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VOCÊ TEM O RELÓGIO, EU TENHO O TEMPO

Em 06/04/2010 ·

Também chamados de "homens-azuis", os tuaregs formam um povo nômade que


vive do pastoreio no deserto do Saara

Traduzi para vocês esta entrevista realizada pelo jornalista catalão Victor M.
Amela com o tuareg Moussa Ag Assarid. A leitura vale a pena.

- Não conheço minha idade: nasci no deserto do Saara, sem endereço nem
documentos…! Nasci num acampamento nômade tuareg entre Timbuctú e Gao, ao
norte do Mali. Fui pastor dos camelos, cabras, cordeiros e vacas que pertenciam a meu
pai. Hoje, estudo Administração na Universidade de Montpellier, no sul da França.
Estou solteiro. Defendo os pastores tuaregs. Sou muçulmano, mas sem fanatismo.

- Que turbante bonito!

- É apenas um tecido fino de algodão: permite cobrir o rosto no deserto quando a areia
se levanta e, ao mesmo tempo, você pode continuar vendo e respirando através dele.

- Sua cor azul é belíssima…

- Ela é a razão pela qual chamam a nós, tuaregs, de homens-azuis: o tecido aos poucos
desbota e tinge nossa pele com tons azulados.

- Como vocês produzem esse intenso azul anil?

- Com uma planta chamada índigo, misturada a outros pigmentos naturais. O azul, para

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os tuaregs, é a cor do mundo.

- Por que?

- É a cor dominante: a do céu, a do teto da nossa casa.

O tuareg Moussa Ag Assarid, na capa do livro que acaba de publicar, na França: "Não
existe engarrafamento no deserto!"

- Quem são os tuaregs?

- Tuareg significa “abandonado”, porque somos um velho povo nômade do deserto, um


povo orgulhoso: “Senhores do Deserto”, nos chamam. Nossa etnia é a amazigh
(berbere), e nosso alfabeto, o tifinagh.

- Quantos vocês são?

- Cerca de três milhões, a maioria ainda nômades. Mas a população diminui… “É


preciso que um povo desapareça para que percebamos que ele existia!” denunciou certa
vez um sábio: eu luto para preservar o meu povo.

- A que ele se dedica?

- Ao pastoreio de rebanhos de camelos, cabras, cordeiros, vacas e asnos, num reino feito
de infinito e de silêncio.

- O deserto é mesmo tão silencioso?

- Quando se está sozinho naquele silêncio, ouve-se as batidas do próprio coração. Não
existe melhor lugar para quem deseja encontrar a si mesmo.

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- Que recordações da sua infância no deserto você conserva com maior nitidez?

- Acordo com o sol. Perto de mim estão as cabras de meu pai. Elas nos dão leite e carne,
nós as conduzimos onde existe água e grama… Assim fez meu bisavô, meu avô e meu
pai… E eu. No mundo não havia nada além disso, e eu era muito feliz assim!

- Bem, isso não parece muito estimulante…

- Mas é, e muito. Aos sete anos de idade, já permitem que você se afaste do
acampamento e descubra o mundo sozinho, e para isso lhe ensinam coisas importantes:
a cheirar o ar, a escutar e ouvir, a aguçar a visão, a se orientar pelo sol e as estrelas… E
a se deixar conduzir pelo camelo; se você se perde, ele lhe conduzirá onde existe água.

- Esse é um conhecimento muito valioso, não há dúvida…

- Lá tudo é simples e profundo. Existem poucas coisas no deserto, e cada uma delas
possui grande valor.

- Assim sendo, este mundo e aquele são bem diferentes, não é mesmo?

- Lá, cada pequena coisa proporciona felicidade. Cada roçar é valioso. Sentimos uma
enorme alegria pelo simples fato de nos tocarmos, de estarmos juntos! Lá ninguém
sonha com chegar a ser, porque cada um já é.

- O que mais o chocou ao chegar pela primeira vez na Europa?

- Ver a gente correr nos aeroportos. No deserto, só corremos quando uma tempestade de
areia se aproxima. Fiquei assustado, é claro…

- Corriam para buscar suas bagagens…

- Sim, devia ser isso. Também vi cartazes mostrando moças nuas: por que essa falta de
respeito para com a mulher?, Perguntei-me… Depois, no Hotel Íbis, vi uma torneira
pela primeira vez em minha vida: vi a água correr… e tive vontade de chorar.

- Que abundancia, que desperdício, não é mesmo?

- Até então, todos os dias da minha vida tinham sido dedicados à procura d’água. Até
hoje, quando vejo as fontes e chafarizes decorativos que existem aqui, sinto uma dor
imensa dentro de mim.

- E por que?

- No começo dos anos 90 houve uma grande seca, os animais morreram, nós
adoecemos… Eu tinha uns doze anos, e minha mãe morreu… Ela era tudo para mim.
Contava-me histórias e ensinou-me a contá-las bem. Ensinou-me a ser eu mesmo.

- Que aconteceu com sua família?

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- Convenci meu pai a deixar-me frequentar a escola. Todos os dias eu caminhava quinze
quilômetros para chegar até ela. Até que um professor arrumou uma cama para eu
dormir, e uma senhora me dava comida quando eu passava em frente à sua casa.
Entendi: era minha mãe que me ajudava…

- De onde veio essa paixão pelos estudos?

- Dois anos antes, o rally Paris-Dakar passou pelo nosso acampamento, e caiu um livro
da mochila de uma jornalista. Eu o apanhei e devolvi a ela. Mas ela me deu o livro de
presente e disse que ele se chamava “O Pequeno Príncipe”. Naquele instante prometi a
mim mesmo que um dia seria capaz de lê-lo…

- E você conseguiu…

- Sim. Foi assim que consegui uma bolsa para estudar na França…

- Um tuareg na universidade!

- Do que mais tenho saudade é do leite de camela. E do fogo de madeira. E de caminhar


descalço sobre a areia tépida. E das estrelas: lá, nós as admiramos todas as noites, e
cada estrela é diversa da outra, como cada cabra é diversa da outra. Aqui, à noite, vocês
ficam vendo televisão.

- Sim. Na sua opinião, qual é a pior coisa que existe aqui?

- A insatisfação. Vocês têm tudo, mas nada lhes é suficiente. Vivem se queixando. Na
França, passam a vida queixando-se. Vocês se acorrentam por toda a vida a um banco
por causa de um empréstimo, e existe essa ânsia de possuir, essa correria, essa pressa.
No deserto não existem engarrafamentos, sabe por que? Porque lá ninguém quer passar
à frente de ninguém!

- Relate um momento de felicidade intensa que você viveu no seu distante deserto.

- Esse momento ali se repete a cada dia, duas horas antes do pôr-do-sol: o calor diminui,
o frio da noite ainda não chegou, homens e animais retornam lentamente ao
acampamento e seus perfis aparecem como recortes contra o céu que se tinge de rosa,
azul, vermelho, amarelo, verde…

- É fascinante. E então…

- Esse é um momento mágico… Entramos todos na tenda e fervemos a água para o chá.
Sentados, em silêncio, escutamos o barulho da água que ferve… A calma toma conta de
nós… As batidas do coração entram no mesmo compasso dos gluglus da fervura…

- Que paz…

- Aqui vocês têm o relógio; lá, temos o tempo.

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Tuareg e seu camelo

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tempo/#ixzz0oneuAvdA

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