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Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


História – História Indígena
Profa. Dra. Ana Lúcia Vulfe Nötzold
Isaac Garcia Ribeiro

Ensaio

Os caminhos do Peabiru e o caráter itinerante dos Guarani

“(...) junto à dita serra, havia um rei branco que se vestia como nós. Decidiram ir
até lá para ver o que era. Enviaram cartas (relatando) que ainda não haviam
chegado às minas, mas já haviam conversado com uns índios Comarcanos, na
serra, que traziam nas cabeças coroas de prata e adereços de ouro pendurados
nos pescoços”1

Este trecho da carta endereçada ao Rei da Espanha de autoria de Luiz Ramirez,


tripulante de uma expedição ao Rio da Prata em 1528, relata o diálogo que tivera
o autor com um náufrago português na Ilha de Santa Catarina. O trecho descreve
o que indígenas Guarani haviam contado a Aleixo Garcia, companheiro de
naufrágio do interlocutor de Ramirez, que havia se integrado aos indígenas e
partido com eles rumo “à serra do rei Branco” onde haveria ouro, prata e estanho,
por um caminho conhecido pelos Guarani como Peabiru.

A historiografia de etnias indígenas brasileiras, como os Guarani, depara-se com


uma situação bastante contrastante em relação ao estudo de povos europeus. A
tradição oral faz dos testemunhos indígenas a única fonte primária de estudo,
diferentemente das fontes históricas de culturas europeias e de boa parte do
“Velho Mundo”, fartos de relatos escritos e documentos oficiais. Da mesma
maneira com que este fator dificulta o estudo da história e da cultura indígena,
torna-o também misterioso e objeto de curiosidade não apenas de
pesquisadores como da população em geral.

É nesse contexto em que se insere o estudo acerca dos “Caminhos do Peabiru”,


uma rota guarani milenar que conectava as regiões de domínio Inca, da Bolívia
e Peru, passando pelo atual Paraguai e ramificando em direção à regiões
litorâneas dos hoje Estados brasileiros de São Paulo, Paraná e Santa Catarina.
Esses caminhos são considerados sagrados pelo povo Guarani, uma vez que se
acredita terem sido pavimentados com vistas à busca da lendária “Terra Sem

1
Trecho da carta de Luiz Ramirez. Tradução do autor. Em espanhol original: “junto a la dicha sierra abia
un rey blanco que traya bestidos como nosotros se determinaron de yr alla por ber lo que hera los
quales fueron y les ynbiaron cartas y que aun no abian llegado a las minas mas ya abian tenido platica
con unos yndios comarcanos a la sierra e que trayan en las cabezas unas coronas de plata e unas
planchas de oro colgadas de los pesquezos.
Males”, local paradisíaco presente no ideário Guarani e cuja busca os levaram a
expandir seu território ao leste da América do Sul, ao Atlântico.

Devido às limitações do estudo de testemunhos orais (especialmente quando se


leva em conta que o suposto caminho deixou de ser utilizado a partir do século
XIX) a imprecisão quanto ao traçado geográfico é grande. A jornalista
catarinense Rosana Bond é uma das principais pesquisadoras que se arrisca à
tarefa de determinar as origens e a cartografia dos caminhos. Sua obra “A saga
de Aleixo Garcia – O descobridor do Império Inca” narra, a partir de documentos
oficiais e relatos de viajantes, o que teria sido a primeira expedição de um
europeu por um dos caminhos. Arqueólogos, como Igor Chmyz também afirmam
haver encontrado partes e vestígios dos caminhos.

Para se compreender a temática, faz-se necessário o estudo do etos Guarani,


em especial em relação ao seu hábito migrante. Essa abordagem, essa
contextualização cultural, será o objeto deste ensaio que visa meramente instigar
o estudo sobre a relação entre os supostos caminhos do Peabiru e a cultura
itinerante Guarani.

A origem dos povos Guarani coincide com a origem dos Tupi, na região
amazônica da América do Sul. Os motivos das migrações, que chegaram até
regiões litorâneas do Sul do Brasil, passando por Mato Grosso e Paraguai, são
de duas ordens:

1. Física – Havia grande pressão demográfica uma vez que as proto


populações Tupi e Guarani cresciam, e com elas a necessidade de
espaço físico para alimentação e manutenção de suas culturas também.
Haviam conflitos entre grupos distintos, muitas vezes motivados por
motivos demográficos.
2. Espiritual – Além de motivos de ordem física, no ideário dos Guarani é
presente a crença da “Terra sem Males”, um paraíso na Terra que se
localizaria ao leste. Os movimentos migratórios foram, naturalmente,
determinados por essa busca espiritual.

As migrações dos Guarani, entretanto, devem ser compreendidas em dois


momentos diferentes: antes e depois da chegada dos europeus ao continente
sul-americano. Em momento posterior, a partir do século XVI, a migração passou
a representar uma forma de resistência não apenas da cultura Guarani, como da
própria população que via sua existência ameaçada pelo Europeu. Buscava-se
a “invisibilidade” perante ao homem branco, uma fuga para as matas para a
manutenção de seu modo de vida. Do contrário, seriam sedentarizados e
amansados para a utilização como mão de obra para latifundiários. Apenas a
partir da década de 80 é que iniciam um movimento de aceitação do Estado
Nacional Brasileiro para a demarcação de territórios indígenas, frente a um
avanço sem precedentes do desenvolvimentismo brasileiro que reduzia a
disponibilidade fundiária a um nível inviável para sua sobrevivência cultural. De
“invisíveis”, os Guarani passaram a ser um povo “catalogado” e suas migrações
passavam a ser ainda mais dificultadas.

Nota-se que o movimento migratório dos Guarani a partir do momento da


chegada europeia passou a ser motivado cada vez mais por questões de
sobrevivência e resistência do que por questões espirituais. Mas e quanto aos
movimentos migratórios antes do século XVI? Como se davam e por quais
motivos?

Para refletir acerca dessa questão, pode-se comparar tradições Guarani às


tradições de outras etnias indígenas de Santa Catarina como os Kaingang e os
Xokleng/Laklanõ. Uma forte tradição Kaingang é a de se enterrar o cordão
umbilical ressecado no local de nascimento, na região da aldeia a que pertence.
Quando da morte do indivíduo, este deverá ser enterrado no mesmo local. Essa
tradição Kaingang chama a atenção ao caráter de fixação à terra. O indivíduo
nasce, vive e deve morrer no mesmo local, pois ali é seu lugar, seu território.
Esse costume contrasta com a concepção territorial dos Guarani. Para eles, seu
território é o mundo e o único limite é o oceano. Além disso, a caminhada para o
Guarani é tida como um “devir do sujeito enquanto vir a ser outro como valor
supremo, sendo a mobilidade inerente ao processo de fabricação e de duração
da pessoa” (PISSOLATO, 2007). Deste modo, para se adquirir virtudes, o povo
Guarani deve caminhar. O povo Kaingang, por sua vez, alcança a virtude se
mantendo fiel à sua Terra2.

Tem-se, portanto, que, para os Guarani, migrar e caminhar são atitudes


inerentes à vida. Caminhar é viver. Somando-se a crença da Terra sem Males e
sua constante busca, levanta-se a hipótese de que os Guarani já possuíam este
hábito antes da chegada dos europeus e que este pode ser o principal fator por
se encontrarem soberanos em boa parte do território sul-americano. Essa
hipótese parecer ser confirmada pelo relato do alemão Ulrich Scmmidl que
afirma: “os mencionados cariós migram mais longe que nenhuma nação”.

O caráter itinerante de um povo implica a existência de estruturas avançadas de


meios de sobrevivência e migração coletiva. A expedição de Aleixo Garcia pelos
Caminhos do Peabiru em direção ao “Rei Branco” contaria com mais de mil
homens, sendo 4 náufragos portugueses, e uma legião Guarani. Rosana Bond
levanta a hipótese de Aleixo Garcia ter sido encarado como uma espécie de
Xamã pelos indígenas, como o Caraíba, ou coisa santa, e, dessa maneira, a
expedição se valia de um suposto messianismo guarani. De qualquer maneira,
Garcia teria sido, nesta ocasião, o primeiro europeu a chegar ao Império Inca e
saqueá-lo, porém, haveria sido perseguido e abatido pelos Incas vindo a falecer
no atual território de Assunção do Paraguai, deixando apenas registros indiretos
do suposto sucesso da expedição. Este sucesso indica que as estruturas de

2
Por esse motivo, como por outros, eram considerados no período colonial como indígenas “selvagens”
e pouco domesticáveis.
sobrevivência e migração coletiva deram conta de suprir as necessidades da
horda Guarani que rumou o Peabiru até o sul da Bolívia. Essa estrutura
pressupõe uma agricultura itinerante e altamente desenvolvida, assim como alto
grau de conhecimento territorial além de uma rede de comunicação e troca pelos
caminhos. Darcy Ribeiro afirma que sem o povo indígena, os Europeus não
haveriam sido capazes de explorar o território sul-americano. A expedição de
Aleixo Garcia parece confirmar essa hipótese de que o intercâmbio cultural foi
crucial para a conquista do território.

A presença Guarani no território sul-americano no período anterior ao século XVI


se estendia do Paraguai ao litoral do atual estado do Rio Grande do Sul. Como
demonstra a expedição de Aleixo Garcia, havia entre esse território uma extensa
rede de comunicação e intercâmbio e, de tal maneira, os Caminhos do Peabiru,
não seriam mais do que uma longa rota que conectava um extremo a outro do
domínio Guarani. O que e como seriam, portanto, esses caminhos?

É comum a denominação dos caminhos do Peabiru no singular, o que parece


impreciso dado o caráter de rede da rota. Haveriam ramificações de São Vicente
e Cananéia, em São Paulo, e na região de Florianópolis. Em Guarani, Peabiru
significa caminho de gramado amassado. Ora se Peabiru eram, portanto, trilhas
razoavelmente humanizadas por onde se poderia se locomover de ponta a ponta
no território de ocupação Guarani, qualquer caminho guarani com estas
características poderia ser considerado parte integrante da rede. E, dado o
hábito migratório dos Guarani, é razoável admitir que, para qualquer indivíduo
da etnia empreender uma viagem até a ponta extrema do domínio territorial, não
seria necessário conhecer o caminho integralmente, senão seguir caminhando
entre Tekoás (aldeias) no sentido desejado.

Para que tal expedição fosse possível, seria necessário um sentimento de


fraternidade, hospitalidade e companheirismo entre os vários “Guarás” (grupos
Guarani). Em debate recente na Universidade Federal de Santa Catarina, um
professor Guarani relatou exatamente este sentimento. Disse ele que
recentemente esteve no Rio de Janeiro e que para lá se dirigiu sem nem mesmo
avisar ninguém, pois ele sabe que onde há Guarani, há um lar. Onde há um
Guarani ele é bem-vindo.

Por fim, parece inviável estudar o que seriam os caminhos do Peabiru sem
relacioná-los ao caráter itinerante Guarani. Afinal, os caminhos do Peabiru são
a estrutura física construída por eles próprios durante e para o seu caminhar, o
seu viver.
REFERÊNCIAS

BOND, Rosana. A saga de Aleixo Garcia: o descobridor do Império Inca. Editora


Insular, 1998.

BRIGHENTI, Clovis Antonio. Estrangeiros na própria terra: presença Guarani e


Estados Nacionais. Argos, 2010.

CICCARONE, Celeste. Um povo que caminha: notas sobre movimentações


territoriais guarani em tempos históricos e neocoloniais. Dimensões: Revista de
História da Ufes, n. 26, p. 136-151, 2011.

RAMÍREZ, Luís. Carta de Luis Ramírez a seu pai desde o Brasil (1528). 2007.

SCHMIDEL, Ulrich. Relatos de la conquista del Río de la Plata y Paraguay, 1534-


1554. Alianza Editorial, 1986.

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