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LEIA O TEXTO ABAIXO E DEPOIS RESPONDA AS QUESTÕES

• Texto retirado do livro “Mito e realidade” de Mircea Eliade.

HOMERO

Todo um estudo poderia ser dedicado às relações entre as grandes personalidades religiosas,
sobretudo os reformadores e os profetas, e os esquemas mitológicos tradicionais. Os movimentos
messiânicos e milenaristas dos povos das antigas colônias constituem um campo de investigações
quase ilimitado. Pode-se reconstituir, ao menos em parte, o cunho de Zaratustra na mitologia
iraniana ou de Buda nas mitologias tradicionais indianas. Quanto ao judaísmo, a poderosa
desmitificação realizada pelos profetas é há longo tempo conhecida. As reduzidas dimensões deste
livro não nos permitem discutir esses problemas com a atenção que merecem. Preferimos insistir
um pouco na mitologia grega — menos pelo que ela representa em si mesma do que por algumas
de suas relações com o cristianismo.

Não é sem hesitação que o investigador aborda o problema do mito grego. Em nenhuma outra
parte vemos, como na Grécia, o mito inspirar e guiar não só a poesia épica, a tragédia e a comédia,
mas também as artes plásticas; por outro lado, a cultura grega foi a única a submeter o mito a uma
longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente "desmitificado". A ascensão do
racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia "clássica", tal
qual é expressa nas obras de Homero e Hesíodo. Se em todas as línguas europeias o vocábulo
"mito" denota uma "ficção", é porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos.

Queira-se ou não, qualquer tentativa de interpretação do mito grego, ao menos no interior de uma
cultura de tipo ocidental, é sempre até certo ponto condicionada pela crítica dos racionalistas
gregos. Como veremos dentro em breve, essa crítica raramente foi dirigida contra o que se poderia
chamar de "pensamento mítico" ou contra o tipo de conduta resultante. As críticas visavam
sobretudo os atos dos deuses tais quais eram narrados por Homero e Hesíodo. Podemos indagar
o que teria pensado Xenófanes do mito cosmogônico polinésio ou de um mito especulativo védico
como o do Rig Veda, X, 129. Não temos meios, evidentemente, de saber a resposta. Mas é
importante sublinhar que os ataques racionalistas tinham por alvo as aventuras e as decisões
arbitrárias dos deuses, sua conduta caprichosa e injusta e sua "imoralidade". E a principal crítica
era feita em nome de uma ideia cada vez mais elevada de Deus: um verdadeiro Deus não poderia
ser injusto, imoral, ciumento, vingativo, ignorante, etc. A mesma crítica foi retomada e exacerbada
mais tarde pelos apologistas cristãos. Essa tese, a saber, que os mitos divinos apresentados pelos
poetas não podiam ser verdadeiros, triunfou, inicialmente, entre as elites intelectuais gregas e,
finalmente, após a vitória do cristianismo, em todo o mundo greco-romano.

Convém lembrar, entretanto, que Homero não foi teólogo nem mitógrafo. Ele não pretendeu
apresentar, de uma maneira sistemática e exaustiva, a totalidade da religião e da mitologia gregas.
Se é verdade, como diz Platão, que Homero educou toda a Grécia, ele destinou seus poemas a
uma audiência específica: os membros de uma aristocracia militar e feudal. Seu gênio literário
exerceu um fascínio jamais igualado; suas obras contribuíram grandemente para unificar e articular
a cultura grega. Mas, como ele não se propôs a escrever um tratado de mitologia, não registrou
todos os temas míticos que circulavam pelo mundo grego. E pensou ainda menos em evocar
concepções religiosas e mitológicas estrangeiras, ou que não fossem de grande interesse para os
seus ouvintes, essencialmente patriarcais e guerreiros. De tudo aquilo que poderia ser chamado
de elemento noturno, ctoniano, funerário da religião e da mitologia gregas, Homero quase nada diz.
A importância das ideias religiosas de sexualidade e fecundidade, de morte e da vida do além-
túmulo, nos foi revelada por escritores tardios e pelas escavações arqueológicas. Por conseguinte,
foi essa concepção homérica dos deuses e de seus mitos que se impôs em todo o mundo e que foi
definitivamente fixada, como num universo intemporal de arquétipos, pelos grandes artistas da
época clássica. É inútil nos determos em sua grandeza, em sua nobreza e no papel que
desempenharam na formação do espírito ocidental. Basta reler Die Götter Griechenlands de Walter
Otto, para comungar com esse mundo luminoso de "Formas Perfeitas".

Mas, o fato de o gênio de Homero e a arte clássica terem conferido um esplendor inigualável a esse
mundo divino, não implica que tudo o que foi negligenciado fosse tenebroso, obscuro, inferior ou
medíocre. Havia Dioniso, por exemplo, sem o qual não se pode conceber a Grécia, e de quem
Homero se contenta em fazer uma alusão sobre um incidente de sua infância. Por outro lado,
fragmentos mitológicos conservados por historiadores e por eruditos nos introduzem num mundo
espiritual não destituído de grandeza. Essas mitologias não homéricas e, em geral, não "clássicas"
eram mais "populares". Elas não sofreram a erosão das críticas racionalistas e, provavelmente,
sobreviveram por muitos séculos à margem da cultura letrada. É bem possível que vestígios dessas
mitologias populares ainda subsistam, camufladas, "cristianizadas", nas crenças gregas e
mediterrâneas de nossos dias. Voltaremos a esse problema.

TEOGONIA E GENEALOGIA

Hesíodo procurava uma audiência diferente. Ele narra mitos ignorados ou apenas esboçados nos
poemas homéricos. É o primeiro a falar de Prometeu. Mas ele não podia saber que o mito central
de Prometeu se baseava num mal-entendido, ou, mais exatamente, no "esquecimento" da
significação religiosa primordial. Zeus, efetivamente, vinga-se de Prometeu porque este último,
chamado a arbitrar a partilha da vítima do primeiro sacrifício, cobrira os ossos com uma camada de
gordura, e a carne e as vísceras com o estômago. Atraído pela gordura, Zeus escolheu para os
deuses o quinhão mais pobre, abandonando aos homens a carne e as vísceras (Teogonia, 534 ss.)
Ora, Karl Meuli comparou esse sacrifício olímpico aos rituais dos caçadores arcaicos da Ásia
Setentrional: estes últimos veneram os seus Supremos Entes celestes, oferecendo-lhes os ossos
e a cabeça do animal. O mesmo costume ritual se manteve entre os povos pastores da Ásia Central.
Aquilo que, num estádio arcaico de cultura, era considerado a homenagem por excelência a um
Deus celeste, tornou-se na Grécia a trapaça exemplar, o crime de lesa-majestade contra Zeus, o
deus supremo.

Ignoramos em que momento se produziu esse desvio do sentido ritual original, e como Prometeu
veio a ser acusado desse crime. Se citamos esse exemplo, foi apenas para mostrar que Hesíodo
menciona mitos muito arcaicos, que têm suas raízes na pré-história; mas, antes de serem
registrados pelo poeta, esses mitos já haviam sofrido um longo processo de transformação e de
modificação. Hesíodo não se contenta em registrar os mitos. Ele os sistematiza e, com isso, já
introduz um princípio racional nessas criações do pensamento mítico. Ele compreende a
genealogia dos Deuses como uma série sucessiva de procriações. A procriação, para ele, é a forma
ideal de vir à existência. W. Jaeger com razão ressaltou o caráter racional dessa concepção, em
que o pensamento mítico é articulado pelo pensamento causal. A ideia de Hesíodo, segundo a qual
Eros foi o primeiro deus a aparecer após o Caos e a Terra (Teogonia, 1I6 ss.) foi ulteriormente
desenvolvida por Parmênides e Empédocles. Platão, no Banquete (178 b), salientou a importância
dessa concepção para a filosofia grega.

QUESTÕES

01. Por que se em diversas línguas o conceito “mito” virou sinônimo de “ficção”?
02. O que os racionalistas (filósofos) criticavam nos mitos?
03. Qual era o papel dos mitos narrados nos livros de Homero?
04. Na Grécia todos os mitos caíram em descrédito com a crítica dos filósofos? Justifique.
05. No que os mitos narrados por Hesíodo diferem dos de Homero?

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