Interdisciplinaridade: “O historiador do tempo presente atua em um campo em que
as múltiplas especialidades – seja o jornalismo, passando pela economia ou pelo direito – também operam. O trabalho do historiador, nesse caso, não pode prescindir das relações com as outras especialidades ou ciências, pois elas elaboram, cada uma a sua maneira, um tipo de abordagem, recorte e problematização do real (Martino, 2003: 86-87). Numa história do tempo presente, o diálogo da história com diversas disciplinas se faz fundamental, pois proporciona, ao invés de um conhecimento fragmentado, uma análise mais aprofundada e ampla construída a partir de diversos enfoques sobre um determinado assunto” (MÜLLER; IEGELSKI, 2022, p.21) “Uma comemoração põe em prática um trabalho espiritual que mobiliza ao mesmo tempo conhecimentos e sentimentos. Para ser bastante preciso, o ato comemorativo submete os primeiros aos segundos. Nele, o presente estabelece uma relação acessória com o passado que não deve vacilar diante de tal exigência. O passado se transforma em matéria-prima de um presente consumista de “memória”, combustível essencial à sua própria vida, da qual é um dos alimentos mais preciosos. A produção dessa memória evidentemente é um dos fenômenos mais interessantes de estudar, pois conecta as necessidades do presente com uma matéria disponível, é verdade, porém incompleta e sempre a ser remodelada”. (PROCHASSON, 2022, p.214). A prática comemorativa pretende, assim, unir as comunidades, qualquer que seja sua natureza. A investigação de Pierre Nora dizia a respeito exclusivamente à comunidade nacional. Mas outros também estão criando seus próprios “lugares de memória”: comunidades religiosas, culturais, militares, regionais ou “inventadas” pelo compartilhamento de uma experiência. Aí são celebradas datas de fundação, aniversários, muitas tragédias são lembradas, despertando a lembrança das vítimas (PROCHASSON, 2022, p.215). Em termos de religião, o passado mítico das origens, o tempo hierofânico, criado e recriado, age como modelar para as ações no presente pela memória. É no presente que se busca o sentido de mitos e teologias. Como disse François Dosse (2004), “a tradição só vale como tradicionalidade na medida em que afeta o presente” (p. 179). A distância temporal, nesse sentido, torna-se uma vantagem para a “apropriação das diversas estratificações de sentido de acontecimentos passados transformados em acontecimentos (super)significativos. Essa retomada reflexiva do acontecimento supersignificado está na base de uma construção das identidades fundadoras” (DOSSE, 2004, p. 179). Sendo assim, quando práticas contemporâneas encontram eco significativo nessa memória de um tempo primordial, estas passam também à sacralidade e podem mesmo, conforme o grau de significação que se lhes imputa, ser incorporadas à memória e contadas dali por diante como hierofanias (ELIADE, 1992, 1994). (Huff, p.61) Em relação ao candomblé, por exemplo, pode-se perguntar como memórias de um tempo mítico africano, original e puro, são construídas no presente a fim de produzir ao mesmo tempo identidade e legitimidade, tanto interna quanto externamente ao grupo. (idem, 62). Memória: “uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional” (ROUSSO, 2005-2016, p. 94).
Tempo da memória: “Assim, os pontos de partida e as periodizações mais
frequentes deixam de ser centrais na escrita de uma história que percebe seus objetos atravessados pelo tempo da memória. O passado não explica o presente por si só. De sua parte, o presente não apenas se impõe ao passado, mas cabe ainda discutir o quanto este último faz parte do vivido” (AREND; LOHN, 2022, p.117-118). Memória e lugar de evocação da memória: O conteúdo da evocação, aqui, não pode ser separado da materialidade através da qual se objetifica. Se a presentificação é uma experiência temporal que não pode ser dissociada de sua espacialização, temos no templo um monumento que remete a um passado de forma bastante particular. Segundo Catroga (2015), “se todo o monumento é traço do passado, consciente ou involuntariamente deixado, a sua leitura só será re-suscitadora de memórias se não se limitar à perspectiva gnosiológica e fria [...] e se for afagada na partilha com outros.” O templo de Salomão não é, necessariamente, um lugar de memória. Por outro lado, ele parece evocar memória não como traço ou vestígio do que existiu, mas ao impor o diálogo entre futuro e passado através de sua imponência. Ainda que de forma artificial, a edificação parece trazer à tona a necessidade de se narrar, de se “manter e transmitir viva a presença do que se passou” (CATROGA, 2015). (cubas, 2021, p.18). OBS: esse trecho é para me inspirar a escrever sobre evocação do passado no terreiro, na oferenda, no monumento à Iemanjá e etc.
“Uma sociedade como a brasileira, a um só tempo apresentada a partir de imagens
tão díspares como a da modernidade e as do arcaísmo, da violência e da celebração festiva, da pluralidade e do autoritarismo, pressupõe desafios teóricos e metodológicos que não podem ser enfrentados a não ser pela exploração dos temas que afetam diretamente investigadores e investigadoras (Müller & Iegelski, 2018). Mais importante que as operações historiográficas que procuram estabelecer gramáticas disciplinares, são os temas urgentes que desafiam a historiografia a se pronunciar junto aos que vivem os conflitos de um tempo que não mais pode ser abordado a partir de narrativas consideradas apaziguadoras” (AREND; LOHN, 2022, p.124). “[...] a história do tempo presente diz respeito a uma compreensão necessariamente diferente e plural da realidade social. Enquanto é praticamente impossível evitar o envolvimento com objetos e temas tão próximos e candentes, estes são alvo de análises e interpretações que não renunciam ao aprofundamento teórico e ao rigor metodológico. Trata-se, assim, de dar concretude às experiências alvo das investigações, construindo uma historiografia dos vivos e para os vivos. Tem ... (AREND; LOHN, 2022, p.126). “A história do tempo presente é feita justamente por reação aos momentos de crise, numa confrontação com o trágico da história, pela “tensão e por vezes oposição entre a história e a memória, entre o conhecimento e a experiência, entre a distância e a proximidade, entre a objetividade e a subjetividade, entre o pesquisador e a testemunha” (Rousso, 2016, p.16)” (MÜLLER; IEGELSKI, 2022, p. 236). “Periodizar o tempo presente, conferir-lhe uma duração, presentificando-o, faz com que ele se torne mais real, no sentido de que, assim, esse presente ganha espessura, pois se o tempo presente “é mais uma percepção do que uma realidade tangível”, a percepção sobre essa realidade é justamente a fonte de que dispomos, é aquilo “que pode dar sentido aos acontecimentos atravessados” (Rousso, 2016, p.17) (MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, 2022, p.237). “agarrar na sua marcha o tempo que passa, dar uma pausa na imagem para observar a passagem entre o presente e o passado, desacelerar o afastamento e o esquecimento que espreitam toda experiência humana” (ROUSSO, 2016, p. 17) Memória e HTP: Partindo daí, podemos pensar – a respeito das novas formas de experiência religiosa e de sua relação com a memória – que talvez seja necessário considerar que esse passado que se faz presente enquanto elemento de reconhecimento e identificação não é mais um passado-autoridade, alocado em um tempo longínquo (ainda que seguidamente ressignificado), salvaguardado por narrativas apresentadas pelas próprias instituições religiosas. Talvez seja necessário considerar que a memória, nessas experiências contemporâneas, fundamenta-se, a partir do que nos diz Catroga, em um passado reatualizado, em constante disputa e bem menos estável. O “monopólio da fé”, que antes era exercido por aqueles e aquelas que detinham o capital simbólico referente ao campo religioso, referindo-se aqui à leitura de Pierre Bourdieu (2011), agora é difuso e reivindicado em púlpitos que se inauguram, multiplicam e modificam – inclusive no espaço virtual. A ideia de campo, por si só, também é desestabilizada9 . Talvez possamos pensar que a memória com a qual se rompe seja aquela que fora outrora (ainda que apenas pretensamente)10 monopolizada pelas instituições, visto que permanece, acreditamos, como um elemento essencial da identidade, da percepção de si e de outros. (CUBAS, 2021, p.13-14) Como disse Pieter Lagrou (2000), a história do tempo presente é para as ciências históricas o que é a observação participante para a Antropologia. É impossível separar o observador dos observados, uma vez que o próprio historiador é um dos sobreviventes. (HUFF JÚNIOR, 2008, p. 54) Primeiramente, a história do tempo presente é uma história da duração, não do instante, o que permite problematizar historicamente as pesquisas e as distinguir de trabalhos jornalísticos, por exemplo. É, além disso, um tipo de prática que deve estar aberta a mudanças, à acolhida de novos temas e de novas fontes, a fim de poder dar conta da novidade permanente e da dinâmica de seu objeto. E, não menos importante, a história do tempo presente chama a atenção para a importância da contingência, do fato, da surpresa, afastando-se do tipo de historiografia que relata o passado com base em uma racionalidade a ele estranha (HUFF JÚNIOR, 2008, p.54-55). De qualquer forma, é importante perceber a proposta de que o historiador do tempo presente cumpra em seu labor um papel cívico, tenha uma “função social”. A agenda da pesquisa, nesse sentido, não deve ser definida internamente ao meio acadêmico, mas externamente a ele e com o propósito não apenas de compreender o real, mas de transformá-lo. Para Rousso (2000), a postura do intelectual que “de fora” avalia tudo é, assim, substituída por uma interação no debate público em meio a outras vozes e atores, para o qual o historiador pode contribuir com um saber limitado, porém (com)provável (HUFF JÚNIOR, 2008, p.55). Justificativa: Nessa ótica, em um outro caso, a “relevância” do tema a ser problematizado será definida na própria relação do pesquisador, seja ele religioso ou não, com as testemunhas e o evento a ser investigado no campo religioso definido (HUFF JÚNIOR, 2008, p.55). HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico. Campo religioso brasileiro e história do tempo presente. CADERNOS CERU, série 2, v. 19, n. 2, dezembro de 2008. DOSSE, François. História e ciências sociais. Bauru: Edusc, 2004 ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Rio de Janeiro: FGV, 2016. MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022.
MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente:
mutações e reflexões. IN: MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022. p.11- 28.
VENGOA, Hugo Fazio. La historia del tiempo presente: composición,
temporalidad y pertinencia. IN: MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022. p.29-52. AREND, Silvia Maria Fávero. LOHN, Reinaldo Lindolfo. Nas margens do tempo: a contribuição da Udesc para a história do tempo presente no Brasil. IN: MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022. p.107-132. HARTOG, François. Os impasses do presenteísmo. IN: MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022. p.133-142. PROCHASSON, Christophe. O passado no presente: historiografia e política. IN: MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022. p.213-234. MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine. O tempo presente da Nova República: ensaio sobre a história do político brasileiro. IN: MÜLLER, Angélica. IEGELSKI, Francine (org). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022. p.235-264.