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8/16/2017 Entrevista com Jean-Pierre Vernant, O Estado de São Paulo – Caderno 2 – 05/08/2001

Entrevista com Jean-Pierre Vernant, O Estado de São Paulo – Caderno 2 – 05/08/2001

O francês Jean-Pierre Vernant é considerado o maior helenista vivo. Nome familiar aos estudantes de
filosofia, o autor francês tem vários livros publicados em português, entre eles Universo, os Deuses, os
Homens (Cia. das Letras), As Origens do Pensamento Grego (Bertrand Brasil), A Morte nos Olhos (Zahar),
Mito e Sociedade na Grécia Antiga (José Olympio), Mito e Tragédia na Grécia Antiga (Perspectiva). Sai agora
no Brasil outro volume fundamental, Entre Mito & Política, antologia de textos, uma espécie de "suma" de toda
uma vida de pesquisador.
Nascido em 1914, Vernant participou ativamente da Resistência francesa e nunca abandonou sua vocação de
militante. Fato que contrasta, em aparência, com o clichê do intelectual isolado em sua torre de marfim. Ao
contrário, Vernant, que carrega a justa fama de ter colocado os estudos helênicos em outro nível, poderia
lembrar que foi na Grécia antiga que o ser humano foi definido como animal político. No novo livro, ele trafega
entre mito e política com dupla mão de direção: investigando o que há de político no mito e o que há de mítico
na política. Tudo muito atual, embora às vezes ele fale de fatos e gente de 2.500 anos atrás. Na verdade,
Vernant olha o passado para melhor entender o presente.

Como o senhor descobriu a Grécia?

Jean-Pierre Vernant - Em primeiro lugar, fisicamente, por causa de uma viagem em 1935. Imaginem um país
muito diferente do de hoje, sem turistas, que era percorrido a pé, um país de camponeses e de marinheiros
muito hospitaleiros, que davam ao estrangeiro a sensação de que sua visita era uma honra para eles.

A civilização da Grécia antiga é comumente sintetizada entre nós numa fórmula: o milagre grego. O sr.
aceita isso?

Vernant - Absolutamente não! Essa idéia, expressa por Renan e amplamente retomada depois dele, segundo
a qual a Grécia, e somente a Grécia, teria inventado a razão, o pensamento científico, a filosofia e todos os
grandes valores universais, parece-me inaceitável. É verdade que, por volta do século 7.º antes de nossa era,
houve um conjunto de fenômenos complexos. Em primeiro lugar, a passagem de uma civilização oral para
uma cultura escrita e de uma palavra poética e profética - a de Homero e Hesíodo - para um discurso lógico e
demonstrativo - o de Platão e Aristóteles. Ao mesmo tempo, o antigo sistema de governo, mantido por um rei
ou por um grupo aristocrático, dá lugar à organização da cidade (polis), na qual todos os cidadãos podem
discutir igualmente e concorrer à decisão coletiva. No seio desse duplo processo cultural e político, é
impossível discernir onde está a causa e o efeito. Entretanto, o triunfo do logos na era clássica foi
desfavorável aos gregos, cuja civilização não tem, portanto, nada de miraculosa: na realidade, não tentavam
compreender o que contradiz a esse princípio lógico de identidade, particularmente os fenômenos exteriores,
que não se prestam a demonstrações nem ao cálculo. É por isso que não existiu na realidade uma física
grega, por causa da ausência da experimentação e da aplicação do cálculo à realidade.

O surgimento e a afirmação do discurso lógico não deveriam levar ao desaparecimento do mito?

Vernant - Mythos significa apenas relato, narração, embora, entre os gregos, os termos mythos e logos não se
oponham entre si. Essa palavra serve hoje para designar, na história do pensamento grego, uma tradição
transmitida oralmente e que não se insere na ordem do racional. Observe que os mythoi (mitos) não são um
apanágio dos gregos. Nossa ciência atual está repleta de mithos: por acaso o big-bang original de nossos
cientistas seria muito diferente do chaos (caos) evocado por Hesíodo, esse camponês da Beócia do século
8.º antes de Cristo? As narrativas da origem transmitidas pelos mitos continuam inteiramente atuais na Grécia
clássica, porque respondem a desafios relacionados com a identidade: o grego sabe de onde é porque
conhece de cor todas essas histórias. Além disso, essas narrativas transmitem modos de ser e de comportar-
se. Em Homero, aprende-se a trabalhar, a navegar, a fazer a guerra e a morrer - afirmava Platão. A tradição
mitológica define assim um estilo exemplar de existência, nos planos moral e estético, que para os gregos se
confundem.

A mitologia assim descrita exprime o essencial da religião grega?

Vernant - Não. Apenas em parte. Naturalmente, ela se refere a deuses aos quais devem ser rendidas honras,
junto aos quais os humanos se sentem inferiores ao nada e cujo brilho divino não chega até os mortais
porque estes não são dignos. Mas a religião está relacionada também com a prática, com rituais que
acompanham e ordenam todos os gestos da existência. De fato, a religião está em toda a parte, no modo de
comer, de entrar e sair, de se reunir na "agorá". Nada separa a esfera religiosa da esfera civil: o religioso é
político, o político é religioso. Na vida coletiva, a irreligião é inconcebível.

http://www.csbrj.org.br/culturaclassica/Jean.htm 1/1

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