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interesses com freqüência será muito mais útil do que o de sua índole. O
dom do qual o fl âneur tanto se gaba é, portanto, um dos ídolos que
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Bacon instala na feira. Baudelaire mal chegou a prestar homenagem a
esse ídolo. A crença no pecado origi nal o f azia imune à crença no
conhecimento da natureza humana. Ni sso concordava com De M aistre
que, por seu turno, unira o estudo do dogma ao de Bacon.
As mezinhas calmantes que os fisiologi stas punham à venda foram
logo ultrapassadas. Por outro lado, à literatura que se atinha aos aspectos
inquietantes e ameaçadores da vida urbana estava reservado um grande
futuro. Essa literatura também tem a ver com as massas, mas procede de
modo dif erente das fisi ologías. Pouco lhe importa a determinação de
tipos; ocupa-se, antes, com as f unções própri as da massa na cidade
grande. Entre essas, uma que já por volta da transi ção para o século X IX
é destacada num relatório policial: “ É quase impossível — escreve um
agente secreto parisiense em 1798 — manter boa conduta numa
população densamente massi ficada, onde cada um é, por assim dizer,
desconhecido de todos os demai s, e não precisa enrubescer diante de
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ninguém” . Aqui, a massa desponta como o asil o que protege o anti-
social contra os seus perseguidores. Entre todos os seus aspectos
ameaçadores, este foi o que se anunci ou mai s prematuramente; está na
origem dos romances policiais.
Em tempos de terror, quando cada qual tem em si algo do conspirador,
o papel do deteti ve pode também ser desempenhado. Para tal a fl âneri e
oferece as melhores perspectivas. “ O observador — diz Baudelaire — é
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um príncipe que, por toda a parte, faz uso do seu incógnito.” Desse
modo, se o fl âneur se torna sem querer detetive, socialmente a
transformação lhe assenta mui to bem, pois justifi ca a sua ociosi dade. Sua
indolência é apenas aparente. Nela se esconde a vigilânci a de um
observador que não perde de vista o malf eitor. A ssim, o detetive vê
abrirem-se à sua auto-esti ma vastos domínios. Desenvolve formas de
reagir convenientes ao ritmo da cidade grande. Capta as coisas em pl eno
vôo, podendo assim imaginar-se próximo ao artista. Todos elogiam o
lápis veloz do desenhista. Balzac quer associar, de modo geral, o gêni o
artístico à
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* Era Séraphita, Balzac fala de uma “ visão rápida, cujas percepções colocam, em
mudanças súbitas, as paisagens contrastantes da Terra à disposição da fantasia” .
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* O tema do amor à mulher que passa ó tratado num dos pri mei ros
poemas de George. O decisi vo, porém, lhe escapou: a corrente humana que
arrebata a mulher e a leva para longe do poeta. Chega-se assim a uma
tímida elegia. Os olhares do poeta, como deve confessar à sua dama,
“ afastam-se úmidos de desejo antes de ousarem mergulhar nos teus" .
(Stefan George, Hymnen Pilgerfahrten A lgabal , Berlim, 1922, p. 23.)
Baudelaire não deixa nenhuma dúvida de que tenha olhado fundo nos olhos
da mul her que passa.
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xelas, uma lhe traz rancor especial: “ Nenhuma vitrine. A fl â- neri e, que
é amada pel os povos dotados de fantasia, não é possível em Bruxelas.
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Não há nada a ver, e as ruas são inutilizáveis” . Baudel aire amava a
solidão, mas a queria na multidão.
No decurso de seu conto, Poe faz com que anoiteça. Ele se demora na
cidade à luz de gás. O fenômeno da rua como i nterior, fenômeno em que
se concentra a fantasmagoria do fl âneur, é difícil de separar da
iluminação a gás. As primeiras l âmpadas a gás arderam nas galerias. Na
infância de Baudelaire fez-se a tentativa de utilizá-las a céu aberto;
colocaram-se candelabros na Pl ace V endôme. Sob Napoleão III cresce
mai s rapidamente o número de lampiões a gás. Isso el evou o grau de
segurança da cidade; fez a multidão em plena rua sentir-se, também à
noite, como em sua própria casa; removeu do cenário grande o céu
estrelado e o fez de modo mais radical que os seus prédios altos. “ Corro
as cortinas contra o Sol que agora foi dormi r, como de hábito; doravante
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não vejo outra luz senão a da chama do gás.” * A L ua e as estrelas já
não são dignas de menção.
No fl orescimento do Segundo Império, as lojas nas ruas principais não
fechavam antes das dez horas da noite. Era a grande época do
noctambulismo. “ O ser humano — escreve Delvau no capítulo de A s
Horas Pari si enses dedicado à segunda hora depois da meia-noite — pode
de tempos em tempos repousar; pontos de parada e estações lhe estão
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franqueadas; não tem, contudo, o direito de dormi r.” Às margens do
lago, Dickens se lembra nostalgicamente de Gênova, onde tinha duas
mil has de ruas iluminadas para vagar à noite sem rumo certo. Tempos
depois, quando, devido ao declínio das gal erias, a fl â- neri e caiu de
moda e mesmo a luz de gás já não se tinha como elegante, o derradeiro
fl âneur a vagar tristemente pela Passage Col bert teve a impressão de que
o chamej ar dos bicos de gás apenas exibia o medo de sua chama de não
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ser paga ao final do mês. Foi então que Stevenson escreveu sua elegia
sobre o desaparecimento dos lampi ões a gás. Seu lamento se deixa levar
sobretudo pelo ritmo no qual os acendedores de lampião seguem pel as
ruas, de um lampião a outro. No pri ncípio, esse ritmo se
* * A imagem da América que M arx trazia dentro de si parece ser feita do mesmo
material que a descrição de Poe. Ele destaca “ o movimento jovem e febril da produção
material" nos Estados Unidos e o responsabiliza pelo fato de que “ não tenha havido nem
tempo nem oportunidade de suprimir o velho mundo espiritual” (K arl Marx, O 18
Brumário de L uis Bonaparte, loc. cit., p. 30). A própria f isiognomonia dos homens de
negócio tem, em Poe, algo de demoníaco. Baudelaire descreve como, ao anoitecer, " . . .
demônios i nsepultos no ócio/acordam do estupor, como homens de negócio...” (p. 351).
Talvez esse trecho de O Crepúsculo V espertino tenha sido influenciado pelo texto de Poe.
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A imagem da esfinge com que se f echa o poema tem a beleza sombria dos artigos sem
saída que ainda são encontrados nas galerias.
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Para o flâneur, um véu cobre essa imagem. A massa é esse véu; ela
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ondeia nos “ franzidos meandros das velhas capitais” . Faz com que o
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pavoroso atue sobre ele como um encantamento. Só quando esse véu se
rasga e mostra ao f l âneur “ uma dessas praças populosas que, durante os
combates, ficam vazias de gente” — só então, também ele, vê a cidade
sem disfarces.
Se fosse preciso uma prova da força com que a experiência da
mul tidão moveu Baudel aire, a encontraríamos no fato de ele ter nutrido
uma rivalidade com Vi ctor Hugo sob o signo dessa experiência. Pois era
evidente para Baudelai re que se Hugo possuísse alguma força, ela estaria
na mul tidão. L ouva em Hugo um “ caractère poétique. . . interrogatif” e
diz que ele sabe não só reproduzir o claro e o nítido, de modo claro, mas
também com a obscuridade indispensável o que só se revelou obscuro e
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indistinto. Um dos três poemas de Quadros Pari si enses dedicados a
Vi ctor Hugo começa com uma i nvocação à cidade superpovoada
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— “ Cidade a fervilhar, cheia de sonhos. . .” ; outro persegue as
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velhinhas no “ ébrio cenário” da cidade através da mul tidão.* A
mul tidão é um objeto novo na poesia lírica. Em honra do i novador
Sainte-Beuve, ainda se considerava conveniente e apropriado a um poeta
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dizer “ a multi dão é insuportável” . Durante seu exílio em Jersey, Hugo
trouxe esse objeto para a poesia. Em seus passeios solitários na costa
insinuou-se a ele graças a uma das gigantescas antíteses indispensáveis à
sua inspiração. Em Hugo, a multidão entra na poesi a como objeto de
contemplação. Seu model o é o oceano a quebrar-se contra as rochas, e o
pensador que reflete sobre esse espetáculo é o verdadeiro investi gador da
multidão, na qual se perde como no rumor do mar.
“ A ssim como olha, o desterrado, desde o seu recife solitário para terras
imensas ricas de destinos, assim também desce os olhos sobre o passado
dos povos. . . L eva a si e ao seu destino para a torrente de
acontecimentos que se vivificam para ele e se misturam à existência das
forças naturais, ao mar, às falésias erodidas, às nuvens em movi mento e
às demai s grandezas contidas numa vida calma e solitária, em comunhão
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com a natureza.” “ O próprio oceano se cansou dele” — disse
Baudelaire a respeito de Hugo, ferindo com o feixe de luz de sua ironia
aquele que medita sobre o recif e. Baudelaire não se senti a movido a se
entregar ao espetáculo da natureza. Sua experiência da mul tidão
comportava os rastros da “ iniqüidade e dos milhares de encontrões” que
sofre o transeunte no tumulto de uma cidade e que só fazem manter tanto
mai s viva a sua autoconsciência. (No fundo, é exatamente essa
autoconsciência que el e empresta à mercadoria que flana.) Para
Baudelaire, a multidão nunca foi estímulo para lançar a sonda do*
pensamento à profundeza do mundo. Hugo, por outro lado, escreve: “ A s
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profundezas são multidões” , abrindo assim um espaço i menso às suas
medi tações. O natural-sobrenatural que afeta Hugo como se fosse a
mul tidão se apresenta tanto na floresta quanto no reino animal quanto na
rebentação das ondas; em cada um pode cintilar por momentos a
fisionomia de uma cidade grande. A I ncl i nação do Devanei o dá uma
idéia magnífica da promi scui dade reinante na multiplicidade de tudo o
que é vivo.
para terminar com um ataque aos ateliers nationaux". Em sua História Parlamentar da
Segunda República, escreve Eugène Spuller: “ V ictor Hugo foi eleito com votos
reacionários” . “ Sempre votou com a direita, salvo em duas ou três ocasiões, quando a
política não tinha nenhum valor." (Eugène Spuller, Histoire parlamentaire de la Seconde
République suivie d’ une petite histoire du Second Empire, Paris, 1891, p. 111, 266.)
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Notas