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Discutir a natureza das Fontes

Embora na contemporaneidade, a concepção do que é fonte histórica seja bem definida entre
os historiadores e as técnicas do uso das fontes históricas sejam indispensáveis para o
trabalho do historiador, esse fato foi se consolidando de maneira gradual. Cadiou na Obra
“Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa”1 traça uma cronologia deste
desenvolvimento, inicialmente nos pautamos nessa obra para análise desse desenvolvimento.
Para iniciarmos nossa discussão é necessário primeiramente definirmos o conceito de “fonte
histórica”. Segundo José D’Assunção Barros:
“Fonte Histórica” é tudo aquilo que, por ter sido produzido
pelos seres humanos ou por trazer vestígios de suas ações e
interferência, pode nos proporcionar um acesso significativo à
compreensão do passado humano e de seus desdobramentos
no presente. As fontes históricas são as marcas da história.
Quando um indivíduo escreve um texto, ou retorce um galho
de árvore de modo a que este sirva de sinalização aos
caminhantes certa trilha; quando um povo constrói seus
instrumentos e utensílios, mas também nos momentos em que
modifica a paisagem e o meio ambiente à sua volta – em todos
estes momentos, e em muitos outros, os homens e mulheres
deixam vestígios, resíduos ou registros de suas ações no
mundo social e natural (BARROS, 2019, p.15).

Portanto, a fonte histórica é a compreensão do passado por meio de vestígios das ações dos
homens, as fontes são a matéria prima do conhecimento histórico, sem fontes não há como
construir conhecimento histórico. É importante lembrar que as fontes materiais nem sempre
foram consideradas como tal. Como fruto da tradição positivista, no século XIX, a
consolidação dos documentos escritos eram indispensáveis para o fazer historiográfico, e
somente os documentos escritos de esfera estatal e burocráticos. Esta virada de considerar
outros tipos de fonte histórica somente ocorreu no século XX com a consolidação das Escola
dos Annales2. Esta virada é um marco para a historiografia, ao verificar Cadiou vemos que as
fontes da história antiga devido ao degradante estado de conservação causou ao historiador
escassez de fontes, porém hodiernamente “não se escreve mais a história antiga unicamente a
partir de textos literários [...] pois a documentação atual abrange a duas categorias de fonte:
escritas e materiais.” (CADIOU, p.122). Além disso, o diálogo com outros campos como a
filologia, a epigrafia, a arqueologia, as chamadas ciências auxiliares contribuíram
significativamente para uma análise mais profunda das fontes históricas e da maneira de fazer
história.
Interessa-nos ainda tratar sobre a crítica documental, conceito formulado pelos Annales, cujo
fundamento implica problematizar a fonte, isto é, não tê-la como produto acabado ou fato
consumado. Sobre esta concepção Marc Bloch afirma: “ Pois os textos ou os documentos
arqueológicos, mesmo os aparentemente mais claros e mais complacentes, não falam senão
quando sabemos interrogá-los” (p.79, 2001) Portanto, cabe ao historiador essa função, é
necessário inseri-las no contexto na qual foram produzidas e confrontá-las com outras fontes

1
CADIOU, Fraçois. [et al.]. “As fontes”. In: – Como se faz a história: historiografia, método e pesquisa.
Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 120-140.
2
A ESCOLA DOS ANNALES: considerações sobre a História do Movimento – José Costa D’ Assunção
Barros
e a partir dessa crítica interna e externa reconhecer sua intencionalidade histórica, isto é,
quem a produziu e porque produziu e quando produziu.
Seguindo ainda a proposta de reflexão de crítica documental, o historiador francês da terceira
geração dos Annales, Le Goff3 faz uma reflexão da concepção de documento e monumento
pelos historiadores do século XIX. Inicialmente Le Goff afirma que a crítica sobre o
documento é fundamental, e por isso ele faz um balanço historiográfico desta perspectiva.
Para ele, materiais da memória coletiva se aplicam a dois tipos de materiais fundamentais:
documentos e monumentos. O que sobrevive não é todo o conjunto, mas o que se recorta, por
forças políticas ou por historiadores, isto é, o que chega até nós é uma documentação
escolhida por sujeitos históricos daquele período em que ele surgiu, seja pelos sujeitos
posteriores que resolveram organizar aqueles documentos. Isto é, são escolhas postadas por
esses sujeitos.
O monumento na perspectiva de Le goff tem como característica fundamental o ligar-se a
memória com a perpetuação do poder. Enquanto que documento, tinha um sentido
originalmente de ensinar, mas evolui como sentido de prova. Muitos historiadores vão ter
documento escrito como prova, e ignoram que estes documentos e monumentos têm
intencionalidade histórica. Monumentos: são consideradas obras intencionais, subjetivas com
intenções políticas. Documentação histórica: tomada como objetiva, não intencional. A isso
ele chama de ingenuidade e diz que deve ser feito uma crítica a isso.
Ele faz uma recapitulação de um Lento triunfo do Documento sobre o monumento, que
desemboca no século XIX, onde o documento será mais importante para os historiadores, por
eles ganha ar de objetividade. Como exemplo disso, Le Goff diz que o triunfo sobre o
documento é exemplificado pela máxima surgida no século XIX na qual diz não há história
sem documento. Contudo, no século XX a concepção de documento vai se alargando com a
Escola do Annales. Le goff traz para reflexão, a Revolução documental ocorrida na década de
60, que traz para o centro do debate a história quantitativa vinculada à história econômica e
esse tipo de história vai apontar novos meios e modos de tratar a documentação.Esses novos
tipos estão intrinsecamente ligados ao surgimento da computação, os computadores abrem
caminhos para o estabelecimento de bancos de dados, de bancos documentais, ao passo que a
história quantitativa e qualitativa abrem caminhos pro estudo de séries de documentos, isto
é, história qualitativa abre caminhos pros estudos de inúmeros documentos ao mesmo tempo,
em função da possibilidade de organização desses documentos em computador, relacionando
sempre a outros documentos. É nesse sentido que a documentação histórica é fundamental
para Le Goff, no sentido de que a quantidade de documentação histórica gera uma revolução.
Na terceira discussão, Le Goff faz uma recapitulação no modo de como a crítica histórica foi
sendo construída historicamente e chega ao século XX fazendo uma revolução, considerando
o documento como monumento. Assim ele busca demonstrar como essa crítica histórica
caminhou para a compreensão dos documentos como monumento e é nesse sentido que ele
demonstra a crítica documental. Nasce nesse momento uma preocupação em historicizar essa
documentação. Assim, para Le Goff, monumento é documento e documento é monumento
por ambos possuírem intencionalidades humanas, há uma escolha na organização e seleção

3
LE GOFF, Jacques. “Documento \ monumento”. In–. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp,
2013. pp. 485-499
desses documentos/monumentos, pois não é qualquer coisa que é considerado um passado, é
um produto da sociedade que o fabricou de acordo com as relações de forças que detinham
poder no período. Assim, ele aponta que somente a análise enquanto monumento permite a
memória coletiva recuperá-la de forma precisa e o historiador usá-lo cientificamente com
pleno conhecimento de causa.
Ainda nessa perspectiva de intencionalidade, merece destaque a criação dos arquivos pois
houve intencionalidade nisso também. cujas instituições nasceram com o objetivo de
legitimação de poder, conforme Cardiou: “ O interesse da monarquia pelos documentos
estavam igualmente vinculado à necessidade de conhecer o reinado e suas riquezas”
(CARDIOU, p.131) e pela legitimação de posse: “A conservação dos arquivos era de extrema
importância para uma sociedade cujos privilégios estavam fundados na possessão de títulos”
(CARDIO, p. 132). Os Arquivos Nacionais foram criados a partir de 1790 e tinham como
finalidade a consolidação da formação de Estado Nacional, de maneira que se mantivesse a
salvo a memória da Nação sob a organização e conservação dos documentos.

Vimos anteriormente que a noção de fonte histórica alterou-se ao longo do tempo. A


Revolução Documental acabou com a supremacia do documento escrito, permitindo que o
historiador ampliasse seu olhar para além dos documentos oficiais e das tramas políticas,
comuns da história positivista, para uma quantidade indefinível e enormes de vestígios do
passado: imagens, filmes, crônicas, relatos de viagens, registros paroquiais, obras de arte,
memória oral… Para além dessas fontes, permitiu o olhar para a vida social, para as
mentalidades, o cotidiano, contribuindo assim para uma narrativa histórica mais bela da vida
dos povos e dos tempos passados.
Embora tenha se ampliado esse olhar sobre as fontes, Tânia de Luca4 Ao fazer uma análise
sobre como trabalhar com a história da imprensa diz que 40 anos após a Escola dos Annales,
“ainda era relativamente pequeno o número de trabalhos que se valia de jornais e revistas
como fonte para o conhecimento da história no Brasil.” O que pode ser explicado pelos
rastros da historiografia preponderante do século XIX, para qual a verdade somente seria
atingível por meio dos documentos oficiais. A autora considera três importantes fatores para
o alargamento das fontes: O primeiro fato, a Escola do Annales como já foi demonstrado
anteriormente, o segundo a virada linguística “que evidenciou o caráter narrativo do texto
historiográfico e forçou a discussão de sua natureza [...]” (LUCA, p.114). E o terceiro, a
história imediata voltada para o tempo presente.
A autora faz uma reflexão direta no campo dos periódicos, o que permite dizer que há um
pensamento hierarquizado da ciência historiográfica, no qual se criticava o uso dos periódicos
no fazer historiográfico. A reflexão feita pela autora nos permite vislumbrar uma contradição
historiográfica, na qual se criticava o uso dos periódicos, embora fizessem o uso do mesmo.
Pois, por meio dos periódicos é possível trabalhar, além do próprio periódico como objeto,
em vários campos da historiografia: “A História do movimento operário”; análise de
iconografias nas revistas; ilustrações; “compreensão da paisagem urbana e das
representações e idealizações sociais”; o entrelaçamento entre História e Literatura, pois por

4
LUCA, Tânia Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos”. In: PINSKY, Carla Bassanezi. As
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. pp. 111-153
meio dos ciclos literários é possível analisar o modo de pensar desses autores; História
política, materiais muitos variados. Esta apresentação nos permite vislumbrar as muitas
possíveis formas de se trabalhar com periódicos. Seguindo ainda a obra da autora, partimos
para outra reflexão: a historicização das fontes “historicizar a fonte requer ter em conta,
portanto, as condições técnicas de produção vigentes e a averiguação, dentre tudo que se
dispunha, do que foi escolhido e por quê”, além de se analisar as funções sociais desses
impressos.
Nesse sentido, esta noção implica dizer que para se construir conhecimento historiográfico é
necessário que o historiador apreenda um método. A metodologia é “uma determinada
maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de extrair algo específicos desses
materiais, de se movimentar sistematicamente em torno do tema e dos materiais
concretamente definidos pelo pesquisador” (BARROS, p. 32, 2017). O historiador
compreende que não é possível a reconstituição do passado, mas há uma aproximação que é o
que diferencia um jornalista, por exemplo, pois o historiador precisa citar suas fontes. O que
não implica dizer que isto afirma a verdade mas mostra a versão sobre o que aconteceu. É
nesse contexto que discutiremos a importância documental no ofício do historiador
contemporâneo. Uma das preocupações atuais é que ainda não existe uma diplomacia
apropriada para o conjunto cada vez maior e diverso de fontes digitais que já estão à
disposição do historiador. “Postagens de Facebook, tweets, animações em flash e memes [...],
ainda são território negligenciado pelo historiador5.” (SILVEIRA,

5
SILVEIRA, Pedro Teles de. As fontes digitais no universo das imagens técnicas: crítica documental, novas
mídias e o estatuto das fontes históricas digitais Antítese v. 9, n. 17, p. 270-296, jan./jun. 2016
Referências Bibliográficas
BARROS, José Costa D’Assunção. A História dos Annales: considerações sobre a história
do movimento. Revista História em Reflexão: Vol. 4 n. 8 – UFGD -Dourados jul/dez 2010

BARROS, José D’Assunção. Fontes Históricas: uma introdução à sua definição, à sua
função no trabalho do historiador, e à sua variedade de tipos. Cadernos do Tempo Presente,
São Cristóvão-SE, v. 11, n. 02, p. 03-26, jul./dez. 2020|

CADIOU, Fraçois. [et al.]. “As fontes”. In: – Como se faz a história: historiografia,
método e pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2007. pp. 120-140.

LE GOFF, Jacques. “Documento/monumento”. In –. História e Memória. Campinas: Editora


da Unicamp, 2013. pp. 485-499.

LUCA, Tânia Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos”. In: PINSKY, Carla
Bassanezi. As Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. pp. 111-153

SILVEIRA, Pedro Teles de. As fontes digitais no universo das imagens técnicas: crítica
documental, novas mídias e o estatuto das fontes históricas digitais Antítese v. 9, n. 17, p.
270-296, jan./jun. 2016

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