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História e documento

Rebeca Gontijo

Na unidade I vimos que o foco dos historiadores no século XIX e início do XX estava
voltado para o exercício de crítica documental com o objetivo de identificar erros e
falsificações na documentação, de modo a distinguir concepções e afirmações presentes
nos documentos. Estas deveriam ser acompanhadas por notas sobre a probabilidade dos
fatos afirmados.

A autenticidade do documento deveria fornecer uma base segura para a avaliação da


probabilidade de um fato ter ocorrido, cujo cálculo correspondia ao exercício de
interpretação realizado pelo historiador. Em outras palavras, a crítica documental não
poderia provar nenhum fato, mas apenas mostrar a probabilidade verdadeira ou falsa da
sua ocorrência.

Nas palavras de Langlois e Seignobos, a crítica documental:

“consiste em decompor os documentos em afirmações, colando em cada uma


delas uma etiqueta reveladora do seu valor provável: afirmação sem valor,
afirmação suspeita (fortemente ou fracamente), afirmação provável ou muito
provável, afirmação de valor desconhecido (...). Limita-se a crítica a destruir
informações ilusórias, nunca lhe é possível criar outras, certas. Os únicos
resultados firmes a que a crítica pode chegar são negativos” (p. 137).

Resumindo, uma vez que os documentos tenham sido localizados e submetidos à crítica
externa e interna, caberia ao historiador extrair informações e estabelecer os fatos com
base no cálculo de probabilidade. O procedimento que permite esse cálculo consiste na
análise da observação de um fato que o documento autêntico apresenta. Isso implica em
investigar se as afirmações do documento são independentes ou se não passam de
reproduções de uma única afirmação. Ou seja, é preciso comparar as afirmações relativas
a um mesmo fato para saber se provêm de observadores diferentes. A regra máxima é a
seguinte: “só são indiscutivelmente independentes as observações contidas em
documentos diferentes, quando feitas por autores diferentes, pertencentes a grupos
diferentes e que tenham operado em condições diferentes” (p. 143).

Para os historiadores metódicos, a exemplo de Langlois e Seignobos, “a probabilidade de


provar um fato histórico depende do número de documentos independentes conservados,
relativos a esse fato” (p. 143). E os fatos eram divididos em dois grupos: “extensos e
duradouros”, os “fatos gerais” (exemplos: usos, doutrinas, instituições, grandes
acontecimentos); ou “breves e limitados”, os “fatos particulares” (“ato momentâneo”).
Submetendo um documento à crítica e à comparação com outros testemunhos, acreditava-
se que seria possível estabelecer os fatos de forma definitiva. Mas quanto mais recuado
no tempo, mais o conhecimento histórico se restringiria a “fatos gerais”, devido à escassez
de documentos.

Além de identificar concordâncias e discordâncias entre os documentos, os historiadores


também analisavam o acordo e o desacordo entre os fatos, a fim de completar ou retificar
conclusões. Supunham que o acordo entre vários fatos, cada qual imperfeitamente
provado pela observação indireta (por meio de documentos), permitiria atingir uma

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espécie de certeza. Nas palavras de Langlois e Seignobos, “em sentido estrito, eles [os
fatos] não provam uns aos outros, mas confirmam-se”. A dúvida sobre o fato se dissiparia
quando eles fossem encadeados, tal como as contas de um colar, estabelecendo um
conjunto de fatos “moralmente certo” (p. 144-145).

Sabemos que, para a historiografia metódica, o documento tem um lugar central. Mas,
como observou Michel Foucault, “o documento não é o feliz instrumento de uma história
que seja, em si própria e com pleno direito, memória: a história é uma certa maneira de
uma sociedade dar estatuto e elaboração a uma massa documental de que se não separa”
(Foucault, [1969] 2002, p. 8).

E a maneira como os historiadores do século XIX lidaram com a massa documental de


que dispunham era orientada pelas preocupações e interesses daquele tempo: os eventos
da história política, bélica, diplomática, administrativa, com foco nas ações dos chamados
“grandes homens”, personagens cujas ações pareciam, aos olhos dos contemporâneos,
capazes de ditar o rumo dos acontecimentos e mover a história.

É interessante considerar a relação entre esse modelo de historiografia e as expectativas


do público de sua época e o ensino da história. Enquanto historiadores estão preocupados
com o estabelecimento definitivo dos fatos, o público está convicto de que existem fatos
e eles devem ser conhecidos. Até hoje, ao afirmar que os alunos não sabem nada de
história, com frequência a expectativa é de que possam aprender fatos e datas. Como
observou Antoine Prost (2008), “para o grande público, a história reduz-se, na maior parte
das vezes, a um esqueleto constituído por fatos datados (...) Assim, aprender história é
conhecer fatos e memorizá-los” (p. 53). E esta seria a principal diferença entre ensino e
pesquisa, segundo Prost: “no ensino, os fatos já estão prontos; na pesquisa, é necessário
fabricá-los” (p. 53).

Ao longo do século XX, o interesse maior por uma história total implicou na revisão da
própria noção de documento. Pra começar, além dos acontecimentos relacionados à vida
política, caberia investigar a dinâmica da vida social, com seus personagens anônimos,
com suas estruturas seculares e conjunturas econômicas. Com isso, o leque documental
foi ampliado. Todo tipo de vestígio da ação humana passou a ser usado como documento
e novos tipos foram constituídos. A pesquisa com séries documentais, a história
quantitativa e o uso dos computadores abriram novas possibilidades, por exemplo. Tudo
isso afetou o questionário do historiador, cada vez mais aberto a novos objetos,
abordagens e problemas. Afetou, também, a concepção de tempo, que se tornou mais
complexa.

Michel Foucault sintetizou essa mudança da seguinte forma:

“Digamos, para resumir, que a história, em sua forma tradicional, se dispunha


a ‘memorizar’ os monumentos do passado, transformá-los em documentos e
fazer falarem estes rastros que, por si mesmos, raramente são verbais, ou que
dizem em silêncio coisa diversa do que dizem; em nossos dias, a história é o
que transforma os documentos em monumentos e que desdobra, onde se
decifravam rastros deixados pelos homens, onde tentava reconhecer em
profundida o que tinham sido, uma massa de elementos que devem ser
isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-relacionados, organizados em
conjuntos” (Foucault, [1969] 2002, p. 8).

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Tais mudanças serão estudadas ao longo do curso de História. Nesta unidade, a proposta
é iniciar uma reflexão sobre história, memória e arquivo.

Como observou Adi Ophir, “as histórias são textos que interpretam os vestígios do
passado a fim de mostrar significados ausentes, as coisas passadas, no interior de uma
estrutura narrativa (histórica)” (Ophir, 2011, p. 75). Constituem, portanto, o domínio do
significado, derivado de ações interpretativas, que buscam compreender e dar sentido ao
que aconteceu.

Já os arquivos reúnem resíduos que a ação humana produziu ao longo do tempo.


Constituem o domínio do significante, dos fenômenos sobre os quais a história é escrita.
Nas palavras de Ophir, “o arquivo se situa no exterior do discurso histórico e se diferencia
dele” (p. 77). É um conjunto de vestígios (ou artefatos) que sobreviveram à passagem do
tempo e que se tornaram objetos arquivísticos por possuírem o poder de significar algo
que existiu ou ocorreu. E, “entre as coisas passadas e o que foi dito acerca delas, o
Arquivo ocupa uma posição intermediária” (p. 79).

Mas o arquivo é mais do que o conjunto de vestígios que tiveram alguma significação,
alguma importância em outros tempos. Ele também reúne tudo o que pode vir a ter
importância e produzir sentido para o historiador contemporâneo. Nesse sentido, o
arquivo não tem limites rígidos. Isso indica que o conteúdo de um arquivo pode variar e,
de fato, varia em função de interesses e preocupações de cada momento. Portanto, aquilo
que o arquivo guardou até aqui não corresponde à totalidade das coisas relevantes, mas
às coisas consideradas relevantes em um determinado contexto. Por isso é possível dizer
que:

“A razão de ser do arquivo pertence simultaneamente ao presente (como traço


presente e como traço que se apresenta) e ao passado (como traço de uma
coisa passada). Por essa razão, o Arquivo não pode ser reduzido à realidade
de fatos antigos: ele contém tudo o que foi salvo do esquecimento, portanto,
bem menos que o que foi esta totalização destotalizada (unicamente seus
vestígios), e bem mais que o que é agora” (p. 79).

Ou seja, o arquivo é menos do que a totalidade das coisas acontecidas no passado. Ao


mesmo tempo, ele é mais do que qualquer discurso é capaz de produzir com base naquilo
que está arquivado. Isso porque os objetos, os vestígios arquivados não são redutíveis ao
que o discurso pode dizer deles. Em outras palavras, o arquivo é sempre pré-existente e
não pode ser esgotado pelo discurso que interpreta seus materiais.

Uma outra concepção de arquivo é proposta por Michel Foucault, para quem o arquivo
não corresponde a um conjunto de todos os textos que uma cultura guardou como
documentos de seu próprio passado ou como testemunho de sua identidade. O arquivo
não equivale às instituições que, em uma dada sociedade, permitem conservar os
discursos (em suas diferentes formas, como textos, imagens e objetos) produzidos ao
longo do tempo.

Para Foucault, o arquivo é aquilo que faz com que as coisas do passado se tornem
significativas, porque o arquivo às insere num jogo de relações discursivas. O arquivo é
aquilo que determina o que pode ser dito e é, também, o que faz com que todas as coisas

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ditas não se acumulem indefinidamente como uma massa amorfa, sem ruptura, nem
desapareçam ao acaso (Foucault, p. 148-149).

Desse modo, o arquivo é sinônimo de episteme, ou seja, é um paradigma geral, de acordo


com o qual todos os saberes se organizam, porque ele estabelece seus limites. Só se pode
falar sobre algo que foi a partir dos vestígios que o arquivo guarda. Nesse sentido, o
arquivo é compreendido como um sistema de práticas discursivas que define o que pode
ser dito em uma época histórica, em uma determinada cultura. É uma concepção mais
abstrata, filosófica, muito diferente daquela que identifica o arquivo como um lugar que
guarda coisas do passado consideradas importantes.

Fato é que os arquivos, como instituições, exercem poder sobre a administração, a lei, os
governos, as corporações, os indivíduos, as instituições de pesquisa e ensino e
estabelecem os limites e possibilidades para a memória coletiva, a identidade nacional, o
conhecimento histórico. Tudo passa pelos arquivos, cujas origens estão relacionadas com
a necessidade de reunir informações, submetidas ao poder dos governos, associações e
indivíduos que os constroem e os mantêm. Os arquivos estão relacionados ao poder, “à
manutenção do poder, ao controle pelo presente daquilo que é, e será, conhecido sobre o
passado e ao poder da lembrança e sobre o esquecimento” (Schwartz e Cook, p. 16).

Como observam Schwartz e Cook, a recordação ou “re-criação” do passado pela pesquisa


histórica por meio de documentos arquivísticos não é simplesmente a recuperação da
informação armazenada. É, sobretudo, um trabalho de construção do sentido do passado.
E esse trabalho de construção é realizado num contexto cultural compartilhado. Os
próprios arquivos são parte desse trabalho de construção e, desse modo, moldam ou
estabelecem limites para a compreensão do passado. A decisão sobre o que preservar e a
escolha do que registrar ocorre em meio a contextos social e historicamente construídos.
Desse modo, tanto a história como o arquivo contribuem para a construção da memória
da sociedade.

Por isso Foucault e outros autores consideram o arquivo como uma metáfora sobre a qual
podem explicar suas perspectivas sobre o conhecimento, a memória e o poder, assim
como sobre a justiça. O controle do arquivo significando o controle da própria sociedade,
determinando os vencedores e os perdedores da história.

Na última unidade retomaremos o tema do arquivo ao refletir sobre a internet e as


novas tecnologias da informação. Leia o artigo de Henry Rousso, O arquivo ou o
indício de uma falta. Em seguida, vá ao fórum e responda o que for pedido.

O que foi dito até aqui está baseado nas seguintes leituras:

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. 1ª. ed. francesa 1969. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2002.
LANGLOIS, Charles Victor e SEIGNOBOS, Charles. Introdução aos estudos históricos.
1ª. ed. francesa 1897. São Paulo: Editora Renascença, 1944.
OPHIR, Adi. Das ordens do arquivo. In: SALOMON, Marlon (org.) Saber dos arquivos.
Goiânia: Edições Ricochete, 2011, p. 73-98.
PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

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SCHWARTZ, Joan e COOK, Terry. Arquivos, documentos e poder - a construção da
memória moderna. Registro - Revista do Arquivo Público Municipal de
Indaiatuba, São Paulo, v. 3, n. 3, 2004, p. 15-30.

Leitura obrigatória:

ROUSSO, Henry. O arquivo ou o indício de uma falta. Estudos Históricos, CPDOC-


FGV, Rio de Janeiro, vol. 17, 1996, p. 85-91.

Leituras complementares:

Caderno didático:

História da história e seus documentos (Aula 2)


O medievo e suas fontes (Aula 8)
Antiquarismo e a inauguração do tratamento documental (Aula 9)

Artigos:

PRIORE, Mary Del. Fazer história, interrogar documentos e fundar a memória: a


importância dos arquivos no cotidiano do historiador. Territórios & Fronteiras,
UFMT, Cuiabá, v. 3, n. 1, jan. / jun. 2002.
SCHWARTZ, Joan M., COOK, Terry. Arquivos, documentos e poder: a construção da
memória moderna. Registro: Revista do Arquivo Público de Indaiatuba,
Indaiatuba, v. 3, n. 3, p. 18-33, jul. 2004. Disponível em
https://www.promemoria.indaiatuba.sp.gov.br/arquivos/galerias/registro_3.pdf

Capítulo de livro:

LE GOFF, Jacques. Documento / monumento. In: _____. História e Memória. Campinas:


Unicamp, 1990.

Livro:

SALOMON, Marlon. O saber dos arquivos. Goiânia: Edições Ricochete, 2011.

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