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* Enquanto conhecimento do passado (cf. passado/presente), a história não teria sido possível
se este último não tivesse deixado traços, monumentos, suportes da memória coletiva.
Dantes, o historiador operava uma escolha entre os vestígios, privilegiando, em detri
mento de outros, certos monumentos, em particular os escritos (cf. oral/escrito, escrita),
nos quais, submetendo-os à crítica histórica, se baseava.
Hoje o método seguido pelos historiadores sofreu uma mudança. Já não se trata de fazer
uma seleção de monumentos, mas sim de considerar os documentos como monumentos,
ou seja, colocá-los em série e tratá-los de modo quantitativo; e, para além disso, inseri-los
nos conjuntos formados por outros monumentos: os vestígios da cultura material, os ob
jetos de coleção (cf, pesos e medidas, moeda), os tipos de habitação, a paisagem, os fósseis
(cf fóssil) e, em particular, os restos ósseos dos animais e dos homens (cf animal, ho
mem). Enfim, tendo em conta o fato de que todo o documento é ao mesmo tempo ver
dadeiro e falso (cf verdadeiro/falso), trata-se de pôr à luz as condições de produção (cf
modo de produção, produção!distribuição) e de mostrar em que medida o documento é
instrumento de um poder (cf poder/autoridade).
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Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas for
mas principais: os monumentos, herança do passado, e os documentos,
escolha do historiador.
A palavra latina monumentum remete à raiz indo-européia men,
que exprime um a das funções essenciais do espírito (mens), a memória
(memini). O verbo monere significa “fazer recordar” , de onde “avisar”,
“ilum inar” , “instruir” . O monumentum é um sinal do passado. Aten
dendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode
evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos.
Q uando Cícero fala dos monumenta huius ordinis (Philippicae, XIV,
41), designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado.
Mas, desde a Antigüidade romana, o monumentum tende a especializar-se
em dois sentidos:
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opor-se à intencionalidade do m onum ento. Além do mais, afirma-se
essencialmente como um testemunho escrito.
N o final do século X IX , Fustel de Coulanges pode ser tom ado
como um testemunho válido de como documento e monumento se trans
form aram para os historiadores. O s dois term os encontram -se, por
exemplo, nas clássicas páginas do primeiro capítulo de T a monarchie
franque” (1888, pp. 29, 30, 33):
Leis, cartas, fórmulas, crônicas e histórias, é preciso ter lido todas es
tas categorias de documentos sem omitir uma única [...]. Encontrare
mos no curso destes estudos várias opiniões modernas que não se
apoiam em documentos, deveremos estar em condições de afirmar
que nao são conformes a nenhum texto, e por esta razão não nos
cremos com o direito de aderir a elas. A leitura dos documentos não
serviria, pois, para nada se fosse feita com idéias preconcebidas [...].
A sua única habilidade (do historiador) consiste em tirar dos docu
mentos tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do
que eles não contêm. O melhor historiador é aquele que se mantém
o mais próximo possível dos textos.
É claro que, para Fustel, como para a maior parte dos historiado
res em bebidos de um espírito positivista, vale “docum ento = texto” . A
esta história, fundada em docum entos que se im põem por si próprios,
Fustel de Coulanges opõe o espírito e a realização da história erudita
alemã, tais com o se exprimem, por exemplo, nos M onumenta Germa-
niae histórica, e marcados, segundo ele, não pelo signo da ciência, mas
pelo do patriotism o.
Pode-se, então, falar de um triunfo do documento sobre o monu
mento. Lento triunfo. Q uando, no final do século XV II, D on Jean Ma-
billon publica o seu D e re diplom ática, fundam ento da história “cien
tífica” que vai perm itir a utilização crítica do documento e de certa
maneira criá-lo, trata-se apenas ainda de monumento.
Q uando, em 1739, o inspetor-geral das finanças do rei da Fran
ça, Silhouette, decide a criação de um depósito-geral de Direito Públi
co e de H istória — que será mais tarde o Gabinete de Chartes — e
confia a direção ao advogado e publicista Jacob-Nicolas M oreau, histo-
riógrafo da França, este escreve: “ Baseado em monumentos do meu
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depósito, empreendí a história da nossa constituição e do nosso direito
público [...] o nosso direito público, um a vez fundado em fatos e mo
numentos reconhecidos, estará mais do que nunca ao abrigo das vicissi-
tudes que produz o arbítrio [...]” (Paris, Bibliothèque N ationale,
Collection M oreau, na 283, fl. 33; cf. Barret-Kriegel, 1978).
O inspetor-geral Bertin, sucessor de Silhouette, escreve ao rei
Luís XV I: “A história e o direito público de um a nação são apoiados
por monumentos” (Collection M oreau, n- 309, fl. 102).
N o seu relatório de 10 de março de 1837 a G uizot, Augustin
Thierry escreve ainda: “Assim, a recolha dos monumentos da história
do Terceiro Estado deve, de certa maneira, fazer vir à luz as raízes mais
profundas e mais vivas da nossa ordem social atual [...]. Porque realiza
um dos votos mais queridos das grandes inteligências históricas do sé
culo X V III [...] que viam nos monumentos da legislação m unicipal a
origem mais segura e mais pura do nosso antigo direito consuetudiná-
rio” (1837, p. 28).
O termo “m onum entos” será ainda correntemente usado no
século X IX para as grandes coleções de docum entos. O caso mais céle
bre é o dos M onumenta Germaniae histórica, publicados a partir de 1826
pela sociedade fundada em 1819 pelo barão Karl von Stein, para a pu
blicação das fontes da Idade M édia alemã.
Em Turim, aparecem, a partir de 1836, por decisão do rei Carlos
Alberto, os M onum enta h istoriaepatriae. Assim , pouco a pouco, são
editadas nas diversas províncias italianas coleções de M onum enti: os
M onum enti d i storia p a tria delle provinde modenesi, a partir de 1861;
os M onum enti istorici pertinenti alie provinde delia Rom agna, a partir
de 1869; os M onum enti storici, publicados pela Regia D eputazione
Veneziana de História-Pátria a partir de 1876; os M onumenti storici pu
blicados pela Società N apolitana de História-Pátria a partir de 1881.
Todavia, destacando-se de um conjunto de palavras {provas, ins
trumentos, testemunhos etc.) — que tentavam reunir os novos métodos
da m em ória coletiva e da história ao desejo de, por um lado, provar
cientificamente (o bolandista Daniel van Papenbroeck, pioneiro, como
M abillon, da crítica histórica na segunda metade do século XV II, reco
mendara o estudo das velhas cartas a d historicam probationem , “com os
fins de prova histórica”); por outro lado, à renovação da legislação e do
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direito (‘ esta ciência”, escrevia Bertin a Luís XV I [Collection M oreau,
n- 309, fl. 102], “depende daquela da legislação”) — , o termo “docu
m ento” colocar-se-ia em primeiro plano.
A partir de 1791, Bréquigny e La Porte du Theil publicam o pri
meiro volume dos D iplom ata>chartae, epistolae, leges aliaque instrumenta
a d res Gallo-Francicas spectantia...
Chateaubriand, profeta de um a nova história, escreverá no pre
fácio dos Etudes historiques (1831): “ O s antigos conceberam a história
de m odo diferente do nosso [...] libertos daquelas imensas leituras sob
as quais tanto a imaginação com o a m em ória são esmagadas, tinham
poucos documentos para consultar [...]” (apud Ehrard e Palmade, 1964,
p. 190).
N a França, aparece, a partir de 1835, a Collection de documents
inédits sur Vhistoire de France. O s Docum enti d i storia italian a são pu
blicados pela Regia D eputazione sugli Studi di Storia Patria per le
Provincie di Toscana, delPUmbria e delle Marche desde 1867; os Docu
menti p er Service alia storia d i Sicilia, publicados pela Società Siciliana
per la Storia Patria, aparecem a partir de 1876. N a historiografia institu
cional de todos os países europeus encontram-se, no século X V III, as
duas séries paralelas de monumentos (em declínio) e de documentos (em
plena ascensão).
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docum entos”; e precisava: “Pois, se dos fatos históricos não foram regis
trados documentos, ou gravados ou escritos, aqueles fatos perderam-se”
(1971, p. 17).
Todavia, se a concepção de documento nao se modificava, o seu
conteúdo enriquecia-se e ampliava-se. Em princípio, o docum ento era,
sobretudo, um texto. N o entanto, o próprio Fustel de Coulanges sentia
o limite desta definição. N um a lição pronunciada em 1862 na Univer
sidade de Estrasburgo, declarara: “Onde faltam os monumentos escritos,
deve a história dem andar às línguas mortas os seus segredos [...]. Deve
escrutar as fábulas, os m itos, os sonhos da im aginação [...]. O nde o
hom em passou, onde deixou qualquer marca da sua vida e da sua inte
ligência, aí está a história” (ed. 1901, p. 245).
O s fundadores da revista A nnales d yH istoire Econom ique et
Sociale (1929), pioneiros de um a história nova, insistiram sobre a ne
cessidade de am pliar a noção de docum ento:
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Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico
corresponde um tipo único de documentos, especializado para esse
uso [...]. Que historiador das religiões se contentaria em consul
tar os tratados de teologia ou as recolhas de hinos? Ele sabe bem
que sobre as crenças e as sensibilidades mortas, as imagens pinta
das ou esculpidas nas paredes dos santuários, a disposição e o
mobiliário das tumbas, têm pelo menos tanto para lhe dizer quan
to muitos escritos.
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D a confluência das duas revoluções nasce a história quantitativa,
que põe novamente em causa a noção de docum ento e o seu tratamen
to. D esejada em primeiro lugar pelos historiadores da economia, obri
gados a tomar com o docum entos de base séries de cifras ou de dados
numéricos (cf. Marczewski, 1961), introduzida depois na arqueologia
(cf. Gardin, 1971) e na história da cultura (cf., por exemplo, Furet e
Ozouf, 1977), a história quantitativa altera o estatuto do documento.
“O docum ento, o dado já não existem por si próprios, mas em relação
com a série que os precede e os segue, é o seu valor relativo que se torna
objetivo e não a sua relação com um a inapreensível substância real”
(Furet, 1974, pp. 47-48).
A intervenção do computador comporta uma nova periodização
na m em ória histórica: produz-se, a partir de então, um corte funda
mental no momento em que se podem constituir séries (sobre a história
serial entre os seus numerosos escritos, cf. Chaunu, 1972); tem-se, do
ravante, uma idade pré-estatística e uma idade quantitativa. Mas é neces
sário observar que, se este corte corresponde a um grau de diferença das
sociedades históricas em relação ao recenseamento — indiferença ou
desconfiança em relação ao número para aquém, atenção sempre maior
e mais precisa para além — , a história quantitativa, como o demonstra
a arqueologia, pode transpor alegremente esta fronteira histórica. Por
que a história quantitativa não é nem uma revolução puramente tecno
lógica, nem a conseqüência de uma emergência do número na história.
N ão é im posta nem pelo com putador nem pelo passado. C om o ob
serva Glénisson, no século X IX , ao princípio era o docum ento; hoje,
ao princípio é o problem a. É um a “revolução da consciência histo-
riográfica” (Furet, 1974, p. 53).
A revolução docum ental tende tam bém a promover uma nova
unidade de informação: em lugar do fato que conduz ao acontecimento
e a uma história linear, a uma memória progressiva, ela privilegia o dado,
que leva à série e a uma história descontínua. Tornam-se necessários no
vos arquivos, nos quais o primeiro lugar é ocupado pelo corpus, a fita
magnética. A m em ória coletiva valoriza-se, institui-se em patrim ônio
cultural. O novo docum ento é armazenado e m anejado nos bancos de
dados. Ele exige um a nova erudição, que balbucia ainda e que deve res
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ponder simultaneamente às exigências do com putador e à crítica da sua
sempre crescente influência sobre a m em ória coletiva.
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jesuítas, de textos hagiográficos nos Acta Sanctorum . D epois do padre
Héribert Roswey (Rosweyde), morto em 1629, do padre Jean Bolland
(que dará o nome à sociedade dos bolandistas, 1596-1665) e, sobretudo,
do padre Daniel van Papenbroeck (Papebroch), que, no início do tomo
II de abril dos A cta Sanctorum , em 1675, publicou um a dissertação
“sobre o discernimento do verdadeiro e do falso nos velhos pergam i
nhos” (cf. Tessier, 1961), Bloch pôde escrever: “Naquele ano de 1681,
o ano da publicação do D e re diplom ática, um a grande data na história
do espírito hum ano, foi definitivamente fundada a crítica dos docu
mentos de arquivo” (1941-1942).
M as os fundadores dos Annales davam início a um a crítica em
profundidade da noção de docum ento. “ O s historiadores ficam passi
vos, dem asiado freqüentemente, perante os docum entos, e o axiom a
de Fustel (a história faz-se com textos) acaba por se revestir para eles de
um sentido deletério” , afirmava Lucien Febvre (1933, ed. 1953, p. 86),
que lam entava, não já a ausência de sentido crítico nos h isto riado
res, que praticavam, todos eles, mais ou menos, a crítica dos docum en
tos preconizada pela École des Chartes e a história positivista do século
X IX , mas o fato de que se pusesse em discussão o docum ento enquan
to tal. Assim, M arc Bloch teria escrito:
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mentos. O s primeiros respondem a um a intenção de edificação, “no
duplo significado de elevação moral e de construção de um edifício”,
enquanto os segundos respondem “apenas às necessidades da intercomu-
nicação corrente” (1960, p. 8). Confrontando os textos latinos e os tes
temunhos em língua vulgar da época, Paul Zum thor quase identificou
escrito e monumento: “O escrito, o texto é mais freqüentemente monu
mento do que documento”. Mas, mais adiante, admite “que houve monu
mentos ao nível de expressão vulgar e oral” e que existiram “tradições
monumentais orais” (op. cit., p. 6). O que distingue a língua monumen
tal da língua documental é “esta elevação, esta verticalidade” que a gra
m ática confere a um docum ento, transformando-o em m onum ento.
Por isso, a língua vulgar, que provisoriamente permaneceu no plano do
cumental, só pouco a pouco se transformará em “francês m onum ental”
(op. cit., p. 17). Por outro lado, duas observações de Z um thor condu
zem-nos ao centro do problema. “ O futuro ‘francês5 foi identificado
como uma entidade lingüística particular na medida em que passou [...]
conforme as necessidades do verdadeiro direito do rei, ao estado m onu
m ental” . E ainda: “O testemunho dos m onum entos mais numerosos,
mais antigos e mais explícitos revela-nos quanto deve ter influído, na
tom ada de consciência lingüística da alta Idade M édia, a revolução
política que então se operava nos reinos mais orgânicos da Rom ânia:
G ália merovíngia, Espanha visigótica, Lom bardia” (op. cit., p. 13).
Assim, Paul Zum thor descobria o que transforma o docum ento
em m onum ento: a sua utilização pelo poder. M as hesitava em transpor
o fosso que consistia em reconhecer em todo o docum ento um m onu
mento. N ão existe um documento objetivo, inócuo, primário. A ilusão
positivista (que, bem entendido, era produzida por uma sociedade cujos
dom inantes tinham interesse em que assim fosse), a qual via no docu
m ento um a prova de boa-fé, desde que fosse autêntico, pode m uito
bem detectar-se ao nível dos dados mediante os quais a atual revolução
docum ental tende a substituir os docum entos.
A concepção do docum ento/m onum ento é, pois, independente
da revolução docum ental, e entre os seus objetivos está o de evitar que
esta revolução necessária se transforme num derivativo e desvie o histo
riador do seu dever principal: a crítica do docum ento — qualquer que
ele seja — enquanto m onum ento. O docum ento não é qualquer coisa
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que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou
segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do
docum ento enquanto m onum ento permite à m emória coletiva recu-
perá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno co
nhecimento de causa.
Michel Foucault colocou claramente a questão. Antes de mais
nada, ele declara que os problemas da história podem se resumir num a
só palavra: “o questionar do docum ento” (1969, p. 13). E logo recorda:
“ O docum ento não é o feliz instrumento de um a história que seja, em
si própria e com pleno direito, memória: a história é um a certa maneira
de uma sociedade dar estatuto e elaboração a um a massa documental de
que se não separa” (op. cit., p. 13).
Segue-se-lhe a definição de revolução docum ental em profun
didade e da nova tarefa que se apresenta ao historiador:
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uma “completa assunção do discurso considerado nas condições con
cretas em que foi produzido”, que comporta uma pluralidade de leituras,
recorrendo de preferência a análises estruturalistas, M onique Clavel-
Lévèque desmonta, desestrutura o docum ento, pondo em evidência o
seu caráter de monumento. U m a oposição fundamental, antigamente/
hoje, revela que, nas Gálias, tudo corre melhor depois de terem passado
para o benéfico dom ínio de R om a. U m estudo das menções de rios
m ostra que elas estão ligadas a um a estrutura subjacente, um discur
so subterrâneo que, pelas ligações fluviais — vias navegáveis — trans
portes — mercadorias — produções, desenvolvimento, conquista, ten
de na prática a sublinhar também aqui o caráter vantajoso que teve, para
as Gálias, a conquista romana. A descrição do gaulês, definida, sobretudo,
pelas suas relações com a natureza e a guerra, é estruturada de m odo a
fazer ressaltar um a espécie de “bom selvagem” a quem os romanos trou
xeram a civilização, que ele acolhe bem e demonstra aceitar.
Assim, M onique Clavel-Lévèque revela, com a sua análise, que
o docum ento é com posto de elementos que “funcionam como um ‘in
consciente cultural’, que assume um papel decisivo, e intervém para
orientar uma apreensão, um conhecimento, uma apresentação das Gálias
[...] profundam ente baseada nas lutas e nas realidades imperialistas do
m om ento” (1974, p. 90). Tal resultado só pode ser atingido porque a
autora considerou o seu docum ento como um m onum ento cujas con
dições de produção histórica — logo, cuja intencionalidade inconsciente
— era preciso encontrar, através de um a crítica interna.
M as seja-me perm itido, enfim, recordar o apelo a um a revisão
da noção de documento, lançado por Pierre Toubert e por m im no 100°
Congresso Nacional das Sociedades de Cultura Francesa, realizado em
Paris em 1975 (cf. Le G o ff e Toubert, 1977, pp. 38-39).
O medievalista (e, poder-se-ia acrescentar, o historiador) que
procura uma história total deve repensar a própria noção de documento.
A intervenção do historiador que escolhe o docum ento, extraindo-o
do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe
um valor de testem unho que, pelo menos em parte, depende da sua
própria posição na sociedade da sua época e da sua organização mental,
insere-se numa situação inicial que é ainda menos “neutra” do que a sua
intervenção. O docum ento não é inócuo. É, antes de mais nada, o re
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sultado de uma m ontagem , consciente ou inconsciente, da história, da
época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas suces
sivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as
quais continuou a ser m anipulado, ainda que pelo silêncio. O docu
mento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento
(para evocar a etim ologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar
analisados, desm istificando-lhe o seu significado aparente. O docu
mento é m onumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para
im por ao futuro — voluntária ou involuntariamente — determinada
imagem de si próprias. N o limite, não existe um documento-verdade.
Todo o docum ento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel
de ingênuo. Os medievalistas, que tanto trabalharam para construir uma
crítica — sempre útil, decerto — do falso, devem superar esta proble
m ática, porque qualquer docum ento é, ao m esm o tem po, verdadei
ro — incluindo talvez sobretudo os falsos — e falso, porque um m o
numento é em primeiro lugar uma roupagem , uma aparência engana
dora, um a m ontagem . É preciso começar por desmontar, dem olir esta
m ontagem , desestruturar esta construção e analisar as condições de
produção dos docum entos-m onum entos.
Ora, esta desm ontagem do docum ento-m onum ento não pode
fazer-se com o auxílio de um a única crítica histórica. N um a perspectiva
de descobrimento dos falsos, a diplomática, cada vez mais aperfeiçoada,
cada vez mais inteligente, sempre útil, repetimo-lo, é suficiente. M as
não pode — ou, pelo menos, não pode sozinha — explicar o significado
de um docum ento/m onum ento como um cartulário. Produto de um
centro de poder, de um a senhoria quase sempre eclesiástica, um cartu
lário deve ser estudado num a perspectiva econômica, social, jurídica,
política, cultural, espiritual, mas, sobretudo, enquanto instrumento de
poder. Foi dito, justam ente, que um cartulário constituía um conjun
to de provas que é fundam ento de direitos. É preciso ir mais longe. Ele
é o testemunho de um poder polivalente e, ao m esmo tempo, cria-o.
M ais ainda do que estes múltiplos m odos de abordar um docu
mento, para que ele possa contribuir para um a história total, im porta
não isolar os docum entos do conjunto de m onum entos de que fazem
parte. Sem subestimar o texto que exprime a superioridade, não do seu
testem unho, mas do am biente que o produziu, m onopolizando um
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instrumento cultural de grande porte, o medievalista deve recorrer ao
docum ento arqueológico, sobretudo àquele que faz parte do m étodo
estratográfico, ao docum ento iconográfico, às provas que fornecem
métodos avançados, como a história ecológica que faz apelo à fenologia,
à dendrologia, à palinologia: tudo o que permite a descoberta de fenô
menos em situação (a sem ântica histórica, a cartografia, a fotografia
aérea, a foto-interpretaçao) é particularmente útil.
O novo documento, alargado para além dos textos tradicionais,
transformado — sempre que a história quantitativa é possível e pertinente
— em dado, deve ser tratado como um documento/monumento. D e onde
a urgência de elaborar uma nova erudição capaz de transferir este documen
to/monumento do campo da memória para o da ciência histórica.
Referências bibliográficas
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E hrard, J. e Palmade, G . Vhistoire. Paris: Colin, 1964.
540
L e G off, J. e T oubert, P. “Une histoire totale du Moyen Âge est-elle
possible?” , in Actes do 100e Congres N ation al des Sociétés savantes,
Paris, 1975. Paris: Secrétariat d ’Etat aux Universités, 1977.
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