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Documento / Monumento

Jacques Le Goff.
Documento / Monumento
 O texto, um dos capítulos do livro “História e Memória”, de 1988, é uma reflexão
sobre o conceito de documento para a história.

 Para Le Goff, a história – forma científica da memória coletiva – é resultado de


uma construção. Os materiais que a imortalizam são o documento e o
monumento.

 Estes materiais da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os


monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do
historiador” (p.535, 1996).

 Para o autor, “o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas
uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal
do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do
tempo que passa, os historiadores.
Documento / Monumento
 Le Goff desenvolve uma reflexão sobre dois tipos de materiais, seus usos e sua
legitimidade.

 Em princípio, o monumento era visto como um material historiográfico de valor


contestável, sendo caracterizado pelo “poder de perpetuação, voluntária ou
involuntária, das sociedades históricas” (p.536, 1996) por meio de testemunhos, em sua
maioria não escritos.

 Já o documento, testemunho essencialmente escrito, possuía mais legitimidade por ser


relacionado à “neutralidade”, o que o consolidou, inclusive, como prova jurídica ao
longo dos tempos. Para Le Goff, o documento que, para a escola histórica positivista
do fim do século XIX e do início do século XX, será o fundamento do fato histórico,
ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador, parece apresentar-se por si
mesmo como prova histórica.

 A sua objetividade parece opor-se à intencionalidade do monumento” (p.536, 1996). A


diferença entre estes dois materiais, parece ser, assim, a dicotomia entre o testemunho
“parcial” e o “imparcial”.
Documento / Monumento
 Posteriormente, Le Goff desconstrói esta falsa dicotomia,
afirmando que todo documento é monumento, pois todo
documento é fruto de escolhas e intenções de quem o
elabora, sendo assim um ponto de vista parcial da história.
 Para o autor, “o documento não é qualquer coisa que fica
por conta do passado, é um produto da sociedade que o
fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o
poder.
 Só a análise do documento enquanto monumento permite à
memória coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo
cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de
causa” (1996,p.545).
Documento / Monumento
 Para Le Goff, de alguma forma, todo documento é uma mentira, já que é
resultado de uma “montagem, consciente ou inconsciente, da história, da
época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas
durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais
continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio.

 O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento


(para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados
desmistificando-lhe o seu significado aparente.

 O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para


impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si
próprias.

 No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira.


Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo” (p.547-548).
Documento / Monumento
 Le Goff aponta a importância de valorizarmos
todo material histórico como documento,
independente de ser um registro escrito.
 “os vestígios da cultura material, os objetos
coleção (pesos e medidas, moeda), os tipos de
habitação, a paisagem, os fósseis, (cf. fóssil) e,
em particular, os restos ósseos dos animais e
dos homens.”
Documento / Monumento
 Qual foi o impacto deste texto no período em
que foi lançado?
 Foi encarado como uma provocação aos
historiadores?
 Se o documento é mentira, o que é verdade
então?
 Existem várias verdades.
Documento / Monumento
 A partir do conceito documento/monumento,
pode-se dizer que o historiador é, antes de tudo,
sujeito histórico de seu tempo.
 Os documentos históricos são construções de
determinados sujeitos históricos, estes também
construções históricas de determinado campo
social.
 Todo documento/monumento é fruto da
intencionalidade – mais ou menos consciente –
de quem o estuda ou produz.
Documento / Monumento
 Os textos, as ruínas, os artefatos, as atividades humanas são todas
fontes de história. Os seres humanos produzem
documentos/monumentos todo o tempo.

 Devemos prestar atenção ao cotejamento dos documentos e nos


esforçar para não fazer uma leitura positivista: “o documento já diz
tudo”.

 É preciso ler um texto pensando em quem o produz, a partir da


interpretação do historiador, já que todo documento é resultado de
uma interpretação e fruto de outros documentos produzidos.

 Assim, os pesquisadores devem buscar diversas fontes para


ampliar as possíveis interpretações.  
Nascimento da História Científica
 O historiador alemão Leopold Von Ranke (1795 – 1886) lança
os métodos básicos para a tão sonhada “História Científica”.
 Para isso, Ranke se preocupou em identificar as fontes
primárias, realizando, em cima dessas fontes, sua análise
histórica.
 O intelectual alemão utilizou desse recurso para escrever sua
obra sobre os papas.
 Para os historiadores do século XIX, as fontes primárias seriam
apenas documentos escritos. Esses documentos “falariam por si
só”, caberia ao historiador apenas reproduzir esses fatos. Nascia
assim o historicismo alemão, influenciado diretamente pelo
Romantismo.
Nascimento da História Científica
 Apesar de duramente criticados, com certa razão, os historicistas iniciaram um
processo sem fim.

 Trabalharam com uma série de documentos que, infelizmente, não chegaram até
os dias atuais.

 Os achados arqueológicos de Schilemman (Tróia) desapareceram depois da


invasão soviética (Berlim, 1945) como os manuscritos maias “sumiram” do
Museu de Berlim, sendo encontrados décadas mais tarde em Moscou.

 Hoje vivemos algo semelhante. A invasão norte-americana ao Iraque, destruiu, e


continua destruindo, o sítio arqueológico de Mossul (antiga Nínive, capital do
Império Assírio, maior e um dos mais importantes sítios arqueológicos do
Oriente Médio), além do saque no Museu de Bagdá. Documentos arquivísticos e
museológicos que, se não foram destruídos, estão em mãos de colecionadores
particulares, ou seja, inacessíveis para nós, pobres mortais.
O século XX e a nova definição de
documento
 Na França, no período entre guerras, Marc Bloch (fuzilado por ordem
do III Reich, durante a Segunda Guerra) e seu amigo Lucian Febvre,
organizam a chamada Escola dos Annales.

 Ocorre uma verdadeira revolução na maneira de analisar a ciência


histórica.

 Os chamados “grandes homens”, generais, reis, cardeais, outrora


foco principal da historiografia, ficam em um segundo plano.

 A História do cotidiano, dos operários, passa a ser objeto de pesquisa.


O que ajudou, segundo Febvre, na reconstrução desse passado, foi a
ampliação da noção de documento. Antes, apenas fontes escritas,
agora o historiador tem uma vasta gama documental que deve, e
precisa, ser interrogada.
O século XX e a nova definição de
documento
 Lucien Febvre, em sua obra Combates pela História, deixa-nos claro
como realizar este processo:

 ...”A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando eles
existem. Mas ela pode fazer-se, ela deve fazer-se sem documentos
escritos, se os não houver. Com tudo o que o engenho do historiador pode
permitir-lhe utilizar para fabricar o seu mel, à falta de flores habituais.
Portanto, com palavras. Com signos. Com paisagens e telhas. Com
formas de cultivo e ervas daninhas. Com eclipses da lua e cangas de bois.
Com exames de pedras por geólogos e análises de espadas de metal por
químicos. Numa palavra, com tudo aquilo que pertence ao homem,
depende do homem, serve o homem, exprime o homem, significa a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem”...
 ( FEBVRE, 1985, p.249).
Como trabalha o historiador?
 1) Análise prévia da documentação disponível e estabelecimento de um
corpus documental ao qual será aplicado aquele método.

 2) Perceber as características da documentação disponível.

 3) O corpus documental é pertinente às hipóteses que formulou e de que se


pretende levar à análise e a comparação (ou a refutação)?

 4) Análise de conteúdo. A posição do historiador diante de suas fontes é,


quanto a isso, imprecisa e intuitiva de início. Ele sabe em que direção
deseja trabalhar e partindo de suas perguntas vai se orientar, mas ainda
ignora em que consistirá o suporte de sua análise de conteúdo – pelo
menos, não o sabe necessariamente, a não ser que esteja mais ou menos
repetindo, para outro caso e outro corpus, algum tipo de aplicação já bem
conhecido e testado antes.
Como trabalha o historiador?
 A escolha de um corpus documental ao qual aplicar alguma forma
de análise de conteúdo passa por três critérios principais:
 1) o corpus em questão deve ser completo no sentido exigido pela
natureza do tema e das hipóteses;
 2) deve ser uma documentação que, em seus conteúdos e em suas
dimensões, justifique ser pertinente o uso da análise de conteúdo;
 3) deve ser homogênea, segundo princípios que se definam.

 Nesta fase pré-analítica, é frequente que o pesquisador hesite


entre diversos conjuntos documentais, faça tentativas parciais de
aplicação do método para avaliar os resultados assim obtidos e,
em função destes, os que se conseguiriam com uma aplicação
detalhada ou total.
Como trabalha o historiador?
 Ao cabo desta primeira etapa, o pesquisador terá um corpus
documental constituído de um só documento ou, o que é mais
provável, de vários.

 No segundo caso, é preciso poder justificar o fato de considerá-


los como uma espécie de supertexto suficientemente homogêneo
constituído por textos individuais.

 Em certos casos, é possível e necessário distinguir entre o corpus


total e o corpus pertinente: isto é, entre a documentação que
integra o corpus em questão vista em sua totalidade, por um lado,
e, por outro, o recorte parcial dela ao qual, devido aos contornos
da pesquisa (delimitação do tema, objetivos, hipóteses).
Como trabalha o historiador?
 Após essa etapa inicial, o objetivo principal costuma ser: realizar um estudo
sobre a memória coletiva, analisando também “os tipos de materiais”
produzidos pela história científica. Ou seja, a relação documento / monumento.
Le Goff (1996) deixa bem clara a importância de cada um deles: “Os materiais
da memória podem apresentar-se sob duas formas principais: os monumentos,
herança do passado, e os documentos, escolha do historiador”.
 Cabe ao historiador identificar e definir as suas fontes, pois o documento não é
inócuo é, segundo o próprio Le Goff, “...uma montagem consciente ou
inconsciente, da história, da época, das sociedades que o produziram...esforço
para as sociedades históricas para impor ao futuro...determinada imagem de si
próprias...” (LE GOFF).
 É necessário haver uma interdisciplinaridade para ser realizada uma
desmontagem da ambivalência documento/monumento, através do próprio
ambiente que o produziu, auxiliado pela arqueologia, e não baseado em uma
única crítica histórica.
Como trabalha o historiador?
 Ao considerar o processo de construção do
conhecimento histórico exatamente como uma
construção. O historiador não está buscando
nenhuma verdade oculta ou algum fato desconhecido
capaz de alterar o sentido da história até então
conhecido.
 Também não propõe construir um sentido mais
próximo à realidade dos fatos do que os já instituídos.
Mas é necessário ressaltar que a visão processual
acaba por estabelecer um certo monopólio de sentido.
Como trabalha o historiador?
 Ao buscar dar um novo enfoque a esta visão
estática e monolítica da construção histórica, o
historiador pretende inserir o trabalho dentro de
uma concepção que abandone o determinismo,
atingindo assim o movimento inerente ao
desdobramento dos acontecimentos históricos.
 Assim, o que temos em vista é desvendar o
campo de possibilidades e não as relações de
determinação.
 Nesse processo de construção está embutido um diálogo entre o
historiador e o conjunto de valores da época que é objeto de estudo.
Como, por exemplo, os paradigmas historiográficos adotados por Le
Goff (1996), ao analisar as necessidades de interpretar os símbolos
utilizados por Constantino para justificar o seu poder.
 Ele não se utilizou apenas de fontes manuscritas, mas ampliou o
leque empregando documentações não escritas, como ícones da
numismática, possibilitando-nos, portanto, explorar um grande filão,
e avalizando a viabilidade do nosso trabalho.
 Também Duby, no seu artigo “História social e ideologia das
sociedades”, demonstra que o sistema ideológico está atrelado a ideia
de representação que se pretende, globalizante, deformante,
concorrente e estabilizadora.
Referência complementar
 FEBVRE, Lucien. Combates pela História.
2a. ed. Tradução de Leonardo Martinho
Simões e Gisela Moniz. Lisboa: Editorial
Presença Ltda, 1985.

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