Você está na página 1de 12

o MÉDICO TODO-PODEROSO E hesitava em lançar mão dos recursos que lhe parecessem

O PACIENTE PUERIL necessários para manter o poder. Este, bem como o desejo
de tê-Io, ligava-se ao fato de que não se tratava meramente
de um médico, mas de um sacerdote em contato direto
com as forças superiores. Quem se interessa pela História
sabe muito bem que nas situações em que se aceita o
contato direto de alguns com os deuses há sempre o perigo
de o poder ser usado para fins escusos.
Os médicos da Grécia Antiga também eram sacerdo-
tes - mas de Asclépio, deus da cura, que, com o passar do
tempo, foi reduzido a mero santo padroeiro. Os médicos
No começo deste livro abordamos o problema do árabes e judeus da Idade Média seguiram um caminho
poder no serviço social. O obscuro fenômeno do desejo de diverso do sacerdócio e se aproximam bastante de seu
poder é uma coisa óbvia para os que trabalham nessa área. similar contemporâneo. Os médicos da Europa medieval
Mas o problema se apresenta igualmente com a mesma sofreram a influência da alquimia, colocando-se assim
intensidade no campo médico. novamente em contato com o sobrenatural. Já os da Re-
A medicina fez grandes progressos no século passado. nascença voltaram a ser médicos "puros", mais cientistas
Sua capacidade de abrandar o sofrimento e prevenir a do que sacerdotes.
doença aumentou bastante. Muitos males infecciosos, Mesmo nos períodos históricos em que os recursos da
como, por exemplo, a peste, foram praticamente elimi- medicina eram bastante limitados e os médicos já estavam
nados. O uso das vacinas conteve por completo a varíola claramente separados da religião, estes eram quase tão
epidêmica ou endêmica. A tuberculose já se encontra respeitados e temidos quanto os atuais. Parece que
parcialmente sob controle. O progresso técnico na cirurgia médicos e sacerdotes sempre tiveram poder equivalente.
tornou possível as mais extraordinárias operações para Mas não estará então o poder do médico e da medicina em
salvar ou prolongar a vida - e hoje já se pode enxertar geral mais ligado ao poder psicológico do que àquele
braços ou substituir corações. O antigo flagelo da febre baseado no conhecimento científico?
puerperal, que vitimou tantas jovens, é hoje uma raridade. Seria interessante abordar esse tema a partir de um
Na imaginação, pelo menos, vemos a medicina se prisma psicológico. As pessoas com saúde podem viver
expandir até um remoto horizonte. Seus instrumentos e sua uma vida independente, digna e respeitável. Um corpo
infra-estrutura são hoje de tal ordem que se tornou lugar- saudável permite ao indivíduo cuidar de seus interesses de
comum imaginar o médico moderno como alguém dotado modo livre e autônomo, dado que as circunstâncias
de enorme poder, tanto em sentido positivo como exteriores sejam favoráveis. Mas tudo muda quando a
negativo. doença entra em casa. O homem sadio se torna então um
A etnologia nos tem fornecido descrições precisas do paciente, o adulto se transforma em criança. O indivíduo
médico arcaico, ou curandeiro, poderosa figura que nfio até então digno e saudável é subitamente dominado pelo
78 79
medo, torturado pela dor e ameaçado pela morte. Uma o ARQUÉTIPO
estranha forma de regressão se manifesta. O paciente já DE "TERAPEUTA-PACIENTE" E
não é mais senhor de seu corpo, mas sua vítima. A psique,
também, parece transformar-se sob a influência da doença O PODER
física. As mulheres que passaram pela experiência de
cuidar de maridos temporariamente enfermos podem
relatar inúmeros exemplos dessa mudança. O homem
forte, protetor do lar e senhor da casa, torna-se uma
criança a pedir com voz chorosa seu suco de laranja. Os
médicos e os enfermeiros observam a mesma regressão
em pacientes hospitalizados - adultos se tornando infantis,
com uma confiança cega no especialista ao lado de uma O relacionamento entre terapeuta e paciente é tão
recalcitrância igualmente pueril. fundamental quanto aquele entre homem e mulher, pai e
Em situações desse tipo, o médico se torna a grande filho, mãe e filho. É um relacionamento arquetípico, no
fonte de ajuda e esperança. Temido, respeitado, odiado e sentido em que C. G. Jung usou a expressão, ou seja, é
admirado, às vezes chega a parecer um redentor divino. O uma forma inerente e potencial de comportamento
médico pode curar, pode aplacar a dor e tornar suportável humano. Em citações arquetípicas, o indivíduo percebe as
a experiência da morte. Sem ele, o paciente está perdido. coisas e atua em conformidade com um esquema básico
É claro que o médico sabe, em termos puramente que lhe é inerente, mas que em princípio é o mesmo para
intelectuais, que seus pacientes são pessoas como ele. todos os homens.
Mas, para ser honesto, ele deve sempre admitir a impos- Não estará o poder de alguma forma dissimulado no
sibilidade de evitar uma atitude negativa diante de seus arquétipo de terapeuta-paciente? Antes de procurar uma
pacientes. Especialmente para um médico de hospital, os resposta a essa questão, devemos esboçar rapidamente os
pacientes costumam reduzir-se à condição de criaturas vários sentidos que a palavra "poder" pode assumir.
pobres e infelizes, sem nenhum status ou dignidade, uma Num relacionamento humano um sujeito confronta
classe virtualmente distinta de pessoas - insensatas, não outro. Cada um se relaciona com o outro como sujeito.
tomam seus remédios, fazem coisas prejudiciais a si mes- Num relacionamento em que o poder seja o fator
mas, às vezes obedecem e outras não - exatamente como dominante, um tenta transformar o outro em objeto,
as crianças. Estabelece-se assim uma polaridade entre o sujeitando-se este ao primeiro. Isto é, o objeto passa a ser
paciente em regressão, infantil e temeroso, de um lado, e, manipulado pelo sujeito segundo seus próprios interesses.
de outro, o médico superior e orgulhoso, distanciado, mas Esse tipo de situação acentua a noção que o· sujeito tem
talvez ainda friamente cortês. de sua própria importância e isenta o objeto de qualquer
responsabilidade. Aí temos um tipo de poder. Outra
variedade é a "autodeificação". Só Deus, ou os deuses,
tem o direito de dominar os homens. Um ser humano
80 possuído por

81
um "complexo de deus" tenta, como um deus, dominar os de sua posição para exercer poder lembra antes um ri-
outros. Esse tipo de poder tem uma qualidade numinosa e dículo tirano, inflado, pequeno e moralmente deplorável.
é extremamente perigoso tantõ para o dominador quanto Deixa os pacientes esperando horas enquanto bate papo
para o dominado. Os Césares, Napoleão e Hitler são com as enfermeiras, fornece-Ihes o mínimo de
exemplos dessa autodeificação. É esse o tipo de poder que informações sobre sua condição e baixa ordens sem
J acob Burckhardt descreve como sendo mau em si. maiores explicações. Atravessa as alas do hospital como
O moderno culto que envolve o médico é, ao menos um potentado do Oriente inspecionando seus escravos
em parte, uma expressão desse poder. Ao usar o termo indefesos. Tudo isso parece mesquinho, sem nada de
culto, quero dizer a veneração pública e o prestígio socíal muito edificante.
usufruídos pelo médico como alguém que "tem nas mãos a Aqui surge a questão da natureza do poder do médico.
vida e a morte, a doença e a saúde". Tal fato é expresso Saúde e enfermidade, terapeuta e doente, médico e
nos romances sobre médicos, em biografias como a de San paciente são todos motivos arquetípicos. Será que o poder
Michele, em filmes populares e seriados de televisão. faz parte do arquétipo terapeuta-pacíente, como ocorre
Esse culto e o poder que os médicos podem exercer com o de rei-súdito? Se fosse esse o caso, não haveria
em hospitais estão interligados e se reforçam mutuamente. nada de mesquinho ou mau no exercício de tal poder. Um
O médico-chefe ditatorial, cujos estados de espírito tanto arquétipo é um fator primordial, uma realidade
aterrorizam os pacientes, diante de cujos resmungos fundamental, e como tal não pode ser mesquinho por
tremem enfermeiros e residentes, é uma figura bem natureza. Ou será que o tipo de poder acima descrito no
conhecida. Os pacientes não ousam fazer perguntas, com relacionamento entre paciente e médico é exclusivamente
medo de ser tratados bruscamente. No entanto, muitos negativo e destrutivo, ou seja, uma tentativa de
enfermeiros, estudantes e pacientes admiram essas transformar um indivíduo em objeto e de degradar a
demonstrações de poder e respeitam o grande e poderoso humanidade do outro no relacionamento? Não parece
líder quando este, tal como um semideus, atravessa os sustentável supor que nós médicos sejamos a tal ponto
corredores do hospital seguido por um séquito guiados por forças destrutivas. Escolhemos nossa
de assistentes. profissão para poder curar; seria difícil supor que no fundo
Mas há algo de errado aqui. Parece que minha pro- o que nos move são impulsos destrutivos desse tipo. Não
sa está sendo invadida por um toque vulgar. As memórias, estaremos porventura tratando aqui de uma espécie de
os romances médicos e os filmes de televisão sobre a vida autodeificação, na qual um complexo de deus é ativado no
hospitalar são em geral sentimentais, de mau gosto e sem médico? Essa seria uma possibilidade; mas, uma vez mais,
nenhum valor artístico. Há algo de impressionante num a mesquinharia e o mau gosto do fenômeno não parecem
político que exerce seu poder, num líder sindical capaz de conduzir a essa suposição. Tentar tornar-se como Deus é
paralisar toda uma indústria com uma só palavra, num uma grande transgressão, mas sem nada de mesquinho.
executivo cujas decisões afetam a vida de milhares de Não obstante, a mesquinhez associada ao poder do médico
pessoas, num general de quem podem depender a vida e a não pode ser mera questão de acaso. Os vários tipos de
morte de batalhões inteiros. Mas um médico que abusa poder que descrevi não parecem se aplicar ao problema
aqui examinado.
82
83
A CISÃO DO ARQUÉTIPO inata desse tipo de comportamento na situação mãe-filho,
o que misteriosamente deve significar que o filho já está
contido dentro da mãe, um pouco no sentido da frase de
Goethe: "Se nosso olho não contivesse o poder do sol,
como poderia percebê-Io?" Talvez não devêssemos falar
de um arquétipo materno, paterno ou do filho, mas de um
arquétipo mãe-filho ou pai-filho.
Levando adiante essa linha de raciocínio, eu sugeriria
que não há um arquétipo especial de terapeuta ou pa-
ciente. Ambos são aspectos da mesma coisa. Quando uma
pessoa fica doente, o arquétipo de terapeuta-paciente se
A literatura psicológica tem tratado de uma grande constela. O enfermo procura um terapeuta exterior, mas ao
variedade de aspectos do arquétipo. Um deles, porém, mesmo tempo se consteI a o terapeuta intrapsíquico.
parece ter sido relativamente ignorado. Para evitar mal- Costumamos nos referir a este, no paciente, como "fator
entendidos, tentarei novamente examinar a natureza do de cura". É o médico dentro do próprio paciente - e sua
arquétipo, desta vez em termos distintos dos até aqui ação terapêutica é tão importante quanto a do profissional
usados. que entra em cena externamente. As feridas não se fecham
O arquétipo pode ser definido como uma potencia- nem as doenças se vão sem a ação curativa do terapeuta
lidade inata de comportamento. O ser humano reage interior. Costuma-se dizer que um paciente "não quer ficar
arquetipicamente a alguém ou a algo quando se defronta bom". Mas como esse não-querer-sarar não se refere à
com uma situação típica e recorrente. A mãe e o pai vontade do ego, seria mais apropriado dizer:
reagem arquetipicamente ao filho ou filha, o homem reage "Seu terapeuta interior parece fraco".
arquetipicamente à mulher etc. Nesse sentido, certos Muitas doenças requerem os serviços de um médico
arquétipos têm dois pólos, por assim dizer. Sua situação externo. Mas este não será suficiente sem o auxílio do
básica contém uma polaridade. terapeuta interior. O médico pode fechar o corte - mas
Não sabemos, é claro, o modo preciso como se ori- algo no corpo e na psique do paciente deve cooperar para
ginou o comportamento arquetípico. Talvez um dos pólos que a enfermidade seja vencida.
do arquétipo se localizasse originalmente no indivíduo e o Não é difícil imaginar o fator curativo no paciente.
outro fora dele, em seu semelhante. Mas, na psicologia Mas e o médico? Defrontamo-nos aqui com o arquétipo
humana que conhecemos, ambos os pólos estão contidos do "terapeuta ferido". Quíron, o centauro que ensinou a
no mesmo indivíduo. Nascemos todos com ambos os pólos Asclépio a arte da cura, tinha feridas incuráveis. Na Babi-
dentro de nós. Se um pólo se constela no mundo exterior, o lônia havia uma divindade canina com dois nomes: Gula,
outro, oposto e interior, também se constela. morte, e Labartu, cura. Na índia, Kali é a deusa da varíola
A criança desperta na mãe o comportamento ma- e ao mesmo tempo é quem a cura. Aimagem mitológica
ternal. Há, na psique de cada mulher, a potencialidade do terapeuta ferido é bastante difundida.
Psicologicamente,
84
85
isso significa não só que o paciente tem um médico dentro No médico, a repressão de um pólo do arquétipo leva
dele, mas também que há um paciente no médico. à situação contrária, fazendo-o crer que fraqueza, doença
Iniciamos este capítulo com o problema do poder. e ferida são coisas que nada têm a ver consigo. Sente que
Vejamos se o conceito de cisão do arquétipo pode es- é o terapeuta forte; que as feridas só existem no paciente e
clarecer melhor essa questão. Não é fácil, para a psique que ele próprio está protegido; que as pobres criaturas
humana, suportar a tensão das polaridades. O ego ama a conhecidas como pacientes vivem num mundo
clareza e tenta sempre erradicar a ambivalência interior. completamente distinto do seu. Ao se tornar um médico
Essa necessidade de situações inequívocas pode acarretar livre de ferimentos, já não pode constelar o fator de cura
uma cisão dos pólos arquetípicos. Um pólo poderá ser em seus pacientes. Torna-se exclusivamente o médico - e
reprimido e continuar operando no inconsciente, assim seus pacientes são exclusivamente pacientes. Já não
possivelmente causando distúrbios psíquicos. A parte é mais o médico ferido que confronta os doentes e neles
reprimida do arquétipo poderá ser projetada sobre o mundo constela o fator curativo interior. A situação fica
exterior. O paciente, por exemplo, talvez projete seu absolutamente clara: de um lado está o médico, forte e
terapeuta interior sobre o médico que o trata e este poderá saudável, e de outro o paciente, fraco e enfermo.
projetar suas próprias feridas sobre o paciente. Essa
projeção de um pólo do arquétipo sobre o mundo exterior
poderá proporcionar uma satisfação momentânea. Mas, a
longo prazo, indica que o processo psíquico está
bloqueado. Numa situação desse tipo, o paciente, por
exemplo, poderá deixar de se preocupar com sua própria
cura, esperando que o médico, os enfermeiros e o hospital
lhe tragam a recuperação, ao mesmo tempo que abre mão
de qualquer responsabilidade. Consciente e
inconscientemente, começa a depender completamente do
médico para melhorar, colocando nas mãos deste seu
próprio fator curativo e deixando o barco correr. Esse tipo
de paciente poderá ou não cumprir as ordens do médico,
tomar seus remédios ou jogá-Ios na pia. Os ambulatórios
estão repletos de pacientes assim - sempre sofrendo de algo
e sem demonstrar o menor sinal de um desejo de saúde, ou
do que poderíamos denominar consciência de saúde.
Seguem as sugestões do médico ou se rebelam contra elas,
como crianças de escola para quem só o professor deve ser
ativo no processo de aprendizado.

86
87
o O FECHAMENTO DA CISÃO
POR MEIO DO PODER
F
E
C
H
A
M
E Há um tipo de médico que escolhe sua profissão
Ndevido a uma profunda necessidade interior. Mesmo
Treprimindo um pólo do arquétipo, projetando a doença
Ocompletamente sobre o paciente e identificando-se ex-
clusivamente com o pólo da saúde, ele não consegue se
desfazer por completo desses aspectos. Os pacientes, as
Ddoenças e as feridas não o deixam em paz; quer queira,
Aquer não, isso tudo lhe pertence. Um arquétipo cindido
procura sempre recuperar sua polaridade original.
A reunificação com o aspecto "ausente" da polaridade
Cpode ocorrer por intermédio do poder. O médico pode
I transformar seu paciente num objeto de seu impulso de
S poder. Agora fica claro por que o poder exercido pelo
médico causa uma impressão tão mesquinha e vil, visto
Ãque resulta de certa incapacidade psicológica e moral por
Oparte tanto do médico quanto do paciente. O médico já não
é mais capaz de ver suas próprias feridas, seu próprio
Ppotencial de doença; só vê doença no outro. Ao objetivar a
doença, ele distancia-se de sua própria fraqueza, eleva-se e
Odegrada o paciente. Seu poder provém antes de uma
Rincapacidade psicológica do que da força propriamente
dita. Um pólo do arquétipo é reprimido, projetado e fi-
nalmente reunido por meio do poder. O paciente poderá
Mfazer exatamente o mesmo, só que ao reverso.
E
I 88
O
- O
Neste ponto, podemos nos perguntar se há outros
casos em que a polaridade cindida de um arquétipo seja
igualmente reunificada através do poder. Não sei se isso
ocorre com todos os arquétipos, mas parece tratar-se de
um fenômeno bastante freqüente. Por exemplo, quando o
arquétipo mãe-filha se divide, o problema do poder co-
meça a exercer um papel dominante no relacionamento
entre ambas. Em termos práticos, isso quer dizer que a
mãe torna-se exclusivamente mãe, esquecendo que tem
uma filha dentro de si, algo de "filial" nela própria. em
vez disso, procura ser a mãe perfeita, sem fraquezas.
Num caso desses a filha se torna uma filha total,
impotente e completamente dependente da mãe forte, que
a domina por completo. Nada de "maternal" se consteI a
na filha ou de filial na mãe. O relacionamento se dá entre
mãe forte e dominadora e filha dependente e fraca. O
desejo de poder e o estado de sujeição expressam uma
tentativa de reunificar o arquétipo cindido.
Assim, o médico tenta reunir o arquétipo cindido
mediante o poder e o paciente por meio do reconhecimen-
to desse mesmo poder, de sua sujeição ou dependência
infantil. Essa manifestação do poder tem também seu
lado psicologicamente positivo, pois o médico pelo
menos tenta reunir os dois pólos do arquétipo. O médico

I tirânico e mesquinho, a seu modo, se confronta com o


problema fundamental da medicina. Nesse sentido, ele é

t melhor que o terapeutajovial que nem ao menos se


preocupa em dominar seus pacientes. Esse tipo animado e
descontraído ou reprimiu um pólo do arquétipo a tal
ponto que já nem pode projetá-Io, ou então nunca de fato
se preocupou com o problema básico do médico, tendo
sido sua escolha de profissão meramente superficial.
Apesar desse aspecto positivo, no entanto, as conse-
qüências da cisão do arquétipo do médico ferido são em
vários sentidos extremamente danosas tanto para o pa-

89
ciente como para o médico. O doente se torna um eterno psicológicas, os homens e as mulheres que escolhem a
paciente; seu fator interno de cura já não é mais ativado. O carreira médica sentem-se atraídos pelo arquétipo de
médico se torna um indivíduo de visão limitada, que se terapeuta-paciente. Mas, infelizmente, nem todos os que a
julga muito importante, sem nenhuma percepção de seu escolhem são suficientemente fortes para experimentar de
próprio desenvolvimento psicológico. Sua capacidade de modo contínuo os dois extremos da polaridade.
constelar o fator curativo em seus pacientes diminui Para tornar mais concreto o que acabamos de dizer,
sensivelmente e ele já nem acredita mais que sua função consideremos os estudantes de medicina. Durante seus
básica consiste em possibilitar a atuação desse fator no anos de formação, é comum vê-los atravessar uma fase
paciente. Nesse sentido, uma grande distância o separa do durante a qual acreditam sofrer de todas as doenças que
antigo médico grego, o qual sustentava que só o divino estão estudando. Ouvem falar de tuberculose e descobrem
terapeuta pode auxiliar, cabendo ao médico humano em si todos os seus sintomas; encontram pacientes com
meramente facilitar sua aparição. câncer e começam a desconfiar que também sofrem desse
Seria bom esclarecer neste ponto um possível equí- mal. Esse fenômeno psicológico costuma ser encarado
voco. Quando falo em terapeuta ferido, não me refiro ao como neurose. Os médicos mais velhos riem-se de seus
médico que se identifica com um paciente específico. Isso apavorados alunos, lembram ter passado por essa fase e
seria mero sentimentalismo e constituiria apenas uma não dão maior importância ao fato. Mas essa assim cha-
reunificação externa dos pólos do arquétipo. Tal identifica- mada fase neurótica pode ser um ponto crítico para o
estudante. É nesse momento que ele começa a compreen-
ção é antes sinal de fraqueza do ego, um método histérico
der que todos esses males existem nele próprio. É assim
de unir os opostos.
que ele se torna o "terapeuta ferido". Pode ocorrer, porém,
A imagem do terapeuta ferido simboliza uma aguda e
que a carga se torne pesada demais e o pólo da doença
dolorosa consciência da doença como contrapartida da
venha a ser reprimido. Mas, se for capaz de experimentar a
saúde do médico, uma certeza duradoura e penosa quanto à
doença como uma possibilidade existencial nele próprio e
degeneração final do seu próprio corpo e da própria mente.
de integrá-Ia, o estudante transformar-se-á num verdadeiro
Esse tipo de experiência faz do médico mais um irmão do
"terapeuta ferido".
que um mestre do paciente. Todos temos dentro de nós o
Gostaria uma vez mais de lembrar que não se deve
arquétipo de doença-saúde, mas sobre o médico com
concluir que o poder exercido na medicina seja completa-
genuína vocação este exerce um fascínio especial. Não é
mente negativo. É verdade que quanto maior o grau em
por outra razão que escolheu sua profissão. O médico
que se apresentar, menor a chance de que entre em cena o
médio não entra na carreira tendo em vista um modo fácil
verdadeiro terapeuta. Mas repito que é melhor o médico
de conquistar poder e, talvez, ao mesmo tempo auxiliar a
tentar reunir o arquétipo cindido por intermédio do poder
humanidade. Costuma-se acusar os médicos de estarem
do que ignorar por completo o pólo separado.
mais interessados na doença do que na cura. Isso é apenas
Consideremos agora, brevemente, o médico de hoje.
meia verdade. Eles se interessam pelo arquétipo de doença-
A medicina moderna é altamente técnica e especializada.
saúde e desejam conhecê-lo por intermédio da experiência.
Devido a uma grande variedade de razões Nossa fantasia sobre o velho médico do interior, que

90 91
conhece intimamente toda a família do paciente, poderá interior, que depende menos da situação externa do que do
servir como uma instância do arquétipo não-cindido de próprio desenvolvimento psicológico e da capacidade do
terapeuta-paciente. Ele não tinha poder algum, mas à sua médico em questão.
chegada já baixava a febre das crianças. Malvestido e de Para esclarecer ainda mais o que estou tentando dizer,
aparência modesta, costumava ter um fraco pela bebida _ gostaria de mencionar uma imagem adicional, embora
procurando no álcool um meio de evitar a tremenda e consciente de sua eventual impertinência: a imagem de
inevitável tensão de viver em permanente contato com Cristo. Jesus Cristo é uma realidade histórica e religiosa e
ambos os pólos do arquétipo. Mas não tinha manias de portanto só com a maior reserva pode ser concebido como
grandeza - para nós, ele é a imagem de um bom "terapeuta símbolo psicológico. Mas quem melhor do que ele
ferido". expressa o "terapeuta ferido"? Ele curava não só as
As pessoas de temperamento mais conservador poderão doenças da psique, mas também os males existenciais do
acreditar que o médico moderno talvez já não possa mais pecado e da morte.
experimentar o arquétipo inteiro. À primeira vista, ele Cristo foi ferido e carregou os pecados do homem.
parece um técnico especializado inserido na produção Veio para salvar o mundo da morte e do pecado e no
hospitalar em série. Pode parecer que o velho médico é que entanto carregou-os todos e teve de morrer. Sempre
era o "terapeuta ferido" por excelência, enquanto o recusou servir-se do poder, reconhecendo apenas o de
especialista moderno e tecnificado tende a repelir um pólo Deus, seu pai. Ele é, assim, o terapeuta ferido no mais
do arquétipo. Ocorre, porém, que o arquétipo opera de elevado sentido. Em comparação, o médico não passa de
muitas formas. É feito tanto de realidade interior como um anão que se precipita na luta entre vida e morte,
exterior. O curandeiro no meio da selva tinha seus próprios doença e saúde. E que só poderá trabalhar criativamente se
métodos, muito diferentes daqueles usados pelo médico tiver em mente que, a despeito de todo o seu conhecimento
bem-formado da Grécia antiga. O da Idade Média, por sua e de sua técnica, em última análise deve sempre procurar
vez, ministrando poções árabes, trabalhava de modo constelar o fator de cura no paciente. E este só pode ser
inteiramente distinto do médico de família no século XIX, ativado quando o médico contém em si a doença como
a visitar seus clientes de charrete. Durante as duas guerras possibilidade existencial. Ele se torna menos efetivo
mundiais, os cirurgiões tinham sua maneira peculiar de quando tenta unir os dois pólos do arquétipo por meio de
viver o arquétipo, assim como o especialista altamente um poder mesquinho - mas, ainda assim, isso é melhor do
preparado da Clínica Mayo possui seu modo particular de que ignorar ou deixar de compreender essa cisão do
operar. Mas qualquer um desses, não importa quão arquétipo.
divergentes suas técnicas e métodos, ou vive o arquétipo
inteiro ou reprime um de seus pólos. Todos podem ser
terapeutas feridos ou tiranos mesquinhos. O aspecto que se
impõe não depende de ser o profissional um médico de
família do século XIX ou um diretor de hospital altamente
especializado. A cisão do arquétipo é um evento

92
93
MÉDICO, PSICOTERAPEUTA, à "salvação" da psique. Essa posição argumenta que, assim
como o ego e o si-mesmo às vezes se opõem e não visam
ASSISTENTE SOCIAL E PROFESSOR aos mesmos objetivos, da mesma forma a saúde em geral e
a "salvação da alma" nem sempre são idênticas. O
terapeuta com orientação médica procura apenas auxiliar o
paciente a atingir um estado de saúde, enquanto aquele
psicologicamente orientado visa promover o dinamismo
da psique em direção ao si-mesmo e ao encontro de um
sentido.
Essa posição me parece questionável. Todos devem
buscar o assim chamado sentido da vida, podendo ser
Procurei, no capítulo precedente, examinar o problema auxiliados por quem quer que seja. Esta não é uma área
arquetípico da medicina como profissão. O modelo básico para atuação exclusiva de especialistas. Os que se sentem
desta é importante também para certas profissões não- feridos ou sofrem de dificuldades emocionais pedem
médicas que igualmente visam promover o desen- ajuda, desejando alcançar uma cura que lhes permita
volvimento humano. Algumas se afastaram da medicina continuar a se desenvolver segundo suas próprias
sem perder por completo seus traços de origem, enquanto potencialidades. Há pessoas tão fascinadas pela eterna luta
outras têm se voltado cada vez mais para o modelo médico, entre doença e saúde que se sentem convoca das a tomar
mesmo se no passado não tiveram muito contato com ele. parte na batalha, em vez de meramente evitá-Ia ao sofrer
Recentemente, o potencial de cura apresentado pelo passivamente seus efeitos.
trabalho psicoterapêutico e analítico tem levado a certos Assim como o médico, o psicoterapeuta e o analista,
equívocos. Alguns profissionais dessa área sustentam que o assistente social também tem um objetivo terapêutico,
somente os médicos deveriam poder trabalhar como sentindo-se compelido a melhorar e sanar condições
psicoterapeutas. Em outros termos, é como dizer que sociais "patológicas". Assim, apesar de não possuir nem
somente aqueles afetados pelo arquétipo do "terapeuta diploma nem formação em medicina, o assistente social,
ferido" poderiam ser psicoterapeutas. Quando os médicos até certo ponto, compartilha o mesmo destino do médico.
não conseguem aceitar o fato de que sua atitude básica O problema da cisão do arquétipo aparece em todas
possa igualmente ser encontrada em pessoas não formadas essas profissões - seja a polaridade enfermidade-saúde,
em medicina, os psicoterapeutas não-médicos e os analistas consciência-inconsciência, normalidade-patologia social.
começam a se defender. Uma posição corrente é a de que O médico pomposo, mesquinho e ávido de poder, o
estes deveriam apoiar-se num modelo distinto daquele que psicoterapeuta falso profeta e charlatão e o assistente
caracteriza a medicina, visto ser sua preocupação central social inquisidor estão todos inter-relacionados em seu
não a doença e a saúde, mas sim a "alma". Seu alvo complexo arquetípico. Basicamente, todos sentem o
primordial não seria recuperar a saúde do doente, pois sua mesmo fascínio pelo arquétipo de "terapeuta-paciente";
responsabilidade diria respeito antes todos sofrem os efeitos dos dois pólos do arquétipo; todos

94 95
podem funcionar como "terapeuta ferido", ou reprimir com a infantilidade e a falta de autocontrole dos alunos.
uma das polaridades, projetá-Ia e assim entregar-se ao Para esse tipo de professor as crianças são o Outro, aquilo
desejo de poder. que ele próprio não deseja ser jamais; comprazendo-se em
O problema da cisão do arquétipo aparece igualmente exibir seu poder sobre as crianças, ele as atormenta e as
em outro campo de atividade que também se inclui entre mantém na linha por meio de "médias" matemáticas
as profissões relacionadas ao desenvolvimento humano. cuidadosamente calculadas.
Refiro-me aqui ao magistério. A confrontação entre pro- O bom professor sente-se fascinado pelo arquétipo adulto
fessor e aluno apresenta um paralelismo à tensão interior instruído-criança ignorante. Um bom professor deve, por
existente entre os estágios de adulto bem-pensante e assim dizer, estimular o adulto instruído na criança, assim
criança ignorante. Dentro do adulto há uma criança que o como deve o médico ativar o princípio interior de cura no
impele sempre para o novo. O conhecimento do adulto paciente. Mas isso só pode ocorrer se o professor não
torna-o rígido e fechado com respeito à inovação. Para perder contato com sua própria infantilidade. Em termos
permanecer emocionalmente vivo, o adulto deve práticos, isso significa, por exemplo, que, ao ensinar, ele
conservar e cultivar o potencial de vida representado pela não deve perder a espontaneidade, devendo deixar-se
ingênua abertura e pela irracionalidade das experiências conduzir por seus próprios interesses. Seu trabalho consiste
da criança que ainda não sabe nada. O adulto, portanto, não apenas em transmitir conhecimento, mas também em
nunca pára de crescer; para de alguma forma manter a despertar a vontade de aprender nas crianças - o que só será
saúde psíquica, é preciso conservar certa ignorância possível se a criança espontânea e ávida de conhecimento
infantil. estiver viva dentro dele. Infelizmente, os modernos
A opinião pública costuma encarar os professores regimes escolares e planos pedagógicos servemse de todos
como sendo infantis e irrealistas - o que não é comple- os meios para destruir essas qualidades da espontaneidade
tamente destituído de verdade. Num contato mais íntimo e infantil, pois o arquétipo do ensino está cindido. A
prolongado, acaba-se reconhecendo certo grau de infan- infantilidade do professor é reprimida e então projetada
tilidade no seu comportamento. Afinal de contas, deve sobre o aluno. Quando isso ocorre, o processo de
haver algo na infantilidade que os atrai; caso contrário, aprendizado é bloqueado. As crianças continuam sendo
como suportariam trabalhar o tempo todo com crianças? crianças e nelasjá não mais se consteI a o adulto instruído.
Um professor dinâmico deve ter em si certa infantilidade O professor fica cada vez mais sabido e os alunos cada vez
dinâmica, da mesma forma que o médico deve ter um mais ignorantes. Esse tipo de professor, que cindiu e
relacionamento vital com o pólo da doença. afastou o pólo infantil do arquétipo, passará então a
Freqüentemente deparamos com professores que queixar-se de que os alunos de antes tinham muito mais
vontade de aprender. Seu contato com as crianças se dá
parecem ter perdido todos os traços de infantilidade,
apenas por intermédio do poder e da disciplina. Ao mesmo
possuindo ainda menos traços infantis do que o adulto
tempo, ele se torna uma pessoa triste e amarga. O entu-
normal médio. Estes se tornaram "professores e nada
siasmo novo e infantil morreu nele. As crianças são seus
mais" e confrontam crianças ignorantes quase como ini-
inimigos, representando o pólo cindido do arquétipo no
migos. Queixam-se de que estas não sabem nada e não
têm vontade de aprender; seus nervos ficam à flor da pele 97
96
plano interior, cuja reunificação ele tenta promover por
intermédio do poder.
Mas neste livro é o psicoterapeuta que nos interessa
mais de perto. Nossa intenção foi lançar alguma luz sobre
o modelo básico subjacente a seu comportamento. Muitos
problemas fundamentais dessa vocação se aplicam a todas
as profissões que lidam com o desenvolvimento humano,
mas alguns são exclusivamente seus. Para compreendêlos
de modo mais completo, devemos abordar questões
psicológicas. Assim como fizemos com relação à cisão do
arquétipo, chegaremos ao objetivo por vias indiretas. Mas,
para chegar ao ponto que me interessa, devo antes tratar
de algo completamente distinto.

98

Você também pode gostar