empregados da C. Z.) vão para
ali todos os navios da esquadrilha e o governador Coutinho parte em 17 do corrente) (nº 178).
162
– Carta nº 127 e 128, idem, idem, de 16/6/1897 (dívida da Companhia de Moçambique
por despesas de guerra de 1893 feitas em proveito daquela companhia) (nº 179 e 180).
– Carta nº 129 e 130, idem, idem, de 14 a 17/6/1897 (pormenores da dificuldade de
transporte de mercadorias. Compra de duas lanchas a Hornung. Carta ao chefe da Secção
Beira) (nº 181). Carta nº 130-A, de Moctezuma, em Quelimane, de 16/6/1897 (nº 183).
– Três cartas de M. M., Quelimane, nos 131 a 133, de 17 e 18/6/1897.
– Dez cartas extras de M. M., Quelimane, de 20 a 27/6/1897 (nas a verm. de 187 a 196,
tendo a nº 189 e 190 anexos de Dúlio Ribeiro e a nº 196 o reg. de caça) (total de 50 fls.).
– Carta nº 134, de Moctezuma, Quelimane, de 22/6/1897 (nº 197).
– Cinco cartas de M. M., Quelimane, de 28 a 30/6/1897 (nas a vermelho de 198 a 202).
– Carta nº 140, Moctezuma, Quelimane, de 30/6/1897 (P. d’Andrada enviou 115
maticais d’ouro em pó, pesando 672,75 gramas a 4$000 cada matical, ou seja, 460$000)
(nº 203). Carta nº 141, de M. Machado, em Quelimane, de 30/6/1897 (nº 204).
***
***
***
***
***
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 9-A e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Correspondência de Moctezuma e anexos (na ausência de M. Machado) agosto a
dezembro 1896, junho a agosto 1898”. A documentação que aqui se encontra foi
classificada e resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 414/1, de 31/8/1896. Motim em Inhacapendeca. Administração dos Prazo
Massangano – Águas, foi obrigada a retirar com fazendas de Inhacapendeca para o Sengo, por
ordem de João Martins, chefe de Secção de Tete. Aquele enviou um telegrama no dia 25/8
informando que “… vinha gente armada pagar mussoco. Vi propósito hostilização causa
intrigas mambo Zuracufa fornecer gente serviço linha. Prendi, havendo resistência, tiroteio,
suspeito ataque, impossível resistir, tenho abandonar”. (doc. 6 anexo). Águas foi desmentido
por Silva, administrador prazos Gungue (doc. 7). Três telegramas Moctezuma recomendando
prudência (doc. 8, 9, 10). Régulo Zuracufa foi preso auxílio “Granada” (doc. 14). Oficio do
169
Governo da Zambézia (doc. 17). Parecer de M. Machado de 15/10/1896 afirmando não se
poder contar com o comando militar de Massangano.
– Carta no Chinde, aos 14/9/1896, enviando cópia da nota do governador da Zambézia
que informava aguardar relatório do comandante da lancha-canhoneira “Granada”. Proíbe
emprego da força. Quando os empregados carecerem de auxílio deverão solicitá-lo ao
comandante superior de Tete. Moctezuma considerou o caso Inhacapendeca como anormal.
– Carta no Chinde, a 19/9/1896. Remete os relatórios dos prazos a seguir:
– Macanga (Muchena), de 19/8/1896, por Rigoni. – Benga, de 31/8/1896, por Couto
– Inhacatipué, de 15/8/1896, por Chaby.
– João Martins, de 31/8/1896, sobre incidente Inhacapendeca.
– Incidente com Warton (Administrator & Managing Director of the North Charterland
Exploration Company).
– Carta do Chinde, aos 9/10/1896, com 23 folhas. Alude a “um quilométrico relatório
(como de costume) aliás muito interessante – como todos os escritos do erudito capitão Solla.
Período de 14/6 a 15/8. Tem 36 páginas seguindo de um suplemento de outras 6 = 42”. Faz
um resumo até folha 16 sobre Ignácio Xavier, M’Pezene, Zumbo, Wiese, etc.
– Carta do Chinde, aos 19 e 20/10/1896, com 30 fls. contendo importantes informações.
Carta do Chinde, aos 9/11/1896, sobre a morte de Chaby, com biliosa. – Idem, 17/11/1896.
– Circular de 1/12/1896, dirigida aos gerentes dos prazos, pedindo relatórios anuais e
indicando temas a desenvolver.
– Carta de Chinde, a 19/12/1896 sobre a política dos ingleses para atrair os indígenas.
– Relatório relativo ao período de 16 a 31/12/1896.
– Relatório nº 3, em Quelimane, referente ao período de 15 a 20/6/1898.
– Relatório nº 5, referente ao período de 1 a 24/7/1898. Contém pormenores sobre a
campanha da Maganja da Costa, transcrevendo nas pgs. 2 e 3 a carta de Bívar que participou
na expedição. Na página 17 escreveu: “já dei ordem terminante que fosse posto de parte o
chamado cavalo-marinho e se use de alguma brandura para com os pretos…”. Na pág. 18
acrescentou: “creio que estas repressões produzem melhor efeito do que os castigos corporais.
É claro que não podemos deixar de aplicar esses castigos em certos casos, visto que os pretos
não podem dispensar a palmatória – tal-qualmente fossem crianças indisciplinadas”.
– Relatório nº 6, em Quelimane, referente ao período de 25/7 a 13/8/1898, de
13/8/1898; – Cópia de petição ao governador pedindo para arrendar a Maganja da Costa;
– Relatório nº 8, em Tete, de 12/7/1898 (cópias de Augusto da Trindade sobre o chefe
Angoni Mandala, em Mutapa aos 15/6/1898) (idem, de Augusto da Trindade, sobre Chicusse,
em Mutapa aos 28/6/1898) (Trindade conta que chegou ao Dómuè na tarde de 24/6/1898. No
dia seguinte certificando-se estarem em terra portuguesa devido à direção seguida pelas águas
que nascem naquela serra, construiu casa e aringa de pedra na povoação de Maguaza que
fornece mantimentos aos sipais da aringa inglesa. Em 26 foi avisado da chegada de quatro
ingleses e sessenta sipais armados. Os ingleses mandaram perguntar ao Trindade se queria
falar com eles. Foi sozinho apesar dos pretos não quererem que o fizessem. Recebido de
cobarde maneira pois os sipaios formaram armado diante dos ingleses. Entrou na aringa. Por
intermédio de um dos oficias de apelido Reade que falava português afirmaram estar em
território britânico e que a causa da sua intervenção tinha sido punir o Mandala pelos crimes
cometidos. Acrescentaram que já tinham apresentado queixa ao governo português.
Intimaram o Trindade a retirar-se com a sua gente o que ele cumpriu. Na manhã seguinte
assistiram ao incêndio da povoação do filho de Cacher). Depois de transcrever estes dois
relatórios, João Martins acentuou a necessidade efetuar a delimitação e acrescentou “o
170
empregado Trindade esteve aqui só três dias e mandei-o regressar sem demora para evitar que
os indígenas ataquem os habitantes das terras inglesas”.
– Cópia “Secretaria Civil do governador do distrito da Zambézia – Quelimane, de
11/8/1898. Circular nº 4 – Ao Ex.mo Sr. Agente da Autoridade dos Prazos Anguaze e Andone.
Do Secretário do governo – Confidencial – Encarrega-me Sua Ex.ª o governador de dizer a
V. Ex.ª se sirva envidar todos os esforços possíveis para evitar a emigração de indígenas para
o Transval, mas por forma a que não haja quaisquer conflitos com os engajadores a quem
ostensivamente parecerá auxiliar. O mesmo Ex.mo Sr. lembra que o meio mais fácil para se
conseguir este fim será por intermédio dos chefes de povoações a quem V. Ex. ª. dará as
instruções que julgar convenientes. Todos os indígenas que se quiserem contratar deveram
trazer um documento por V. Ex.ª assinado para prova de que V. Ex.ª teve conhecimento. Esse
documento deverá ser uma espécie de guia em que venham escritos todos os nomes dos
emigrantes (Ass:) Maciel, Secretário. Selo do governo do Distrito da Zambézia. Visto.
Conforme. Moctezuma”;
– Relatório nº 7, de 14 a 20/8/1898: “J. Coutinho não retira tão cedo para a Europa. Ele
tem-me feito a “cabeça em água”. Já percebi que é um perfeito “cata-vento”;
– Relatório nº 9, em Tete, aos 27/7/1898, de João Martins. Remete: a) Relatório de Júlio
Fernando Solla, de junho e julho 1898, da 5ª Secção da Circunscrição do oeste. Alferes
Leandro Rego com uma força de trinta e dois homens para auxiliar o comandante militar
Zumbo a capturar José Lobo “Menhambar”, residente na margem esquerda do rio Mucangaze
a duas horas de caminho da foz. Pôs-se em fuga. Aringa está destruída. José Lobo havia
espancado um indígena do Zambeze e sua família e incendiado a povoação. O comandante do
Zumbo e o alferes Rego foram a Chigoga. Solla ofereceu carregadores e auxiliares. Tiroteio.
Chigoga fugiu. Destruída a sua chitata. Chigoga desprestigiado, refugiado nas serras. Forças
do Zumbo, comandadas por alferes Lobato, aqui reunidas no Comando Chicoa, parece que
para bater machingas. Tenho realizado algumas capturas de criminosos, políticos e feito deles
entrega ao governo.
– Junta cópias da seguinte correspondência: a) Carta de 1/7/1898, do Agente da
Autoridade do Prazo Pimbe, Júlio Fernando Solla, dirigida ao comandante militar do Zumbo
(Chigoga mandou a Cachombo vender carne de porco a troco de fazendas mas deram dinheiro
ao portador. Intimou os chefes da povoação para apresentarem primeiro, teve essa audácia.
Como os chefes não cumpriram declarou-lhes guerra. Ordenou aos chuangas na C. Z., na
qualidade de seus escravos, só a ele prestassem obediência, mandando-lhes uma bala e uma
enxada que segundo o uso do país são sinónimos de obediência ou castigo. Chuangas vieram
entregar. Chigoga convidou mambos do Prazo Pimbe para se revoltarem com ele o que em
geral recusaram. Chigoga não compareceu perante o Agente da Autoridade quando chamado.
Receosos da sua punição, os indígenas refugiavam-se nas ilhas do Zambeze); b) Do mesmo,
ao comandante militar da Chicoa, aos 3/7/1898 (as povoações dos fumos Samukanga e
Capacula do Prazo Inhadoma (?) sede do comandante militar de Chicoa, desde 1894 que não
pagam imposto. Cometeram incêndio à povoação comercial Joaquim Augusto do Rego cuja
filha mataram. Suas povoações obrigam machingas que assaltaram povoações; c) O
comandante militar de Chicoa não julga conveniente começar recenseamento; d) O alferes
Vicente Lobato de Faria agradece o auxílio prestado durante o ataque à aringa Chigoga; e)
Chuangas Prazos Chingar e Muçandaluz contaram prisão mambos por forças inglesas
comandadas por Carl Wiese;
– Relatório de Moctezuma, em Mutarara, aos 30/6/1898. Viagem de Chilomo e
Milange, com croquis. Revoltas do pai do inhacuáua Mlolo. Choveu durante todo o dia (em
junho);
171
– Relatório nº 8, de 21 a 28/8/1898 (dez contos da guerra da Maganja da Costa). Parece
incrível a continuação das chuvas que ainda não cessaram. Retrato físico e moral do Aurélio
Vitorino Mestiço de canarin e negro, último rebelde da Maganja da Costa. Sua prisão;
– Relatório de Jeremias Weelhouse, chefe da Circunscrição Leste, na Mutarara, aos
8/8/1898. Cobrança do mussoco em géneros. Contrariamente às ordens enviadas, o
empregado recebia tudo. Só interessava amendoim e gergelim. Os Monhés de Inharuca
pagavam novecentos reis por cada panja de vinte e sete litros de amendoim;
– Relatório nº 11, de João Martins, aos 2/9/1898 “Passou nesta vila há dias o major Van
Niekerk com mil e duzentas cabeças de gado vacum confiscadas de M’Pezene e seguiram
para Salisbury. No dia três chegaram o major Leverson e o Dr. Rayner que vieram comprar
rancho e contratar cem pretos para auxiliar a demarcação das fronteiras. Continuam
aparecendo aqui grande quantidade de ingleses comprando gado para levarem para Untali e
Salisbury. Se assim continuam lutaremos com falta alimentação. Vão comprar gado às terras
de M’Pezene e de Manica”;
– Cópia da carta de Augusto Trindade (Mutapa, 19/8/1898) a João Martins (ataque de
ingleses com sipaios aos distritos de Chizuzo. Queimaram cinquenta povoações. Pede
reforços senão terá que retirar-se. Tentou aproximar-se mas foi atacado a tiro com o
estrangeiro Sinderam;
– Carta ao capitão Pedro Francisco Massano d’Amorim, comandante militar Superior de
Tete, agradecendo ao Agente da Autoridade dos Prazos o auxílio prestado na expedição
contra José Lobo o “Maquinhambaze” e régulo Chigoga;
– Carta de João Martins e Augusto Trindade de Tete, aos 30/8/1898 (ordena que não
saia do luane mesmo que veja povoações a arderem. Manda dez sipaios e mil cartuchos.
Ordena que não hostilize Diffey. Onde estão os três mil homens armados a que aludiu no
último relatório;
– Carta de João Pimenta a Machado aos 4/6/1898 (acusações ao governador Coutinho
cujos antigos guerreiros cometeram roubos, violações, etc. impunemente. Classifica a guerra
na Maganja como “fantochada”, “pândega”. Tem razão de ser, com o fim de se arranjarem
medalhas e elogios e para interesse pessoal do atual governador que pretende a Maganja para
si. Doido, imbecil. – Carta de Fernando Pimentel a M. Machado, aos 26/6/1898;
***
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 9-B e os seguintes dizeres: “Administração em África –
Relatórios dos empregados – 1898, 1899, 1902, 1903 e 1904”. Contém vários relatórios:
– Relatórios da tesouraria: junho a outubro 1902. – Decalque da carta de 16/1/1903;
– Relatórios da tesouraria: novembro 1902 a julho 1904, falta janeiro 1903 e maio 1904.
Relatórios muito importantes sobre o distrito de Milange (23/4/1899), Administração do
Lugela (31/5/1904), Administração do Molumbo (8/6/1904);
***
172
Volume, com capas de cartão dobráveis e pregueadas, em cuja lombada, se encontrava
colado um rótulo com o nº 10 e os seguintes dizeres: “Administração em África – Cartas
nos 93 a 109 e 1 a 43 – outubro 1899 a junho 1900”. Contém as seguintes:
– Carta nº 93, de 4/10; – Carta nº 94, M. Machado, Quelimane, de 4/10 (rel. nº 5, de
15/9/1899, subscrito por Portugal Durão, chefe da Circunscrição do Leste: dificuldades da
campanha contra o Mataca);
– Cartas nº 95/6, idem, idem, de 3/10 a 29/9 (relatório de Michel, em francês, sobre a
Companhia de Açúcar de Mopeia, com mapa a cores dos respetivos talhões);
– Sete cartas, nas de 97 a 103, de 5/10 a 9/11;
– Carta nº 104, idem, idem, Quelimane, de 9/11. Envia relatório nº 7 da Circunscrição
do Leste, referente a 15 outubro e o relatório de viagem de Pinho “… que é muito
interessante” (os conteúdos estão adiante anexos à carta extra P nº 5). Elogio a Durão. Pediu
relatório sobre “… o desastre da elevação do mussoco nos prazos com fronteira inglesa e da
Companhia de Moçambique resultando que nos prazos do Distrito de Quelimane se estão
cobrando 1.260 reis por cada indígena ou seja 2.520 reis por palhota, enquanto na margem
direita a C. M. cobra a antiga taxa e no território inglês três xelins por palhota… (são)
prejuízos para a n/Comp. que agravam a situação dando grande (número) de trabalhadores
indígenas já em transportes como em muitos outros serviços enquanto nos prazos da Comp.
de Moçambique, que continuam em administração direta, nada fazem acontecendo o mesmo
na British Central Africa. É indispensável que nos prazos limítrofes a cobrança do mussoco
seja feita da mesma forma para evitarmos a fuga completa dos indígenas. Convidei o
“coletor” de Port Herald para um almoço em Vila Bocage. Admirou a plantação. Vivia em
palhota, doente. Dois anteriores tinham falecido. Autorizei Durão a cobrar nos novos prazos a
mesma taxa do que a B. C. A. Invasão de mouros em Tete. Despesas com a guerra do
Mataca. Empregados com doenças (biliosas). As chuvas duraram até fins de agosto. Carta de
Wheelhouse sobre as barbaridades do empregado Pompeu em Guengue e Bandar.
– Carta nº 105, idem, idem, aos 11/11/1899 (envia cópias do termo de posse do Prazo
Milange e do auto de delimitação entre este e o Prazo Boror, feita com a companhia
arrendatária; – Cartas nº 106 e 107, respetivamente de 11 e 13/11/1899.
– Carta extra, de M. Machado, no Chinde, a 2/11, sobre Peters.
– Carta s/nº, de Moctezuma, em L. Marques, aos 10/11, sobre sucursal.
– Carta extra P nº 5, de M. Machado, em Quelimane, aos 10/11, com os seguintes temas
expostos em 48 fls. Intrigas do inglês Leath junto de Luís (Caetano Pereira), antigo régulo da
Macanga e hoje considerado como empregado da C. Z. Cópias de cartas. Cópia do relatório
de R. Pinho, feita em Milange, por Durão, a 10/9/1899. Relatório nº 7, feito em Chilomo, por
Portugal Durão, aos 15/10/1899, com croquis bicolores, a preto e vermelho. Devastações
(praticadas pelos) sipais da expedição ao Mataca. Fuga de indígenas para o território inglês.
Dois documentos sobre o imposto cobrado pelos ingleses no território português: três xelins
pelo “Collector of Revenues for the District”. Resistência quanto ao pagamento do mussoco
pelas mulheres. Missão inglesa com escola. Passagem para o Molumbo;
– Cartas nº 108 e 109, respetivamente de 24/11 e 4/12/1899;
– Carta extra P nº 6, de M. Machado, no Chinde, aos 17/12/1899, com os temas
expostos em 43 fls. Relatório nº 8, de Portugal Durão, no Chilomo, aos 5/12/1899, sobre a sua
viagem à Angónia; plantações de milho chimanga; batata, mandioca, derrube de quase todas
as árvores; rios de água corrente; grande densidade “o Chicusse é uma mina de braços”; são
cinco os seus filhos: Mandala, Mecauira, Gunga, Putiquiza, e Cabango; todos mais ou menos
questionam o facto de Mandala se julgar com direito à butaca (i.e. à sucessão); beleza das
palhotas do Mandala; o Mecauira só após a chegada do tenente Brito mudou a sua povoação
173
para território português. Junto ao (monte) Dómuè predominava o Pembe com a sua
metalurgia de ferro. Trabalho voluntário em Blantyre para (adquirirem) vestuário contra o
frio. Estimativa de cinquenta mil palhotas. No território inglês há falta de mão-de-obra. Gado
bovino. Picos Namuli. Duas cartas particulares de Durão;
– Trinta e dois telegramas, sendo alguns decifrados; – Cópia datilografada do “Relatório
da Missão ao Derre – Mutarara”, de 27/2/1899 e elaborado por R. Pinho, com anexos;
– Relatório original de Botelho Moniz aos 18/10/1899 (21 fls.);
1900
***
Volume com o seguinte rótulo na lombada: “Administração em África – julho a
dezembro 1900”. Tem o nº 11.
– Carta nº 46, de 7/6/1900, em Quelimane, com paradeiro desconhecido (enviava os
seguintes duplicados dos relatórios da Circunscrição do Leste: nº 2 de Portugal Durão; do
chefe da Secção sul de Milange; do agrónomo sobre a Morrumbala; cópia do contrato de
Portugal Durão com Walker Brothers para a plantação de 250.000 pés de café);
– Carta nº 54, de Quelimane, a 23/7/1900, com paradeiro desconhecido (continha
croquis de P. Durão sobre ângulo Lugela-Licungo);
– Carta nº 60, de Quelimane, a 17/8/1900 (com a “boa notícia” de Faro (?) ter sido
nomeado governador da Zambézia);
– Carta nº 65, em Quelimane, a 23/8/1900, com paradeiro desconhecido (continha três
relatórios do chefe da Circunscrição de Leste); Carta nº 83, em Quelimane, a 18/9/1900, com
paradeiro desconhecido (continha três relatórios do chefe da Circunscrição de Leste com sete
anexos. Devido ao interesse que lhe atribuía recomendava a sua publicidade);
174
– Carta nº 84, idem, 20/9/1900 (é importante, dirigida ao governador de Quelimane e
menciona arbitrariedades cometidas por ingleses e por comandantes militares);
– Carta nº 87, idem, 28/9/1900 (fuga da população);
– Carta de 29/9/1900, de B. Moniz ao governador de Quelimane (boato sobre o
recrutamento de dois mil indígenas para a companhia da Zambézia);
– Carta nº 5-C, em Quelimane, aos 11/10/1900 (conflito entre P. Durão e B. Moniz);
– Carta nº 104, idem, aos 25/10/1900 (ocupação de Milange e de Namuli);
– Carta nº 111, idem, a 14/11/1900, com paradeiro desconhecido (mandava para Lisboa
doze relatórios de 1896); Carta nº 17, L. Marques, a 20/11/1900 (ocupação de Milange e de
Namuli); Carta nº 18, L. Marques, a 20/11/1900 (fome na Zambézia);
– Carta nº 127, Quelimane, a 19/12/1900, com paradeiro desconhecido (remetia
relevantes queixas contra Durão apresentadas às autoridades; ameaças de prisão; violências
cometidas durante a ocupação); Carta nº 128, idem, a 26/12/1900 (sobre indígenas das etnias
Machinda, Gossa, Baroma; anuncia que cinquenta zezuros fugidos aos militares ingleses
atacaram Chabariga, matando o empregado Costa e ameaçando Cachomba);
– Importante carta a M. Machado, na Cachomba, aos 21/11/1900;
***
***
Volume com o nº 13 e o seguinte rótulo na lombada: Administração em África – julho
a dezembro 1901 – CENTRAL. A documentação encontrada foi subdividida nos parágrafos
autónomos que se seguem.
– Oito cartas, nas de 96 a 103, de 5/7 a 17/7; cinco cartas extras, nas de P 21 a P 25, de 20
a 24/7. Seguem-se as matérias que nelas se encontravam referidas. Circunscrição do Leste.
Relatório de Raphael Pinho, em Molumbo, a 19/6, sobre pragas de gafanhotos, fome
generalizada, fuga da população para os territórios quer britânicos quer da Companhia do
Niassa. Os Angurus encontram-se “armados até aos dentes”. Único recurso: mussoco em
trabalho. “O anguru é adverso à emigração e mesmo quando é forçado a isso procura por
todos os meios fugir ao trabalho e regressar à povoação. Se o anguru emigrasse com a família,
como fazem os angonis, contribuiria imenso para o rápido desenvolvimento desta região.
Com o despovoamento da Chirua extinguiu-se a indústria do sal cafreal”.
– Quinze cartas extras, nas de P26 a P40, de 23/7 a 16/8; sete cartas, nas de 104 a 110, de
13 a 16/8. Carta nº 111, de 14 a 16/8, com requerimento ao governador-geral e o pedido de
abertura de novos prazos entre Quelimane e Angoche. Pede o encerramento do porto de
Tijungo. Carta nº 112, de 21/8, sobre a distribuição de dez ilhas que se formaram no leito do
176
rio Zambeze. Seis cartas normais, nas de 113/8, de 21/8 a 10/10; carta extra sobre o rio
Zambeze, de 18/9.
– Carta nº 119, de 14/10, mas cujo paradeiro não consegui descobrir. Continha um
relatório da Circunscrição do oeste referente a agosto que ao subscritor “pareceu
interessante por causa das questões do Báruè”. Carta nº 120, de 16/10, sobre viagem à
Zambézia e as plantações de cana sacarina. Carta nº 121, de 16/10, com anexos importantes,
totalizando 23 fls. Carta nº 122, de 16/10, com cópia da exposição dirigida ao governador-
geral. Carta s/ nº, de 16/10, sobre viagem à Zambézia e assuntos importantes, com onze fls.
– Carta extra nº 41 – CONFIDENCIAL, sobre João Martins, Angónia, Carl Wiese,
arrendamento do prazo Lugela. Informa que Brito (i.e. o segundo-tenente da Armada António
Júlio de Brito) pretende subarrendar a Angónia por 10.000$000 anualmente. C. Wiese, do rio
Capoche ao Zumbo.
– Três cartas nas de 124 a 126, de 17 e 19/10.
– Carta nº 127, de 27/10, sobre a situação em Milange e no Namuli. Afirma que Rego
propõe o abandono da região. Não foram encontrados os relatórios dos empregados, relatórios
que afirmou ter remetido. Também desapareceram as cópias das cartas que dirigiu ao
governador da Zambézia.
– Cartas nº 128, 129 e 130 de, respetivamente, 25, 27 e 30/10, com um total de 57 fls.
Os temas nelas citados relacionam-se com a pacificação e a ocupação da Zambézia. Menciono
alguns: situação da revolta no Lugela, com cópias das cartas que escreveu a 15 e a 25/10 ao
governador da Zambézia; revolta de 1897 em Milange com o incêndio da missão e a expulsão
dos missionários e do comandante militar; opina que “apesar da guerra na Maganja que bem
sanguinária foi (até escrevi que se renderam sem luta) não serviu de ensinamento aos
indígenas do norte desta região, a quem chamam Lomuès, que ainda hoje não pagam
mussoco, nem aceitam facilmente a autoridade do governo. A Companhia do Boror não viu
com bons olhos o nosso predomínio, manifestação que mais parece provocada por
dissidências entre diferentes chefes indígenas! Os comandantes militares de Milange e
Anguru eram agentes da autoridade da Companhia da Zambézia no cumprimento do Decreto
de 18 novembro 1900. Com a ocupação se gastaram até fins de 1900 (precisamente)
94.868.087 réis. Foram assassinados o contramestre e (alguns) sipais em Nameta. Como não
podia autorizar a intervenção da força armada, disse aos empregados que se retirassem.
Segunda carta (?): os indígenas do Lugela roubaram três contos (i.e. três milhões de réis) de
mercadorias. C. Z. mandou 250 homens (sipais?) à Lugela”.
– Seis cartas nas 131 a 136, de 30/10 a 15/11. Carta extra nº P 43, de Quelimane, de
511/1901. Importante, ocupando 37 fls.
– Dez cartas nas de 137 a 145, de 5 a 30/11.
– Carta nº 146, de 5/12. Transcrevi o seguinte: “A verdadeira situação das autoridades
na África Oriental é esta: os governadores de Distrito nada podem ou devem resolver sem
consultar o governador-geral; feita a consulta é na maior parte dos casos, senão em todos,
transmitida para o ministro da Marinha e raro é que em nossa vida se consiga a resolução de
qualquer negócio como se requer por mais justo que seja”.
– Treze cartas nas de 147 a 158, de 5 a 28/12/1901.
– Telegramas (exigiram 55 microfilmes).
– Índice.
***
177
Volume com o seguinte número e rótulo na lombada: “14 – Administração em África
– janeiro a agosto 1902 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontrou foi
classificada e resumida nos parágrafos autónomos que se seguem.
– Cartas nº 1 e 2, ambas de 2/1. Eis em resumo a mensagem do administrador do Prazo
Lugela, de 20/12/1901: “Em dois do corrente tendo mandado setenta sipais aos muenes
Balalei e Mugananha… foram atacados no último muene ficando alguns feridos. Dois sipais
de Tacuane foram degolados quando estavam numa vedeta. O muene Balalei “pegou pé”com
alguns dos seus fumos mas o Mugananha negou-se gastando os sipais 1.300 cartuchos. Os
indígenas estão cada vez mais bem armados e com bastante pólvora, de onde ela vem é que
não posso nem sei dizer. Quiseram os sipais cercar a casa onde Mugananha guardava o
mussoco que tinha recebido de outros muenes, mas não conseguiram porque os outros
pegaram fogo… (A região de) Tacuane e Marraita nunca ficará bem enquanto o Licungo não
for batido… para o ano a fome há-de ser grande caso não se batam estes muenes. Não sei por
que não vieram sipais de Massingire (M. M. explicou que se cobrava imposto)”.
– Cartas nº 3 a 5, sendo uma de 4/1 e duas de 6/1; extra-Chinde, de 9/1).
– Carta extra-Chinde, de 27/1 (do segundo-tenente António de Brito sobre o comando
do “Zambeze” (navio da Armada?).
– Cartas nº 6 e 7, de 17/1 e de 1/2 (esta última enviava cópias, em duplicado, dos
últimos relatórios do agrónomo Luga; contudo nada aí se encontrou); cartas nas 8 a 10, sendo
uma de ½ e duas de 6/2.
– Carta nº 11, de M. Machado, em Quelimane, a 4/2 (importante relatório da viagem a
Tete: a Companhia Açucareira de Marromeu, fundada por Hornung, recrutou quatrocentos
trabalhadores na Angónia; situação dos prazos subarrendados a João Martins e a Carl Wiese;
a administração da Macanga passou para o segundo-tenente Brito; continua a desobediência
em Lugela e Namuli.
– Quinze cartas nas de 12 a 26, de 6/2 a 3/3. Na carta nº 19 consta que o governo
questionou o subarrendamento de prazos a C. Wiese.
– Quatro cartas nas de 26 a 29, de 6 a 10/3. Na nº 27 foi feita referência a uma difamação
sobre o fornecimento de pólvora aos povos do Báruè. A nº 29 remeteu sete mapas preciosos,
mas infelizmente desaparecidos, que incluíam uma relação da totalidade dos prazos, as
respetivas rendas pagas ao Estado, a identificação dos subarrendatários, os rendimentos
obtidos com a administração direta, etc. Dezassete cartas nas de 30 a 46, de 14/3 a 19/5.
– Nove cartas nas de 47 a 55, de 17 a 28/5. A nº 47 trata de “mantimentos para a
expedição ao Báruè”. A nº 49 remetia a cópia, infelizmente desaparecida, de um contrato com
a Comp. do Boror para não negociar na região de Lugela-Namuli desde maio de 1902 a abril
de 1903. A nº 51 respeitava à dragagem aluvial no rio Umsenguezi, com um croquis.
– Carta nº 56, de 1/6. Chegada do comandante J. Azevedo Coutinho como governador e
também de Portugal Durão, 2º subdiretor em África, ambos na Campanha do Báruè.
– Três cartas nas de 57 a 59, de 2/6 e 4/6. Esta última remetia cópia do oficio recebido de
Azevedo Coutinho, convidando B. Moniz a assumir o comando dos sipais da C. Z.
– Cartas nas 60 a 62, de 9/6 e 17/6. Azevedo Coutinho também encarregou o Botelho
Moniz de organizar o serviço de transporte fluvial para a expedição ao Báruè. Vão
quatrocentos sipais de Massingire, quinhentos da Maganja da Costa, trezentos da Angonia.
Também se recrutaram dois mil carregadores da Angonia.
– Carta nº 63, de Botelho Moniz, em Quelimane, de 16/6/1902. Envia cópia do ofício nº
411, do dia 16, subscrito pelo Secretário do governo do Distrito, o qual contém a seguinte
informação: “… a região da Macanga foi completamente batida pelo segundo-tenente da
178
Armada Real, António de Brito… arrasando todas as aringas. Luís Caetano, o chefe daqueles
rebeldes, foi morto quando fugia, tendo a sua cabeça sido reconhecida por mais de quinhentos
indígenas”. Sete cartas, nas de 64 a 70, de 19 a 30/6. Esta última informa que, para a expedição
ao Báruè, a C. Z. forneceu mil sipais provenientes de Massingire e da Maganja d’Além Chire.
– Nove cartas, nas de 71 a 79, de 16/6 a 18/7. Delas constam as seguintes informações:
a) “ A expedição deve seguir do Chinde dia 18 do corrente… acompanho a coluna comandada
pelo Sr. governador porque julgo isso de interesse capital para nós”. b) “Os relatórios de
Quelimane e das circunscrição do Leste e oeste deverão ser enviados diretamente a Lisboa.
– Vinte e sete cartas, nas de 80 a 105, de 16/7 a 26/8. Delas consta a remessa de vários
mapas-relatórios mas estes não foram encontrados. Tem interesse o seguinte trecho: “… a
Companhia do Boror até hoje não tem estabelecimento nenhum no nosso prazo Lugela nem
empregados; o Sr. Stucky nunca tencionava negociar diretamente no Lugela; o que lhe
convinha era eliminar a concorrência da C. Z. naquela região pensando que os indígenas
haviam de vir vender seus géneros em Nhamacurra ou em outras estações da Boror, esperança
que até hoje não se realizou. De maneira que o Sr. Stucky não está satisfeito com o resultado
da sua combinação”.
– Carta nº 106, de Botelho Moniz, aos 2/8/1902. Refere os seguintes assuntos: relatório
de Portugal Durão; proposta da firma Marques & Moura para continuar o subarrendamento
dos prazos Inhabaruaro e Inhalupanda, com dispensa de hasta publica e redução da renda de
382$000, empolada devido à cobiça das autoridades civis e militares que concorreram
indevidamente à arrematação. Atenção! Na sua carta Portugal Durão escreve na folha 7: “…
Estou em vésperas de partir para o Báruè, comandando a coluna volante do Luenha… tive
que levantar cinco mil homens só nos prazos de Tete e tive portanto ocasião de observar
o funcionamento do nosso modo atual de administrar”. P. D. enumera a seguir vários
inconvenientes de grande importância. Carta nº 107, de 28/9, seguindo do Índice.
***
***
Companhia da Zambézia
Administração em África
Quelimane, 31/10/1902, Residência da Angónia
Deve pelo nosso fornecimento para a guerra da Macanga
– Treze cartas nas de 47 a 58, de 8/5 a 16/6, compreendendo uma Reservada nº 2 e outra
de Chinde. Carta nº 58, de 16/6. Bívar fechou novos contratos de emigração para o Transval.
Lomelino e Bívar, arrendatário de Goma (?) e M’guro (?) fizeram com a W. N. L. A. um
contrato mais vantajoso. Sendo estes prazos limítrofes com Maganja e Massingire pode muito
bem suceder, se a emigração cair em graça… que os indígenas (destes últimos) passem (aos
primeiros) para se contratarem sem que disso nos resulte vantagem e antes pelo contrário
considerável prejuízo.
– Carta nº 59, de 16/6. Fome em Massingire e Maganja por falta de chuvas.
183
– Carta nº 60, de B. Moniz, de 17/6. Desmandos de Cooke como chefe da Circunscrição
do Leste. Carta nº 61 e 62, de Botelho Moniz, de 19/6. O tenente Brito usou, sem autorização,
os bens da C. Z. para custear a expedição. Julgo inconveniente a acumulação de cargos do
governo com lugares da Companhia por ser difícil encontrar quem saiba conciliar os
interesses das duas partes. A meu ver a Companhia deve eximir-se a aceitar imposições neste
sentido para regularidade e bom andamento de serviço em África.
– Carta nº 63, 64 e Chinde 2, de 22 e 23/6. Índice.
***
***
***
***
***
193
Volume com o seguinte rótulo na lombada: “21 – Administração em África – janeiro
a julho 1906 – CENTRAL”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e
resumida pelos parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 11. Emigração para o Transval. Carta nº 15. Liquidação da fatura em relação
ás despesas com a guerra da Macanga (9.768.930); houve a pagar ao tenente António Júlio de
Brito a percentagem de 15% sobre 6.829.900; que representa a receita proveniente da
cobrança do mussoco, i. e. 1.024.485 réis. Carta nº 29. Vendaval com grandes prejuízos.
– Cartas nºs 34 e 56. Emigração para o Transval. Índice.
***
***
***
Volume com o seguinte rótulo na lombada: “24 – Central África – dezembro 1907 a
23 setembro 1908”. A documentação que aqui se encontra foi classificada e resumida pelos
parágrafos autónomos que se seguem.
– Carta nº 59, em Quelimane, a 5/5/1908, alude aos “recenseamentos dos prazos Lugela,
Lómuè e Milange” com nota no fundo: “Archivado nas latas”.
– Carta reservada, de 26/6/1908, informação que o governador-geral pedira para a C. Z.
entregar ao governo alguns dos prazos arrendados (lista).
– Mesmo assunto em carta reservada, de Quelimane, a 6/8/1908.
***
Podem contar-se por centenas as cartas escritas por Paiva d’Andrada durante o tempo
que desempenhou em África as funções de administrador delegado. Os assuntos versados
foram inúmeros e a sua análise exigem estudos mais apurados do que aqueles que realizaram
os Professores Nowell e David Beach a que oportunamente faremos referência. Para o leitor
194
ter uma perspetiva rápida do valor desta correspondência decidimos transcrever na íntegra,
com ortografia atualizada, uma carta que nos pareceu de valor excecional não só pelo seu
conteúdo mas sobretudo porque se dirigiu a um político lisboeta de grande representatividade
histórica: o Marques de Fontes Pereira de Mello. Foi escrita no Luane de Inhasserere, a 7 km
de Sena, a 16 dezembro 1892:
“Meu caro colega e amigo: Com a minha expedição da Companhia da Zambézia tenho
subido o rio até aqui onde cheguei hoje. Encontrei o país num estado deplorável, embora este
estado apenas se tenha manifestado há poucos dias. Procurarei continuar no meu caminho de
Tete. Quando V. Ex.ª receber esta carta poderão estar as coisas remendadas, mas também
poderá já o telégrafo ter levado aí fatais notícias, mesmo a meu respeito. Por isso mesmo
desejo escrever algumas palavras que me parece deverem ser tomadas em consideração, em
vista do muito interesse que tenho pelo país e pelas duas Companhias, da Companhia de
Moçambique e Companhia da Zambézia, e do conhecimento que tenho das coisas e das
pessoas locais.
Manuel António de Sousa, por si só, tinha em boa ordem dezenas de milhares de
pessoas num vastíssimo território entre o Zambeze e o Punguè, desde não longe da costa até
ás fronteiras do distrito de Tete e, pelo sul muito a oeste da ação efetiva deste distrito. Sujeita
a ele havia muita gente não acostumada aos trabalhos tranquilos de lavoura, mas armada e
habituada às empresas guerreiras, com que nos últimos anos da sua vida tão assinalados
serviços prestou ao país. Entre ele e os sipais havia dúzias de capitães, chefes saxecundos
(chicundas), todos obedientes, submissos ao único chefe, e dispondo cada um de centenas ou
milhares de homens armados. Morto Manuel António, o chefe geral desapareceu, e todos
estes elementos estão desordenados. Para estes vastos territórios mandou a Companhia de
Moçambique três ou quatro homens quase todos estranhos ao país (devo dizer todos
excecionalmente bons e dedicados empregados da Companhia) e esses homens desejavam
logo criar rendimentos à Companhia desejando, embora com toda a prudência, bastante
cuidado e a máxima dedicação, começar logo a cobrar o imposto do mussoco. Manuel
António não servia só a conter em respeito o território que ocupava; era o elemento que o
governo tinha sempre à sua disposição para comprimir as rebeliões que por qualquer lado se
levantavam. Hoje, este poderoso elemento falta para tudo, e assim as resistências que Wiese,
arrendatário dos prazos da Maganja e Massingire, pelos quais paga ao governo larga quantia,
encontra da parte dos colonos dos dois prazos, não podem ser reprimidas pelo elemento de
ordem sempre à disposição de todos; assim o Guengue, limitando pelo interior com a
Macanga, reclamada pelos irmãos do Bonga que ainda ficaram no país (Mutontora e
Chimulamba) como butaca de sua irmã D. Luísa e toda a gente do Macombe, sabem todos
que de ninguém têm a temer. Não tenho tempo para desenvolver estas generalidades.
Resumidamente direi que todo o país está em desordem e que posso indicar os seguintes
grupos (ver por exemplo a carta de Zambeze de Capello e Ivens):
1.º Gentes, que dizem ser do Mesungo Chenche, vindas da serra Gorongosa para a
margem do Zambeze em Magagade, roubaram muitos mouros que estavam fazendo negócio,
saquearam as povoações e dizem mesmo, que nesta hora, no dia de hoje, marcham em grande
massa para arrasar a Chupanga.
2.º Gentes da Maganja, de Massingire, de mais de cima da Zambézia; ainda há dois dias
vieram, dizem, que em grupo de uns três mil com armas e paus (que supunha destinados a
fazer aringa) atacar o comando militar da Maganja junto ao Ziué Ziué, em face de Sena.
Retiraram debaixo do fogo que lhe fez a pequena canhoneira Obuz que ali está no rio.
3.º Toda a gente antiga de Manuel António, ao longo da margem direita e pelo interior,
tem feito algumas violências e diz que não quer ouvir que se paga mussoco, não quer ela
pagar e diz que não quer consentir que outros paguem.
195
4.º Mais acima está a gente do Macombe, que foi a que assassinou Manuel António.
5.º Na margem esquerda, no Guengue, houve há pouco uma forte rebelião – e por trás
do Guengue estão os Bongas e os Macangas.
Assim o estado do país é péssimo; mas todos estes elementos ou pelo menos uma parte
deles se podem trazer à mão e no nosso serviço. O futuro é fácil de arranjar, procedendo-se
como se deve só o que se poderá não poder impedir é o massacre de alguém que seja
apanhado por alguma destas massas quando animadas com intenções de roubo, rebelião e
destroço. Segundo minha opinião a Companhia de Moçambique, pela sua administração
direta, não deve neste momento nem pensar no interior do país. Estou falando da Zambézia e
dos territórios ao norte do Pungué e entre este rio e o Zambeze. A administração da Beira tem
a ocupar-se da linha de Manica, do Quiteve, do Save, etc. Refiro-me só à administração que
tem sede em Sena. O seu programa deve limitar-se a ter em sossego todo o país entre Sena e a
costa, e a linha marginal do Zambeze desde Sena até ao limite da sua ação. Satisfazendo
assim à obrigação de policiar os seus territórios por modo a que eles não sejam covil de
perigos para quem viaja no Zambeze. Para isto, é essencial que o comandante de Sena tenha
com urgência á sua disposição um mínimo de cem homens de confiança, para guarnição de
vários postos, 3 ou 4 e que nesses postos que devem ser fortificados economicamente ao
modo do país, o branco que neles comandar tenha duas pequenas bocas de fogo modernas,
com suficientes munições (como por exemplo uma excelente peça alemã – da nossa marinha,
de tiro rápido que ontem vi em Sena). Isto custa muito pouco, e os rendimentos locais, logo
que haja sossego, chegam bem para a despesa. Poderiam os homens ser maratas, mas há
urgência de gente, e por isso melhor seria que o governador Machado imediatamente pedisse
ao governador Jaime, de Inhambane, que lhe mandasse de lá uns 100 ou 120 landins, vestidos
como landins, e com 3 ou 4 bons chefes, que o governador de Inhambane, desejoso como ele
será de ser agradável ao governador da Companhia, poderá escolher muito bons que ficariam
ás ordens dos chefes brancos dos portos marginais.
Tenho vergonha de ver os meus companheiros estrangeiros percorrendo isto e de
lhes ouvir dizer que parece incrível que, tendo Portugal há séculos este magnifico país,
se encontre ele como está. O motivo principal é a falta de gente portuguesa do reino aqui.
Houvesse em toda a Zambézia com ou duzentos proprietários, fazendeiros ou empregados
portugueses, com os pretos que em torno de cada branco se agrupam, que não mais haveria
receio de ver o que se está passando. Parece-me muito fácil trazer, convidar gente para aqui e
vê-la correr para cá, – mas as fazendas a criar entre o Punguè e o Zambeze devem ter a feição
portuguesa e aproveitar o que realmente há de excelente neste aparente caos. Só quem
conhece o país tão bem como eu o conheço, é que pode compreender como seria deplorável
perder os elementos de ação que aqui existem, embora hoje em completa desordem.
Apliquemos pois o sistema do Cabo e Transval ao sul do Punguè – e aproveitemos por outro
modo os elementos que temos entre este rio e o Zambeze.
Prazo Gorongosa. Logo que comecei a subir o Zambeze constou-me a notícia de que
pela Companhia de Moçambique tinha sido dado, por cinco anos, de arrendamento o prazo
Gorongosa a Anselmo Ferrão. Lastimei tal notícia e logo pensei comunicar ao Conselho que a
minha opinião é absolutamente oposta a tal arrendamento. Antes de chegar a Sena estive em
Mufuvo, em casa de Anselmo Ferrão, de quem gosto, que por vezes tem feito relevantes
serviços ao governo, e que os pode igualmente fazer à Companhia, mas disse-lhe:
Compreendo que o governador Machado, debaixo da proposta de Luís Ignácio, comandante
de Sena, que bem merecidamente tem toda a confiança, concedesse um tal arrendamento;
compreendendo ainda que Luís Ignácio, que não conhece ainda muito certas coisas do país, o
tivesse proposto; o que não compreendo é como você, A. Ferrão, pode pensar em tal. Tive a
explicação do que tão absurdo me parecia, quando A. Ferrão disse que não pensava ir para a
196
Gorongosa, mas apenas aproveitar as terras marginais do Zambeze (deste prazo) ou distrito de
Magagade; ainda assim era com ideias inteiramente erróneas, visto que pensava em plantar
neles café, o que ali nunca poderia produzir bom resultado. Em todo o caso com prazer lhe
ouvi dizer que a ideia estava abandonada. A. Ferrão é de uma antiga família da Zambézia; era
da família de um potentado quando Manuel António ainda não era conhecido. Tem
numerosos pretos, filhos e parentes de antigos escravos, que o seguiam fielmente; assim
poderá reunir dois mil ou mais homens armados. Mas a gente de Anselmo Ferrão não pode
ser vista pela de Manuel António – e talvez mesmo que só o ter corrido a notícia que A.
Ferrão ia ser o senhor da Gorongosa, tenha em parte contribuído para a revolta atual. Não
desenvolvo mais os motivos políticos da minha oposição. Pelo lado económico, técnico,
íamos prender a Companhia dando, julgo que era, por cinco anos, uma província como é o
prazo Gorongosa a um homem que pode ser em certas coisas muito prestimoso, que obsequeia
e serve a todos que dele se aproximam, mas que não tem capitães e, o que é pior ainda, não
pode fazer a menor ideia do valor dos territórios que lhe seriam concedidos e dos meios de os
pôr em exploração.
(O resto da carta trata de negócios especiais da Companhia de Moçambique).”
***
***
– 16/5/1923 (fls. 1/4). Ao Comissário: o mussoco foi elevado para 10$00 per capita,
cobrado pelos arrendatários sem qualquer compensação, sem serem consultados e sem ser
obtido o seu acordo, o que não aconteceu com anteriores adicionais; exagero do aumento =
8$800; violação das normas legais.
– 2/8/1923 (fls. 15/7). Ao Comissário: após repudiar as insinuações contidas num artigo
de Brito Camacho, remete uma nota explicativa dos trabalhos que visavam o desenvolvimento
da cultura do algodão, nota que é reforçada por um mapa estatístico desde 1907 a 1912;
informa que, no Sindicato de Estudos da Cultura do Algodão, a C. Z. participa c/ 30% e a
Banque de l’Union Parisienne c/ 70%.
201
– 26/1/1924 (fl. 26). Idem: alude à procuração para assinatura do acordo relativo à
entrega dos Prazos de Tete ao governo.
– 8/4/1924 (fl. 28). Idem: reclamação contra as portarias governamentais n os 432 e 433,
de 21/4/1923.
– 19/9/1924 (fl. 35). Idem: trata dos depósitos de certificados acionistas de sociedades
inglesas que tiveram ou têm a sua sede em Londres.
– 23/11/1924 (fls. 39/40). Idem: razões que explicam a decisão de efetuar em escudos
ouro a escrita das suas dependências em África; variedades de moeda em circulação =
escudos da Província, escudos da Metrópole, libras portuguesas do B. N. U. e Banco da Beira,
libras inglesas da Inglaterra e África do Sul, prata e cobre português; os direitos de exportação
para as Metrópole eram pagos em escudos da Metrópole.
– 4/2/1925 (fl. 43). Idem: informação sobre os estudos geográficos no Distrito de Tete
efetuados pelo major de Artilharia J. J. Soares Zilhão.
– 23/4/1925 (fl. 51). Idem: alude à autorização do Ministério das Colónias para alterar
diversos artigos dos estatutos da Sociétè Miniére.
– 28/4/1925 (fls. 53/6). Idem: classifica como descabidas as exigências feitas na
condição 9ª do contrato de 24/4, publicado no Boletim Oficial nº 18, de 3/5/1925: considera
que elas só seriam admissíveis no caso de ser prorrogada a concessão dos Prazos; não tendo
esta sido concedida no Distrito de Tete, onde se alcançavam 60.000 mussocos, a C. Z. não
dispõe de mão-de-obra para efetuar, no período de cinco anos, o exigido alargamento das
plantações; merece citação o caso da Sena Sugar que foi beneficiada com a prorrogação até
1934 dos prazos Goma e Mugovo, pelos contratos de 9/11/1921 e 29/4/1924, sem exigências
de alargamento.
– 15/6/1925 (fls.57/8). Idem: discorda da exigência em cambiais de 25% do valor ouro
das primeiras 60 ton. de carvão exportado.
– 28/11/1925 (fls. 68/70). Idem: construção de uma linha-férrea entre Moatize e a
fronteira, pelo Sindicato do Caminho-de-ferro de Tete, formado em Bruxelas – Place de
Louvain, 18/20, por cinco importantes firmas belgas; a C. Z. não pode participar por fala de
recursos.
– 18/5/1926 (fl. 76). Idem: despovoamento dos prazos de Tete provocado pelos
desmandos cometidos pelo Subintendente dos Negócios Indígenas (a lápis vermelho “sem
efeito”).
– 5/7/1926 (fl. 78). Idem: comunica que o Dr. Baeta Neves não tem poderes de
gerência, sendo por isso injusto que, nessa base, tenha sido anulada a sua eleição para o
Conselho Legislativo.
– 27/10/1926 (fls. 84/88). Idem: devido ao facto do governo do Distrito de Tete não
cumprir a obrigação de fornecer mão-de-obra, pede ao Ministro das Colónias autorização para
poder recrutar livremente no Distrito de Quelimane, para acudir às plantações de sisal de Vila
Bocage; na sua exposição, a C. Z. compara esta falta de proteção oficial com o caso da Sena
Sugar a quem o governo fornece regularmente mão-de-obra.
– 14/6/1927 (fls. 97/8). Idem: acordo sobre pesquisas mineiras a efetuar durante dois
anos, celebrado entre a Zambezia Mining Development e o Chioco Sindicate administrado por
Lord Lurgan e Libert Oury.
– 27/6/1927 (fls. 99/101). Ao Comissário: por se reconhecer o seu perigo como foco da
mosca tsé-tsé, pede-se o abate da floresta de Zalala, situada a quinze quilómetros de
Quelimane; outra causa do avanço das glossinas está na superabundância de caça grossa, fruto
da proibição imposta aos indígenas de caçarem com armas de fogo.
202
– 27/6/1927 (fl. 102). Ao Comissário: a Benga foi invadida por uma grande manada de
búfalos que poderá desencadear o agravamento da infestação glossínica.
– 4/8/1927 (fl. 106). Ao Comissário: à Administração em África foi determinado que os
relatórios e a correspondência fossem redigidos em português.
– 16/8/1927 (fl. 107). Ao Comissário: declaração dos administradores do Chioco
Syndicate Ltd.
– 7/9/1927 (fls. 108/10). Ao Comissário: problemas de mão-de-obra decorrentes da
publicação do novo Regulamento de Trabalho dos Indígenas.
– 12/9/1927 (fl. 111). Ao Comissário: documento em inglês e tradução em português da
modificação introduzida nas convenções entre a Zambezia Mining Development Ltd e a
Sociétè Miniére, de 14/2/1920 e 13/9/1922, respetivamente.
– 16/9/1927 (fls. 112/3). Ao Comissário: repete o mesmo assunto.
– 4/10/1927 (fls. 116/8). Ao Comissário: acentua a necessidade de mão-de-obra para os
prazos Andone e Angoaze, face à recusa de autorização para o recrutamento livre de
quinhentos trabalhadores; calcula a média de um homem para cada dois ha. e fixa em 10.158
a população masculina válida.
– 11/10/1927 (fls. 121/3). Ao Comissário: história dos contratos entre C. Z. e Zambézia
Mining Developmente Ltd.
– 25/10/1927 (fl. 127). Ao Comissário: pede resposta ao pedido para construção do
Caminho-de-ferro de Tete, feito em 28/11/1925.
– 25/10/1927 (fls. 129/35). Ao Comissário: pede a construção de uma estrada até
Massingire; requerimento ao Ministro.
– 1/11/1927 (fls. 135/6). Ao Comissário: pede que na revisão do Tratado de Comércio
com a Espanha se leve em consideração que neste país o sisal proveniente das colónias
portuguesas está sujeito a direitos mais elevados do que o oriundo das possessões inglesas e
holandesas.
– 27/12/1927 (fls. 137/8). Ao Comissário: relembra a necessidade de eliminação da
floresta de Zalala que, como já acentuou em 27/6, continua a ser foco da mosca tsé-tsé.
– 17/1/1928 (fls. 141/2). Ao Comissário: repete o problema abordado a 12/9/1927.
– 9/3/1928 (fl. 143). Ao Comissário: fornecimento por uma firma alemã, a título de
reparações de guerra, de uma draga fluvial e um escavador de valas.
– 13/3/1928 (fl. 144). Ao Comissário: contrato com a Zambézia Mining.
– 17/4/1928 (fl. 147). Ao Comissário: alastramento da mosca tsé-tsé.
– 10/5/1928 (fls. 148/50). Ao Comissário: dificuldades na exploração das minas de
Tete. – 22/5/1928 (fl. 151). Ao Comissário: quatro vapores para o rio Zambeze a serem
fornecidos por empresa alemã, a título de reparações de guerra.
– 20/6/1928 (fls. 152/3). Ao Comissário: dúvidas sobre as contas; lucros, títulos e ações.
– 2/7/1928 (fls. 155/6). Ao Comissário: dezasseis lanchas de 50 e 25 ton. para o
Zambeze, a serem fornecidas por empresa alemã, a título de reparações de guerra.
– 26/7/1928 (fls. 159/60). Ao Comissário: representantes do governo na Administração.
– 30/7/1928 (fl. 161). Ao Comissário: venda das ações da Zambézia Mining e Sociétè
Miniére.
– 5/11/1928 (fls. 167/8). Ao Comissário: doença do sono nos Prazos Chicoronguè,
Mucacame, Zenje e Mahembe.
203
– 10/11/1928 (fl. 170). Ao Comissário: aumento do capital da Sociétè Miniére para
23.100.000 francos belgas.
– 17/11/1928 (fls. 171/2). Ao Comissário: conflito com o governo sobre o representante
de minas da C. Z. em África.
– 21/12/1928 (fls. 174/5). Ao Comissário: dificuldade no recrutamento de um condutor
de minas de nacionalidade portuguesa.
– 21/12/1928 (fls. 177/9). Ao Comissário: alterado o período do ano financeiro.
– 12/3/1929 (fls. 187/9). Ao Comissário: pede que o governo responda às três propostas
importantes que lhe foram apresentadas.
– 16/3/1929 (fls. 190/1). Ao Comissário: nomes, vencimentos, gratificações e
percentagens dos administradores da Companhia da Zambézia.
– 9/4/1929 (fls. 193/5). Ao Comissário: conflito com o governo sobre o representante de
minas da C. Z. em Tete.
– 22/4/1929 (fls. 197/8). Ao Comissário: alterado o período do ano financeiro.
– 24/5/1929 (fl. 203). Ao Comissário: acordo entre a Zambezia Mining e o Chioco
Syndicate.
– 31/5/1929 (fl. 207). Ao Comissário: contrato entre a Zambezia Mining e a Zumbo
Company.
– 11/7/1929 (fl. 211). Ao Comissário: remetem-se importantes documentos relativos à
Sociétè Miniére et Géologique du Zambeze.
– 15/7/1929 (fl. 214). Ao Comissário: vencimento mensal do Comissário do governo,
Marechal Gomes da Costa, fixado em 500 francos ouro; dos cinco administradores por parte
do governo.
– 5/8/1929 (fls. 217/8). Ao Comissário: dúvidas quanto às retribuições compensatórias a
efetuar pela C. Z. no que concerne os impostos normais que são genericamente aplicados aos
corpos gerentes pelo exercício dos seus cargos.
– 23/1/1930 (fls. 226/7). Ao Comissário: alteração dos estatutos.
– 18/2/1930 (fls. 229/33). Ao Comissário: tratado de comércio com a Espanha.
– 10/3/1930 (fls. 230/1). Ao Comissário: envia cópia da exposição que o Grémio dos
Agricultores da Zambézia irá entregar ao Ministério das Colónias; pedirá que as facilidades de
mão-de-obra concedidas pelo Dec. 16.475 continuem em vigor após o terminus do
arrendamento dos prazos.
– 1/7/1930 (fls. 234/5). Ao Comissário: alude às obras de drenagem que aguardam o
fornecimento da draga e da escavadora a serem fornecidas pela Alemanha a título de
reparações de guerra.
– 16/7/1930 (fls. 286/7). Ao Comissário: resposta negativa do Syndicat du Chemin de
Fer de Tete às condições apresentadas pelo Ministério das Colónias, a 31/3/1930, sobre a
concessão do Caminho-de-ferro Tete-Chiromo; a grande depressão alterou a situação
financeira; demora de cinco anos na resposta do governo Português.
– 5/8/1930 (fls. 238/40). Ao Comissário: prejuízos sofridos por Moçambique com a
demora da resolução a tomar pelo governo Central quanto ao Chioco Syndicate, interessado
em pesquisas mineiras.
– 10/11/1930 (fl. 242). Ao Comissário: aborda o mesmo assunto.
– 14/11/1930 (fls. 243/5). Ao Comissário: companhias e sociedades organizadas pela
“Zambezia Mining Development Ltd”.
204
– 17/11/1930 (fl. 246). Ao Comissário: o Sindicato do Caminho-de-ferro de Tete deseja
saber quais as garantias que lhe poderá conceder o governo de Moçambique no empréstimo
amortizável a longo prazo.
– 14/1/1931 (fls. 247/8). Ao Comissário: prazo de validade do acordo entre a Zambézia
Mining Development e o Chioco Syndicate.
– 21/1/1931 (fl. 249). Ao Comissário: ainda sobre o mesmo assunto.
– 16/6/1931 (fl. 252/3). Ao Comissário: sobre o tratado de comércio com a Espanha.
– 18/6/1931 (fls. 254/6). Ao Comissário: roga que o sisal moçambicano seja protegido
no mercado da Metrópole.
– 29/6/1931 (fls. 257/9). Ao Comissário: proposta para a redução numérica dos
membros do Conselho de Administração.
– 30/7/1931 (fls. 261/2). Ao Comissário: pedido para emissão de obrigações.
– 20/8/1931 (fl. 267). Ao Comissário: a Sociétè Miniére pede a construção imediata do
Caminho-de-ferro de Tete.
– 22/9/1931 (fls. 269/71). Ao Comissário: critica a preferência da Cordoaria Nacional
pelo sisal estrangeiro.
– 14/11/1931 (fl. 272). Ao Comissário: pede para que seja reduzido o frete marítimo
aplicado ao sisal moçambicano.
– 24/11/1931 (fls. 274/7). Ao Comissário: critica as práticas injustas da Cordoaria
Nacional. – 26/12/1931 (fls. 279/80). Ao Comissário: envia memorial sobre o pedido de
credito ao B. N. U. – 30/12/1931 (fls. 281/2). Ao Comissário: carta da Zambézia Mining
pedindo a prorrogação, por mais cinco anos, do contrato de exploração.
– 22/2/1932 (fls. 284/6). Ao Comissário: carta da Sociétè Miniére ao Ministério das
Colónias, insistindo mais uma vez na construção do Caminho-de-ferro de Tete; esclarece que
só ultrapassando uma exportação superior a 400.000 ton. por ano seria compensado o
investimento já feito de 23.000.000 francos belgas.
– 29/3/1932 (fl. 287). Ao Comissário: a C. Z. comunica que vai extinguir a sua
Repartição de Minas em Tete.
– 22/4/1932 (fl. 290). Ao Comissário: pede que o Ministro das Colónias visite as
instalações e propriedades da C. Z. em Quelimane.
– 6/12/1932 (fls. 296/7). Ao Comissário: dá a conhecer que o Conselho de Câmbios
indeferiu o pedido de transferência de £ 330 para pagamento dos honorários mensais dos
corpos gerentes.
– 13/2/1933 (fls. 298/9). Ao Comissário: refere as dificuldades na obtenção de cambiais
destinadas à importação de sacaria para géneros exportáveis.
– 20/4/1933 (fls. 300/2). Ao Comissário: trata da criação de bovinos e da mortalidade
provocada pela mosca tsé-tsé.
– 26/5/1933 (fls. 303/4). Ao Comissário: problemas levantados pelo facto da Capitania
do Chinde exigir pessoal europeu ou assimilado para a tripulação dos vapores fluviais.
– 8/9/1933 (fls. 305/10). Ao Comissário: exposição ao Ministro das Colónias referente à
Contribuição Industrial aplicada às companhias coloniais.
– 25/9/1933 (fl. 311). Ao Comissário: lembra que o Ministro das Colónias indeferiu a
prorrogação do contrato firmado a 8/11/1911, entre a C. Z. e a Zambézia Mining
Development, tendo a primeira retomado todos os direitos sobre a produção mineral.
– 19/1/1934 (fls. 315/6). Ao Comissário: a C. Z. pede ao Estado para lhe pagar os
7.745.61 ouro que se comprometeu a pagar pelos prédios urbanos existentes nos prédios de
205
Tete. – 27/2/1934 (fls. 319/20). Ao Comissário: a Sociétè Miniére pede prorrogação até 1940
da concessão carbonífera.
– 15/3/1934 (fl. 321). Ao Comissário: insiste sobre derruba da floresta de Zalala, foco
de tsé-tsé. – 2/4/1934 (fl. 326). Ao Comissário: relatório semestral sobre trabalhos mineiros;
ver Dec. 23.704 (D. G. 26/3/1934).
– 25/4/1934 (fls. 329/30). Ao Comissário: resposta ás questões posta pelo sub-secretário
de Estado das Colónias.
– 28/6/1934 (fls. 331/4). Ao Comissário: sobre reparações de guerra.
– 10/4/1935 (fls. 335/7). Ao Comissário: pesquisas mineiras em Tete pretendidas por
Mello, Castelo Branco, Ltda.
– 3/6/1935 (fls. 339). Ao Comissário: pede para serem reduzidas para 50% as cambaias
a entregar para produtos exportados para a Alemanha.
– 24/8/1935 (fl. 342). Ao Comissário: ofício ao Ministério das Colónias sobre situação
do comércio do chá.
– 10/2/1936 (fls. 343/4). Ao Comissário: prejuízos advindos da exigência de autorização
ministerial para poderem exportar copra para a Alemanha.
– 21/2/1936 (fls. 345/6). Ao Comissário: exportações para a Alemanha.
– 22/2/1936 (fls. 347/9). Ao Comissário: alteração dos estatutos da Sociétè, por força de
determinação legal do governo belga.
– 12/3/1936 (fls. 350/2). Ao Comissário: refere-se ao mesmo assunto que o anterior.
– 27/5/1936 (fl. 355). Ao Comissário: pede autorização para comprar ouro produzido
em Tete, ouro que é contrabandeado para a Rodésia.
– 24/6/1936 (fls. 357/8). Ao comissário: protesta contra a tese sobre o chá em
Moçambique apresentada na Conferência Económica do Império Colonial; o autor parece ter
falado apenas em nome de Hornung & Cia, a cerca da fábrica e das plantações em Milange.
– 6/7/1936 (fl. 362). Ao Comissário: compra de ouro, ver oficio de 27/5/1936.
– 9/7/1936 (fls. 364/6). Ao Comissário: redução a metade de capital da Sociétè Miniére,
sendo a restante para amortizações e prejuízos acumulados.
– 9/7/1936 (fls. 367/8). Ao Comissário: pede redução da entrega ao governo de
cambiais de exportação (25,50,75%); lembra que Salazar reduziu, na Metrópole, esses
entregas para apenas 5%.
– 19/10/1936 (fls. 371/2). Ao Comissário: Ministro das Colónias dificulta a admissão de
suíço com pratica de contabilidade e conhecimento de português, francês, inglês e alemão.
– 21/10 e 5/11/1936 (fls. 373/5). Ao Comissário: alteração dos estatutos da Sociétè
Miniére. – 20/11/1936 (fls. 376/8). Ao Comissário: resolução da Conferencia Económica do
Império Colonial que afeta o chá de Moçambique.
– 21 e 23/11/1936 (fls. 379/80). Ao Comissário: declaração de 27.003 dos corpos
gerentes e de pessoal.
– 7/12/1936 (fls. 381/2). Ao Comissário: autorização ministerial para empregado
português regressar a Moçambique.
– 22/2/1937 (fls. 383/8). Ao Comissário: informações, relação de manifesto e licenças
mineiras no distrito de Tete.
– 15 e 22/3/1937 (fls. 390/1). Ao Comissário: autorização para entrada de um
marnoteiro para salinas no Idugo, Zambézia.
– 24/3/1937 (fls. 392/8). Ao Comissário: manifesto e licenças mineiras de 1936.
206
– 5/4/1937 (fls. 399/400). Ao Comissário: posição da C. Z. sobre nova legislação
relativa ao comércio de algodão em rama.
– 8/4/1937 (fls. 401/2). Ao Comissário: juros excessivos cobrados pelo B. N. U.: 8%
nas contas caucionadas e 1% de comissão sobre totalidade do crédito; em Portugal era apenas
4%. – 19/4/1937 (fls. 403/6). Ao Comissário: decreto sobre comércio de algodão a publicar
pelo Ministro do Comércio e Industria; interesses coloniais e o Grémio de Importadores de
Algodão. – 2/6 e 1/7/1937 (fls. 407/8). Ao Comissário: novo contrato entre a C. Z. e a
Zambezia Mining. – 13/8/1937 (fl. 412). Ao Comissário: pede para a B. N. U. baixar a taxa de
juro para 6%; lembra que o Banco de Portugal a baixou para 4%, na sequência da política de
Salazar “que Deus proteja e permita que continue a gerir por muitos anos o governo deste
País…”.
– 18/8/1937 (fls. 413/4). Ao Comissário: pede que o chá seja incluído entre os produtos
mencionados no acordo comercial luso-alemão.
– 21/8/1937 (fls. 415/7). Ao Comissário: envia cópia da carta em que a Sociétè Miniére
esclarece ter feito um acordo com uma sociedade privada especializada em pesquisas
mineiras. – 23/8/1937 (fls. 418/9). Ao Comissário: sobre o Dec. 27.983 e a falta de pagamento
das reparações de guerra.
– 2/10/1937 (fls. 420/8). Ao Comissário: rebate o conteúdo de uma informação enviada
ao Ministro dos Colónias pelo B. N. U. sobre o pedido da C. Z. para ser reduzida a taxa de
juro do empréstimo em conta corrente aberto em Quelimane, para compra de algodão aos
indígenas.
– 19/10/1937 (fls. 429/32). Ao Comissário: cálculo dos prejuízos advindos da cultura
algodoeira devido à quebra das cotações mundiais; referência aos preços fixados no B. O. nº
23/3ª série, de 9/6/37: 1$30 o de 1ª qualidade; $90 o de 2ª qualidade.
– 13/11/1937 (fl. 434). Ao Comissário: o Sindicato Zambeziano é, na verdade, uma
secção da Sociétè Miniére dedicada unicamente a pesquisas mineiras e com contabilidade
diferente da relativa à exploração carbonífera.
– 15/11/1937 (fls. 435/6). Ao Comissário: propõe um plano para a fixação de colonos
europeus no Gurué.
– 15/11/1937 (fl. 437). Ao Comissário: despacho ministerial sobre o relatório de 1936.
– 22/11/1937 (fl. 438). Ao Comissário: introdução de géneros coloniais no acordo
comercial com a Alemanha.
– 7/4/1938 (fls. 444/5). Ao Comissário: pede que as 240.000 ações na posse de
Franceses sejam isentas do imposto de capitais; nota: num total de 600.000 ações, 135.000
pertenciam ao Estado e 225.000 a Portugueses.
– 19/4/1938 (fls. 446/7). Ao Comissário: alude às reparações de guerra.
– 27/5/1938 (fls. 454/5). Ao Comissário: pergunta se a C. Z. deve estar compreendida
entre os “produtores europeus” obrigados pelo Art. 37º do Dec. nº 26.697, a inscreverem-se
na Junta de Exportação de Algodão Colonial; recorda que as concessões da C. Z. foram
atribuídas pelos Decretos nos 11.994 e 20.881, de 28/7/1926 e 6/2/1932.
– 13/7/1938 (fl. 457). Ao Comissário: alteração dos estatutos da Sociétè Miniére.
– 22/7/1938 (fl. 458). Ao Comissário: carta da Sociétè Miniére sobre o recrutamento de
indígenas no distrito de Tete; pede a atenção do Ministro das Colónias para este importante
assunto. – 29/8/1938 (fls. 459/60). Ao Comissário: sobre a moeda usada nos pagamentos aos
empregados.
207
– 6/10/1938 (fls. 461/3). Ao Comissário: protesto por a Junta rebaixar para a 2ª
qualidade o algodão que na presença de autoridades, foi classificado e pago como sendo de 1ª
qualidade.
– 14/10/1938 (fls. 464/6). Ao Comissário: protesto contra as alterações introduzidas no
modo de classificação do algodão pelos decretos que se seguem: nº 27.702, sobre a orgânica
da Comissão Reguladora do Comércio do Algodão em Rama; nº 28.697 e nº 28.851, sobre a
orgânica da Junta da Exportação de Algodão Colonial. Os novos critérios só podem ser
empregados em algodões descaroçados e não no algodão caroço apresentado nas feiras.
– 19/12/1938 (fls. 467/8). Ao Comissário: depois de expor suas razões, pede ao
Ministro que autorize os vendedores de algodão colonial a receberem, não dos compradores,
mas diretamente da Comissão Reguladora do Comércio do Algodão os quantitativos da
diferença entre os preços mínimos fixados pelo § 4º do Art. 8º do Dec. nº 29.698 e o preço do
custo em Portugal de algodão americano.
– 2/1/1939 (fls. 469). Ao Comissário: em resposta à confidencial urgentíssima de
30/12/1938 informa ter telegrafado imediatamente ao diretor dos Serviços em África
ordenando a compra de todo o algodão dos indígenas na Mutarara e Benga.
– 13/3/1939 (fl. 472). Ao Comissário: protesta contra as diferenças de frete a pagar pelo
sisal = 573$75 Moçambique–Lisboa; 473$23 Moçambique–Estrangeiro; 170$00 Angola–
Lisboa. – 9/5/1939 (fl. 473). Ao Comissário: informa ser o presidente L. F. da Silva Viana
que segue na comitiva do presidente da Republica.
– 10/5/1939 (atenção: a fl. 476 é a primeira parte do ofício, continuado na fl. 475). Ao
Comissário: protesta contra a taxa de $25 por kg de algodão exportado, independentemente da
classificação; acrescenta ser “… de recear nos indígenas maior relutância do que a que já
manifestam em alguns pontos por esta cultura”.
– 24/5/1939 (fl. 477). Ao Comissário: texto do discurso a pronunciar pelo presidente do
Conselho de Administração perante o presidente da Republica na visita à C. Z., Boror e
Madal. – 25/5/1939 (fl.478). Ao Comissário: despacho do Ministro das Colónias sobre
alterações no conteúdo dos contratos com os empregados.
– 5/6/1939 (fls. 480/1). Ao Comissário: queixa-se da concorrência dos vapores da
Trans-Zambezia Railway no transporte de carga no rio Zambeze.
– 14/6/1939 (fl. 482). Ao Comissário: o Conselho de Tarifas para as Colónias de África
resolveu baixar para 140$00 p/m3 o frete do sisal transportado do Chinde para Lisboa.
– 26/7/1939 (fl. 484). Ao Comissário: envia cópia da exposição feita pelo chefe da
Secção Algodoeira na Mutarara.
– 8/8/1939 (fl. 485/90). Ao Comissário: discorda frontalmente dos cálculos feitos pela
Junta de Exportação do Algodão Colonial sobre as contas de exploração da sua zona
algodoeira que em 1938 deu há C. Z. prejuízos avultados; problema da classificação do
algodão em três qualidades.
– 13/12/1939 (fls. 491/2). Ao Comissário: queixa-se da falta de praça nos navios
nacionais para escoar a carga acumulada nos portos moçambicanos.
– 11/3/1940 (fl. 496). Ao Comissário: envia os elementos pedidos pelo Ministro das
Colónias sobre a produção de copra; 50% da produção deve ser reservada à Metrópole.
– 19/3/1940 (fls. 497/9). Ao Comissário: queixa-se de que as fábricas, por excesso dos
seus stocks, se recusam a comprar os 50% da copra da C. Z. que foi acordado exportar para
Portugal.
208
Bibliografia
1) 1897. Companhia da Zambézia, (desdobrável com) Mapa dos Territórios das Concessões desta
Companhia. Lisboa, mapa coordenado por Affonso de M. Sarmento.
209
15º
DOCUMENTO
Arquivo da Companhia da Zambézia
A Última Carta de Paiva d’Andrada
(datilografada, sem data mas recebida a 10 maio 1923)
(Pasta com o nº 1 e o seguinte rótulo na lombada: janeiro 1922 a dezembro 1923 – Correspondência Nacional e
Estrangeira (Ortografia atualizada)
Peço-lhe que converse sobre o assunto desta carta com os nossos amigos, Roma
Machado e Portugal Durão, e que, se os três estão de acordo, proponham ao Conselho de
Administração da nossa Companhia da Zambézia, em seu nome, e também no meu, que seja
votada uma modesta pensão à infeliz filha do capitão-mor de Manica, Manuel António de
Sousa, em consideração dos relevantíssimos serviços por ele prestados à Zambézia.
Nas primeiras vezes que eu fui à Zambézia, a viagem desde Lezaro a Tete fazia-se em
escaleres, coches e almadias, tripulados por alegres marinheiros que iam cantando todo o dia.
Chegando porém a altura de uma Aringa na foz do Muira, e entrando na Lupata cessavam os
cantos e os marinheiros só falavam em voz baixa contando coisas tristes e mesmo fantásticas.
Entrava-se na região ocupada pelo Bonga, fechada ao sul do Zambeze por um círculo de umas
trinta Aringas que se estendiam desde o Muira, a leste, até outras situadas no Mazoé, havendo
uma pequena destas Aringas no monte que comanda a capital do distrito, à vista é a distancia
de tiro da casa do governador, Aringa que os habitantes de Tete facilmente poderiam destruir,
mas o que ninguém ousara fazer porque seria levantar a guerra contra todo o poder do Bonga.
A principal das Aringas era a Grande Aringa de Massangano, residência do Bonga, situada na
margem direita do Zambeze e próximo da margem direita e foz do Luenha. As circunstâncias
da navegação, pela força da corrente das águas do Luenha, juntando-se às do Zambeze,
obrigavam todas as embarcações a encostar-se à pequena praia por baixo da margem sobre o
qual estava construída a Aringa.
No centro do rio a água do Zambeze é tão funda que não permite o emprego dos pondos
(varas) e à pagaia era impossível vencer a corrente; a margem esquerda do Zambeze, nessa
altura, não permite o emprego da cirga. Assim era forçoso encostar as embarcações à praia da
margem direita do Zambeze, entrar no Luenha, que tinham de subir o bastante para que,
descaindo no emboco, com a força da corrente atingissem a margem esquerda deste rio antes
de chegar ao Zambeze para que, bem encostados à terra, pudessem voltar para o Zambeze já
livres da corrente do Luenha.
Assim todos os viajantes da Zambeze forçados a encostar à praia da Aringa eram
virtualmente obrigados a dar algum presente ao Bonga. O próprio governador de Tete,
dirigindo-se para a capital do seu distrito, tinha que parar junto à praia em frente de meia
dúzia de pretalhões do Bonga, que o vinham cumprimentar e a quem ele tinha que dar alguns
210
garrafões de vinho em frente dos crânios do major Portugal de Valdez Bonfim e de muitos
outros espetados nos paus da Aringa.
Conhecendo os elementos da força de que dispunha o capitão-mor de Manica na
Gorongoza e outros prazos da Coroa, de que ele era arrendatário, e sobretudo no Báruè, que
ele tinha conquistado ao Macombe e de que ele era considerado dono, e também os elevados
sentimentos de patriotismo deste grande português, achei que tínhamos em mão os meios para
acabar com as vergonhas a que acabo de me referir, e eu, que tinha sido nomeado pelo
governo para instalar o novo distrito de Manica, cuja sede foi efetuada em Chemba, na
margem do Zambeze, com a chegada do primeiro governador e do secretario do governo, e
que nessa época ainda não tinha avançado além de Gorongoza, autorizado pelo governador da
Província a proceder como entendesse, estudei o modo de ataque e arrasamento de todas as
aringas do Bonga, com os sipais do Manuel António, auxiliado também, para as Aringas de
extremo leste, pela gente dos Ferrões de Sena, e para as do extremo oeste com os sipais
também (mais tarde) infeliz capitão-mor da Chicoa, Ignácio de Jesus Xavier. O plano
combinado foi posto felizmente em execução e em poucos dias todas as Aringas estavam
arrasadas, o poder do Bonga demolido e a navegação do Zambeze livre de qualquer entrave.
É interessante consignar que o Ministro da Marinha fazendo-me a honra de confiar no
meu bom senso e na minha prudência me entregou uma portaria concedendo-me poderes
superiores aos dos governadores dos Distritos, pois em nome dele Ministro, podia a cada
instante dar a demissão a qualquer dos governadores.
Quando eu com Manuel António de Sousa, estávamos em acampamento no Báruè para
partirmos com as forças principais, apareceu a do governador do distrito, Major Ferreira
Simões que acabava de chegar de Lisboa. Desejou seguir connosco, apesar de começar logo a
ter grandes febres. Pusemo-nos a caminho e no acampamento em que ficámos na noite que
precedia o dia em que devíamos chegar à 1ª Aringa, o governador estava por tal forma doente
com uma tão grande febre que era impossível continuar a viagem e teve que ficar no
acampamento.
Tivemos efetivamente o primeiro combate neste dia com favoráveis resultados, e
apressei-me a mandar a boa notícia ao governador. Os portadores regressaram com a terrível
informação de que ele se tinha suicidado com um tiro. No delírio da febre o brioso oficial,
provavelmente supondo-se desonrado por não ter acompanhado os que iam combater, tomou
essa terrível resolução.
Quando voltei a Lisboa fiz uma conferência na Sociedade de Geografia sobre os
recentes acontecimentos da Zambézia. Poucos dias depois recebi um folheto impresso, escrito
pelo P.e Brandão, pároco de uma freguesia de Lisboa e deputado muito conhecido, acusando-
me e a Manuel António de Sousa de termos mandado assassinar o Major Ferreira Simões.
Tempos depois achava-me noutro serviço em Manica, acompanhando-me o Manuel
António. Já ali estavam vários pesquisadores ingleses, em contrato com a Companhia que deu
origem à Companhia de Moçambique. Chegaram ali ingleses da nova British South Africa
Company, que se juntaram no acampamento deles no dia seguinte àquele em que alguns
pesquisadores jantaram à minha mesa, estávamos numa palhota dentro da Aringa do régulo
Mutassa conversando com ele quando ouvindo um desusado movimento dos pretos, saímos
eu e o Manuel António, de gatinhas, da palhota cuja porta era extremamente baixa, e
encontrámo-nos com uma meia dúzia de ingleses armados que tranquilamente tinham entrado
na Aringa e que nos deram a voz de prisão. Tivemos logo que começar a viagem num carro
escoltado por homens a cavalo que nos conduziram ao lugar que já tinha recebido o nome de
Salisbury aonde encontrámos o representante da Companhia e fomos muito cortesmente
recebidos por ele, mas o que queriam era ver-nos fora do pais, e fizeram-nos seguir ainda
como presos na direção do Cabo.
211
Deram-me o grande carro do administrador puxado por dezoito bois brancos, carro em
que devíamos seguir, eu e o Manuel António e o oficial que vinha connosco.
Querendo dar-me uma outra prova de consideração, meteram no carro uma caixa com
garrafas de champanhe de que o nosso guarda se aproveitou.
No caminho para o sul, encontrámos o Dr. Jameson, depois tão afamado pelo seu infeliz
raid sobre o Transval, que me disse que eu estava livre e podia ir para onde quisesse, e como
já me não convinha outra coisa que não fosse o complemento da viagem até ao Cabo, pediu-
me para eu levar às minhas ordens o oficial que até então nos tinha servido de “guardian”, o
que muito mais cómodo tornaria a viagem.
Tinha sucedido que a noticia da minha prisão fora comunicado pelo telégrafo para a
Europa e que, logo que o Ministro de Portugal em Londres, o meu velho amigo cuja perda o
país acaba de sofrer, o Marquez de Soveral, dele teve conhecimento, dirigiu-se ao governo
Inglês, reclamando que eu fosse imediatamente solto dando este governo logo para o Cabo a
ordem que o Dr. Jameson me comunicara.
Chegado ao Cabo, nada havia melhor a fazer de que embarcar com Manuel António
para Lisboa onde Manuel António foi muito festejado, Malhoa fez-lhe um belo retrato, que
não sei onde está mas que, com grande prazer, veria nas paredes da sala do nosso Conselho de
Administração.
Estávamos no Hotel Universal, hoje Grandes Armazéns do Chiado e ali nos procurou o
P.e Brandão. Ainda fortemente indignado com a infâmia do seu folheto, eu não quis vê-lo, o
que depois senti, mas o Manuel António, de acordo comigo, recebeu-o.
Não sei, ou não me lembro, como ele se desculpou para Manuel António, mas sei que
lhe dirigiu muitos cumprimentos e que lhe pediu para que quando partisse levasse consigo um
presente de paios ou chouriços da especialidade da terra dele. Efetivamente quando Manuel
António, pouco depois embarcou para a África no vapor que estava no meio do Tejo, e onde
não subiam os visitantes, eu vi do meu bote aquele em que o P. e Brandão levava um grande
cesto que fez subir para bordo, agitando ele os braços em afetuosa despedida a Manuel
António que estava em cima.
Durante o pouco tempo que o Manuel António de Sousa esteve em Lisboa entre outras
manifestações de reconhecimento que ele recebeu, o Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Barros Gomes deu-lhe em sua casa um jantar a que assistiu o presidente do Conselho e todo o
ministério e ao qual também eu assisti.
Não posso resistir a contar uma história que se prende com a origem da nossa
companhia.
No dia seguinte aquele em que o Diário do governo publicou o decreto de 26 dezembro
1878, o 1º decreto das nossas concessões, o Progresso, Jornal de Emigdio Navarro, publicou,
em artigo de fundo, um extenso e violentíssimo artigo com o título de monstruoso escândalo
combatendo a concessão.
No dia seguinte o Diário Popular de Mariano de Carvalho, caso não comum,
reproduziu sem alterar uma palavra e sem qualquer menção, como se fosse artigo próprio e
em artigo de fundo e também com o mesmo título, o artigo publicado na véspera pelo
Progresso, tendo estas duas publicações causado então uma grande excitação no país.
No circo do Price, ao Salitre, reuniu-se um grande meeting, convocado juntamente por
todos os que não tendo conseguido então derrubar o ministério regenerador de Fontes Pereira
de Mello, vieram meses depois com um outro protesto, o da Penitenciária a derrubar o
governo e a constituir o novo Ministério.
212
No jantar a que me referi estavam, como ministro das Obras Publicas Emigdio Navarro
e como ministro da Fazenda Mariano de Carvalho, falava-se calorosamente dos grandes
serviços que acabavam de ser feitos na Zambézia, e E. Navarro exclamou: e lembrar-nos do
que se disse em tempo da concessão Paiva d’Andrada.
Mariano de Carvalho, com o espírito e descaramento que o caracterizava, voltando-se
para E. Navarro replicou-lhe, rindo do que se disse? O que nós dissemos!
O sistema da Administração dos vastos territórios constituídos pelo prazo Gorongoza e
outros prazos arrendados a Manuel António e pelo chamado Reino do Báruè, consistia na
criação de muitos luanes, dirigidos por nhanhas de Manuel António. Estes luanes eram como
centros de distritos em que havia povoações de vários capitães e em que estavam espalhados
todos os sipais de Manuel António. Quando constou na Zambézia que o Manuel António
tinha sido preso e que tinha partido para a Europa, pensaram que ele não mais voltaria e
diferentes capitães tomaram conta de um grande número de luanes e das nhanhas que ali
estavam.
À noticia da volta de Manuel António não viram outro recurso senão o de se unir e de se
voltar contra ele. Com a gente que lhe tinha ficado fiel Manuel António procurou fazer voltar
tudo à ordem, pondo-se em campo contra os revoltosos. Um dia, em combate, um soldado
branco que, não sei como, estava com ele, caiu morto com uma bala.
As forças dos revoltosos eram em muito grande número e não se tornava possível
vencê-las; os pretos fiéis queriam que se pusessem em retirada levando Manuel António na
sua maxila, Manuel António porém, apesar do presente da especialidade da terra do P. e
Brandão, teve provavelmente presente a acusação de assassino que por ele lhe tinha sido feita,
(o único soldado branco que estava com ele estava morto a seus pés), e recusou-se a ser salvo
pelos seus pretos fieis.
Sentou-se numa pedra, e ali em plena saúde e pleno vigor, foi sem oferecer resistência
alguma, cortado a machado pelos seus antigos pretos, e assim tão terrivelmente acabou este
grande patriota e esse homem de valor, ao serviço de quem a Companhia da Zambézia deve o
ter encontrado livre a navegação do rio, sem ter que se sujeitar à humilhação em frente da
Aringa do Bonga.
Manuel António tinha muito filhos e filhas nascidos nos seus diferentes luanes e que
pela Gorongoza e outros prazos devem estar passando cafrealmente vida descuidada.
Tinha ele desejado que uma filhinha fosse educada em Lisboa.
Foi mandada aos cuidados do nosso falecido colega e meu particular amigo general
Couvreur. Não me lembra se ela estava batizada ou se é minha afilhada, tendo-me o general
Couvreur representado no batizado como fez no do Dr. J. Lobo d’Ávila de Lima de quem o
pai, que estava comigo em África, me pediu para ser padrinho.
A pequenita que se chama Dorothéa, foi posta nas Salesias onde recebeu uma boa
educação com meninas da nossa melhor sociedade.
Manuel António mandava ao general Couvreur os fundos necessários para todas as
despesas. Eu, sempre em viagens, não tinha conhecimento de que se passava, sei que esta,
mais tarde casou com um comercial chamado Pinto Chrysóstomo, que mais tarde foi nomeado
para um bom lugar na Índia.
Falando um dia com o que era então ministro da Marinha e das Colónias, o meu amigo
de infância e grande colonial almirante Augusto de Castilho, disse-me ele: o que não deve o
governo fazer por uma filha do Manuel António. Assim esse homem foi nomeado para esse
lugar no governo da Índia por influência da sua mulher. Mais tarde soube que esse homem se
213
tinha juntado a outra mulher e que pretendia divorciar-se com o pretexto de que a mulher
cheirava a preta.
Eu nunca cheirei dona Dorothéa, mas a primeira vez que me lembra tê-la visto foi
procurando-me ela com dois pequenos, um vestido com farda do Colégio Militar, que eram
filhos desse homem que noutro tempo devia ter o olfato menos sensível; o facto é que o
processo de divórcio tem-se arrastado nos tribunais sem solução, ficando essa pobre mulher,
hoje completamente cega, abandonada com os seus filhos sem recursos alguns. Justamente já
depois de ter começado esta carta soube que o tribunal resolveu que esse homem sustentasse
os seus dois filhos que já devem hoje ser homens, que parece estão num colégio em Lisboa,
mas a mulher, essa filha de Manuel António (cega), a quem nós todos tanto devemos,
continua abandonada em Lisboa na miséria, e eu peço aos meus amigos para se interessarem
por ela e para obterem do Conselho de Administração da nossa Companhia, que em
consideração do que a Zambézia deve a Manuel António, seja dada uma modesta mesada à
sua infeliz filha.
Peço mais ainda aos meus três amigos que usem da sua influência para obterem do
Ministério das Colónias também um auxilio, que de tanta justiça é dar-lhe, e assim com duas
modestas mesadas, essa pobre e infeliz criatura poderá ter assegurada uma vida tranquila.
Quando o nosso camarada e amigo Freire d’Andrade partiu há pouco para África, eu escrevi-
lhe sobre a aflitiva situação de dona Dorothéa e pedi-lhe para que ele falasse em L. Marques a
respeito dela com o Alto-Comissário. Mas as tormentosas condições desta desagradável
viagem, não lhe terão dado ocasião de se ocupar do assunto, depois que ele voltou não lhe
escrevi ainda, fui levado a fazer esta carta, tão extensa pelo interesse de assuntos que tanto se
ligam com a minha estada na Zambézia e com a história da nossa Companhia.
De V. Ex.ª.
Colega e amigo Muito Obrigado.
(Ass.) Joaquim C. Paiva d’Andrada
Adendas:
a) Na pg. 441 das suas memórias, Azevedo Coutinho presta esta última homenagem a
Andrada: “… muito velho já, mas sempre incansável, voltou as suas atenções para
Angola, constituindo com a casa Burnay – que quase sempre financiou as suas
múltiplas empresas e outras entidades – a grande, poderosa e próspera Companhia
dos Diamantes de Angola, hoje dirigida… pelo oficial de Marinha Ernesto de
Vilhena”.
b) Parece credível a hipótese de Paiva d’Andrada haver ocultado deliberadamente, até
ao fim da sua vida, os factos que desmentem a afirmação que consta da página
210: “… Tempos depois achava-me noutro serviço em Manica, acompanhando-me
o Manuel António. Já ali estavam vários pesquisadores ingleses, em contrato com
a Companhia que deu origem à Companhia de Moçambique”.
c) O Documento nº 6 (pp. 49-58) apresenta provas esmagadoras de que a veracidade
histórica parece ser totalmente diferente. Nem sequer menciona o próprio Barão de
Resende. Sugerimos ao leitor que estude cuidadosamente o conteúdo desse
importante documento, até ao fim do ofício do engenheiro Charles Llamby. O
estranho procedimento de Paiva d’A ndrada poderá estar relacionado com a sua
decisão de abandonar Portugal e de fixar residência definitiva em Paris.
215
16º
DOCUMENTO
Evolução moderna da corrente migratória entre o sul de Moçambique
e a África do Sul
Bibliografia
17º
DOCUMENTO
Para que o leitor fique com uma pálida ideia deste infernal e paralisante problema –
nunca resolvido mas pelo contrário tornado cada vez mais impeditivo – juntamos no final dois
anexos contendo apenas a legislação aplicável aos indígenas.
Este entrave era tanto mais prejudicial quanto é certo que os governadores nomeados
pelo Ministério, quase em exclusivo pertencentes ao oficialato das forças armadas, eram
mantidos nas suas comissões por períodos demasiadamente curtos. Quando se consulta com
atenção a síntese cronológica publicada por M. Simões Alberto e Francisco A. Toscano em
1942, causam espanto as constantes mudanças do pessoal com responsabilidades
governativas. É certo que estas permanências fugazes podiam explicar-se pela morbilidade ou
até mesmo mortalidade provocada pelas temíveis doenças tropicais.
Como exemplo podem citar-se três enumerações de rigor indiscutível efetuadas por
moradores, com residência fixa quer no Ibo quer em Sofala. O primeiro é da autoria do P.e
Constantino Gerhard e reporta-se às nomeações para o desempenho do cargo de “governador
e capitão-mor das ilhas de Quirimba”. Entre 1776 e 1884, o missionário forneceu os
elementos de identificação de 71 ocupantes. Encontrou uma média de apenas 18 meses de
permanência. Reportando-se à mesma região, Ribeiro Torres contou 97 governadores entre
1505 e 1765. Por seu lado, em Sofala, Hermenegildo da Silva, relacionou 66 governadores
com os respetivos nomes próprios, datas de posse, postos ou graduações e até os cognomes
indígenas e sua significação. Redigiu extensas notas sobre os acontecimentos ocorridos em
cada governação. Calculou uma permanência média de 23 meses por cada governador.
Não se pode duvidar de que a abolição do indigenato e a natural evolução das antigas
populações rurais e tribais vieram contribuir para aumentar cada vez mais o movimento
burocrático das administrações, entre outras razões porque deixaram de poder resolver-se, de
modo expedito e sem formalidades, as inúmeras questiúnculas de direito privado e outras de
somenos importância em que constantemente se achavam mergulhadas as populações
nativas, questiúnculas que eram outrora resolvidas – sem clemência mas com rapidez e
eficácia – pelos despóticos monarcas tradicionais.
221
ANEXO I
1º - Relações de Trabalho
a) Port. 1.180, de 4/9/1930 (B. O. 35/30, I série) Aprova o Regulamento do Trabalho dos
Indígenas;
b) Port. 5.565, 12/6/1944 (B. O. 24/44, I série) Aprova o Regulamento dos Serviçais
Indígenas;
c) Port. 7.798, 2/4/1949 (B. O. 14/49, I série) Revoga a Port. 5.565, aprovando o novo
Regulamento dos Serviçais Indígenas e introduzindo alterações substanciais no anterior
regime visto que a competência para celebração de contratos, para fiscalização de trabalho,
etc., deixa de pertencer ao Comissariado de Polícia e passa para o curador-geral dos Indígenas
e seus Agentes. Regula-se o trabalho e faz-se a classificação profissional dos empregados nos
principais centros urbanos. 70% das suas taxas de execução seriam reservados para
construção de Bairros Indígenas;
d) Despacho (B. O. 25/53, III série) Aprova as tabelas de alimentação;
e) Despacho (B. O. 33/53, I série) Estabelece algumas normas gerais;
f) Port. 11.462 (B. O. 18/56, I série, Supl.) Estabelece classificações para as entidades
patronais e para os trabalhadores. No que concerne os profissionais das artes gráficas fixa as
suas qualificações, condições especiais e remunerações mínimas. Foi aplicável aos indígenas
nos termos do Art. 17º e seus parágrafos.
Obs. – Deseja-se salientar que as relações profissionais em que intervinham indígenas
se encontravam estruturadas no respetivo Código e que tanto a respetiva regulamentação
como a posterior legislação publicada em Moçambique foram profunda e naturalmente
influenciadas pela natureza eclética subjacente.
É que não só se disciplinaram, classificaram e orientaram as várias modalidades de
prestação de serviço, como também se regulamentou todo um vasto setor de teóricas
realizações de carácter social. Mereceram cuidados especiais a assistência médica, o tipo de
alojamentos, o nível de salários, a qualidade de alimentação, a proteção ás famílias, a
profilaxia e ainda da garantia de ensino para os filhos e a organização de distrações culturais e
desportivas. Assim, é forçoso reconhecer o carácter fundamental do Código de Trabalho dos
Indígenas, regulamentado na Província pela supracitada Port.1.180. A propósito, da última
disposição citada (Port.11.462) convêm acentuar que já vigorava suficiente legislação
disciplinando o trabalho, legislação que embora ainda não aplicável a indígenas merece ser
aqui citada porque se identificava com a Organização Corporativa do Trabalho e porque já se
encontravam em estudo disposições legislativas que visavam integrar os profissionais com
aquele estatuto. De resto, é isto mesmo que se infere do segundo artigo daquele Dip. Leg.
1.595:
Esta legislação, vulgarmente designada por Regime Jurídico das Relações de Trabalho e
Legislação Complementar, era constituída pelo Dip. Leg. 1.595, de 7/5/1956 (B. O. 18/56, I
Série) e pelas Ports. 11.459 a 11.476, todas de 7/5/1956 (B. O. 18/58, I Série).
2º-Acidentes de trabalho
a) Port. 5.483, 8/4/1944 (B. O. 15/44, I série) Aprova o respetivo Regulamento. (O seu
Art. 10º encontra-se alterado pela Port. 12:462, B. O. 12/58, I Série).
3º-Remunerações a indígenas
a) Port. 2.778 (B. O. 24/36, I série) Altera os salários mínimos dos recrutados para
Manica e Sofala e regula a celebração dos respetivos contratos;
b) Port. 8.779 (B. O. 37/37, I série) Regula os salários dos trabalhadores contratados para
S. Tomé e Príncipe. Foi revogada pela Port. 11.335, B. O. 27/46;
c) Port. 10.962 (B. O. 27/54, I série) Esclarece os casos em que são pagos a trabalhadores
indígenas os salários dos domingos e dias feriados; regula os descontos por faltas ao serviço;
d) Aviso (B. O. 22/55, III série) Aprova a tabela salarial dos indígenas empregados pelas
atividades agrícolas e industriais;
e) Aviso (B. O. 20/58, III série) Aprova a tabela de salários mínimos fixados para
marinheiros;
f) Dip. Leg. 1.664, 1.723 e 1.893, publicados respetivamente nos Bs. Os. 13/57, 48/57 e
41/59, I série, Supl. Estabelecem as categorias e salários a atribuir aos serventuários do Estado
(incluindo os indígenas);
g) Despacho (B. O. 51/57, I série);
h) Despacho (B. O. 31/59, I série) Determina como efetuar a retenção parcial do salário a
pagar no local do trabalho (Art. 182º e 183º do R. T. I.).
4º-Assistência à Família
a) Port. 12.202 (B. O. 47/57, I série) Estabelece o abono de família a pagar aos
serventuários de Estado; revoga a legislação anterior;
b) Dip. Leg. 1.794, (B. O. 37/58, I série) Cria o Fundo para construção de casas
destinadas à população indígena. (Vide Dip. Leg. 1.868 e Port. 13.260, respetivamente nos
Bs. Os. 26/59 e 31/59).
223
5º-Assistência Médica
6º-Assistência agropecuária
a) Dip. Leg. 404, de 14/2/1934 (B. O. 7/34, I série) Cria medidas de proteção pecuária
que beneficiam os criadores indígenas.
b) Dip. Leg. 919, de 5/8/1944 (B. O. 32/44, I Série) Aprova o Estatuto do Agricultor
Indígena.
c) Dec. 34.633, de 28/5/1945 (B. O. 31/45) Cria o Fundo de Crédito Rural destinado a
conceder empréstimos aos supracitados agricultores indígenas.
d) Port. 6.408, de 6/4/1946 (B. O. 14/46, I Série) Fixa em 250$00 a Taxa Social criada
pelo Art. 53º, do Dip. Leg. 919.
e) Port. 9.893, de 23/5/1953 (B. O. 21/53) Aprova o Regulamento das Granjas
Administrativas.
f) Dip. Leg. 1.562, de 15/10/1955 (B. O. 42/55, I Série) Regulamenta o comércio
pecuário em Gaza e L. Marques e prevê a cobrança de uma taxa de fomento (Ver Despacho
no B. O. 3/56).
a) Port. 64, (B. O. 37/21) Cria medidas de proteção à mulher indígena, especialmente à
que se encontra em estado de gravidez;
b) Port. 176, (B. O. 35/25) Constitui a Comissão de Previdência e Assistência Social com
o objetivo de melhorar as condições de vida das populações indígenas;
c) Dip. Leg. 79, (B. O. 24/28) Concede pensões mensais a assalariados indígenas que não
possam continuar a trabalhar, por doença incurável ou idade avançada;
d) Port. 1.515, (B. O. 47/31) Cria um fundo permanente à ordem do diretor dos Serviços
dos Negócios Indígenas, para prestar socorro aos pobres e aos inválidos;
e) Dip. Leg. 668, (B. O. 42/39) Estabelece para os assalariados com mais de quinze anos
de serviço, o direito a uma pensão de invalidez, quando dispensados por motivo de doença
incurável ou idade avançada;
224
f) Dip. Leg. 812, (B. O. 41/42) Torna extensivos aos serviçais indígenas dos corpos
administrativos a regalia concedida pelo Dip. Leg. 668;
g) Dip. Leg. 1.512, (B. O. 16/1955) Insere disposições relativas aos Serviços de
Assistência Pública.
a) Dip. Leg. 168, de 3/8/1929 (B. O. 31/29, I Série) Regula o funcionamento das escolas
particulares do ensino primário para indígenas, dirigido por missões religiosas de diversas
confissões e nacionalidades, estabelecidas ou a estabelecer no território;
b) Port. 1.907, de 25/3/1933 (B. O. 14/33, I Série) Aprova o Regulamento da Escola de
Habilitação de Professores Indígenas;
c) Port. 2.141, de 2/12/1933 (B. O. 48/33, I Série) Aprova o Regulamento das Escolas
Profissionais para Indígenas do Sexo Feminino (substitui o aprovado pela Port. 1.117, de
17/5/1930);
d) Port. 2.154, de 30/12/1933 (B. O. 52/33, I Série) Aprova o Regulamento das Escolas
Distritais de Artes e Ofícios para Indígenas do Sexo Masculino (substitui o aprovado pela
Port. 677, de 25/2/1928);
e) Port. 2.170, de 17/1/1934 (B. O. 3/39, I Série) Aprova o Regulamento do Ensino
Primário Rudimentar (substitui o aprovado pela Port. 1.114, de 17/5/1930);
f) Port. 2.969, de 10/2/1937 (B. O. 6/37, I Série) Revoga o Regulamento da Escola de
Habilitações de
Professores Indígenas aprovado pela Port. 1.907; g) Port. 6.668, de 16/11/1946 (B. O.
21/47, I Série) Estabelece normas reguladoras do ensino especialmente destinado aos
indígenas, referido no capº 8 do Estatuto Missionário. Estabelece programas de ensino
rudimentar.
a) Docs. 16.473 e 16.474 (B. O. 11/29, I Série) De acordo com as conclusões do Parecer
84, de 22/11/1955, da Procuradoria da República junto da Relação de L. Marques – parecer
homologado no mês seguinte pelo governador-geral – os dois decretos supracitados não se
podiam considerar totalmente revogados pelo Dec. Lei 39.666 (B. O. 27/1954, I Série) que
criou o Estatuto dos Indígenas Portugueses da Guiné, Angola e Moçambique. Entre as
disposições do Dec. 16.473 que deviam permanecer em vigor destacava-se a constante do Art.
22º. Assim sendo, não seriam eliminadas as Comissões de Defesa dos Indígenas, cuja
competência se encontrava definida no Art. 23º;
b) Dec. 16.999 (B. O. 23/41, I Série) Aprova o Código do Trabalho dos Indígenas nas
Colónias Portuguesas de África;
c) Dec. 23.229, (B. O. 51/33. Supl.) Aprova a Reforma Administrativa Ultramarina;
d) Dec. 31.207, (B. O. 23/41, I Série) Promulga o Estatuto Missionário;
e) Dec. 35.461, (B. O. 15/46, I Série) Regulamenta o matrimónio no Ultramar;
f) Lei 2.048 (B. O. 25/51) Na Constituição Política da Nação Portuguesa foram
integrados preceitos destinados ao Ultramar, mormente às populações indígenas (Título VII,
Capítulo III, Art 141º e seguintes);
g) Lei 2.066 (B. O. 29/53, I Série) Lei Orgânica do Ultramar Português (Capítulo VIII,
Secção VI, Bases LXXXIV a LXXXVI);
h) Port. Minist. 14.440 (B. O. 29/53) O ensino confiado às Missões Católicas, nos termos
do Art. 66º do Dec. 31.207, deve ser considerado oficial por força do Art. 68º que se lhe segue
e, por conseguinte, ministrado independentemente de crenças religiosas dos interessados;
i) Dec. Lei 39.666 (B. O. 27/54, I Série) Promulga o Estatuto dos Indígenas Portugueses
da Guiné, Angola e Moçambique;
j) Dec. 39.817 (B. O. 46/54, I Série) Promulga o Estatuto dos Julgados Municipais das
Províncias da Guiné, Angola e Moçambique;
k) Dec. Lei 39.997 (B. O. 6/55, I Série, Supl.) Promulga a Reforma Prisional do
Ultramar;
l) Dec. 40.405 (B. O. 51/55, I Série) Substitui o Dec. 35.844, que regula a cultura do
algodão no Ultramar. O seu capítulo II – Arts. 34º a 36º – trata das sociedades cooperativas de
produtos derivados do algodoeiro;
m) Dec. 40.703 (B. O. 32/56, I Série) Estabelece para o Ultramar – com exceção do
Estado da Índia – o regime judiciário de proteção e correção de menores que revelassem
tendências criminosas, libertinas, viciosas ou imorais;
n) Dec. 41.578 (B. O. 16/58, I Série) O seu Art. 22º previu a emissão, a favor de
militares, de certificados com validade idêntica aos referidos no Art. 60º do Dec. Lei 39.666.
226
ANEXO II
18º
DOCUMENTO
Este documento encontrado na gaveta de uma mesa-secretária da
sede lisboeta da Companhia da Zambézia. Tudo indica que hajam
sido suprimidas algumas folhas versando assuntos mais
melindrosos. Infere-se no texto que o autor fazia parte dos corpos
gerentes de alguma empresa e que era membro da Associação
Comercial. Pela referência que faz ao Dr. Marcelo Caetano como
Ministro das Colónias (do início de setembro 1944 ao início de
fevereiro 1947), pode garantir-se que o documento coincidiu com a
visita ministerial efetuada em 1944/5. Não foi microfilmado porque
não consegui identificar o autor.
19º
DOCUMENTO
Homenagem aos que contribuíram para demarcar e cartografar as
fronteiras acordadas pelos tratados políticos
[Aos leitores interessado na vida e obra deste grande homem aconselha-mos a leitura de “Gago Coutinho –
Geógrafo”, nº 58 (Secção de Coimbra) da Junta de Investigações do Ultramar/Agrupamento de Estudos de
Cartografia Antiga de 1970]
“Tenho a honra de comunicar a V. Ex.ª o resumo dos trabalhos a que, por ordens de Sua
ª
Ex. o ministro da Marinha, procedi na Província de Moçambique.
Apresentei-me ao governador de Quelimane a 5 setembro último com instruções para
continuar a delimitação da linha W da fronteira de Moçambique com a B. C. A., interrompida
o ano passado. Só em 14 outubro pude dar princípio aos trabalhos de campo, por dificuldades
de instrumentos e de transportes.
Seguindo do Forte M’lengene, em 14º 42’ lat S, continuamos em boa harmonia com a
comissão inglesa. Em 27 outubro, tendo concluído a demarcação até 15º 54’ S, fui obrigado a
sair da fronteira e vir para Chilomo, para reorganizar a caravana, não só porque a região que
atravessávamos estava seca e despovoada como também não havia mantimentos, por causa da
fome que então assolava a Zambézia, e sobretudo porque os meus carregadores, contratados à
pressa, fugiram em grande número sem terem recebido maus tratos; e assim larguei a 31
outubro da povoação Mikorougo, com 70 homens que mal chegavam para carregar os objetos
indispensáveis, ficando por isto naquela povoação bastantes cargas.
Em Chilomo combinei com o delegado inglês recomeçar o trabalho do sul. A Comissão
inglesa, cujos carregadores eram de confiança, partiu a 4 novembro e seguiu ao longo da
fronteira. Por meu lado, tendo obtido, com o auxílio valioso do Residente do Chilomo,
Henrique Costa, os carregadores do prazo, e recebido pelo vapor as cargas deixadas atrás e os
mantimentos enviados pelo Residente da Angónia, tenente Brito, sem o que não podia
trabalhar, só pude partir a 13 novembro, começando os trabalhos topográficos em Cheuenga
em 15 novembro. E caminhando ao longo da fronteira, sem encontrar mais do que notas do
delegado inglês, fui reconhecendo que no tratado se tinha cometido, a meu ver, um erro,
julgando-se que a linha divisória das águas era uma linha definida; porque desde o paralelo de
Cheuenga até ao Monte Muanambidzi as águas das vertentes E dos montes não correm para o
Chire, mas para um rio pantanoso chamado Ndinde, que corre para o Ziu-Ziu e não o Chire.
Esta parte da fronteira era pois incerta. Só encontrei a Comissão inglesa além do Monte
Muanambidzi, no dia 20 novembro. À minha dúvida replicaram que durante as cheias de
Chire extravasava por vários mucurros para Ndindo, e que portanto este rio devia ser
considerado Chire. Não me convenceu o argumento; mas como imprudentemente já há alguns
anos um engenheiro português tinha posto, marcos cimentados ao longo da linha E-W até aos
montes, declarei que, considerando a linha definida no tratado de 91 como duvidosa, aceitava
compensação em outro lugar mais conveniente; e, para não motivar mais despesas aos dois
governos, resolvemos demarcar duas fronteiras para ser a escolha na Europa, depois de
decidida a questão diplomaticamente, sem ser necessário voltarmos ao terreno.
234
Como as chuvas já tinham começado, fomos apressando os trabalhos; a 3 dezembro
tínhamos concluído a demarcação e a 8 dezembro eram assinadas as atas, sendo para louvar
que a Comissão inglesa se portou lealmente para connosco, procurando desinteressadamente
fixar a verdadeira fronteira e tratando-nos sempre como representantes de uma potência
poderosa.
Propusemos na ata que a ilha de Malu, em litígio, e de menos de uma milha quadrada de
área, fosse trocada pelas 20 milhas quadradas, saldo da grande fronteira que Portugal ficava
devendo, para aproveitar os picos mais facilmente reconhecíveis.
Não remeto a V. Ex.ª cópia da carta da fronteira, porque não estão ainda concluídos os
trabalhos e cálculos de gabinete; e, de resto, de nada serviria tal mapa porque, como V. Ex. ª
sabe, a fronteira proposta pela comissão mista só tem valor definitivo depois de aprovada
pelos dois governos.
As minhas instruções ordenavam-me também a escolha da concessão no Nyassa; à
insistência inglesa em recomeçar a demarcação ao norte, observei que ao terminarmos os
trabalhos ao sul não teríamos provavelmente tempo para voltar ao norte ao lago e escolhermos
a concessão antes de 16 dezembro, como fora combinado entre os governos; e esta dificuldade
foi evitada porque o comissário inglês me ofereceu e conseguiu ampliar por mais seis meses
aquele prazo.
As minhas instruções diziam-me que conferenciasse com o Residente da Angónia sobre
o ponto mais conveniente nas margens do lago; ao telegrama que a este respeito fiz a V. Ex. ª
recebi em 7 dezembro, em Chikuama, a resposta telegráfica mandando escolher a concessão
do Nyassa entre M’Lungózi e Chipoza no local estudado pelo Residente da Angónia. Como o
telegrama chegasse estropiado, e este funcionário no seu relatório de que tenho cópia receasse
que a B. C. A. não o dissesse (?), telegrafei pedindo ordens precisas sobre se havia insistir
exatamente naquele local embora fosse – segundo me informavam – alagado na época das
chuvas e portanto impróprio para o fim; mas como chegasse a confirmação do telegrama,
apesar de a minha dúvida não estar resolvida, eu não podia insistir mais e decidi usar da parte
das instruções que em último caso me facultavam a escolha segundo o meu critério, tendo
partindo para Zomba, onde cheguei a 1 janeiro 1901. Depois de cumprimentar o Comissário
W. H. Manning, e de saber que as vistas sobre o nosso local tinham sido postas de parte, parti
de Zomba em 3 janeiro servindo-me dos carregadores e cavalos postos à minha disposição
pelo Comissário Manning; no Chire esperava-nos a Canhoneira “Dove” e no lago a
Canhoneira “Pioneer” na qual a comissão mista se dirigiu ao local escolhido, ao sul do rio
M’lengeri; aqui foi a 8 janeiro demarcada a concessão nas condições da ata de que envio
cópia. O local é, conforme informação do Residente da Angónia, desabrigado durante a
monção do SW, que no lago sopra do SE, como o geral; e por trás há uma lagoa da papirus,
onde atualmente havia dois pés de água. Encostei-me ao rio, que atravessa um canto da
concessão, para durante os seis meses do mau tempo podermos nele ter abrigadas as
embarcações de pequeno calado, que porventura venhamos a ter no lago.
A 2 janeiro estávamos de volta em Zomba; e, ali, conferenciando com o comissário
Manning procurei, de acordo com as instruções, regular o trânsito de mercadorias e pessoas
pelas estradas que cortam os territórios agora definidos pela fronteira, mas não me foi possível
obter a redução dos 3%, que o trânsito do comércio português, como o estrangeiro, é obrigado
a pagar.
A 13 janeiro despedia-me da comissão inglesa, com quem sempre vivemos em boa
harmonia, e largava para Chilomo onde cheguei a 15, e esperei a canhoneira que tinha pedido
para me levar para baixo, assim como ao Conde da Ponte, meu adjunto e importante auxiliar.
235
Não posso deixar de insistir junto de V. Ex. ª sobre a manifesta gentileza com que o
Comissário da British Central Africa tenente-coronel W. H. Manning, pôr à minha disposição
carregadores, cavalos e canhoneiras para me facilitar a viagem ao lago e a escolha de uma
concessão, que era de interesse só do governo Português. Além disso fui por ele tratado, como
de resto por todos os funcionários ingleses com quem mais ou menos convivi na B. C. A.,
com uma consideração que não era absolutamente devida à minha insignificante
personalidade, inteiramente desconhecida, mas ao país que representava. Creio pois, se me é
permitido neste ponto emitir opinião, que uma condecoração portuguesa oferecida a este
homem, dispolo-ia ainda mais a favorável a nosso favor, e garantir-nos-ia um amigo de
grande importância em uma colónia, que como a B. C. A., tem um braço avançado pela nossa
colónia de Moçambique dentro.
Julgo também do meu dever insistir em que os serviços prestados à comissão de
delimitação pelo Residente da Angonia, assim como pelo Residente de Chilomo, foram do
máximo valor; e sem eles não teria sido possível a conclusão este ano dos nossos trabalhos,
devido ás dificuldades já enumeradas de encontrar e alimentar os carregadores. Parece-me
pois que tal zelo pelo serviço, de que resultou para o Estado uma importante economia, é
digno de recompensa, por exceder a norma de serviço a que tais funcionários são obrigados.
A 22 janeiro chegava a Chilomo a canhoneira “Obus” e a 23 largava a comissão rio
abaixo demorando-se a viagem para eu concluir o reconhecimento trigonométrico do rio
Chire, recomendado nas minhas instruções. Chegamos ao Chinde a 4 fevereiro, e pelo
primeiro vapor seguimos para Quelimane, onde chegámos em 8 fevereiro. O meu adjunto,
Conde da Ponte, larga para Lourenço Marques pelo primeiro vapor, e ai poderá fornecer
verbalmente a V. Ex.ª todos os esclarecimentos sobre o serviço desta comissão de delimitação.
Eu, em vista da urgência de comunicar a S. Ex. ª o ministro da Marinha o resultado dos
trabalhos e questões pendentes, seguirei para Lisboa pelo primeiro transporte, que é o vapor
“Kaiser” que larga daqui a 28 fevereiro.
Junto remeto a V. Ex.ª, como disse, a cópia da ata da concessão do Nyassa. Deus guarde
a V. Ex.ª.”
Nota pessoal: a fronteira definitiva entre Moçambique e Niassalândia foi fixada pelo
acordo de 18 Nov. 1954 (v. Relatório da Junta das Missões Geográficas e de Investigações do
Ultramar, 1956).
Gago Coutinho – BSGL, 33ª série (1915) nº 5 e 6, maio e junho, pp. 182-192
Comunicação efetuada a 11 janeiro (exemplo de uma expedição bem preparada)
20º
DOCUMENTO
O acordo de Lusaca
Nos parágrafos que dedicou a este assunto, Spence refere uma iniciativa política que
tem passado despercebida embora pareça ter estreita ligação com o famoso Acordo de Lusaca:
o “comício” (sic) que, no dia 5 setembro, foi iniciado pela Frelimo, no estádio de futebol da
Machava. Foram convidados a nele participar todos os simpatizantes do partido,
independentemente das profissões que exercessem. Os escritórios e os estabelecimentos em
geral suspenderam as suas atividades. Spence foi afetado por esta manifestação por lhe caber
a gerência de quatro combinados industriais. O dito “comício” continuou no dia seguinte, uma
241
sexta-feira. Apenas se deu por terminado às 14 horas de sábado, após a assinatura do já citado
acordo diplomático.
O general Manuel de Sousa Menezes (adiante: general Manuel Menezes) chefe do
Estado-Maior do Alto-comissário e comandante-chefe de Moçambique, merece o elogio e o
agradecimento dos historiadores quer pelo artigo que publicou em 2005 (8), quer pelas notas
com que retificou e esclareceu o contributo que, quatro anos mais tarde, elaborou o Eng.º.
Frederico Monteiro da Silva (adiante: Eng.º. Frederico Silva) (9). O referido oficial superior
acentuou que pretendia fornecer pormenores sobre “o caso de Moçambique”, aquele com que
efetivamente lidou durante cerca de um ano, até ao arrear da bandeira portuguesa no
supracitado Estádio da Machava, no dia 25 junho 1975. Em sua opinião a descolonização em
Moçambique não foi exemplar (pelo que alguns pretendiam) mas pode pelo menos ser
considerada como razoável. A fase que decorreu desde o início de maio 1974, data em que
chegou a Nampula, até à assinatura do acordo, caracterizou-se pela incerteza e pela constante
evolução dos acontecimentos.
Há porém algumas certezas. A primeira – prontamente formada por muitos dos
responsáveis militares – é que a revolução de abril pretendia, o mais depressa possível,
acabar com as guerras ultramarinas. Outra certeza referia-se ao facto da disciplina e do
respeito hierárquico dentro da estrutura militar, estarem a sofrer fortes e graves abalos.
Na prática era por demais evidente que não devia morrer nem mais um soldado
português em Moçambique, porque essa morte seria inglória e sobretudo injusta. Esta
convicção transformou-se em ponto de honra para todos os militares que planeavam ou
comandavam operações.
Por mero acaso, pude testemunhar, como todos os presentes, um caso de chocante
indisciplina à entrada da própria residência oficial do comandante em chefe das Forças
Armadas, na zona mais rica da capital. Três ou quatro soldados europeus ali colocados como
sentinelas, tinham despido as fardas, desapertado as botas e abandonado as armas, para se
sentarem, em camisa e com ostensiva desfaçatez, no murete do edifício… Quando aquele
chefe militar chegou na sua viatura de luxo, enfiado e envergonhado no banco traseiro, as
pseudo sentinelas receberam-no com chacotas e gargalhadas provocatórias! Todos os
presentes puderam imaginar e comentar entre si o que estaria a acontecer no resto do país.
Não são exageradas as apreciações de René Pelissier e do próprio general Spínola que
transcrevi na p. 130 (10). Afigura-se pertinente comparar esta situação com a existente nas
restantes colónias. Há pelo menos um caso de total desmoralização denunciado por Rui Palma
Carlos em relação a Timor (11). Seu pai Adelino desempenhou fugazmente o cargo de 1º
ministro, durante a presidência do general Spínola.
Continuemos. Em Nampula nada se sabia sobre os antecedentes do chamado “acordo de
Lusaca”. Porém, na noite de 4 setembro apareceu um oficial de informações, vindo do Quartel
general, com uma mensagem de Lisboa informando que, no dia seguinte, se iniciaria em
Lusaca uma reunião entre a direção da Frelimo e uma representação do governo português,
reunião que tinha por finalidade discutir um acordo pacífico de cessar fogo. Foi deliberado ser
urgente e necessário enviar a Lusaca um oficial que, durante as negociações, conseguisse
defender a situação do grande número de militares que se encontravam dispersos pela
vastidão do interior. Foi escolhido o tenente-coronel Nuno Alexandre Lousada (adiante Nuno
Lousada), que partiu na madrugada do dia seguinte, num Cessna de aluguer.
Para melhor entendimento do que se passou em Lusaca julgo indispensável transcrever
desde já um episódio quase desconhecido que foi relatado por Adelino Palma Carlos à sua
biógrafa Helena Sanches Osório (12):
242
“A propósito da entrega de Moçambique à Frelimo há um pormenor que
penso ser ainda desconhecido e que foi extremamente sério.
Quando Mário Soares estava nestas (visitas a instituições e
personalidades estrangeiras) Spínola, em regra, mandava um militar para o
acompanhar. Umas vezes foi Almeida Bruno, outras Otelo ou Casanova
Ferreira e, mais tarde, quando se tratou de Moçambique, Melo Antunes.
Contou-me Spínola que, quando regressaram de Lusaca – onde se
realizou a última conferência relativa ao termo da guerra em Moçambique –,
Mário Soares e Almeida Santos, que tinham ido com Melo Antunes, foram
queixar-se ao presidente da República, explicando que não tinham sido ouvidos
para coisa nenhuma. Que tinha acontecido?
Tinham aprazado a conferência onde iriam ser resolvidas, em definitivo,
as condições em que se faria a paz naquela colónia. O encontro estava marcado
para um determinado dia, de manhã, às tantas horas, num tal lugar. Eles,
pontualmente, compareceram. Só que, nem os da Frelimo, nem Melo Antunes
lá puseram os pés. Receberam, por junto, Soares e Almeida Santos, indicação
para regressarem à tarde. E, à tarde, apareceu Melo Antunes, dizendo que já se
resolvera tudo durante a manhã. Só faltava assinar o acordo… Ele, Melo
Antunes, decidira tudo, sozinho, com a Frelimo.
Soares e Almeida Santos estavam numa fúria. Spínola só bradava:
– Se apanho Melo Antunes, mando-o fuzilar aqui mesmo, no Palácio de
Belém.”
***
***
Ao que tudo indica, os enormes sofrimentos que vitimaram os adeptos desta conhecida
seita religiosa, foram iniciados anteriormente à circular do Comissariado Político Nacional,
publicada a 17/10/1975 no vespertino “Notícias”, transformado em órgão oficioso da Frelimo.
Por carência de documentação credível não pude referir, em 1988, na Universidade de
Coimbra, esta selvática violação de direitos humanos. Apenas sabia que Samora Machel, em
meados de junho, havia criticado duramente algumas organizações religiosas como as
“Testemunhas de Jeová”, os “Adventistas do 7º Dia” e a própria igreja católica. Em seu
entender, criavam conflitos no seio do povo, conflitos que enfraqueciam a unidade popular.
É de aceitar a hipótese da detenção seletiva das Testemunhas de Jeová, ter sido
cuidadosamente preparada, porque se contavam por milhares o número de convertidos,
agrupados em famílias educadas e urbanizadas. A sua identificação pessoal exigiu, sem
sombra de dúvida, secretas e demoradas investigações. É de admitir que, a horas mortas, as
habitações fossem, à socapa, visitadas pelos seus carrascos. Mantidos em silêncio, todos os
membros da família terão sido colocados em carros celulares que se dirigiram diretamente
para qualquer zona vedada do aeroporto. Ao nascer do dia, tanto a parentela como a
vizinhança apenas poderiam conjeturar que a ausência fora voluntária. É a explicação mais
plausível para se compreender que os raptos não tenham chegado ao conhecimento público e
que, mesmo as pessoas melhor informadas, como era o meu caso, ignorassem totalmente o
que acontecera. Até o próprio Spence não lhe faz referência, apesar da sua confessa
religiosidade e de contactar diariamente com residentes nos subúrbios. Tenha-se em mente
que, além de outras atividades, dirigia quatro fábricas e empregava centenas de operários da
sua confiança, que o mantinham bem informado. O secretismo também evitava que as
deportações chegassem ao conhecimento internacional por via das representações
diplomáticas.
Felizmente que, em 1997, os autores do célebre “Livro Negro do Comunismo – Crimes,
Terror e Repressão” (25) dedicaram um capítulo aos acontecimentos ocorridos em
Moçambique. O Serviço Nacional de Segurança Popular (SNASP) criado justamente em
outubro 1975, foi autorizado a capturar e a manter sob prisão qualquer individuo suspeito de
atentar “contra a segurança do Estado”, expressão muito ampla que incluía os chamados
“delinquentes económicos”. Também tinha poderes para mandar os detidos diretamente para
248
os chamados “campos de reeducação”. Pouco a pouco, se veio a reconhecer que a polícia
política da Alemanha Oriental vinha desempenhando um papel fundamental em todas as
operações relacionadas com a segurança estatual. As “ofensivas pela legalidade”, periódica e
diretamente conduzidas por Samora Machel, não retiraram ao SNASP as suas prerrogativas.
O “Livro Negro” supracitado, dá a conhecer a existência de um campo de reeducação,
em Milange, perto da fronteira com o Malawi, onde foram concentrados cerca de dez mil
membros das Testemunhas de Jeová, que se encontravam dispersos por outros campos do
Niassa. A objeção de consciência e a recusa de saudar a bandeira nacional incompatibilizaram
de imediato a seita com o poder popular, no apogeu do ateísmo militante. Foi a partir de
alguns elementos que tinham conseguido pôr-se em fuga e pedir exílio naquele país vizinho,
que se tomou conhecimento internacional desta odiosa operação repressiva.
Em meados de junho 1985, um dos jornais diários publicados de Lisboa (26) pode
acumular um número impressionante de provas sobre as torturas que se praticavam nos
campos de reeducação. Tornaram-se grandes vítimas da prepotência dos guardas. José Pinto
de Sá, relata um exemplo do que aconteceu no campo de M’sawise, antiga base da Frelimo
durante a guerra colonial. O artigo supracitado remete para o depoimento de J. M. Cabral que
esteve dois anos no campo de reeducação de Naisseco, no Niassa. Ali chegaram numerosas
Testemunhas de Jeová e assistiu a episódios como o seguinte.
Ao romper do dia, na parada, quando se içava a bandeira, o comandante dava os vivas
da ordem: – Viva a Frelimo! – Viva! responderam todos, exceto as Testemunhas de Jeová. O
comandante mandou avançar um dos elementos que se encontrava na formatura e repetiu-lhe
por duas vezes o “viva”. Por duas vezes o mártir se manteve em silêncio. Para ser
exemplarmente castigado, o comandante mandou que os guardas o amarrassem ao mastro da
bandeira por meio de uma corda embebida em lama e sal. Todos foram para os campos
trabalhar exceto o desgraçado que ficou na parada, o dia inteiro ao sol, sem beber. Com o
calor, a corda retesou e penetrou-lhe na carne, provocando horrendos gritos de dor. Na manhã
seguinte o comandante escolhia outra vítima e a cena repetia-se.
“Sofria-se muito”, recordou outro ex-reeducando, do campo de Ruárua, em Cabo
Delgado. “Havia quarenta presos. Todos os dias nos batiam. Muitos prisioneiros eram mortos
a tiro, executados publicamente. Outros eram metidos em buracos na terra, só com a cabeça
de fora, durante uma semana. Levaram a nossa roupa toda. Ficávamos dias seguidos sem
comida. No ano seguinte mudaram-me para o campo principal (de Ruárua) a quatro
quilómetros. Havia lá umas oitocentas pessoas”.
Segundo a Human Rights Watch (27), as fomes recorrentes, durante o período de 1975-
85, foram a origem de um número de mortos superior ao que se registou durante a luta
armada. Esta estimativa foi confirmada pela UNICEF que avaliou em seiscentos mil o número
de vítimas que as graves carências alimentares provocaram no decorrer daquela década.
Recorde-se que o próprio Samora Machel, durante um extenso improviso que pronunciou
num comício destinado a comemorar o Dia dos Heróis Moçambicanos, revelou pela primeira
vez como foi relativamente diminuto número de baixas sofridas pelos militares da Frelimo
durante a luta armada: 2.067 mortos e 889 mutilados (28).
249
Homenagem pessoal ao pastor Francisco Xavier Dengo
A Frelimo, com fraca implantação nessas cidades em seu entender dissolutas, onde pela
certa se acoitavam e conspiravam impunemente tantos dos seus inimigos e sobretudo o mais
perigoso: a chamada «burguesia colonial» – cedo recorreu, com afinco, à técnica das rusgas.
Célebre ficou a efectuada na noite referida no subtítulo. Por muitas dezenas de patrulhas
foram detidos nas esplanadas, nas vias públicas, à porta dos cinemas, etc. cerca de três mil
transeuntes dos dois sexos e de todas as raças, que não exibissem documentos de
identificação. Ofendeu os europeus o facto de terem sido concentrados, em promiscuidade e
condições anti-higiénicas, sem espaço para se deitarem ou mesmo para satisfazer as
necessidades.
Spence também se refere a esta rusga nos seguintes termos: “A mass raid by the Frelimo
troops (People’s Army) to check everyone’s identity papers. They stopped every person in all
the cinemas, restaurants and cafés, and inaugurated a system of road blocks to check all
identity cards. The result was that a few thousand people, black and white, were whipped off
250
to various places because they did not have their papers on them. Many were taken as far as
Chai-Chai on the Limpopo River and kept for three or four days, their only food and water
being provided by traders in the area”.
Fui pessoalmente afetado por esta rusga. Tinha ido ao cinema acompanhado por minha
mulher e meu filho Reinaldo. Este aproveitou o intervalo para se refrescar, como muitos
espectadores fizeram. Estranhamente desapareceu sem explicação. Só à saída, bloqueada por
polícias e soldados da Frelimo, compreendemos o que se tinha passado. Todos fomos
revistados e obrigados a exibir o bilhete de identidade (adiante B. I.). Ficaram detidos os que
não puderam exibir esse documento. Regressámos a casa e pudemos constatar que o Reinaldo
se esquecera do seu B. I. Seguiu-se um longo período de angustioso desamparo porque, após
efetuar numerosos telefonemas, ninguém encontrei que me pudesse indicar o sitio onde as
autoridades iriam concentrar os detidos, nem mesmo os nossos familiares que, tinham optado
pela nacionalidade moçambicana, nem mesmo o comandante-geral da Polícia. Não recordo
como soube que seria no antigo quartel da polícia montada, situado nos subúrbios perto da
Missão de S. José de Lhanguene. Aí contemplámos um cenário pavoroso, com evidente
desprezo por todos os milhares de pessoas que se iam acumulando no pátio sem condições.
Apesar disso mais camionetas iam chegando pejadas de pretensos delinquentes e prostitutas.
Notámos que à entrada do grande portão de ferro, onde se encontrava um sargento da polícia
portuguesa, se ia acumulando um monte de bilhetes de identidade, já entregues pelas famílias
dos detidos. Alguém gritou que seria impossível distribuir esses B. I. aos seus proprietários.
Notei a presença de dois jovens soldados macondes com escarificações na face. Olhavam de
modo ameaçador para minha mulher que, raivosamente, acusava o polícia de agir como um
traidor. Regressámos a casa para só voltarmos de manhã cedo. Por felicidade, quando os
autocarros começaram a sair, carregados com os detidos e dando a curva para norte, consegui
ver meu filho à janela de um deles e, recorrendo a empurrões, entregar-lhe o B. I.. Iniciei
novas diligências infrutíferas para saber qual o destino que seria dado aos detidos. Nenhuma
informação puderam ou quiseram dar os próprios parentes de minha mulher que tinham
optado pela nacionalidade moçambicana e ocupavam lugares de destaque no aparelho do
Estado. Foi unicamente o próprio reitor da universidade, Dr. Ganhão, que não hesitou em me
socorrer. No dia seguinte comunicou-me que soubera pelo ministro do Interior que os detidos
seriam levados para o Chai-Chai e seriam interrogados por uma junta. O meu filho apresentou
o bilhete de identidade, foi submetido a interrogatórios e, por fim, libertado por ser
considerado inocente. Mas sem quaisquer meios para se alimentar e fazer a viagem de cem
kms de regresso à capital. Apareceu em casa cansado, esfomeado, sujo, barbudo,
desgrenhado. Apenas fora ajudado por alguns motoristas que lhe deram boleias.
Durante todo este dia Spence foi longa e inesperadamente pressionado por infundadas e
até absurdas suspeitas que tiveram o evidente objetivo de amedrontar aquele próspero e bem
conhecido empresário estrangeiro e, enfim, de humilhar um dos membros exemplares da
odiada burguesia urbanizada. Ainda mais inaceitável foi o facto de se tratar de membros da
guarnição do próprio palácio presidencial. Ao que parece, as altas patentes da Frelimo ou os
seus instrutores da Alemanha Oriental, não tiveram o cuidado, comum em relação a todos os
grandes soberanos, de selecionar para a sua guarda pessoal os melhores de entre os melhores.
Contudo, é de aceitar que estivessem conscientes do facto de Spence não poder ser tratado da
mesma maneira brutal como costumavam tratar o comum dos portugueses (30). Talvez
251
soubessem que existia uma Embaixada de Sua Majestade Britânica onde não faltava vontade e
capacidade para proteger os respetivos súbditos. Tal não era o caso da Embaixada de Portugal
onde, por informação pessoal do secretário, tinha sido colocado um embaixador afeto ao
Partido Comunista, com entranhado ódio pela burguesia colonial, que chegava ao ponto de,
sub-repticiamente, desviar as suas verbas orçamentadas para poder cobrir as vultuosas
despesas de Rosa Coutinho, em Angola!
Continuando. Cerca das 11 h. bateram à porta de Spence dois soldados da Frelimo
exigindo que lhes mostrasse a sua aparelhagem de rádio-transmissão. Mandou-os entrar e
garantiu-lhes que, em matéria de comunicações, apenas possuía dois “walkie-talkies”
portáteis que era obrigatório usar quando, por desporto, velejava na baía. Os soldados
apreenderam ambos os aparelhos. Perguntaram depois se dispunha de espingardas. Spence
informou-os que cumprira as determinações legais e que já tinha feito entrega na Polícia de
todas as armas que possuía. Exigiram então que lhes mostrasse a arma pregada na parede.
Spence acentuou que se tratava de simples ornamento, datado de 1893, que a Polícia
considerara inutilizado quando chamou a sua atenção para a perfuração deliberada da culatra.
Os soldados, indiferentes, apreenderam-na.
Exigiram finalmente que os acompanhasse até à casa da guarnição do palácio
presidencial. Aí a patrulha foi reforçada com mais dois elementos. O que parecia comandar,
avisou Spence de que iriam efetuar nova busca mas desta vez “à maneira da Frelimo”.
Começou pelo principal quarto de dormir e exigiu a Spence que lhe mostrasse a sua pistola.
Quando negou a posse de tal arma, os quatro soldados, passando as Kalashnikovs para as
costas, removeram completamente o conteúdo das gavetas e demais escaninhos dos móveis.
Um dos soldados empunhou o binóculo que encontrara e perguntou como se disparava!
Finalmente, na parte superior do guarda-fatos, depararam com algo mais importante: uma
pequena caixa de lata colorida de vermelho. Levantada a tampa, o soldado exclamou
triunfante: isto é dinamite! Sem perder a fleuma britânica Spence foi observar: tratava-se de
antigos e pequenos foguetes chineses que seu filho usara para alegrar qualquer festa infantil.
Apreendida a caixa, subiu para três o número de objetos perigosos.
Passaram depois para o escritório. O que parecia comandar, sentou-se comodamente na
cadeira da secretária, olhou em roda e comentou com sarcasmo: “Pois é! Um ambiente de
luxo próprio de um capitalista; de certo que explorou o povo para conseguir isto!”. Spence
sugeriu que ouvisse o “grupo dinamizador” da sua firma, com quem mantinha as melhores
relações. O militar continuou, com rancor: “Nem o nosso presidente tem um gabinete assim!
Porque não põe a fotografia dele na parede?” Spence retorquiu que na sua casa colocava nas
paredes apenas retratos de familiares e não de políticos, nem sequer da Rainha britânica. O
truculento militar decidiu, por fim, mandar Spence, sob prisão, para o Quartel-General,
situado a curta distância.
Aqui foi submetido a mais interrogatórios, desta vez formulados por militares mais
instruídos e educados. Um deles usava óculos. O outro era mestiço e quis saber quantas vezes
o irmão de Spence tinha vindo a Moçambique com o propósito de espiar. Foi-lhe respondido
que se tratava de um homem sério, com autorização de residência, dedicado aos seus negócios
entre Moçambique e a África do Sul.
Seguiram-se outros pequenos incidentes, até que um dos interrogadores pediu a Spence
que viesse com ele até à Embaixada Britânica. Nada de importante respondeu quando Spence
lhe recordou que a embaixada encerrava nos fins de semana.
Spence só compreendeu a gracejo quando se encontrou inesperadamente na Polícia
Judiciária face a face com um homem ruivo, manifestamente cansado, que falava
corretamente o inglês. Logo compreendeu que se tratava do tristemente famoso Zeca Russo
(31). Este, depois de ouvir o que acontecera e de ver os objetos apreendidos, classificou como
252
absurdo o procedimento da soldadesca e até mesmo o facto de o forçarem a interrogatórios no
Quartel-General. Certamente para dispor de um documento legal que pudesse apresentar às
instâncias superiores e, talvez, à Embaixada Britânica, explicou que iria datilografar um
“termo de identidade” e mandaria alguém à residência do Inspetor Jorge Costa. Para por a sua
assinatura. Sugeriu a Spence que telefonasse a sua esposa. Esta, depois de tantas horas
angustiadas, veio buscá-lo. Chegaram a casa para jantar um pouco antes das 20 horas.
***
É comovente o elogio que Spence fez à bem coordenada reunião, na Igreja Anglicana,
nas vésperas do Natal. Cantaram em coro durante a comunhão e recordou a figura de seu pai
que fora mordomo daquela igreja durante vinte e cinco anos até ao seu falecimento em 1929.
Essa mesma igreja onde sua mãe lançara a primeira pedra em 1920. Tudo lhe pareceu
apropriado para celebrar o final de uma era em Moçambique, uma era em que a família
Spence desempenhou papel proeminente durante três gerações.
Também o fim do ano de 1975, foi comemorado de forma admirável. Conseguiu reunir
vinte e sete membros da família dispersos por diversos países do mundo (Portugal, Brasil,
Rodésia e África do Sul). Quase todos grandes empresários foram-se concentrando, pouco a
pouco, na Ilha da Inhaca, para gozarem pela última vez o cristalino mar semi-tropical: ali
pescaram, ali nadaram, ali velejaram, ali mergulharam.
Nos dias citados a população da capital foi mais uma vez alarmada por intenso tiroteio
que parecia partir de pontos indeterminados dos subúrbios, mas que, esporadicamente,
também abrangia alguns locais da «cidade de cimento». Durante a noite, esse tiroteio assumiu
aspeto semelhante ao de fogo-de-artifício, sob a forma de rajadas de balas tracejantes que,
como aparentava, provinham de atiradores dispersos por toda a parte e que apontavam… para
o céu!
Pude, casualmente, assistir a este espetáculo na varanda do quarto que então ocupava no
quinto andar do Hotel Aviz. Baseado nos factos que eu próprio testemunhei e nos elementos
que mais tarde pude recolher, ressalta uma certeza que não mencionei na minha conferência
coimbrã de 1988: os dirigentes militares da Frelimo, talvez instigados pelos seus instrutores
da Alemanha do Leste, usaram esta rebelião armada para exibir de forma ostensiva o seu
poderio militar e, desse modo primário, amedrontar ainda mais a população dita não-indígena
que ainda residia na capital.
Spence chegou à mesma conclusão quando, no dia 18, se deslocou aos seus escritórios
na Av. Paiva Manso. Os soldados frelimistas encontravam-se dispersos pelos terraços dos
prédios mais altos e daí faziam espaçadas rajadas de metralhadora em direções incertas,
ninguém compreendendo quais os alvos que pretendiam atingir. Regressado a casa, constatou
que outros cinco soldados tinham invadido o seu jardim e que, no respetivo murete (com
“com bom comandamento de vistas e de fogos”) tinham instalado uma metralhadora. Daí
faziam intermitentes rajadas em várias direções. Mostravam-se contentes. Eram substituídos
de seis em seis horas, recebiam comida quente, conversavam em voz alta, indolentemente
reclinados nas cadeiras da piscina, gozando os prazeres até então reservados aos capitalistas.
253
Durante o III Congresso, realizado em inícios de 1977, os dirigentes da Frelimo
interpretaram de modo deliberadamente distorcido este conflito armado cuja origem étnica foi
confirmada sem dificuldades. Eis a versão frelimista:
“É especialmente a partir desta nova derrota que a burguesia colonial, completamente
isolada, desmascarada, incapaz de enfrentar o avanço das massas trabalhadoras dirigidas pela
Frelimo, foge em debandada do nosso país. Em janeiro 1976, num só dia, chegaram a ser
abandonadas vinte empresas na capital”.
Bibliografia
Como foi relatado por Velez Grilo, no seu artigo de 1968, o túmulo da personagem que
os súbditos designavam por M’bire Nhantéquè (Nyantekwe) tinha sido descoberto, dez anos
antes, pelo Eng. Sales Grade, chefe da Missão Geográfica de Moçambique (1). A descoberta
encontra-se também referenciada na obra dedicada à comemoração do centenário da
Comissão Cartográfica – 1883/1983. Em 1991 surgiu a oportunidade de melhor esclarecer
este assunto quando consegui contactar, pela primeira vez, com o próprio Eng. Sales Grade.
Com grande gentileza forneceu pormenores de bastante interesse, que depois decidi incluir em
obra da minha autoria (2).
Mais tarde, em junho 1994, consegui reunir na biblioteca da Sociedade de Geografia de
Lisboa, o Eng. Sales Grade e o Prof. David Beach, historiador do Zimbabué. Podem resumir-
se, em sequência cronológica, os pormenores relatados nessas duas ocasiões, pelo distinto
geógrafo:
a ) A existência da sepultura secreta de um antigo, importante e venerado soberano, escondida
entre um cerrado matagal de arbustos espinhosos, teria sido confidenciada ao pequeno
comerciante Almeida Melo, estabelecido na foz do Panhame, por uma filha do régulo
Nhanchenge, com a qual vivia maritalmente;
b ) Este Melo, outrora funcionário administrativo, fluente no idioma local, nutria grande
interesse pela etno-história da região e até colaborava no quotidiano “Notícias”, de L.
Marques, sendo os seus conhecimentos de bibliografia e de tradição oral suficientes para
refutar, com indiscutíveis fundamentos, algumas hipóteses erradas sobre as relações entre os
Mutapas e o Grande Zimbabué, avançadas pelos arqueólogos rodesianos Roger Summers e
R. Robinson (3);
c ) Melo entrou em comunicação com Velez Grilo e Simões Alberto – outros estudiosos da
etno-história moçambicana – a quem transmitiu parte das informações secretas;
d ) Velez Grilo em 1957, sabendo que se encontrava de passagem na capital, decidiu solicitar o
auxílio de Grade que, em campanhas anuais, procedia à inspeção dos marcos fronteiriços no
então distrito de Tete, auxílio que foi prometido mas apenas durante a campanha do ano
seguinte;
e ) De facto, Sales Grade logo que atingiu a região foi procurado por Melo que, de mistura com
fantasias prefigurando algum desequilíbrio, insistiu em que a sepultura se devia encontrar
em terras do régulo Macombe;
f ) O perito decidiu entrar em ação, por sua conta e risco, mas mantendo-se afastado das
autoridades administrativas, bem capazes de prejudicarem os seus planos por recorrerem a
métodos grosseiros de intimidação;
g ) Como era esperado, o régulo Macombe negou, de início, a existência de qualquer túmulo
mas, mais tarde, veio a revelar que as terras mencionadas pertenciam ao seu vizinho
ocidental, o régulo Nhanchenge;
h ) O obstinado Grade transferiu o acampamento para a povoação deste último, na margem
direita do Panhame e, respeitando os costumes, fez preceder a visita por uma respeitosa
espera fronteiriça de dois dias, reforçada com oferendas e saudações transmitidas pelo seu
intérprete;
258
i ) Em frente a frente, este régulo também negou a presença do túmulo;
j ) Grade, não sem problemas de consciência, decidiu recorrer ao estratagema de exibir um
documento e, em grandes brados, garantiu ser um testamento deixado pelo seu antepassado
António Fernandes que primeiro visitara o Muene Mutapa, no qual determinava que
qualquer dos seus descendentes, ao passar por aquela região, teria como obrigação prestar
homenagem ao espírito do antigo e importante monarca;
k ) Como Nhanchenge perseverasse na negativa, o visitante replicou que continuaria ali porque
corria o risco de ser duramente castigado pelo espírito irado do seu avoengo caso partisse
sem homenagear o túmulo; de tão pressionado, o régulo acabou por assentir, mas logo se
escudou na necessidade de obter também a autorização de outro notável que dava pelo nome
de Cháua (Shawa), de grande importância na religião tradicional porque tinha poderes
mediúnicos nos contactos com o espírito do monarca incorporado num leão;
l ) Sales Grade levantou então o acampamento, para se instalar na povoação do Cháua mas de
nada serviram as habituais deferências porque o “sacerdote” não escondeu o seu desagrado e
a sua hostilidade, chegando ao ponto de acusar abertamente Sales Grade de recorrer a puras
falsidades;
m ) O geógrafo reagiu com a sua habitual paciência e diplomacia, argumentando que só pela
carta deixada pelo seu antepassado poderia ter sabido que o túmulo se situava naquela
região;
n ) Como o Cháua continuasse insensível a estes argumentos, mais uma vez ameaçou que não
deixaria o lugar enquanto não conseguisse visitar o jazigo;
o ) Perante tamanha obstinação e tão convincente argumentação, o Cháua acabou por aceder,
embora contrariado, exigindo por fim que também se obtivesse o consentimento do chefe de
povoação Mepaco, localizado de oito a dez quilómetros do sepulcro e que lhe servia de
guardião;
p ) Acompanhado pelo Nhanchenge e pelo Cháua, Grade transferiu o seu acampamento para
aquela última povoação, onde repetiu formalidades, cumprimentos e oferendas;
q ) Por fim, deslocando-se a pé, sempre a corta-mato, abrindo caminho com catanas, conseguiu
atingir o venerando local e verificou que nas suas proximidades, existia um antigo poço que
de início deveria ser de grande dimensão e profundidade mas que agora estava como
entulhado, poço que tinha perto duas ou três palmeiras;
r ) Mais adiante deparou com frondosa árvore que um dos acompanhantes designou por
“igreja”, isto é, local sagrado reservado ao culto e às preces em cujo perímetro se
distinguiam com efeito inúmeros vasos de olaria ali depositados, com oferendas, por
sucessivas gerações de suplicantes;
s ) Os notáveis garantiram que dali até ao sepulcro ninguém conseguiria passar com vida;
t ) Contudo, abrindo caminho entre as espinhosas, Grade atingiu com grande dificuldade os
restos de uma muralha circular de argila que, no seu início, deveria ter uns três metros de
espessura e outros tantos de altura mas que agora, desmoronada pelas intempéries
apresentava apenas um metro de altura;
u ) Os três dignitários descobriram-se e quedaram-se mudos e imóveis;
v ) O geógrafo subiu às ruínas e constatou que, no centro, se erguia um amontoado de argila e
pedras talvez cobrindo o memorável antepassado;
w ) Entre este jazigo e a parte do muro oposta à entrada erguia-se um embondeiro de médio
porte, decerto ali deliberadamente plantado e cuja folhagem se apresentava fresca e verde
como se fosse bem regado;
259
x ) Maior surpresa esperava ainda Sales Grade – sobre os restos da muralha encontravam-se
numerosas armas antigas, um pequeno canhão de bronze fundido em Goa com as armas do
rei Dom Manuel I, um canhão hexagonal fundido em ferro e de provável origem arábica,
duas pistolas de diferentes calibres tendo uma delas a fecharia decorada com uma flor-de-lis
prateada, cerca de duas dezenas de antigos arcabuzes com longos canos desfeitos pela
ferrugem e, por fim, um mosquete que depois foi classificado como incomparável peça de
museu;
y ) Os três notáveis também pareceram surpreendidos com tais achados;
z ) Notando que se tinha atingido um clímax de grande tensão, Sales Grade decidiu abreviar a
visita não sem antes ter mandado o seu ajudante medir a passo o perímetro da muralha (com
cerca de 500 metros) e de proceder à recolha dos restos das armas, incluindo a fecharia dos
arcabuzes, após esclarecer os guardiães presentes que o espírito do seu antepassado exigia
que as armas encontradas fossem devidamente resguardadas;
aa ) Antes de deixar a povoação do Mepaco, obteve de seu herdeiro, robusto e viajado jovem, a
promessa de que abriria uma picada até ao sepulcro;
bb ) O expedito geógrafo deslocou-se depois a Tete onde, ao governador do distrito, entregou
todas as peças remanescentes;
cc ) Avisado por telégrafo, Velez Grilo surgiu semanas depois (outubro 1958) acompanhado
pelo agrimensor Guedes Campos que efetuou vários levantamentos topográficos que, sem
explicação, desapareceram por completo;
dd ) Também tinha sido prevista a recolha de filmes e imagens por um profissional que, para
cúmulo, ficou na Beira, incapacitado por doença súbita;
ee ) Velez Grilo deslocou-se ao túmulo sagrado, em companhia da referida comitiva indígena e
alienígena, recolhendo olaria e outros objetos e, talvez movido pelo propósito de evitar a
intromissão de turistas e outros curiosos, guardou segredo durante anos;
ff ) Só em 1968 decidiu dar público conhecimento da descoberta;
gg ) Sales Grade terminou por acentuar que os notáveis nunca empregaram as palavras Muene
Mutapa ou Zimbabué para designarem quer a categoria do chefe venerado quer o conjunto
que constituía a sua sepultura;
hh ) Insistiram sempre e apenas na denominação de M’bire Nhantéquè;
ii ) Na carta nº2 (Zumbo) da escala 1:250.000, localizei o túmulo nas nascentes do rio Biri que
desagua na margem esquerda do rio Mussenguezi, por sua vez afluente do Zambeze;
jj ) Perto, por conseguinte da povoação Chiruca e da cota 392.
kk ) Tomo a ousadia de acrescentar a estes elementos rigorosamente exatos, alguns comentários
meramente pessoais cujo carácter assaz superficial é meu dever salientar.
Tanto quanto é do meu conhecimento, a associação Matope/Nhantéquè/Nobeza foi pela
primeira vez apresentada por Albino Pacheco, com base nas informações recolhidas em
1861/2, durante a sua travessia terrestre de Tete ao Zumbo (4). A fonte comum em que se
basearam Pinto de Miranda e Mello de Castro, no Séc. XVIII, refere contudo Nebeza como
um dos primeiros Mutapas. O historiador D. P. Abraham que, nos meses de julho e agosto
1958, realizou pesquisas de campo na região logo a seguir percorrida por Sales Grade, tratou
só daquela associação no seu artigo “The Monomotapa Dinasty” (5) citando, entre outras
fontes, o cronista António Bocarro que mencionou de forma específica o reino de Beza,
atravessado pelo Mussenguezi, onde existiria uma elevação orográfica designada por Nobiri.
Após garantir que Matope (o monarca que acelerou o processo de expansão e conquista, com
o sobrenome de Nyanhehwe) fora sepultado em Bedza termina por sugerir: “A field
expedition to the Bedza ruins would, in my opinion, prove of great archaeological value”.
260
Todavia, a validade da associação Matope/Nyanhehwe/Bedza foi posta em dúvida por
David Beach (6) baseado em pesquisas mais sistemáticas e intensivas. Por outro lado, ela foi
admitida por outro historiador do Zimbabué, S. I. G. Mudenge (7), no seu artigo de 1976
sobre os Dominicanos do Zumbo e no seu livro de 1988 sobre os Mutapas (8). Impressiona o
aproveitamento que faz da numerosa documentação primária portuguesa proveniente do
Zumbo, prolongando-se de 1774 a 1825, da qual ressalta a suprema importância que era
concedida ao m’pondoro Bedza, em toda aquela vasta região ao sul do Zambeze. Mudenge
também cita como significativo o testemunho de David Livingstone (1854) ao informar que
todos os chefes de Dande e da Chindima reconheciam a supremacia de um tal Nyatewe
(Nhatéuè) na resolução de litígios sobre os limites territoriais. Será que em contacto com os
Tauaras, o tradicional sobrenome chona Nyanhehwe haja sofrido alterações fonéticas com a
substituição do primeiro h aspirado por t, seguida talvez regionalmente, pela substituição do
segundo h aspirado por k em inglês e por q ou c em português? Recordemos que o topónimo
Guruuswa foi transformado em Gunuvutwa pelos Tauaras (9).
Está fora dos nossos propósitos e das nossas possibilidades aprofundar este enigmático
assunto que só interessa a alguns especializados na etno-história regional. Diremos, todavia,
que ao estudar recentemente a documentação do Séc. XVI referente à região entre o Save e o
Zambeze, deparámos com significativos exemplos do prestígio ou pelo menos do renome que
ainda conservavam os distantes Mutapas entre os povos que se dispersavam pelas terras
baixas até ao mar.
No que concerne as antigas armas de fogo encontradas na região, Abraham presta o
seguinte e confuso esclarecimento (na nota 32b): “Bedza is first mentioned in Portuguese
records by Bocarro – Década 13, and correctly located by him. Its location was given to me in
1958 by Chikuku, who lives in the Dande, Sipolilo District. His father was hereditary
guardian of the site of Matope’s village. To the west is the site of Matope’s grave (Mujagwaji
Pan – by some musika trees) – in the middle is the large circle of mutuhwa trees, surrounding
the now dilapidated fort. Five Portuguese cannons from the period of Mwene Mutapa Mavura
(1629-1652) were removed from the site in Augusto, 1959, for display in Lisbon and Tete…
To the east of the fort is the dendemaro, where the mhondoro Nebedza makes offerings (no
incumbent at the moment). The area has very recently been visited by me”.
Digo confuso porque o leitor continua na ignorância quanto à localização do sítio.
Rodésia ou Moçambique? Na verdade, no texto que a nota pretendia esclarecer, Abraham foi
bem conciso: “Matope establishes himself in the district of Bedza south of the river Biri, a
small western confluent of the Mussengezi about twenty miles south of the confluence of the
latter with the Zambezi”. Ora as atitudes dos três dignitários e o sucesso de Sales Grade
permitem ter como certo que Abraham também procurou, mas sem êxito, encontrar o túmulo.
Não há dúvida que sabia da sua existência e localização entre o Panhame e a Chicoa. Também
se fica a ignorar o local exato de onde foram retirados os cinco canhões e qual o seu atual
paradeiro. É óbvio que seria de bastante interesse para a historiografia dos Mutapas procurar
efetuar datações de todo o armamento encontrado.
É de admitir a hipótese de que as deposições de armas de fogo representem oferendas ao
espírito do épico conquistador e fundador do vasto império dos Mutapas. O facto dessas
armas pertencerem a épocas distintas permite mesmo aceitar a probabilidade de serem
provenientes de três massacres mais ou menos documentados que envolveram portugueses e
seus auxiliares:
a) A emboscada feita à guarnição que Vasco Fernandes Homem deixou na Chicoa cerca
de 1576 (10);
b) A destruição das feiras planálticas durante a revolta generalizada de 1631 instigada
pelo Mutapa Caparidze (11);
261
c) A execução do governador Truão e dos seus subordinados em 1807 (12). Sabemos
que, em todos estes casos, o prestígio dos Mutapas foi gravemente desrespeitado.
Albino M. Pacheco, em 1861, durante o seu trajeto de Tete ao Zumbo, também recolheu
as seguintes tradições que confirmam a importância de Nhantécuè (13):
“Ramo do tronco primitivo, foi Matópe o fundador da Monarquia da Chidima, e aquele
que separou, em seu proveito, o território Dande do da Chidima, e se fez acreditar como
profeta depois de morto, com os nomes de Nobeza ou Nhantéguè 1 (cujo exemplo também
seguiram sua irmã mulher Inhamita, e seus irmãos Namangóro e Amarengo) porque antes de
desaparecer tinha declarado que o seu espírito, como imortal, se metamorfosearia em um leão,
onde, como atalaia, continuaria a vigiar e a trabalhar pelo seu povo, datando dele o grande
número de profetas de segunda ordem, aos quais ele mesmo chama sapos (Chúre em
linguagem do país) que sob o pseudónimo de m’pondoros falantes depois de terem sido
Muanamotépuas abundam em toda a Chidima com o beneplácito do profeta em chefe, e o
culto sagrado quase que degenerando em fanatismo que os naturais tributam ao leão por ser o
animal escolhido de preferência para nele encarnar o espírito dos seus mambos. Às imundas
quizumbas, como nanhae ou guardas do m’pondóro, também prestam consideração respeitosa.
Matar pois um leão ou uma quizumba nas povoações dos m’pondoros, é crime imperdoável.
Matope não só foi o primeiro mambo da Chidima, como teve a glória também de ser o
primeiro que viu e falou com os portugueses, e que teve o apelido de Muanamotápua, que
literalmente significa “criança apanhada na guerra” em consequência de ter nascido de uma
nativa prisioneira de guerra; e foi finalmente aquele que deu princípio à agricultura da
Chidima, porque até ali viviam os Demas só da caça, e estranhos a toda a sorte de trabalho”.
Prestes a terminar, o presente autor pede licença para lamentar, perante os
conhecedores, a atitude algo desconfiada e até hostil que, durante a sua permanência em
Lisboa, David Beach assumiu contra este seu amigo e até mesmo contra o geógrafo Sales
Grade, que tão gentilmente acedeu a repetir e até a acrescentar pormenores de como
conseguira descobrir o túmulo de “Mbire Nhantécuè”. A explicação que parece mais provável
para tão estranho comportamento deve ter origem na seguinte afirmação perentória que
incluiu na sua obra de 1980 sobre os Chonas “no absolutely accurate link between traditions
and ruins can be made” (14). D. Beach admitiu que desconhecia a tardia e já citada
comunicação de Velez Grilo.
Também se podem integrar nesta problemática os pormenores de muito interesse que
Paiva d’Andrada (15) apresentou com informações, algo confusas, sobre a identificação e os
poderes mediúnicos dos m’pondoros. Esses elementos podem resumir-se do modo que se
segue. No território entre-os-rios Mussenguesi e Muze, conhecido por Chidima, o chefe
supremo tinha o nome de Cateresa e considerava-se como legitimo sucessor do Muene
Mutapa. O altíssimo m’pondoro da Chidima denominava-se sempre Inhatécuè. Prevalecia a
crença arreigada de que, após o falecimento do monarca, iria aparecer alguém proclamando
ter sido possuído pelo respetivo espírito, com a faculdade de sobreviver na selva e de se
transformar temporariamente em leão. Havia famosos m’pondoros nas maiores unidades
políticas. Forneceu, em outro lugar (of. 36, fl.115) os nomes dos “mpondoros clânicos”
Chimpore – predominava no Báruè, devendo um deles prestar assistência ao filho do
monarca, sempre designado pelo título hereditário de Macombe, notável em Massangano;
Inhamauio – ligado ao grande régulo Mutoco, preponderava no território Budya ou Buria,
tendo sido atribuída ao seu oportuno auxílio sobrenatural a retumbante derrota que aquele
potentado infringiu ao conhecido sertanejo Manuel António de Sousa; Inhamafeca –
1
– O primeiro significa “grande adivinho” ou “feiticeiro”, e o segundo “senhor do Tégué” ou pele, por ser o
primeiro que fez uso das peles para cobrir a sua nudez.
262
sobressaía nas terras de Dande, a sudeste do Zumbo; Inhaxaba – prevalecia na região de
Damba, entre-os-rios Unfuli e Sanhati; Inhamusana – proeminente em Inhamaconde, ao sul
de Guesa; Chimera – exercia maior influência nas terras de Changoe, situadas entre-os-rios
Sanhati e Jangale, este último afluente do Cuabe.
No mesmo ofício nº 37, Paiva d’Andrada faz as seguintes considerações sobre os
motivos que levaram os Bongas a considerarem-se quer senhores da Chidima quer
subordinados a deveres de proteção dos régulos contra as autoridades de Tete. Na Chidima
distinguia-se entre outros o régulo hierarquicamente superior de Cateresa, sucessor do Muene
Mutapa. A ele se seguiu Candia; o seu m’pondoro, sempre chamado de Inhatécuè,
aconselhou-o a romper com Tete e a juntar-se ao Bonga. Mas Candia foi obstruído pelo
governador Manuel A. de Gouveia o qual considerou como prazos e aceitou o arrendamento
das terras de Degué e de Boroma, a oeste de Tete. Este governador foi morto a 6 junho 1867,
durante o primeiro ataque a Massangano. O novo governador, interino, capitão Antunes da
Cunha tomou posse no mesmo dia e manteve-se no cargo até 30 abril do ano seguinte. Atacou
Candia com cinquenta soldados e com auxiliares chefiados por Manuel António de Sousa. O
recontro ocorreu no riacho Mechinda, no Degué, tendo sido morto o m’pondoro Inhatécuè.
Inácio de Jesus Xavier também atacou Candia no rio Canguse, afluente do Máguè, morrendo
o herdeiro em combate. No regresso “limpou” a região entre Canguse e Tete. A gente de
Candia, falecido em 1876, reocupou as terras a sul e a oeste de Boroma. Sucedeu-lhe Zuda
que saqueava a mercadoria dos comerciantes. Fernandes Júnior (16) a pg. 44, diz que este
Zuda destroçou duas forças vindas de Tete. Foi esmagado por Inácio quando organizou uma
expedição punitiva contra Inhampando – com autorização do governador de Tete a quem
roubara o marfim que adquirira e enviara das terras do monarca angoni Mpezene.
Bibliografia
2ª
NOTA SOLTA
As pinturas rupestres de Chifumbazi e Chicolone
Julgo que se deve a Gago Coutinho a primeira notícia escrita sobre a existência de
notáveis pinturas rupestres nesse remoto local. De facto, no “Caderno do itinerário percorrido
para demarcar o paralelo 14”, relatou haver constatado em 30 novembro 1904 a existência
desse conjunto arqueológico. Mas entre os topónimos que citou não se encontra Chifumbazi
(1). No entanto, segundo o Prof. Mendes Correia (2) Gago Coutinho, em ocasional conversa
ocorrida muitos anos depois, o informou de que, em conferência proferida na Sociedade de
Geografia, não só havia revelado a existência dessas obras de arte como também projetara as
fotografias que extraíra in loco. Havia mais interessados na descoberta porque Portugal
Durão, outro oficial da Armada que chefiara os serviços mineiros da Companhia da
Zambézia, também proferira em 1905 uma conferência sobre o assunto.
É também Langworthy (3) que cita 1907 como o ano em que Wiese fez uma
investigação séria sobre as figuras rupestres não só de Chifumbazi como de Chicolone. Dado
o seu conhecimento da língua e até pela audição de ocasionais conversas trocadas entre os
indígenas, deve ter sabido que neste último lugar se encontrava uma caverna que em tempos
antigos servira de sepultura de personagens importantes.
Em 1909, já influenciado pela decisão de abandonar Moçambique, recorreu talvez aos
seus poderes quase absolutos como senhor do Prazo Chifumbazi e, acompanhado por um
cúmplice rodesiano chamado Owen Letcher, deslocou-se a Chicolone para rever as pinturas
que cobriam a superfície vertical de uma enorme e natural laje de granito. No plano inferior
existia uma caverna onde ele e Wiese recolheram ossadas, instrumentos líticos, olaria de
aparência arcaica, etc. Wiese, incansável, insistiu em continuar a escavação até uma
profundidade de quase cinco metros. Posteriormente todo esse grande espólio fora por ele
transportado para Berlim com o propósito de o oferecer ao Museum fur Volkerkunde.
No ano seguinte, em artigo publicado pelo “Rhodesian Journal”, Owen Letcher deu
notícia do invulgar acontecimento. Ao que parece essa divulgação teve alcance internacional
porque, em 1926, numa obra italiana publicada em Milão, um tal Spring, que não foi possível
identificar, revelou que em Chicolone tinha deparado com inscrições esquemáticas que lhe
pareceram semelhantes a um alfabeto.
Foi também o artigo de Letcher que levou o emérito Prof. Raymond Dart, da
Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, a interessar-se pelo achado e em conhecer
pessoalmente o autor. À falta de fotografias, Letcher apresentou um desenho, feito na ocasião,
do qual constavam parte das numerosas pinturas que cobriam a laje de granito. O catedrático
incluiu essas pinturas de Chicolone no estudo que publicou em 1931 (4) e no qual garantiu
haver ali “centenas de símbolos diversos – escaliformes, tetiformes, radiados, concêntricos,
circulares e manuais – que lhe pareceram ter sido desenhados, na sua origem, de harmonia
com um plano bem concebido e com propósitos bem definidos”.
Para melhor aceitação do carácter sagrado do local convém refletir sobre o que escreveu
Santos Júnior no seguinte resumo da sua comunicação efetuada em 1940 (5): “A muala
ulemba (pedra escrita) – enorme penedo na base do qual, em vasta superfície quadrangular, se
encontram múltiplos sinais pintados a vermelho – é também um m’zimo, e de especial
importância… fica na base da serra de Chicolone na margem direita do rio Vúbuè, fronteiro à
serra Dzíduì, a uns 35 ou 40 quilómetros de Chifumbazi… os sinais pintados a vermelho…
264
constituem uma notável estação de arte rupestre. Quis visitá-la em 1936 a quando da 1ª
campanha da Missão Antropológica: como porém os indígenas da povoação de Coéra,
fugiram em massa, fiquei impossibilitado pela falta de carregadores de ir à dita… Mal eu
sabia então que o local que eu desejava visitar, tendo em mira apenas um estudo de pinturas
rupestres, era um lugar sagrado para a população local sendo ali vedada a presença de
europeus”.
Foi na sua segunda campanha (6) que o arqueólogo obteve elementos mais seguros mas
em condições de tal maneira perigosas que quase lhe foram fatais. Os nativos tudo fizeram
para o desviar do seu objetivo. Ao intérprete revelaram mais tarde tratar-se de um local
sagrado, contendo as sepulturas dos antepassados-deuses, do qual ninguém se deveria
aproximar. Entretanto Santos Júnior decidiu revisitar o abrigo de Chifumbazi, onde fotografou
estilizações animalistas e pectiformes, de barras verticais, pintadas a vermelho e espalhadas
de forma algo irregular.
Após contrariedades que não interessa repetir, conseguiu atingir finalmente o secreto
Chicolone. Na imensa laje vertical contemplou, decerto extasiado, o melhor e mais
diversificado conjunto pictográfico existente em Moçambique, no qual ressaltavam
escalariformes horizontais, axadrezados, pectiformes, símbolos solares, círculos concêntricos,
impressões palmo-digitais, etc. Insistiu para que lhe confecionassem uma escada rudimentar,
com troncos laterais e ramos em degrau, bem fixados por meio de cordame natural (v. fig.
94). Com papel transparente conseguiu decalcar o contorno da maioria dos sinais. O mais alto
ficava um pouco acima da extremidade da escada, a quase sete metros. Reparou numa
pequena caverna a mais de 10 m de altura onde, graças ao binóculo, tinha lobrigado uma
dupla pintura animalista. Teimou em efetuar a sua reprodução fotográfica, guindado por uma
corda rudimentar. Infelizmente, o roçar dessa corda assanhou as abelhas de uma bem
disfarçada colmeia. Em enxame, atacaram com inesperada ferocidade. Os indígenas largaram
tudo e, sempre em corrida, conseguiram atingir posições seguras. Durante este pânico
generalizado, Santos Júnior tropeçou e caiu de grande altura, fraturando um pé e ficando
inanimado durante duas horas. O capataz, entre altos brados, falhadas tentativas e redobradas
dificuldades conseguiu por fim, que fosse levado em padiola até ao camião estacionado na
empresa “Chifumbazi Mineira, Lda.”. O padecente veio a ser socorrido na Angónia e, mais
tarde, transportado para o Furancungo de onde seguiu para a capital em aeronave
expressamente enviada pelo governador-geral.
O grave acidente provocou a mais forte impressão entre a população gentílica porque
veio confirmar, de modo indiscutível, a arreigada crença nos magnos poderes dos
antepassados-deuses que até tinham sabido como vingar justamente as intoleráveis
provocações feitas por aqueles estranhos e desaforados visitantes, conseguindo mobilizar,
para o efeito, um enxame inteiro de abelhas assassinas.
O espólio recolhido por Wiese revelou-se precioso para os conhecimentos
arqueológicos. D. W. Philipson (7) concluiu que certas peças foram consideradas entre as
primeiras descobertas da olaria da Idade Antiga do Ferro na África Subsahariana. Entre elas
merecia destaque a designada por nkope.
265
Bibliografia
3ª
NOTA SOLTA
Foi aqui seguido um critério
diferente na citação das referências
bibliográficas: passam para o final
de cada subtítulo e têm numeração
própria.
Os assuntos que aqui e agora irão ser expostos, já foram estudados em outras
composições escritas que se acham referidas ou integradas nesta coletânea. Para mais fácil
entendimento, recomenda-se aos leitores interessados que consultem previamente os seguintes
estudos:
a) De Caetano Montez (1) publicado em 1948, sobre o descobrimento e a fundação de
L. M.;
b) De A. Lobato (2) publicado em 1961 e já resumido na primeira referência
bibliográfica do 3º Documento, na qual foi incluída uma nota sobre a fundação da Companhia
e a sua segunda expedição a Moçambique que em 1832 levou os fundadores das famílias
Albasini e Fornasini;
c) O sub-capítulo 4 do capítulo VII da obra que dediquei ao sul de Moçambique (3);
d) O texto desta coletânea dedicado aos persistentes esforços de conquista
desenvolvidos pelos holandeses (5ª Nota Solta).
***
***
Como se sabe, os Angunes (Nguni) – mais tarde designados por Zulos – foram-se
radicando e multiplicando a sul do Alto Pongola, nas extensas e onduladas encostas de
cordilheiras batidas por húmidos ventos oceânicos. Eram excelentes para a criação de gado
bovino e, mais tarde, para o cultivo intensivo e prioritário do milho, novo cereal de origem
americana, disseminado pelos portugueses. Possivelmente guiada pelo propósito de confirmar
a sua distinção e superioridade, a cultura zulo desenvolveu um tabu estranho mas rigoroso que
proibia o consumo de peixe, mariscos e outra fauna marítima. Tenha-se em mente que, por
seu lado, às mulheres era proibido cuidar do gado bovino.
Alan Smith (5) aventou que, no Séc. XIX, os contactos comerciais com a baía
laurentina, remontaram ao reinado de Dinguichuaio, o protetor de Chaca-Zulo. O monarca
considerava esse comércio tão importante para a estruturação do seu poderio político que, sob
pena de morte, o teria elevado à categoria de prerrogativa pessoal. Teria até firmado uma
aliança temporária com o rei do Maputo quando, durante um contratempo bélico, decidiu
recorrer a mosqueteiros tsongas para derrotar o seu rival Quabe.
Seguindo o exemplo do seu grande protetor, Chaca-Zulo estendeu o domínio formal da
confederação aos pequenos chefes que, nas terras baixas, se dispersavam desde Santa Lucia
até às ilhas de Inhaca. Esses régulos não possuíam gado bovino e, para efeitos de alimentação,
dedicavam-se sobretudo à caça e à pesca. Sem capacidade militar para resistir aos aguerridos
e organizados zulos, conformaram-se com o estatuto de simples tributários e colaboradores
nas trocas comerciais efetuadas na terras banhadas pela grande baía. Passou a ser da sua
responsabilidade a mobilização dos respetivos súbditos na obtenção, preparação e transporte
dos tributos prioritários, constituídos por despojos da fauna selvagem. Transformaram-se em
responsabilidades comunais e deviam ser entregues em quantidades que satisfizessem os
potentados vitoriosos. Também eram apreciados – como recipientes de bebidas – outros
produtos hortícolas de produção feminina como cabaças e abóboras. É opinião corrente e
aceitável de que o cumprimento dessas exigências haja sido determinante na consolidação da
carreira política de muitos soberanos. Sem dúvida que estimulou as conquistas zulos e
alicerçou a sua política externa.
Importa sublinhar que o aparato e a complexidade dos adornos exclusivos dos
guerreiros de origem angune (Nguni), possuíam um objetivo militar muito concreto:
aterrorizar os povos que se pretendia submeter ou conquistar. O missionário suíço A.
Grandjean (6) profundo conhecedor da língua e dos costumes, apurou que os guerreiros de
Sochangana-Manucusse que invadiram o sul de Moçambique, conseguiram submeter sem
dificuldade as populações nativas porque foram considerados como sendo qualquer espécie
desconhecida de invencíveis hominídeos, empunhando grandes escudos e lanças, cobertos de
crinas e plumas, pulando e rugindo raivosamente, rilhando os dentes e rodando as pupilas nos
globos oculares avermelhados.
A recolha e o tratamento dos despojos requeriam cuidados especiais. Essas tarefas não
eram fáceis. Todos aqueles que caçaram nos sertões africanos e quiseram aproveitar as peles
para efeitos comerciais ou ornamentais estavam bem cientes dos cuidados e normas a
observar na lavagem, raspagem, demolhagem, secagem, etc. Nas peles de leopardo,
269
imediatamente lavadas após o abate, era indispensável recorrer a produtos específicos como o
sal, o alúmen e a pedra-pomes que, nas condições tradicionais, decerto puderam ser
substituídos por preceitos e produtos de invenção local e talvez mais eficazes. A caça exigia
meios, criava perigos e apresentava dificuldades permanentes. Um fidedigno caçador
profissional garantiu, em comunicação pessoal, que só os mais exímios cavaleiros africaners
conseguiam isolar o avestruz selecionado e galopar a seu lado, em rédea solta, para o abater
certeiramente de modo a manter a plumagem intacta. Uma investigação específica sobre a
exportação de caudas dos simbas, feita de Inhambane para Porto Natal, entre 1850 e 1875,
conseguiu apurar que as mesmas se destinavam à confeção do saiote dos guerreiros zulos.
Existe uma informação oficial, escrita no Mossurize em junho 1886, da qual consta que os
caçadores de Manuel António de Sousa receberam ordens para abater simbas porque as suas
peles tinham sido reclamadas, como tributo, pelo próprio Ngungunhane. Não admira que esse
belo felino tenha acabado por se extinguir.
Outra prova surgida na mesma região, foi dada a conhecer por Paiva d’Andrada quando
aludiu ao novo regimento criado pelo monarca e afirmou que lhe fôra fixado o distintivo da
cor branca. Mal se pode imaginar o esforço desenvolvido pelos chefes avassalados, num
território maior do que Portugal, para reunirem cerca de mil bovinos daquela cor e para com
eles confecionarem, com o devido apuro, o mesmo número de grandes escudos de combate.
Como se sabe, Chaca em 1828 foi vítima de uma conjura urdida por seu irmão Dingane
aliado a alguns indunas. Segundo Charles Ballard (7) Dingane manifestou decidida
preferência pelo comércio com o presídio de L. Marques. Considerava serem ali de melhor
qualidade tanto as missangas como o latão usado nos adornos femininos. Também ali
conseguia adquirir mosquetes, pólvora, chumbo, e outros produtos que lhe eram recusados em
Porto Natal. Sabemos que, por ocasião do assalto à fortaleza, o agente da Companhia
Comercial evitou o mesmo destino graças a um presente de 522 manilhas de pescoço e de 200
maços de missangas.
Há evidentes lacunas no seguinte relato dedicado por Balard à tragédia. “In 1838 the
Portuguese governor at L. Marques also halted all arms sales to Dingane; in retaliation the
Zulu king sent an expeditionary army to L. Marques and annihilated the garrison. This
punitive operation was an expression of Zulu determination to maintain its hegemony over an
area of great strategic and economic importance”.
Nestas circunstâncias, há necessidade de introduzir algumas correções. Mais uma vez
convém exortar os investigadores a não minimizarem a importância da documentação
primária portuguesa.
Alexandre Lobato, nos estudos supracitados, consagrou um deles a interpretar certo
manuscrito que adquiriu a um antiquário lisboeta e que têm por título “Memória contra a
fação dos negreiros”. Também o Arquivo Histórico de Moçambique decidiu, em 1986,
publicar o mesmo manuscrito. Descreve, em forma de diário, os acontecimentos que tiveram
lugar no presídio de L. Marques, entre 26 julho 1833 e 12 julho 1834. Esse documento foi
também minuciosamente estudado por Gerard Liesegang mas com a evidente preocupação de
o espartilhar entre os rígidos enquadramentos concetuais do marxismo-leninismo. Os
resultados da sua pesquisa compreendem dois levantamentos cartográficos e uma introdução
das páginas 9 a 23. No final incluiu as setenta e oito notas que enriquecem essa introdução
(pgs. 71 a 80) e, ainda, quarenta notas ao próprio texto (pgs. 81 a 84). A bibliografia ocupa as
páginas finais.
Lobato rematou o polémico assunto com a seguinte conclusão judiciosa: “Deste caso se
pode dizer que afinal se foram os anéis e depois os dedos; ao governador porque, depois de
uma carreira brilhante, à maneira da época, se desonrou e se perdeu; ao Nobre porque pagou
em saguates, vexames e cadeia todo o calculismo do seu proceder. A absolvição da Junta de
270
Justiça, em 1838, que levou em conta a prisão sofrida, a discordância das testemunhas e a
defesa do réu, não o absolve da mancha de não ter feito alguma coisa que evitasse esta página
triste e vergonhosa da dolorosa história de Lourenço Marques”.
Ao que parece, o manuscrito teve alguma divulgação. Recomendamos a leitura do
Tomo I da “Documentação Avulsa Moçambicana do Arquivo Histórico Ultramarino” (nº 167,
pp. 216 e seg.). Dele consta que uma cópia do documento tinha pertencido ao barão de
Moncorvo e, ainda, que outra cópia estivera na posse de Sir James Alexander, membro da
Royal Geographical Society.
***
Dingane veio a sucumbir em 1840, vítima de uma aliança formada pelo seu irmão
M’pande com os Suazis e os africaners transvalianos. M’pande interveio numa disputa de
sucessão ocorrida no reino de Maputo. Em 1854 o rei Macassane veio a falecer. Tinha
nomeado como sucessor o seu filho Nozihinguile. Porém, o irmão de Macassane (Nonecatxa
de seu nome) discordou da nomeação e ameaçou recorrer às armas. Nozihinguile refugiou-se
na Zululândia e solicitou apoio militar. M’pande satisfez o pedido e enviou sete dos seus
regimentos. Como o pretendente tivesse resistido, foi necessário enviar reforços. Finalmente o
revoltoso e os seus apoiantes foram derrotados e logo executados. Nozihinguile regressou à
Maputolândia como monarca de pleno direito e veio a reinar até 1886. Convém acentuar que,
durante esse longo período, manteve cordiais relações com os Zulos, jamais falhando no
pagamento dos tributos.
Mais tarde, M’pande teve que arbitrar um conflito interno que eclodiu entre dois dos
seus “grandes”: Cetshuaio e M’buiaze. O soberano decidiu conceder ao primeiro os lucros dos
tributos e, também, de outros privilégios que recebia dos Tsongas e, em especial de
Nozihinguile, sob a forma de tecidos, armas, pólvora e chumbo. Uma testemunha cita que o
transporte deste tributo ocupava de cem a duzentos carregadores. Deve acentuar-se que nem
os britânicos de Porto Natal nem os africaners do Transval permitiam a venda de armas de
fogo aos zulos. Para introduzir estas armas usando a rota costeira, Cetshuaio foi auxiliado
pelo famoso sertanejo John Dunn (8) que foi agraciado com o estatuto de chefe zulo, entre
1857/78, com quarenta e três mulheres, duzentos caçadores, dez mil súbditos e milhares de
bovinos. Deixou valioso espólio documental que se encontra nos arquivos oficiais do Natal.
O controlo da rota estratégica baseada na baía laurentina foi considerado como de
grande importância para a carreira política de Cetshuaio. Convém acentuar que John Dunn
gozava de especial prestígio entre os Tsongas, porque a carne dos animais que ele e os seus
caçadores abatiam era oferecida gratuitamente. Na sua correspondência relata que, durante
uma só estação, conseguiu abater nas praias da baía de Santa Lucia nada menos do que
duzentas e três vacas-do-mar. Os Tsongas acudiram às centenas para recolherem a carne,
repugnante para os Zulos por ser de origem marítima.
Os comerciantes de Porto Natal consideravam Dunn como ótimo cliente. Por isso lhe
forneciam de bom grado os capitais e os créditos de que necessitava. Com eles comprava
armas e munições na baía de L. Marques para introduzir na Zululândia, a troco de gado. Era
com este que pagava os débitos contraídos.
***
***
Bibliografia
O depois famoso Com. Augusto Vidal de Castilho Barreto e Noronha (abrev. Augusto
de Castilho) em meados de 1875 exerceu o cargo de governador de L. Marques. Compreende-
se que em 14 abril 1880, tenha apresentado uma comunicação na Sociedade de Geografia em
que afirmou (1): “… Esta linha imaginária que foi escolhida ao acaso… atravessa o país do
Maputo que divide em duas partes desiguais… o régulo com uma porção dos seus súbditos
reside no Sul de 26º 30’ e está politicamente de facto e de direito fora da nossa autoridade!
Um exemplo análogo não se dá provavelmente em outro país do mundo”.
Em janeiro 1896 o governador interino Joaquim da Graça Correia e Lança (2), em
virtude do régulo da região, Angoanase (Ngwanazi), assumir atitudes de manifesta rebelião,
incumbiu o major Mouzinho de Albuquerque de ali restabelecer a soberania portuguesa.
Mouzinho obedeceu sem reservas nem demoras, apoiado nos seus minguados recursos
que se cifravam em dezassete soldados de cavalaria e trinta praças angolanas. Em marchas
arrojadas, sobretudo noturnas, caindo de improviso ora sobre uma povoação ora sobre outra,
Mouzinho deu por terminada a sua missão em meados de março, tendo deixado os territórios
meridionais devidamente pacificados e cobrado impostos remissos no valor de 1,800 libras
ouro.
Assim ficou consolidada a vitória pouco antes alcançada contra o Ngungunhane, pois se
não fora ela, como o próprio Mouzinho confessa, não poderia com tão reduzida força militar,
submeter um potentado que dispunha de cinco a seis mil homens de guerra. Este feito bélico
foi mencionado por Gerhard Liesegang (3) nos seguintes termos dúbios: “No ano de 1896
Ngwanazi tinha encontrado refúgio na África do Sul, depois de atacado por um pelotão de
cavalaria chefiado por Mouzinho de Albuquerque”. Pela documentação em que se baseou
(nota nº 97) ficamos informados de que – não só os familiares mas também os indunas de
Ngwanazi – foram deportados para a Ilha de Moçambique em abril do mesmo ano.
Regressando à intervenção de Augusto de Castilho, há que ter em mente a supracitada
alteração do paralelo que continua a delimitar a fronteira do extremo sul de Moçambique.
Porém dessa mudança não resultaram vantagens significativas porque os solos que se
encontram entre o rio Maputo e o oceano, são arenosos ou pantanosos, recobertos por densos
canaviais. Por esse motivo a região foi aproveitada oficialmente como “Reserva Especial de
Proteção aos Elefantes”. Segundo informação fidedigna do veterinário e investigador
Travassos Dias, com o decorrer do tempo o número de proboscídeos se tornou tão opressivo e
prejudicial para o ecossistema que foi indispensável proceder ao abate de quase um milhar.
Entre os fetos encontrados nas fêmeas foram selecionados os mais apropriados para se
conseguir apresentar no museu nacional um quadro (por alguns considerado único no planeta)
que mostra as diversas fases evolutivas da gestação.
Na reserva foram introduzidos hipopótamos, crocodilos, rinocerontes brancos e outra
fauna selvagem. Em 1970 foi classificado como definitiva a área de setecentos km2 e a
mudança de nome para “Reserva Especial do Maputo”.
***
Bibliografia
4ª
NOTA SOLTA
Brief Sketch of Tawara Society
***
The Tawara are a Northern Shona-speaking people living in the Tete District of
Mozambique, mainly south of the Zambezi River between Zumbo and Tete, and in the
northern region of the Mt Darwin District of Rhodesia. Nineteenth century references to the
Banyai probably refer to the Tawara. Though intermarriage with others occurs, the Tawara
remain distinct from the Nsenga, Pimbi, and Dema to the north, and the Tonga and Nyungwe
to the east. In the regedoria of Gossa there are few representatives of these other groups, and
the population is quite homogeneous, almost all sharing the same clan name of Nguruwe
(Pig). Linguistically, historically, and culturally the Tawara appear to be most closely related
to the Korekore of the northern districts of Rhodesia, and there are some in Rhodesia today
known as Korekore-Tawara.
As I stated in the preliminary report, we obtained most of our information in the
Cachomba area on the Zambezi, but we also briefly visited Tawara in Guanzei on the Daque
River, near Estima, and in Nsongo.
Administrative Divisions
Cachomba and Guanzei are both areas within the regedoria of Gossa. The Gossa
chieftainship enjoys considerable prestige among the people in this regedoria – they are proud
of the great line of chiefs (mambo) who have taken the title Gossa. This is not to say that
278
every incumbent of the office has enjoyed the same high respect as his forebears, and in fact it
may take some time for a newly appointed chief to have much influence with his council of
headmen and elders (machinda).
Under the chief are a number of headmen (mfumu) in charge of local areas throughout
the “regedoria”. The headmen are supposed to help the chief by acting as advisors as well as
by seeing that administrative orders are carried out, including the payment of tax. In the Gossa
regedoria the headmen have been grouped into sections under headmen who are designated by
the Government as “chefes de grupos” (chiwanga). Court cases which the headmen cannot
judge must be taken to the “chefe de grupo” before being referred to the chief, who as
“regedor” is the highest authority below the Portuguese “chefe de posto” or administrator.
Thus, the headman Cachomba in whose area we stayed has been placed under the “chefe de
grupo” Chissandu, who is also the headman of his own territory immediately west of
Cachomba’s. There seems to be some indication that the Tawara consider the division into
sections under these “chefes de grupos” to be an innovation introduced by the Government
and of little traditional importance. If this idea should be general in the region, there might not
be strong objetions if in the resettlement of villages it became impossible to keep together
under one “chefe de grupo” all the headmen presently assigned to him. It might, however, be
more difficult to move headmen and their villages into a different “regedoria”. We did not
discuss resettlement plans with the people, as that was not our job, though we did answer a
few simple questions raised by the people.
The Village
The term village (musha) is used to refer to the people and territory under one headman
(mfumu). The number of families under a headman varies, but census figures show a range in
population size from less than 100 to over 400 people under each headman in Chissandu's
section. The village may be fairly compact or may consist of several spatially distinct hamlets,
each containing a number of family homesteads. I do not know if such hamlets have a sub-
headman over them, but in some cases it appears that the inhabitants form a number of related
families tracing kinship ties to a senior member. Whether a village is compact or separated
spatially into hamlets can depend on a number of fators, including the local geographical
conditions and the existence of tensions between members of a village. It appears to be rare to
find completely isolated homesteads, and people claim to prefer living together in larger
settlements.
Most of the inhabitants of a village are related to one another by some sort of kinship
ties: men frequently are related by affinal ties, while women more commonly are living in
their parents’ village. A young couple almost always sets up a homestead in the vicinity of the
bride’s parents. If the husband has paid all the required amounts for his marriage, he is
theoretically free to take his wife to his own parents’ village or their hamlet if he has married
within his own village. But from discussions about kinship links between members of
Cachomba’s village, it appears that most men in practice continue to live with their wife’s
people for many years, unless they are called to succeed to the headmanship in another
village. Many men in this area have two wives, each of whom lives in the village of her own
parents, and the husband travels back and forth between them, perhaps spending alternate
weeks in each wife’s village and fields. A very few men will thus travel distances as great as
that between Gossa’s capital and the Zambezi. Some wives do move to join their husbands,
279
though they will always have a separate homestead from that of a co-wife, but others refuse to
leave their kin.
Neighboring villages also share kinship bonds. It seems that young men frequently seek
wives in one of two nearby villages where they also have relatives. For example, many men
living with their wives’ people in Cachomba’s village claim either Chissando or Messeca as
their natal village, and their sons may be living in either of these areas with their in-laws.
Even the sons of headmen appear to live with their wives’ kin rather than with their fathers,
and so the successor to the headman may have to be recalled from a neighboring village.
Villagers living along the Zambezi frequently reside quite far from their fields. The
fields must be shifted every 3-5 years, but the villages are more permanent and may remain in
the same general locality over the generations. Houses are abandoned when an important
family member dies or when they begin to fall apart, often due to termites, but new
homesteads are built quite close to the old site. Medicine is put under the first housepost of
the father’s new house to protect the village from evil. If the move is to a new area, the senior
members of the family inform the ancestral spirits of the move. To see if the new locat ion is
favourable, they take cornmeal and arrange it in a heap under a tree in the new area; if it is
still intact the following day, the location is good, but if the meal is strewn all over they will
look for another site. It is, of course, also necessary to inform the headmen and chiefs of
moves across territorial boundaries.
Thus, the village is a basic social and administrative unit within the “regedoria”. There
is flexibility in village membership, for theoretically anyone can be accepted into the village,
but most often membership is based on some kinship link with other inhabitants. In the
economic and religious spheres the village does not appear to play a very important role,
though there do seem to be some rites performed at the village level, as the minor first-fruits
ceremony carried out by the headman and a few other elders.
Economy
Tawara economy is based on agriculture and wage labor, supplemented by the keeping
of small livestock, fishing, and hunting. Fishing is common during the rainy season along the
Zambezi and some of the larger rivers, but it seems to be restricted to individuals using hook-
and-line rather than including communal net fishing. Hunting is limited by the costs of a
license and the scarcity of game today compared to the past when even elephant hunting was
reported in this area. Livestock include goats, pigs, fowl, and rarely sheep and cattle. There
are no cattle in the Cachomba area, though evidently in past years some were bought until it
was seen that they always died. All these animals are eaten, including the pig, even though the
clan name of most people is Pig; only a few refuse to eat pork on this account. Meat and fish
are used to supplement the basically vegetable diet of thick porridge and vegetable relish.
Agriculture absorbs a large part of Tawara interest and time on the part of both men and
women. As there is no store in the immediate locality, the people are mainly concerned with
subsistence agriculture and only occasionally sell excess grain or peanuts. (There seems to be
no interest in raising cotton as a cash crop, but some might increase the size of their peanut
gardens if it became profitable). Work is divided between the large fields (munda) at some
distance from the village and the gardens (dimba) closer at hand. Fields are mainly for grain
crops as sorghum and millets which thrive in a drier soil, while gardens in moist areas are
280
planted with a variety of crops including maize, peanuts, sweet potatoes, pumpkins, and green
vegetables.
Men spend much of their time working in the fields, leaving the village by 5:30 a.m. to
arrive 1 ½ to 2 hours later. Theirs is the task of clearing new land each year, for fields last
only 3-5 years, and of organizing the burning later in the year. When the rains come, usually
late in November or early December, the really busy agricultural season starts – planting, then
weeding every week or so until the stalks are 2-3 feet high, and finally harvesting in March
and April. Women and men work together in planting and harvesting, but women usually do
more of the weeding. Work parties are often organized, the cultivator providing beer or meat
for those who help with the weeding or harvesting. Once the grain is beginning to mature, the
fields must be guarded against pests. Special medicines will keep away thieves. Children are
kept busy scaring off birds, while adults sometimes spend the nights in temporary shelters in
the fields so as to chase away guinea fowl, baboons, and buck. Some villages are practically
deserted during part of February or March while the active adults camp thus in their fields.
Village sites remain near the Zambezi where there is sufficient water all year long, but grain
fields cannot be located close to the river because of the soil and because of the flocks of little
river birds which would ruin a year’s crop in a short time.
Gardens, on the other hand, are commonly found near the Zambezi settlements and
along the banks of streams which flow near the fields. Tawara recognize three main types of
gardens: 1) peanut plots, 2) gombe or river-side gardens, and 3) gova or wetter swampy areas.
All around the village will be found small gardens planted with peanuts. These require a fair
amount of attention, on the part of women mainly, for a couple of weeks in January or
February. Larger areas near rivers and streams are used for maize and a variety of vegetable
crops, seeds being mixed in the holes so that both trailing vines and higher stalks grow a year,
and the land may remain fertile for 12-15 years, then requiring only 2-3 years fallow. The
wettest areas, gova, are rare in many localities; the only one that we heard of in this region
was that which belonged to the headman Cachomba and was planted with rice.
There is no land shortage in this region, for the population density is low and there are
no large holdings for cash crops. Villagers thus have a wide choice of land for fields. The
choice is based on various natural features, including the nature of the soil (dark, somewhat
stony, well-drained soil is preferred), and the presence or absence of certain trees and grasses.
A fallow field requires about 15-20 years’ rest before being cultivated again. If the original
cultivator wishes to reuse it, he has the right to reserve the area for future use; but if another
should ask to cultivate there, permission will usually be given, for there is no pressure on
land. A young man sometimes obtains his first fields from his wife’s people who have shifted
to new adjacent fields. Land rights in garden plots, on the other hand, are jealously guarded
even during the short fallow period, for these are fertile areas and often conveniently close to
rivers and homesteads. Once a person has obtained rights in land, no one may take the land
from him and his heirs will be equally secure in their rights to the area.
While agriculture, supplemented by fishing and livestock raising, is sufficient to meet
subsistence needs, most Tawara men face the necessity of seeking employment as wage
labourers for Europeans during at least some years. Money is needed to pay taxes, to marry
wives, to pay court fines, to buy goods at the traders’ stores, and to send children to school.
Older men remember the chibalo system, while younger men continue the practice of seeking
work in Rhodesia, for several reasons: jobs have been more readily available, Rhodesia is
closer than urban areas like Beira, pay is relatively good, and jobs can be found as cooks,
kitchen or wash boys, and other non-farm workers. Some men have relatives who have
worked for years in Rhodesia and may not return until their old age; in these cases they may
have taken their wives and children with them. Occasionally it happens that the proper
281
successor to a headmanship does not wish to return immediately, and another will assume the
duties. The absence of strong young men, whose wives continue to live with their own
parents, puts an extra burden of agricultural work on the remaining men. The wider group of
relatives thus becomes important in the economic sphere, for kin are under obligation to help
each other.
The Tawara are patrilineal in descent, inheritance and succession. There are clans,
consisting of people who share a common clan name (mutupo), but they do not form
corporate groups. The important kinship group for a Tawara person is the local lineage,
usually called a «family», whose members refer to each other as relatives, hama. Lineages
have limited genealogical depth and are not arranged hierarchically; most Tawara are not
overly concerned to trace their genealogical relationships with others, though of course for the
royal lineages tracing descent is of more importance.
The lineage is the largest exogamous group, and in the Cachomba area it seems that
intra-clan marriages are preferred as long as the spouses are not «relatives». While the lineage
is not a compact local unit, adult males being dispersed on marriage, most members live
within easy walking distance except for those away as migrant labourers. When a man dies,
his lineage members get together to select a successor, often his younger brother or oldest son.
At least sometimes the successor takes the name of the deceased and occupies his position in
the kinship structure, so that relatives formerly known as father will thereafter be known as
older brother. The successor may also inherit the widows of the decessed, except his own
mother, and he becomes responsible for the care of their children. A woman may refuse to be
inherited by the successor, and if she is elderly she may prefer to live with one of her grown
children. Inheritance of livestock, tools, and other belongings also takes place within the
lineage. A woman’s property will be administered by her brother upon her death; the husband
has no right to it. If a man has two wives, he usually allocates half his goods to the “house” of
each wife during his lifetime so that there will be no problems at his death. The children of
each wife inherit the goods assigned to their mother, with the oldest son keeping a slightly
larger portion in return for his assuming responsibility to help his younger siblings when in
need. The relative lack of important inheritable property seems to be correlated with absence
of strongly developed lineages. Even for marriage payments, men do not rely so much on
their relatives as on their own ability to earn the necessary money. Yet, when in need, men do
look to lineage members for material help. The legal and religious roles of the lineage are as
yet unclear to me. I do not know if the lineage is collectively responsible for the faults and
debts of its members, or if oldest male is particularly important in the ancestor cult.
Lineages are linked through marriage. I have not found any regular pattern of
exchanging wives between lineages, though at least some marriages result from infant
betrothal decided upon by the parents. Today it is likely that the young people could refuse to
accept the marriage arrangements made by their parents when they were children, and the
practice of infant betrothal does not seem common. A boy is encouraged to seek a wife from
the daughters of his father’s kin, e.g. the granddaughter of his paternal grandfather’s sister, or
perhaps from the daughters of his father’s special friends known as sahwira. Most informants,
however, stress the special friends known as sahwira. Most informants, however, stress the
freedom on the part of the young people to choose their partners in marriage. The only
inflexible rules are: a) marriage may not take place between relatives hama; and b) a man
282
may not take as his second wife a «sister» of his first wife while the latter is still alive – after
her death, such a marriage is often encouraged.
When a boy decides he wants to marry a girl, he gives her a small token, perhaps 6d, to
indicate his interest. If after discussions the two agree, the boy sends a friend with 6d or a
shilling to give to the girl’s family. This is given to the girl’s maternal grandmother, who
shows it to the mother, and then the father is formally notified of the young man’s intentions.
The girl’s family likewise sends back a similar token to the boy’s people. After this exchange
which marks the beginning of the couple’s engagement, there may be a court case if either
side backs out – it is a family agreement, not just an individual affair.
A boy usually becomes engaged at the age of about 18-20 years, while his fiancée is
likely to be about 14-16 years old. He now begins to visit his future wife daily, eating with her
family, building a little house near their homestead, and helping in her mother’s fields. Before
the wedding takes place, he must give the family £1-2 for the privilege of sleeping with his
wife. A couple of weeks after the wedding the young husband must give his wife’s parent the
final payment of some £7-10. If he has not yet gone out to work for wages, he may obtain the
money from his own relatives, each of whom gives a pound or two. The young people then
continue living together as man and wife for a few months until the wife is pregnant. At this
time the husband leaves to work in Rhodesia or wherever he can earn money to repay his
relatives. No further payments are made. If the wife is barren, the husband will pay only about
£2-3 instead of £7-10, but he will not necessarily divorce her. Later he might take another
wife in hope of getting children; many men do have two wives, but few think of more than
two. Marriage payments differ from area to area among the Tawara. Around Estima, for
instance, a man pays about £7 at the time of his wedding and before he can sleep with his
wife. To obtain the money he usually seeks employment while still engaged, then, when a
baby is due, he must again find a job to pay the lobola of £12-15 at the birth of the first child.
If there is no child, this sum is not paid, thus demonstrating that the purpose of the lobola is to
establish the man’s right to affiliate the children to his lineage. In both areas, only money and
a few small token gifts are exchanged at marriage – livestock do not seem to play an
important role here – and so the husband need not be dependent on his lineage members for
his marriage payments.
When a baby is to be born, the mother is secluded in a house where her mother, a
midwife, and other older women come to help. The husband and his mother may not be
present. The mother and child remain inside the house for 1-2 weeks, and then are formally
led outside while the husband is not around. The baby is given its name at a special ceremony
to which relatives are invited. The husband’s mother sprays water from her mouth over the
child, saying «baby, is now your name». If the baby cries too much over the next few weeks,
it is thought that some ancestor is troubling the child, and the diviner is consulted to
determine which ancestor it is. The baby’s name then will be changed to the one indicated by
the diviner. The ancestor can be of either the husband’s or wife’s side. The baby is protected
from other troubles by such means as giving it a bead necklace and string wristlet, burying the
placenta carefully, and washing the newborn in a special way. The baby sleeps with its mother
until it is weaned at about 1½ to 2 years of age. The mother is not supposed to fall pregnant
again until the child is a toddler, lest the new foetus deprive it of milk by making the mother’s
milk taste sour. The toddler still remains close to its mother, though often taken care of by
older children, until about the age of five.
283
When a boy reaches five years, he tends to leave his mother’s company and seek
playmates in the village. He may go fishing with them, or help herd goats, or just play around.
At night he continues to sleep in his mother’s house but on his own mat, until around the age
of 8-10 years when he joins other older boys in the special boys’ sleeping hut in the
homestead. Girls of comparable age also move into a hut of their own. While boys may help
with some chores, especially herding and occasionally gardening, the young girls are busier
with the cooking.
Today many of the young boys attend school for one year, and a few for two to four
years, if they live close enough to the Government school at Cachomba’s village. Children
come from Chissandu and Messeca as well as Cachomba, but other villages are usually
considered to be too far away. Parents encourage boys to get some schooling, for it might be
of use when they look for work later on, but they generally see little value in girls going to
school. There are however some girls at the school in Cachomba, including some in the upper
classes.
As children get a bit older, they may decide to play «house», choosing a spouse and
acting the part of adults. They may set up little houses to which the «wife» will bring food
and the «husband» will share his treasures with his chosen «wife». This is only play, but it
provides training in accepted adult behavior and the «couples» may continue their special
friendship into marriage a few years later.
Adolescents do not receive teaching on sex from parents, for it is not considered proper
to discuss such matters with them. Instead, they learn from older siblings and friends, and
from a particular older person that each young chooses as an advisor before marriage. A boy
takes a shilling to an older man, never his father but perhaps his paternal grandfather, and
receives advice from him. When a girl first menstruates, she discusses it with her mother’s
mother who then notifies the family. A dance is held to celebrate the occasion, after which the
girl is free to marry. Sex instruction is thus given on an individual basis, for there are no
initiation schools for young people (also no circumcision for boys). In contradiction to the
information given by a Tawara man in Estima about circumcision schools and puberty rites
for groups of girls, the Tawara in the Cachomba area deny the existence of such group
initiations. When asked how a boy becomes a man and is ready for marriage, informants
merely looked puzzled and replied that he just knows he is a man and that is all.
The special advisors chosen by the young people also play a role in their wedding. On
the wedding day the couple must sit solemnly on a mat while older married adults dance
around them making jokes. That night the two sleep together for the first time, and in the
morning the girl’s advisor and the wife of the boy’s advisor come to ask if «everything is all
right». If the boy has found his wife is not a virgin, he will complain and will probably pay
only some £2 instead of the usual £7 to his in-laws. If the girl finds the boy has picked up
venereal disease while working in town, she may refuse to marry him, and any payment
already made will be refunded. The wedding seems to last only one or two days, and involves
besides the dancing a feast of chicken, porridge and beer; but there do not seem to be the
complicated rites and expressions of inter-lineage hostility common among some African
peoples.
It appears that Tawara marriages are usually stable and divorce is not common.
Adultery is grounds for a court case, the offending male having to pay the husband damages,
but informants could not remember a recent case. Occasionally a husband deserts his wife,
marrying another perhaps at Tete while working there and not returning to support his wife in
the rural area. Then she may divorce him and marry another. Children still belong to the
father who paid lobola for them; the only children who take their clan name and lineage
284
affiliation from their mother are those of an unmarried woman who does not marry the genitor
of the children.
As a person grows older, he forms close friendships with a very few people of the same
sex, and this relationship is formalized by the exchange of small gifts at certain times. While
ordinary friends are known as shamwari, these particular individuals are called sahwira. This
practice is not the same as “blood-brotherhood” found among some African peoples, for the
sahwira do not become fictional kin. They provide mutual aid and have the responsibility of
acting as pall-bearers at the funeral of their sahwira. This friend is also in a position of such
intimacy that he may tactfully suggest a change of behavior if his friend’s conduct is not
acceptable to the community. Sons of sahwira often become sahwira themselves, while a
child or grandchild of one sahwira may be given in marriage to that of another. In times of
need, then, a Tawara can look for support to his lineage, his wife’s lineage, his fellow
villagers and his sahwira. Which ones are called upon in any particular case depends on the
problem. When a person becomes seriously ill, the family usually consults a diviner to
determine the cause of the illness. Diviners may be men or women. Some of the former use
hakata (dice) as a divining instrument, but women generally rely more directly on their
ancestral spirits for inspiration. It is said that a diviner not using dice will tell the clients to
wait the night, and they will give him some small amount of money like a shilling to sleep on.
In his dreams, he contacts his own ancestors and those of the patient to find out what is
wrong. The next day he informs the family whether it is a case of witchcraft or of a displeased
ancestor, and he will then indicate what can be done to relieve the situation. The elderly
relatives of the patient, on his father’s or mother’s side, may have to provide an offering to
their ancestors if these had been neglected and so had sent the illness. Ancestral spirits are
usually given cornmeal gruel, tobacco or snuff, and beer. In the old days a suspected witch
would be taken to the court of the mambo for trial and if proved guilty, perhaps by the ordeal
of drinking a poisonous substance, was killed.
Besides the diviners, there are doctors who are mainly herbalists with a specialized
knowledge of the medicinal properties of various forest products. Some learn their trade from
an older relative; it is likely that some are also helped by their ancestral spirits in their
practice. Others are aided by a “shave” animal spirit which possesses them at irregular
intervals. When the spirit, of a snake, baboon, or possibly other animal, comes upon the
medium, he may insist on beer being brewed and drums played while he dances all night.
Some of these doctors are specialists in the treatment of only one or a few disorders, whether
barrenness or snakebite or whatever. It has been difficult to obtain good information on
diviners, herbalists, and spirit possession.
When a person dies, the corpse is washed and placed in a special temporary hut during
the mourning period. A dance is held that night, mainly by the young people, for there is a
duty to cheer up the bereaved family. The next day the deceased’s washing dish and a white
stone are taken to a large tree in the neighbourhood; the dish is placed over the stone and then
is broken. The white stone represents the dead man’s spirit, and the relatives tell the man that
they are leaving him there until the bona rite at the end of the mourning period 6 to 18 months
later.
The body is buried in the family area of the cemetery. Cemeteries should be in a shady
and cool place, but they do not seem to be regarded as highly sacred. Evidently in the more
mixed area of Estima there is a tendency to have a separate cemetery for each tribal group, but
different clans of one tribe may be buried together. In olden days men used to be put under a
large stone in a hill rather than being buried in a grave. Today both men and women are
buried, a shelf being made in the side wall of the grave to receive the body. Sticks and grass
are put over the main part of the hole, and then dirt is pushed in; the dirt thus should not land
285
on the body itself. The deceased’s family remains in the homestead mourning and not
working for a week, after which certain men who have been assigned to look after their needs,
the matumbzvi, shave their heads and tell them to not cry any more. They are then free to start
work again. The final funeral ceremony, the bona, takes place several months later. At this
time there are a large feast, meat and beer being given especially to the matumbzv and the
sahwira who acted as pall-bearers. A ladle of beer is taken by each remaining member of the
family and poured out to the deceased’s spirit, while the person says something like, «It’s me,
X, don’t be angry, but take good care of us. Here is your water». After this bona rite, the spirit
is considered to be safely with the ancestors and will not return as an aggrieved ghost. A
successor is chosen to take the dead’s place, and his property is given to his heirs. While the
limited information we obtained suggested that cemeteries are not especially important after
the bone rite, the case may be different with the burial place of chiefs.
Besides the seemingly otiose High God Ledza, there are five distinct types of spirits
important in Tawara life: the vadzimu (ancestors), the ngozi (vengeful ghosts), the shave
(certain animals), the nsato (python) spirits, and the mphondolo (lion) spirits. The ancestral
spirits are generally helpful to an individual as long as they are remembered, as at first-fruit
rites and when they make known their needs by sending illness. If neglected, or if their
descendants transgress the norms of human behavior, they may send bad luck or illness. Most
people who die become ancestral spirits, but a few who died in especially unfavourable
circumstances, e.g. by murder, may become avenging ghosts who plague those who wronged
them. Shave spirits, as mentioned above, usually are associated with some talent such as
knowledge of medicines. The other two types of spirits, those of pythons and lions, are
associated with chiefs and with rain-making.
Certain chiefs are said to return as a python which inhabits a large hollow tree, perhaps
a baobab. Not all pythons are spirit-pythons, and ordinary ones, as other snakes, may be
killed. The mphondolo (lion spirit) medium can identify these particular pythons, and he will
lead in prayers at the base of the python’s sacred tree-home in times of drought. If the tree is
cut down, drought is believed to follow. There are not many such trees however, so they do
not create a problem in clearing land for cultivation. I am not clear on the exact relationship
between the python spirits and the mphondolo mediums; it may be that some people,
especially women, become the mediums of the python spirits.
The mphondolo lion spirit, sometimes referred to in literature as a tribal spirit, is one of
the most important in the life of the Tawara and other Shona groups. I know almost nothing
about these spirits among the people we visited, except that people speak of them in
connection with ancient rain-making ceremonies. There is a certain amount of information
about such spirits among the Zezuru Shona of Rhodesia, where they are referred to as
mhondoro. These notes will be based mainly on written information rather than informants’
statements, Historical references to them include the travel accounts of Livingstone and of
Capelo and Ivens, who call them Pandora.
After a chief dies, his spirit may return to earth in the form of a lion wandering about
the bush, provided that the chief took certain medicines before death to ensure this happening.
After a while the lion spirit seeks a human host. The host medium is rarely a lineal descendant
of the chief, but is generally a commoner from a different area. The medium becomes the
mouthpiece of the chief when he is possessed by the mphondolo lion spirit. Both the spirit
286
and the medium when possessed are called mphondolo. Not everyone who claims to be so
possessed is readily accepted. Usually some senior mediums and perhaps tribal elders
question the newcomer to ascertain his knowledge of the dead chief’s life, death and burial
and genealogical ancestry – all things that the chief’s spirit would of course know.
Occasionally a woman successfully claims to be an mphondolo medium, but this is rare.
When the medium of a chief’s lion spirit dies, it may be several years before the spirit returns
to another human host; in the meantime it again inhabits a lion. There is no regular continuity
of mediums of a particular chief, and if there is no living medium of one ancient chief, the
people can consult the medium of one of the other longdead chiefs.
Though the mphondolo represent important chiefs of the past when they speak in a
possessed state, they are not consulted on political matters. Their important and most
commonly exercised power is in connection with bringing rain. In most of Tawara country
rain is unreliable and drought is not uncommon. When the rains are late, the people complain
to the chief who himself can do nothing but who sends them to the mphondolo to find out
what is wrong. The medium becomes possessed and the spirit tells the people why he is
withholding rain – perhaps because of incest or other transgressions. After the necessary
sacrifices, the spirit promises to send rain.
The mhondoro among other Shona groups is not, however, merely a rain-maker. He can
be quite important in political matters during times of crisis. For example, he must give
religious sanction, the approval of the ancient chiefs, for a new chief (mambo) to be
enthroned. The accepted rule of collateral succession means that a founding chief of an area
should be succeeded by his younger brothers in turn, then by his oldest son, and then by the
oldest sons of each of his brothers in turn. After a few generations, there would be separate
royal lineages, each of which would in turn put forth one candidate for the office of chief.
Eventually several candidates might have about equal claim to the office, and the correct one
could only be determined by a war between the rivals or by the decision of the ancestral
spirits of chiefs speaking through the mhondoros. The chief who has the backing of the
mhondoro will generally enjoy stronger support of his people than the one merely appointed
by the local Government official (the District Commissioner in Rhodesia).
In the past, mhondoros in Rhodesia also were important in supporting rebellions by
chiefs against European rule. After the dismal failure of such rebellions, it seems that the
power of most mhondoros has been greatly limited: they are still consulted in times of
drought and when choosing a new chief, but some no longer pays attention to them and they
no longer oppose Government innovations. It is no doubt partly because of their rebellious
role in the past that the people do not like to discuss these mediums today.
Almost all Tawara in the Cachomba area continue to hold traditional religious beliefs at
least to some extent. There has not been any recent mission activity in the area, but some men
have come into contact with various Christian groups while away working. The main African
Christian church, probably more influential in other parts of the district, is that of the
Apostori. It seems that some Tawara joined this group near Salisbury and have continued to
practice their religion upon their return to Mozambique. The Apostori do not seem to differ
greatly from European and American sects which trust in faith healing through prayer to God
by Jesus, which reject the use of all medicines, European or African, which refuse to
participate in other pagan cults as that of ancestral Spirits, and which insist on clean living and
strict adherence to certain Old Testament laws, including the observance of the Sabbath on the
seventh day. Apostori sometimes attend services of European Christian missions, whether
Roman Catholic in Mozambique or at least some Protestant groups in Rhodesia, though of
course they fell their own church presents the truth.
287
Concluding remarks
This brief sketch has not covered all aspects of Tawara life, nor do we yet have
sufficient material to merit a full-scale report. I have attempted to present things the way we
saw them and heard them reported this year, rather than trying to reconstruct a picture of the
past before recent European influence. There are many aspects of Tawara life which are
changing, of course, and change will no doubt be accelerated in the near future. Already the
pattern of wage labor is accepted and almost all men have been out of their home areas
working for whites for several years. Change is also being introduced through the schools and
clinics, which the people seem to appreciate on the whole even if they do not show the
interest that nursing and teaching personnel might wish. Judging from our brief visit last July
to the Mazoe area, it would appear that many would be open to cash cropping if immediate
profits were the result. Cattle and ploughs have been well accepted by some in Guanzei along
the River Daque, but this requires a suitable area for cattle and protective measures like dips.
While it is natural, then, for rural peoples to be cautious in accepting new ideas, the suspicions
of the elderly do not seem to be equally shared by many of the young people of the area.
Bibliografia
1) OLIVEIRA, Carlos Ramos de (1976). Os Tauaras do Vale do Zambeze. Junta de Investigações Científicas
do Ultramar/Grupo de Missões Científicas do Zambeze.
289
5ª
NOTA SOLTA
Tentativas holandesas para captar a produção aurífera do planalto
1) Como já acentuamos em outra obra, a tradução feita por Theal é por certo errada. No Séc. XVI a unidade de
peso não podia ser em “toneladas”, mas sim em “pastas”, cada uma delas dividida em 100 meticais e
correspondendo atualmente a cerca de 21 quilos.
2) LOBATO, Alexandre (1961). Quatro Estudos e uma Evocação para a História de Lourenço Marques.
Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar.
3) SMITH, Alan (1970). The Struggle for Control of Southern Mozambique, 1720-1830. Ph. D. Thesis,
University of California – Los Angeles.
4) SOARES, Bernardo de Castro (1 agosto 1729). Documentos anexos às plantas (referentes ao mapa da
barra de Inhambane). Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), cx. Moçambique.
5) LOBATO, Alexandre (1961). Idem, p. 65.
6) LOBATO, Alexandre (1961). Idem, p. 63.
Como grande parte desta nota solta foi baseada na segunda referência citada na
bibliografia, é imperioso transcrever a “Nota Biográfica” com que Alexandre Lobato encerrou
a sua coletânea:
“Dez Anos de Ocupação Holandesa é paráfrase do estudo «Die Kompanjie se
Besetting van Delagoabaai», de C. G. Coetzee, M. A., publicado no Archives Year Book for
South African History, 1948, vol. II. Foi redigida em 1953 em Lisboa, por mim com o Autor,
durante as reuniões que dedicámos, da parte dele, aos factos e condições determinantes da
expansão sul-africana para leste; da minha parte, aos condicionamentos, atitudes e limitações
da presença portuguesa em Moçambique. A exposição de Coetzee é por isso interpretada em
ordem aos imperativos da ação portuguesa”.
P. S. Recomendo a leitura da dissertação apresentada por Ilda Belo Carmona, na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Tem por título “Relações entre os Portugueses de Moçambique e os
“Boers” ou Holandeses de África”. Foi publicada em 1958, como «Separata do “Documentário
Moçambique” nos 85 a 88». Concentrou-se no Séc. XIX e baseou-se na documentação manuscrita
existente no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. No Curso de Verão da Arrábida do ano 2000,
o historiador holandês Pieter Emmer apresentou a seguinte perspetiva:
“Felizmente que já passou o tempo da histografia nacionalista… A Companhia das Índias
Orientais Holandesas deixou de ser considerada como uma espécie de Ministério das Colónias e hoje
ela é considerada, sobretudo, como a primeira empresa multinacional da história”.
295
6ª
NOTA SOLTA
A celebração anual da Inquaia. Táticas e hinos guerreiros.
Valores de honra, heroísmo, verdade e solidariedade
***
***
Parece oportuno citar em especial o famoso hino guerreiro uimebane. Gomes da Costa
(5) vivamente impressionado, descreve-o deste modo: «Ouvi-o cantar por cerca de seis mil
homens durante uma tarde ao pôr-do-sol voltando dum combate; e na planície imensa que
percorríamos, sob o céu dum azul opalino, diáfano, envolvidos pela atmosfera tranquila e
serena, com os nervos ainda vibrando da excitação do combate, essa canção grave, majestosa
e heroica, soou-me como cântico de graças ao Altíssimo, como um hino sagrado. E essa
impressão foi tal que jamais me esqueceu, e ainda hoje só a sua recordação me faz vibrar os
nervos como nesse dia sagrado… É a maneira como está organizado o coro que torna
magnífica esta canção. Numa reunião de impis um grupo de vinte ou trinta homens a partir da
direita começa a canção; um segundo grupo ataca a primeira nota quando o primeiro grupo
começa a terceira; o terceiro grupo começa quando a segunda termina a terceira e assim
sucessivamente… Uimeban, Uimeban! Uime a panse come jab… Áhô… Jue.» O mesmo
autor dá dela a seguinte tradução livre: “Em vão cultivas! em vão trabalhas a terra! Nossas
serão as colheitas quando passarmos com a guerra. A guerra triunfante!”
Não menos entusiásticas são as palavras de Ayres d’Ornellas (6) que o ouviu durante as
reuniões efetuadas na capital de Ngungunhane, em agosto 1895, entre os emissários
portugueses e o conselho formado pelos membros mais proeminentes da família real. Essas
palavras merecem ser repetidas porque descrevem pormenores que permitem definir as
qualidades incutidas pela preparação militar: «… tratemos de dar uma ideia do espetáculo que
presenciei nesse dia, espetáculo que bem poucos europeus têm visto e com certeza o mais
extraordinário a que tenho assistido. Pelas 9 horas da manhã, do mato que fecha a elevação
onde está o Curral de Gungunhane, vinha saindo uma multidão de gente descendo para a
langua do Manguanhana. Ao chegar à planície, tudo isso fez alto, formando uma densa linha
negra que nos fechava o horizonte. Lentamente se foi ela aproximando de nós; pouco a pouco
iam-se percebendo e distinguindo os vultos quando se partiu em seis colunas, duas delas
muito profundas, ladeadas, cada uma, por duas mais pequenas. Eram as duas mangas de
guerra dos Impafumane (homens altos) e Zinhone M’choque (pássaros brancos), dividida
cada uma em três troços (mabange) na força de perto de três mil homens cada uma,
ostentando toda a gala e a riqueza selvagem do magnífico traje de guerra vátua. Vinham
armados só de cacetes, prova das suas intenções pacíficas; e toda essa massa imensa avançava
para nós cercando a Residência sem ruído sequer, manobrando com uma precisão e
regularidade que fariam inveja a europeus. A cerca de 500 metros de nós destaca-se para a
frente o bobo ou jogral do exército, literalmente coberto de peles de tigre (i.e. leopardo), com
297
um imenso capacete de penas negras na cabeça, dando cabriolas, ladrando como um cão,
cantando como um galo. Já estavam as mangas juntas à residência e as seis colunas formaram
linha em semicírculo em volta de nós, vindo para a frente até quinze ou vinte metros um
grupo de cerca de cem homens. Entre estes vinha o Ngungunhane que conheci logo, apesar de
nunca lhe ter visto retrato algum; era evidentemente o chefe duma grande raça. Desse grupo
adiantou-se um dos principais orando por bastante tempo, dando-nos as boas vindas em nome
do régulo e da sua nação e terminando pela saudação vátua: “bahete!” que, repetida pelas
milhares de bocas que nos cercavam, produzia um efeito duma descarga de fuzilaria.
Então o régulo adiantou-se sentámo-nos e trocaram-se os mais cordiais cumprimentos.
É um homem alto, pouco mais baixo do que eu, e sem ter as magnificas feições que tenho
notado em tantos dos seus, tem-nas, sem dúvida, belas, testa ampla, olhos castanhos
inteligentes e um certo ar de grandeza e superioridade. Ao levantar-se, fez-se, de novo, ouvir
o estrondoso “bahete!” e formando outra vez as mangas em coluna, mando-as entoar o canto
de guerra. Aqui devia eu parar! Nada no mundo pode dar uma pálida ideia da magnificência
do hino, da harmonia do canto, cujas notas graves e profundas vibradas com entusiasmo por
seis mil bocas faziam-nos estremecer até ao íntimo. Que majestade, que energia naquela
música, ora arrastada e lenta, quase moribunda, para ressurgir triunfante num frémito de
ardor, numa explosão queimante de entusiasmo! E à medida que as mangas se iam afastando,
as notas graves iam dominando, ainda por largo espaço, reboando pelas encostas e entre as
matas do Manjacaze. Quem seria o compositor anónimo daquela maravilha? Que alma não
teria quem soube meter em três ou quatro compassos, a guerra africana, com toda a acre
rudeza da sua poesia? Ainda hoje nos “cortados ouvidos me ribomba” o eco do terrível canto
de guerra vátua, que tantas vezes o esculca chope ouviu trânsito de terror, perdido por entre as
brenhas destes matos nos quais vivo há um mês”. No dia seguinte fomos à banja, espécie de
Conselho de Estado, onde têm assento os membros da família do régulo e os grandes senhores
da terra – umas trinta e tantas pessoas ao todo – e entabulámos as negociações. Desde o
princípio se nos apresentou uma grande dificuldade: a de convencer o Ngungunhane de que a
submissão às nossas vontades o livraria da guerra. Alegava: “Se as tropas são tantas e estão
nas minhas fronteiras não foi só para que me viessem aqui dizer isso. Se eu já tivesse dito que
não, percebia então essa aproximação”. Enfim, seria longo enumerar os argumentos
apresentados de um ou outro lado em três banjas de cerca de quatro horas cada uma. Só direi
que admirei o homem, discutindo durante tanto tempo com uma argumentação lúcida e
lógica».
Houve outros oficiais portugueses que teceram rasgados elogios aos valores de honra,
coragem, verdade e lealdade incutidos aos guerreiros do Império de Gaza. A. Caldas Xavier
(7) destacou que em Sena “a gente de Anselmo Ferrão que não fugiu foi, sem dúvida, a sua
magnífica manga de landins…”.
Gomes da Costa (8) notou, no que concerne a resolução de litígios judiciais: “No meio
desta assembleia às vezes de duzentas pessoas não há a menor confusão; nunca fala mais que
um de cada vez, e nunca uma discussão se azeda; e isto não é imposto por nós; é natural deles
e resultado de uma educação tradicional”.
E mais adiante especificou: “… Tive sempre no Chibuto os indígenas mais respeitáveis
pela sua qualificação e idade, a quem sempre ouvia antes de pronunciar a sentença; e devo
dize-lo: nunca os encontrei em contradição, nunca os encontrei em mentira, mas sempre
justos, sempre discriminando a verdade no meio das mais tortuosas e embaraçadoras
exposições”.
298
Bibliografia
1) ANDRADA, Paiva d’ (1887). Carta nº 29, a 5 março, contendo a Ata da reunião realizada a 14 fevereiro, na
povoação real de Manjacaze; menciona inquaia realizada a 24 fevereiro com a participação de quinze mil
guerreiros.
2) DNPP e Arquivo Histórico (1985). Ngungunhane, Herói da Resistência à Ocupação Colonial. Maputo,
Partido Frelimo, junho.
3) LIENGME, G. (1901). Un potentat africain: Goungounyane et sons régne. Suiça, Bull. Soc. Neuchâtel
Géogr., 13, pp. 99-135.
4) WIESE, Carl (1891/2). Expedição portuguesa a Mpezene. Bol. Soc. Geogr. Lisboa, de 10ª série (6/7): 235-
273 até 11ª série (8): 519-599.
5) COSTA, Gomes da (1899). Gaza (1897-1898). Lisboa, M. Gomes ed.
6) ORNELAS, Ayres de (1930). Cartas de África: a Campanha do Gungunhana – 1895. Lisboa.
7) XAVIER, Alfredo Augusto Caldas (1889). A Zambézia. Índia Portuguesa (Nova Goa), Imprensa Nacional.
8) COSTA, Gomes da (1899), Idem.
299
7º
NOTA SOLTA
Datas e factos acerca das ilhas de Quirimba
O arquipélago de Cabo Delgado ou de Quirimba, que jaz na latitude 12º S., compõe-se
de 28 ilhas, das quais a maior, Amiza, tem de comprimento 8 milhas e de largura 1 e ½; as
outras são: Quipace, Quiziba ou Quiziúa, Fumbe, Calaluía ou Quilalia, Samucar, Quirimba,
Ibo, Matomo, Rolas ou Crianvé, Melandule, Inhate, Macalué ou Maate, Ilha dos Mastros,
Xanga, Zanga, Minhuge, Timbuza, Namege, Zune, Lumbamba, Mistense, Numbe, Quia,
Cuiamimo, Lenga, Cunge e Ticoma.
Destas só têm sido habitadas efetivamente: Quirimba, Ibo, Matomo e Fumbe ou
Mefunve. Todas ficam próximas umas das outras, formando com a terra firme um canal cuja
largura varia de uma a dez milhas, abrigado de todos os ventos do mar e por onde navegam
com toda a segurança pequenas embarcações, o que outrora oferecia ótimas condições para o
comércio de escravatura.
Nas ilhas despovoadas aparecem, em Quiziba ou Quiziúa, ruínas de uma casa com
cisterna; na de Macalué, os alicerces de um edifício; na de Amiza, parte das paredes de uma
ermida que se diz ter pertencido aos jesuítas que ali tinham hospício; e na de Namege, um
poço de água salobra. É voz corrente que são desabitadas devido a má qualidade da água.
Contudo os solos são férteis.
***
Data de 1560 a primeira missão de jesuítas que aqui se veio a estabelecer e a pregar o
cristianismo entre os indígenas. Vinham de Goa, dirigidos por Francisco de Monclaros. Este
aportou a Moçambique e daí começou a sua missão.
Como a dominação árabe remonta a tempos antigos, vinha de épocas remotas, a
população local é já uma miscelânea de bantus e árabes que assim criam um tipo próprio,
menos escuro e mais aperfeiçoado. As feições são corretas. Desaparecem as duas
características de lábios grossos e de nariz achatado. As línguas amalgamam-se, cria-se o
quimuane, miscelânea de árabe e macua que ainda hoje se fala. A religião maometana, de
fácil adaptação a povos primitivos, espalha-se profusamente por todo o litoral e pelo interior.
É assim que os súbditos do Mataca a centenas de quilómetros do litoral, se maometanizam
também, logo que Mataca, tornado poderoso, manda ao litoral vender escravos e marfim.
Estabelecido o “Comando das Ilhas e Terra firme” na Quirimba, com as respetivas
forças de ocupação, começou o contacto desta raça já cruzada com os europeus. Os
missionários encontraram já bastantes indígenas de fácil catequização quando eram serviçais
dos europeus e daqueles mestiços que provinham do cruzamento destas duas raças,
cruzamento que daria lugar a uma população avultada, ocorrendo aqui um fenómeno idêntico
ao da Índia. Aparecem, depois, os brancos do Ibo, designação que os indígenas dão a esta
gente, com costumes europeus, alguns de pele branca e todos católicos sinceros.
Em Quirimba edifica-se uma igreja (de Nossa Senhora do Rosário) e um convento,
cujas ruínas ainda existem e durante séculos foi abrigo e casa-mãe dos missionários que
operaram nestas paragens.
A primeira lei de abolição da escravatura foi publicada em 1570, justamente no período
em que Francisco Barreto era capitão-general de Moçambique. O ódio que já por natureza e
306
por intuição os portugueses votavam aos esclavagistas encontra nesta lei plena justificação
para exercer com afã e zelo uma rigorosa repressão da escravatura.
A fixação da autoridade portuguesa nas ilhas teve efeitos benéficos. Esta miscelânea de
raças que constitui a população de Quirimba deu lugar a uma mestiçagem complicada, com
características que se hão-de perpetuar pelo século fora e se encontram hoje nos naturais do
Ibo, a que pomposamente, como se disse, os indígenas chamam os “brancos do Ibo”. Do árabe
veio-lhe a cobiça, a volutuosidade e o espírito de intriga; do europeu a religião, a cor da pele e
a devassidão; do indígena a indolência, a desconfiança e o acanhamento. Como era de esperar,
resultou desta misceginação um ente fraco e com pouca preparação para a luta da vida. Por
isso a autoridade é bem aceite, porque saturados de lutas contra (invasores) árabes, turcos,
franceses e até holandeses, sentem agora quem os proteja, organize e defenda.
***
É necessário explicar que durante séculos os colonos portugueses que por estas paragens
se fixaram, eram na sua grande maioria – salvo honrosas exceções – simples degredados sem
educação nem moralidade e portanto a sua influência sobre os indígenas não podia ser
benéfica. Contra esta situação tinham também que lutar os missionários, sendo digna de
registo a obra que realizaram. Muitos brancos se regeneraram e se fixaram à terra, produzindo
excelentes colonos.
Os governadores, efémeros, hesitantes e sem objetivos concretos, não podiam realizar
obras de vulto. Se porventura tentassem implantar planos de defesa, de ocupação, de
colonização, era quase certo que os não conseguiriam concluir. De 1505 a 1765 houve
noventa e sete governadores. Só nessa altura Baltasar Pereira do Lago exerceu o governo
durante catorze anos, até 1779. Foi durante o seu governo que a Colónia beneficiou de uma
época de engrandecimento que aqui nos veio a fixar definitivamente.
Esta desordem na governança da África não era mais que o reflexo do que se passava no
Reino. As colónias foram sempre espelho fiel a reproduzir a imagem da Metrópole. Ainda
hoje o são.
As riquezas da Índia e os faustos do Brasil ofuscaram por completo o valor das
possessões sitas na África. João III, logo no começo do seu reinado, depois de ter assistido ao
desfraldar de todas as riquezas vindas do Oriente, à embriaguez produzida pelos fumos da
Índia, vendo a população do Reino reduzida a um milhão de almas e o tesouro incapaz de
pagar as despesas públicas, vê-se obrigado, por falta de gente, a abandonar Arzila e as outras
praças da África do Norte. Não havia que criticar a qualidade dos colonos que se expatriavam
para os restantes domínios africanos.
Depois, segue-se a catástrofe de Alcácer-Quibir. Durante a dominação espanhola as
colónias portuguesas foram pasto da pirataria de holandeses, franceses e ingleses. Durante a
prolongada luta pela Restauração, foi naturalmente o Brasil que atraiu a atenção dos
governantes. Em 1645 decretou-se o recrutamento de escravatura em Moçambique, dada a
impossibilidade de Angola continuar a fornecer o Brasil, por se encontrar sob ocupação
holandesa.
De paladinos de uma causa nobre – a abolição da escravatura decretada em 1570 –
passámos a ser cúmplices do seu restabelecimento em 1645. A ignomínia do árabe, que tanto
tínhamos criticado, foi adotada, como divisa da nossa abjeção. Se a falta de carácter dos
colonos era notória devido às suas origens delinquentes, com a escravatura foi-se degradando
cada vez mais. Ficava assim banida qualquer esperança de regeneração. Nem regeneração
pelo trabalho agrícola, nem pela doutrina missionária. À abjeção moral que os tinha
307
expatriado para aqui (Moçambique) vinha juntar-se a abjeção material da única profissão
lucrativa. As ilhas de Quirimba voltam a apresentar o mesmo cenário hediondo do comércio
da carne humana. Somente os protagonistas são variáveis. Ao árabe velhaco, de bico adunco e
com olhar de ave de rapina, substitui-se o português mal-encarado que o crime estigmatizara
em terras da Pátria. Cria-se o tipo de negreiro que Rider Haggard tão injusta e
exageradamente apresenta em todos os seus livros. Assim se veio a criar, entre os britânicos, a
reputação injustificada de sermos incorrigíveis esclavagistas. Em todo o caso, é necessário
relembrar que esses críticos, como reza o ditado, “viam o argueiro no olho do parceiro e não
viam a tranca no seu”. Em boa verdade, no ano de 1878, em águas de Moçambique, a corveta
inglesa Daphne, foi apanhada em tão fraudulento delito de embarcar escravos que as nossas
autoridades não encontraram resistência quando deram ordens para o seu desembarque
imediato. Esta descarada violação foi tanto mais extraordinária quanto é certo que foi
assinado em 1869, entre Portugal e a Grã-Bretanha, o último tratado para abolição da
escravatura.
De 1645 a 1671 vive-se exclusivamente do tráfico de escravos, apesar dos esforços de
alguns governadores para desenvolverem a agricultura. O domínio dos territórios conhecidos
pelas ilhas de Quirimba, limita-se às ilhas e ao litoral fronteiriço, onde os muzungos do Ibo se
estabelecem em pequenas propriedades em que enclausuram os escravos até ao seu embarque
para o Brasil. Nos seus ócios plantam alguns coqueiros e cajueiros, que é afinal o que ainda
agora por lá existe.
António de Melo e Castro, governador da colónia durante sete anos, de 1756/63, tenta
desenvolver a agricultura nas ilhas e muda a capital para o Ibo. Lá constrói as fortalezas de S.
João e de Santo António que as hão-de defender depois dos ataques de árabes, franceses,
ingleses e holandeses. Lá estão ainda a atestar o nosso poder de colonizadores, sentinelas
vigilantes da rapacidade de estrangeiros ousados.
Em 1671 abrem-se aos colonos portugueses novas perspetivas com a abolição do
comércio que até aí constituía regalia exclusiva dos governadores. Cria-se a alfândega de
Moçambique, mas para se ver a pouca importância que essa nova medida trouxe à vida do
colono, basta dizer-se que a alfândega do Ibo só foi criada em 1786, isto é, mais de um século
depois. Quer dizer que o principal comércio nas ilhas continuou a ser o da escravatura. O
outro era quase inexistente.
Em todo o caso, alguns barcos mercantes portugueses passam a frequentar a costa.
Porém não se modifica a índole nem a maneira de viver dos nacionais. O comércio é quase
exclusivamente exercido, como ainda hoje, pelos baneanes, a quem em 1686 o Conde de
Alvor, então vice-rei da Índia, tinha permitido o comércio em Moçambique. Formou-se a
Companhia dos Baneanes a que foi concedido o exclusivo do tráfego entre Dio e
Moçambique. Mais tarde criou-se a Companhia da Índia. São estas companhias que, desde
essa data, dão um cunho particular ao comércio moçambicano e vêm a ter grande influência
na sua economia. A feição especial que esta concessão imprime tem importância capital nesta
era de crise que atravessamos. A maneira de comerciar aqui é diferente da das outras colónias.
Não se podem fazer leis gerais para a economia, sem se levarem em conta as modalidades de
cada uma. As ilhas de Quirimba não fugiram, nem podem fugir ainda hoje, a estas
características imperiosas, que lhes imprimiu a maior das forças morais – a tradição.
Conforme a sua posição geográfica, as colónias viam-se constantemente ameaçadas e
transformadas em palco de lutas e cobiças que as desorganizaram e empobreceram. As lutas
que durante séculos se travaram para a posse de Mombaça e dos territórios setentrionais,
tornaram-nas em eternas vítimas. Árabes, franceses, ingleses e holandeses atacam-nas,
saqueiam-nas e matam a população. Os próprios indígenas do continente fazem, de vez em
quando, as suas ofensivas. Os mais persistentes nestas lutas são os árabes e os franceses que
308
chegam a monopolizar por completo o comércio no arquipélago. Séculos depois voltam os
franceses, pacificamente é claro, para estabelecerem uma importante casa e negociarem no
continente. Veleiros fazem os transportes marítimos. A certa altura iniciam os franceses uma
exploração de mica em terras de Bilibiza. Saiem do Ibo barcos carregados de mica. Quando
regressam de França trazem em troca telha de Marselha. É por essa razão que as casas do Ibo
– de arquitetura antiga e a maior parte em ruína – são na sua quase totalidade cobertas com
esse tipo de telha.
Em 1900, quando estes territórios foram entregues à majestática Companhia do Niassa,
a capital, também sede do governo, foi transferida para Pemba, que recebeu depois o nome de
Porto Amélia, em homenagem à Rainha D. Amélia de Orleans e Bragança.
Bibliografia
8ª
NOTA SOLTA
Zuanguendaba e os Angonis Guanguaras
1) BAPTISTA, J. Renato (1892). Caminho de Ferro da Beira a Manica. Lisboa, Imprensa Nacional.
2) PACHECO, Albino Manoel (1883). Uma Viagem de Tete ao Zumbo. Moçambique, Imprensa Nacional.
3) POOLE, E. H. Lane (1930). The date of the crossing of the Zambezi by the Ngoni. J. roy. Afr. Soc. 29
(115): 290-292.
4) RUGG, Rowland (1892). Ruggs’ New Map of the Western Nyassaland Gold Fields Specially. London.
5) LANGWORTHY, Harry W. (1983). Expedition in East-Central Africa, 1888-1891, a report by Carl
Wiese. Norman, University of Oklahoma Press, introd. & coment, ed.
6) CASTRO, Soares de (1941). Os Achirimas. Lourenço Marques, Imprensa Nacional.
7) LOBATO, Alexandre (1966). Augusto Cardoso e o Lago Niassa. Lisboa, Centro de Estudos Históricos
Ultramarinos, pg. 60.
8) HANNA, A. J. (1956). The Beginnings of Nyasaland and North-Eastern Rhodesia 1859-95. Oxford,
Clarendon Press, pg. 131.
9) HANNA, A. J., Idem, pg. 75.
10) CALDWELL, John Charles (1987). Les répercussions sociales de la domination coloniale: aspects
démographiques. In: “Histoire General de l’Afrique – VII – L’Afrique Sous Domination Coloniale, 1880-
1935”. Paris, Nouvelle Editions Africain, pg. 511.
315
9ª
NOTA SOLTA
Oficiais britânicos, em turismo cinegético, ao longo do vale do Chire,
no ano de 1868
Esta nota solta é baseada num artigo de Dick Hobson, publicado em “The Geographical
Journal (Londres) 149-2, julho 1983, pp. 202-210”, com o seguinte título: A hunting trip to
Mozambique in 1868. O autor termina com os seguintes agradecimentos: “The writer is most
grateful to Colonel Dudley Norman, DSO, for providing Luke Norman’s diaries, and to Mr
Donald Simpson, Librarian of the Royal Commonwealth Society and Mr Landeg White,
Research Fellow at the Centre for Southern African Studies, University of York, for the
enthusiastic and valuable assistance they gave in the provision of background to the diary
material”.
A participação do Dr. Landeg White é suficiente para garantir o rigor científico deste
relato. Viveu parte da sua vida no Malawi, contraiu matrimónio com uma moçambicana,
lecionou e investigou para o Centro de Estudos da África Austral, na Universidade de York.
Tiveram grande repercussão as obras que publicou sobre o Malawi e Moçambique. Após a
independência deste país decidiu fixar residência em Portugal e aqui se dedicou “de alma e
coração” a verter os “Lusíadas” para inglês. Passou a ensinar Literatura Mundial em
universidades portuguesas.
***
Foi o então capitão Henry Faulkner, com 31 anos de idade, que assumiu o comando
desta excursão venatória aos rios Zambeze e Chire. Era o único com experiência sobre essas
terras baixas e insalubres. No ano anterior tinha secundado a expedição de E. D. Young,
enviada pela Royal Geographical Society, para apurar o paradeiro de David Livingstone. O
autor do diário, capitão Luke Norman of Donegal, era acompanhado pelo seu amigo pessoal,
o capitão Thomas Casement. É de supor que ambos se tenham alistado, por algum tempo, no
Exército da Índia. Contrataram dois maquinistas: Perrin e Donovan. No Cabo juntou-se ao
grupo outro oficial com o nome de Alfred Belleville. Nessa mesma cidade visitaram o Rev. J.
F. Lightfoot que superintendia a educação de quarenta e dois jovens nativos, quatro anos antes
especialmente selecionados no Chire, pelo Rev. Horace Waller. Foi autorizado a escolher dois
de entre eles para servirem como intérpretes: Chinsoro e Uriah.
Por £ 400 conseguiram alugar uma escuna de 70 ton., cujo casco ostentava o nome de
“Florence”. Surgiu um passageiro a quem cobraram £ 150. Partiram, no início de agosto,
transportando o necessário equipamento, incluindo um escaler, numerosas e diversificadas
armas de caça e, ainda, as secções desmontáveis de uma pequena embarcação fluvial, movida
a vapor, com quinze metros de comprimento.
Demorou vinte dias a viagem até ao delta do Zambeze. Desembarcaram a carga e
organizaram o acampamento. Como a caça abundava não tiveram problemas com a
alimentação. A montagem da barca foi concluída a 17 setembro. A “Florence” largou para o
mar alto a 27. Entretanto ocorreram dois acidentes antes do final de outubro: quando
Casement desequilibrou o escaler, várias embalagens com tecidos foram arrastadas pela
corrente; Perrin também caiu no rio perdendo bastantes ferramentas. Admitiram remadores e
316
outros auxiliares. Iniciaram a subida, ancorando à tarde para poderem acampar, caçar,
cozinhar, comer e dormir.
Por um mestiço português em viagem, souberam que a mais próxima autoridade oficial
era o coronel Maria de Azevedo (1). Depois de contactado enviou quatro canoas para facilitar
os transportes. A 10 novembro ancoraram em Mazaro na frente de uma bela residência
ocupada por um gentil homem, fluente em inglês por ter sido educado nos Estados Unidos.
Homenageou os “turistas” europeus com um jantar.
Três dias depois ancoraram na Chupanga onde depararam com as ruínas da casa de
alvenaria onde residira Livingstone e onde, em 1862, tinha falecido sua esposa, debilitada por
infelizes excessos alcoólicos. Perto destacavam-se duas outras sepulturas com oficiais da
esquadra do comandante Owen que patrulhou o canal de Moçambique durante vários anos, a
partir de 1822 (2). Também observaram a existência de numerosos esqueletos, com caveiras
esmagadas dispersas a esmo. Os habitantes da etnia Sena informaram que se tratava de restos
de um destacamento de guerreiros do Império de Gaza que tinham sido trucidados à
machadada, depois de se deixarem embriagar com cerveja cafreal sob o pretexto de
celebração coletiva por mór do pagamento dos tributos (3). Essa coleta era bianual e
concentrada no marfim. De passagem – pelo autor do diário ou do artigo? – o leitor é
elucidado que esses guerreiros, do mesmo modo do que os Portugueses, tinham sido
impedidos pelos Nhanjas de se aproximarem do vale do Chire, para que este pudesse
continuar como valiosa fonte de marfim e de escravos.
Protegidos por uma carta de boas-vindas enviada pelo governador de Quelimane,
continuaram a subir o rio até à povoação de Chunga onde Faulkner exigiu, em termos
enérgicos, que fossem removidas as gargantilhas que prendiam um grupo de escravos
consignados a qualquer comprador. Em 28 novembro atingiram o rio Chire ancorando em
Chamo (4) aringa ocupada por um dos filhos do governador de Sena. Sobre este assunto
escreveu Norman: “Agora acabámos com os Portugueses porque os nativos não os querem do
Chire para cima”. Comenta o autor do artigo: sem dúvida que nestes “nativos” estavam
incluídos os carregadores ditos Macololos, trazidos por Livingstone da Barotselândia para
enfrentarem as depredações de Gaza e dos Ajauas (Yao) e para desencorajarem os
Portugueses de estenderem os seus domínios até à região do Chire (5).
Nos inícios de dezembro 1868 as fainas mais ou menos despreocupadas do grupo foram
sacudidas por uma informação nefasta provinda do acampamento montado nos contrafortes da
Serra da Morrumbala, na qual tinham em vão procurado rinocerontes: uma criança trazida por
qualquer dos indígenas admitidos ao serviço tinha falecido com varíola. Escreveu Norman:
“Pela primeira vez constatei que (a varíola) grassava entre nós, mas creio que Faulkner e
Casement já sabiam…”. Três dias depois faleceu outra criança. A 14 dezembro Norman
anotou: “Faulkner começou a queixar-se, já cheio de borbulhas. Bastaram três dias para se
concluir que tinha sido contagiado. Para não transmitir a doença aos restantes companheiros,
foi transportado para o vapor e daí para uma das palhotas da povoação. A face e a cabeça
estavam de tal modo tumefactas que mal podia abrir os olhos. Todo o corpo estava coberto de
pústulas. Apesar desses cuidados, Casement também foi infetado. Norman sofreu os primeiros
indícios de malária. No dia de Natal a crise de Faulkner retrocedeu e o seu estado geral
melhorou. O mesmo não aconteceu com Casement que entrou em delírio, reação que precedeu
o desfecho fatal. Arnold, Belleville e Norman foram afetados por temperaturas febris.
Casement faleceu na noite de 28 dezembro. Durante o funeral foram prestadas as honras
do costume. Como o restabelecimento de Faulkner prosseguisse de modo satisfatório,
Norman decidiu regressar às caçadas. Em contraste com ele, tanto Arnold como Belleville não
puderam esconder o seu desespero e a sua vontade de abandonar a fatídica excursão. Sabiam
que a época chuvosa que se aproximava iria piorar a situação geral. Arnold foi de tal modo
317
insistente que Faulkner permitiu a sua partida para Quelimane e aproveitou-o para enviar
correspondência, incluindo a carta dirigida ao pai do falecido. Decorrido algum tempo,
Belleville escapuliu-se durante a noite. Foi trazido à força por um pelotão de caçadores
indígenas que Faulkner mandara em sua perseguição.
Durante as copiosas chuvas de janeiro, registou-se o aumento das febres e das
disenterias. Faulkner ficou de tal modo doente que, na mente de Norman, surgiu a suspeita de
que estava a ser envenenado por Chinsoro, o ex-intérprete, que tinha sido aproveitado como
serviçal doméstico. Norman pediu a Belleville que examinasse no microscópio certas
sementes que tinha encontrado no prato juntamente com o frango cozinhado. Nada lhe
pareceu de suspeito. Felizmente que Faulkner ouviu a tempo uma rumorosa concentração de
moradores em fúria que pretendiam atacá-lo. Conseguiu que fossem repelidos a tiro pelos
homens ao seu serviço que armou convenientemente. De manhã levaram Faulkner para o
barco e resolveram procurar outro poiso porque aquele já não oferecia segurança.
Constituíram um “conselho de guerra” para julgar Chinsoro. Foi considerado culpado e logo
fuzilado. Uma semana depois Donovan, um dos engenheiros, foi atacado pelo pior tipo de
malária que afeta o cérebro, falecendo logo no segundo dia. Foi sepultado na ilhota de Malo,
perto da confluência do Chire com o Ruo, lado a lado com o túmulo de Charles Mackenzie,
primeiro bispo da Missão das Universidades para a África Central, ali falecido em 1862,
alguns meses após a sua chegada.
O grupo navegou para montante, sob chuvas torrenciais. Para a embarcação vencer a
forte corrente foi necessário reforçar o vapor da caldeira e, por esse motivo, consumiram toda
a lenha de que dispunham. Era impossível encostar às margens encharcadas do rio e, em
qualquer caso, a mais próxima madeira aprestada encontrava-se a 50 km de distância. Não
tiveram outra alternativa senão desfazer em pedaços a grande canoa monóxila com doze
metros. Quando Perrin adoeceu, Morgan teve que o substituir, passando três dias difíceis no
pequeno abrigo do motor.
Conseguiram enfim algum sossego quando foram visitados por Chipitula, um dos
Macololos de Livingstone. Da mesma maneira que os outros vinte e cinco (6) prosperou neste
exílio e classificou-se a si próprio como poderoso chefe e guerreiro. Acompanhou a expedição
de Young e veio agora com o propósito exclusivo de visitar Faulkner que o descreveu como
“trabalhador mas grande malandro”. Contudo foi curta a sua estadia. Depois de alguns dias
queixou-se de que não era bem alimentado e que o grupo se movimentava com vagares que
pessoalmente considerava excessivos. Na verdade Norman descreveu os seus próprios
homens como “esqueletos ambulantes… Esgotaram-se os alimentos e nós próprios dispomos
apenas de chá, café, biscoitos, tabaco e algumas latas de sopa…”.
Passada uma semana, Chiputula regressou com duas das suas esposas que queriam ver
os homens brancos e, também como alguns alimentos. Pouco tempo depois apareceu Moloca,
um Macololo que tinha sido “fiel e valente companheiro de caça” na expedição de Young e
que agora proclamava ser o “chefe supremo de todas estas regiões” (7). Norman recebeu-o
calorosamente. Foi o único que o ajudou na tarefa difícil de rebocar o pequeno vapor rio a
cima. Também foi o único a quem Norman não poupava o grogue e os biscoitos que Faulkner
gostava de distribuir aos seus hóspedes. Futuramente, Moloca transformou-se no suporte
principal do grupo, confirmando assim a opinião que formara Young: “seu excelente e
talentoso caçador”.
Por fim, a 25 março, a caminhada vagarosa levou-os à povoação de Masaire onde, numa
feira bem abastecida, puderam comprar o que necessitavam. Foi também a ocasião que
Faulkner aproveitou para dar o seu primeiro passeio após a debilitante varíola de dezembro.
Ainda se encontrava com poucas forças como se constatou na sua seguinte caçada aos
elefantes. Faulkner e Norman decidiram marchar a montante da embarcação e estabelecer
318
uma base da povoação de Moloca. Aqui tomaram providências para que fossem construídas
habitações. Também compraram um pequeno rebanho de ovinos. Mandaram um mensageiro a
Belleville pedindo que trouxesse o vapor. Chegaram notícias da terceira fatalidade: Perrin –
mais afetado por disenterias do que com febres e que havia descurado os tratamentos – tinha
falecido após uma crise mais aguda. Belleville comunicou a Norman que “nessa noite a
âncora tinha ficado presa em areias profundas e que, ao tentar recuperá-la, ficara desfeito o
melhor cabo que possuíam. Estava ansioso que as nossas casas estivessem já concluídas
porque não conseguia dormir com os tambores e as danças que se prolongavam durante a
noite inteira”.
Em meados de maio Faulkner teve uma discussão final com o “egrégio Belleville”. Este
confessara ter rasgado páginas dos diários de Perrin e Donovan por conterem observações
negativas sobre a sua pessoa. Foi despedido depois de receber tecidos suficientes para
enfrentar as despesas da viagem até à costa. Faulkner e Norman passaram a ser os últimos
membros do inicial grupo de sete. Nada intimidados, e apesar das febres recorrentes, tentaram
abater e ferir variados animais apesar do capim alto. Quanto a elefantes apenas obtiveram uma
cria sem marfim.
Em junho pagaram e despediram os carregadores. Abandonaram os pertences que
tinham no vapor.
Para ajudarem os visitantes a obter marfim suficiente para cobrir, pelo menos, as
grandes despesas feitas durante mais de um ano, os Macololos decidiram organizar uma
caravana de duzentos caçadores e carregadores, munidos com armas de fogo (8). Abateram
grande número de animais. Só em julho conseguiram avistar uma manada de elefantes. Todos
os esforços falharam. Faulkner sentiu no tornozelo a ferroada infeciosa de um inseto. Auto
medicou-se golpeando o inchaço.
Seguiu-se um período de menor relevância porque os dois ingleses aguentaram
renovadas doenças, atracaram-se em rivalidades, redobraram os esforços para obter suficiente
marfim. Talvez saturado com esta situação, Moloca informou Norman que tinha decidido
atacar o seu inimigo Cabvina. Todavia este chefe e a sua gente conseguiram escapulir-se
atempadamente. Os guerreiros de Moloca incendiaram a povoação e destruíram as culturas.
Escondido no capim encontraram um homem de aspeto miserável. Decapitaram-no e
colocaram a cabeça num poste. Os quatro membros foram cortados e, servindo de
ornamentação, espetados em vasos com terra.
Mais tarde Norman desceu o vale do Chire com Moloca e conseguiu adquirir algum
marfim. Nada obtiveram de Chipatula porque só trocava o seu marfim por armas de fogo (9).
Quando regressaram à povoação de Moloca, depararam com Faulkner, bastante satisfeito com
as suas caçadas na região das cataratas. Declarou ter decidido deslocar-se até Quelimane com
o propósito de restabelecer o seu estado de saúde, não podendo saber se poderia regressar ao
Chire.
Norman resolveu continuar sozinho durante mais alguns meses alegando ser aquela a
mais favorável estação para caçar elefantes. Depois aceitou a sugestão de Moloco para, com
trinta carregadores, visitarem a terra dos Nhanjas que haviam sido dizimados pelos invasores
angonis (10). Muitos sobreviventes foram capturados pelos Ajauas (Yao) e vendidos como
escravos. Por toda a parte se encontravam restos de cadáveres.
Pela primeira vez Norman admitiu que, depois do jantar, gostava de fumar um
cachimbo de canabis (11) – hábito corrente entre os Macololos, como já tinha sido observado
por Livingstone na Barotselândia.
Nas páginas datadas de finais de novembro, Norman escreveu algo de inédito e de
inegável interesse histórico: Moloca também sofria de febres palustres e era medicado com
319
quinino porque os Macololos se tinham fixado no vale do Chire em época relativamente
recente, remontando a sua origem a uma região meridional, hoje conhecida por Lesotho, onde
a malária era inexistente (12).
Nos finais de novembro regressaram à povoação de Moloca. Havia ali uma carta de
Faulkner dando notícias sobre a sua viagem a Quelimane. Norman pagou aos carregadores e,
à despedida, ofereceu ao seu fiel e valoroso protetor uma das armas que usava para abater
elefantes.
Precisava de canoas para o regresso porque o pequeno vapor havia sido enviado ao
coronel Azevedo, ao sabor da corrente e com tripulação indígena. Mas aproximava-se da
região onde os Macololos tinham maior influência. Era difícil comprar canoas. Tinha mau
carácter o recém-empossado chefe Mlauri, que havia sucedido a Ramacucane (13). Tentou
enganar Norman numa transação de marfim. Só conseguiu recuperar o que lhe pertencia
quando desafiou o trapaceiro para um duelo à facada. Norman comentou que a sorte lhe fôra
favorável porque com certeza que Mlauri tinha planeado liquidá-lo. Caso estivesse na
companhia de Moloca não seria poupado, devido a quaisquer rivalidades endógenas. Os
homens de Mlauri amedrontaram-se porque Norman, além da carabina, exibia um revolver à
cintura. Sabiam que, se fosse obrigado a abrir fogo, alvejaria sem hesitações os mais
responsáveis.
Na ilhota de Malo, na confluência do Ruo com o Chire, viu-se cercado por centenas de
guerreiros armados e desconfiados. À cautela embarcou alegando que era esperado pelo chefe
Maintinga nesta povoação, onde Casement falecera, não deixou de visitar a sua sepultura.
Faulkner restituiu algumas canoas que facilitaram a viagem até Mazaro, residência do coronel
Azevedo. Norman chegou a 15 dezembro. À sua espera tinha uma caixa de brandy e o
pagamento do marfim que enviara seis meses antes. Foi recebido como hóspede de vulto.
Recorda-se que logo deparou com os sobreviventes exaustos e esfomeados de uma expedição
militar portuguesa, composta sobretudo por goeses, que acabara de ser destroçada pelos
rebeldes de Massangano. Muitos tinham falecido com diarreias e disenterias (14). Quando
Norman se preparava para partir com cinco canoas, foi intercetado por um dos oficiais
portugueses que requisitou “para serviço do governo” três das suas canoas. Ao constatar que
se tratava de um goês logo lhe ocorreu a maneira eficaz de o neutralizar. Saiu da canoa e
protestou em grandes brados na língua hindustânica!
Atingiu Quelimane na tarde de 23 dezembro. Encontrou-se com Faulkner já
parcialmente restabelecido. Apesar das febres recorrentes, procurou passear, descansar,
divertir-se, vender o seu marfim, celebrar os 29 anos de idade. Regressou ao porto para
embarcar a 7 fevereiro no navio “Piccadilly”, com destino a Port Elisabeth. Pouco se sabe da
sua carreira. Em 1871 foi nomeado capitão da milícia Donegal. Casou-se em 1874. Foi
promovido a major em 1883. Seu sobrinho, o coronel Dudley Norman, recorda que quando
em 1917 ainda frequentava a Academia Militar de Sandhurst, costumava visitar seu tio, em
Ascot. Era ainda um homem cheio de vigor apesar de fumar cem cigarros por dia.
Quanto a Faulkner sabe-se que jamais deixou a África. Há provas de que, cerca de um
ano após o seu regresso ao interior, foi assassinado pelos indígenas da já citada ilhota de
Malo. Em 1897, o cônsul Harry Johnston relembrou que o dito Faulkner tinha deixado um
filho gerado a uma nativa. Garantiu ter sido o primeiro mestiço nascido na Niassalândia.
Belleville regressou à África como irmão laico de uma instituição missionária. Teve
contactos com a
Royal Geographical Society. Vivia em Durban, na África do Sul, em 1877.
Moloca, esse “desportista completo” parece ter optado por comportamentos despóticos.
Cerca de 1875 foi abatido pelo seu inimigo Cabvina.
320
Notas
1) Não foi possível identificar este coronel Maria de Azevedo que desempenhava funções oficiais no Mazaro.
Quando Vasco da Gama penetrou no rio dos Bons Finais, o canal de Quáqua permitia a ligação direta com o
Zambeze.
2) Alexandre Lobato na sua “evocação para a história de L. Marques” (1961) fornece pormenores sobre as
atividades do comandante Owen e da sua esquadra no canal de Moçambique.
3) Esta incursão tributária deve ter ocorrido durante o reinado de Muzila. Sabe-se que seguiam a rota de
Cheringoma os guerreiros de Gaza que cobravam tributos na Chupanga e no delta do Zambeze.
4) Esta enorme aringa fortificada de Chamo, defendida por armas de fogo, foi construída pela família fundada
pelo goês, Mariano Vaz dos Anjos. Foi conquistada por Manuel António de Sousa, em 1885.
5) Este comentário ignora a verdade histórica. Os Macololos serviram como remadores e carregadores de
Livingstone durante a sua viagem até Tete. Ficaram aqui retidos porque a reconquista de toda a
Barotselândia efetuada por Leuanica levou à inclemente eliminação de todos os vencidos do sexo masculino.
Foi o próprio governador de Tete que sugeriu aos desamparados, mas armados, serviçais de Livingstone que
procurassem abrigo, caça e terras de cultivo no Vale do Chire.
6) Este cálculo dos sobreviventes de origem macololo fixados no Chire deve de ser aceite com reserva porque o
autor do diário não estava em condições de efetuar censos da população.
7) Esta afirmação pode ser usada para reforçar as hipóteses que põem em dúvida a ascendência de Cassice-
Ramacucane como “chefe supremo dos Macololos do Vale do Chire”. Talvez o direito consuetudinário
mandasse respeitar, em condições normais, a hierarquia observada na caravana em viagem. Sabemos que
Cassice desempenhou o cargo de sub-chefe dessa caravana.
8) Esta atitude coletiva dos Macololos era prova suficiente de que aceitavam a supremacia britânica.
9) A decisão de Chipatula de só aceitar armas de fogo em troca do seu marfim, explica o facto dos Macololos
se encontrarem tão bem armados quando ocorreram os combates que relatámos.
10) Este morticínio dos Nhanjas parece ter sido praticado pelos chamados Angonis-Massecos. Os primeiros,
para evitar que os invasores atravessassem o rio Chire, tinham construído uma linha de aringas fortificadas
nos locais onde se passava a vau. Vencida – parece que por astúcia – a resistência de uma dessas aringas, os
guerreiros angonis saquearam o vasto território onde hoje se situa Zomba, Limbe, Blantyre e Milanje. Só
retiraram a pedido insistente dos missionários escoceses.
11) Este antiquíssimo estupefaciente era oriundo da Pérsia ou da Índia onde se designava por nome semelhante.
Espalhou-se rapidamente por toda a África, com geral agrado e plena aceitação social.
12) É preciosa esta informação inédita porque, explica com coerência, o facto de ter diminuído substancialmente
o número inicial de Macololos que atingiu Tete, número que a documentação oficial portuguesa fixa em
cento e dez. Recorde-se que Moloca sobreviveu à malária porque foi medicado com quinino.
13) Parece enigmático o facto de Norman não mencionar Ramacucane. A documentação oficial portuguesa fixa
o seu falecimento em 1887/8. Hanna, de pp. 66 a 70, fornece pormenores sobre a sua existência e
intervenção, quando se tornou necessário eliminar o seu criminoso neto Chicusse.
14) Confirma o que se sabe sobre mais outra vitória do famigerado Bonga, de Massangano.
321
10ª
NOTA SOLTA
Homenagem a Manuel Simões Alberto
Preâmbulo
1º
ENSAIO INÉDITO
Influência dos árabes iemenitas e omanitas. Civilização Suahili.
Mulunguanas e Muzungos. Mutapas e Changamires. O reino de
Butua-Tórua e o seu direto sucessor: o Estado Rozui
A Civilização Suahili
Creio ser chegada a ocasião oportuna para acentuar os proveitos meramente pessoais
que, durante largos anos, acumularam os sucessivos e sedentários feitores de Sofala,
utilizando para isso a atividade ambulante dos incansáveis “mulunguanas” que comerciavam
com os povos do interior. Sem fazer quaisquer comentários, porque seriam descabidos, irei
transcrever pormenores da descoberta de um caso bem concreto de peculato descarado e
institucionalizado, tão semelhante a outros existentes na administração portuguesa. Devem-se
esses pormenores ao grande historiador que foi Alexandre Lobato. Encontram-se desgarrados
em outro dos seus escritos sobre diferente temática (15): “… mas no fim tive a consolação
suprema de ter descoberto dados reais, concretos, sobre o fabuloso lucro do comércio de
Sofala e Moçambique. Descobri, na verdade, um segredo que o próprio D. João III ignorava, e
desconheciam também o seu Vedor Geral da Índia, e o seu Feitor da Casa da Índia. Um
segredo que me leva a dizer que era mentira que o negócio de Sofala e Moçambique desse o
prejuízo de que todos falavam. Foi também um problema policial “Os capitães vêm
carregados de ouro e eu só tenho despesas”, dizia o rei. Mas se era assim, porque não largava
Sofala, e porque era tanta a gente que lhe pedia ofícios para lá? Havia de existir uma razão. E
existia de facto. Era puramente uma questão de contabilidade, um simples problema de
técnica financeira: creditavam-se as despesas reais ao preço de venda das mercadorias que
ficavam de oito a dezassete vezes mais baratas. Ninguém ainda tinha visto isto, que é questão
340
basilar na história de Moçambique, mas foi preciso gastar muitos meses para o descobrir.
Ficam assim compreendidas toda a economia e toda a administração de uma época da história
moçambicana. E fui eu que as compreendi porque fiz a sua análise em mais de mil
documentos da Torre do Tombo, metade dos quais, inéditos, foram laboriosamente copiados à
mão, meses a fio”.
Mais uma vez Alexandre Lobato tem razão. Existe considerável documentação que
denuncia toda a espécie de artifícios a que recorriam os representantes reais para enriquecer o
mais rapidamente possível. Os procedimentos eram de tal modo gritantes e escandalosos que
historiadores como Malyn Newitt (16) inicia a sua conhecida história de Moçambique com
um prólogo em que escrutina o conteúdo de um documento escrito ao rei por João Velho,
feitor de Sofala. Tinha tomado posse do cargo em 1542. Dois anos depois, ocorreu a chegada
do novo capitão, D. Jorge Teles de Menezes, acompanhado pela sua comitiva. Os
procedimentos criminosos a que este fidalgo recorreu para conseguir em curto prazo acumular
fortuna, merecem ser marcados pelo ferrete da ignomína, merecem a proclamação
condenatória de todos aqueles que ainda conservam o respeito pelos valores morais.
Ainda sobre a impunidade e o descaramento dessa cleptocracia também merece louvor a
meticulosidade com que o Dr. Rui Miguel da Costa Pinto (17) estudou um documento inédito,
subscrito pelo jesuíta António Barros, entre 1643/6. Este sacerdote foi enviado a Moçambique
pelo vice-rei da Índia, para tratar do pagamento de 33 mil cruzados que eram devidos pelo
contrato dos “Rios de Cuama”: “Da devassa tirada ao feitor de então, António Moniz da
Fonseca, descobriu-se que este e o capitão da fortaleza furtaram 15 mil e tantos cruzados do
pagamento de 176 soldados inexistente. Apesar de nas suas despesas se encontrarem escritos
300 moios de cal a quatro cruzados e meio o moio, a serem utilizados nas obras de
fortificação da fortaleza, a verdade é que esta despesa nunca se efetuou. O feitor acabou por
ser preso em Goa, onde viria a falecer. Os feitores também recebiam os direitos dos pangaios
carregados de mantimentos, 10 cruzados dos mestres das embarcações que vinham da Índia e
os foros das casas da Ilha de Moçambique, sem serem lançados em receita”.
Outro estudioso da expansão ultramarina que teve a coragem de revelar estes latrocínios
foi o saudoso Prof. Luís Albuquerque (18). Na entrevista publicada em 1988 não hesita em
afirmar: “O que os nobres normalmente faziam era o seguinte: obtinham os direitos, da parte
do governador, para fazer viagens comerciais, e depois vendiam esses direitos, porque não
eram capazes de negociar diretamente. O que o nobre de meados do Séc. XVI fazia era,
normalmente, obter as licenças e, depois, vendê-las. O que fazia também era contrabando,
isso fazia… e ganhava muito dinheiro com isso. É uma aristocracia aburguesada, quer dizer,
uma aristocracia que pretende fazer da sua atuação na Índia uma atuação para enriquecer,
porque é uma aristocracia de segundo plano, uma nobreza baixa, de filhos segundos. Repare:
a coisa chegou ao ponto ignominioso de um nobre português escrever ao governador da Índia
a dizer-lhe mais ou menos isto: vai aí o meu filho, peço-lhe que venha de lá muito rico, que a
riqueza é muito mais importante que a fidalguia…”.
Um pouco à margem da conjuntura criticada por estes três historiadores, acrescentarei, a
título de louvor, o facto dos dois últimos terem dado o devido valor à paleografia. O primeiro
incluiu uma nota explicativa contendo as regras utilizadas na transcrição paleográfica do
documento escrito por António Barros. O segundo confessa: “Eu estudei Paleografia, sou de
origem Matemática mas dediquei-me à História, portanto levei isso a sério, estudei
Paleografia a sério. Eu leio qualquer documento, o que não tenho, talvez, é critérios
concordantes com todos…”.
***
341
Quanto à produção aurífera, Alexandre Lobato – baseado mais uma vez em
documentação portuguesa – conseguiu descobrir registos impressionantes (19) e que convém
relembrar porque, ao que se afigura, ainda não mereceram a atenção dos historiadores nem
mesmo do próprio E. A. Alpers (20). Lobato consultou mas não pode copiar os registos
aduaneiros de Goa e Diu. Considerou-os fundamentais para melhor se conhecer o destino que
se dava ao ouro de Moçambique. Encontrou elementos seguros sobre as suas entradas legais,
ano por ano, barco por barco e até mercador por mercador.
Em termos genéricos, o destino do ouro era bem conhecido: a totalidade da costa de
Cambaia e de Guzarate onde, juntamente com marfim, servia para adquirir os tecidos
exportados para Moçambique. Graças a esse ouro moçambicano, Diu veio a transformar-se
numa espécie de Casa da Moeda, exclusiva propriedade dos Jesuítas. Tinham a sua Missão na
cidade e a sua fundição na fortaleza. Davam apoio financeiro às restantes missões
pertencentes à Ordem, incluindo as da Etiópia. Recebiam o metal dos mercadores para efeitos
de cunhagem. Estes usavam as moedas para adquirir no interior quer tecidos acabados quer
fibras de algodão para tecelagem local. Sempre tiveram elas aceitação geral porque os
missionários aprenderam a preservar a sua altíssima qualidade. Acresce que jamais havia
circulação excessiva, simplesmente porque o ouro amoedado era usado na fabricação de joias
e outros ornamentos, tanto masculinos como femininos, segundo os costumes de cada casta,
profissão e estatuto social.
***
Os comerciantes de Guzarate, aproveitando o imenso Golfo de Cambaia, cedo
conseguiram estender a sua atividade desde a Arábia até Malaca, passando pela África
Oriental e até mesmo pelas ilhas do Índico. Tinham já criado um sistema flexível, mas
eficiente e disciplinado, de capitalismo mercantil. Este facto é tanto mais surpreendente
quanto é certo que, graças à documentação portuguesa, é possível inferir que os rígidos
preceitos religiosos do hinduísmo condicionavam quer a vida privada quer a atividade
profissional dos chamados “baneanes” (21). Uma dessas limitações deveria compreender a
proibição de executar tarefas como as relativas à pilotagem, ao carregamento e à defesa dos
barcos que eram da sua propriedade e de que tanto necessitava para transportar as
mercadorias. Felizmente que, na execução de tais tarefas, podiam admitir ao seu serviço
conterrâneos que, desgostosos com a intolerância das instituições bramânicas ou impelidos
por quaisquer outras razões, se haviam convertido ao islamismo.
Tentarei agora resumir os principais factos históricos que, a partir de 1700, culminaram
na decisão de expulsar os muzungos do todo o planalto aurífero. As repercussões dessa
expulsão prolongaram-se por quase dois séculos e podem considerar-se fundamentais para
melhor compreensão das indignadas manifestações patrióticas que, como será relatado
oportunamente, eclodiram em Portugal contra o célebre ultimatum britânico de 1890.
A autoridade dos monarcas – a seguir designados por Mutapas – foi mantida até 1629,
data em que um deles, denominado Mavura, celebrou um importante tratado com a Coroa
Portuguesa após ter solicitado e recebido auxílio militar para conseguir vencer a sangrenta
guerra de sucessão que, durante três anos, travou com seu meio-irmão Caparidze. Entre as
largas concessões feitas pelo vencedor está a supressão das humilhantes e consagradas
cerimónias de receção que até então obrigavam os dignitários e peticionários portugueses a ir
rastejando até aos pés dos Mutapas, desarmados, descalços, de cabeça descoberta, com os
olhos bem fixos no chão. O historiador afro-rodesiano S. I. Mudenge, representou este
cerimonial na capa da sua notável história política sobre o período decorrido entre 1400 e
1902 (22). Pois Mavura concedeu aos comerciantes e missionários plena liberdade de
circulação. Passaram a ser recebidos com os seus chapéus, as suas botas altas e o seu cinturão
342
armado e, ainda melhor, foram não só autorizados a sentar-se em cadeiras mas também
dispensados das formais saudações com palmas.
Interrompo a sequência cronológica e – para melhor compreensão de tão confusas
realidades históricas – regresso à década iniciada em 1640 e ao distante reino de Butua-Tórua,
nunca visitado pelos muzungos mas que sabiam existir numa longínqua região ocidental,
bastante fértil e saudável, rica em ouro e gado bovino, com pastos e chuvas suficientes.
Aconteceu ter ali eclodido uma guerra civil, ao que parece causada por rivalidades entre o
monarca e o seu irmão sénior que se encontrava ligado, por matrimónio, a um importante
mulunguana. Sabe-se que, durante o conflito, foram massacrados muitos súbditos
islamizados. O certo é que, após a sua deposição, em 1644, o monarca vencido buscou refúgio
em Manica e decidiu solicitar auxílio ao capitão de Sena e dos Rios de Cuama, o famoso
Sisnando Dias Bayão, cognominado “Mossuampassa”, que ganhara grande prestígio com a
pacificação dos povos da Morrumbala (23). A célebre expedição que este sertanejo veio a
organizar, com os seus próprios meios, é felizmente conhecida pela carta que, antes de partir,
escreveu em Sena no dia 22 julho 1644, carta que foi descoberta e estudada por C. R. Boxer
(24). Pelo seu conteúdo – e até pela caligrafia e pela assinatura final – se pode concluir que se
tratava de um terratenente com excecional integridade e capacidade. O próprio Boxer não lhe
poupou elogios: “O português que a maior distância penetrou no sertão da África Oriental,
antes da viagem do Dr. F. J. de Lacerda e Almeida”. E mais adiante: “um verdadeiro
conquistador e descobridor, do género Paulo Dias de Novais, em Angola; do jesuíta Bento de
Góis no Tibet, ou dos bandeirantes, seus contemporâneos, nos sertões do Brasil”.
Naturalmente que era visto com inveja e rancor por muitos muzungos. Com premonição
refere na carta “… e a inveja desses poucos que toda descarga com ânimo de tirar-me a
vida…”.
O certo é que conseguiu efetivamente reinvestir o legítimo monarca de Butua-Tórua, e
que lhe deixou, como proteção, uma pequena guarnição aquartelada em aringa fortificada. No
trajeto, aproveitou a oportunidade para se deter por algum tempo no reino de Teve onde
também reinvestiu o rei Peranha que veio a declarar vassalagem à Coroa Portuguesa. Foi este
rei que lhe concedeu, em recompensa, o enorme Prazo Cheringoma cuja história mereceu a
atenção de M. Newitt (25). Além disso, Peranha comprometeu-se a autorizar a livre
circulação dos muzungos.
A triste verdade é que acabaram por vencer os inimigos de S. D. Bayão. Assassinaram-
no, parece que por envenenamento, na feira do Luanze. Foi logo mandada retirar a guarnição
de Butua-Tórua. Por seu lado, o rei Peranha também reagiu como lhe competia, voltando a
expulsar os muzungos das suas terras.
A vitoriosa expedição de S. D. Bayão teve consideráveis repercussões. Um dos mais
poderosos dignitários da corte dos Mutapas, conhecido por Changamire Dombo, ponderou
atentamente as grandes riquezas e vantagens. Pouco depois, tomou a decisão de seguir o
exemplo de S. D. Bayão. Após uma conquista tão fácil como rápida, ali se dedicou com
empenho à fundação de um novo e verdadeiro Estado, denominado Rózuí, com capital em
Danangombe ou Dhlo-Dhlo. Mandou erguer amuralhados também de pedra solta mas bem
mais modestos dos que haviam sido anteriormente construídos em Khami, pelos vencidos
monarcas de Butua-Tórua. A existência deste Estado é autenticada, em simultâneo, pela
arqueologia, pelas tradições orais e pela documentação portuguesa.
Entretanto, o comportamento dos mais importantes muzungos dispersos por todo o
planalto evoluiu para formas cada vez mais violentas e gananciosas. D. Luís de Menezes,
Conde da Ericeira, descreveu-os assim (26): “Os primeiros moradores tinham repugnância em
viver dentro de lugares fechados, para não terem governos, nem Justiças, que atalhassem as
suas frequentes atrocidades. Foi a causa principal dos inimigos se fizessem senhores dos
343
Reinos de Manica, Mocaranga e Báruè, onde tínhamos muitas vilas povoadas de tantos e tão
poderosos moradores em terras, escravos e outros cabedais que cada um se supunha capaz de
ele só castigar os rebeldes que naquele tempo se nos opunham. Desta orgulhosa vaidade se
originou a ruína daquela conquista, porque a pouca subordinação e a pouca seriedade dos seus
habitadores (i.e. moradores) efeitos da inveja que nas possessões ultramarinas é ainda mais
insaciável que nestas, fizeram armar uns contra outros e que reciprocamente se destruíssem e
lembrassem aos seus bárbaros vizinhos o aproveitar-se da desunião que viam nos ânimos e
nas forças dos Portugueses que já então sem remédio começaram a conhecer a falta que lhes
faziam as muralhas dentro das quais não coubera antes a sua desordenada petulância. Estes
poucos que ficaram vivos se viram obrigados a abandonar tudo quanto possuíam no sertão e a
numerosa cafraria de que eram senhores, que fazia a sua mais sólida riqueza e era a força
daqueles homens avaros e facinorosos desertou toda e os descendentes dela são hoje os que
fazem a Vossa Majestade a guerra mais importante, unindo-se com os régulos pertencentes ao
trono de Monomutapa”.
A hostilidade de Changamire contra este tipo de muzungos iniciou-se décadas depois,
em 1684, quando o capitão-geral Caetano de Mello e Castro, decidiu organizar em Manica
uma expedição punitiva contra os mulunguanas que, a noroeste, tinham colonizado Maunguè,
como se encontra confirmado em documentação portuguesa. Essa expedição governamental
sofreu humilhante derrota.
O Changamire Rózui parece não ter tido qualquer intervenção nesta contenda. Só em
1693 tomou a decisão de atacar os muzungos, acedendo à solicitação de auxílio formulada
pelo Mutapa Nhacunembire. Logo de início mandou massacrar os habitantes da feira de
Dambarare. Perdeu algum tempo a intervir em outra das disputas de sucessão cronicamente
ocorridas entre os Mutapas. Pouco depois, em 1695, resolveu dar uma segunda lição aos
incorrigíveis “moradores”: mandou que fossem expulsos da feira de Manica. Os muzungos
compreenderam, por fim, que tinham como única solução o abandono do planalto e dos bens
que possuíam dentro e fora das seculares e numerosas feiras. Fixaram-se em definitivo nas
regiões próximas de Tete, Zumbo, Sena e Sofala, onde vieram a descobrir outros jazigos
auríferos.
Não merece dúvidas que, durante o Séc. XVIII, os Changamires souberam formar e
manter o mais poderoso estado africano ao sul do Zambeze. Recorreram a três métodos
básicos para consolidarem influência: concessão de terras, coleta de tributos e intervenção em
disputas de sucessão. A sua orgânica política, militar e económica tem sido objeto de estudos
profundos e sistemáticos, mormente efetuados por historiadores da antiga Rodésia do Sul,
estudos quase desconhecidos entre nós embora largamente baseados em documentação
portuguesa.
Em obra mais recente dediquei um capítulo à extensão para leste da influência Butua e
Rózui. Atingiram a região central de Moçambique, mais propriamente a que se estende desde
o rio Save até ao Pungué (27). Baseei-me de vestígios arqueológicos, tradições orais e
documentos portugueses. Impressionou-me sobremaneira o facto do reino de Butua, situado a
centenas de quilómetros, haver vendido grande número de bovinos à malograda expedição de
1572, chefiada por Francisco Barreto. Parte deles foram utilizados no reboque dos vinte e
cinco carroções que acompanharam a expedição ao longo da margem direita do Zambeze.
Foram descritos como enormes mas dóceis animais.
Devem-se aos historiadores Nicola Sutherland-Harris (28) e S. I. Gorerazvo Mudenge
(29) estudos sistemáticos e objetivos sobre esta temática. O primeiro designa o monarca pelo
seu epíteto laudatório: Mambo. Nega que o Estado tenha sido do tipo despótico. Defende
que, entre os súbditos, as causas da supremacia do Mambo tivessem sido mais de natureza
religiosa do que militar, porque se baseava em maior intimidade com os espíritos dos
344
antepassados-deuses e, sobretudo, em poderes mais latos e eficazes para o beneplácito da
chuva. O segundo é de opinião que o simples facto dos súbditos e vassalos poderem pagar
tributos sob a forma de ouro, marfim, tecidos e missangas, é suficiente para contrariar a
hipótese dos dirigentes políticos deterem o monopólio das transações comerciais.
Só os africanos indígenas podiam percorrer todas as regiões do Estado, na qualidade de
“mercadores volantes”, designados por va-sambadzi, termo aportuguesado para
“mussambases”. Muito antes da chegada lusíada também se tinha difundido por ali a
tecelagem do algodão. A documentação da época confirma o extremo valor concedido ao
gado bovino. Além da sua utilidade como alimento e forma de acumulação de riqueza, era
com frequência empregado no pagamento de compensações nupciais.
David Beach mostrou algum cepticismo sobre estas interpretações (30). Em seu
entender todos os ramos de produção e de comércio contribuíam para reforçar o poderio
militar rózui. Duvidou que, neste século, as comunidades políticas situadas a ocidente se
tivessem confederado com os Rózuis ou que conservassem com eles qualquer ligação com
objetivos bem definidos. Uma confirmação avulsa da autonomia local surgiu em 1780 quando
o monarca reinante se viu na contingência de enviar uma força armada para proteger a
construção pelos portugueses do novo forte de Manica.
Em outro dos seus trabalhos, o mesmo autor referindo-se à região mais meridional da
zona planáltica defende que no Séc. XVIII, ela foi conquistada por diversas dinastias que na
maioria, se encontravam associadas pelo totem moyo. Embora não tivessem fundado qualquer
estado, reconheciam vagamente a supremacia da dinastia Mutema de Sanga. Contudo essa
região não era desabitada. As populações mais antigas foram submetidas e incorporadas com
os seus cultos e dialetos nas comunidades recém formadas. Estas não faziam parte do Estado
Changamire. Encontravam-se separadas pelo Alto Save e mais tarde pela confederação Duma,
fora do domínio exercido pelos Rozuis.
Vamos aqui referir apenas a política externa seguida pelos Changamires no que mais
diretamente interessa à história de Moçambique. Deram notável apoio à feira do Zumbo,
embora tivessem, com rigor, proíbido quaisquer muzungos de voltarem a penetrar no planalto.
Pode mesmo afirmar-se que essa feira se transformou no principal centro mercantil que ligava
o distante Estado ao mundo ultramarino. Sabe-se que em 1743 expediram uma força de uns
dois mil guerreiros em socorro da dita feira. Quando estes foram mandados regressar por,
entretanto, a ameaça se não ter concretizado, resolveram, por sua livre vontade, assaltar e
roubar uma caravana com quem se tinham cruzado. Pois o Changamire reinante mobilizou de
imediato uma segunda força com ordens rigorosas para que fossem duramente castigados
esses elementos indisciplinados. Em 1772 outra expedição rózui conseguiu salvar o Zumbo de
um ataque dos Mutapas. Em 1780/1 voltaram a socorrer os assustados moradores com um
exército de 3000 homens.
Para a historiografia da presença portuguesa na região a montante de Tete e, até mesmo,
da economia geral de Moçambique, há que reconhecer a grande importância dos goeses que
se estabeleceram na feira do Zumbo. Muitos pertenciam à Ordem dos Dominicanos. Medite-
se neste trecho da “notícia” datada de 1 dezembro 1773 e subscrita por António de Figueiredo
(31): “… na vila do Zumbo que só é habitada de naturais de Goa… se fazem as expedições
para a Abutua das carregações de fazendas e naquelas minas se comutam as roupas e velório
(missangas) por ouro que é em muita quantidade. O rei senhor delas é o Changamira, e é este
o terror daquele sertão. Foi em outro tempo sujeito ao Monomutapa. Não permite que ao seu
domínio passe Cristão, e por isso do centro do seu reino tudo se ignora…”.
Contudo o golpe final foi desferido em 1838 pelos Angunes de Mzilicazi, também
hostilizados pelo sanguinário Chaca-Zulo. Estabeleceram-se definitivamente na região,
fundando o Estado dito Matabele (Ndebele). No sistema de castas imposto pelos novos
345
conquistadores, os outrora tão temidos e poderosos rózuis foram relegados para a última de
entre elas, à qual cabiam os trabalhos quer mais duros quer mais humildes. Em homenagem
ao título supremo do seu antigo soberano denominavam-se a si próprios abantu ba ca
Mambo. Mas os membros das outras castas designavam-nos pejorativamente por holi. Não
comiam, não bebiam nem se sentavam em sua companhia.
Até à efetiva ocupação europeia, alguns grupos rózuis continuaram a dominar a região
conhecida por Duma, banhada pelo curso superior do rio Save, entre os Vandaus e os Manicas
(32). Era frequentemente citada por Ngungunhane, para melhor demarcar o território de Gaza.
346
Bibliografia
2º
ENSAIO INÉDITO
Uma Perspetiva Antropológica das Origens do Subdesenvolvimento
Africano
Univ. do Minho (Braga) 06/06/1984
Univ. Coimbra 18/04/1988
Como é sabido, a desagregação dos impérios coloniais em África deu origem a amplos
movimentos de reflexão e interpretação e, consequentemente, a uma avalanche esmagadora de
publicações das quais nos interessam em particular as subscritas por académicos ligados às
ciências humanas em geral e aos estudos africanos em especial.
Alguns desses académicos foram desenvolvendo, passo a passo, certas ideias ortodoxas,
de tendência nacionalista, que exaltavam a iniciativa e a participação dos africanos, ideias que
influenciaram por tempo significativo a investigação histórica e sociológica sobre o passado
das nações que foram emergindo. Chegaram a alcançar o prestígio de doutrinas bem
fundamentadas e, até, de resoluções coletivas como a tomada em 1965 no Congresso
Internacional de Historiadores Africanos (Dar-es-Salaam) segundo a qual “uma filosofia
africana da história que possa servir como uma libertação da experiência colonial deve
constituir preocupação vital de todos os historiadores da África” (1).
Uma escola filantrópica, de maior ou menor inspiração marxista, ignorando
completamente as rivalidades, os despotismos, as atrocidades, os genocídios e outras
peculiaridades endógenas, procurou apresentar as sociedades africanas como vítimas
indefesas da ganância imperialista e colonialista. Segundo essa escola, a conquista do
continente tinha sido fomentada pelas pressões internas exercidas por um capitalismo bem
amadurecido que exigia mercados protegidos, fontes seguras de matérias-primas e novas
oportunidades de investimento lucrativo oferecidas a indivíduos e instituições transbordantes
de iniciativas e de capitais. Mas, em boa verdade, a sorte das massas africanas não melhorara;
antes se agravara, porque os colonizadores mobilizaram a mão-de-obra nativa e exploraram as
riquezas naturais em seu proveito pessoal. Graças a essas atividades parasitárias, a Europa
conseguira alcançar um nível ímpar de prosperidade ao passo que a África se afundara numa
situação crónica de subdesenvolvimento (2).
Alguns plumitivos chegaram ao extremo de defender a existência de brilhantes
civilizações africanas inspiradas no Egito dinástico e, por conseguinte, fundadas
anteriormente às que floresceram na Grécia e na Itália. Devido ao prodigioso
desenvolvimento da tradição oral, os Africanos nunca teriam sentido a necessidade de
inventar qualquer forma de escrita. Aparentes regressões culturais teriam sido quer
exageradas por observadores vesgueados por preconceitos raciais quer devidas aos efeitos
calamitosos do tráfico escravista, das conquistas militares e, em suma, da exploração colonial
gananciosa (3).
Outros críticos do colonialismo tentaram contornar as duras realidades que dificultavam
a defesa dessas interpretações. Ardilosamente concentraram a sua atenção nos aspetos
puramente psicológicos: a marginalização ou degradação dos valores espirituais das culturas
africanas; os traumatismos que a cruel situação colonial provocara nas emoções e nas
mentalidades; as devastações anímicas causadas pelas segregações raciais praticadas pelas
privilegiadas minorias de colonos europeus e asiáticos (4). Embora sejamos, por inclinação
pessoal, mais sensíveis a este género de críticas, não deixamos de reconhecer que elas se
348
baseavam em fatores bastante subjetivos, imponderáveis e também demasiadamente dispersos
no tempo e no espaço para que pudessem ser objeto de investigações sistemáticas. Acresce
que qualquer estudante do passado sabe que bem piores discriminações oprimiam os povos do
continente africano, muito antes dos europeus terem completado a ocupação militar e
administrativa.
Em nossa opinião, estas e outras abordagens encontram-se enredadas em problemas de
difícil solução, afetadas como se encontram por noções apriorísticas, interpretações
distorcidas, ideologias políticas e afetividades emocionais. Não é para admirar que sejam
frequentemente acusadas de precário rigor científico. Não falta quem chegue ao ponto de
afirmar que elas em nada contribuíram para aperfeiçoar o nível da historiografia africana.
Para evitar tais obstáculos, há que deixar bem esclarecido que a perspetiva aqui
defendida reconhece, acima de tudo, a inevitabilidade da modernização, do progresso material
e da participação no mundo exterior, com a condição de mobilizar, seletiva e criteriosamente,
os superiores conhecimentos da civilização da técnica e da ciência aplicada.
As modernas pesquisas e datações arqueológicas vieram demonstrar que, através dos
milénios, as sociedades africanas sofreram múltiplas e graves privações. Pode, sem exagero,
afirmar-se que, na generalidade do continente, foram praticamente comuns aos inúmeros
grupos étnicos e linguísticos que o povoavam. Na costa oriental, os precoces contactos
mantidos com os Asiáticos desde os meados do primeiro milénio, pouco ou nada contribuíram
para a modernização tecnológica. Apenas conseguiram melhorar significativamente a situação
alimentar mercê da introdução de valiosas plantas. O mesmo aconteceu no resto do continente
quando se iniciaram os contactos com os Europeus e se adotaram as numerosas plantas
nutritivas oriundas do Novo Mundo.
Infelizmente, esses navegadores e comerciantes eram dominados pela preocupação de
obterem rápidos e compensadores proventos dos investimentos materiais e humanos exigidos
por essas longínquas e demoradas expedições que os tinham levado a atravessar os oceanos
em frágeis embarcações, ameaçados por constantes e temíveis perigos e destituições. Não
admira que, até à ocupação efetiva, não tivesse qualquer expressão o número de africanos que
puderam ascender a mais elevados níveis.
Na região onde hoje se situa Moçambique, abateu-se sobre as populações indígenas, na
segunda metade do Séc. XVIII e na primeira metade do Séc. XIX, o flagelo do tráfico de
escravos que transportou – sucessivamente para as ilhas do Índico e para as explorações
mineiras e açucareiras do Brasil – largas centenas de milhares de escravos. No Séc. XIX,
outra calamidade – esta de origem endógena – veio acumular-se aos malefícios da
escravatura: as grandes invasões dos Angunes que semearam a morte, a fome e a destruição
em largas regiões do sul, centro e leste da África.
Após a consolidação definitiva dos meios e dos agentes da potência colonizadora,
puderam ser controladas as antigas rivalidades étnicas e tribais. Pouco a pouco se organizou o
abate e a erradicação da imensa fauna bravia. Também se descobriram métodos e
medicamentos eficazes para eliminar as pragas e as doenças tropicais. Graças à dispersão das
novas plantas, a produção alimentar sofreu um aumento substancial. Depois de serem abertas
vias de comunicação, aproveitados os locais mais favoráveis ao sucesso das trocas comerciais,
construídas as primeiras infra-estruturas educativas e sanitárias, etc., etc., lentamente se
formou um tipo de sociedade que, por alguns sociólogos, foi classificada como “dualista”.
Por um lado, puderam expandir-se os elementos de uma civilização complexa, rica em
conhecimentos científicos, equipada com maquinismos e meios técnicos de produção e de
transporte, apta a empregar sistemas de organização administrativa e de exploração
económica em proveito próprio. Construíram centros urbanos com as respetivas ramificações,
349
implantaram uma economia monetária largamente baseada no comércio e nos investimentos
externos não só por o mercado interno ser anémico e a formação de capitais ser vagarosa, mas
também porque a satisfação dos gostos e das necessidades de consumo era excessivamente
dependente das importações. Embora constituíssem uma minoria numérica, dispunham de
enorme influência social e económica, detendo a quase totalidade das explorações agrárias,
das indústrias extrativas e transformadoras, das concentrações habitacionais e das atividades
relacionadas com a prestação de serviços. Exigiam-se qualificações profissionais de nível
mais ou menos elevado para se manter em funcionamento o setor moderno da economia e os
diversos serviços públicos e municipais.
Por outro lado, a grande massa rural continuou apegada aos valores tradicionais e
integrada nos seus grupos sociais e familiares. Os esforços de modernização depararam com a
passividade e até mesmo com a resistência dessas populações orientadas para a
autossuficiência e que só esporádica e superficialmente aproveitaram as possibilidades
oferecidas pelo contacto com os mercados e centros de trabalho e pelos investimentos em
infra-estruturas modernas. As características do meio tradicional não encorajavam a utilização
e manutenção dos conhecimentos exibidos pelos agentes colonizadores nem eram de molde a
desenvolver no seu âmago motivações sinceras e poderosas.
Com isto, não se pretende minimizar as culpas da potência colonizadora e dos seus
agentes por ser tão reduzida a proporção de africanos que, à data da independência, tinham
assimilado satisfatoriamente os conhecimentos da civilização da técnica e da ciência aplicada.
A posição do autor foi expressa com clareza em estudo assaz recente (5).
Terminamos esta introdução pedindo compreensão para o facto de irmos aqui tentar um
esforço de síntese baseado em observações diretas e em reflexões parcialmente colhidas em
escritos alheios. Porém, um conjunto de infelizes circunstâncias impediu a citação de tantos e
tão admiráveis autores que nos inspiraram e cujas ideias coincidiam com as nossas próprias:
em primeiro lugar, não ocorreu, na ocasião, a conveniência em elaborar a redentora ficha
bibliográfica; em segundo lugar, as circunstâncias que rodearam a patética descolização
portuguesa, levaram à desintegração de uma preciosa e saudosa biblioteca pessoal.
Dito isto, enumeraremos como se segue os obstáculos, predominantemente estruturais,
levantados pelo ambiente social e ecológico:
a) Adversidade do ambiente físico;
b) Primitivismo tecnológico;
c) Heterogeneidade étnica e linguística;
d) Dispersão do habitat;
e) Elevada taxa de natalidade;
f) Excessivas densidades rurais nas regiões mais favoráveis;
g) Casamento por lobolo – Exclusividade feminina na agricultura – A importância da
caça na afirmação masculina;
h) Estrutura familiar matricêntrica;
i) Solidariedade da família extensa;
j) Instrumentalização da mulher;
k) Crenças no sobrenatural: culto dos antepassados; magia; feitiçaria.
O tratamento, em variável profundidade, de cada um destes pontos levanta estimulantes
desafios a todos aqueles que ambicionam colaborar na formação de uma historiografia
africana merecedora de respeitabilidade científica e que remonte a sua penetração a épocas
que antecedem largamente a ocupação colonial efetiva.
350
Esperamos que este escrito não seja visto como indício da ambição de conquistar
notoriedade pessoal. O autor é apenas animado pelo sincero desejo de transmitir às gerações
mais novas as experiências colhidas em décadas de contacto com o rural africano que tanto
sente na sua carne e na sua mente os efeitos destrutivos da fome, da miséria, da doença e da
ignorância.
Primitivismo tecnológico
Dispersão do habitat
Já fizemos referência aos valores culturais que, na sua génese, tiveram a evidente
finalidade de maximizar a taxa de natalidade tão vital para a segurança, a sobrevivência e a
multiplicação da linhagem e da comunidade em ambientes físicos sobremodo hostis à espécie
humana. Também aludimos à natural correlação existente entre o crescimento demográfico e
as zonas mais favoráveis ao povoamento humano. Uma das consequências da introdução das
plantas úteis de origem asiática e americana foi o reforço dessa tendência e consequentes
migrações para as áreas onde as espécies exóticas encontraram melhores condições de
propagação.
O aumento da concentração humana e dos vegetais alimentares nas zonas mais
propícias, tornou excessivas as já elevadas densidades rurais existentes. A indicação de
simples densidades médias (tão em voga durante o período colonial) falseava grosseiramente
a realidade. Por exemplo, dentro de uma região tão limitada como o sul do Save, verificavam-
se desníveis enormes. Na faixa litoral, com pluviosidade mais regular e abundante, existiam
áreas onde a densidade ultrapassava os duzentos hab/km2 ; já no vasto interior árido esse
indicador médio nem sequer atingia um hab/km2.
360
Uma perceção correta das implicações resultantes das altas densidades rurais – perceção
indispensável à definição oportuna de uma política coerente de desenvolvimento rural – só
poderia ser alcançada por meio de estudos que visassem calcular a densidade ótima que cada
zona poderia suportar, tendo em atenção os recursos naturais e as rudimentares técnicas
agrárias correntemente empregadas. Por exemplo, na antiga Rodésia do Norte (atual Zâmbia)
os agrónomos calcularam que nas áreas de chitimene (derrubas seguidas de adubação por
simples cinzas da cobertura vegetal, tal como se praticava em Moçambique) essa densidade
ótima oscilava entre quatro a sete hab/km2. E note-se que essa “capacidade de carga”
(carrying capacity) – mesmo nos casos em que não era excedida – permitia apenas um
equilíbrio estático entre a população e o solo cultivado. Na maioria dos casos levantava
obstáculos ao aumento do nível de vida e mesmo à simples manutenção do nível existente
quando o crescimento populacional se acelerava. Tanto quanto sabemos, este conceito de
“capacidade de carga” nunca foi reconhecido pelos dirigentes da administração colonial em
Moçambique. Alguns especialistas sabiam haver largas zonas onde a pressão sobre os
recursos naturais aumentava até níveis alarmantes. Deixara de existir floresta para novas
derrubas. Eram por demais curtos os períodos de pousio que proporcionavam a restauração da
fertilidade dos solos. Aumentavam de modo assustador tanto a erosão como a oxidação dos
solos. Em suma diminuía de modo drástico a produtividade agrícola. Sabia-se que a cultura
obrigatória do algodão, no regime de concessões, viera acelerar em escala dramática este
processo de degradação. A redistribuição em bases firmes, racionais e eficientes, com respeito
pelo ambiente ecológico adequado aos padrões culturais de cada etnia, teria exigido não
apenas cuidadosos estudos preliminares, mas igualmente a mobilização de enormes recursos
humanos, técnicos, financeiros e administrativos, recursos cuja escassez crónica se torna
ocioso sublinhar.
Resumindo. Se, por um lado, beneficiavam das vantagens inerentes à integração na sua
família extensa, os africanos tinham, por outro lado, que suportar as obrigações que a ela se
encontravam ligadas. O pior é que o sistema tradicional de parentesco alargava
desmedidamente os deveres de solidariedade, quantas vezes em detrimento dos legítimos
interesses do próprio indivíduo e de seus filhos (ou sobrinhos no caso das sociedades
matricêntricas).
É de supor que, face à hostilidade do meio, os valores éticos hajam evoluído no sentido
de acentuarem mais as virtudes da cooperação do que as do progresso individual. Seja como
for, entendia-se que os bens e o trabalho deviam ser colocados à disposição de todos os
parentes, consanguíneos ou por aliança, vivos ou falecidos, fosse a linhagem de tipo
patrilinear ou matrilinear. Tinham eles direito à hospitalidade, a oferendas, à prestação de
363
trabalho em reciprocidade, ao auxílio em roupas e alimentos, a convites para festividades e
celebrações, etc. Não existindo técnicas para armazenagem alimentar por períodos longos, é
natural que o sistema de valores passasse a considerar a generosidade como a mais admirável
das virtudes e que os abastados vissem na sua observância uma fonte pujante de satisfação
pessoal e prestígio social e, não raro, um meio para ascender ao poder. O dirigente da
patrilinhagem, tal como o guardião da matrilinhagem, tinha o dever moral de velar pelos seus
tutelados e tuteladas em todas e quaisquer circunstâncias: no nascimento e na morte, no
casamento e no divórcio, nos êxitos e nos fracassos, na miséria e na abundância. Era também
responsável pelas suas dívidas. O gado bovino era considerado como propriedade comunal do
grupo de irmãos varões, embora fosse gerido pelo primogénito e herdeiro.
Como acentuou o político acima citado, este comportamento levantou, no período
colonial, um dos maiores obstáculos à acumulação de capital, fator indispensável ao
desenvolvimento económico. Uma das razões por que tantos varões preferiam o trabalho
assalariado à agricultura de rendimento, baseava-se no anseio de escapar a essa rede de
obrigações de parentesco que os constrangiam a despender, sem demora, em proveito dela,
todo o numerário e todos os excedentes de produção que conseguissem acumular. Até mesmo
quando ausentes do país, em cumprimento de contratos de trabalho nas minas sul-africanas, a
maioria não esquecia as suas largas responsabilidades. Apesar de possuírem de modo gratuito
alojamento, alimentação e assistência médica, gastavam no estrangeiro, em média, quatro
quintos do total dos salários recebidos. Estes gastos eram, em grande parte, efetuados na
aquisição de vestuário e outras oferendas para satisfatória distribuição ao resto da familia.
Situação similar foi verificada pelo autor, na década de 1960, entre os pequenos
comerciantes já fixados definitivamente nos subúrbios da capital. Ao contrário do que se
verificava entre os numerosos europeus, asiáticos e mistos – possuidores de casas comerciais,
as conhecidas “cantinas” – a maioria dos seus congéneres africanos parecia estagnada em
níveis rebaixados, parecendo incapazes de acumular receitas líquidas que lhes permitissem
aumentar o montante dos seus negócios e de outras modalidades lucrativas. Desperdiçavam os
ganhos quotidianos em dádivas e despesas de consumo, para satisfação de esmagadoras
obrigações para com a família extensa e outros elementos parasitários. Um dos raros
cantineiros africanos justificou como se segue o facto de nem sequer concretizar o “rancho”
para consumo mensal, tão comum entre as famílias não africanas. Se cometesse esse erro, os
parentes e afins de todos os graus, ao saberem que ele havia adquirido alimentos em
quantidades superiores às normais, logo surgiam em visitas assíduas e inesperadas, à hora das
refeições, na mira de poderem comer gratuitamente (25).
Instrumentalização da mulher
Crenças no sobrenatural
A magia
Empregamos aqui o termo “magia” para designar essas forças ocultas impessoais, bem
distintas daquelas puramente personalizadas que atrás referimos. Eram caracterizadas pela sua
amoralidade e falta de relação com o parentesco, pela sua manipulação mecânica e a ausência
de volição própria, pela possibilidade da sua mobilização nas ocasiões mais oportunas e
segundo a maneira mais conveniente. Pelas práticas mágicas procuravam-se dominar forças
que transcendiam as faculdades normais do ser humano e as vias ordinárias da Natureza.
Sendo a magia uma réplica a situações de perigo e incerteza, oferecia métodos operacionais
para enfrentar fenómenos que se julgavam refratários a qualquer outra forma de domínio. A
magia, que demonstrou notáveis faculdades de adaptação às condições modernas, conseguia
manter o seu prestígio e dar ânimo em situações próprias da civilização da técnica e da ciência
aplicada. A insegurança outrora provocada pela excecional hostilidade do ambiente físico, foi,
nos modernos centros urbanos e de trabalho, sucedida pela insegurança do meio social e
profissional, nomeadamente no que concerne a obtenção e manutenção do emprego
assalariado e as rivalidades entre os que exerciam atividades por conta própria.
O recrudescimento das práticas mágicas durante a época colonial também encontrava
explicação no facto de não serem toleradas pelas autoridades europeias as antigas sanções
legais e morais aplicadas pelos tribunais tribais contra o suposto uso da magia dita negra,
destinada a prejudicar rivais e inimigos. Em tal contexto, outra solução não restava à pretensa
vítima senão recorrer a contra-magias de redobrada potência. De qualquer modo, o facto do
indivíduo acreditar na eficácia da fórmula mágica, dos amuletos agressivos e dos talismãs
defensivos, reduzia o seu espírito de competição e a sua vontade efetiva.
A feitiçaria
O termo “feitiçaria” é aqui empregado para designar esse poder maligno e sobrenatural
que a generalidade dos indígenas acreditava ser monopolizado por determinados indivíduos,
poder que lhes permitia consumar desforras, satisfazer instintos, alcançar benefícios à custa
alheia, etc. Eram vistas com repulsa generalizada as imaginadas atividades desses sujeitos
antissociais, conhecidos por designações pejorativas como maloi, mfiti, etc. A sua força
malfazeja poderia ser ou congénita ou obtida por formação especial. Em certos casos, o
odioso feiticeiro ignoraria os seus próprios poderes, visto ser a parte psíquica que,
abandonando o corpo, atuaria durante o sono. Outras vezes agiria com deliberação, por
telepatia e a distância, recorrendo tanto a animais daninhos como a pessoas sob estado
hipnótico. Esta estranha crença (em tempos antigos difundida por quase toda a Humanidade)
fazia viver muitos africanos em crónico estado de ansiedade. Na verdade era-lhes impossível
saber quando e em que circunstâncias podiam ser vitimados tanto pela temida acusação de
serem feiticeiros (só possível de neutralizar pela ingestão sem efeitos do muavi, o ordálio
venenoso) como pelas vinganças praticadas por inimigos detentores de poderes de feitiçaria.
366
Distinguiu-se nesta interpretação M. G. Marwick, sociólogo que estudou a psicologia da etnia
Cheua (27). Outros antropólogos têm interpretado a frequência de tais suspeitas como indício
de relações sociais e familiares extremamente nocivas. Por mim defendo a hipótese de que
serviam de suporte aos valores tradicionais e às estruturas sócio-económicas que, no decurso
da existência comunitária, foram aceitando a necessidade de reduzir os fatores de
diferenciação que minavam a solidariedade interna do grupo clânico ou tribal. Essa
solidariedade era essencial para se vencer quer o perigoso ambiente físico quer as
omnipresentes rivalidades.
Este ancestral e imprescindível fortalecimento da solidariedade interna do grupo, por
meio da oportuna redução das causas de desnível e de desigualdade, sobreviveu às condições
modernas. A eficiência e a fortuna continuaram a ser atribuídas, pela mediocridade
despeitada, não logicamente à superior capacidade do talentoso bem sucedido, mas antes ao
poder secreto e intolerável que ele possuiria para, com recurso a nefandos sortilégios, furtar e
mobilizar os bens e os esforços alheios em seu proveito pessoal. Entre outros, merece
destaque o estudo sistemático e científico efetuado por J. L. Brain sobre os obstáculos que, no
continente africano, essas inveteradas crenças na feitiçaria levantaram contra os modernos
objetivos em matéria de desenvolvimento sustentado (28).
Abunda a documentação, quer de autores portugueses quer de exploradores estrangeiros
que contém referências testemunhais aos efeitos adversos de tão entranhadas crenças. Por
exemplo, Fr. Bartolomeu dos Mártires escrevendo em 1822 dedica algumas páginas do seu
famoso relatório às consequências maléficas que, entre a etnia Ajaua (Yao), provocavam as
permanentes suspeitas de feitiçaria (29). Um pouco mais tarde, em 1831, A. C. Pedroso
Gamitto, com a minúcia de investigador congénito e poliglota, aproveita as observações feitas
durante a famosa expedição ao Muata Cazembe, para tecer considerações muito válidas sobre
o fenómeno (30). Mais tarde quando expôs as suas opiniões definitivas sobre a escravatura na
África Oriental, fez explicita referência ao papel que nela desempenharam as acusações de
feitiçaria (31). A. J. Hanna (32) cita o testemunho concreto dos missionários escoceses que
procuravam estabelecer-se nas margens do lago Niassa. Quando em 1878 visitaram Chicusse,
chefe supremo dos Angonis-Massecos, constataram como se encontrava aterrorizado com o
poder maligno da feitiçaria, recorrendo para sua defesa pessoal ao uso intensivo do muavi.
Seis das suas mulheres tinham sido submetidas ao ordálio acabando duas delas por falecer.
Em frente dos visitantes perpassou uma longa coluna com cerca de duzentos homens que,
coletivamente, iam ser sujeitos à referida prova. Em 1886 quando faleceu aquele chefe
supremo – além de o acompanharem no túmulo seis das suas esposas – os regentes que lhe
sucederam tomaram a decisão de julgar cerca de trinta suspeitos. R. C. F. Maugham (33)
escrevendo, nos finais do Séc. XIX, sobre o norte de Moçambique, também aponta as
consequências negativas do uso intensivo do ordálio. Naturalmente que a crença não se
limitava a Moçambique. Por exemplo António Carreira (34), historiando a evolução
populacional de Angola desde do Séc. XVI apontou, como causas remotas da estagnação
demográfica, não só o recurso constante ao ordálio como também o sacrifício, à nascença,
quer de gémeos quer de albinos.
Pela sua excecional minúcia, merecem destaque os relatos testemunhais subscritos pelo
sacerdote Francisco João Pinto (35). Após o trágico falecimento do Dr. F. J. de Lacerda e
Almeida, passou a comandar a famosa expedição oficial ao Muata Cazembe, organizada em
Tete. A sua permanência na corte daquele poderoso e longínquo potentado africano
prolongou-se de 6 novembro 1798 até 24 julho do ano seguinte, o que lhe facilitou o
entendimento da língua, a partir do Chi-Sena que dominava com perfeição. Com tendência
nata para a investigação, procedeu ao escrutínio minucioso e comparativo dos usos e costume
locais. Redigiu preciosas informações não apenas sobre o culto dos antepassados mas também
367
sobre as profundas convicções no poder curativo da magia, e, por fim, sobre as tenebrosas
acusações de feitiçaria. Quanto à ancestrolatria relata (p. 154):
“Têm muita veneração pelos seus azimos, defuntos, aos quais consultam
em todos os sucessos de suas terras e felicidades. Os cafres que são empregados
em serviço das casas em que foi sepultado algum rei têm muitos privilégios.
Estas sepulturas são feitas em casas, que se chamam massazas. Estes azimos
fazem oferecer coisas de comer, como massas, comer feito de farinha da
mandioca, onde entra a farinha, que nos sertões da América chamam angu,
quirice, qualquer iguaria de carne, peixe ou ervas, e pombe, bebidas de milho,
como tenho dito. O que o oráculo lhes diz têm como coisas de grande
veneração”.
“De tal sorte foi crescendo a enfermidade de Cazembe que a sua melhora
já causava desconfiança… Os seus médicos não se fartavam de sacrificar
quantas vítimas humanas podiam imolar às suas fantasias e à sua teoria política.
Saíam pela manhã, ao meio-dia e pelas dez horas da noite tocando seus
tamborinhos pelos caminhos e todos aqueles que eles apontavam logo eram
tomados como feiticeiros e sem remissão mortos; quantos cafres não morreram
nesta ocasião!” (p.143).
“Fui ao Cazembe com os enviados e mais muzungos. Logo fomos
introduzidos onde ele estava dando audiência aos seus grandes e povo e aí
tivemos de esperar até que acabasse aquela audiência, que me disseram ser de
admoestação que o rei fazia a todos os seus vassalos, para abominarem e
abandonarem o crime de feitiçaria, dando a entender que a sua enfermidade
havia sido originada de semelhante causa” (p.147).
Sobre estas e outras arreigadas superstições, existem relatos testemunhais ainda mais
antigos e impressionantes como o datado de 5 dezembro 1562, subscrito pelo missionário
jesuíta André Fernandes (36) cuja leitura atenta se recomenda. O autor viveu mais de dois
anos na corte do reino de Gamba, reino bem visível no mapa cartográfico nº 4, da obra sobre
o sul de Moçambique (37).
368
Lamento não ter conhecido oportunamente este precioso documento que aliás se
encontra reproduzido quer na coletânea de nove volumes, editada por G. M. Theal, na Cidade
do Cabo, entre 1898-1903 (38), quer na seleção publicada em Lisboa, no ano de 1892, por A.
P. de Paiva e Pona (39). Há perfeita coincidência entre os dois textos.
Aceitação social dos excessos com bebidas alcoólicas e com a Canabis Sativa
“Faz suas assembleias com os seus grandes, que convida para beber
pombe, bebida fermentada feita de milho miúdo e também de outros legumes,
com mistura dele ou sem mistura, segundo o gosto de cada um. Estas
assembleias começam pelo tempo da lua cheia e duram até ao fim dela. O
espaço que duram são duas horas e mais e começam pela uma hora da tarde, ou
mais cedo. Os assistentes têm liberdade de beberem quanto quiserem. Porém é
preciso conservar o que beberem, porque, se sucede lançar fora dentro da
assembleia, logo aquele miserável a quem isto suceder é punido com morte.”
“Às vezes têm festa de beber que dura três, quatro dias sem comerem;
o seu vinho é de frutas do mato e de toda a maneira de mantimento que
comem fazem que bebem a que são muito afeiçoados e bebe um deles tanto
como três alemães”.
Relativamente aos tempos mais modernos foi impressionante o que aconteceu entre a
etnia chope logo após a acupação efetiva. A tradicional atividade de fermentação e destilação
de bebidas degenerou num alcoolismo inveterado que, aliado à gripe pneumónica e a outros
fatores, provocou autentica hecatombe demográfica, remediada pelas autoridades portuguesas
com a destruição dos alambiques e a proibição do plantio da cana sacarina. Foi igualmente
proibida a venda de tubos, lucrativo negócio dos asiáticos. Em sua substituição os Chopes
recorreram a canos de velhas espingardas (40).
Merece ser salientado o minucioso estudo do Dr. Atouguia Pimenta (41) sobre o
fabrico, por fermentação e destilação, de bebidas alcoólicas entre as populações indígenas de
Moçambique. Relativamente à canabis há conhecimentos seguros sobre o seu consumo
imoderado. Apresentam-se apenas dois exemplos.
Chicambo, historiador dos Angonis do clã Maseco e informador de M. Read (42) refere-
se que, antes de se lançarem ao assalto, os guerreiros se sentavam para fumar e aspirar a
“canabis” a qual, segundo afirma, os “enlouquecia e lhes dava corações destemidos para
369
enfrentar o inimigo”. Também T. M. Thomas (43) que viveu onze anos entre os Ndebeles
tendo conhecido pessoalmente Mzilikazi e Lubengula, escreveu textualmente:
Azevedo Coutinho (44) foi outro sertanejo que observou as consequências malignas do
consumo da canabis:
Bibliografia
3º
ENSAIO INÉDITO
História monetária,
por
Alexandre Lobato
***
4º
ENSAIO INÉDITO
Trabalho Compelido no Moçambique Colonial
Trabalho compelido em geral
Prémios de
Trabalhadores Trabalhadores
Salários pagos e a pagar engajamento
requisitados fornecidos
(recebidos e a receber)
Agric. Indust. Agric. Indust. Libras Escudos Libras Escudos
165.319 43.812 160.668 43.565 £ 2.375 15.221.594 $ £ 74 543.473 $
Pelo mesmo “Anuário” (p. 82) se verifica que as atividades agrícolas pagaram
22.901.671 jornas, cabendo às províncias da Zambézia e de Nampula, nada menos do que
12.407.733 e 5.638.820.
Embora haja bastante literatura sobre este período, não a iremos citar aqui porque se
impõe encurtar o texto e a bibliografia. Lembremo-nos apenas que vigorava um regime
político liberal que não levantava restrições ao direito de expressão. Bastará transcrever este
resumo de Francisco Toscano, relativo ao sul do Save, baseado na sua vasta experiência como
administrador (2):
Quanto ao vasto território sob governação direta da mais importante das majestáticas, a
situação era aí bem semelhante, apesar de Sampayo e Mello haver tecido rasgados elogios
baseado no advento de milhares de imigrantes provenientes dos Prazos da Coroa concedidos à
nortenha Companhia da Zambézia. Diz textualmente: “Esta emigração para os territórios da
Companhia de Moçambique é um dos mais brilhantes resultados da habilíssima política
indígena e superior tato administrativo do antigo chefe da circunscrição de Sena e hoje
governador da Companhia, capitão-tenente Pinto Bastos” (3).
Dispomos, felizmente, de uma contribuição recente e objetiva de B. Neil-Tomlinson
que permite fundamentar opiniões de maior ceticismo (4). Depois de haver conseguido, em
princípios do século, impor a sua soberania por via militar, a Companhia iniciou, por
processos compulsivos, o recrutamento direto de serviçais, tanto para os seus próprios
departamentos, como para satisfazer a procura por parte das empresas privadas. Em 1910 já
tinha forçado a trabalhar, durante três meses em cada ano, cerca de 70.000 assalariados. Os
métodos compulsivos e disciplinares, acrescidos aos castigos corporais, às deficiências de
alimentação, aos salários ínfimos, haviam conduzido a fugas e migrações em massa.
Fracassou a agência de recrutamento fundada com a finalidade específica de solucionar o
problema do fornecimento regular de mão-de-obra. Centenas de empregadores organizaram
na Beira uma manifestação de protesto e ameaçaram atacar a residência do governador. A
Repartição do Trabalho Indígena, fundada pelo novo governador Pery de Lind, passou a
centralizar e a coordenar a distribuição dos indígenas recrutados pelas autoridades
administrativas. Foi facilitado o crédito aos agricultores para compra de equipamento que
reduzisse a procura de mão-de-obra. Em simultâneo foram restringidas as atividades
económicas diretamente exercidas pela majestática. Entre 1911 e 1917 a média anual de
assalariados rondou pelos 80.000, em parte engajados em Tete e na Zambézia. Em 1915
iniciou a cultura de algodão por um sistema de concessões semelhante ao que, mais tarde, foi
adotado pelo Estado, no resto de Moçambique. Segundo Terence Ranger, as sequelas da
revolta do Barué em 1917 teriam provocado, no território da Companhia, uma redução
populacional de cerca de 20% (5). Continuando as necessidades de mão-de-obra a crescer,
Pery de Lind decidiu aumentar o período de trabalho que era obrigatório prestar em cada ano.
Seguiram-se formas de resistência que levaram a estender o recrutamento ao norte do
Zambeze. Em 1928 empregavam-se em Manica e Sofala cerca de 138.000 assalariados
africanos, metade da qual eram provenientes de regiões sob administração direta do Estado. O
número médio de dias de trabalho por ano, prestado por cada “indígena”, aumentou para 110.
No que concerne às atuais Províncias de Tete e da Zambézia, há a relembrar que a
comissão real mandatada em novembro 1888 para estudar o futuro dos antigos Prazos da
Coroa, terminou por se pronunciar a favor da regeneração e adaptação às condições modernas
dessa instituição obsoleta que dera origem a “verdadeiros déspotas semi-independentes” cuja
história fora “um encadear contínuo de barbaridades” como havia de resumir Mouzinho de
Albuquerque (6).
As recomendações dessa comissão originaram o Decreto de 18 novembro 1890 (B. O.
nº. 52), que veio a ser regulamentado e aplicado durante o segundo semestre de 1892. Os
antigos Prazos mantiveram os seus limites e, em arrematações públicas, foram arrendados por
períodos de 25 anos. O arrendatário cobraria o imposto de capitação (mussoco) de 800 réis
anuais, sendo metade sob a forma de trabalho, calculado de 200 a 400 réis por semana,
respetivamente para menores e adultos.
380
Como era de esperar, continuaram as brutalidades e as perseguições. Uma pseudo
Inspeção de Prazos primou pela ineficiência e até mesmo pela inexistência. Assim, tanto
indivíduos como empresas puderam arrendar, com prerrogativas de soberania, enormes
extensões de terras densamente povoadas. Devido à crise político-financeira e, também, ao
desinteresse, à inépcia e à crónica desconfiança dos capitalistas portugueses, essas cobiçadas
prerrogativas vieram a ser adquiridas por grandes companhias dominadas por capitais
estrangeiros. Um dos seus representantes locais, tão experiente como esclarecido, não teve
dúvidas, nas suas memórias, em classificar tal regime como feudal (7). Seja como for, essas
companhias investiram cerca de seis milhões de libras esterlinas (8) em explorações agrícolas
dispersas pelas férteis planícies aluviais do delta, plantando e cultivando coqueiros, cana
sacarina, sisal, arroz, algodão, tabaco, etc. Distinguiram-se a Companhia do Boror, a Société
du Madal e o empresário britânico J. P. Hornung, fundador da futura Sena Sugar Estates que,
em 1912, administrava, policiava, cobrava impostos, monopolizava o comércio e controlava a
mão-de-obra em mais de 36.000 Km2 da superfície total de Moçambique.
Quanto aos Prazos sitos fora do delta do Zambeze, acabaram na sua maioria, por cair na
posse do especulador britânico Albert Ochs que, no remate final de obscuras maquinações,
deu origem à Companhia da Zambézia. Esta, em 1892, obteve o arrendamento de 126 dos 134
Prazos de Tete, declarando-se vocacionada para a exploração mineira. Recorreu como outros,
a processos de compulsão que provocaram um êxodo da população indígena tanto para os
países vizinhos como para o território da Companhia de Moçambique. Não vamos aqui repetir
o que tantos observadores deram a conhecer em tempo oportuno, mas apenas transcrever
excertos retirados do inédito Relatório da Inspeção a África feita por Portugal Durão em 1923
encontrado, como tantos outros, durante a microfilmagem, que, entre 1986 e 1988, efetuámos
para o Arquivo Histórico de Moçambique, do vasto acervo documental da sede da Companhia
da Zambézia em Lisboa, logo depois destruído, na sua totalidade, por ordem da administração
moçambicana (9).
“De quanto deixo dito vê-se que depois de sete anos de ausência não vim
encontrar nenhuma melhoria na questão da mão-de-obra. Vejo menor eficiência
individual largamente justificada pela insignificância do salário, enorme
desperdício de braços, incompletíssimo aproveitamento da mão-de-obra
existente; e isto a sete anos dos contratos de arrendamento de Prazos, que estou
convencido não serão renovados; ou se o forem, de pouco valor serão… Esta
situação obriga-me a meditar profundamente. A verdade é que o europeu aqui,
nesta questão da mão-de-obra confiou mais na palmatória do que na cabeça. O
preto, desde as manadas de 3.000 a fornecer ao semestre à Sena Sugar até às
mais pequenas manadas a fornecer aos arrendatários, pequenos agricultores e
“tutti quanti”, é tratado como gado, alimentado para que produza, e depois
381
pago, no fim do mês com o suficiente para comprar um lenço… No Massingire
não há (a proclamada organização de ensacas) o que há, é que no fim de dois
meses os inhacuáuas (chefes) têm de mandar render um certo número de
indígenas. Se o não fizerem ficam presos eles ou as suas mulheres semanas e
meses, às vezes esquecidos, sendo além disso por meio de palmatória
convencidos da vantagem dos métodos do homem civilizado. É claro que a isto
se dá também, o nome de “manter a disciplina” nos Prazos. Em matéria de
disciplina encontrei por cá verdadeiras feras… Eu confesso que não percebo
bem como nós dominamos ainda esta população espancada e espoliada e que
tenho sérias preocupações com respeito ao futuro… Depois notemos que,
excetuando o território da Companhia de Moçambique, a única parte (da
Colónia) que produz é a Zambézia; e é da Zambézia que os estadistas da Ponta
Vermelha pensam tirar os rendimentos para alimentar as batotas (i.e. casinos) e
automóveis de L. Marques, e que no fundo não será apenas o acionista das
empresas coloniais que terá de pagar os luxos de um funcionalismo excessivo e
improdutivo, mas será também o indígena.”
***
***
***
A Carta Orgânica também criou uma inspeção ao trabalho dos indígenas, diretamente
dependente do Ministério das Colónias e concedeu aos respetivos governadores competência
em matéria de lançamento e cobrança de taxas a pagar pelos “indígenas”.
Aos leitores que estiverem especialmente interessados nas conceções, minudências e
subtilezas jurídicas do gigantesco Código do Trabalho dos Indígenas, recomendamos a leitura
da obra do Prof. Silva Cunha (14) que depois veio a desempenhar as funções de Subsecretário
de Estado da Administração Ultramarina (1962-1965) e, mais tarde, as de ministro do
Ultramar (1965-1973).
O Código era unicamente aplicado aos trabalhadores africanos (sujeitos passivos) que
possuíssem o estatuto jurídico de “indígena” tal como havia sido definido pela legislação
precedente. Quanto aos empregadores (sujeitos ativos) deveriam ser “não-indígenas” para
ficarem sob a competente alçada. As definições dos tipos de contrato baseados no Código
Civil Português não tinham qualquer relevância até mesmo porque, entre os deveres do
trabalhador, figurava o de “obediência às ordens do patrão” e, por conseguinte, este podia
empregá-lo em qualquer atividade (motorista, operador de máquinas, servente de escritório,
carregador). Na verdade ficava limitado ao papel de “assalariado para todo o serviço”.
Entre as atribuições das autoridades administrativas, atuando como agentes do curador-
geral dos Negócios Indígenas, as seguintes sobressaíam pela sua importância:
a) Celebrar os contratos com intervenção da autoridade e aprovar os contratos sem
intervenção da autoridade;
b) Praticar os atos necessários para fazer executar e cumprir todas as disposições
protetoras dos trabalhadores contratados e para levar estes ao cumprimento das obrigações
tomadas;
c) Julgar e punir, em processo sumário, todas as faltas cometidas em contravenção do
código.
Consagrava-se o dever do Estado garantir aos indígenas o pleno exercício da liberdade
do trabalho da sua preferência. Fora da sua residência habitual as mulheres só podiam
contratar-se quando fossem acompanhadas do marido, pai, tios ou irmãos maiores. Os
menores entre os 14 e os 18 anos necessitavam de autorização do pai, da mãe ou de tutor.
Entre os deveres impostos aos patrões (deveres que os defensores do sistema
consideravam como plenamente demonstrativos das generosas intenções tutelares do Estado)
contava-se o fornecimento gratuito de transporte, alojamento, alimentação e assistência
médica. E também o pagamento do salário acordado e proibições de diversa ordem: efetuar
descontos e adiantar abonos, despedir sem justa causa, obrigar à compra de quaisquer artigos,
fabricar e distribuir bebidas alcoólicas.
Em nosso entender tiveram maior importância – porque facilitaram as práticas de
coerção e exploração durante mais de trinta anos – os seguintes deveres gerais impostos aos
trabalhadores:
a) Obedecer às ordens do patrão em tudo o que estivesse de harmonia com a codificação
(que como é obvio desconheciam);
385
b) Desempenhar as suas tarefas com zelo e pela melhor forma compatível com as suas
forças e aptidões;
c) Indemnizar o patrão das perdas e danos que de propósito causassem, sujeitando-se
aos descontos que fossem autorizados pelas autoridades;
d) Solicitar prévia autorização patronal para poderem abandonar o serviço.
Dentro da Colónia o limite máximo de duração do contrato foi fixado em dois anos,
podendo, no entanto, este período ser diminuído pelo governador.
Antes de mencionarmos as modalidades de contrato, convém precisar que um
documento indispensável ao eficiente funcionamento do sistema era a “caderneta de
identificação”, embora Silva Cunha se limite a referir o assunto em breve nota de pé-de-
página. E era, na verdade, fundamental porque o contrato era nela registado e servia de base
às futuras ações de fiscalização.
Os chamados “contratos com intervenção da autoridade” – sempre escritos – eram
obrigatórios:
a) Quando o serviço fosse prestado fora da área administrativa da residência do
trabalhador;
b) Quando a admissão do contratado tivesse exigido prévias operações de recrutamento.
Este compromisso tinha, em princípio, carácter rigorosamente individual, exceto quando o
trabalhador fosse acompanhado pela família. Segundo Silva Cunha, esse vínculo contratual
individual revelava a preocupação pela observância do princípio da liberdade do trabalho
(15).
Os “contratos sem intervenção da autoridade” definiam-se por exclusão, isto é,
reservavam-se para os vínculos de trabalho não compreendidos nos casos anteriores. Podiam
ser escritos ou verbais. Não libertavam os trabalhadores, as autoridades e as entidades
patronais das obrigações já enumeradas. Quanto ao recrutamento, a legislação procurou
prevenir quaisquer abusos, atribuindo às autoridades competência para vigiar e fiscalizar e,
ainda, obrigando os recrutadores a munir-se previamente de licenças para poderem operar.
Estes ficaram proibidos de:
a) Transportar os recrutados para fora da área administrativa da sua residência, sem
prévia apresentação às autoridades competentes;
b) Insinuar que representavam a autoridade ou agiam por ordem desta ou de qualquer
organismo oficial;
c) Usar uniformes ou distintivos que os confundissem com as autoridades civis ou
militares;
d) Recorrer a fraudes, ameaças e violências para obrigar os indígenas a contratarem os
seus serviços.
As autoridades administrativas ficaram em absoluto proíbidas de recrutar trabalhadores
indígenas para o serviço de particulares, quer diretamente, quer por intermédio de quaisquer
agentes de autoridade seus subordinados. Silva Cunha, em simples nota ao fundo da página
(16), menciona uma disposição de alguma importância (Art. 129 do Código) que permitia aos
governadores de colónia, em casos urgentes como a época de colheitas, autorizarem a
determinados patrões o recrutamento de trabalhadores nas áreas administrativas
circunvizinhas. Esses empregadores ficavam dispensados da obrigatoriedade de celebrar o
“contrato com intervenção da autoridade”, mas não poderiam reter essa mão-de-obra
extraordinária por mais de três meses.
Entre 1930 e 1942 pode dizer-se que, em matéria de compulsão, se assistiu a uma
proliferação de práticas arbitrárias e multifacetadas, de harmonia com a personalidade de cada
386
autoridade administrativa, desde os governadores aos chefes de posto. Reportando-se a esta
época, escreveu o próprio diretor dos Serviços de Agricultura (17):
Convém notar, no entanto, que esta época foi marcada pela grande depressão económica
mundial e, mais tarde, pela II Grande Guerra. Estes calamitosos acontecimentos reduziram
substancialmente a procura internacional de matérias-primas moçambicanas quer pela falta de
compradores interessados, quer pela dificuldade de transportes.
No território administrado pela Companhia de Moçambique também ocorreram
modificações na política laboral. Foi criada a Direção dos Negócios Indígenas e uma nova
agência de recrutamento. Adotou-se igualmente a “caderneta de identificação” para registo
dos períodos de assalariamento, fixados num mínimo de seis meses por ano para cada homem
válido, sob pena de condenação a “trabalhos correcionais” com 40% do salário normal. Estas
e outras medidas dissuasoras da “ociosidade” levaram os indígenas a procurarem, por si
próprios, empregos por conta alheia. Embora B. Neil-Tomlinson, na obra já citada, não
mencione o fenómeno, veremos que dezenas de milhar de homens preferiram atravessar
clandestinamente a fronteira e oferecer os seus serviços a empregadores rodesianos e sul-
africanos. Entretanto a grande depressão económica também atingiu o território. Em 1932
apenas 63.000 trabalhadores se assalariaram. Os esforços feitos pelos cultivadores africanos
para aumentarem os seus rendimentos monetários, foram de modo deliberado, obstruídos pela
fundação da Junta do Comércio do Milho e pela proibição de compra do cereal nativo,
proibição que visava fomentar e proteger a produção de tipo empresarial, sobretudo em
Chimoio e Manica.
Entretanto, Salazar refinava as suas conceções em matéria de política ultramarina. Em
meados de 1936, na sessão inaugural da Conferência Económica do Império Colonial
Português, depois de citar alarmantes estatísticas sobre a explosão demográfica e a escassez
de terras aráveis que afligia o país, expressou essas conceções da seguinte maneira (18):
Por coincidência, logo no ano seguinte surgiu, sob a forma algo sub-reptícia de
legislação secundária, um Alvará da Repartição Central dos Negócios Indígenas (B. O.
20/1937-II série) que, nas presentes perspetivas, se afigura ter sido o primeiro golpe contra o
idílico princípio da rigorosa individualidade do vínculo contratual, princípio que, como
dissemos, Silva Cunha considera básico em toda a conceção do Código de 1928. Com efeito,
387
à generalidade dos empregadores e das autoridades administrativas convinha que, em cada
contrato, fosse incluído o maior número possível de trabalhadores. E convinha porque toda a
atividade profissional dos primeiros e dos segundos – e até mesmo dos recrutadores – ficaria
gravemente prejudicada se, de cada vez que fosse necessário contratar um trabalhador,
tivessem que interromper prementes deveres profissionais para cumprirem as complexas
formalidades burocráticas determinadas pelos regulamentos. Outras vantagens havia a
ponderar como seja a de conseguir imediatamente dos recrutadores e empregadores
adiantamentos para liquidação dos impostos em dívida. Assim, o governador-geral, baseado
na competência que lhe dava o § 2º. do Art. 113 do Regulamento do Trabalho dos Indígenas,
autorizou a celebração de contratos coletivos, quando respeitassem a iguais períodos e
condições e ao mesmo tipo de serviço e de entidade patronal. Esse despacho que autorizou,
pela primeira vez, a celebração de contratos coletivos, foi assinado pelo governador-geral,
interino, J. Nunes de Oliveira que, durante longos anos, como advogado e vogal do Conselho
Legislativo, representou e defendeu os mais destacados setores da atividade económica. As
suas conceções encontram-se resumidas numa conferência que pronunciou na Escola Superior
Colonial (19):
Esta corrente veio a ser reforçada durante a II Grande Guerra devido à necessidade
urgente do império, como um todo, se tornar autossuficiente em matérias-primas. Não é de
surpreender que o próprio ministro das Colónias, F. Vieira Machado, durante a longa visita
que efetuou ao Ultramar de 6/6/1942 a 5/1/1943, tenha expressado em L. Marques as
seguintes opiniões num discurso público (20):
Nos precisos termos desta histórica circular, que representou uma viragem completa na
atitude das autoridades face à problemática laboral, apenas ficavam isentos da obrigação de se
contratarem, como assalariados, pelo menos seis meses em cada ano, os indígenas válidos dos
18 aos 55 anos que:
a) Provassem exercer, por conta própria ou alheia, qualquer atividade profissional
permanente, incluindo a agricultura de rendimento;
b) Tivessem cumprido um contrato legal no estrangeiro, ficando o descanso limitado a
seis meses após o regresso;
c) Fossem criadores com mais de cem cabeças de gado bovino;
d) Tivessem prestado o serviço militar, ficando o descanso limitado a um ano após a
passagem à reserva.
O controlo destas situações deveria ser efetuado pelas autoridades administrativas,
utilizando livros de registo, lançamentos nos cadernos de recenseamento ou averbamentos nas
cadernetas de identificação. Os indígenas considerados vadios seriam enviados, pelos seus
chefes tradicionais, para as sedes das administrações e dos postos. Enquanto aqui estivessem
concentrados poderiam ser contactados por recrutadores e, em consequência, contratarem
formalmente os seus serviços com as entidades privadas da sua preferência. Os indígenas
destinados aos serviços públicos seriam ali mandados apresentar com indicação do salário e
do número de dias de serviço a prestar.
Muito honestamente, o governador-geral reconhece:
“Os efeitos desta circular foram imediatos e de tal forma se fizeram sentir
que, quando em julho 1943, visitei as províncias da Zambézia e do Niassa,
nenhuma queixa ou pedido me foram apresentados sobre mão-de-obra e antes
agradecimentos recebi, pelas medidas tomadas. O ambiente era completamente
diferente do que observara no Niassa em 1941 e na Zambézia em 1942, mas
manda a verdade dizer que para ele não contribuiu só a circular mas,
389
principalmente, a perfeita integração na sua doutrina dos novos governadores
daquelas províncias.”
***
Não teve consequências visíveis a revogação dos artigos do Código referentes às penas
a aplicar “por quebra de contrato” (Dec. 43.039, B. O. 29/1960). Lembremos que podiam ser
393
punidos com “trabalho correcional” até um ano os que não cumprissem os seus deveres,
perturbassem a disciplina, desobedecessem às autoridades, faltassem sem justificação,
comparecessem em estado de embriaguez, praticassem furtos ou danos, recusassem a
prestação das tarefas marcadas. Cifrava-se em tantos milhares o número dessas infrações que
era impossível dispor de tempo e de meios para organizar os complexos processos de carácter
judicial. Assim sendo, primava o recurso aos métodos mais rápidos e eficientes de castigos de
diversos tipos.
Nestes termos, pode considerar-se correta, na generalidade, a análise que Marvin Harris
elaborou sobre as consequências da aplicação da circular nº 566/D-7 (25). No entanto
parecem pertinentes alguns esclarecimentos:
a) As intenções que levaram à publicação do Estatuto do Agricultor Indígena (D. L. 919,
B. O. 32/1944) não tiveram quaisquer resultados práticos, por razões complexas a
definir algures; ao contrário do que imaginou Marvin Harris, a simples posse de
charruas não isentava o indígena da prestação dos seis meses de trabalho assalariado;
recorde-se que a introdução da charrua pelos trabalhadores migratórios regressados da
África do Sul, remonta aos princípios do Séc. XX; em 1970 existiam, nas três
províncias meridionais, cerca de cem mil desses instrumentos que trouxeram
transformações tão profundas na vida agrária;
b) As culturas de rendimento eram realizadas, com carácter obrigatório, apenas dentro
das concessões monopolistas de zonas algodoeiras e das concessões orizícolas feitas a
empresas privadas;
c) A pressão sobre os recursos de mão-de-obra era obviamente maior nas regiões onde o
setor moderno explorava mais intensamente atividades agrárias e onde os varões
ativos manifestavam decidida preferência pelo emprego quer nos centros urbanos (L.
Marques e Beira) quer nos países vizinhos (África do Sul e Rodésia);
d) O Estado dava péssimos exemplos quando usava e abusava de trabalho compelido e
dos “contratos com intervenção da autoridade”. Recorriam a ele, sobretudo, as
câmaras municipais das maiores cidades e ambos os Serviços de Obras Públicas e dos
Portos e Caminhos-de-Ferro. Aparentemente incapazes de planificar com cuidado as
suas necessidades laborais, conseguiam que os governadores dessem ordens
telegráficas aos administradores para procederem a recrutamentos urgentes. As Obras
Públicas, por norma afetadas por falta de verbas, apresentavam as piores condições em
matéria de alojamento, alimentação e transporte. Apenas as atividades portuárias
pagavam horas extraordinárias. As restantes limitavam-se aos salários mínimos
fixados para indígenas. Podem aplicar-se a Moçambique as seguintes críticas
formuladas por Henrique Galvão em relação a Angola (26):
Notas bibliográficas:
Contribuição braçal
Esta prestação obrigatória de trabalho paga pelos munícipes (prestação que em Portugal
remontava a tempos medievais) tinha, em teoria, carácter eminentemente cívico e reservava-
se a benefícios de interesse local e comunitário. Durante a governação de Mouzinho de
Albuquerque foi designada por “trabalho do rei” e fixada em quinze dias por ano.
Tornada extensiva ao Ultramar pelo Artº 617 da Reforma Administrativa Ultramarina,
apenas em 1942 foi regulamentada em Moçambique (Port. nº 4.963). No ano seguinte foi
esclarecido que deveria considerar-se distinta dos serviços a prestar às autoridades gentílicas
pelos respetivos súbditos, serviços previstos no Artº 102 da mesma R. A. U.
Embora o facto pareça ser ignorado, mesmo pelos maiores críticos da colonização
portuguesa, o certo é que ao abrigo desta disposição legal se cometeram graves e frequentes
excessos. Eram crónicas as carências de recursos financeiros para pagar salários e sustentar
mão-de-obra indispensável à abertura e reparação de pontes e estradas carreteiras, à cozedura
em fornadas de inúmeros tijolos para construção de edifícios públicos, à limpeza e ao
saneamento de povoações classificadas, à manutenção eficiente dos pomares e das hortas
administrativas, etc. Não admira que as autoridades, sobretudo os chefes de posto, usassem e
abusassem da contribuição braçal. Acontecia, com alguma frequência, que não só
prolongavam, pelo tempo julgado necessário os períodos de trabalho gratuito, como também
obrigavam os “contribuintes” a trazer os seus próprios instrumentos e até mesmo a sua
alimentação.
Como era natural, os indígenas não se apresentavam voluntariamente. Devido às suas
exaustivas tarefas quotidianas e à escassez e fraca eficiência dos sipais, muitas autoridades
administrativas aproveitavam as ocasiões em que eram mandados recrutar trabalhadores
destinados a diversos serviços públicos, para apurar qual a situação dos transgressores em
matéria de “contribuição braçal”. Caso fossem encontrados em falta, eram empregados onde e
durante o tempo que fosse necessário. Uma das normas do regulamento permitia acumulações
até vinte e cinco dias quando se concluísse, pelos registos do recenseamento ou na caderneta
de identificação, que os índigenas se encontravam em dívida. A remissão em dinheiro,
embora prevista na lei, só em casos especiais era admitida.
A partir de 1962, esta contribuição passou a ser obrigatoriamente paga em dinheiro,
como adicional ao “imposto domiciliário” (Dip. Leg. 2.186, B. O. 52-Supl.,1961).
399
Trabalho correcional
“Por outro lado, o mais difícil problema com que se defronta a economia
ultramarina é o da obtenção de uma mão-de-obra regular, dependente da
criação de um estado de espírito favorável do indígena em face do trabalho nos
moldes fixados pela organização industrial e comercial europeia. A sua
tradicional relutância em adotar hábitos de trabalho regular, faz do trabalho,
efetivamente, a penalidade por excelência, trabalho orientado para a satisfação
das necessidades públicas”.
Num excerto de outra obra transcreveu, com implícito apoio, a opinião expressa por
Valadas Preto quando exercia as funções de Delegado do Procurador da República em
Inhambane:
Notas bibliográficas:
S. Tomé
Cadbury decidiu publicar o seu livro “Os Serviçais de S. Tomé e Príncipe”, no qual
reproduziu as acusações contidas no relatório Burtt. Pode ter sido esta a conjuntura que
decidiu o governo central a promover, por via legislativa, o recrutamento de trabalhadores em
Moçambique. Naturalmente que a I Grande Guerra tornou irrelevantes as preocupações
humanitárias. Sabe-se que em 1918 a produção de cacau em S. Tomé subiu a 36.000
toneladas, no valor de dois milhões de libras esterlinas. Era assegurada por cerca de 40.000
trabalhadores.
Os roceiros, em natural conivência com as autoridades locais, decidiram resolver o
problema da carência de mão-de-obra, com esta medida simples mas desumana: interromper a
repatriação dos trabalhadores angolanos e moçambicanos. Apenas os inválidos eram
autorizados a regressar às suas origens. Mesmo assim, cerca de 1948 as roças empregavam
apenas 24.000 trabalhadores, quando necessitavam para cima de 40.000. O curador, alarmado,
relatou que as plantações dispunham apenas de metade da mão-de-obra indispensável, em
grande parte diminuída pela debilidade pré-senil. O recurso a cabo-verdianos revelou-se
insatisfatório. Pelas suas características culturais, os imigrantes desta origem, apesar de
acossados por fomes endémicas, sentiam-se de algum modo revoltados por trabalharem lado a
lado com angolanos e moçambicanos, estatutariamente classificados como “indígenas”, com
os quais se não sentiam identificados. Quanto a Angola, tanto as autoridades como as forças
económicas – também afetadas por carências de mão-de-obra – opuseram-se com
determinação às imagináveis intenções do governo lisboeta de ali voltarem a permitir o
recrutamento para S. Tomé.
Era do conhecimento geral não ser possível conseguir trabalhadores entre a própria
população da ilha. Um arguto conhecedor do meio ponderou:
“Ainda se conserva bem viva na maior parte desta gente a lembrança dos
tempos em que eles ou os seus pais eram proprietários de conta própria,
vivendo com desafogo e muitos mesmo com grande abastança. Na colónia
havia então grandes fortunas na posse dos seus naturais de cor… A colónia, nos
finais do Séc. XIX, era de todas as que constituem o nosso império a que
mantinha na Metrópole um maior número de estudantes de cor…”.
Moçambique constituía, por conseguinte, a única alternativa para “não deixar morrer ou
estiolar uma colónia que constitui o símbolo brilhante da nossa atividade capitalista
ultramarina (exigindo) que se tente ao menos uma solução”, como se reconhece no extenso
preâmbulo do Decreto nº 36.888, de 1948. Logo após a sua entrada em vigor, as autoridades
administrativas de todo o Moçambique receberam ordens confidenciais para procederem ao
recrutamento direto e compulsivo da mão-de-obra que iria salvar da ruína a aristocracia de
roceiros. Aquelas, coadjuvadas pelos chefes gentílicos (interessados como é óbvio em afastar
os marginais e outros indesejáveis) depressa conseguiram reunir os milhares de braços tão
pretendidos. Os Serviços dos Negócios Indígenas coordenaram estas operações, utilizando os
navios de carga para os transportar para S. Tomé, munidos dos contratos e outra
documentação necessária e devidamente acompanhados por um “comissário ad-hoc” e por um
médico. Foi numa destas comissões que participou o autor destas linhas.
Deve acentuar-se:
402
a) O recrutamento foi facilitado pela já referida circular nº. 818/D-7, de 7 outubro 1942;
b) A maioria dos contratados para S. Tomé era oriunda do litoral norte onde
escasseavam as possibilidades de emprego assalariado;
c) Os primeiros compelidos que regressaram a Moçambique com as suas remunerações
e com impressões favoráveis sobre as condições de trabalho nas roças, influenciaram muitos
indígenas da região a procurarem por sua livre vontade o contrato naquela ilha.
Embora compreenda ser impossível realizar o transporte marítimo nas ideais condições
citadas no Código de Trabalho Indígena (1929), não se pode considerar satisfatório o recurso
aos porões dos navios de carga, escuros, desconfortáveis, sem latrinas nem ventilação, de
mistura com gado e toda a espécie de mercadorias. É certo que, na primeira parte da viagem,
durante o dia, os 450 homens, 13 mulheres e 8 crianças, puderam respirar ar fresco nas
cobertas com bancadas erguidas pelo carpinteiro de bordo, com variados barrotes. Também
construiu com tábuas uma ou mais casas de banho dotadas de chuveiros com água salgada.
Tal já representou uma melhoria significativa porque, anteriormente, os passageiros africanos
eram regados com mangueiras.
Infelizmente o espaço dessas cobertas foi inteiramente ocupado, em Mossâmedes, por
estábulos destinados a 230 cabeças de gado bovino pertencentes a um cliente que, com brados
e gestos exacerbados, exigiu que o comandante telegrafasse ao armador para que soubesse
que iria exigir grossa indemnização se não autorizasse o embarque do gado.
Durante a permanência estive alojado em três roças: Uba-Budo, Água Izé e Boa
Entrada. As informações que prestei no relatório, que mereceu o elogio escrito pelo
governador-geral, podem assim sintetizar-se:
a) A Curadoria não cumpiu a lei que realçou a vantagem de agrupar na mesma roça os
trabalhadores provenientes de igual etnia ou região;
b) O horário de, pelo menos, dez horas por dia, facilitado pela deficiente fiscalização da
Curadoria, sem meios nem pessoal;
c) Às mulheres, mesmo com filhos, eram atribuidas tarefas semelhantes às dos homens;
d) Nenhum trabalhador estava autorizado a ultrapassar os limites da roça;
e) O sabão era de fabrico caseiro mais parecendo uma pasta enrolada em folhas;
f) O vestuário a fornecer de seis a seis meses era de fraca qualidade;
g) A alimenação era constituída basicamente por farinha, peixe seco e bananas,
escasseando em toda a ilha carne, arroz, açúcar, legumes, etc.;
h) Os dormitórios eram de alvenaria e cobertos a telha, alojando-se em quartos de 4 m2
a média de três homens;
i) Os lavabos e latrinas eram deficientes, argumentando os administradores que os
serviçais labutavam o dia inteiro no âmago de plantações atravessadas por muitos riachos
onde poderiam satisfazer as necessidades;
j) Em matéria de assistência limitei-me a reproduzir os seguintes trechos do relatório do
governador: “… há instalações hospitalares regulares… outras de hospitais e enfermarias só
têm o nome… os enfermeiros são em geral nativos sem uma compreensão razoável da sua
profissão, sentem-se à vontade, isolados, sem fiscalização de espécie alguma pois o médico só
raramente aparece…”;
k) Em uma das roças observei o idoso administrador, em fúria e em público, mandar
castigar um dos trabalhadores com palmatoadas;
403
l) Na mesma roça o numeroso e competente pessoal que servia na bela residência, veio
escondidamente queixar-se que não fora repatriado para Angola como tinham sido os seus
conterrâneos;
m) Em outra roça fui brutalmente insultado pelo administrador, diante de todos os
convidados, no fim de uma tarde de domingo, por, durante um passseio a pé, ter escutado as
queixas receosas dos trabalhadores, longe da presença patronal.
No meu relatório não dei conta desta humilhante agressão. Também não mencionei o
facto da ilha ter sido visitada por um navio de guerra britânico. A tripulação percorreu as
roças, com o pretexto de efetuar desafios de futebol com os empregados. Durante um dos
almoços, em roça que não recordo, sentou-se ao meu lado um dos oficiais e perguntou-me, em
tom pacífico, se os trabalhadores eram “livres”. Respondi afirmativamente. Esta pergunta
chamou a minha atenção para o facto da imprensa do Cabo vir desvendando que, ao largo,
transitavam navios de carga portugueses levando a bordo escravos de Moçambique destinados
às roças de S.Tomé.
Tudo visto e considerado, o autor mantém o que escreveu no seu relatório de 12 março
1951, em que não deixou de louvar o papel desempenhado pelo governador Gorgulho no
sentido de humanizar o tratamento dispensado aos trabalhadores. Discorda, por conseguinte,
da perspetiva publicada pela jornalista Felícia Cabrita, na “Revista” do semanário “Expresso”,
de 18 maio 2002. Mas tal não iliba aquele oficial de ter sido o principal responsável pelas
atrocidades que foram praticadas para neutralizar a suposta rebelião de 1953, que vitimou,
sobretudo, os membros da antiga aristocracia são-tomense.
Uma última nota. Foi causa de grandes sofrimentos a repatriação compulsiva de antigos
trabalhadores, já inválidos, que, após tantos anos de residência em S. Tomé, não dispunham
de famílias que os acolhessem, nem de qualquer sistema de segurança social em Moçambique.
Apesar dos Serviços dos Negócios Indígenas haverem sido substituídos pelo Instituto do
Trabalho, Previdência e Ação Social e apesar de, em 1973, a direção da dita Previdência ter
sido preenchida por um licenciado em Direito, não lhe foi possível, por desinteresse dos
governantes, iniciar a fundação em Moçambique de um sistema de previdência semelhante ao
existente na Metrópole. Vivi os pormenores desta situação frustrante.
Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Qualificação e remunerações Port. 13.871 11 1960 –
– Trabalho extraordinário e períodos de descanso Despacho 12 1960 –
– Retificação Idem 13 1960 –
– Remuneração dos conferentes Port. 14.163 31 1960 –
– Alteração do Artº. 26 da Port. 13.871 Port. 14.360 41 1960 –
Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Normas de trabalho no Porto de L. Marques
Cartões de ingresso limitado, ficheiro individual, livrete para anotar
comportamento, cassação ao arbítrio do Instituto de Trabalho. Despacho
51 1963 1º
Trabalho extraordinário – duas horas por dia, etc. Jorna aumentada (Serpa Rosa)
para quarenta escudos, mais as refeições. C. T. garantiu que a média
atingiu apenas vinte e dois escudos.
– Capatazes e conferentes em Mocímboa da Praia Despacho 38 1964 1º
– Idem, Porto Amélia Idem 42 1964 2º
– Condições e remunerações no Porto da Beira Idem 51 1964 1º
– Vigias no Porto de L. Marques Idem 2 1965 1º
– Capatazes no Porto de Nacala Idem 53 1966 –
– Capatazes e conferentes no Porto de L. Marques Idem 38 1967 1º
– Salários no Porto da Beira Idem 31 1969 1º
406
Segundo C. T. as empresas estivadoras de L. M. não tinham qualquer interesse em
exercer a sua atividade no Porto da Beira porque ali não havia “eventuais” mas apenas
recrutados e contratados com direito a alojamento, alimentação, assistência médica, etc. o que
diminuía a margem de lucro.
Em 1969 os trabalhadores “eventuais” da estiva do Porto de L. M, iniciaram,
inesperadamente, a sua segunda greve a qual esteve na origem da legislação subsequente:
Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Novas normas no trabalho de estiva em L. M. Despacho
A jorna foi teoricamente aumentada para cinquenta escudos. Porém, (F. A.
43 1969 1º
segundo os cálculos de C. T., a média geral atingiu apenas trinta e Gonçalves
dois escudos. Ferreira)
– Regulamento dos Serviços Internos do S. N. P. de Estiva Port. 23.177 41 1970 –
– Idem, da escala de recrutamento Port. 1/71 1 1971 –
– Salários mínimos em Nacala Despacho 106 1971 –
Boletim Oficial
Assunto Diploma
Nº Ano Série
– Despacho regulamentando o serviço de estiva em L. M. Despacho
(A jorna foi aumentada para oitenta escudos mas, segundo estimou C. T., (Costa 42 1972 –
a média geral rondou pelos sessenta escudos) Tavares)
– Revoga a Portaria nº 13.871 Port. 373/72 42 1972 –
– Regula as concessões de estiva nos Portos Dip.Leg.56/72 66 1972 –
Notas bibliográficas:
5º
ENSAIO INÉDITO
Inserida nesta perspetiva, estava a oportunidade, por muitos realçada, dos indígenas
poderem obter maiores rendimentos desde que explorassem no mesmo solo outro tipo de
culturas que até poderiam exigir menores esforços. Grilo, em outra passagem do supracitado
relatório, justamente reconhece que: “… Este agricultor iletrado e atrasado – com surpresa
talvez para umas tantas pessoas – também sabe fazer as suas contas sem lápis nem papel e
como todo o homem do campo aprecia a sua liberdade de cultivar o que mais lhe convêm e
interessa… quando assenta opinião sobre o valor lucrativo comparado desta lavra (i. e. o
algodoeiro) é difícil ou impossível faze-lo mudar”.
Mais. A cultura do algodoeiro esgotava rapidamente a fertilidade natural porque
obrigava a extensas derrubas para aproveitamento de terras virgens. Com a autoridade
inerente ao seu elevado cargo, Grilo também condenou está prática nos seguintes termos (7):
Por seu lado, o Centro de Investigação Cientifica Algodoeira apenas em 1955 conseguiu
publicar o seu “esboço do reconhecimento ecológico-agrícola de Moçambique”. E mesmo
assim, as recomendações confidenciais que cedo os seus técnicos apresentaram foram durante
algum tempo deliberadamente ignoradas por ofenderem os interesses das concessionárias.
Mas, pouco a pouco, se foram concretizando os indispensáveis reajustamentos. Para isso
contribuiu de algum modo o Dec. 40.405 (B. O. 51/55). A produção por hectare e o
rendimento por cultivador subiram, respetivamente, de 206 kgs/76$80 em 1941 para 470
kgs/765$90 em 1960. No seu estudo, baseado em estimativas que nos parecem em demasia
generalizadas e otimistas, Saraiva Bravo procurou demonstrar que o cultivador de algodão era
relativamente privilegiado não só quando posto em comparação com o trabalhador assalariado
pelas empresas agrícolas da região mas também com o seu congénere que se dedicasse à
cultura de outras espécies (11):
“Com todas aquelas culturas não gasta mais de 270 dias de 8 horas: 150
para o algodão, 60 para o amendoim, 20 para o feijão, 35 para a mandioca e 5
para as fruteiras. Ficam-lhe 95 por ano para arranjar alguma carne de caça e
para a sua vida social, naquilo que mais lhe agradar. Resultado final: pode
alimentar-se melhor, viveu no seu próprio meio, junto da família e dos amigos,
e juntou 1.200 escudos (cerca de 1.000 do algodão e restantes 200 do
amendoim) que lhe dão para comprar mais vestuário e uma bicicleta…”.
Embora seja interessante a comparação que este autor faz com os rendimentos do
trabalhador metropolitano da sua aldeia natal (nesse tempo, remunerado à razão de vinte
414
escudos para os homens e onze escudos para as mulheres por cada dia de trabalho útil)
merece-nos algumas reservas esta imagem utópica do índigena feliz, saudável e vigoroso,
resistente às doenças e ao calor tórrido, dispondo de água e solos férteis, contando com o
auxilio entusiástico da família e, enfim, liberto de pragas e de outros obstáculos naturais que o
ambiente tribal e rural levantava à pratica de uma agricultura moderna e intensiva. Ao que se
nos afigura, estas e outras generalidades de remates positivos, revestem nulo interesse sócio-
económico. Não existem estudos de campo sistemáticos e objetivos que, de resto, apenas
poderiam fornecer restrita panorâmica da comunidade onde fossem efetuados. Aquela visão
otimista era desmentida pelas generalizadas carências alimentares que assolaram muitas
regiões algodoeiras, calamidades justamente denunciadas por Armando Castro e que
provocaram milhares de mortos (12).
Alguns investigadores estrangeiros também descreveram o regime de concessão de
zonas algodoeiras e aludiram, embora veladamente, às imposições, corrupções e outros efeitos
perversos a que o mesmo deu origem. Merece especial destaque a perspetiva publicada em
1978 por Leroy Vail e Landeg White (13), perspetiva que trouxe ao conhecimento
internacional um significativo conjunto de observações que – embora incidindo de forma mais
direta sobre as concessões algodoeiras obtidas pela “Sena Sugar Estates” no vale do Zambeze
– se podem também aplicar às regiões mais setentrionais de Moçambique. Os autores
cometem, no entanto, o erro de dar indevido e excessivo relevo ao papel desempenhado pelos
empregados de campo da dita concessionária. O leitor pouco informado poderá ficar
convencido de que esses subalternos podiam cometer, com total impunidade, toda a espécie
de desmandos, de brutalidades e até de atos criminosos, tais como a violação de mulheres, o
encarceramento de crianças, o espancamento de desobedientes, etc.
É forçoso salientar que todas estas acusações fomentam interpretações deturpadas das
práticas mais correntes. Incitada ou não pelos governadores, a intervenção das autoridades
administrativas era por demasia importante para permitir que os agentes empregados por
empresas privadas agissem de modo atrabiliário e gozassem de absoluta impunidade. Há que
ter sempre em consideração que o desempenho eficiente das competências atribuídas aos
elementos do “Quadro Administrativo” (como eram por norma designados os Serviços de
Administração Civil) exigia que fossem geralmente considerados e respeitados como
exclusivos representantes da Soberania Nacional. Autorizar indistintos particulares a exceder
de modo tão escandaloso as suas meras funções de propaganda e fiscalização, seria reduzir
essas autoridades legítimas ao papel humilhante e intolerável – para o seu brio profissional e o
seu orgulho individual – de meros espetadores passivos, desprezados e até ridicularizados
tanto pelos colonizadores como pelos colonizados. Vivendo como viviam sob o atento
escrutínio de governadores, intendentes e inspetores, as suas carreiras profissionais ficariam
definitiva e irremediavelmente afetadas. Recordemos que o regime político desenvolvido por
Salazar se distinguia por características bastante autoritárias e, como tal, não podia ser
tolerado o desprestígio público e gritante das autoridades locais, a quem os superiores
hierárquicos tinham delegado tantos e tão consideráveis poderes.
415
Obrigatoriedade da cultura. Gratificações em Angola mas recusadas em
Moçambique
Todavia, cai logo em flagrante contradição quando acentua que podiam ser aplicadas
aos nativos penas de trabalho correcional por falta de comprimento das normas que regulavam
o cultivo, o arranque e a queima das plantas. Não contente com isso, acabou por culpabilizar
as autoridades administrativas por todo um conjunto de práticas de extorsão, planificadas pelo
governo central, cujas complexidades e repercussões, mais malignas do que benignas,
tentaremos analisar em simultâneo com o envolvimento e as responsabilidades dos seus mais
diretos representantes em Moçambique: os governadores-gerais e provinciais. Acrescenta
Silva Cunha, distraído quanto ao efetivo contra-senso entre “frequentemente” e “por vezes”:
Para melhor entendimento de toda esta antiga e arreigada prática, revelaremos, a título
de exemplo, duas provas documentais encontradas no arquivo, posteriormente destruído, da
sede lisboeta da Companhia da Zambézia. Datadas de 26 outubro 1959 e de 3 março 1960, os
competentes serviços elaboraram “cartas reservadas” relativas aos prémios de algodão a
conceder aos funcionários administrativos em serviço nas regiões onde se situavam as
416
concessões. Foram apresentadas nas sessões do Conselho Geral realizadas a 15 janeiro e a 13
outubro 1960. Das respetivas atas apenas consta, de modo vago, que o Conselho tomou delas
conhecimento. Foram infrutíferos os esforços feitos para descobrir essas “cartas reservadas”.
Outro aspeto negativo da cultura e que originava fraudes que mais agravaram a
condição dos oprimidos e explorados cultivadores, foi a distinção do algodão em três classes.
O nativo com meios primitivos de colheita, transporte e escolha ao ar livre, ficava com uma
parte importante da sua produção relegada para as classes inferiores, mesmo que tivesse
desenvolvido grandes esforços. As arbitrariedades que podiam cometer-se (e eram cometidas)
nesta matéria ressaltam da própria consulta de elementos estatísticos, como os quadros
apresentados por Tristão de Bettencourt (16). Encontravam-se disparidades gritantes entre a
produção qualitativa das diversas concessionárias, disparidades só explicáveis pela maior ou
menor cautela e honestidade dos agentes que, no ato da compra, procediam à classificação. O
normal seria que a qualidade fosse diminuindo em proporção com a classe, o que de facto se
verificava nestes exemplos, embora com flagrantes desníveis:
Quadro I
Quadro II
Este problema nunca pode ser resolvido de modo satisfatório. Não escapou à atenção de
Saraiva Bravo que, na sua obra, elaborou o quadro LXXXI, com base nas percentagens do
algodão de 1ª comprado pelas diversas concessionárias nos anos de 1955, 1956 e 1960,
417
percentagens que oscilavam de modo absurdo, embora fosse de notar que, no sul, atingiam
níveis mais elevados e estáveis. Reconhece este autor (17):
Quadro III
Quadro IV
Gravemente prejudicial para os interesses não só dos produtores indígenas mas também
da economia geral de Moçambique, foi a política baseada em preços oficiais fixados pelo
governo central. Essa fixação revestia aspetos complexos, e envolvia um número elevado de
fatores instáveis que, não raro, eram estimados de maneira arbitrária. Após fixados os preços
de compra da quantidade do algodão em rama ultramarino, pretendida pelos industriais e por
outros importadores metropolitanos, procedia-se a sucessivas deduções que acumulavam
despachos, direitos, taxas, fretes e seguros, para se calcularem, enfim, os preços nos portos
moçambicanos. Deste novo dado eram subtraídas as despesas médias com os transportes a
partir das fábricas. Deduções subsequentes levavam em consideração as despesas efetuadas
com descaroçamento, prensagem, propaganda, distribuição de sementes, organização de
mercados, transportes para as fábricas e, por fim, o lucro das concessionárias e o valor da
semente.
Mesmo assim, cerca de 1960 o cultivador de algodão continuava a ser pior remunerado
do que os seus congéneres dos países vizinhos. Na então Rodésia do Sul, o preço do algodão-
caroço, tanto de 1ª como de 2ª, era sensivelmente duplo do fixado em Moçambique. No
Tanganhica e na Niassalândia o algodão de 1ª era também melhor pago. O contrário acontecia
com o de 2ª.
Esta política deliberada de baixos preços, proporcionou consideráveis lucros à indústria
têxtil de Portugal que assim pode expandir-se e mesmo tentar competir nos mercados
internacionais. Porém, após 1955 foi tão brusca, acentuada e pertinaz a queda das cotações
mundiais do algodão em rama (de 26$22 para 18$84) que em 1960 a diferença entre o
algodão moçambicano e o estrangeiro era apenas de setenta e dois centavos por quilo. São
merecedoras de especial atenção, as pressões que os industriais passaram a exercer sobre o
governo de Lisboa no sentido de obterem autorizações de compra de algodão estrangeiro em
detrimento do colonial. Não deixa de ser curioso que a abolição da cultura obrigatória,
decretada durante o ministério de Adriano Moreira (Dec. 43.639, B. O. 21/61) tenha
coincidido com o natural nivelamento entre os preços das fibras coloniais e os das
estrangeiras.
Entre 1948 e 1956 os rebaixados preços do algodão colonial beneficiaram os
importadores da Metrópole, em algo como 3.314.000 contos (conto = mil escudos). Saraiva
Bravo, em cálculo próprio, demonstrou que, desde 1947 a 1955, o algodão exportado por
Moçambique teria custado a Portugal mais 2.774.000 contos, caso tivesse sido pago ao nível
das cotações internacionais (22). Especialmente escandalosos foram os lucros proporcionados
aos industriais de têxteis durante os anos seguintes:
Quadro V
Esta situação chegou a ser discutida na Assembleia Nacional por Pimentel dos Santos
(23):
420
Mais precisas foram as críticas de C. F. Spence (24). Nos territórios vizinhos, os nativos
recebiam quase o dobro pelo seu algodão. As fábricas portuguesas não só conseguiam a fibra
por menos de metade do preço vigente no mercado internacional como também vendiam às
colónias por “preços de longe superiores aos preços mundiais do artigo equivalente”. Acresce
que, em Moçambique, os importadores de têxteis eram obrigados a adquirir em Portugal pelo
menos 75% das suas necessidades. Apesar dos elevados direitos de importação, os grossistas
pagavam menores preços pelos tecidos de algodão provenientes da Grã-Bretanha. A tudo isto
havia a acrescentar os direitos de exportação de 12%, aplicados ao algodão em rama
exportado para outros países que não Portugal.
O Fundo do Algodão
Considerações finais
Quadro VI
Nos anos que precederam o golpe militar de 1974, verificou-se, por conseguinte, a
nítida dinamização do “setor empresarial” e a simultânea decadência do “setor tradicional”.
Esta tendência constata-se melhor pela análise do seguinte quadro, limitado às três províncias
setentrionais, onde se não verificou a deturpação estatística introduzida nos dados globais,
causadas pela inclusão, no “setor empresarial”, de milhares de pequenos cultivadores
africanos das atuais províncias de Tete, Sofala e Manica.
426
Quadro VII
Média anual de produtores e da produção (1967-1971)
1974 46.000
1975 17.000
1976 12.000
1977 18.000
1978 22.000
1979 22.000
1980 18.000
Arroz
As últimas sugestões desde autor já haviam sido adotadas pela Administração, por vezes
com recurso a métodos excessivamente severos, como a fixação de metas de produção a cada
cultivador e a responsabilização direta das autoridades gentílicas.
Como aconteceu com outras práticas da administração colonial em Moçambique, houve
cidadãos portugueses, de rígida fibra moral, que cedo denunciaram os abusos cometidos,
antecedendo em largos anos as críticas formuladas em datas mais recentes por diversos
académicos de expressão inglesa. Um deles foi o Bispo da Beira que em 1950 escreveu (34):
1) PHILLIPSON, D. W. (1977). The Later Pre-History of Eastern and Southern Africa. Londres,
Heineman.
2) RITA-FERREIRA, A. (1999). African Kingdoms and Alien Settlements in Central Mozambique.
Coimbra, Departamento de Antropologia, Universidade de Coimbra, Capitulo 11, pp.116-119.
3) ALPERS, E. A. (1975). Ivory and Slaves in East Central Africa. Londres, Heineman.
4) GRILO, Francisco Monteiro (1946). Relatório dos chefes dos Serviços de Agricultura. L. Marques,
Imprensa Nacional, vol. II, pp. 138/9.
5) GRILO, (1946). Idem idem, vol. II, p. 145.
6) GRILO, (1946). Idem idem, vol. II, p.147.
7) GRILO, (1946). Idem idem, vol. II, p.148.
8) QUINTANILHA, Aurélio (1954). O Problema Algodoeiro Português. L. Marques, Imprensa Nacional, 13
maio.
9) RESENDE, Sebastião Soares de (1950). Ordem Anticomunista. L. Marques, Imprensa Nacional, p.142.
10) RESENDE, Sebastião Soares de (1954). Hora Decisiva de Moçambique. L. Marques, Imprensa Nacional,
pp.119-126.
11) BRAVO, Nelson Saraiva (1963). A Cultura Algodoeira na Economia do norte de Moçambique. Lisboa,
Junta de Investigações do Ultramar, pp.207-212.
12) CASTRO, Armando (1978). O Sistema Colonial Português em África (meados do Séc. XX). Lisboa,
Editorial Caminho, p.434.
13) VAIL, Leroy e WHITE, Landeg Tawani (1978). Machambero!: forced cotton and rice growing on the
Zambezi. Londres, J. Afr. Hist. 19 (2), pp. 239-263.
14) CUNHA, J. M. da Silva (1955). O Trabalho Indígena – Estudo de Direito Colonial. 2ª ed. rev. e atual.
Lisboa, Agência Geral do Ultramar, p. 263.
15) BETTENCOURT, José Tristão de (1945). Relatório do governador-geral de Moçambique… respeitante
ao período de 20 de março de 1940 a 31 de dezembro de 1942. Lisboa, Agência Geral das Colónias, vol.
II, p.254.
16) BETTENCOURT, (1945). Idem idem, vol. II, p.256.
17) BRAVO, (1963). Idem idem, p. 181.
18) BETTENCOURT, (1945). Idem idem, vol. II, p.244.
19) GRILO, (1946). Idem idem, vol. II, p.149.
20) SANTOS, M. Pimentel Pereira dos (1953). Tendências actuais da economia de Moçambique. L. Marques,
Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, Ano 23, nº78, p. 147.
21) BRAVO, (1963). Idem idem, p.230.
22) BRAVO, (1963). Idem idem, p.246.
23) SANTOS, (1953). Idem idem, p.150.
24) SPENCE, C. F. (1951). Descrição Económica de Moçambique. L. Marques, Minerva Central, p.149.
25) BRAVO, (1963). Idem idem, pp.190-191.
26) LOBO, J. B. Faria (1962). Distrito de Moçambique – Circunscrição do Erati. Lisboa, Boletim Geral do
Ultramar, 442, abril, pp.105 – 161.
27) LEMOS, Manuel Jorge C. de (1992). O Fundo do Algodão (1952 – 1961). Maputo, Arquivo – Boletim do
Arquivo Histórico de Moçambique, 11, pp. 67 – 81.
28) RITA-FERREIRA, A. (1963). Movimento Migratório de Trabalhadores entre Moçambique e a África
do Sul. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar (Est. Cien. Polit. Soc. – 67).
29) ISAACMAN, Allen et alli (1980). Cotton is the mother of poverty: peasant resistance to forced cotton
production in Mozambique 1938 – 1961. Boston, E. U. A., Intern. J. Afr. Hist. Stud., 13 (4), pp. 581-615.
30) MOREIRA, Adriano (1962). Batalha da Esperança. Lisboa, Edições Panorama, 221 pgs.
31) MOREIRA, Adriano (1961). Velada de Armas. Lisboa, Boletim Geral do Ultramar, 436/8, p.20.
32) BETTENCOURT (1945). Idem idem, vol. I, p.274.
33) SPENCE, C. F. (1951). Idem, idem, pp. 71/2.
34) RESENDE, Sebastião Soares de. (1950) Ordem Anticomunista. L. Marques, Imprensa Nacional, p.145.
429
6º
ENSAIO INÉDITO
A Educação dos Africanos no Moçambique Colonial
Aspetos ideológicos
As matérias que se pretendem abordar são de tal maneira vastas e complexas que não é
possível dedicar muito tempo a explicar a ideologia subjacente ao sistema educativo que foi
imposto em todo o império colonial e, sobretudo, as razões pelas quais ignorava, quase por
completo, os valores e as culturas africanas em geral e moçambicanas em especial. É este o
motivo por estas linhas, dedicadas aos aspetos ideológicos, irem ser breves e quase limitadas à
transcrição de textos significativos.
Como se sabe, foi o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre quem melhor apresentou e
defendeu a teoria de que os povos ibéricos – os Portugueses em especial – constituíram casos
únicos na moderna história colonial (1). Teriam o enorme mérito de entrar em contacto com
outros povos, levando consigo os valores próprios de uma sociedade bem definida na sua
globalidade e, acima de tudo, cristã nos seus fundamentos. Não seriam valores baseados
apenas no indivíduo, como aconteceu com os povos do norte da Europa, profundamente
influenciados pelas ideias defendidas pela Reforma Protestante. Assim, o esforço português
nos Trópicos e no Oriente foi, em termos sociológicos, de natureza cristo-cêntrica e, portanto,
tendente a comunicar aos povos não-cristãos valores por completo alheios à noção de raça.
Esse esforço ímpar não teria sido etnocêntrico como o de outros europeus (Holandeses,
Ingleses e Franceses) incapazes de se libertarem das suas particularidades específicas e
inclinados a impor a sua aceitação por as considerar de nível superior e do tipo messiânico. Os
portugueses da época da expansão ultramarina classificavam a catequização dos indígenas
como o único instrumento de elevação e de formação moral. Não se podia atingir suficiente
perfeição, nem se tornar Português, i.e. ser homem no sentido completo da palavra, sem a
prévia conversão ao cristianismo militante (2).
***
Ainda nos últimos anos da monarquia, já sob predomínio dos ideais republicanos e
liberais favoráveis à separação entre o Estado e a Igreja, um especialista em questões
coloniais, L. V. Sampayo e Melo, ciente dos perigos da expansão islâmica em África, escrevia
(3):
Álvaro de Fontoura foi outro ideólogo que expressou idênticas opiniões. Na sua
comunicação ao III Congresso Colonial Nacional realizado em Lisboa, entre 8 a 5 maio 1930,
afirmou (5):
Claro que estas e muitas outras intervenções influenciaram as iniciativas dos políticos
nacionalistas – entre os quais se encontrava Salazar – que vieram a dominar o governo após o
golpe militar de 1926. E deve reconhecer-se que tinham algum fundamento os receios
expressos nas três passagens que selecionámos (6). No norte de Moçambique o Islamismo, já
solidamente implantado antes da chegada dos Portugueses, encontrava-se em nítida expansão.
No sul as missões protestantes também se espalhavam a ritmo acelerado, suportadas pelos
donativos generosos das organizações mais ricas baseadas nos países desenvolvidos. Estavam
em manifesta inferioridade as missões católicas, pobres e raras, oriundas de um país
subdesenvolvido e, para cúmulo, com o seu prestígio minado pelos ideais laicos que
prevaleceram durante a I República.
Apesar deste panorama preocupante e apesar do novo regime ditatorial ter aprovado o
Estatuto Orgânico das Missões Católicas no mesmo ano revolucionário (1926) em que
nomeou José Cabral como governador-geral de Moçambique, este, só passados três anos
regulamentou a criação e atividade das missões religiosas de diversas confissões e
nacionalidades e o funcionamento das duas escolas particulares do ensino primário (Dip. Leg.
167/8, de 3/8/1929). A par de decisões que visavam normalizar o ensino, como a exigência de
habilitações mínimas aos professores e o seu registo nos Serviços de Educação Pública e
também o princípio de liberdade de matrícula e de assistência voluntária às aulas, tomou
outras de algum modo irrealistas e demagógicas: a proibição do uso de escritos em línguas
nativas; a limitação das matrículas dos sete aos catorze anos, impossível de cumprir por falta
de registos de nascimento; a exigência de edifícios de alvenaria para as escolas missionárias
mesmo nas regiões mais primitivas; a assistência médica privativa nos internatos para o
ensino profissional, inexequível já que os raros médicos se concentravam nos principais
centros urbanos.
A imposição das conceções imperiais, nos programas dedicados aos estudantes
africanos, só veio a efetivar-se no ano seguinte com o regulamento do ensino primário
rudimentar que tinha por finalidade “conduzir gradualmente o indígena selvagem para a vida
civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo para a luta da vida,
tornando-o mais útil à sociedade e a si próprio” (Dip. Leg. 238, de 7/5/1930). Prolongava-se
por três anos, dava direito à matrícula na 3ª classe das escolas primárias elementares e o seu
ano letivo durava de 1 fevereiro a 30 novembro. Mas de novo a utopia veio à superfície
quando determinou que o catecismo e a Bíblia só poderiam ensinar-se em língua portuguesa.
Por curiosa coincidência, apenas doze dias depois foi publicado em Lisboa o célebre
Ato Colonial cujo Artº 24 consagrou finalmente: “As missões religiosas do Ultramar,
432
instrumento de civilização e influência nacional e os estabelecimentos de formação do pessoal
para os serviços delas e do Padroado Português, terão personalidade jurídica e serão
protegidos e auxiliados pelo Estado, como instituições de ensino”.
Entre 1930 e a aplicação do Acordo Missionário decorreu um período de nacionalismo
exaltado em que a ideologia subjacente a toda a orientação, organização e programação dada à
educação em Moçambique era frequentemente expressa em escritos e discursos quer de um
patriotismo primário quer de um lirismo mais apropriado a poetas do que a homens de Estado
e a diretores de serviços que, pelo exercício dos seus cargos, se esperava que fossem mais
friamente objetivos e melhor conhecedores das brutais realidades africanas. Repare-se neste
texto escrito pelo diretor (principal) da escola de artes e ofícios da Moamba: “… (o filho do
Império Português) poderá nascer em plena selva, no mais recôndito do sertão, em primitiva
choupana de capim, mas assim mesmo, essa criança, esse filho de Portugal, branco, amarelo
ou preto, se os fados o houverem marcado com as qualidades que vencem, de grau em grau
subirá ou poderá subir a culminâncias que nenhuma lei ou preconceito lhe interdizem ou
sequer dificultam” (7).
Mas em Moçambique foi Braga Paixão o mais típico representante desta fase: delirante
retórica; fortalecimento da unidade imperial por elaborações mitológicas; admiração
incondicional pelos dirigentes do Estado Novo; transformação das escolas em auxiliares dos
serviços de propaganda; desperdício de tempo e energias em atividades políticas, em sessões
solenes e em festas celebrando datas pretensamente gloriosas.
Vamos transcrever uma relação e alguns trechos da coletânea de artigos e discursos que
escreveu e pronunciou durante os três anos em que chefiou os Serviços de Educação de
Moçambique, antes de ser transferido para o ministério das Colónias (8). Não o fazemos para
obter fáceis efeitos anedóticos mas, bem pelo contrário, movidos por profunda seriedade
porque demonstram um elemento fatual que prevaleceu durante longos anos e exerceu
pronunciados efeitos psicológicos de sugestão na sociedade portuguesa em geral e
moçambicana em especial:
– pg.13 (discurso por ocasião da partida duma excursão de estudantes liceais de
Moçambique a Portugal, denominada “Cruzeiro à Metrópole”) “Bela, deleitosa, cheia de
proveitos e compensações de toda a ordem, como disse, será a viagem para que o ministro das
Colónias os convidou. Lindas paisagens, muitos e belos monumentos de quase todas as
idades, quadros variados que oferecem cidades e campos, serras e praias, matizes complexos
de que é suntuosamente decorada a terra portuguesa, em uma palavra, o amplexo maternal da
Pátria que vos espera”;
– pg. 15 (discurso na sessão solene realizada na Câmara Municipal de L. Marques pelo
11º aniversário da Revolução Nacional) “Pelo poder privilegiado da sua inteligência, Salazar
é uma glória desta geração de Portugueses… o seu pensamento é perfeito como a sua
expressão…”;
– pg. 24 (discurso pronunciado na abertura da “Semana da Metrópole”);
– pg. 33 (discurso no serão académico realizado na Câmara Municipal de L. Marques,
depois do regresso do “Cruzeiro à Metrópole”);
– pg. 37 e 42 (artigos de propaganda política);
– pg. 59 (discurso na sessão solene de abertura do ano escolar de 1938 no Liceu
Nacional Salazar) “Estas horas de abertura são sempre o sorriso de uma primavera, o afago de
um amanhecer”;
– pg. 68 (sarau no teatro Gil Vicente, em homenagem à Universidade de Coimbra)
“Somos uma sociedade ordeira, organizada, hierarquizada. Vivemos na Paz para o Trabalho,
sem ódios, sem divisões, sem animadversões, sem invejas”;
433
– pg. 81 (conferência na Câmara Municipal de L. Marques no 80º aniversário da
abolição da escravatura);
– pg. 100 (receção ao presidente da República na Câmara Municipal de L. Marques)
“Tudo quanto no passado português existe de glorioso está aqui presente e incorrupto. O
grande sonho de dilatação da Fé e do poder português da época de Quinhentos, ressuscita-o
agora Portugal, volvidos séculos…”;
– pg. 104 (artigo sobre o ensino aos indígenas, obra de civilização) “Mas a nossa ação
junto das populações indígenas é de civilização e de nacionalização. Não trilhámos os mares,
nem implantámos a nossa soberania em terras distantes por intuitos de torpe ganância ou de
ambição material. Acercámo-nos dos indígenas para fazermos deles outros portugueses…
Temos uma vida, que é a emanação de uma alma e realização de uma fé, a transmitir aos
povos que queremos trazer até nós. Essa comunicação da nossa vida é a mais nobre
característica da obra de amor que pretendemos efetivar. Ela não cabe portanto no simples
ensino de um sistema de noções. A par desta obra de extensão de sentimentos, o ensino tem
um fim prático e utilitário”.
Nos anos seguintes, já no Ministério das Colónias, continuou a propagandear e a aplicar
as suas doutrinas centralizadoras, bem expressas nesta passagem do discurso que proferiu no
ato de posse do diretor-geral do Ensino: “Seria absurdo confiar totalmente as soluções
respeitantes a esta ou àquela Colónia aos seus órgãos diretivos próprios, gerindo-a
exclusivamente dentro de si mesma e abstraíndo da Mãe-Pátria e das outras…” (9).
Erra quem suposer que esta intensa propaganda ideológica fosse da responsabilidade
exclusiva e ocasional de algumas mentalidades fanatizadas. Ela radicava-se, pelo contrário,
em experimentadas técnicas de doutrinação política das massas. A conhecida obra de Serge
Tchakhotine (10) – cuja primeira edição surgiu em 1939 – é bem elucidativa a esse respeito.
Lembramos ao leitor cético o facto de que ainda se não encontravam em funcionamento duas
instituições organizadas e especializadas que só mais tarde foram desenvolvidas com o
propósito específico de propagarem entre a juventude a ideologia religiosa e política do
regime: as escolas das missões católicas e, enfim, a Mocidade Portuguesa, versão menos
rígida dos modelos nazis e fascistas. A desmedida exaltação de heróis missionários (ex. o
mártir D. Gonçalo da Silveira), de descobridores (ex. Vasco da Gama), de exploradores (ex.
Lacerda e Almeida) e de militares (ex. Mouzinho de Albuquerque) iniciou-se durante este
período. Não foi por acaso que a extensão da Mocidade Portuguesa às Colónias (Dec. 29.453,
B. O. 14/1939) e a assinatura do Acordo Missionário tenham ocorrido aproximadamente na
mesma ocasião. Consagrada, finalmente, pelo Acordo (1940) e pelo Estatuto Missionário
(1941) a secular ideologia católico-cêntrica da expansão colonial portuguesa, a educação das
crianças africanas cujos pais tinham o estatuto jurídico de “indígenas”, foi por completo
confiada ao pessoal missionário católico e seus auxiliares. Esta educação passou a obedecer à
orientação doutrinária fixada na Constituição e os seus planos e programas – elaborados pelos
governos coloniais – tinham por objetivo “a perfeita nacionalização e moralização dos
indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho…” tendo em consideração “… o
estado social e a psicologia das populações a que se destina”. Tornou-se obrigatório o ensino
e o uso da língua portuguesa. Apenas na catequese se poderia recorrer às línguas africanas.
Reconhecendo-se, implicitamente, a enorme falta de recursos humanos com que iriam lutar as
organizações católicas portuguesas, previu-se a admissão de pessoal missionário de
nacionalidade estrangeira ainda que sob apertados condicionalismos que visavam evitar a sua
transformação em agentes de “desnacionalização” para os educandos.
Mesmo para os ideólogos do regime, este Acordo Missionário foi recebido com
reservas. O próprio Marcello Caetano opinou, logo em 1948: “A entrega total do ensino dos
indígenas às Missões terá sido feliz? Temos as maiores dúvidas. Pondo de parte a questão de
434
saber se o Estado pode ou não, pelos seus funcionários, ser capazmente educador dos
indígenas, a verdade é que o número de missões católicas nas nossas colónias é insuficiente, a
maior parte do seu pessoal é estrangeiro e raríssimos missionários estão habilitados a dirigir a
execução da grande tarefa cometida pelo Estatuto” (11).
Como desenvolveremos em outro capítulo, o primeiro abalo em toda esta estrutura
ideológica surgiu, no interior do próprio regime, em 1945, com as denúncias públicas
formuladas pelo Inspetor Superior da Administração Colonial Henrique Galvão. Eleito
deputado, os seus “avisos prévios” apresentados a partir de 1947 – embora concentrados nos
problemas da exploração do trabalho forçado – classificaram a vida administrativa de Angola
como “uma mentira colossal”. Mas as suas intervenções não tiveram efeitos visíveis na
opinião pública, já que a Assembleia Nacional era estritamente controlada pelo governo e a
censura à imprensa proibira que se desse relevo aos debates. Em 1951, no próprio ano em que
Henrique Galvão acabou por ser preso, outro diretor dos Serviços de Educação de
Moçambique, L. Moreira de Almeida – que nos seus escritos e decisões revelou genuína
preocupação com os aspetos económicos – pronunciou-se contra a criação de escolas para
formação de professores primários em Moçambique, recorrendo aos velhos argumentos
ideológicos, centralizadores e nacionalistas (12):
Por estranho que pareça, nada fez para defender a concessão de bolsas a estudantes que
quisessem frequentar o magistério primário em Portugal. Seja como for, quando a Igreja
Católica assumiu em 1941 a responsabilidade pela educação exclusiva da esmagadora maioria
da população moçambicana, encontrou já os “indígenas” submetidos a uma discriminação de
facto e a evidentes atrasos educativos relativamente a outras colónias ou territórios autónomos
dirigidos por potências mais ricas e evoluídas do que Portugal.
A orientação católico-cêntrica foi reforçada em 1953, com a publicação da encíclica
papal Evangelii Praecones. A propósito da educação nos territórios ultramarinos foi
reconhecido (13):
1- P. V. Show (1957);
2- A. de Azevedo (1963), p. 13;
3- L. V. de Sampayo e Mello (1910), p. 86;
4- L. W. Carrisso (1934), p. 7/8;
5- A. da Fontoura (1934), p. 5, 42/3;
6- Trinta e cinco anos mais tarde a história confirmou os receios dos pensadores e políticos nacionalistas.
As provas surgiram quando os Missionários quer protestantes quer estrangeiros ao serviço das missões católicas,
alinharam ideologicamente, em maior ou menor grau, com os movimentos de libertação;
7- J. J. Sousa (1938), p. 63;
8- Braga Paixão (1948);
9- Braga Paixão (1944), p. 13;
10- S. Tchakhotine (1952);
11- Marcello Caetano (1948), p. 247/8;
12 - L. Moreira de Almeida (1951), p. 208;
13- A. de Azevedo (1963), p. 96;
14- M. Dias Belchior (1966), p. 647.
Organização e estatísticas
QUADRO I
Tipos de Ensino
Para "não-indígenas" Para "indígenas"
Origem Anos
Elementar Rudimentar Profissional
Escolas Matriculas Escolas Matric. Escolas Matric.
1930 27 3.405 65 8.795 1 ––––
Estado
1935 41 3.426 171 10.883 4 279
Missionário a) 1935 20 1.882 125 10.692 20 1.306
a) Com exceção da Companhia de Moçambique
QUADRO II
Anos Letivos
Sexo
1938 1942/3 1947/8 1950/1
Masculino 349 52 144 149
Feminino 61 24 70 80
QUADRO III
QUADRO IV
QUADRO V
Como se vê, o esforço desenvolvido nos anos precedentes com a promoção educativa
dos Africanos já começava a dar alguns frutos. Mas apesar de constituírem 97,5% da
população, continuavam em flagrante minoria no ensino secundário e superior, exceto nos
cursos para professores de postos escolares das missões e nos seminários de preparação para a
carreira sacerdotal.
Eis alguns elementos finais extraídos do último “Anuário Estatístico” publicado até
1977, com dados referentes a 1972. Foram selecionados alguns resultados concretos, de maior
significado e confiança, alcançados no final do ano letivo de 1970/1. Concluíram os dois anos
do ciclo preparatório do ensino secundário – ficando portanto em condições de ingressar nos
liceus e escolas técnicas – o seguinte número de alunos de todas as raças: 2.873 no ensino
oficial; 1.092 e 1.029 no ensino particular respetivamente em escolas e em residências.
Em 1971, aproximadamente com os mesmos anos de escolaridade, concluíram os seus
cursos de carpinteiro, sapateiro, tipógrafo, alfaiate, serralheiro, mecânico, etc. os seguintes
estudantes das três escolas estaduais de artes e ofícios reservadas aos Africanos: Moamba
(Província de L. Marques) 31; Inhamússua (Província de Inhambane) 13; Ilha de
Moçambique, 16. No mesmo ano letivo, apenas doze estudantes concluíram o curso nas
escolas de práticos agrícolas em Gaza e Inhambane.
As estatísticas do ensino secundário são de tal modo deficientes que não permitem
selecionar números significativos. Apontaremos unicamente os resultados obtidos pelos
Institutos Comerciais e Industriais (entre o secundário e o superior) que preparavam técnicos
como mestres-de-obras e peritos contabilistas. Os institutos de L. Marques e da Beira tinham
116 professores e 1.100 alunos. Assim, em 1971, concluíram cursos comerciais e industriais,
66 e 21 estudantes, sobretudo não africanos.
442
Modestos eram também os resultados nas escolas mantidas pelos serviços públicos, a
mais importante pertencia aos Serviços de Saúde. Aí, em 1971, foram formados os
especializados de todas as raças:
QUADRO VI
Anos
Licenciaturas concluídas
1970 1971 1972
Engenheiros mecânicos – 1 5
Engenheiros quimico-industriais – 2 7
Engenheiros eletrotécnicos 2 11 11
Engenheiros civis 4 8 11
Médicos e cirurgiões 1 8 11
Agrónomos e silvicultores 4 9 4
Veterinários 6 7 5
QUADRO VII
Notas à secção
Causas do atraso
QUADRO VIII
Claro que situação semelhante se encontrava nas restantes colónias africanas, em que a
educação destinada aos europeus era também e sem comparação, mais dispendiosa do que a
reservada aos nativos, como acentuou, Ávila de Azevedo, no seu livro sobre política de ensino
em África (6).
No meio da retórica, do lirismo e da propaganda dos políticos, surgiam, por vezes,
homens preocupados com os aspetos económicos. Um deles foi Moreira de Almeida, diretor
dos Serviços de Educação que, em 1950, estimou que a criação em Moçambique de institutos
comerciais (entre o secundário e o universitário) representaria uma despesa de 40.000$00 por
aluno e por ano. Acentuou que entre 1946 e 1950 apenas dez e quatro alunos tinham
terminado o curso de preparação para ingresso, respetivamente, nos institutos comerciais e
industriais. Ora esses alunos, caso decidissem prosseguir os seus estudos em Portugal, teriam
446
gasto ao Estado apenas 12.000$00 por ano, além dos 6.700$00 necessários à passagem de ida
(7).
Houve graves carências quantitativas e qualitativas de pessoal docente. Até 1950 todos
os professores das escolas primárias estaduais eram provenientes de Portugal, país que
também lutava por elevar a sua reduzida taxa de alfabetização. Nesse ano o curso do
magistério primário de Goa foi equiparado aos metropolitanos, mas poucos professores
goeses foram para Moçambique. Durante o censo populacional de 1960 apenas novecentos e
quarenta e quatro não-africanos declararam possuir esse curso especializado. As primeiras
escolas do magistério primário comum foram fundadas em L. Marques e Beira apenas em
1962. Mas em 1970/1 quando já tinham vinte e oito elementos no corpo docente, havia nelas
matriculados somente noventa estudantes, predominantemente jovens não-africanas. O pior é
que essas jovens uma vez terminado o seu curso, detestavam ser colocadas nas escolas do
“mato”, sobretudo as situadas nas sedes das isoladas e longínquas circunscrições. Daí
abandonarem a carreira docente e empregarem-se em atividades mais atrativas nos grandes
centros urbanos.
Dos dez mil e quinhentos docentes existentes em todas as escolas do ensino primário
em 1973, nada menos do que nove mil eram professores de posto escolar admitidos, sem
grandes exigências, pelas missões católicas (10). E dizemos sem grandes exigências porque o
número dos que concluíam o curso do magistério de posto escolar nunca ultrapassou os cento
e quarenta por ano. Em 1969, quando recolhemos as últimas estatísticas fidedignas, tinham-no
concluído cento e dezassete estudantes africanos.
Só após o profundo choque psicológico de 1961, decidiram os responsáveis tomar
algumas medidas que facilitassem a ascensão dos africanos. Subiu, sem dúvida, o número de
matriculados. Por outro lado, como as atividades privadas pagavam salários mais elevados e
absorviam os licenciados formados em Portugal, não admira que fossem rareando, até à
extinção, nos liceus e nas escolas técnicas, os tradicionais professores dedicados, austeros e
competentes. Tanto quanto podemos ver, veio a cair-se num extremo contrário, aligeirando-se
cada vez mais os programas e os exames e admitindo-se professores instáveis e algo tolerante.
A instrução primária e mesmo a secundária degradaram-se irremediavelmente. Bastava fazer
um ditado ou uma redação a um desses “diplomados” africanos para se concluir que o seu
português era péssimo e que o seu nível de conhecimentos era bastante reduzido. Não admira
que fossem rejeitados pelas atividades privadas e que procurassem desesperadamente
empregos nos serviços públicos.
Absentismo descontrolado
A idade máxima legalmente fixada para admissão ao ensino secundário constituía outra
fonte de dificuldades. Não tendo o português como língua doméstica (o que diminuía o
aproveitamento) não sendo guiados por motivações precoces e também porque não sofriam
fortes pressões familiares para iniciarem os seus estudos aos seis anos, acontecia que a
maioria dos africanos terminava a 4ª classe depois de haverem completado os 14 anos de
idade, o que automaticamente os afastava da possibilidade de se matricularem no “ciclo
preparatório” ou no “primeiro ciclo”. No seu recente livro, Serapião e El-Khawas mostraram-
se mal informados sobre os pormenores deste mecanismo e por isso prestaram a seguinte
explicação errónea (11):
Mesmo que terminassem a 4ª classe antes dos 14 anos de idade, mesmo que vivessem
em centros urbanos com liceus e escolas técnicas, mesmo que conseguissem vencer as
barreiras burocráticas e pedagógicas do exame de admissão, os estudantes africanos não
encontravam ao seu dispor uma intensa e bem planificada ação social escolar que
contrabalançasse os efeitos perniciosos das más condições de saúde, de alimentação, de
habitação e de nível cultural das respetivas famílias. Viviam em promiscuidade nos pardieiros
sobrelotados dos subúrbios, onde era impossível a privacidade e a concentração necessária ao
estudo. A sua alimentação era quantitativa e qualitativamente deficiente. Sofriam de doenças
mal diagnosticadas e tratadas. Na sua maioria não dispunham de eletricidade, estudando à luz
de velas e candeeiros de petróleo ou debaixo dos postes de iluminação pública. Dormiam em
esteiras ou quando muito em catres sujos e desconfortáveis, não raro infestados de parasitas.
Por falta de dinheiro para transportes ou para carreiras regulares de omnibus, eram obrigados
a percorrer grandes distâncias a pé para chegarem às escolas. A carência de vestuário e
calçado decente originava complexos de inferioridade, tanto mais que os não-africanos, assaz
449
cruéis como todos os adolescentes, não lhes poupavam chacotas. Continuavam a dominar
imperfeitamente a língua portuguesa devido à falta de contactos sociais com europeus e ao
persistente uso doméstico das línguas vernáculas.
Também o nível baixo dos salários ganhos pelos familiares de quem dependiam não
permitia o uso intensivo de explicadores particulares. A tentativa feita por alguns africanos
instruídos para organizarem, em suas casas, aulas privadas de disciplinas do ensino liceal foi
suprimida pelas autoridades ao abrigo duma disposição legal (artº 14 do Dip. Leg. 2.287, de
25/09/1962) que mandava depender de autorização do governador-geral a abertura e o
funcionamento de estabelecimentos do ensino particular.
Compreende-se que, nestas condições deprimentes, fosse de importância fundamental
organizar, a seu favor, uma intensa e bem planificada ação social escolar que fornecesse
bolsas de estudo, assistência médica e farmacêutica e também facultasse refeições, vestuário,
calçado, livros e material escolar. Infelizmente, pouco se fez nesse sentido.
Havia, é certo, várias modalidades tímidas de auxílio aos alunos necessitados mas,
sintomaticamente, todas privilegiavam a Província de L. Marques, onde se concentravam as
sedes dos serviços. Por exemplo, as caixas escolares existentes nas escolas primárias do
Estado forneceram no ano letivo de 1964/5, trezentos e seis mil refeições gratuitas só naquela
Província e seiscentos e vinte mil em todo o restante país, com a agravante do custo unitário
das primeiras ser três vezes superior ao das segundas. Os refeitórios da Mocidade Portuguesa
foram em 1965/6 frequentados por trezentos e cinquenta e um estudantes só no distrito de L.
Marques e duzentos e cinquenta no resto de Moçambique. O Instituto do Trabalho, com um
fundo autónomo e uma verba concedida pelo orçamento geral do Estado, para efeitos
assistenciais, tinha internado em missões católicas em 1968, respetivamente duzentos e
sessenta e seis e duzentos e cinquenta e quatro estudantes nas supracitadas regiões
administrativas. A Comissão de Assistência Pública distribuía assim os subsídios concedidos
a centenas de estudantes pobres:
QUADRO IX
Distrito de
Escalões de ensino Resto da colónia
L. Marques
Pré-primário 216.000$00 399.400$00
Primário 3.857.000$00 1.563.900$00
Secundário 1.017.000$00 83.000$00
O ensino em Portugal era orientado pelo ideal de fornecer ao estudante o que ainda se
designava por “sólida cultura geral”. A preparação iniciava-se logo na escola primária e,
naturalmente, acentuava-se durante os sete anos do liceu. Ao comparar as oito grandes
reformas do ensino secundário que se estenderam de 1927 a 1961 (intercaladas com
numerosas alterações) encontra-se sempre este mesmo objetivo que, segundo alguns autores,
se radica nas tendências elitistas das reduzidas mas poderosas classes da sociedade
portuguesa. Não é este, decerto, o lugar próprio para considerar os méritos ou deméritos de tal
opção. Se chamamos para ela a atenção geral é porque constituía, seguramente, outro dos
451
fatores que dificultavam a ascensão dos estudantes africanos a mais elevados níveis de
instrução.
Logo no final do ensino primário ressaltavam as dificuldades na progressão dos não-
indígenas. Por exemplo, de entre aproximadamente oito mil setecentos e cinquenta alunos que
frequentaram a mítica 4ª classe, durante o ano letivo de 1961/2, apenas algo como três mil e
quinhentos vieram a matricular-se no 1º ano do ensino secundário, o que representa uma taxa
de transição de apenas 36,8%. Mais em pormenor, em 1957 matricularam-se no 1º ano do
Liceu Salazar trezentos e sete estudantes. Pois, em 1962 o 2º Ciclo (5º ano) nos dois liceus
Salazar e D. Ana (feminino) estava reduzido a cento e sessenta e um alunos, isto é, a taxa de
aproveitamento foi limitada a 52,4%. Os programas eram, na verdade, algo excessivos.
Incluíam, obrigatoriamente, disciplinas tão díspares como português, latim, francês, inglês,
filosofia, geografia, história, física, química, zoologia, botânica, matemática (com álgebra e
trigonometria), desenho visual e geométrico, educação moral e cívica, organização política,
educação física e, durante algum tempo, até música. Claro que grande parte da matéria era
dedicada ao conhecimento minucioso de Portugal (nomes das estações da rede ferroviária,
afluentes dos principais rios, etc.). Moçambique, mesmo nas disciplinas de geografia e
história, não merecia mais do que escassas páginas.
Para melhor se compreenderem as dificuldades de aprendizagem de tais programas,
acrescentaremos ainda que apenas 10% dos alunos não-africanos conseguiam concluir o 7º
ano dos liceus sem nunca reprovarem. Claro que, durante décadas, a minoria que conseguia
ultrapassar esta rigorosa seleção era composta quase exclusivamente por europeus, goeses e
alguns mistos e chineses. Dela são produto alguns dos mais importantes e antigos quadros
superiores da Frelimo como Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira, Jorge Rebelo e Mário
Monteiro.
Os docentes que ministravam este tipo de ensino possuíam graus académicos obtidos
em universidades e institutos superiores técnicos portugueses. Gozavam de grande prestígio,
viviam nos melhores bairros, definitivamente fixos com suas famílias e pertenciam à camada
superior da estratificação social. Eram tratados, com devido respeito, por “senhor(a)
doutor(a)”.
Assim sendo, os poucos estudantes africanos estavam, por motivos óbvios, em
manifesta desvantagem para absorver tão extensa variedade de conhecimentos, sobretudo os
ligados às disciplinas mais científicas. Os baixos rendimentos familiares não lhes permitiriam
recorrer a “explicadores” particulares, que, até hoje, continuam merecedores de grande estima
no seio da sociedade portuguesa na Europa. E conforme já referimos, as atividades ligadas ao
ensino privado doméstico necessitavam de prévia autorização do governador-geral, sob pena
de proibição formal e multa de quinhentos a cinco mil escudos. Que algo estava errado no
sistema, é comprovado pelo facto de os supracitados 90% de estudantes que falhavam no
escalão secundário e cujas famílias tinham posses para os manter internados em escolas
secundárias sul-africanas e rodesianas, conseguiam aqui obter, por norma, bons e até ótimos
resultados, apesar das dificuldades linguísticas. É claro que para esse sucesso contribuíram
outros fatores como o regime de internamento, o clima benigno e estimulante, a ausência de
doenças tropicais, o desporto intensivo e talvez a alimentação mais racional. Largos milhares
de Portugueses e outros europeus radicados em Moçambique fizeram os seus estudos na
África do Sul, na Rodésia e até no Malawi e na Suazilândia. A percentagem de mulheres era
entre eles muito elevada. Levantaram-se alguns clamores oficiais contra essa
“desnacionalização” dos estudantes, clamores que tiveram eco nos escritos de responsáveis
entre os quais os diretores dos Serviços de Instrução Braga Paixão (13) e Moreira de Almeida
(14). Porém, o fenómeno prosseguiu bem dentro das décadas sessenta e setenta, naturalmente
452
já com bastantes moçambicanos nas universidades sul-africanas. Entre eles contava-se um
Africano: o futuro Professor Eduardo Mondlane, fundador da Frelimo.
Em 1939 foi tomada uma decisão que, fora de dúvida, prejudicou o aproveitamento
escolar: a alteração temporal do ano letivo. Por estranho que pareça não houve na sua origem
qualquer ordem recebida do Governo de Lisboa, a menos que tenha tido carácter secreto. O
certo é que a proposta foi apresentada ao Conselho Legislativo pelo então diretor dos Serviços
de Instrução, o ultra-nacionalista Braga Paixão. Ela mostra, mais uma vez, como a política de
unidade imperial e os interesses duma minoria estreitamente ligada a Portugal sacrificaram a
esmagadora maioria da população de Moçambique. Vale a pena transcrever o preâmbulo da
lei aprovada sem dificuldades (Dip. Leg. 625, de 14/1/1939):
453
“A portaria nº 133, de 20 fevereiro 1906, determinou que fossem de
férias, nos estabelecimentos de ensino da Colónia, os meses de dezembro e
janeiro, por serem aqueles “em que a ação do clima mais prejudica e dificulta
os trabalhos escolares e em que, segundo as estatísticas, a frequência é sempre
menos numerosa”. Por se julgar que aquele período teria forçosamente de recair
entre dois anos letivos, têm os serviços escolares da Colónia funcionado,
quanto às épocas de abertura e encerramento, em regime que não coincide com
o da Metrópole. São muito grandes os inconvenientes que resultam desta falta
de coincidência, não só para as famílias, muitas vezes sujeitas a deslocação
para a Metrópole ou desta para a Colónia, como também para os estudantes
que, terminados os estudos que nesta se podem seguir, pretendem obter
admissão em cursos superiores. Estes inconvenientes nem sequer são
compensados por melhores condições de rendimento para os serviços escolares
da Colónia, pois os exames e serviços de verificação ou apuramento sofrem por
ser realizados em quadra já imprópria para a sua execução, e o período de
férias, excessivamente extenso (mais de três meses no ensino liceal), entre o
encerramento de um ano letivo e a abertura do seguinte, compromete os hábitos
de trabalho que na escola se devem adquirir.”
Foi crescendo o antagonismo da maioria das nações contra a política colonial do regime
criado e implantado por Salazar e, com ele, o isolamento que penalizou as colónias
portuguesas face às iniciativas promovidas por organizações internacionais como a UNESCO.
Mais uma vez repetimos: os problemas que afligiam Moçambique, longe de serem
específicos estendiam-se à quase totalidade da África subsahariana. Por isso eram debatidos
com minúcia nas reuniões e nos organismos apropriados.
Relembremos, a título de exemplo, o que aconteceu na 32ª Conferência Internacional
sobre Educação que a UNESCO organizou em Genebra em meados de 1970. Cento e
cinquenta ministros, peritos e altos-funcionários reconheceram, pela primeira vez, a
ineficiência, a inadequação às necessidades nacionais e a qualidade inferior do sistema
educativo de tantos países africanos que ansiavam vencer o seu subdesenvolvimento. O
ministro de Educação do Dahomé proferiu então as seguintes afirmações desassombradas: “O
nosso sistema escolar contribuiu para a criação de ociosos, desenraizados e desempregados.
No entanto, reservamos para a educação a quarta parte do nosso orçamento. Em tais
condições valerá a pena continuar a investir quando os resultados se revelam tão
infrutíferos?”. O excessivo desperdício de alunos, por abandono ou repetição, que tanto
contribuía para agravar os custos por unidade, foi definido como um dos sintomas dessa
ineficiência. As suas principais causas assim se resumiam: classes sobrelotadas, escassez de
equipamento escolar, deficiente preparação de professores, ambiente sócio-económico
primitivo, programas abstratos e alheados das realidades quotidianas vividas pela grande
massa dos estudantes.
Pois o distante Ministério do Ultramar e, sobretudo, a sua omnipotente Direção Geral do
Ensino, de quem dependiam todas as decisões básicas, não dava sinais de que a sua política
fosse afetada por esses debates internacionais. Para abandonar este tipo de generalidades e
tratar, com algum desenvolvimento, de problemas bem concretos, o autor selecionou os
seguintes:
a) Reconhecimento do fracasso dos esforços de alfabetização em massa;
b) Criação de uma literatura especialmente dedicada aos alfabetizados;
c) Espécie de ensino a ministrar nas escolas rurais: literário ou agrário;
d) Desinteresse quanto à superioridade pedagógica dos países vizinhos e das igrejas
protestantes.
Razões sólidas levaram a própria UNESCO a mostrar grandes reservas sobre os
programas intensivos de alfabetização em massa. Os peritos reunidos em abril 1964 foram
unânimes em recomendar a alfabetização seletiva, ligada à formação profissional e
beneficiando apenas os grupos sociais que sentissem a efetiva necessidade de escolarização.
Concluíram que, quando as populações vivem em estádios primitivos, onde a comunicação
escrita não tem qualquer sentido ou utilidade, os recém-letrados cedo esquecem aquilo que
lhes foi ensinado com tantos esforços e tantas despesas. Mais tarde, outra conferência
realizada em Teerão homologou esta recomendação após acentuar que a necessidade de
alfabetização se encontrava intimamente associada ao desenvolvimento social e económico e
à criação de novos tipos de relação com o mundo exterior.
Pois em Moçambique, a Igreja Católica, levada quer por zelos de evangelização, quer
pelo cumprimento do Estatuto Missionário vigente desde 1941, cometia com frequência o
desacerto de desbaratar os seus paupérrimos recursos humanos e financeiros criando “postos
455
escolares” em áreas remotas, entre populações hostis e ainda regidas pelos usos e costumes
ancestrais. Ali colocava monitores mal preparados, estranhos à comunidade local, que podiam
minar o prestígio e a autoridade dos chefes tribais e dos próprios guardiães das linhagens
tradicionais. O resultado é que os missionários tentavam pressionar os administradores no
sentido de forçarem as crianças a frequentarem os tais “postos escolares”. O próprio Bispo da
Beira – que se notabilizou pelas suas posições liberais – escreveu numa sua pastoral datada de
1 dezembro 1951 (16):
Por seu lado, o governo central de Lisboa procurou vencer a resistência dos pais
protestantes, e sobretudo islâmicos, publicando em 1953 uma disposição legislativa
esclarecendo que o ensino dito rudimentar se destinava a toda a população escolar com o
estatuto jurídico de “indígena”, sem distinção do credo religioso que professasse (17).
Passo agora a abordar o segundo problema concreto supracitado: a inexistência de uma
literatura especialmente dedicada aos alfabetizados, ignorando as recomendações
internacionais e a prática corrente nos países anglófonos circunvizinhos. É que uma
permanência maior ou menor nos estabelecimentos de ensino bastou a muitos para que
assimilassem a técnica da escrita. Outros puderam ganha-la graças a familiares ou a colegas,
nas suas povoações e nos locais de trabalho, como nos grandes centros mineiros da África do
Sul. Estes elementos mais ou menos integrados na economia monetária e na civilização
tecnológica não só eram alfabetizados como viviam num contexto sócio-económico em que já
reconheciam a utilidade da comunicação escrita. Porém, dadas as suas dificuldades com a
língua portuguesa, escreviam quase sempre no seu próprio idioma vernáculo. Em 1970 o
censo da população encontrou cerca de quatrocentos mil adultos nestas condições.
Argumentando que o uso das línguas vernáculas encorajaria o nacionalismo africano e a
oposição ao domínio colonial, as autoridades competentes nunca consideraram a possibilidade
de publicar uma literatura específica de origem portuguesa. E a Igreja Católica tinha, no seu
seio, missionários que conheciam bem as línguas nativas como demonstram as numerosas
obras léxicas e gramaticais, de elevado nível científico, que foram sendo editadas por
organismos estatais. Esta posição era tanto mais lamentável quanto é certo que os
alfabetizados, em especial os emigrantes trabalhando nos países vizinhos, tinham ao seu
dispor uma grande variedade de obras editadas, a baixo preço, pelas Igrejas Protestantes e até
pelos Serviços de Educação locais. Ao contrário do que supunham algumas autoridades
portuguesas – cujo nível de conhecimentos sobre as populações africanas era bastante
reduzido – essa atividade editorial não tinha qualquer finalidade subversiva. A par de
literatura religiosa era publicada outra com propósitos pedagógicos, educativos, recreativos.
Recolhiam tradições antigas, divulgavam o saber tradicional, transmitiam modernos
conhecimentos técnicos e científicos, acolhiam autores de novelas e de poesias, etc.
456
Gerhard Liesegang mais uma vez se destinguiu com a publicação de um estudo em que
dá conhecimento de alguns desses novelistas, poetas e historiadores que deixaram obras
publicadas e de valor indiscutivel redigidas nas suas línguas maternas (18)
Em relação às línguas e dialetos do sul do Moçambique distinguiram-se as editoras
Lovedale (19), Cleveland, Sasavona e Missão Suiça. No centro de Moçambique, onde
predominava o grupo étnico Chona-Caranga, a literatura em vernáculo era encorajada pelas
autoridades britânicas, seguindo as regras sugeridas pelo Prof. Clement M. Doke, no seu
relatório de 1931 sobre a unificação dos dialetos (20). O norte do então Distrito de Tete era
atingido pela literatura publicada na Zâmbia, estudada por S. Ohannessian e M. E. Kashoki
(21). Quanto ao Chi-Cheua, principal língua falada nessa região, admire-se o facto de a
bibliografia selecionada para edição pela Universidade do Malawi no ano de 1976, mencionar
centenas de obras para celebrar um século de atividade naquele domínio (22). A adoção do
Suahili como língua oficial da Tanzânia, teve decerto alguns efeitos no norte de Moçambique.
Para terminar. O conhecido argumento nacionalista dos que entendiam não ser de
encorajar o emprego escrito de línguas africanas porque se impunha a necessidade de radicar
e expandir o conhecimento do português como “língua franca”, como língua de unidade
nacional, perderia todo o seu valor se uma literatura moçambicana fosse, em colunas ou
páginas paralelas, até mesmo em linhas justapostas, redigida em simultâneo quer em
português quer na língua falada pela população destinatária. Sistema semelhante a este era
usado pelo prestigioso semanário “Brado Africano”, editado na capital, em português e em
Chi-Ronga, mas com uma tiragem de apenas quatro mil e duzentos exemplares. A atitude de
repúdio acima referida era tanto mais incompreensível quando se sabe que nas emissões
radiofónicas fora adotado o sistema paralelo. Desde 1960 começaram a ser organizados
programas especiais dedicados à população africana. Em 1966 foi criado o Serviço de
Radiodifusão e Cinema Educativo, sob o nome de “Voz de Moçambique”. Chegou a emitir
programas em oito línguas. A sua popularidade podia avaliar-se, com a maior objetividade,
pelas quatrocentas a quinhentas cartas que recebia em cada dia, na sua maioria escritas pelos
ouvintes nas suas línguas vernáculas. E isto apesar do número de aparelhos recetores atingir
apenas quarenta mil unidades.
Claro que o eventual desenvolvimento dessa literatura para africanos obrigaria à criação
de organismos especializados semelhantes ao “Tsonga Language Committee”, da África do
Sul, que estabeleceu regras sobre o vocabulário e a ortografia. E também a intervenção de
qualificados linguistas. O único esforço que, nesse sentido, feito em Moçambique, deve-se ás
igrejas cristãs que organizaram nos dias 23 e 24 outubro 1968, em L. Marques, uma “reunião
de estudos para se uniformizar a ortografia da língua ronga”, na qual participaram dois
linguistas da Universidade de Pretória, E. J. M. Baumbach e C. T. D. Marivate, autores da
grande coletânea ilustrada “Xironga Folk-Tales”.
Há mais exemplos da alienação dos responsáveis portugueses face aos debates travados
nas instâncias internacionais sobre as políticas educativas. Tal atitude esteve na origem de
decisões avulsas e titubeantes, cujos resultados nulos agravaram outros desperdícios de
tempo, trabalho e recursos.
Outro debate internacional visava a espécie de ensino a ministrar nas escolas rurais.
Surgiram perspetivas bem diferentes da preferida pelos modelos econométricos baseados no
resultado dos investimentos em formação humana. Concentrava-se, sobretudo, no conteúdo
dos programas educativos e no impacto provocado nas instituições.
Uma corrente de pensamento afirmava que os métodos modernos violentavam as
culturas tradicionais, provocando resultados fracos e contraproducentes. As crianças dos
meios rurais escassos proveitos poderiam beneficiar de programas teóricos concebidos para
meios evoluídos e urbanizados. Na verdade, estavam elas privadas de contactos inter culturais
457
e de condições sócio-económicas que fomentassem o uso intensivo da leitura, da escrita e da
contagem. A agropecuária, a fruticultura, a apicultura, etc., eram e continuariam a ser as
principais fontes de riqueza, oferecendo vastas modalidades de exploração produtiva. Assim
sendo, apenas um ensino técnico-agrário poderia conquistar a colaboração dos estudantes e
das suas famílias. Os programas deveriam organizar-se em torno de pequenos projetos de base
artesanal, comercial e agropecuária, de maneira a facilitar a adaptação dos alunos quer à
economia mercantil e monetária, quer a tecnologias simples mas de assegurada eficiência e
rentabilidade. Os produtos obtidos poderiam ser utilizados no fornecimento de refeições a
alunos e a professores, assim incentivando a frequência, fornecendo complementos
alimentares, constituindo atrativos para o pessoal docente. Seria possível, até mesmo,
sustentar em internato os alunos oriundos das povoações mais longínquas. Os excedentes
poderiam ser vendidos sob forma cooperativa, desse modo treinando os estudantes em
práticas de gestão familiar ou coletiva.
Esta orientação – perfeita em teoria – enfrentava contudo vigorosos refutadores que se
baseavam nos frustrantes resultados alcançados pelas experiências já tentadas em África,
marcadas por fracassos não só generalizados mas também persistentes, o que indiciava causas
profundas e estruturais. As refutações podiam agrupar-se do modo como se segue.
Em primeiro lugar ressaltavam as dificuldades práticas na manutenção duma exploração
agrária. Mesmo que a escola pudesse dispor de uma parcela fértil e irrigada, acontecia que o
gado, as culturas, os celeiros, etc., exigiam atenção permanente, em desacordo com horários
escolares, exames, períodos de férias, etc. Daí tais tarefas de manutenção serem detestadas
pelos estudantes cujo interesse pelas atividades lúdicas se sobrepunha a todas as teorias.
Em segundo lugar, seria impossível encontrar significativo número de professores
estabilizados, dedicados, ruralizados e, por acréscimo, responsabilizados por gestões de tipo
mini-empresarial. O que se encontrara, no terreno, fora uma maioria esmagadora de docentes
que considerava ser ofensivo para o seu prestígio pessoal despender tempo e esforços para
transmitir tal tipo de ensinamentos a crianças e adolescentes.
Em terceiro lugar surgia a argumentação dos que consideravam como erróneo
classificar o ensino primário como antirrural por natureza. É verdade que este, ao defender
valores humanísticos e ao desenvolver aspirações por melhores níveis de vida, desencadeava
em simultâneo frequentes reações de frustração. Mas tal se devia às condições de atraso, de
pauperismo e de doença que afligiam as comunidades rurais. De resto, eram os inevitáveis
contactos com aspetos modernos (p. ex. a bicicleta, a charrua, a carroça) e não as escolas
primárias que forneciam os modelos de referência capazes de levar os estudantes a sonhar
com valores e modos de vida dignos de imitação.
Em quarto lugar, acentuavam os perigos inerentes a uma instrução primária rural, com
programas distintos da sua congénere urbana. Além de prejudicar a ascensão dos alunos ao
ensino secundário, ela bem poderia derrocar qualquer sistema educativo nacional e integrado,
assim aumentando o fosso entre citadinos e camponeses e desenvolvendo ressentimentos entre
estes últimos porque se julgariam vítimas de mais outra intolerável discriminação por lhes ser
ministrado um ensino de segunda ordem, radicalmente diferente do dispensado aos
previlegiados.
Em quinto lugar ressaltava o facto de os próprios diplomados por algumas escolas
agrícolas e pecuárias depararem com insuperáveis dificuldades para dar aplicação prática ao
que lhes havia sido ensinado. Não dispunham de meios para adquirir equipamentos modernos,
nem mesmo os mais simples arados e muito menos quaisquer animais de tiro. Assim, os
problemas não eram propriamente educativos mas sim de ordem económica e administrativa
como os créditos, os transportes, a comercialização, a cooperação, a assistência técnica, a
concessão de terras, etc.
458
Naturalmente que as complexidades e as perplexidades que acabámos de desenvolver
também se refletiram em Moçambique. Entre os tipos de ensino criados em 1930 (rudimentar,
normal e profissional) apenas o último previa que, anexa a cada escola de artes e ofícios,
poderia haver uma pequena granja para promover conhecimentos agrários. Os regulamentos
de 1933/5 aplicados às mesmas escolas previam um dia por semana dedicado ao ensino
agrícola. Os regulamentos do ensino rudimentar aprovados em 1934/5 ordenaram o cultivo de
pequenas hortas para fins pedagógicos. A reorganização feita em 1937 da escola de formação
de professores sita em Alvor determinou que os estudantes deveriam receber ensinamentos
agrícolas e trabalhar na respetiva granja, revertendo para a caixa associativa as receitas
obtidas. As normas do ensino publicadas em 1946 (cinco anos após o Estatuto Missionário)
determinavam que, nos estabelecimentos para formação de professores, se efetuassem sessões
especiais de prática agrícola. Para as escolas rudimentares foram previstos trabalhos agrícolas
adequados à idade dos alunos e às possibilidades locais. Já nos programas ditos de
“adaptação” aprovados em 1961 foram excluídas as referências às granjas. Esta decisão pode
ter origem nas críticas generalizadas contra as culturas obrigatórias organizadas pelos
missionários e até mesmo contra a recoleção de produtos espontâneos como a castanha de
caju com que os mesmos procuravam equilibrar os seus míseros orçamentos. Contudo as
“novas bases” surgidas no ano seguinte, voltaram a mencionar hortas e jardins, devendo o
professor desenvolver a participação ativa dos estudantes na sua manutenção. A reforma do
ensino elementar decretada pelo Governo de Lisboa em 1964 exalta de novo as práticas
agropecuárias na formação de professores de posto escolar. No respetivo regulamento,
publicado cinco anos depois, surgiu uma inovação impraticável: cursos para adultos, com
programas de objetivos diferentes para urbanos e rurais, constando destes últimos quatro
horas e meia por semana dedicadas à educação agropecuária.
Por estes confrangedores exemplos se conclui que as flutuações legislativas seguiam
sempre a reboque das decisões tardias do governo central, obcecado em sustentar o mito da
unificação imperial. Tais decisões dependiam, naturalmente, das limitações de tempo, vontade
e competência de alguns altos-funcionários do Ministério do Ultramar, por vezes
inexperientes ou desatualizados quanto à evolução dos sistemas educativos que vigoravam no
continente africano. Por sua vez a aplicação prática dependia das possibilidades de
cooperação entre os sobrecarregados funcionários locais e os sacrificados missionários
católicos, aos quais se exigia que executassem, na cruel prática quotidiana, a legislação
nefelibata cogitada no remanso dos confortáveis gabinetes lisboetas. A aguda carência de
meios de ação, quer em pessoal qualificado quer em meios materiais, podia minar, de
qualquer maneira, as piedosas intenções de certos dirigentes. O certo é que o ensino primário
reservado aos indígenas – não raro prolongado até à plena adolescência – não conseguiu
fomentar o interesse pela vida agrária. Antes pelo contrário, contribuiu para engrossar o
êxodo, para os centros urbanos, dos mais instruídos e ambiciosos.
Todas estas consequências negativas do isolamento internacional, poderiam ser de
algum modo colmatadas pelo aumento da colaboração pedagógica com os países anglófonos
circunvizinhos. Estes formavam, com Moçambique, uma região com mútuos interesses e
intercâmbios: rede ferroviária ligada aos portos marítimos, em complemento com a rede
rodoviária; movimentos migratórios para os centros de trabalho, sobretudo da indústria
extrativa; sistema fluvial transfronteiriço; importações e exportações de conveniência mútua;
quantidade substancial de visitantes em turismo, em negócios, em busca da assistência médica
especializada, etc. Mas, em variados aspetos melindrosos, aos dirigentes políticos dos
governos lisboetas e aos governadores coloniais sob seu mandato, não convinha encorajar
contactos oficiais e até mesmo oficiosos com os países vizinhos. Talvez por recearem
acusações internacionais de colaboração com regimes apegados a práticas de discriminação
459
racial. Talvez por temerem a disseminação de perigosas ideias de autonomia e até de
“desnacionalização”. Talvez por sofrerem de elementares complexos de inferioridade. Os
próprios funcionários superiores dos Serviços de Educação, não só evitavam contactos
pessoais com os seus congéneres oficiais dos países vizinhos como também assumiam
atitudes altaneiras e autossuficientes, negando que tivessem algo a aprender com experiências
estrangeiras. Estavam, por conseguinte, de acordo com a posição subjacente ao conhecido dito
de Salazar: “orgulhosamente sós!”. É neste contexto que, mais uma vez, se distingue Ávila de
Azevedo ao reconhecer em 1958: “A influência crescente da União da África do Sul… os
investimentos poderosos consagrados ao ensino, a excelência dos seus institutos, a perfeição
dos seus métodos de investigação nas ciências que se ligam com o conhecimento africano,
dão relevo excecional a este país como um dos mais adiantados de todo o Continente” (23).
No que concerne às iniciativas que alguns tentaram lançar visando a aberta discussão e a
rigorosa divulgação do problema educativo dos Africanos, há a acentuar que os dirigentes
políticos do regime as consideravam potencialmente destabilizadoras. Convinha, por
conseguinte, que fossem devidamente expurgadas e, se necessário, sufocadas, sem rebuço,
pelas Comissões de Censura.
Era tão marcada a já referida relutância em efetuar comparações decerto vexatórias, que
ninguém procurou apurar as causas reais dos nitidamente superiores resultados educativos
conseguidos, dentro de Moçambique, pelas missões estrangeiras mantidas por diversos credos
protestantes. Pelo contrário, eram vistas com a maior suspeição pela Igreja Católica. O
cardeal-arcebispo D. Teodósio Clemente de Gouveia chegou a classificá-las como “escalracho
daninho infestando o nacionalismo e o catolicismo português” (24). Todavia, os deveres de
honestidade intelectual levam o autor a reconhecer que existia, eventualmente, liberdade de
expressão em matérias tão melindrosas como aquelas que aqui procura estudar e
compreender. Ficou célebre, em princípios de 1960, uma polémica longa e até violenta
travada entre Manuel Vaz (membro do Conselho Legislativo e proprietário/diretor do
principal quotidiano “Notícias”) e os membros do clero que dirigiam e redigiam os dois
quotidianos católicos: o “Diário”, da Diocese de L. Marques, e o “Diário de Moçambique”, da
Diocese da Beira. A compilação que posteriormente foi publicada por Manuel Vaz é preciosa
por diversas razões, entre as quais avultam as quantificações sobre verbas, pessoal e
educandos (25). Advertiu M. Vaz no seu “esclarecimento inicial: “Temos quase a certeza de
que este artigo não será publicado… não só porque trata de um assunto “tabu” em que
ninguém está autorizado a tocar, mas ainda porque será considerado inconveniente e
antipatriótico…”.
As suas acusações contra o ensino missionário podem assim ser resumidas:
a) Gestão descontrolada dos subsídios estatais;
b) Incompetência do pessoal docente, sobretudo dos monitores;
c) Exames livres da ação fiscalizadora dos Serviços de Educação;
d) Práticas comerciais ilícitas, sobretudo por missionários italianos;
e) Exagero estatístico dos aproveitamentos e das matrículas visando o aumento das
verbas concedidas pelo orçamento do Estado;
f) Imposições feitas sobre os alunos no que respeita aos trabalhos agrícolas. No entanto,
não deixou de reconhecer que aos missionários não eram fornecidos os indispensáveis meios
de trabalho, sendo miseráveis os honorários mensais que recebiam (dois mil escudos para os
portugueses, e mil escudos para os estrangeiros e para as freiras).
As acusações formuladas foram vigorosa e minuciosamente refutadas. Na sequência da
polémica, o próprio cardeal-arcebispo veio a rebater M. Vaz, na sua Pastoral de 13 março
1960, ondel acentuou: “… a realidade, a fatal realidade, é que os Missionários de
460
nacionalidade portuguesa não aparecem em número suficiente… (em) Moçambique trabalham
aqui trezentos e sessenta e quatro missionários dos quais apenas cento e cinquenta são
portugueses… se não há maior número não é por falta de pedidos insistentes junto da
Hierarquia eclesiástica da Metrópole e dos Superiores maiores das Corporações
Missionárias”.
É neste contexto que se pode sinceramente lamentar não haver sido conseguida, entre
1941 e 1974, uma significativa contribuição de missionários e irmãs provenientes do Brasil e
da própria Galiza. Não oferece dúvidas que seria fácil, imediata e relevante a sua participação
na catequese e na educação dos estudantes africanos. Até mesmo porque os galaicos, do
mesmo modo do que os brasileiros, conservam a antiga pronúncia do português com forte
acentuação das vogais, acentuação que também caracteriza as línguas bantos (p. ex. os termos
ingleses steamer e breakfast foram transformados nas palavras graves chitimela e
bulacafessa). Mas para atrair os religiosos brasileiros e galaicos seria indispensável modificar
radicalmente o sistema das remunerações. O próprio cardeal Gouveia, na sua supracitada
Pastoral, reconheceu que os missionários e as irmãs recebiam “salários de miséria e de fome”.
Tratando ainda das facilidades e dificuldades de discussão interna, merece destaque
especial o papel desempenhado pelos institutos de investigação criados pelo Ministério do
Ultramar: a Junta de Investigações do Ultramar e os Institutos de Investigação Científica
próprios de cada colonia. Foi graças à sua existência que os especialistas mais competentes
dos diversos serviços ultramarinos puderam publicar, com inteira liberdade, o resultado das
suas pesquisas. Em matéria de educação africana são exemplares os casos de Ávila de
Azevedo e de Eduardo dos Santos, citados na bibliografia. Os quadros públicos podiam assim
tornear as disposições legais que os impediam de colaborar na imprensa.
Um caso que merece divulgação ocorreu com o Grupo de Trabalho da Promoção Social,
formado pela Comissão de Estudos de Planos de Fomento com o objetivo de basear políticas
que conduzissem à melhoria global, eficiente e harmoniosa das condições de vida da
população. Do relatório que apresentou no final de 1962 constavam propostas inovadoras. Foi
editado pela supracitada Junta, na prestigiada coleção de “Estudos de Ciências Políticas e
Sociais” (27), podendo estar na origem das medidas sobre educação africana tomadas pelo
Dec. nº 45.908, de 1964. Já um segundo relatório contendo quantificações e comparações
mais concretas foi considerado confidencial e, por conseguinte, não passível de publicação
(28). Para finalizar, o presente autor veio a sentir quão pesada e inclemente podia ser a
Censura. Aconteceu que, por sua livre iniciativa, decidiu elaborar uma série de quatro
editoriais sob o título “Moçambique e o Problema da Educação”. Pois os censores só
deixaram publicar o primeiro (29). Este episódio teve a vantagem de fornecer um plausível
pretexto para dar por encerrada uma obscura, fatigante, quixotesca e totalmente inútil
campanha jornalística que se prolongou de abril 1963 a março 1972 e totalizou mais de
duzentos e trinta editoriais, subscritos com iniciais fictícias. Animava-o a esperança quimérica
de alertar a população dita “civilizada” para os problemas que se iam agigantando e que tanto
contribuíram para o descontentamento da população africana.
461
Notas à secção
1- Cinquenta anos após o advento de Salazar, durante o I Congresso Nacional dos Professores que, em
fins de abril 1983, decorreu na Aula Magna da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, foi referido que
Portugal continuava a manter a mais baixa taxa de escolarização da Europa: só 11% do grupo etário dos 3 aos 6
anos frequentava a educação infantil; pouco menos de 20% dos jovens não haviam cumprido a escolaridade
obrigatória de seis anos; 45% deles não chegaram a completar o 9º Ano; apenas 8 a 10% alcançavam o ensino
superior; 25% da população era literalmente analfabeta. Era gritante o insucesso escolar precedente: das 286.007
crianças que em 1969/70 se matricularam na 1ª classe do ensino primário, apenas 39.095 obtiveram, em 1977/8,
aprovação no 9º ano de escolaridade, isto é, meramente 13,5%.
2- Armindo Monteiro (1933), p. 19.
3- Ávila de Azevedo (1958), p. 83.
4- Economic Aspects… (1962), p.740.
5- Relatório apresentado em fins de 1964, pelo Grupo de Trabalho da Promoção Social, formado no
âmbito da Comissão de Estudos de Planos de Fomento.
6- Ávila de Azevedo (1958), p. 65.
7- L. Moreira de Almeida (1951), p. 208.
8- Economic Aspects… (1962), p. 745.
9- Ávila de Azevedo (1958), p.155.
10- A. Marques de Almeida (1973), p.22.
11- L. B. Serapião e M. A. El-Khawas (1979), p.76.
12- A. Rita-Ferreira (1973), p.67/68.
13- Braga Paixão (1948), p.50. Leia-se: “como a realidade faz saltar as teorias pelos ares e até as simples
distrações, a verdade é que boa parte da atual geração escolar virou costas a este lar português e busca em terra
estrangeira a formação útil que a pátria lhe não proporciona”.
14- L. Moreira de Almeida (1951), p.209. Leia-se: “O fenómeno da emigração académica não é sinónimo
ou sequer sintoma de desnacionalização. É resultante de fatores psicológicos de natureza muito diferente e do
condicionalismo da Colónia, que confrontada, por todos os lados, com elementos do Império Britânico, onde por
excelência do clima, riquezas naturais, recursos populacionais e financeiros da respetiva metrópole, se tem
desenvolvido uma obra civilizadora em escala impressionante”.
15- E. Andrade Pires (1966), p.10.
16- S. Soares de Rezende (1952), p.59.
17- Portaria Ministerial nº 14.440/1953.
18- Gerhard Liesegang (1992).
19- J. Peires (1979).
20- Clement M. Doke (1931).
21- S. Ohnnessian e M. E. Kashoki eds. (1978).
22- S. M. Made et alli. (1976).
23- Ávila de Azevedo (1958), p.56.
24- Cardeal D.Teodósio C. de Gouveia (1961).
25- M. Vaz (1965).
26- É extremamente perniciosa para a divulgação e compreensão falada do atual português (até mesmo
para as gerações mais idosas) a tendência que se verifica entre a juventude para a atonia senão eliminação das
vogais (p. ex. escreve-se síntese e pronuncia-se sintz).
27- Promoção Social… (1964).
28- Planificação do Ensino (1964).
29- A. Rita-Ferreira (29 março 1972).
462
Bibliografia
p. 1
Parte I – Documentos
Nota solta 3 – Importância secular da baía de L. Marques (Delagoa Bay) nas trocas
comerciais com o interior p. 267
Bibliografia p. 273
o Restabelecimento da soberania portuguesa nas terras do Maputo p. 274
Bibliografia p. 275
Nota Solta 5 – Tentativas holandesas para captar a produção aurífera do planalto p. 289
Bibliografia p. 294