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Livraria Editora - GUIMARÃES & Cª

68, R. da Misericórdia, 70
LISBOA

O título deste romance no original húngaro é:


Budapesti Kaland

Todos os direitos sobre esta obra para Portugal e Brasil pertencem à


Livraria GUIMARÃES EDITORA, R. da Misericórdia, 68 - LISBOA

Composto e impresso na Imprensa LUCAS & Cª


59, Rua do Diário de Notícias, 61 - LISBOA
SUMÁRIO

PREFÁCIO
PRIMEIRA PARTE
A IDEIA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
SEGUNDA PARTE
O ESTRANGEIRO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
QUARTA PARTE
A ARENA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
QUARTA PARTE
A AVENTURA
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
PREFÁCIO

Inaugurando a nossa coleção de “Obras primas contemporâneas”, obteve


este romance um dos mais decisivos êxitos do mercado livreiro português,
registrados nestes últimos anos. Não só com singular brevidade, se esgotou
a sua primeira edição como ainda depois persistiram os pedidos do livro, e
isto em tal afluência que tivemos de olhar o caso como imperativa
intimação do público para que o puséssemos de novo ao seu alcance: eis por
que, após revisão do tradutor, hoje se reimprime.
Ficou dito na nota preambular da anterior tiragem que tem uma história a
sublinhar-lhe o mérito. Mantém-se a oportunidade de referi-la, ainda que
sumariamente.
Associados, em 1932, os principais editores ingleses e americanos na
fundação de um Prémio Internacional do Romance (“International Novel
Competition”), de entre nada menos que dois mil e quinhentos manuscritos,
redigidos em muitos idiomas, que concorreram ao certame, foi este, o da ,
que o respectivo e exigente Júri elegeu como digno do cobiçável Prémio. O
seu autor - como não tardou em saber-se - era um jovem húngaro, nessa
data na precária situação de desempregado bancário, até então desconhecido
no mundo das letras e quiçá ignorante ele próprio da pujança do seu talento.
De súbito viu-se, assim, elevado aos cumes da fama e convertida a sua
penúria em fortuna: bastara dizer-se que imediatamente foi traduzida para
quinze línguas europeias e americanas. Aberta diante de si tão auspiciosa
carreira, outras obras F. Körmendi se apressou a escrever, sem trair as
responsabilidades impostas pela estréia, contando-se entre elas o
curiosíssimo romance O EQUÍVOCO, também já traduzido para português
e editado pela nossa Casa.
Encarando especialmente é lícito perguntar: qual a razão do seu
“fulminante” triunfo? A resposta é fácil: o haver neste romance “a pintura
fiel duma época”, a do autor e a nossa, aquela que a Grande Guerra de
1914-1918 deixou juncada de escombros e de ideologias antagónicas, de
costumes livres e de desenfreadas ambições. Arguto observador, psicólogo
que consegue ver os homens e os factos como eles são e que não hesita em
descrevê-los com verdade crua, o romancista elaborou um documentário
estupendamente fidedigno sobre a sociedade contemporânea. E achando-se
esta retratada com flagrância nas suas páginas como em poucos mais
romances dos últimos anos - porque se a Hungria, país natal de Körmendi,
conheceu mais cedo e com maior intensidade toda a gama das modernas
convulsões sociais, o certo é que todos os restantes povos, mais ou menos
vieram a sentir (e continuam sentindo) os seus efeitos, dos quais o mais
terrível é a incerteza do futuro para as gerações novas, em cujos espíritos se
fez como que um “vácuo de esperança”, - o êxito do livro era fatal. Deste
modo - e assim o assinalou por toda a parte a crítica - e aparece não só
como o mais palpitante romance da Hungria em dramática convalescença,
como também um dos mais vigorosos e de mais amplo significado humano
que as diversas literaturas de hoje têm produzido.
Reeditando-o, orgulha-nos verificar que o nosso público, tão apto como os
alheios a apreciar as obras-primas, de pronto lhe pulseou o valor e lhe
concedeu a consagração.

OS EDITORES
PRIMEIRA PARTE

A IDEIA

CAPÍTULO I

Os “companheiros” reuniam-se no café pelas dez horas da noite.


Os “companheiros” eram rapazes de Budapeste, de trinta e dois a trinta e
cinco anos, antigos condiscípulos do liceu, o único laço que os prendia
agora era, por assim dizer, apenas essa denominação de “companheiros”,
pela qual se designavam entre si. Noutro tempo, na escola, haviam formado
um grupo; pelo menos, a maior parte dos frequentadores destas reuniões do
café pertenceu no mesmo rancho. A promiscuidade dos assentos escolares,
a uniformidade de seus interesses, a semelhança de suas aptidões e, até
certo ponto, a classe e a situação económica das respectivas famílias,
tinham agrupado os companheiros.
Quanto eram diferentes uns dos outros, ou quanto assim se haviam tornado,
não o compreenderam senão no dia em que o banco da escola foi
substituído pela mesa redonda de mármore do café, o tinteiro pela chávena,
e quando às dores de barriga perante as perguntas-de-algibeira sucedeu o
medo das responsabilidades. Pouco a pouco, alguns desertaram do grupo,
enquanto outros, que a princípio se tinham mantido de lado, se lhe
juntaram.
Nenhum deles se apercebeu, provavelmente, de que o tempo tinha
quebrado, há muito, os laços outrora existentes entre eles, de que a sua
união assentava, afinal, no hábito cotidiano e não possuía sombra de
intimidade.
Inicialmente, haviam sido dois ou três a reunirem-se por acaso, durante os
dias turvos e inconscientes e as noites de pânico; mais tarde surgiram outros
rostos conhecidos: a sociedade ampliara-se. Havia os que “à chucha calada”
pediam umas coroas emprestadas ao vizinho; mas havia também quem, uma
dada noite, chegava ao café num automóvel novinho em folha. Um
negociante de móveis que casara cedo trouxera a mulher junto dos
companheiros. Todos esquadrinharam, da cabeça aos pés, mas
disfarçadamente, a casadinha de fresco; trocaram entre si olhares furtivos,
dando estalos com a língua como faria um gastrónomo perante iguaria
delicada; depois, aproximando as cabeças, mas sem mais cerimónias,
puseram-se a pormenorizar os encantos da senhorita. Ela a princípio ficara
embaraçada, achando-se constrangida em tal companhia; mas, pouco a
pouco, fora-se afazendo àquilo, pusera-se a rir das facécias e das anedotas
de liceu, e tinha acabado por se mover com naturalidade junto do lorpa do
marido e sob os fogos cruzados dos olhares ávidos desses caloiros de vinte
anos atrás. Um proferira a frase perigosa “noite de núpcias”, e, a partir do
momento, era de temer a crepitação de inequívocos atrevimentos; o
negociante de móveis tinha-se erguido então e o juvenil casal despedira-se.
Unanimemente, os “companheiros” haviam sentenciado: uma mulher
assombrosa! Depois, o assunto ficara arrumado: o negociante de móveis
não tornara a trazer a mulher e, passados tempos, ele mesmo deixara de vir.
Em compensação, viera outro: Suhajda. Usava o barrete de pala dos
estudantes, o seu porte era correto; fácil era, todavia, notar que não gostava
de dirigir a palavra a certos membros da sociedade. Às vezes o nome dele
andava em realce nos jornais, relacionado com assuntos universitários;
murmuravam-se até, a seu respeito, certas histórias; pretendia alguém tê-lo
visto, de mistura com oficiais, num automóvel que rodava pela estrada de
Vacs {1}. Mas, em suma, tudo aquilo não passava do “diz-se”; e como
Suhajda não aparecera ali, no primeiro ano, mais do que uma ou duas vezes
e como, aliás, não incomodara ninguém, os outros não se inquietavam
muito com ele. Depois, alguns deles não voltaram mais; mas em seu lugar
surgiram outras caras conhecidas: Kürschner, regressado do cativeiro na
Rússia; Tiszay, que apresentava a perna direita postiça; Schwarz, com uma
ligadura negra sobre o olho direito.
Efetivamente, na sua maioria haviam sido chamados às fileiras logo após o
bacharelado; muitos serviram no mesmo regimento, mas a maior parte
começara a dispersar-se no dia imediato ao do banquete de fim de curso e
não voltara a encontrar-se, salvo nessa época, em redor da mesa do café.
Estes serões eram agradáveis; por vezes, é certo, uma fala, uma palavra
sofriam desvio ao ponto de evocarem as granadas da Flandres, as trincheiras
piolhosas de Volhynia, as defesas de arame farpado de Krasnojarsk, a
infecta cevada cozida e os tumultos das ruas, de triste memória; - porém
imediatamente a voz importuna era expulsa por uma nota de premeditado
bom-humor: “Olha lá, José-Polgár, lembras-te de uma vez, no corredor …”
Durou isto três ou quatro anos. Havia serões vazios e serões em cheio;
numa dada ocasião, durante seis meses, o número dos “companheiros”
elevou-se a vinte e cinco; alugaram, então, no café uma sala especial para as
suas reuniões.
Quando, depois, alguns começaram a deixar de vir, houve necessidade de
espaçar as reuniões. Passaram a juntar-se só de quinze em quinze dias e,
após o banquete do décimo aniversário do bacharelado, combinaram reunir-
se apenas na quinta-feira última de cada mês. O seu número já não ia além
de quinze.
Esse banquete do décimo aniversário fora muito concorrido. Tinham faltado
somente os que se encontravam no estrangeiro: Cseh, que era chefe de
engenheiros numa fábrica de produtos químicos de Francfort; Bortkó,
expedido para a Rússia em 1920, quando duma troca de prisioneiros; Kádár,
que em 1919 desaparecera de Budapeste e em que ninguém mais tornara a
pôr a vista em cima; Szalay, secretário na delegação de Paris; Bamberger,
que vivia em Hollywood com um tio, rei do cinema.
Na noite do banquete haviam-se reunido em massa pela última vez:
quarenta e sete. Examinaram-se reciprocamente quanto à indumentária;
inquiriram-se mutuamente da sua saúde, da sua situação; acolheram o relato
das lamentações ostensivamente francas de uns e as gabarolices
generosamente atenuadas de outros; pronunciaram brindes, gracejaram,
riram, formularam amistosos votos a despeito de se sentirem, por natureza,
estranhos de todo entre si; e, dada a meia-noite, mais de um se levantou da
mesa com o sentimento tranquilizador de que por cinco anos, até à reunião
seguinte, nada mais teria a tratar com aquelas criaturas.
Apesar disso, esses dez ou quinze rapazes continuaram a encontrar-se,
apegados uns aos outros à força do hábito e por causa do serão mensal, que
à sua imaginação aparecia como isento de cuidados.
Viviam uns com desafogo; outros eram pobres; havia entre eles casados e
celibatários, cristãos e judeus,) gracejadores e homens deveras sisudos.
Nenhum destes rapazes de Budapeste conseguira uma carreira e todos o
sabiam perfeitamente sem que nunca falassem em tal.
Nas fontes duns já brilhavam cabelos brancos; o alto da cabeça doutros
começava discretamente a desplumar-se; passavam-lhes por cima os anos e
eles não reparavam senão numa coisa única, ou seja que os “companheiros”
se divertiam, em volta de uma mesa redonda.

CAPÍTULO II

No começo de novembro, na sala de espera dum dentista, sucedeu cair nas


mãos de Kelemen um jornal ilustrado, em que determinada gravura lhe
provocou especial atenção.
Notava-se nela, ao fundo, um belo portal vedado por arames, que tinha
diante uma espécie de toldo. Um homem ainda novo trajando de escuro
encontrava-se na frente desse toldo; defronte dele, uma multidão de
pessoas, algumas das quais com uniformes brilhantes. Por baixo da foto
havia a seguinte legenda: “Pôrto-Isabel, Cabo.
- O sr. A. T. Cadar (nº 1), o célebre arquiteto de origem húngara, recebe as
autoridades no ato da inauguração da sua nova cidade-jardim, que abrange
oitocentos pavilhões. Esta cidade-jardim, cujo encanto se torna impossível
imaginar e que sem parceira na superfície do globo, está situada a
setecentos quilómetros da antiga povoação, a beira . Grande número de
notabilidades da África do Sul apressaram-se a adquirir ou a alugar
vivendas nesse sítio, para passarem as férias ou o week-end {2}.
Esta cidade jardim, com as suas edificações do mais moderno estilo, os seus
magníficos campos desportivos, o seu Casino e o seu cinema, constitui
verdadeiro ornamento e jóia única em todo o Império Britânico. Em virtude
do sr. Cadar ter ali construído e oferecido ao Estado um amplo sanatório
para crianças e bem assim uma quantidade doutros edifícios de utilidade
pública, o governo consentiu que à nova localidade fosse dado o nome da
esposa do sr. Cadar, “Bairro Helena”, e fez-se representar na inauguração.
Os chefes da Comissão Oficial são o general L. I. Baldwin (nº 2), Sir
Kobert Hall (nº 3), governador civil de Pôrto-Isabel, e Mrs. Elisa Beitner-
Dirk, diretora da Repartição de Higiene do distrito (nº 4). A seu lado, está
Mrs. Helena Cadar (nº 5) Kelemen olhou a fotografia, correu a vista pelo
texto, e como não compreendia o inglês continuou a folhear distraidamente
a revista; depois, como o olhar se lhe detivera involuntariamente na palavra
“Húngaro”, voltou à aludida página e releu todas as palavras do texto que
era capaz de entender: “Mr. A. T. Cadar, the famous architect of Hungarian
oiigin”. Aproximou dos olhos a revista, observou o homem que estava na
frente do toldo, e em seguida repo-la em seu lugar.
“Aposto que aquele idiota, com a folha de papel na mão, é o Tony {3}
Kádár.”
Novamente examinou o texto e experimentou decifrá-lo, sem o conseguir.
Todavia, teimou em seguir até às palavras: “A seu lado, está Mrs. Helena
Cadar (nº 5) “Isto aqui quer dizer a Senhora de Kádár; ele deve-se ter
casado.” Voltou a fixar a imagem, tentou distinguir a figura da mulher, mas
na página um tanto amarrotada, nada mais apercebeu de que uma mulher de
estatura mediana, vestida de preto; não se lhe podiam apreciar as feições.
“Quem é que pôde casar-se com um idiota daqueles?” pensou, enquanto
voltava a colocar a revista sobre a mesa.
Na sala de espera do dentista, uma mulher idosa estava sentada em frente
dele, numa poltrona baixa; mantinha um lenço de encontro à face direita e,
de quando em quando, gemia doloridamente. Kelemen olhou a velha, sua
blusa preta com rendas, a sua saia de mau corte, a suas altas botas de couro
enrugado, com os tacões meio gastos. Seguidamente passou a vista pela
parede do aposento, com uma coleção de retratos de família entre dois
pratos de faiança.
“Aqui está um que também não deve fazer grande coisa no negócio”, disse
de si para si; e voltou a pegar na revista. Imediatamente a abriu na página da
foto e, firmando o olhar no rosto do “famous affchitect”, esforçou-se em
reconhecê-lo pelas feições. Estas não se apresentavam mais nítidas que as
da senhora; porém, ao examinar o vulto com maior atenção, descobriu de
repente que o homem fotografado apertava o braço esquerdo contra o busto,
dobrando-o pelo cotovelo, e deixava pender a mão acima do peito.
“É com certeza o Kádár; reconheço a maneira como coloca o braço”; e
tornou a ver António Kádár no corredor do liceu, no vão duma janela,
segurando na mão direita um livro em que afocinhava mesmo durante o
recreio e, deixando pender a mão esquerda exatamente da forma como se
via ali, na gravura, enquanto os “companheiros” cantavam em volta, em
coro: “Pinguim! Pinguim”, porque, de facto, o jeito de Kádár colocar o
braço lembrava bastante os cotos das asas destes pássaros.
ele, sem dúvida. Mas porque diabo aparece fotografado numa revista
inglesa?
Parece ter-se convertido em grande personagem, pois até o nome está
transformado em A. T. Cadar”.
Era sobretudo este “A. T.” que se impunha a Kelemen irritando o um tudo
nada.
“A. T.”, que idiota! Como nos retratos de Edison: “T. A. Edison, ou “G. B.
Shan”.
Começa porque não sei que tenha outro nome próprio além do de António.
Está-se a ver! Parte para o estrangeiro, faz lá fortuna, e ei-lo dotado de um
segundo prenome!
Que nulidade que era na escola!” Assentou com ímpeto e ruído a revista em
cima da mesa, pôs-se a olhar agressivamente a velha. Esta precedia-o na
consulta; eram quatro horas menos um quarto, ia chegar atrasado ao
escritório. A velha soltou um suspiro e ergueu para ele os olhos. Kelemen
interceptou-lhe o olhar, olhou o teto, soltou por seu turno um profundo
suspiro e desatou às passadas largas pela sala. “Kádár tornou se por certo
um figurão, de contrário a revista não se ocuparia dele.”
- Que maçada! Há vinte minutos que está lá dentro alguém, ao passo que
comigo não gasta mais de dois minutos! Ainda se a paga fosse por visita …
Mas as obturações são a preço fixo!” Ao passar junto da jardineira retomou
bruscamente a revista e olhou-lhe o título: “World’s Sunday
Pictures. Colonial Edition, Sth May, 1928.” Como viera ali parar este
magazine? Segurava-o na mão, dava-lhe voltas, olhando sempre para trás,
por cima do próprio ombro. A velha continuava sentada, a cabeça oculta nas
mãos.
Então Kelemen tossiu suavemente, acercou-se da janela e, num movimento
rápido, arrancou a página que continha o retrato de Kádár, após o que tossiu
novamente, desta vez com bastante força mais. Com prudência dobrou entre
os dedos a página arrancada, fê-la deslizar na algibeira e voltou a colocar
definitivamente o magazine sobre a mesa.
Passava das quatro horas e meia quando chegou ao escritório. Em primeiro
lugar, pediu desculpa da demora ao chefe da secção - o sr. Czilek acolheu
essa desculpa com um aceno de mão pouco amigável - e em seguida sentou-
se à secretária e extraiu da gaveta a relação das cobranças do mês que lá
havia metido ao meio-dia.
Examinou-a de má cara. As coisas caminhavam mal neste mês, não
entrariam em caixa nem sequer sessenta por cento das amortizações das
letras; o velho ia ficar furioso! Encostou-se ao espaldar da cadeira, acendeu
um cigarro e tirou da algibeira a foto-gravura.
Na sua frente estava sentado um rapaz baixo, de óculo e com o rosto
coberto de sardas.
- Dize-me, Kramer, sabes inglês?
- Eu? - perguntou o outro, levantando os olhos. Não, porquê?
- Então, quem é que sabe inglês, cá no escritório?
- Quem? A Nenenzinha, da correspondência.
- Efetivamente, a Nenezinha, da secção de correspondência, sabia bem
inglês.
Ele descansou o cigarro, tirou da gaveta mais umas folhas de papel,
introduziu no meio delas a gravura e ergueu-se.
- Que queres tu em inglês? - perguntou Kramer por detrás da outra
secretária.
Ele pigarreou, embaraçado:
- Um amigo meu enviou-me um artigo em inglês, que escreveram a respeito
dele.
Gostaria … - disse isto e saiu.
A Nenezinha, da correspondência, era uma solteirona de óculos, histérica e
suando por todos os poros. Encontrava-se sentada à máquina de escrever, os
dedos a correrem-lhe o teclado com uma crepitação de metralhadora.
- Que é que você quer? Que é que quer?! - exclamou ela quando Kelemen
lhe parou ao pé. - De que se trata? Não me incomode; tenho carga bastante
para uma pessoa endoidecer.
Kelemen contemplou um instante, com desgosto silencioso, os cabelos
oleosos da solteirona, o seu dorso curvado sobre a máquina.
- Vamos, Nenezinha - disse por fim - tenha calma; é um pequeno favor que
venho pedir-lhe. Quer traduzir-me esta meia dúzia de linhas? - e extraiu a
gravura do meio das folhas de papel.
- Que é? - e ela arrebatou-lhe da mão o escrito impresso. - Por amor de
Deus, vocês vêm-me maçar com tolices deste género precisamente quando
endoideço com trabalho! …
- Vejamos, minha Nenezinha, isto exige-lhe apenas um minuto, não mais …
Entretanto, posso oferecer-lhe um cigarro?
Ela pegou num cigarro, acendeu-o e expeliu o fumo em sua frente, numa
coluna espessa e reta.
- Devo ler somente, ou quer que escreva? - perguntou; mas, sem aguardar a
resposta, ela traçava já linhas a lápis numa folha de papel.
“O ar. A. T. Cadar, o célebre arquiteto de origem húngara, recebe as
autoridades …” - Tome lá; e agora deixe-me tranquila. Obrigada pelo
cigarro
- proferiu ela sem tomar fôlego, e imediatamente se inclinou de novo sobre
o seu montão de notas estenografadas.
- Muito agradecido, você é um anjo - disse Kelemen, que se afastou um
pouco da mesa da datilografa e se pôs a ler a tradução do texto inglês.
“Ah, ah, por conseguinte: este “A. T. Cadar”, Este célebre arquiteto de
origem húngara, é Kádár. Não está má a coisa! Uma cidade-jardim,
abrangendo oitocentos pavilhões. Que quer isto dizer? A cidade-jardim é
pertença dele! Oitocentos pavilhões, um sanatório para crianças, edifícios
de interesse público oferecidos ao Estado?! Em resumo, sim todo esse
terreno é propriedade sua assim como os tais pavilhões … e ele batizou a
coisa com nome da mulher? Que grande animal!
Mas o ponto é que deve ter muito peso!”
- Que está você para aí a murmurar? - perguntou-lhe a Nenezinha, voltando-
se para ele num movimento desengraçado. - E porque está ainda aí? Porque
é tanta estupidez?
- Estupidez, isto? Ó pequena, feliz de você se se tornar secretária dele. Sabe
do que se trata? Um amigo meu enviou-me esta foto, um antigo camarada
de turma
António Kádár, um tipo de Peste, olá: ele possui uma cidade inteira …
em …
onde diabo é? -e procurou nome da cidade - em Pôrto-Isabel.
- Sim, sim, li isso, mas onde fica Pôrto-Isabel?
- Nas índias, na Austrália, sei lá onde? … Aliás, olhe está designado aqui
em cima, é na África do Sul.
- Que diabo de expedidor é você, que nem sabe uma coisa dessas!
- Um expedidor, diz você bem! Como se a lista dos vencimentos de letras
de câmbio tivesse a menor relação com o Pôrto-Isabel ou Porto não sei quê
lá!
em Porto-Maurício ou em Peste, os Sofi wartz ou os Weisz não pagam? Não
é o porto que tem importância, minha filha. O que tem importância, é a farta
bagalhoça do companheiro. Adeus, minha querida mais uma vez obrigado!
… e, assoprando o fumo do cigarro para cima da dactilógrafa, voltou-lhe as
costas.
Na secção das tarifas perguntou por Kalmar, o chefe, o qual porém não
estava no seu gabinete.
- Você tem um planisfério ou um atlas? - pediu a um dos colegas dele.
Procuraram e acabaram por descobrir um atlas alemão na gaveta de Kalmar.
Kelemen abriu-o no índice. Porto … Porto … Porto-Artur, Pôrto-da-Paz,
Pôrto-de-Salau, Pôrto-Isabel; este último encontrava-se sob a cota . 66.
Buscou o mapa nº 66.
“Olha, é na África, na África do Sul … C 2, cá no extremo de baixo! É
compreensível: Kap-Kolonie, ou seja o Cabo, colónia inglesa … segundo
creio. Em todo o caso, o tom é cor de rosa, o que quer dizer inglês”.
Conseguiu que lhe emprestassem o atlas até o dia imediato e regressou à
sua mesa de trabalho.
Quando, depois das oito horas, deixou o escritório, havia no seu íntimo
certa inquietação. Estava um sujo tempo de outono, chuvoso; ele tiritava
debaixo do seu guarda-chuva de armação desconjuntada, cuja seda deixava
passar a água em muitos sítios. “Raios o partam! Um imbecil daqueles
constrói uma cidade na África do Sul, ao passo que eu sou obrigado a
dobrar o espinhaço diante desse asqueroso Czilek por trezentos e trinta
pengoes {4}. Que o leve o diabo, a este mundo roto e podre!” jantar do
restaurantezinho económico em que era pensionista não lhe agradava
decididamente, naquela noite. Remexeu uns instantes na comida, após o que
afastou os pratos com desagrado, e de novo lançou mão do atlas. “Pôrto-
Isabel … É na África do Sul. À direita, isto é na costa oriental. Lá, é certo,
deve fazer calor. Mas isto não me adianta ainda muito”.
Consultou o texto relativo ao mapa.
“União sul-africana … deve ser isto. Boers, Ingleses, Alemães,
Holandeses …
capital Pretória - diamantes, ouro, zinco, produtos agrícolas; portos
principais, Cidade do Cabo, Pôrto-Isabel … Em suma, deve ser uma bela
tocazinha; sessenta mil habitantes! Não há senão surpresas nesta vida. Um
Tony Kádár possuir ali 800 moradias! E se são apenas cubatas de pretos?
Como sou idiota!
Por causa de simples cubatas não fariam tanto barulho como no-lo dá a
entender a gravura! Pois bem, aqui está, sei presentemente que Pôrto-Isabel
é na África do Sul e que A. T. Cadar é um arquiteto célebre e milionário.
Que proveito me pode dar isto, no fim de contas? …
No dia seguinte restituiu o atlas ao sr, Kalmar. Todavia, aquela história de
Kádár perturbara-o. Durante uns dias não pensou em tal, até voltar a achar
numa algibeira de seu fato azul a página arrancada ao magazine inglês!
Olhou-a, voltou-a e tornou a voltá-la entre as mãos; já lhe sabia o texto de
cor. Que sorte extraordinária, a daquele animal! Na escola tinha sido o
último dos imbecis! Mas são sempre esses que completam uma carreira.
Devia ter milhões.
Oitocentas vivendas … Kelemen não compreendia … Alugava-as ou
vendia-as? A cidade-jardim era propriedade sua, ou tinha simplesmente
construído as casas? E ele, Kelemen, com os seus trezentos e trinta pengoes
por mês! … Este contraste não cessava de perseguí-lo e, durante aqueles
dias, sentiu-se de muito mau-humor.
André Kelemen, rapaz de Budapeste, de cabelos escorridos penteados para
a nuca, faces pálidas de quem vive entre as quatro paredes dum escritório,
de boa altura e largo de ombros, porte um tanto indolente e fatigada atitude
que se refletia nos dois vincos serenos e amargos dos cantos dos lábios,
André Kelemen, de trinta e tantos anos de idade, achava-se perplexo e
confuso perante aquela carreira cuja notícia lhe chegara por acaso. Este
Tony Kádár emigrara certamente, logo que saiu da escola para o
estrangeiro. Entretanto, André Kelemen …
Lançara-se na vida aí por 1910, quando a Junta de Revisão reformara
devido a fraqueza geral, e deste modo o melhor que tivera a fazer, obtido o
bacharelado, fora por-se a ajudar o pai no seu comércio de coiros em bruto.
Os negócios marchavam então o melhor possível. Depois, viera o
comunismo. Quem podia pensar, nessa época, encontrar um emprego? nem
valia a pena, dado o pouco tempo que devia durar o regime.
Após a ditadura do proletariado, o aspecto do mundo mudara de súbito.
Havia entrado para uma pequena casa bancária de especulação, em que os
negócios caminhavam novamente muito bem. Para ganhar dinheiro no meio
de destroços, não se necessitava de experiência ou qualquer preparação;
quando muito, de faro. E era isso que possuía, justamente. Os lucros lícitos
não tinham importância alguma; o essencial era poder manejar, por
encomenda, certos papéis e valores estrangeiros. Durara isto alguns anos,
até que o pequeno banco fraudulento, conforme as normas, abrira falência, e
a maior sorte de Kelemen não fora sequer a de não ser preso com o
Conselho de Administração, mas sim a de ter podido salvar algum do seu
dinheiro.
Em dada altura, o velho morrera. A mãe, e bem assim as duas irmãs,
Carlota e Yoli, ficavam a seu cargo. Mui afortunadamente, Carlota não
prolongara as suas hesitações em casar com um negociantezito de géneros
alimentícios dum bairro excêntrico. Yoli era ainda, nesse tempo, uma garota
que não dava cuidados além do bocado de pão que comia e dos seus livros
escolares.
Enquanto durara o dinheiro a existência tinha-lhe corrido mui fácil e
agradavelmente, a vadiar em volta da Bolsa, a frequentar as corridas de
cavalos, os cafés, e a atamancar alguns negócios um tudo nada equívocos,
inofensivos se realizados por outra via; numa palavra, não tinha tido
qualquer ocupação regular. Decorrendo os dias assim, de repente achara-se
sem dinheiro, sem profissão e sem esperança de encontrar onde se
empregasse. Como é natural, loucas diligências se seguiram. Havia sempre
e simultaneamente uma dezena de situações em vista; mas nada dava
resultado. Era de admirar, em tempos tão difíceis? Acabava de trocar a sua
última nota de cem mil coroas, emprestada pelo cunhado, quando,
finalmente, um velho amigo do pai lhe conseguiu colocação numa em-presa
de transportes. Contava vinte e seis anos, era pau para toda a obra sem ter
vocação para nada, sentia a nostalgia da vida bem ordenada e rica; no
fundo, ficara enormemente desgostoso por ser coagido a fazer de novo uma
estréia profissional, a trabalhar com horário fixo, a garatujar papel num
escritório com a perspectiva única do ganho de dois milhões de coroas por
mês.
Tudo isto de si horrível e, sem dúvida, a causa primacial do permanente
descontentamento que surdamente o corroía havia anos e que lhe não
concedia um só minuto de tréguas. Seis anos, Senhor! Que adquirira em seis
anos? Trezentos e trinta pengoes por mês, um chefe de secção ríspido,
descontente, coça-bichinhos, um trabalho aborrecido e sem horizonte!
Os cabelos começaram de cair-lhe assustadoramente. Usava, desde a época
em que fora banqueiro, óculos com aros de tartaruga; já nada esperava dos
homens e as coisas não lhe despertavam maior interesse; via o futuro sob
uma claridade tal que já nem achava proveitoso sonhar com o que havia de
seguir-se.
André Kelemen contava trinta e dois anos de idade mas, sob a sua aparência
de rapaz de vinte e cinco, haviam-se acumulado cinquenta anos de fadiga e
de tédio. Por isso mesmo, quando, oito ou dez dias mais tarde, a aludida
fotogravura lhe caiu de novo debaixo de mão, contemplou o Pinguim diante
do seu portal ricamente ornamentado e pensou: “Meu Deus, como me tornei
uma nulidade!”
CAPÍTULO III

Era a vinte e seis a última quinta-feira do mês: nessa noite devia efetuar-se
no café a reunião habitual dos companheiros. Do “Restaurante Burguês”
Kelemen dirigiu-se a casa; despiu o vestuário que levava ao escritório,
mudou de colarinho e envergou o seu belo fato azul. Em boa verdade, isto
contrariava a norma de não haver cerimónias, mas os fundilhos das calças
do fato cinzento estavam lustrosos e o casaco tinha os cotovelos no fio.
A viúva Hunka, sua hospedeira, trouxe-lhe uma escova de calçado; ele
serviu-se dela para tirar a lama dos sapatos, após o que procurou dar-lhes
lustro esfregando com um pano da velha cobertura do divã. Bateram.
- Entre - disse ele, e levantou-se. A criada da senhora Hunka transpôs a
porta.
- Senhor - proferiu ela - o sr. Weisz está lá em baixo e gritou que não estava
para subir três andares. Vendo luz aqui no quarto, perguntou se o Senhor se
encontrava em casa e se ia ao café.
- Está bem, menina. Diga-lhe que já vou.
A jovem provinciana saiu, deixando a porta aberta. Kelemen desprendeu do
cabide o jaquetão e vestiu-o, enquanto se dirigia para a antecâmara. O
quarto dava para um corredor sombrio e estreito; ao chegar à extremidade,
lembrou-se de qualquer coisa, voltou atrás às apalpadelas, acendeu a
eletricidade. Procurou a gravura pesquisando, primeiramente, nas
algibeiras, depois em cima da estante, entre os livros. Debalde, porém. Não
era capaz de recordar-se do sítio onde a tinha colocado. Forte arrelia! As
palavras constituíam só lenga-lenga, ao passo que a gravura representava
uma prova. Deixara-a, talvez, no escritório.
Voltou ao corredor; a porta da cozinha estava aberta e a serva, sentada no
banco, preparava-se para moer café.
- Ouça, Julieta - disse ele, ao mesmo tempo que metia a chave na fechadura
da porta da antecâmara - não viu por acaso uma fotografia no meu quarto?
A moçoila interrompeu o trabalho e deu uns passos naquela direção.
- Que espécie de fotografia, diga, se faz favor? - perguntou ela com certo
tremor na voz.
- Uma fotografia em que se viam diversas pessoas.
- Sim, senhor, mas supus que a não queria já …
- Santo Deus! ao menos, não a deitou fora, não? … Que é que lhe fez?
encolerizou-se ele.
- Preguei-a na parede do meu quarto, .. Eu não sabia que o senhor ainda
precisava dela …
- Está bem. Então não houve mal de maior. Vamos arrancá-la de lá,
depressa.
Seguramente, tenho muita necessidade dela - e um risinho lhe cocegou na
garganta. “O sr. A. T. Cadar, com as suas oitocentas vivendas, pregado na
parede do quarto duma criada …” Seguiu a rapariga; a imagem encontrava-
se pregada por cima da cama de ferro.
- Será precisa uma faca para tirar os preguinhos - disse a criada cheia de
zelo e pronta a correr à cozinha.
- Que a leve o diabo, à faca! - e, sustendo a respiração para não sentir o
odor acre do cubículo, arrancou à pressão do prego a imagem.
- Não fique zangado comigo - insistiu a rapariga; ele porém interrompeu-a:
- Não, não fico zangado, descanse … faz-me falta esta gravura, mas dar-lhe-
ei outra … um postal ilustrado …
E saiu.
Já se encontravam reunidos muitos companheiros à roda da grande mesa do
primeiro andar. - Boa-noite, boa-noite! …
O famoso Weisz ocupava-se nesse momento em narrar a história do seu
encontro com
Flanderum, dos velhos camaradas da escola, oficial de carreira, que, aos
trinta e dois anos, ainda era tenente; concluiu que, por aquele andar, o
homem seria promovido a general aí pelos cento e quarenta e seis anos.
Kelemen mexeu o seu café.
Avistando em cima da bandeja de Szende um quadrado de açúcar, estendeu
a mão e perguntou: “Dá licença? …” Depois, balouçando o corpo na
cadeira, atirou a frase:
- Ouçam, meninos, vocês lembram-se do Kádár?
- Kádár?
- Toni Kádár?
- O pinguim?
- Ainda o dizes?! … Se a gente se lembra dele!.
- Que lhe aconteceu? Ninguém mais lhe pôs a vista em cima …
- Pois bem, escutem - prosseguiu Kelemen destilando as palavras, com ar
importante, através dos lábios; - que pensariam vocês se eu lhes dissesse
que, de nós todos, foi ele quem conseguiu a mais bela carreira? …
Um curto silêncio seguiu esta declaração.
- Como foi o maior imbecil de todos nós, o caso não me admiraria por aí
além disse sentenciosamente o esguio Weisz.
- Vá lá - pediu Róna - conta-nos a história de Kádár. Kelemen achou que a
curiosidade geral não estava ainda suficientemente excitada.
- Que diriam vocês de oitocentas moradias à beira-mar?
- Uma praia desse tamanho nem sequer existe - declarou Szende. - Garçon!
Traze-me um Palatino e uma boquilha para charuto.
- Em primeiro lugar, como sabes tu isso? - perguntou Króh fixando-o
desconfiadamente através dos seus óculos de aros de metal branco.
- Sei-o … Olhem, aqui está …
Kelemen tirou da algibeira a página do magazine, pô-la sobre a mesa,
passou sobre ela os dedos para desenrugá-la e assentou-lhe depois em cima
o punho cerrado.
- Olhem bem isto!
Afastou o punho de sobre o papel, inclinou-se um pouco para a frente,
tomou aquele na mão e pôs-se a ler em voz solene: “Pôrto-Isabel, Cabo: A.
T. Cadar, o célebre arquiteto, de origem húngara …”
- Conheces tão bem o inglês que o possas traduzir, ex-abruplo? - interrogou
Zátony.
- Sim - respondeu ele hesitante - sei uns pedacitos. E tu?
- Yes - disse Zátony, num tom distante e frio. - Não, meu velho, não sei, não
tenhas medo, que não te farei Perguntas-de-algibeira … Mas deixa lá ver
isso!
E estendeu a mão para o papel. Este andou à volta da mesa. Todos lhe
pegaram, todos reconheceram Kádár pela maneira como ele colocava o
braço, cada qual tendo a sua observação a fazer; todavia, todos estiveram de
acordo em declarar que se tratava de uma coisa séria e que, por conseguinte,
Kádár havia sido enormemente favorecido pela Fortuna.
- Eh lá! - exclamou Simon inesperadamente - deixem-me ver outra vez esse
papel!
Segurou-o na mão, voltou-o e tornou a voltá-lo, aproximou-o dos olhos.
Afinal, isto é um artigo publicitário, pago a tanto a linha; mas não
importa …
Somente, não vejo data alguma na página. Quando foi publicada?
Subitamente, em pensamento, Kelemen, reconstituiu a primeira página da
revista, com o reclamo duma marca de pomada para calçado e o título.
- Se bem me recordo, em maio de 1928 … isto é, há quase ano e meio.
- Oh, então, o caso muda muito de figura - disse o pernalta Weisz,
desconfiado e desdenhoso: dessa data para cá, houve tempo de sobra para
ele abrir falência.
- Idiota - replicou-lhe Márton. - Julgas que em toda a parte as coisas se
passam como entre nós? As condições de fortuna, nesses países, não são
precárias ao ponto de caírem ao menor sopro.
- Quais condições? - interrompeu Róna, que havia herdado do pai um
estabelecimento de porcelanas, antigo e bem conceituado. - Tens apenas na
ideia as enormes fortunas que lá existem? Pois fica sabendo que um
industrial, um empreiteiro como aquele de que se trata, nada é comparado
com um … plantador de arroz, por exemplo! …
- Em Pôrto-Isabel - interrompeu severamente Króh - não há plantações de
arroz.
- Sim, há; - replicou Róna imperturbavelmente - e, se as não há, há
plantadores de café ou de algodão …
- Mas, por favor, não compreendo aonde queres tu chegar - disse Kelemen,
já nervoso e como que ofendido! por conta de Kádár - com o teu café e o
teu algodão! Não podes, apesar de tudo, duvidar de que ele tenha muito
dinheiro?!
- Muito dinheiro … muito dinheiro … trata-se de saber o que se entende por
muito dinheiro. É relativo …
- Relativo, que imbecilidade! - berrou um deles.- Admitindo que cada uma
dessas vivendas valha apenas dez mil pengoes, isso perfaz já oito
milhões! …
- Contanto que, bem entendido, tudo lhe pertença.
- O quê? Dez mil pengoes? - Compro-ta por quinze mil - exclamou outro, e
um alarido de vozes ergueu-se então por cima da mesa.
- Eu só queria as contribuições dele, nada mais do que as contribuições que
paga, meu amigo - ambicionou, entusiasta, Amman (ordinariamente duma
distinção tão fria e tão calma), pontuando as suas palavras com um soco na
mesa.
O tumulto apaziguou-se a pouco e pouco. Prevaleceu a opinião geral de
que, a admitir a autenticidade da informação, isto é, da gravura, era evidente
os negócios de Kádár caminharem muito bem, embora o caso não fosse de
modo algum extraordinário, em proporção com os normais nesses distantes
países. Todavia, era notável que um pobre rapaz de Budapeste, antigo
condiscípulo deles, tivesse atingido uma situação relativamente tão bela …
Evidentemente, bastava emigrar desta cidade miserável para triunfar, por
mais pobre que um homem fosse …
- No final de contas, eu não sei mesmo se era assim pobre como se dizia …
andava sempre tão bem vestido!
Lembro-me eu muito bem que ele era da Transilvânia e que habitava com
os pais, pessoas muito corretas …
- É possível, meu velho; mas o que é certo também é que recebia da
biblioteca da escola os livros de estudo e que tinha dispensa de propinas.
- Agora a propósito de livros escolares - interrompeu Szende, vocês
lembram-se duma ocasião em que …
Foi este o lamiré dum interminável rosário de anedotas extraídas da sua
comum passagem pelos liceus, histórias que, no decurso de treze anos,
tinham sido muitíssimas vezes evocadas; não obstante, isso era ainda o que
nunca enfadava.
Kelemen conservava o rosto alegre, mas uma espécie de insatisfação
trabalhava-lhe o íntimo. Sentia que a história de Kádár não provocara a
sensação que esperava.
Aqueles imbecis não tinham compreendido.
Que é que eles não tinham compreendido?
Sacou da algibeira das calças um encolhidinho cigarro, acendeu-o e,
aspirando profundamente uma fumaça, olhou fixo na sua frente e soube ver
com clareza e segurança o que aqueles imbecis não tinham compreendido.
No caso de Kádár havia um filão a explorar.
Fechou os olhos, reclinou a cadeira para trás e deixou sair lentamente o
fumo pelas narinas. Afinal, não importava nada que os outros não tivessem
compreendido.
O essencial era que ele, Kelemen, soubesse ver na história de Kádár um
filão de que poderia …
Abriu os olhos, observou um instante o grupo de companheiros, que riam de
gosto, e logo fez retinir uma bandeja com algumas pancadas do seu anel de
oiro, oferta paterna quando atingira o grau de bacharel.
- Rapazes - disse ele com certa preguiça na voz - dar-lhes-ia prazer, se
estivessem no sertão, receber, quando menos esperassem, notícias da mãe-
pátria?
- É conforme - respondeu Amman; mas já Króh o interrompia com
brusquidão:
- Em poucas palavras, queres escrever a Kádár?
- É isso mesmo - confirmou serenamente - porque não?
- Porque não? - replicou o outro - eras assim tão seu amigo?
- Eu? não … - prosseguiu Kelemen, olhando para Króh com a vista
carregada de severidade. - Nem tu tão-pouco … - acrescentou de súbito, e
um purpurino calor o invadiu interiormente porque esteve a ponto de
declarar: “Mas posso ainda vir a sê-lo.”
- Eu com certeza que não, isso é verdade - assentiu Króh; - e tu, Szende?
- Eu, tanto como vocês …
- E tu, Amman ?
- Não muito.
- E tu, Márton?
- Desagradou-me sempre …
- E vocês, Simon, Kempner, Róna, Zátony?
Todos os quatro interpelados disseram “não” com a cabeça, e Weisz
acrescentou espontaneamente:
- O Pinguim? … era um pedaço-de-asno.
- Ora, ainda bem! - concluiu Króh com satisfação e maldade. - Visto que
nenhum de nós se deu bem com ele, é lógico enviarmos-lhe uma saudação
para Pôrto-Isabel.
Alguém sibilou um “Idiota!” Mas todos os assistentes deram razão a Króh.
- Escuta, Króh - começou Kelemen, pensativo; - eu não te compreendo. Se
lhe enviarem umas palavras neste teor: “Salve, Kádár, como estás?
Lembramo-nos ainda de ti. Até à vista”, não achas que o caso agradaria até
a um animal selvagem?
Como sabes, o que menos me importa são sentimentalismos, mas quando
penso que a nossa carta poderia chegar-lhe às mãos precisamente pelo
Natal … Aliás, desde que fazes cenas por tudo, a primeira vez que te
encontrar na rua não te saudarei, porque poderá vir-te à ideia que um dia, no
nosso terceiro ano, te dei uma bofetada e que, de então para cá, nunca mais
nos sentimos bem juntos um do outro. Tenho ou não tenho razão?
- Intimamente, ele tinha razão. Este discurso calmo, simples e resoluto
colocara toda a tertúlia do seu lado.
Róna sacou da sua grossa caneta de tinta permanente e bateu com ela na
mesa.
- Garçon, papel de carta!
Um instante depois, o criado do café trouxe uma folha de papel com o
respectivo sobrescrito. Róna desenroscou a caneta.
- Antes de mais nada … escrevemos-lhe em estilo gracioso, ou a sério?
- Antes de mais nada … quem escreverá não serás tu, mas sim Kelemen -
disse Amman, tirando a pena da mão de Róna e passando-a a Kelemen, sem
deixar porém de esperar que este último, por cortesia, lhe cedesse por seu
turno o cargo.
Entretanto, Kelemen, depois de ter, um instante, olhado em sua frente,
pensativo, estendeu a mão para o lado de Amman.
- Bem … passa para cá a pena.
Quando Amman, um tanto desapontado, lhe fez entrega dela, Kelemen
relanceou a vista em redor.
- Então, que é que se escreve?
- Basta de etiquetas - decidiu Márton - escreve o que disseste há pouco, isso
mesmo ou com um pouco mais de estilo. Escreve assim: “Prezado Kádár,
soubemos que …
- deves ter muito peso - ironizou Króh … - mas logo outro arremessou em
voz baixa um “Imbecil!” e ninguém mais lhe deu atenção.
- Eis o que se vai escrever - disse Kelemen: “Prezado Kádár, estamos
reunidos num café de Peste, não te esquecemos e tivemos notícia de que os
teus negócios caminham bem …”
- “Não te esquecemos!”; a frase não me agrada interrompeu Zátony; -
escreve, em vez disso …
Minutos decorridos, Kelemen copiava, numa folha de papel, já a terceira, o
texto definitivo, que era o seguinte!
“Prezado Kádár, um pequeno grupo de antigos condiscípulos teus envia-te
uma amigável saudação por ocasião do Natal. Por mero acaso, soubemos,
com o maior prazer que fizeste uma bela carreira, que casaste e que te
tornaste rico e célebre. Todos recordamos com simpatia os dias que, juntos
e alegremente, passámos nos bancos de escola e desejamos te, para o futuro,
todas as prosperidades.”
- Uf! - respirou Kelemen, ao findar. - Assinem e passou a pena ao vizinho.
- Tu, primeiro - disse Róna, mas estendendo já a mão para a caneta,
Kelemen apôs o seu nome e transferiu a carta assim como a pena para o que
estava a seu lado.
- De modo legível, façam favor - chasqueou Króh; mas ninguém lhe prestou
ouvidos.
- Ótimo! - exclamou Kelemen, quando o escrito lhe voltou à mão, - Dois,
quatro, catorze … Vamos, Króh, nada de brincadeiras, assina aqui, tu
também.
- Não - respondeu Króh, repelindo obstinadamente na pena … - Quero tanto
saber do Kádár e das suas moradias como da primeira camisa que vesti!
Deixem-me em paz …
- Como quiseres - redarguiu Kelemen, após o que olhou Króh fixamente. -
Sabes o que tu és? Um idiotazinho , e um desmancha-prazeres.
- É possível - respondeu, brusco, Króh. - Tu, Kelemen, és, de todos, aquele
que menos me poderia ofender … mas o que eu não quero é pôr-me de
gatas diante de ninguém..
- Basta, basta! - interveio Róna, nervoso.
Desde a entrada na escola, Róna detestara sempre Króh, tendo ao mesmo
tempo medo dele; e, apesar-de passados tantos anos, sentia-se incapaz de
vencer esse temor pueril. O que acrescia ainda mais a sua antipatia por Króh
era o facto de este ser redator de um jornal socialista e não ocultar que era
pobre, não sentindo sequer vergonha alguma disso, e ainda a circunstância
de, regularmente e a propósito de todos os assuntos, exteriorizar uma
opinião diferente da dos outros.
- Deixem lá! Põe a direção, Kelemen.
Kelemen escreveu no envelope:
“Sr. A. T. Cadar, arquiteto, Pôrto-Isabel, África.”
Discutiram ainda o pormenor de saber quem figuraria como remetente, no
verso do sobrescrito. Teria sido melhor escrever: “Os companheiros de
quinta-feira” e o nome do café, mas acabaram por concordar ir em nome de
Kelemen.
Este último meteu a carta na algibeira.
- Amanhã fá-la-ei seguir do escritório; nós lá expedimos a correspondência
pela estação central.
Não se falou mais na carta. As conversas, os gracejos seguiram o curso
normal.
De quando em quando, escapava-se uns gorgomilos, um som geme-bundo;
outras vezes, uma gargalhada de criança repercutia no ar. Próximo da meia-
noite, disseram-se adeus.
Ao chegar a casa Kelemen acendeu, bocejando, a eletricidade no seu quarto.
“Está frio … Esta maldita velha avarenta não deita lenha no fogão, à noite.”
Pôs a carta sobre a jardineira e encerrou a gravura na estante, escondendo-a
debaixo da caixa dos colarinhos numa das prateleiras superiores.
“Que estupidez!” Feita daquela forma, a coisa quase não tinha ponta de
senso.
Eram frases ocas, um cumprimento de Natal, zero. “Nem sequer
responderá, pensou!
Eu, no seu caso, também não responderia. Era como se me encontrasse na
Lua e me escrevessem do planeta Marte …”
Fitou o teto.
“Se se pudesse acrescentar ali uma nota pessoal ou alguma coisa que
especialmente o interessasse!”
Tirou o jaquetão, o colete e o colarinho e arremessou tudo para cima duma
cadeira.
“Se eu soubesse haver alguém, cá, ou se qualquer coisa lhe pudesse …”
Ocorreu-lhe então uma ideia. Extraiu a carta do envelope, releu-a. Em
seguida procurou na escrivaninha uma velha pena e um tinteiro; depois, tal
como estava, descalço, em mangas de camisa, sentou-se à mesa e desdobrou
a carta na sua frente.
“Meu prezado Kádár: escrevo-te duas linhas à-par porque fui eu quem
descobriu no “Wolds Sunday Picturés” a tua fotografia e a tua direção.
Digo-to com toda a franqueza, senti vivíssimo prazer em ter notícias tuas
após catorze anos sem te pôr a vista em cima. Além do que, Kelemen
refletiu uns instantes no que convinha dizer em seguida) podes estar certo
de que a sorte dum dos meus antigos condiscípulos, ido para tão longe de
Budapeste não me é indiferente, apesar de nós não termos sido, colegas,
amigos íntimos. Os companheiros que assinaram comigo esta carta ficaram
extremamente surpreendidos!
Alguns regozijaram-se como eu, outros mostraram um pouco de inveja, mas
todos nós, no fundo, experimentámos admiração pelo teu êxito na vida.
Como é natural, não conseguimos fazer ideia do que te sucedeu até
chegares a Pôrto-Isabel.
Considerar-me-ia muito feliz se pudesse saber diretamente - isto é, por ti
próprio - alguns pormenores a esse respeito e mais particularmente feliz me
sentiria se pudéssemos ainda voltar-nos a ver neste mundo. De resto, quem
sabe?
..” Refletiu se convinha acrescentar ali mais alguma coisa, mas contentou-se
em terminar assim:
“A ti e à Senhora tua esposa, envio as minhas mais cordiais saudações. Teu
sinceramente dedicado …”
E assinou: “André Kelemen”.
Lacrou a carta e meteu-a na carteira. Não poderia, contudo, expedi-la
juntamente com o correio do escritório, porque aquele Cailek …
Despiu o resto da roupa e enfiou a camisa de noite, amarrotada, de contacto
frio. Deitou-se e apagou a luz.
SEGUNDA PARTE

O ESTRANGEIRO

CAPÍTULO I

Nos fins de Novembro, regressara a Budapeste, andrajoso, esfalfado,


faminto.
No sector da frente de batalha onde se encontrava ultimamente, entre
Checos, homens da Bósnia e Húngaros regressados do cativeiro russo, as
coisas começaram, de caminhar mal desde o meado de Outubro.
Sucintamente, dizia-se: “As coisas vão mal”; queria isto dizer que, numa
dada ocasião, faltaram os víveres durante cinco dias. Verdade seja que se
tinha comido chocolate, isto é, aqueles que o possuíam e até acabarem com
ele. Também já doutras vezes acontecera ficar para trás a cozinha, mas
nunca durante cinco dias! Depois, apareceram os aviões italianos.
Anteriormente também, acontecera que em vez de bombas e de torpedos, os
aviões haviam lançado, aos milhares, prospectos, redigidos em alemão
impecável e em idioma húngaro bastante correto. Um dia, o avião de
Annúnzio honrara o sector com uma visita de propaganda desse género, e,
por tal sinal, o alfereal Szabó estivera a ponto de abatê-lo. Porém, desta vez,
choviam do céu escritos doutro género: “Deponham as armas e voltem para
casa! O vosso aliado búlgaro já renunciou a uma luta sem esperança e o
exército vitorioso das Potências aliadas avança para as fronteiras da vossa
pátria!” Eis o que, pouco mais ou menos, se encontrava escrito naquelas
mensagens. Outra chegava a dizer: “A revolução rebentou no vosso país:
regressai às vossas casas, recusai-vos a obedecer àqueles que vos
conduziram ao açougue.”
Eram factos, esses, já extremamente perturbadores. A incerteza e a
inquietação haviam já aumentado devido à circunstância de ter aparecido,
de surpresa, na segunda linha, o general de brigada Basch - o “carniceiro” -
e de o alferes Kauser ter mandado fuzilar, sem processo formado, o cabo
checo, Tricka, em poder do qual haviam sido encontrados quatro ou cinco
dos tais papéis.
Finalmente, nos dias últimos de Outubro, toda aquela geringonça desabara
de um dia para o outro. Também ele abalara, de regresso a casa.
Seriam talvez uns setenta ou oitenta os que, no seu sector, tinham decidido a
partida em grupo e, como entre si combinaram, o mais possível em ordem
disciplinada; embora, em todo o caso com pressa, porque as hordas
desmoralizadas que afluíam do sector situado um pouco mais ao sul
contavam que as tropas italianas que iam avançando tinham aprisionado
corpos inteiros do exército e cair em cativeiro, agora que tudo acabara,
passaria as raias da estupidez.
Não havia tempo para hesitações: “Demos às de vila-diogo “ Felizmente,
nos campos da Tauerntal encontraram de longe em longe algumas abóboras
esquecidas havia-as grossas como tonizinhos e boas para cozer mas que,
mesmo cruas, também não eram más. Ao chegarem a Ossiach, já eram
apenas dezassete. Na estrada principal, mataram à pancada dois camponeses
recalcitrantes; durante algum tempo prosseguiram então a viagem como
grandes senhores, numa carriola de madeira puxada por quatro cavalos.
Gábor, Altmann e Héczefalvy ficaram em Villach e milagre foi que
tivessem podido arrastar-se até ali: as abóboras cruas provocaram-lhes uma
disenteria pela manhã.
Fazia um frio de seiscentos mil diabos. Em Villach, nem sequer um cão se
ocupou deles: toda a gente estava atenta à invasão dos Jugoslavos. Depois,
sem mesmo saberem como, conseguiram subir para um comboio que ia
partir! e rodaram durante nove ou dez dias. Uma noite formavam a menor
ideia do local onde podiam estar então crepitaram tiros no talude da via
férrea; algumas balas penetraram na sua carruagem e, se bem que à primeira
detonação o automatismo engendrado pelo hábito os tivesse feito fugir para
os recantos mais abrigados, o pobre Feledy, com o rosto pálido, desatou a
praguejar contra o criador deste mundo infame; no lugar de dois dedos na
mão esquerda, tinha agora dois cotos ensanguentados. A ferida jorrava
sangue furiosamente e ele pôs-se mais amarelo do que a cidra. Um dos
companheiros obrigou-se à proeza gimnásticas para percorrer todo o
comboio, à procura de um médico; igualmente os outros se lançaram em
todas as direcções … facto este que deixara de representar un reflexo
adquirido nas trincheiras, para ser antes a perplexidade devida à sua fé no
mundo da gente civil, no mundo da paz, na ordem e no sistema destes dois
mundos Médico, não se encontrou; e, passada a primeira atra palhação,
ligou-se a ferida com toda a espécie de trapos sujos e restos de peúgas
desbotadas.
Comprimindo ainda mais, de modo a ficarem em posições quase
impossíveis, alcançaram espaço para deitar o pequeno Fele num dos bancos
compridos do compartimento. No terceiro dia, o pobre rapaz tinha ja a cara
completamente negra, no dia seguinte o comboio parou numa aldeia onde,
pela janela desembarcaram o seu cadáver, embrulhado no capote.
Zoltanszilasi tomou conta do relógio, do canivete, da carteira e da chapa de
identidade do defunto. O estado de espirito no compartimento era ruim.
“Teve pressa de recolher a casa, o desgraçado comentou um dos viajantes,
quando o comboio voltou a pôr-se em marcha. Chovia então.
Dias depois, um deles olhou através da janela e exclamou: “Olhem, uma
bandeira húngara!” Efectivamente, no alto de um edifício, diante do qual
parara a carruagem, tremulava a bandeira tricolor húngara, e na fachada do
mesmo edifício via-se o nome da estação, “Kotor”.
Não saltaram abaixo da carruagem senão depois de lhe ser dito que o
comboio não ia mais longe! Mas quando todo o grupo reunido diante da
estação, os gendarmes envolveram-nos e conduziram-nos à sede do
comando. Encontrasse aí instalada uma espécie de comitê. Fizeram-nos
aguardar um bom meio-dia até que alguém se dignasse, por fim, dirigir-lhes
a palavra; depois ao termo dalguns minutos, foi-lhes permitido dispersarem.
Olharam à sua volta: que iam fazer? Permaneceram uns na aldeia, outros
voltaram à estação de caminho de ferro, na esperança de que, mais tarde ou
mais cedo, partiria um comboio. Com outros ainda, Kádár vagueou pela
aldeia e entre a aldeia e a estação, ansiando por alguém que desse um bom
conselho, dissesse qualquer coisa útil, o informasse! …
Ele conservava ainda consigo a moeda de ouro que em 1916, em Deva, a
mãe lhe suspendera do pescoço, cosida num saquinho. Agora, essa moeda
vinha muito a propósito. Até Murakeresztúr, a caminhada foi extremamente
longa e penosa na lama dos charcos formados pelas chuvas de Outono; mas
ao menos, acolheram-no ali pessoas mais decentes.. Trocou na estação de
caminho de ferro a sua moeda de ouro. No povoado bebeu grande
quantidade de leite e, ao voltar para a estação, apertava debaixo do braço
dois pães inteiros e uma libra {5} de queijo de ovelha. Em Murakeresztúr, os
soldados vindos da “frente” sentiam-se já como que na própria casa: um
camponês, que esperava o regresso de dois filhos, consentiu-lhe que
dormisse no seu celeiro. Isto ia melhor. Após dois ou três dias
devagabundagem, o alferes da polícia, comandante do posto, anexou-o num
compartimento ferroviário e meteu-lhe na mão um boletim verde, no qual
escrevera, a lápis-tinta e sobre linhas impressas, as palavras: “Budapeste,
estação do Sul”. O comboio rodou, rodou; o Balaton {6} apresentava um
aspecto clorótico. Chovia impiedosamente.
Em Székesfehérvár, esperava-o uma grande surpresa, na estação; com a
assistência dos gendarmes, e sem que se soubesse porquê, foram evacuadas
todas as carruagens e todos os que usavam uniforme foram convidados a
sentar-se à volta de compridas mesas em que se lhes serviu uma sopa
bastante saborosa, um pedaço de carne de vaca bem cozida e café, enquanto
no extremo do cais uma orquestra de zíngaros tocava, ininterruptamente, a
Marselhesa. No espaço branco dum grande pano pintado com as cores
nacionais, lia-se: “Viva a República do Povo Húngaro” E cinco ou seis
cartazes mais pequenos intimavam: “Soldados vindos da “frente”,
apresentaivos imediatamente ao Conselho dos Soldados local!” Ele nada
compreendia daquilo mas não interrogou ninguém e, aliás ninguém se
ocupou dele; assim era melhor, porque um nevoeiro lhe invadia já o cérebro
e uma fadiga de chumbo pesava sobre todos os seus membros. Caía já a
tarde, subiu para a carruagem dum comboio em formação e sentou-se num
compartimento sem luz acesa, atapetado a veludo vermelho. O queijo de
ovelha que ainda trazia consigo começava de exalar um cheiro activo;
lançou-o pela janela fora e pôs-se a comer um bocado do pão endurecido.
Veio um empregado ferroviário e quis fazê-lo sair do compartimento.
“Daqui é que eu não saio!” teimou ele. “Ora o …! Daqui não saio eu!” O
outro retirou-se então, encolhendo os ombros, e deixou-o sozinho. A
composição foi conduzida ao cais e, em poucos instantes, encheu-se de
passageiros.
Um cavalheiro de sobretudo preto acercou-se do compartimento,
acompanhado do ferroviário de há pouco. Ouviu um ruído seco na
fechadura e só então compreendeu que o tinham fechado.
“Senhor Inspector, disse o ferroviário, este soldado não quer descer; não sei
como conseguiu meter-se no compartimento.” Em seguida, voltando-se para
Kádár: “Oiça, meu amigo”, buscava convencê-lo; mas o homem de
sobretudo mandou-o calar. “Não tem importância, iremos os dois juntos …
Nos tempos que correm …” Kádár levou um dedo à pala do boné e
alapardou-se num canto. Esta atitude tranquila e modesta agradou ao
cavalheiro de sobretudo. Quando o comboio se pôs em marcha, este último
acendeu um cigarro e ofereceu-lhe outro. Kádár fumou o cigarro, trocou
algumas palavras com o cavalheiro e depois adormeceu.
Estava muito escuro quando despertou. Os viajantes precipitaram-se para o
corredor. Tinha-se chegado a Peste. Na verdade, seria Peste? Com efeito,
não havia dúvida que era o cais da estação do Sul; imerso em penumbra,
teve de início dificuldade em reconhecê-lo. A multidão abandonou o
comboio. Impunha-se a impressão de a gare estar vazia e de não haver
vivalma em parte alguma. Aos grupinhos, os viajantes ficaram uns
momentos a tagarelar, no meio da rua, após o que se dispersaram. Ele ainda
conservava nos olhos a imagem das estações de outrora, com uma turba
buliçosa diante de todas elas, em todos os sítios carregadores, carrinhos de
bagagens, carros eléctricos, trens … Que era aquilo? Que escuridão fria era
aquela, em que pequenos ajuntamentos de pessoas dispersavam lentamente
como que aterrorizadas, ou em que as pessoas avançavam como
vagabundos tímidos? Enganá-lo-ia a memória?
Durante algum tempo seguiu um pequeno grupo e depois quedou-se.
“Eis-me em Peste! Para onde ir? Que extravagante pergunta! Aonde ir? O
quartel é em Gyulafehérvár … os meus pais estão em Deva. Em Peste …
em Peste?” repetia estas palavras, “em Peste?” uma boa dezena de vezes,
em tom interrogativo e de si para si, e muitas vezes também em voz alta
como se esperasse o eco duma resposta na sua cabeça. Todavia, a cabeça
soava-lhe a oco, sentia apenas uma surda pressão nas fontes. No silêncio
que de súbito caíra sobre ele parou e apercebeu-se logo de que se
encontrava completamente sozinho no meio da rua. “Dar-se-á o caso de eu
não estar em Peste?” perguntou a si próprio, ao passo que apalpava a cabeça
porque uma dor viva lhe atravessava, vinda da nuca. “Se é Budapeste, o
comboio para Kolozsvár parte da estação de Leste …” Inesperadamente,
viu defronte uma tabuleta: “Café Pozsony”. Pozsony {7} … Pozsony … um
café … Podia lá ir. As vidraças do café não tinham luz e, quanto a bicos de
gás, entre três ou quatro somente um pestanejava na rua. Em compensação,
por cima da entrada das casas uma lâmpada eléctrica, à semelhança de um
olho de Ciclope ensonado, tremeluzia na rua nevoenta, úmida e sombria.
“Aquilo era esquisito! Noutros tempos, não havia luz sobre os portais das
habitações!” Depois reparou que não havia na rua nem um gato sequer. Deu
mais uns passos e parou novamente. Tentou recordar-se, se nos últimos
dias, havia falado com alguém e a respeito de quê. Mas só se recordava de
coisas confusas: revolução, derrota, república, conselho nacional, conselho
dos soldados, linha de demarcação, fome … Mas tudo isto não passava de
palavras vazias de sentido, a que não sabia que fazer e que se deixavam,
aliás, dominar pela musica da Marselhesa que ouvira em Székesfehérvár,
tocada pelos zíngaros..
Continuava, sozinho, diante do café Pozsony … Depois, subitamente, viu
no meio da rua quatro guardas da polícia armados de sabres e carabinas e
com o revólver a tiracolo, que se dirigiam para o seu lado. Ele foi ao seu
encontro; mas a patrulha, desconfiada, parou imediatamente, cerrando
fileira. “Não é assim”, reflectiu Radar, “eles deviam ter-se afastado uns dos
outros pelo menos dez passos …”
- Que há? perguntou-lhe então um dos polícias, que ostentava grande
bigode. Porque é que você anda a vadiar assim pelas ruas?
- Desculpe, senhor guarda, acabo de chegar e …
- E fará bem se se puser ao fresco, interrompeu o guarda; - os Russos já
saíram do campo de Kenyértnezo!
A patrulha prosseguiu no seu caminho.
“E agora? Os Russos estão perto?” Refez-se o silêncio. “Santo nome de
Deus …
trataram-me como se fosse um escarro!” Involuntariamente, ergueu a vista
para a tabuleta do café, por cima das escuras vidraças.
“Café Pozsony … olha! é evidente, é pela avenida Pozsony que irei ao sítio
onde mora a tia Ana. Não me hão de querer mal por chegar tão tarde …”
Na praça de Foin encontrou outra patrulha, a qual continuou a ronda sem o
deter.
As portas das casas estavam cerradas; a custo, aqui e ali, se descobria luz
numa janela. O ruído dos seus tacões batendo na calçada produzia eco. Ao
voltar a esquina da avenida central, uma patrulha de polícia; a mesma coisa
na extremidade da ponte de Buda. No fim da ponte de Peste, uma patrulha
de soldados.
Não lhe prestaram atenção, e os sete ou oito transeuntes que cruzaram com
ele evitaram-no de longe. Um relógio eléctrico, do lado de Peste, indicava
nove horas, ou teria ele parado? Toda a rua, até à estação de Oeste, findava
deserta. “Tanto pior, vamos para diante; sejam nove horas ou … Eis a
grande casa da Avenida de Pozsony; olha … outra novidade … este ralo na
pesada porta não existia dantes!” Tocou a campainha, tornou a tocar, bateu,
deu murros na porta.
“Meu Deus! tem o sono pesado, o porteiro!” Por fim o ralo descerrou-se:
“Que é lá? Que quer você? Volte amanhã de manhã.”
Depois de longa parlenda, entre-abriu-se a porta. Já não era o antigo
porteiro; agora um homenzarrão, que se aprumava sob a abóbada, encarava-
o com desconfiança. Vendo que Kádár não trazia armas, o homem acabou
por dizer-lhe: “Pois bem, queira subir; o elevador não anda.” Por cima da
entrada da pequena moradia do quarto andar, estava colado um papel:
“ favor bater; a campainha eléctrica não funciona.” Bateu, bateu.
Uma cabeça assustada e esguedelhada de criada de servir apareceu um
instante a uma janela, a qual voltou a cerrar-se imediatamente. Silêncio.
Passos arrastados.
- Quem está aí?
- É vossemecê, tio Rudi?
- Quem está aí?
- Sou eu, é o Toni, abra!
Como movida por electricidade, a porta abriu-se bruscamente e ele
enxergou o tio Rudi em ceroulas e com ocapote por cima.
- Viva, meu tio!
- És tu! Santo Deus! Que cara que tu trazes!
A lâmpada espalhava com parcimónia a luz amarela no vestíbulo, frio e mal
cheiroso a gás.
O tio Rudi recuou, espantado.
“O tio está na mesma”, pensou Kádár; “mas que querem dizer as palavras:
Que cara que tu trazes?” Deu dois passos em direcção ao espelhinho
redondo suspenso por cima do banco estofado da antecâmara.
Mirou-se nele e um estranho riso, solto e áspero, jorrou da sua boca.
“Venho de Assiago … em viagem desde 26 de Outubro” disse olhando
ainda para o espelho, e em seguida, voltou-se. A porta do quarto estava
aberta e o tio Rodol desaparecera. Passados instantes, sentiu no pescoço um
bafo morno, com odor a sono e choroso: “Toni, meu filho, Toni, és tu, meu
rapaz, meu Tonizinho!”
Era a tia Ana. A mão pouco limpa de Kádár sentiu através da camisa de
noite amarrotada, o calor das costas da velha; no rosto hirsuto dele choviam
beijos e lágrimas.
Os cabelos desgrenhados da criatura faziam-lhe cócegas nos olhos.
Então, uma espécie de mugido, longo, ofegante, sacudido, gemebundo,
subiu-lhe aos lábios e o pranto brotou debaixo das suas pálpebras pesadas.
Tempos depois, recordava-se de ter ouvido ainda um bater de portas e de ter
visto a rapariga despenteada, que era a nova criada, trazer lenha e papel de
jornal.
Encontrava-se sentado no banco de estofo e os dois velhos, em roupas
brancas, mantinham-se de pé na sua frente.
Depois, aparecera água quente na banheira e sabonete também. Oh, como
lhe parecia extravagante … deitar-se assim na água quente! … Deram-lhe
em seguida uma camisa de noite e umas ceroulas do tio Rudi e
agasalharam-no num capote de meia estação, castanho claro, que cheirava a
naftalina; depois ainda, sentara-se, tiritando um pouco, à mesa da casa de
jantar, cujo ambiente se tornara frio, a beber café e a comer bolinhos fritos
de massa de batata, que sabiam ligeiramente a queimado.
Os dois velhotes o tio e a tia permaneciam junto da mesa e viam-no devorar
o alimento. Engulido o último bocado, foi um dilúvio de perguntas. Donde
vinha?
Onde tinha estado? Quando? O quê? Com quem? De que maneira? Até
quando? …
Tentou responder, mas no momento em que abria a boca para repetir:
“Venho de Assiago. Desde o …”, empalideceu de súbito e teve a sensação
de que o café e os bolinhos fritos lhe voltavam à goela, convertidos numa
massa azeda … Ainda percebeu a voz da tia Ana, “vês tu, ele não pode já
falar, de tal modo está fatigado. Betty! prepara a cama de ferro; olha, tens
aqui os lençóis, uma fronha de almofada, toma lá o cobertor escuro , vais
deitar-te, meu rapaz, na cama de ferro em que dormias noutro tempo …”
Deitou-se sem demora na cama de ferro, instalada num canto da casa de
jantar, perto da janela. Fixou a vista no teto … e então a cama desatou a
mover-se no ritmo cadenciado do comboio … pôs-se a rodar sem paragem,
enquanto lhe retumbava surdamente dentro da cabeça qualquer coisa que,
com frequência, estrondosos clarões interrompiam.
Em seguida, ouviu de súbito o estertor do pobre Feledy: “Dize lá, Szilasy,
aquele quer mais alguma coisa? Tu não compreendes, sim tu, Szilasy, o que
ele diz? A respeito do relógio? …” Depois pareceu-lhe sentir um baterde
asas perto dos ouvidos; escutou atentamente, fez um esforço: era uma coisa
diferente do silvo das granadas … Pareceu-lhe que as asas que assobiavam
andavam à sua volta circularmente … círculos trémulos sobre a superfície
lisa da água quando se lhe arremessa uma pedra … Por fim, toda a cama se
pôs a andar à roda e o universo desmoronou-se por inteiro, numa espécie de
caos ardente!
CAPÍTULO II

- Dez ou doze dias lhe durou a doença. O que tinha tido nunca se soube
exactamente; provável é que fosse fadiga geral agravada por um ataque de
gripe. No dia imediato ao da chegada, encontraram-no de boca aberta, aos
ronco e com estertor. A custo o despertaram. Ele bebeu outra vez café e
tornou a descair a cabeça sobre a almofada! não era capaz de levantar-se.
“Deixem-no” disse o Rodolfo, “está cansado”. Para a tarde, pusera-se-lhe
rosto arroxeado. A tia Ana, assustada, foi buscar o termómetro - tinha trinta
e nove graus e seis! “É do esgotamento” confirmou o tio, “que durma até
fartar-se no dia seguinte, o pescoço, os braços, o peito apareceram-li cheios
de borbulhinhas vermelhas. Os velhos ficaram aterrados: seguramente, o
que ele tinha era tifo exantemático. Atrapalhado, o Dr. Webler, um velho
amigo do tio, circulava senilmente à volta do leito. Tornaram a verificar-lhe
a temperatura: a coluna de mercúrio não subiu além dos trinta e sete graus.
“Não pode ser tifo” disse o médico “quási que não tem febre”. Nessa noite
dormiu tranquilamente e no dia imediato as borbulhas haviam desaparecido.
“Com certeza que era urticária”, opinou o Dr. Webler; provavelmente,
nestes últimos tempos, não teve uma alimentação regular e foi agora a
mudança de regime que provocou isto”.
Continuava a dormir dezasseis a dezoito horas por dia, mesmo desperto,
permanecia nas trevas duma sonolência. Alimentava-se quási
exclusivamente de café, depois entrou de tossir e novamente a sua
temperatura subiu muito; obteve-se então a certeza de que se tratava de
gripe espanhola.
“Salvo qualquer complicação, não será coisa de cuidado”, disse o médico
tranquilizando os velhotes.
Na segunda semana, aquele organismo de vinte anos triunfou, enfim, da
doença.
Nos meados de dezembro pôde já sair à rua, fresco e bem disposto,
completamente curado. Só via diante de si caras conhecidas. Encontrou um
capitão que lhe ordenou que fosse à administração regularizar a sua situação
militar. Foi desmobilizado, entregaram-lhe um documento justificativo
disso e mandaram-no embora. Apresentou-se também em vários quartéis
assim como ao Conselho dos Soldados, onde lhe deviam dar dinheiro,
conforme lhe haviam dito, mas onde nem sequer viu sinal dele.
“Que fazer agora? Que irá acontecer?” perguntou a si próprio.
O prazo que fixara para se orientar passou-lhe por cima, surdo e cego: a
acumulação dos acontecimentos era tal que se sentia incapaz de lhes atribuir
uma ordem e de elaborá-los previamente. O que sucedia naquela época, em
Peste, ele não fora preparado para compreendê-lo, nem nos bancos das
escolas, nem nas trincheiras.
A cidade encontrava-se muito movimentada: desfiles de operários,
manifestações de soldados desmobilizados e, na Avenida Estefânia,
militares franceses e tropas coloniais executando manobras.
Durante o dia as ruas estavam continuamente apinhadas de gente, havia
filas diante das lojas; os eléctricos abarrotavam até aos estribos. Não se
podia ter de forma alguma a impressão de ser isto a paz! Ou seria isto, na
verdade, a paz?
Todavia, o que maior importância tinha para ele era que estava sem
vintém … Se bem que pudesse viver tranquilamente em casa do tio, não
deixava de dirigir a si próprio todos os dias esta pergunta: “Que vou eu ser?
Que é preciso fazer?” Porque, fatalmente, era necessário fazer alguma
coisa. A tia Ana dava-lhe, é verdade, de vez em quando, umas coroas e o tio
presenteara-o com um velho fraque, que ele usava conjuntamente com as
suas botas altas, amarelas, de oficial.
“Que é preciso fazer?” interrogava-se por vezes, ao vagabundear nas ruas
batidas pelo inverno, retardando a entrada em casa com receio de que os
velhos, que quási nunca saíam, lhe perguntassem um dia: “Que tencionas tu
fazer?” Era-lhe penoso reflectir nisso - mas responder a essa interrogação,
ou antes, não poder responder a ela, tornar-se-ia horrível, cruel!
“Que é que devo fazer?” interrogou-se uma vez mais.! “É já demasiado
tarde para matricular-me na Universidade; aliás, tenho eu meios para
isso? … mas então que vou fazer? Sou bacharel, cumpri dois anos de
serviço na frente, possuo três medalhas … Que vida posso eu encetar?”
Metia-se nas filas da padaria, do merceeiro. Levava para casa as rações de
carne e de açúcar e o tabaco do tio Rudi. Esforçava-se, deste modo, por se
tornar útil aos velhotes.
Um dia, viu no passeio da avenida central dois homens! com uniformes de
oficiais, mas sem galões: sentados em banquinhos de encontro à parede,
entre duas alas de paipalvos, engraxavam o calçado dos transeuntes. Perante
este espectáculo, sentiu um baque no coração e afastou-se apressadamente.
Os semblantes conhecidos surgiam de cada vez con mais frequência, e
todos lhe davam algum conselho. Um mandava-o dirigir-se ao ministério da
Guerra; outro, a Comissão dos Soldados; outro ainda, à redacção dum jor
nal comunista. Ele ia a todos esses lados e voltava na mesma. Quando lhe
perguntavam o que queria não sabia o que responder. Servia-se de longas
perífrases para chegar às palavras “dinheiro, situação, ocupação …” Mas
que préstimo podiam ter expressões como as seguintes, “propaganda para
manter a República”, “missão na província”, “digressão de propaganda”,
“organização da província”, “educação dos espíritos”? A quem serviam? De
que maneira? E onde?
O tio Rudi franzia as sobrancelhas com ar sombrio, quando ele lhe contava
estas coisas: “Hoje falei com Fulano e Cicrano, mas não percebo muito
bem …” “Tu não és nada esperto”, respondia-lhe o velho, “os outros
rapazes conseguem situações de primeira ordem ou fazem fortuna nos
tempos que vão correndo!” Depois, a meia-voz, acrescentou, pensativo:
“Aliás, isto não me admira muito a teu respeito. Não são coisas da nossa
conta.” Kádár não insistia nestas conversas com o tio, pois nem sequer as
compreendia. “Não são coisas da conta de quem? Dos Húngaros? Dos
Pestenses? Mais particularmente, dos pensionistas dos caminhos de ferro do
Estado? Ou, mais particularmente ainda, não seriam da conta de Rodolfo
Iayer e de António Kádár? …” Decorriam os dias. O inverno mostrava-se
rigoroso. O universo comprimia-se e tornava-se cinzento, mas não se via
dar um único passo em frente.
“Precisava de ganhar dinheiro … como? Em negócios? Para isso, é preciso
dinheiro, algum capital por pouco que seja …” Foi o que lhe disse um rapaz
chamado Roberto, que encontrara na antecâmara do ministério e que levava
a um dos figurões de lá cigarros estrangeiros. “E preciso ganhar dinheiro,
ocupar-se a gente nalguma coisa …” Pediu um lugar de vendedor, foi a dois
ou três armazéns. Repeliram-no com uma só palavra. Fez, por escrito, as
suas ofertas de serviço a casas bancárias e a fábricas e entregou-as
pessoalmente a cavalheiros muito delicados que lhe prometeram uma
resposta também por escrito; mas um único banco respondeu, usando da
fórmula: “Lamentamos, etc.”. “Precisava de ganhar dinheiro!” E se fosse
trabalhar como simples operário? Ofereceu-se a uma fábrica de caixas de
papelão. Não era, de todo em todo, mister que não soubesse
desempenhar! … O proprietário, um gordo Judeu com cara de espantado,
perguntou-lhe, no meio dum constante pestanejo, o que sabia fazer e quais
as suas condições.
“Desculpe-me, senhor Herz”, observou um homem novo baixo, de lunetas,
“visto termos contratos de trabalho coletivo e tabela de salários fixada pelo
Sindicato, não é necessário perguntar-lhe quanto quer ganhar.” Dizendo
isto, tirou as lunetas e voltou-se para Kádár: “O senhor é operário
classificado?”
- Não, sou alferes desmobilizado. - É sócio dalgum Sindicato?
- Não!
- Membro do partido social-democrático?
- Não!
- Muito obrigado!-disse então o mesmo homem, acentuando muito estas
palavras.
- Lamento - concluiu o senhor Herz, pondo os olhos no chão.
Prosseguindo caminho, olhou as tabuletas e as placas das casas. Fulano,
advogado; Cicrano, médico; Beltrano engenheiro. Aqueles têm uma
ocupação; e as pessoas que lhe passam ao lado, essas também não vivem do
ar …
Era preciso ganhar dinheiro. Numa dada rua, viu ataxado um cartaz: uma
mulher desgrenhada, de rosto aterrorizado, erguia os braços e bradava:
“Trabalhai! começa a faltar o pão!” “Bem” disse de si para si, diante do
cartaz. “intimam-nos a trabalhar. Sim, mas trabalhar em quê? Trabalhaf
onde? … A tia Ana poderá dar-me ainda umas coroa Estou a necessitar
dalguns pares de peúgas e desejava também ir uma vez ao music hall …”
Uma rapariga, alta de quadris, de casaco azul marinho cruzou com ele.
Fixou-a um instante e a rapariga correspondeu ao olhar. Voltou-se para a
seguir com a vista observou que a rapariga parara diante de uma vitrina
lançava olhadelas e lhe dirigia um sorriso promissor.
“Agrado-lhe”, pensou ele; “mas pode também ser que ela se ria de ver que
as abas do fraque me saem por baixo do sobretudo e que uso botas altas
amarelas.” A rapariga, provavelmente farta de contemplar o mostrador da
loja, baixou suavemente a cabeça e abalou. Ele refletiu um instante em se
devia segui-la, após o que, indeciso, atravessou a rua.
“Precisava de ganhar dinheiro!”
CAPÍTULO III

Estava-se em Janeiro e ele nem sempre tinha recebido notícias dos pais.
A última carta de Deva chegara-lhe às mãos em fins de Julho ou começos
de Agosto.
De ponta a ponta, não passava de uma longa lamentação prudentemente
expressa.
Ninguém comprava livros. O papel pouco maior venda tinha do que eles; o
estabelecimento já quase não fazia negócio nenhum.
Dos seus três compartimentos, haviam alugado um, com pensão completa, a
um advogado estagiário chamado Kormos. O pai não passava muito bem.
Desde o início do verão apoquentava-o mais, outra vez, o reumático.
A carta, como todas as anteriores, terminava assim: “Que Deus te abençoe e
te proteja.” Dessa data para cá, mais nenhuma notícia, salvo o que toda a
gente sabia: a ocupação romena, a suspensão das comunicações postais
(nenhuma resposta recebera às duas curtas que tinha escrito para casa; quem
sabe onde elas sofreram extravio?), a interrupção do serviço de caminhos de
ferro.
Às vezes, durante dias, deixava de pensar nos pais. Depois, subitamente,
sob o efeito de um boato qualquer ou de um artigo de jornal alarmante, a
inquietação esbraseava-o e daí por diante não tinha senão pesadelos.
Uma noite declarou aos velhos: “Vou-me embora para a minha casa, em
Deva”, Eles assustaram-se e lamentaram: “Por amor de Deus, meu filho,
mas nem sequer há meios de transporte para lá!”.
- Custe o que custar, lá chegarei, duma maneira ou doutra.
- Mas tu nem tens passaporte - Passarei a fronteira clandestinamente.
- Mas nós não podemos tão pouco dar-te dinheiro para a viagem.
Ele tirou da algibeira quatro notas de dez coroas.
- Onde arranjaste tu esse dinheiro?
- Vendi o relógio; de que me servia?
Foi impossível dissuadi-lo do projeto: a tia Ana chorou, o velho queria
mostrar-se enérgico mas conseguiu apenas manifestar o seu enfado. Não
houve argumento que o contivesse; forçoso foi encafuar-lhe alguma roupa
branca já usada numa maleta de fole: enfiou o capote militar por cima do
fraque e partiu.
O comboio ia só até Gyula. Em Gyula, durante dois dias passeou sem
destino, procurando pôr-se na intimidade de diversas pessoas a-fim de se
informar sobre os meios de comunicação ao longo da fronteira. Essas
pessoas mostravam-se desconfiadas e de nada queriam saber. Passou duas
noites na sala dum botequim, deitado junto da mesa, em cima de um banco.
O locandeiro estava firmemente convencido de que ele viera fazer qualquer
coisa suspeita. “Toma-me por um ladrão, ou por um desertor”, pensou;
declarou então ao camponês, o qual nunca o encarava e cujas orelhas, o
bigode e o nariz, este dum tom avinagrado, pareciam eternamente atraídos
para a terra que desejava passar a fronteira. O locandeiro tirou o cachimbo
da boca, olhou-o fito, cuspiu e não disse palavra.
Nessa mesma tarde, comprou um pão de centeio, grande, e um bocado de
toucinho assado; e quando a noite baixou pôs-se a caminho. Caía uma
chuva misturada com neve. As suas botifarras amarelas patinhavam na lama
até os tornozelos. “Meti-me em boa! …”, pensou. Avanço na escuridão,
através da nudez dos campos invernal nessa frouxa e prudente marcha que
permite a qualquer um lançar-se em terra de um instante para o outro, e os
seus olhos - aprendera a ver na escuridão - não cessavam de observar a
estrada nacional, de que não queria afastar-se mais de vinte passos. Pela
madrugada, viu-se de súbito em frente dum grupo de soldados com
uniforme estrangeiro. Entalou o pão entre os joelhos e levantou os braços
no ar. A patrulha romena prendeu-o, dois soldados escoltaram-no, de
baioneta armada, durante perto de duas horas, pela estrada cheia de neve e
lama. Chegaram por fim a uma espécie de curral, para aonde o empurraram.
No interior encontravam-se cerca de vinte pessoas, deitadas na palha, as
quais dormiam, murmuravam, choravam, cheiravam mal. Ele estendeu-se
sobre a palha, meio sufocado pelo detestável odor, os olhos perdidos na
penumbra. “Para que me hei-de ralar?” A patrulha tinha-lhe apreendido o
canivete, os papéis, o naco de pão, a maleta de fole e as vinte coroas. De
quando em quando entreabria-se a porta e, momentaneamente, uma luz
cinzenta perfurava a escuridão: chegava outro. O recém-vindo parava junto
da parede, tateando as trevas, diligenciando orientar-se …
O sol brilhava no céu dum azul retinto quando o fizeram sair do curral.
Seguiram ao longo da via-férrea. Conduziram-no, com mais uma dezena de
pessoas, para uma casa branquinha de cal, e achou-se então num quarto
vazio. Por quanto tempo? Uma hora, duas horas, três horas? … Depois viu-
se diante de uma comprida mesa carregada de papéis, tinteiros e penas. A
essa mesa estavam sentados oficiais romenos fumando charutos e cigarros.
Notava-se, entre eles, um homem novo, o qual envergava uniforme
diferente. Aquele não era romeno, devia ser um oficial estrangeiro. Depois,
um dos oficiais disse-lhe qualquer coisa em romeno, que ele não
compreendeu; porém, repentinamente, passou-lhe uma ideia pela cabeça.
Avançou e parou diante da mesa, em frente do oficial estrangeiro. Viu-se
face a face com um rosto jovem, de cabelos louros e sedosos, em risca ao
lado, e olhos dum azul claro muito puro. Um oficial inglês. “Não deve ter
mais idade do que eu” pensou ele; em seguida, apoiando-se no rebordo da
mesa, disse: Mister … Kamernd! Ich bin ein armer Student.” Fez esforços
para encontrar palavras estrangeiras úteis na emergência … “ich muss zu
den Eltern … Eltern, parents, Vater, Mutter …” Naqueles olhos azues surgiu
um sorriso, imediatamente oculto numa fina ruga da testa. “Ah! you want to
see your parents?” - “Ya, - Yes! Yes” - “And yqur parents are living in
Romania?”
prosseguiu o inglês. Ele respondeu, ao acaso: “Yes, Romania, Deva?” - Ah!
In Deva, and you wanted to get there?” Não compreendeu a última
pergunta, mas depositou confiança em quem lha dirigia. “Yes, yes”,
respondeu. Os oficiais interromperam este diálogo, fazendo observações em
romeno, em inglês e em francês; estabeleceu-se uma conversação rápida,
em voz alta, da qual não percebia nem uma única palavra. Todavia,
simpatizava já com o oficial inglês e sentia-se reconhecido, quanto mais não
fosse porque este se esforçava por falar lentamente e por se fazer
compreender por ele, quer por gestos quer pela entoação da voz.
Novamente o inglês se lhe dirigiu: “You were Officer in the Army of the
Monarchy, were nt you?” interrogou e, com o lápis, apontou a gola do seu
capote de oficial. “Yes. Oficial! Tenente!” mentiu Kádár. Travou-se outra
vez uma conversação em alta voz; foram proferidas frases veementes.
Não compreendia o debate, mas adivinhava que o inglês queria mandá-lo
para a Hungria e que os romenos se opunham a isso. A discussão durou
longos minutos; um corpulento oficial romeno bateu com o punho na mesa.
O; inglês deu, por seu turno, um murro em cima da mesma.; Já sabia,
doravante, que não conseguiria reunir-se ao país, e que por muito feliz se
poderia dar-se regressasse são e salvo à Hungria. Nova discussão, novos
murros na mesa nem sequer procurava já perceber as palavras que se
trocavam. A voz do oficialzinho inglês elevou-se, estridente “I want it! I
insist on it!” Depois, reconduziram-no à granja, onde permaneceu até o dia
seguinte de manhã. Era-lhe já indiferente o que viria a acontecer. “Pode ser
que me soltem: depois, aí a uns dez passos, pelas costas …” Na manha
imediata, três soldados, de baioneta armada, obrigaram-no a sair da granja,
simultaneamente com outros cinco ou seis. Fizeram-nos subir para uma
carroça, a qual começou a rodar pela estrada que ele, em sentido oposto, já
caminhara a pé, escoltado de soldados. A sua maleta e mais pertences,
tinham ficado lá. Mais tarde, tiveram de descer do carro. Um dos soldados
indicou-lhes a direção a seguir. “Em frente, marche!”, exclamou e, depois,
quando se puseram a caminho, disparou para o ar.
Ao chegar a Gyula, Kádár dirigiu-se logo à hospedaria. O aldeão
reconheceu-o e perguntou-lhe imediatamente se trazia dinheiro. “Não”,
respondeu. “Nesse caso pode sentar-se para aí, se quiser, mas sem dinheiro
não lhe darei de comer.”
Encaminhou-se então para o padeiro onde comprara o pão de centeio,
alguns dias antes. Pediu-lhe que o albergasse, sem deixar de declarar-lhe
logo que não tinha dinheiro. O padeiro mandou-o passear. Fez outras
tentativas semelhantes nas casas dos camponeses, nos extremos da cidade,
mas em toda a parte foi repelido.
Zumbiam-lhe os ouvidos, a fome produzia-lhe vertigens. A vez última que
havia comido fora depois do seu interrogatório pelos romenos, em gamela
poeirenta, uma sopa e uma massa pegajosa que sabia a papas de milho.
Na praça principal sentou-se num banco; ao menos, não queria cair
redondamente no meio da rua! Ficou ali sentado, durante quanto tempo? …
No vasto céu cinzento desenhavam-se e ondulavam inúmeros círculos
coloridos; mesmo em frente do nariz erguia-se uma casa de dois andares
onde uma janela, no segundo pavimento, se encontrava aberta de par em par
e cheia, até à altura da bandeira de vidro, de édredons e de travesseiros.
“Um edredon, vermelho como aquele além, eis o que me dava a conta,
agora”, pensou. “Se forrasse a cabeça com ele, deixaria de sentir o zumbido
nos ouvidos”. Sobre a porta da casa, uma enorme tabuleta oval em que se
podia muito bem decifrar:
“Bárbara Kovik, parteira diplomada. “Valia bem a pena nascer! ou, por
outra, não valia a pena nascer homem!” - Olha, és tu, Kádár! - ouviu de
repente alguém dizer.
Ergueu a vista, piscou os olhos e viu ao pé de si um homem vestido de
cinzento azulado, com calções de desporto, polainas altas de couro de
primeira qualidade e um emblema vermelho no boné. Reconheceu-o
imediatamente: era Lechner. Haviam estado juntos, algum tempo, na
“frente”, na Albânia.
- Que fazes tu aqui?
- E tu?
Revezaram-se as perguntas e respostas. Recordações comuns e coisas
correlativas aos seus estranhos destinos lograram ensejo de exprimir-se ali,
naquele banco, em face dos édredons e da tabuleta da parteira.
Lechner era oriundo de Gyula, regressara à sua terra e não tinha que
queixar-se disso. Presentemente, era Presidente do Conselho local dos
Soldados.
“Sabes tu?” explicava ele, “tanto os socialistas como os burgueses
depositam confiança em mim. O meu pai é salsicheiro, ganha, graças a
Deus, muito bem a sua vida, e quando voltei disse-lhe que me deixasse
fazer o que eu quisesse. Desatei a abrir a goela à valentona! Gorjeei
arengas, Maria vai com as outras. Em resumo, saí-me admiravelmente da
comédia.” Lechner levou-o, depois, a casa do pai; aí, deram-lhe morcela e
salsicha de fígado. Não se ocuparam, aliás, dele de qualquer outra maneira;
prepararam-lhe uma cama numa antiga cozinha onde pôde dormir até fartar-
se. Não importunava ninguém, raramente se deixava ver.
Passados dois dias, Lechner conseguiu que lhe dessem, na Câmara
Municipal, cinquenta coroas. A boa Senhora Lechner encheu de chouriços e
de carne fumada um saco, metendo também lá dentro um boião de banha de
porco. Partia naquele dia um comboio para Budapeste.
- Então, até à vista, disse Lechner; - quando eu for A AVUNTURA EM
BUDAPESTE faremos a pândega juntos numa boa adegazinha de lá!
Quando se apresentou diante dos velhotes, estes nem queriam dar crédito
aos próprios olhos.
- Então, a-pesar de tudo, pudeste voltar? Não morreste? Estiveste em Deva?
Santo Deus!
Onde é que deitaste a mão a estas salsichas todas? E ainda a este boião de
banha?
O tio Rudi cheirou a banha de porco e declarou: “E de primeira ordem!”
Depois disto, novamente em Peste, o tempo foi passando, e até de maneira
bastante rápida. Permanecia sentado dias inteiros, a olhar através da janela.
Mas tudo agora tinha, para ele, quase nula importância. Gozava sossego e
as poucas coroas com que ficara bastaram-lhe durante algum tempo. O que
importava acima de tudo, era a tranquilidade. Lechner era uma jóia de
homem e o moço oficial inglês, esse, também era uma jóia. Duma maneira
geral, os homens eram todos bons …
desde que se não lhes pedisse nada … Gozava-se sossego, fazia bom tempo,
e era agradável viver. “No fim de contas, eu podia lá ter ficado para sempre,
em 9 de outubro de 1917, por exemplo, quando os italianos atacaram onze
vezes a seguir …” filosofava ele, “ou ainda agora, na linha fronteiriça, se
me tivessem solto, por exemplo … uma dezena de passos mais longe … E
tudo questão de sorte. Dentro em pouco o inverno estará acabado … e, em
suma, é a paz. No outono, matricular-me-ei na Politécnica; pedirei dispensa
de propinas. Posso instalar-me aqui, em casa do tio Rudi … mas antes, no
verão, darei uma saltada a Deva.”
CAPÍTULO IV

Certa noite, o tio Rudi entrou em casa manifestando ruidosamente a sua


alegria.
“Bem, bem, meu rapaz”, disse voltando-se para Kádár, “creio que resolvi a
tua situação! … tenho um velho amigo, Max Huber, que é chefe do pessoal
na Repartição Central dos Metais. Encontrei-o outro dia no Café Central;
tive bruscamente a ideia de dizer-lhe: “Oiça, Max, tenho um sobrinho,
oficial desmobilizado, que é bacharel e rapaz distinto e honesto …”
No 1º de Março entregaram-lhe, em troca de um boletim azul claro, oitenta
coroas na Caixa principal da Repartição Central dos Metais e fizeram-no
sentar-se a uma secretária. As quatro notas de vinte coroas de que tomou
posse produziram nele estranha metamorfose. “Este dinheiro, ganhei-o
honradamente; ou antes, ganhá-lo-ei honradamente, pensou; e sentiu que se
tratava de uma espécie de dinheiro diferente do que recebia outrora de Deva
no dia primeiro de todos os meses, com a obrigação exclusiva de fazer uma
coisa: prosseguir nos estudos. Era também diferente daquele que se
chamava pré e mediante o qual tivera de cobrir-se de piolhos, dormir nas
trincheiras, disparar numa direção em que sabia existirem homens vivos, e
mediante o qual, sobretudo, se estava autorizado a estoirar a pele. Desta
vez, trata vá-se de dinheiro pelo qual era preciso trabalhar honradamente,
aprendendo um mister, exercendo uma profissão … “Espero de si, meu
amigo, um trabalho honesto e produtivo”, dissera-lhe o senhor Huber,
designando a mesa que lhe competia. Nessa primeira tarde, ao regressar do
escritório a casa, declarara ao tio Rudi: “Creio que naquele lugar terei
ensejo de fazer trabalho honesto e produtivo …”
No escritório, encetou conhecimento com os colegas e, pouco a pouco,
suavemente, começou de compreender e de falar a linguagem da época e da
sua gente. Passava os dias curvado sobre fichas de cores diversas, folhas de
papel com cabeçalhos impressos, colunas de algarismos; e, se tinha a
impressão de estar colocado de certo modo no meio de coisas de que se não
avistavam nem o princípio nem o fim, sentia também que todos esses
algarismos, todas essas rubricas, possuíam somente um significado,
expresso por um número inscrito sob a rubrica: “Lucro líquido.” Dentro de
poucos dias conseguiu formular, exprimir em palavras, o sentimento nele
produzido pelo primeiro dinheiro regularmente ganho, ou seja, que é
preciso ganhar muito dinheiro, ser rico, viver muito bem.
O caso, naturalmente, estava em saber se … naquele escritório, haveria
possibilidade de … Observou os colegas. Um deles usava um jaquetão de
alpaca cinzento escuro, muito gasto nos cotovelos; era o sr. Demjén, que
podia ter entre cinquenta a cinquenta e cinco anos. Além, estava o sr. Hegyi,
pálido e coxo, com o seu jaquetão de trabalho, castanho, de mangas
curtíssimas. Também esse já não era nada novo! Os cabelos meio-grisalhos
do sr. Zoller caíam em caracóis sobre a sua testa enorme. A boca exalava-
lhe sempre cheiro a cerveja …
Por último, via-se o sr. Huber, seu protetor, o chefe do escritório, que trazia
numa das botas um remendo cosido à máquina. Aqueles cavalheiros … não
tinham conseguido enriquecer por meio do seu trabalho honesto e
produtivo. Ou não seria, na verdade, o trabalho deles, nem honesto nem
produtivo? Em 12 de Março as bandeiras vermelhas apareceram
subitamente nas janelas e nos mastros dos edifícios. Numas horas apenas,
modificou-se o aspecto das coisas e dos homens.
Mil terrores pairaram sobre a cidade. Sentia-se que ia começar uma era
completamente nova. Alguém disse no escritório: No dia 1º deste mês,
Kádár veio para aqui com missão. Ele calou-se e ninguém teve motivo para
duvidar do caso. Um dia, elegeram-no por unanimidade delegado político
da secção; - não tinha a menor ideia do que poderia ser com exatidão
aquilo, mas não protestou.
Todavia, a autoridade central não aceitou essa eleição porque ninguém ali o
conhecia e porque não se sabia se era comunista convicto. Resignou-se
perante essa destituição de tão boa mente quanto é certo que, durante os
dois dias em que assumiu as suas novas funções, esteve continuamente
receoso de que lhe requeressem um serviço ou dirigissem uma pergunta a
que não soubesse responder.
Ia comparecendo no escritório como os outros. Não trabalhava porque não
havia em quê. O novo delegado político, vindo de fora, e o novo chefe de
escritório, que substituíra Huber, organizavam reuniões, proferiam
discursos; mas, quanto a trabalho, aguardavam instruções. Estas, porém,
não chegavam. Ele escutava atentamente os discursos assim como as
conversas que inundavam o escritório, à semelhança das cheias primaveris.
Ouvia e aprendia coisas sobre as quais até à data não tivera ideia alguma e
que lhe soavam como expressões duma língua estranha da qual lhe fosse
familiar unicamente a fonética. Ideologia, mentalidade proletária, regime de
classe, marxismo ortodoxo, república dos Sovietes, o camarada Lenine, o
camarada Boucharine, espartaquismo amarelo, capitalismo explorador,
trabalho produtivo, produção social, produção espiritual, tribunal
revolucionário, Estado comunista ideal, contra-revolução, proletário
consciente, traidor à ditadura … e outras que tais, que nem chegavam a
tomar consciência no seu espírito. Muitas vezes, ao escutar um discurso,
dizia de si para si: “Se eu pedisse ao camarada Berger ou ao camarada
Lehotay que me explicassem, a mim só, sem nenhuma responsabilidade
para eles, o que entendem por “produção social”, o camarada Berger ou o
camarada Lehotay ficariam tão embaraçados como se alguém os
interrogasse a respeito das tangentes da hipérbole …” Esforçava-se por não
tomar parte em coisa alguma. Era talvez o único a esquivar-se às discussões
do escritório e a não ter opinião própria sobre qualquer problema. Tudo
aquilo não passava de palavras, muito longe da realidade, daquela porção de
realidade que se chamava “riqueza” ou “existência confortável”! Passava os
seus ócios na companhia dos dois velhos.
Narrava-lhes histórias do emprego, repetia-lhes as vãs discussões e, com
gracejos, tentava distrair as pobres e desesperadas criaturas.
Em Abril recebeu já duzentas coroas, em Maio quinhentas; porém em
“notas brancas” {8}, com as quais nada se podia comprar. A partir desse
momento compreendeu que as coisas se não manteriam naquele pé, porque
a vida deixava assim de ter qualquer sentido. “Hei-de perguntar um dia a
um operário se a sua existência se tornou melhor”, projetou ele; mas,
naturalmente, não deu execução ao projeto. “Tenho de fazer agora como fiz
no inverno passado, quando me pus à janela, na avenida Poz-sony: é preciso
esperar; refletir, não”.
Pelos fins de Maio - estava um dia esplendoroso de começo do estio -
encontrou, ao entrar em casa, o tio Rudi sentado à mesa, com o rosto grave
e triste. Os olhos do tio apresentavam-se todos vermelhos, de lágrimas.
Acolheu-o um silêncio.
- Aconteceu alguma desgraça? - interrogou.
- Sim, Tony, meu filho, uma grande desgraça.
- Que foi, por amor de Deus?
- Tony, meu pequeno, Maria Gazda, de Deva, veio esta manhã visitar-nos.
Ela está casada com um oficial italiano; vieram a Budapeste por causa de
um assunto oficial a resolver na Missão …
- Maria Gazda, de Deva? - perguntou ele e sentiu logo na garganta um medo
gélido a estrangulá-lo … - e que desgraça é essa? O papá, a mamã …
morreram, rematou em tom afirmativo sem interrogar sequer.
- Sim, já em Novembro último, de gripe espanhola. Primeiro, teu pai; dois
dias depois, tua mãe … A tia Ana, apoiada à janela, chorava. O tio Rudi,
inclinando um pouco a cabeça para o lado, roía as unhas. Tony mantinha-se
no meio do quarto.
“O papá e a mamã estão mortos …” De súbito, um soluço agudo e fraco de
criança atravessou-lhe a garganta; cerrando os lábios, a muito custo o
reprimiu. Os seus olhos vermelhos tinham a sensação de queimaduras. Não
arredara pé do mesmo sítio. Repentinamente, deu meia volta e saiu. Na
ante-câmara, deixou-se cair no banco estofado que havia por baixo do
espelho e assentou a cabeça nos punhos.
Aquele fraco soluço de criança soltou-se-lhe então, finalmente, do peito. As
lágrimas jorraram, os soluços sufocavam-no. Os velhotes não tardaram em
segui-lo, vieram consolá-lo chorando sempre. Voltaram todos para a casa de
jantar, puseram-se à mesa e calaram-se. De quando em quando, a tia
exalava um suspiro, no meio das suas lágrimas. O tio Rudi, piscando os
olhos, contemplava-o de soslaio. Deixara de chorar, mantinha-se à mesa, a
boca cerrada. Depois, desatou a falar. Interrogou: “Como é que se deu então
aquilo?”
e apercebeu-se neste instante de que se encontrava sozinho no aposento.
Caída a noite, Betty pôs-se a preparar a cama. Mal a rapariga acabou de
fazê-la, ele deitou-se. Imagens confusas lhe agitaram o sono; despertou
coberto de suores e o corpo num contínuo tremor. Não foi ao escritório,
ficou sentado na sala de jantar, fechados os olhos, o rosto encovado, Havia
sol, na rua; um grande bando de estudantes desfilava, a cantar, pela avenida
Pozsony fora.
Pelo meio-dia, Maria Gazda repetiu a visita. Sentou-se ao pé dele. Os
velhos, que tinham ficado quando ela entrou na casa de jantar, retiraram-se
para o seu quarto. Maria contou o que se havia passado. A gripe espanhola
grassara terrivelmente em Deva desde o princípio de Agosto, mas os
velhotes conservavam-se, graças a Deus, incólumes; simplesmente,
lamentavam-se amiúde da falta de notícias do filho. De todos os lados, não
vinham senão novas inquietadoras; na cidade havia também numerosos
desertores. Depois sobreviera a invasão romena.
Que horror! Tinha havido proibição absoluta de sair à rua; forçoso fora ficar
encerrado, cada um em sua casa, dias inteiros. “Se tu visses os que se
prestaram a servir de guias aos romenos, como, por exemplo, Simiu, o
farmacêutico?!” Um dia, uma patrulha entrou na casa dos teus a requisitar
mapas do país; teu pai não queria dá-los, disse que os não tinha. Lá em
baixo, passaram busca em toda a loja e acabaram, como se calcula, por
encontrar muitos mapas assim como atlas escolares. Então, levaram teu pai,
bateram-lhe e conservaram-no preso cinco dias na caserna. Tua pobre mãe,
durante esses cinco dias, desde a aurora até noite fechada, conservou-Se
defronte da caserna. Não a deixaram lá entrar, mas tão pouco puderam
afastá-la. Por mais que os oficiais a escorraçassem, voltava sempre, apesar
de tudo. Por fim, puseram em liberdade teu pai, porque ele estava já com
muita febre e apanhara um resfriamento na caserna. Fiquei lá, em casa dos
teus, de dia e de noite, com o Dr. Moskovitz, até que, no terceiro dia, o teu
pobre pai morreu. Quando o Delegado de Saúde chegou - também ele ia
acompanhado de um oficial romeno, mandou imediatamente levar tua mãe
para o hospital da Misericórdia, onde … dois dias depois..-“ Maria pôs-se a
chorar e pegou-lhe na mão:
- Tony, meu pequeno, tu sabes que na loja não havia já quase nada, e com
respeito aos móveis …
- Sim, sei - respondeu ele; - nós éramos pobres. Olhou, de olhos enxutos, a
mulher que chorava, após o que desviou a vista, através da janela, para a
rua. O sol brilhava, dois pesados camiões passavam lentamente, rangendo
as rodas. Maria foi para junto dele: “Ton … meu pequeno …” voltou ela a
dizer, suspirando, “este mundo é terrível!
“Terrível, este mundo é terrível”, confirmou Kádár, “os romenos
maltrataram meu pai e deixaram-me partir são e salvo.
Pôs-se a examinar Maria: ela vestia um fato cinzento claro, muito elegante,
e botinas castanhas, de atacadores largos.
- E tu, Maria - perguntou - como tens passado? Soube que casaste com um
italiano. Porque não veio o teu marido contigo?
Maria olhou a rua.
- Oh! Scopelli tem muito que fazer na Missão e partimos já amanhã para
Viena.
Subitamente, voltou-se e disse, baixando tanto quanto possível a voz:
- Escuta, Tony, aos velhotes eu não disse isto; mas a ti, digo-to; escuta,
Tony, eu não sou mulher de Júlio; por enquanto, nós …” Toda corada,
procurou uma expressão decente … “Vivo junta com ele, simplesmente.
Sabes que nos confiscaram a farmácia, porque todas as farmácias foram
postas sob a tutela das autoridades e Simiu declarara que nós éramos
suspeitos … Então, abalámos para Kolozs-vár …” Uma a uma, as suas
palavras caíam no silêncio.
“Kolozsvár, já não é assim que se chama, é Cluj … Era o momento do
grande pânico, ninguém achava onde abrigar-se, o hotel Nova-York estava
ocupado por oficiais romenos. Intentámos um processo contra o Tesouro
Público, por perdas e danos; o nosso advogado era romeno … mas, antes
mesmo do julgamento - quanto tempo seria preciso esperar pelo
julgamento? - fomos obrigados a aceitar à boa paz, uma transação, uma
indenizaçãozinha insignificante … O dinheiro evaporava-se. Todas as
semanas tínhamos de apresentar-nos à “Siguranta” (Polícia de Segurança).
Que balbúrdia de vida! Era de uma pessoa endoidecer! Uma Missão
internacional chegou a Kolozsvár.
Como eu sabia bem romeno, alemão e francês, que vergonha teria de
trabalhar? O capitão Scopelli, que belo homem e que belo coração!
Conseguiu-me um lugar de dactilógrafa na Comissão. Simpatizámos um
com o outro e, acredita, até os meus pais estimam Júlio como a um filho …
ele tem diante de si uma brilhante, esplêndida carreira.
Agora, leva-me para Viena, para onde acaba de ser nomeado … e, logo que
alcance licença partiremos para Liorne, para casa dos pais dele, onde nos
casaremos …
- Que idade tem?
- Trinta anos … um homem de sociedade, muito gentil, muito chique. A
família possui uma fábrica de tintas em Liorne.
- E tu … tens quantos?
- Eu? Quê, já não sabes? Tenho vinte e quatro anos.
- E é certo … que ele te desposará?
- Meus Deus! Mas evidentemente que é certo! … Na sua voz podia-se notar
que ficara magoada da vil pergunta suspeitosa. Mudou depressa de assunto.
- E tu, Tony, como vais? A tia Ana contou-me que tinhas um bom emprego!
Eu? - disse ele, com um vago gesto de mão, aquilo nada é.
Estou na secção de socialização da Repartição Central dos Metais. Não faço
nada.
Os velhos entraram. Maria voltou-se para eles:
- Meu querido tio Rudi e minha querida tia Ana, o meu marido manda
perguntar-lhes se não poderia ser-lhes útil nalguma coisa. Não têm
necessidade dum certificado ou de qualquer documento … ou talvez
dalgum dinheiro?
- Minha queridinha, respondeu a tia, de que poderíamos nós necessitar?
Estamos na miséria, mas na miséria está toda a gente. Aquilo de que
teríamos necessidade, seria dum mundo melhor; mas isso, não é o teu
marido, é Deus o único que no-lo pode dar.
Kádár aproximou-se então bruscamente da janela e de-teve-se em frente da
rapariga.
- Escuta, Maria. Levem-me com vocês para Viena! Maria fitou-o com os
seus grandes olhos, cheios de surpresa:
- Tony, meu pequeno, eu posso falar nisso ao Júlio … simplesmente, não
creio que … porque a Missão …
- Está bem, está bem - interrompeu ele - eu sei que não é possível. Não
falemos mais nisso. Pode ser que noutra ocasião, duma maneira ou
doutra …
Conversaram ainda algum tempo. Maria lamentou-se do aspecto medonho
que oferecia a cidade reduzida à miséria, e depois despediu-se. No dia
seguinte de manhã apresentaram-se ali dois agentes da polícia. Perguntaram
o que é que a gente da casa tivera que tratar, nos dias anteriores, com a
“dama da Missão”. A tia Ana, morta de medo, pôs-se a chorar:
“Mas, tratava-se de uma parenta da Transilvânia; então, até isto é
proibido?” Os agentes da polícia mostraram-se pouco faladores.
Relancearam a vista pela habitação, anotaram qualquer coisa e foram-se
embora.
A tia Ana e, secretamente, também o tio Rodolfo não se sentiram tranquilos
senão decorrida uma semana sem que o caso tivesse consequências.
Os dias rolavam vazios sobre a cidade. Kádár conservara-se três dias
ausente do escritório; porém cessara de meditar continuamente nos pais. O
pesadelo , agressão de Deva voltava ainda, às vezes, a perseguido, mas de
morna e oleosa, num tédio de dar cabo de uma pessoa. Não tomava parte
nas discussões: não o interessavam sentia a sua completa esterilidade …
Um dia espalhou-se a notícia de que rebentara a contra-revolução de que
vários monitores bombardeavam a casa dos Sovietes e de que os
Comissários do Povo tinham fugido, na fuga minutos apenas, o escritório
ficou vazio, havia, de facto, alguma coisa, os elétricos não circulavam.
Via-se, aqui e acolá, “carro abandonado. Só passavam alguns poucos
transeuntes retardatários, agora apressados em Acolher Os camiões dos
terroristas, percorriam as ruas.
em toda velocidade em um trabalho incoerente …
soprava-lhe uma voz, no fundo dele mesmo “Ho sou ainda nada, nem
ninguém. Não existe um ente humano, nem um objeto, nem uma
recordação, nem uma idéia , neste mundo, a que me dedique, que signifique
alguma coisa para mim … O desgraçado Feledy, esse também andaria pelos
vinte anos, assim como o Kichter, que recebeu uma bala na testa, e como
Titka, cuja coluna vertebral foi …” A porta do prédio da avenida de
Pozsony abriu-se agora com tanta dificuldade como em certa noite de
Novembro. Grande número de criaturas enchia o átrio. O porteiro discutia
com elas: “Estranhos não podem ficar.
Ponham-se a andar! No apuro de contas, as arrelias serão para mim!” Os
outros procuravam acalmá-lo.
Um cavalheiro bem vestido explicou-lhe, em voz exaltada, que só pretendia
manter-se ali até se deixar de ver alguém nas ruas: “Ponha na sua ideia, meu
querido amigo, que também há uma família que me espera, cheia de
ansiedade, em casa … “ Kádár contemplava, admirado, este grupo no
extremo do patamar da escada, quando alguém lhe agarrou no braço.
- És tu, Kádár? - interrogou uma voz abafada. Perscrutou a escuridão;
encarava com ele um rosto conhecido. Sim, era na verdade Vavrinec, seu
ex-condiscípulo.
- Que vens aqui fazer? - perguntou-lhe este último; - moras cá no prédio?
Poderei ficar em tua casa esta noite ou alguns dias mais, até que …
- Que é que há então?
- Direi lá em cima!
Os velhos olharam, aflitos, o recém-vindo; mas Kádár tranquilizou-os:
- É Estêvão Vavrinec, meu antigo camarada de turma. Os dois rapazes
ficaram sozinhos na sala de jantar.
Vavrinec disse:
- Creio que posso falar contigo confiadamente: não posso ir para a rua antes
desta história ficar arrumada, num sentido ou noutro … sou, de facto,
membro do “grupo da montanha”, e, ao afirmar isto, desabotoou o colete.
No forro via-se pregado um emblema, um escudo com uma cruz de Lorena
branca em campo verde, tendo uma coroa por cima.
- Olha! - exclamou Kádár; - em resumo, tu és contra revolucionário? E
porque é que te não encontras no teu … posto … no teu grupo?
- Eu ia justamente proceder a uma piedosa diligência … em casa de quem,
desculparás que te não diga, quando vi que o extremo da ponte estava
ocupado por um pelotão de tropas de assalto e que um automóvel blindado
chegava do lado do Parlamento.
- Num abrir e fechar de olhos, enfiaste então por um portal dentro e agora
estás na rica tenção de não te mostrares lá fora senão quando a tua gente
obtiver a vitória, não é assim?
O outro quis replicar, mas de súbito corou até à raiz dos cabelos, após o
que, a respiração suspensa, se fez pálido como o linho.
- Santo Deus! - deixou ele por fim sair quase gaguejadamente, da sua boca;
- tu não és, pois não, comunista Kádár fixou-o e sentiu vontade de rir.
- Comunista - disse espaçadamente, não tenhas medo, que não sou
comunista. Mas acreditas que me é muito simpático um contra-
revolucionário que deseja aguardar em abrigo seguro que … dize-me a si
próprio se interrompeu repentinamente
- foste combatente?
Vavrinec continuava lívido.
- Não - respondeu numa voz a custo perceptível; - fui licenciado, não te
lembras já?
- E em que te aplicas desde essa data?
- Eu? estou no segundo ano da Politécnica, na secção de mecânica.
- Bem. Vou pedir a meu tio que te deixe aqui ficar esta noite. - Disse isto e
saiu.
A tia Ana lembrou-se dos agentes da polícia. Tanto mais que aquele nem
sequer era parente: ela não queria albergá-lo. O tio Rudi soltava “hum”
“hum”, esforçando- por parecer neutro, mas também ele preferiria ver pelas
costas aquele jovem estranho, porque, sabia-se lá? … Todavia Kádár
convenceu-os mercê de rápidas palavras: não era lícito recusar, o pobre mal
se podia ter nas pernas; preparar-se-lhe-ia um poiso em cima de três
cadeiras juntas … Tratava-se, no fim de contas, dum camarada de turma!
- Mas se sucede alguma coisa?
- Não - respondeu ele - nada sucederá; - e absteve-se de revelar que
Vavrinec trazia um emblema consigo. Voltou para a sala de jantar.
- Podes ficar - anunciou ao outro, que balbuciou uma espécie de
agradecimento.
Depois o silêncio caiu entre eles.
Desde que fora mobilizado, não tornara a ver Vavrinec. A conversa
entabulou-se dificilmente e em palavras prudentes e neutras. Vavrinec
voltou a contar que estudava na Politécnica, mas não se podia falar de
estudos a valer no meio desses patifes dos vermelhos! Felizmente, os
vermelhos verdadeiros que havia na Politécnica eram pouquíssimos; mas
todos tinham de proceder como se … Habitava na parte antiga de Buda,
com os pais; estes possuíam, ou antes, haviam possuído, uma casa com um
jardinzinho.
- Imagina tu que a mamã faz criação de frangos no nosso quarto; quanto ao
meu pai, o velhote felizmente retirou-se dos negócios em 1917. Tudo iria
bem se não existisse este infame regime … Mas não durará muito
tempo! …
Vavrinec aquecia pouco a pouco.
- É uma centena de judeus que dirige toda a manobra, aqui como na Rússia;
felizmente, também na Rússia começam a perder terreno … vai ser uma
revolta como nunca se viu; entre nós, porém, a coisa não há-de ser tão fácil
como isso!
Depois, como se tivesse retomado contacto com a realidade, conteve-se e
preferiu interrogar Kádár:
- E tu? Que fazes?
- Eu? - Kádár refletiu. Devia contar-lhe que, em seguida à sua mobilização,
fora mandado para a Albânia, no verão, e depois para a “frente” italiana;
que em 1917 tinha sido ferido no ombro por um estilhaço de granada, e que
depois, ainda mal restabelecido, o haviam mandado outra vez para as
trincheiras, onde estivera coberto de piolhos e matara como os outros; que,
em seguida, abalara como esses mesmos; que o pequeno Feledy expirara no
comboio;
que ele, Kádár, passara inutilmente o seu tempo em Peste; que tinha tentado
voltar para casa dos pais em Deva, e que, por último, Maria Gazda viera a
Peste e trouxera a notícia de que …?
Guardou silêncio durante segundos, findos os quais respondeu:
- Nada. Estou num escritório.
- Que espécie de escritório? - perguntou Vavrinec. Contou então como
conseguira, dias antes da proclamação da ditadura do proletariado, obter
emprego.
Vavrinec mexia-se e remexia-se, nervoso, no seu assento, no desejo de
perguntar alguma coisa.
- E, a respeito doutros assuntos, como vais tu - Vegeto - respondeu - Isto
não é trabalho, não é vida. Espero que as coisas mudem de feição.
Pela vez primeira, desde o começo da conversa, Vavrinec respirou,
consolado.
- Ah, tu esperas que isto acabe? - interrogou.
- É modo de dizer … que isto acabe, ou então que alguma coisa nova
suceda. Que eu possa estudar ou ganhar a minha vida, compreendes?
Vavrinec sorriu maliciosamente.
- Escuta, Tony - disse ele - juro-te … Fizeste-me apanhar um susto …
Persuadi-me de que eras comunista e de que eu, feito idiota, tinha
desembuchado tudo cá para fora, logo à primeira. Podia ter ido diretamente
daqui para a enxovia.
Como Kádár não respondesse, Vavrinec perdeu de novo a sua segurança.
- Suponho que é para me fazeres zangar que guardas silêncio, meu velho?
- Escuta - respondeu Kádár - eu não sou comunista, mas tampouco sou
contra revolucionário. Eu … apanhei a minha conta na “frente” … tu,
porém, não podes compreender isto. Mas que razão tenho eu para supor que
aquilo que espero virá do vosso lado, desde que, até agora, toda a gente
mentiu? …
Vavrinec, hostil, guardou silêncio.
- Ouve - prosseguiu Kádár - eu creio que, hoje, todo o mundo está doente,
nós assim como a Rússia, como que o mundo inteiro. Esta coisa … a
guerra … não poderá facilmente aniquilada nos seus terríveis efeitos …
salvo todos conjugarem os seus esforços, os comunistas e o brancos e …
todo o mundo, ora aí está!
Um sorriso irónico adejou nos lábios de Vavrinec.
- Vejo que conservas ainda os olhos muito fechados disse ele - Antes de
mais nada, julgo que posso ter confiança na nossa velha amizade e que não
terei a recear que … - Reatou o fio do discurso franzindo duramente as
sobrancelhas: Ouve, Kádár, tu não és comunista, isso é incontestável; mas
também não escutas a voz do nosso tempo. Acreditas que uma vez acabada
esta chinfrineira vermelha, o radicalismo judaico internacional, e bem assim
a franco-maçonaria, toda esta súcia de derrotistas judeus por causa de quem
perdemos a guerra, ou os seus títeres, os socialistas, continuarão a ter voz
ativa neste país? União? Acreditas tu que as forças destruidoras
internacionais ousarão vir ainda envenenar-nos? Acreditas nisso?.., A tia
Ana entrou para pôr a mesa. Durante a refeição, poucas palavras trocaram.
Findo o jantar, a tia trouxe a colchoaria e mais acessórios e juntaram-se
algumas cadeiras, para o leito de Vavrinec.
De manhã cedo, Vavrinec encontrava-se, já completa-mente vestido, à
janela, a olhar a rua.
- Esperava que despertasses - disse a Kádár - ha uma hora que vejo que os
elétricos circulam já. Vou-me pôr a andar.
Kádár vestiu-se também. Os velhotes ainda não davam sinal de si. A serva
trouxe duas chávenas de chá e dois pedaços de pão.
- Não sei se é preciso esperar que os teus parentes se levantem. Terás a
amabilidade de lhes transmitir os meus agradecimentos.
- Entendido - disse Kádár - cumprirei o teu encargo, Vavrinec dirigiu-se
novamente para a janela.
- Peço-te … mais uma coisa. Vejo que as patrulhas vermelhas aparecem
ainda com bastante frequência e que a guarda se mantém na extremidade da
ponte. Não é impossível que sigam os transeuntes e que lhes perguntem
pelos seus papéis, pelo menos a alguns deles. Em suma, poderia alguém
reconhecer-me … toda a cautela é pouca. Eu não poderia deixar isto cá …
apenas por um ou dois dias, voltaria a buscá-lo … talvez hoje mesmo?
E estendia a mão, na qual segurava o emblema verde.
- Não - respondeu Kádár em voz firme - não podes deixar isso aqui. No fim
de contas, esta casa não é minha, e eu não devo atrair-lhe aborrecimentos.
Se te não atreves a levá-la, podes atirá-la para o pátio ou para as retretes.
- Obrigado - proferiu Vavrinec, em voz glacial - isso não!
Em seguida, após curto silêncio:
- Aliás, tenho mais duas em casa, escondidas no jardim. Deixá-la-ei, de
facto, cair no meio do pátio. Desceram juntos a escada e separaram-se na
rua.
Os dias foram correndo. Pelos meados de Julho, Kádár recebeu uma
convocação: tal dia, tal hora, devia apresentar-se para ser mobilizado. As
coisas caminhavam mal: os romenos, em Tisza, incomodavam fortemente o
exército proletário. Na manha do mesmo dia, apresentou-se ao delegado
político e pediu uma guia para consulta médica.
“Sinto vertigens, dói-me a cabeça, tenho vómitos; estou com febre; não sei
bem o que isto possa ser.” Como é natural, não se tinha referido, no
escritório, à convocação. À tia Ana disse: “Recebi uma convocação, mas
não me apanham lá.” “Já me basta. Vou-me deitar e ficarei na cama até que
me venham procurar ou que haja alguma novidade. Diz-se que os romenos
estão já em Szolnok {9}. Se tem medo, minha tia, irei para um hospital; se lá
me não admitirem, deixar-me-ei cair no meio da rua; mas ser mobilizado,
não, isso não!” A tia conservou-se um instante em silêncio, atônita, Depois,
incitou-o a deitar-se: a verdade era que ela e o tio não eram médicos! …
Quanto ao velho Dr. Webler, este diagnosticaria tudo o que se quisesse.
Meteu-se na cama. No dia seguinte, estirando-se ao comprido no leito, bem
disposto, radiante e em plena luz do dia, pôs-se, no íntimo, a rir:
“Já isto é uma boa coisa; agora espero, deitado, que haja alguma novidade”.
A tia Ana tratava-o com muito zelo e, por intermédio da criada, fazia
constar em todo o prédio que ele tinha uma febre muito alta, os pulmões
atacados …
Era necessário precaver-se para o caso de virem tirar informações.
Decorridos cinco ou seis dias, um dos colegas veio visitá-lo: o delegado
político mandara-o lá para ver o que havia. Recebeu-o mesmo metido na
cama, coberto até o pescoço, num calor sufocante. A tia Ana não deixou o
homem penetrar na sala de jantar e acercar-se da cabeceira do doente senão
depois de muitas precauções, perguntando-lhe se ele se não receava apanhar
alguma coisa, visto o sobrinho ter acessos de tosse seca tão perigosos. O
visitante acabou por sentir realmente receio, mas as ordens são ordens e
entrou.
Kuhnert, um jovem suabo {10}, louro e de elevada estatura, mantinha-se
junto da porta do aposento e observava Kádár, que se encontrava estendido
de costas, os olhos cerrados, transpirando medonhamente debaixo da pesada
roupa.
- Bom dia, camarada Kádár - saudou - Então, isso não vai melhor?
Kádár não respondeu, mas executou um prolongado acesso de tosse seca,
após o que, como só no instante voltasse a si, se soergueu na cama.
- Bom dia, camarada Kuhnert, vamos, que há de novo lá no escritório?
- Oh! não é isso que tem importância, isso é secundário! - afirmou o outro;
- você, o que é que você tem? É o que unicamente importa.
Kádár fez um gesto vago, tossiu.
- Oh! - disse Kuhnert, assustado a valer - ao menos isso não é grave, não?
- Grave? … Oh, hei-de levantar-me daqui … talvez … isto são restos da
guerra
- proferiu com semblante carregado enquanto alguma coisa começava de
cocegar-lhe na garganta, de modo que teve de fazer grandes esforços para
reprimir uma gargalhada.
Kuhnert olhou-o, o rosto inquieto; depois, sentou-se e contou que corriam
más novas, tanto no escritório como na cidade: sobre o fim próximo da
ditadura do proletariado, sobre o ataque conjugado dos checos e dos
romenos … “mas, acrescentou à laia de consolação, a consciência dos
proletários acabará por despertar, e depois o exército russo libertador
chegará talvez ainda a tempo, no encalço dos romenos …” Por fim retirou-
se, convencido de que aquele pobre Kádár passaria mal a noite.
Logo após a sua partida, entraram a tia e o tio e, os três juntos, entregaram-
se muito à socapa a tal acesso de hilariedade que a tia acabou por achar
indecente brincarem com coisas tão sérias, “sobretudo em época tão terrível
como aquela”.
Depois deste incidente, ninguém mais o veio incomodar. Teria podido
tranquilamente levantar-se e, a-pesar disso, permaneceu deitado.
“Representemos a comédia até ao fim” - disse de si para si; mas num
relance, acudiu-lhe ao espírito que se conservava deitado ainda por mais
outra razão, por não ter nada que fazer, para deixar passar o tempo
dormindo e, durante as horas de vigília, poder contemplar, através da janela,
o pedacito de céu azul. A contemplação do céu recordava-lhe qualquer
coisa já conhecida: uma sensação estranha … o comboio sanitário avançava
vagarosamente, subia, arquejante, uma encosta. No leito inferior, estava ele
deitado; por cima, alguém respirava dificultosamente, numa pieira surda,
entrecortada; esse tinha uma ferida no ventre; nos outros dois leitos, mais
dois homens se encontravam deitados de ventre para baixo, tendo, coisa
singular! uma ferida exatamente semelhante no traseiro; de bruços e
amarrados às camas, eles lamuriavam e, pela janela, vista vá-se um recanto
do céu frio dos Alpes …
Desta vez, porém, era muito melhor … permanecer deitado, de excelente
saúde, à espera! … presentemente, pelo menos, era provável o caso não
degenerar em …
infecção geral!
CAPÍTULO V

Dias depois a ditadura do proletariado estava por terra. Kele levantou-se


logo que soube a notícia. Sentia-se um pouco fraco devido a ter
permanecido quinze dias deitado; contudo, nesse mesmo dia se dirigiu ao
escritório.
As ruas negrejavam de gente; guardas a cavalo, em uniforme de gala,
percorriam a cidade; fardas de oficiais surgiam aqui e ali, brilhando com
todo o esplendor das suas estrelas na gola {11}; as bandeiras vermelhas, feitas
em farrapos, apodreciam sob montões de porcaria e arrancavam-se das
paredes os cartazes comunistas. Imediatamente, porém, colavam-se outros
cartazes no seu lugar; os dizeres eram diferentes, mas o sentido era o
mesmo. Em vez da retórica vermelha era a retórica branca a soltar urros de
morte a cada canto da rua. Em vez de punho vermelho, era o punho branco
que, ameaçador, reprimia a respiração no peito do homem do povo, ao
longo das fileiras de prédios.
Vendedores de chocolate e de cigarros apareceram sem demora nas
avenidas; e, vinda do lado dos arrabaldes, gente semi-desfalecida,
esgueirava-se na bocarra dos largos portões, em seguida a sangrentos
tumultos. Espalhava-se na atmosfera um cheiro a linchagem {12}; a cidade
inteira sussurrava e, todavia, mal se ouvia em qualquer parte uma frase em
tom mais alto logo toda a gente desatava a correr. Cada qual olhava com
desconfiança o vizinho e, não obstante, desde que parassem na rua três
pessoas juntas, imediatamente mais trinta se poriam à volta delas. Diversos
jornais, cujo texto se limitava a uma única página, enrubeciam a clamar
vingança, e nas frontarias dos Bancos aparecia de súbito uma singular
novidade: a cotação da coroa húngara em Zurique.
À noite ouvia-se novamente a fuzilaria. Depois, ao som de clarins
estridentes, bruscos, arrogantes, um tanto bárbaros, desfilavam tropas
romenas pela avenida Andrássy.
O inquérito no escritório correu depressa os seus trâmites. Quando se
apresentou diante da comprida mesa da sala das sessões, o sr. Huber,
membro da Comissão de Sindicância, bichanou qualquer coisa ao ouvido do
presidente: “Já me vi na frente duma mesa assim, com a diferença que esta
está forrada de pano verde” raciocinou Kádár.
- O sr. não aceitou o cargo de delegado político, não é verdade? - perguntou
o presidente.
- Não aceitei! - respondeu Kádár.
- O sr. deu parte de doente no escritório, em 3 de julho, e conservou-se de
cama, unicamente para não cumprir a ordem de mobilização dos vermelhos,
não é assim?
- Sim, sr. presidente.
Dias depois começou o pretenso “trabalho de reorganização”, o qual
consistia principalmente em arrumar num armário especial a
correspondência e outros papéis acumulados desde 21 de março. Em redor
das mesas voltavam a formar-se grupos; mas em vez de discutirem os
acontecimentos sob o ponto de vista do marxismo ortodoxo ou da
moralidade proletária, tratavam da “guerra perdida”, da “renascença do
capitalismo” e da “regeneração nacional”.
No 1º de setembro, de fonte limpa, surdiu a nova de que o governo ia
liquidar a Repartição Central dos Metais … Efetivamente, a maior parte dos
empregados, ele incluído nesse número, receberam pouco depois a
notificação de que ficavam dispensados do serviço a partir do 1º de outubro.
Kádár observou a sua carta, no fim da qual leu que, para receber a
indemnização legal por despedimento, poderia comparecer no dia tal, às
tantas horas, em determinada secretaria.
Experimentou qualquer coisa semelhante a uma impressão de alívio.
Ao regressar a casa contou aos velhotes que estava despedido, que ia
receber uma indemnização e que tencionava inscrever-se na Politécnica, no
curso de arquitetura. Tendo todos os seus documentos em regra, adicionou-
lhes o certificado da sua conduta patriótica e moral durante a ditadura do
proletariado e, uma bela manhã, encontrou-se diante da porta da
Politécnica. Viu imediatamente passar-se fosse o que fosse de anormal.
Disseminados pela praça, defronte da Escola, grupos de rapazes discutiam
acaloradamente. Nas margens do Danúbio, havia dois ou três grupos mais
importantes. Descortinou também uma ambulância municipal com bandeira
verde, assim como um numeroso destacamento de soldados romenos. Tinha
ouvido falar em conflitos universitários, em motins, mas nada disso o
interessava. À entrada, foi recebido por dois rapazes de boina. Eles
mediram-no de alto a baixo, com a vista, e perguntaram:
- É para efeito de matrícula?
- Sim, é.
- Passe!
No átrio, no sítio onde a escada desemboca no corredor, foi de súbito
cercado por grande magote.
- A sua carta de membro da Associação dos Estudantes Patriotas?
- Ainda a não tenho; venho matricular-me, - esclareceu Kádár.
- É para o primeiro ano?
- Sim.
- A sua certidão de idade?
Meteu a mão na algibeira para tirar a papelada.
“É Kádár”, proferiu neste momento uma voz conhecida.
Ergueu os olhos, viu Vavrinec a três passos dele. Os olhares de ambos
cruzaram-se, num relâmpago, após o que Vavrinec estendeu o braço na sua
direção e gritou:
“Comunista indecente!”
Ao mesmo tempo, recebeu duas tremendas bofetadas que só por um triz lhe
não rebentaram os olhos. Sentiu no ombro uma impressão igual àquela que
lhe produzira, outrora, um estilhaço de granada, e logo rolou pela escada, no
extremo da qual sentiu ainda que alguém lhe dava um pontapé nas
ilhargas …
Durante uns poucos de dias, foi perseguido pela visão de Vavrinec
apontando-o de braço estendido e berrando: “Comunista indecente!” Por
fim, voltou à posse de si próprio, o seu estado adquiriu melhoras: a pancada
com a moca de cauchu havia-lhe fraturado a clavícula, mas o osso
ressoldava-se sem complicações, e do pontapé que apanhara, no termo da
escadaria, não restava já senão uma mancha violácea, do tamanho duma
palmilha, na ilharga.
Encontrava-se tranquilamente estendido no leito do hospital, quando os tios
o foram visitar. Ele nem sequer aludiu ao assunto; mas veio uma tarde em
que a tia, à sua cabeceira, desatou a lamuriar:
- Vês, meu pequeno, é o castigo de Deus por outro dia te teres metido na
cama, de perfeita saúde.
Ele encolerizou-se:
- É possível, minha tia, que seja castigo de Deus, mas seria então
unicamente por ter sido …
Não pôde acabar a frase. Ao ruído das vozes, acorrera imediatamente a
enfermeira. Ela pediu à senhora que não enervasse o doente. Então, todos se
calaram.
Vavrinec fizera com que ele fosse zurzido. Tinha-lhe dado roda de
“comunista indecente”. Tudo isso, sem sombra de dúvida, por causa do
emblema verde atirado fora, para o pátio.
Uma das enfermeiras, uma morena bastante alta, vinha frequentemente vê-
lo durante o dia. Parava ao pé do leito e trocava com ele algumas palavras.
Mas quando Ágata - era este o seu nome - ficava de serviço noturno,
permanecia horas seguidas sentada junto da cama dele, a conversar em voz
baixa, à luz branda da lâmpada azul.
“E agora, durma!” dizia-lhe ela às vezes; mas nem por isso se erguia dali e
ambos prosseguiam na conversa. Havia ocasiões em que já despontava a
madrugada quando ele adormecia. A-pesar-disso, não se sentia fatigado,
porque no fim de contas podia dormir de dia, se assim quisesse.
“O rosto dela é belo”, devaneava. “E tem também bonitas mãos, de dedos
esguios.
Custa a acreditar que toque nesses pobres doentes em estado horroroso.
Belos são igualmente os cabelos; vê-se que, por debaixo da touca, os traz
enrolados em forma de concha sobre as orelhas. Mas é mais baixa do que
eu.” Certa noite, pegou no braço de Ágata, de maneira a roçar-lhe com os
dedos no seio. Ela consentiu e apertou mesmo, com o próprio braço, a mão
de Kádár de encontro ao busto. A partir daquela noite, deixou de sentar-se
na outra extremidade da cama para se sentar mais perto, de modo a poderem
tocar-se à vontade; Kádár conservava, assim, a mão dela na sua durante
uma boa parte da noite. Chegou ao ponto de atrever-se a tatear-lhe os seios
sem que a rapariga se defendesse.
Todavia, ali, no leito hospitalar, nada ousou empreender; mas quando, no
princípio de outubro, saiu curado, pediu a Ágata, ao despedir-se dela:
- Diga-me, não quererá vir, um dia … dar um passeio … comigo?
Um domingo, depois do almoço, foi procurá-la ao hospital. Ela trazia um
vestido castanho e chapéu da mesma cor. Brilhava o sol, o ar era tépido e
delicioso.
- Deseja ir ao Teatro Nacional? - interrogou ele - Vai à cena, em matinê, a
peça “As meninas Gyurkovitch.” - Ah, não! Ir ao teatro com um tempo tão
lindo como está hoje? Antes a gente passear, lanchar numa pastelaria e, se
você quiser, ir depois ao cinema, respondeu ela e, a rir, acrescentou de
repente: “Eu tenho dinheiro.” Ele corou. Que ideia seria a dela?
- Eu também tenho - replicou, enquanto refletia que fora uma verdadeira
sorte o tio Rudi ter conseguido trocar o dinheiro branco dos comunistas pelo
dinheiro dos Correios, graças à intervenção dum dos seus amigos,
tesoureiro nos caminhos de ferro.
Meteram pela avenida Rákóczi até à Estação de Leste, depois do que
seguiram até ao Bosque. Como era bela essa tarde de outono! As alamedas
formigavam de gente, brincavam em volta deles bastantes crianças. Uma
corpulenta mulher achava-se sentada num banco, dando de mamar a um
bebé de cabelos negros como azeviche.
- Santo Deus, se eu pudesse ter um filho! - suspirou a rapariga tomando-lhe
o braço. - Infelizmente, é impossível.
“Como ela tem o braço a arder!” - observou Kádár de si para si. E
perguntou:
- Porque é que é impossível? - a pergunta era tola e indiscreta, mas a
rapariga não experimentou constrangimento algum.
- É impossível - disse ela - porque é impossível, meu grande idiota! Uma
vez estive vai-não-vai a ter um … e por isso mesmo é que me é impossível
vir a tê-los.
Uma onda de calor repassou o corpo de Kádár: ela esteve quase a ter um …
isto queria então dizer que …
Sentaram-se num banco. Ele meditava incessantemente na confissão da
rapariga. Depois enlaçou-a, atraiu-a a si e, como o dia principiava a
declinar, abraçou-a pelo pescoço e beijou-a na boca. A rapariga encheu-se
de alegria, acolheu a boca dele com uns lábios que se ofereciam e que
aceitavam.
“A sua boca tem um gosto puro e fresco” pensou ele. Inesperadamente, a
rapariga ergueu-se.
- Contraria-me isto; são figuras de patetas, aqui, no bosque, sentados num
banco. Vamos para casa?
- Para casa? - perguntou Kádár, com voz de assustado.
- Claro está, meu grande estúpido - ria a rapariga, motejando dele - mas não
para a sua casa: sei que habita com um tio; é na minha casa que nos vamos
recolher. Ou você não quer?
Ele tomou o braço de Ágata e não retorquiu palavra. Puseram-se a caminho.
Uma sensação benéfica lhe dilatava o peito. “Vamos para casa” repetiu ele.
Decorridos uns minutos, chegaram diante de um prédio, muito alto; era ali
que habitava a rapariga. No terceiro andar penetraram numa antecâmara
minúscula que dava logo para um grande quarto asseado e bonito. Continha
muitos móveis; uma mesa de jantar, dois armários, cadeiras e, além disso,
um divã.
Kádár apontou para este último:
- Você não mora sozinha? - perguntou.
- Está visto que não, meu pequeno, moro com a minha irmã; mas ela obteve
três dias de licença e abalou para Palota, para casa do noivo!
Ágata estava de bom-humor; ria, saltitava pelo quarto. Enfiou um vestido
caseiro e depois, duma cozinha de boneca, trouxe um jantar frio que serviu
a-par de um resto de rum numa garrafinha.
- Desculpar-me-ás, mas não tenho outra bebida … assim mesmo, marchará,
não é verdade?
- Vamos a ver …
Ele sentou-se à mesa. Neste momento a rapariga pousou-lhe a mão no
ombro.
- Sabes, não te poderás ir embora se não amanha de manhã. É proibido
andar de noite na rua. Meu Deus, como me sinto feliz por saber que ficarás
até amanhã de manhã!
Ele despertou pela madrugada. Estava ainda escuro; durante minutos ouviu
rangerem as rodas dum pesado veículo, após o que de novo tudo caiu no
silêncio.
A seu lado Ágata dormia, a cabeça deitada sobre o braço direito dele, os
lábios completamente cerrados. Subitamente, uma grande tristeza lhe
invadiu o peito, sem ser porém a clássica tristeza que segue o coito. Olhou
de perfil a mulher adormecida, os seus longos e negros cabelos esparsos, o
belo rosto oval que irradiava uma luz mate na meia-penumbra.
“Meu Deus, como pude conquistar esta mulher, esta mulher encantadora!
Esbofetearam-me, quebraram-me a clavícula, puseram-me fora a pontapés.
Poderei lá ir outra vez a-fim de lhes explicar: “Meus senhores, deve haver
equívoco; eu sou António Kádár, antigo alferes combatente, ferido no
ombro, titular da pequena e da grande medalha de prata, da Cruz de Guerra.
Tenho vinte anos, sou da vossa religião e nunca fui comunista - posso
prová-lo com documentos e também com o testemunho de quem se chama
Estevão Vavrinec, meu antigo condiscípulo do liceu. Desejo ser admitido
entre vós, desejo estudar, queria ser arquiteto … a bem da pátria húngara e
também … para ganhar dinheiro … Sinto vocação para esse mester e estou
certo de que não tereis de envergonhar-vos da minha pessoa …” O seu
braço fez um movimento, que despertou Ágata em sobressalto. Ela
soergueu-se na cama e fitou-o um instante com os seus olhos grandes, um
pouco assustados, um tanto estranhos, após o que soltou um risinho abafado
e tornou a deitar-se, enroscando-se nele. Às sete horas e meia, abalaram
juntos.
Durante a noite toldara-se o -céu e agora caía uma chuva miudinha.
Dirigiram-se a pé para o hospital. Ela dava-lhe o braço e ia-lhe dizendo
tolicezinhas gentis e; carinhosas.
- Na quinta-feira estou outra vez livre. Virás esperar-me ao meio-dia e
iremos logo direitos à nossa casa; meu lobinho, não temos necessidade de ir
antes a parte nenhuma, não é verdade, meu Tonyzinho? Vou pedir a Marta
que aceite, nesse dia, serviço noturno. Fá-lo-á de bom grado. Também eu
tenho feito sempre o mesmo por ela. Tudo correrá às mil maravilhas, não é
verdade, meu anjo?
Eram oito horas quando ele regressou a casa. Os velhotes encontravam-se
sentados à mesa na sala de jantar, os olhos da tia apresentavam-se com uma
orla negra, sinal de se ter afligido e de ter estado de vigília.
- Meu Tonyzinho, não te aconteceu nenhuma desgraça, pois não? Nem
preguei olho esta noite, de tal modo estive apoquentada por tua causa, tanto
mais que ainda estás mal restabelecido.
Ele esforçou-se por assumir uma atitude desembaraçada e livre:
- Já não tenho nada, minha tia. Simplesmente … - aqui, calou-se e baixou
os olhos. - Tenho a comunicar-lhes uma grande notícia, tio Rudi e tia Ana.
Esta noite …
passei-a a falar, a discutir essa coisa. Vou partir para Viena, a-fim-de
matricular-me na Universidade de lá. Como sabem, aqui não alcanço lugar.
Na Universidade, não me querem admitir, e ainda que assim não fosse
limitar-se-iam a oferecer-me mundos e fundos! … Tenho vinte anos, e é
forçoso que faça alguma coisa.
O tio Rudi escutou o discurso com ar desconfiado. “Aqui há história … ele
prepara-se, certamente, para fazer outra loucura”, disse com os seus botões.
Quanto à tia, foi logo uma completa orquestra de protestos que soou na sua
boca:
- Deus te abençoe, meu filho, mas como pões na tua ideia que poderás viver
numa cidade estrangeira? Onde arranjarás dinheiro? Onde morarás? De que
maneira viverás entre pessoas estranhas?
Ele retorquiu servindo-se de frases curtas, ponderadas e quase frias.
- Que tenho que fazer aqui? Como posso eu aqui viver e durante quanto
tempo ainda poderei viver à vossa custa? Sabem bem que tentei colocar-me,
e conhecem também a maneira como o consegui. Fui despedido da
Repartição Central dos Metais. Podem arranjar-me outra situação? Ah bem,
já vêem …
Os argumentos e as palavras que deviam dissuadi-lo do seu projeto
tornaram-se de súbito frouxos.
- No estrangeiro, o mundo está feito exatamente da mesma maneira, sempre
assim esteve - observou o tio Rudi. - É certo que, na tropa, lá te soubeste
livrar de apuros; mas imaginas que te sucede o mesmo, numa cidade
estrangeira?
insistiu a tia Ana, - Que faça o que entender; a verdade é que já tem idade
para saber o que faz - concluiu o tio.
Nesse mesmo dia compareceu no antigo escritório, onde a respeito dele se
sabia apenas, pelo tio Rudi, que fora vítima de um acidente na rua. O antigo
protetor viu-se obrigado a intervir, uma vez mais, em seu favor, visto que
lhe pagaram quatro meses de indemnização em vez de três. Recebeu, conta
redonda, duas mil coroas, em notas postais {13}. No regresso, exibiu o seu
dinheiro.
- Permitir-me-á isto viver longo tempo em Viena. A viagem, os papéis e
certas pequenas compras custar-me-ão ainda umas centenas de coroas.
Quanto aos velhotes, eles de-certo nada me aceitarão pela sua hospedagem.
Este dinheiro permitir-me-á viver longo tempo em Viena! - refletiu.
No dia seguinte coligiu os seus papéis e requisitou um passaporte na
Polícia.
Bom presságio: o funcionário da Repartição dos Passaportes, ao pegar nos
documentos, deitou uma mirada para a certidão de idade e bradou,
imediatamente:
- Olha! tu serás filho do velho Tony Kádár? Tratava-se de um antigo
conhecimento da família. Uma hora depois Kádár tinha o passaporte na
mão. Continha uma rubrica: “O passaporte é válido para os seguintes
países: … Preenchendo esta rubrica, o funcionário escrevera: “Europa”.
“Europa, Europa - murmurou Kádár, parto para a Europa, parto para a
vida!” Na manhã imediata, muito cedo, dirigiu-se à estação de caminhos de
ferro, a informar-se sobre a partida dos comboios. Em consequência da falta
de carvão, não havia para Viena senão um comboio por dia, o qual partia às
sete horas da manhã. “Será este, pois, o meu comboio”, pensou e, no
mesmo instante, invadiu-o a emoção da viagem. Vagueou no enorme
vestíbulo, quis ir à gare, mas achou a porta fechada. Entrou então na sala de
espera da terceira classe e mirou, através das vidraças, as carruagens vazias
que se encontravam na via mais próxima. “Vou partir para Viena, para a
Europa. Para a vida! Na volta, comprou quatro camisas, quatro ceroulas,
quatro pares de peúgas, meia dúzia de colarinhos, assim como um casaco de
inverno, cinzento. Prosseguiu lentamente o seu caminho.
Ao entrar em casa, viu que o embrulho das compras já fora entregue. Abriu-
o, ordenou a bagagem, tirou do armário da ante-câmara toda a sua restante
roupa, recriando-se com a tarefa, como uma criança. A tia Ana viu-o
proceder àqueles arranjos, com os olhos vidrados de lágrimas, meneando a
cabeça:
- Não posso acreditar que seja verdade ires-te embora, meu Tony - suspirou;
depois foi procurar ao cubículo das arrumações uma grande e bela mala de
viagem, de coiro castanho, e entregou-a a Kádár.
“Sabes, Tony, é a mala que o tio Rudi levava quando andava nas suas
excursões de serviço … damos-ta, serve-te dela”. E manteve-se a vê-lo
mexer e remexer nas suas coisas.
- Tu não arranjas ainda, não é verdade, a bagagem?
Quando queres partir? Primeiramente preciso de mandar lavar a tua roupa
branca e preparar os fatos!
Ele respondeu que partiria logo que estivesse tudo pronto. No dia seguinte
compraria já o bilhete. Outrora, os dias que precediam os exames, tinha-os
vivido em vertigem semelhante.
Como é que, bruscamente, lhe acudira ao espírito a ideia de abalar para
Viena?
Na outra noite, quando deitado junto de Ágata adormecida, dissera de si
para si que em Peste não podia ficar, ou antes, que ali não poderia começar
a vida …
Desde aquele momento, ficara sabendo que tinha de deixar Peste. Em Deva,
já nada mais havia que o interessasse; iria portanto para Viena! Não ficava
longe e era uma grande cidade; admiti-lo-iam lá, seguramente, na
Politécnica.
Na quinta-feira, após o almoço, no momento em que o tio se retirava para o
quarto, a fim de fazer a sua sesta, Kádár dirigiu-se-lhe:
- Meu tio, esta noite não fico em casa.
O tio olhou para ele dilatando os olhos.
- É que .. tenho … uma rapariga, e como vou partir …
- Está entendido - interrompeu o tio, contrafeito - está bem, darei o recado a
tua tia …
Com a alma radiante, Kádár dirigiu-se, pela tarde inundada de sol, ao
hospital.
“Ela tem belos cabelos negros - murmurou - cabelos que cheiram bem”. De
súbito, foi-se-lhe a boa disposição.
“Deverei dizer-lhe que vou partir dentro em breve e que, provavelmente,
nunca mais? …” Deteve o pensamento, uma dorzinha aguda a picar-lhe o
peito.
“Mal consigo a amizade dalguém.. “ meditou. “Santo Deus, o papá e a
mamã, perdi-os; Maria Gazda, também essa abalou, logo após a sua vinda;
e ao pobre Feledy, que estava ao meu cuidado, sucedeu o mesmo; vou agora
abandonar o tio e a tia; e vou igualmente abandonar Ágata! …” Não pôde
prosseguir a caminhada e teve de parar uns minutos, como paralisado, à
beira do passeio.
Perseguia-o, torturava-o uma ideia fixa: “Mal consigo a amizade duma
pessoa, logo tenho de deixá-la! …” Fresca, a juvenil criatura transpôs o
largo portão do hospital. Trazia o mesmo vestido castanho da outra vez.
Enfiou imediatamente o braço no de Kádár, risonha, tagarela.
- Dize-me, Tony, amas-me verdadeiramente, ou é …? De súbito, disparou-
lhe à queima-roupa nova pergunta:
- Dize-me, porque é que estás mal disposto?
Ele improvisou, de modo brusco, um trejeito folgazão.
- Não estou nada mal disposto.
- Escusas de contar o que é, sabes? Basta dizeres sim ou não.
- Mas, meu amorzinho, afianço-te! …
- Não é preciso tratares-me por “meu amorzinho” desde que não queres
dizer-me o que há.
Atormentou-o, irritou-o, maçou-o. Ele receava deixar escapar a confissão:
“Porque vou afastar-me de ti!” Porém, como se esforçava por se subtrair a
essa fórmula maléfica, pouco a pouco, à semelhança do líquido dum vidro
fendido, as frases começaram de filtrar-se-lhe da garganta; elas tornavam-se
cada vez mais rápidas à medida que a resistência se ia quebrando, caindo
em pedaços. Todo o conteúdo da sua alma extravasou. Principiou pela
partida de Gyulafehérvár.
A poeira suspensa no ar dançava, batida pelos raios pálidos do sol de
outono; perante eles, na Rua Rákóczi, brilhavam no meio dessa cintilação
as frases, as imagens, as recordações dos anos decorridos.
Narrou tudo, a partida ao som de cânticos, depois a Albânia, a paragem
primeira na sua marcha, a malária, o primeiro dos agressores. Em seguida, a
sua transferência e a viagem interminável para a “frente” italiana, através de
regiões duma inolvidável beleza, o batismo de fogo, a comoção dos nervos
produzida pelo ruído contínuo e horrível do bombardeamento, o terror dos
primeiros cadáveres, a apatia e os piolhos da trincheira, o seu ferimento na
espádua, a estada no hospital de Innsbruck, a volta para a “frente”, a
derrota; o regresso à pátria, a caminho da paz através de países estrangeiros,
os aldeãos que os do seu grupo tinham moído de pancada, a alimentação
constituída por abòborazinhas pilhadas nos campos; os camaradas que
haviam apanhado uma medonha disenteria, o pobre Feledy, em cujo capote
ficou amortalhado o seu corpo, o pão e o queijo branco comprados na
primeira aldeia húngara, a chegada a Budapeste, cidade deserta, a frustrada
tentativa de ida para Deva, o escritório em que estivera empregado, o
comunismo, a sua desventura na Universidade …
Havia já longos minutos que estavam em frente da casa de Ágata quando
ele enfim se calou. Dois olhos estupefactos e ardentes fixavam-se no seu
rosto. A mão da rapariga- estava úmida e o braço tremia-lhe.
- Querido … tudo isso já lá vai … Agora, vem para minha casa; é preciso
que esqueças tudo! - cochichou ela.
Encontrava-se deitado, sob o torpor dum sono velado e ligeiro. Em cima da
mesa, uma lamparina de cabeceira, coberta por um lenço, espargia branda
claridade.
Mesmo a dormitar sentia-se observado. Despertou, abriu os olhos: a
rapariga, sentada no leito, mirava-o com os olhos em chama.
Que há, querida, porque não dormes?
Ela parecia não ouvir e continuava a olhá-lo com fixidez; por fim, após um
prolongado silêncio, disse em voz doce:
- Tony, meu querido … tu queres partir?
De cálido rubor, avermelhou-se o rosto dele, na penumbra. Ainda lhe não
havia soprado uma palavra sequer do seu projeto relativo a Viena. Nem
nisso pensara mais desde que estavam juntos. Subitamente, sentiu no rosto a
mão fria de Ágata e, logo a seguir, ouviu uma voz aflita e molhada de
pranto:
- Eu tinha a certeza! Tens a cara quente, coraste! Tu queres ir-te embora!
Perturbado, ele buscava as palavras sem todavia poder fazer coisa diferente
da de olhar no vago, o aspecto embrutecido, o cérebro vazio … Não
conseguia atingir este mistério: “Como é que ela o sabia?” Depois, com o
rude instinto de macho, recorreu à solução mais simples: levou a sua mão
ardente ao corpo da rapariga, atraiu-a a si e, graças ao êxtase do amplexo,
varreu-lhe a angústia fremente e pressaga. Contudo, foi incapaz de
readormecer, tanto lhe trabalhava no espírito esta série de interrogações:
“Como é que ela sabe, se eu nada lhe disse? É certo e seguro, doravante,
que tenho de ir-me embora, visto que ela já o sabe. Devo dizer-lho agora?
Devo confessar-lho? Ou limitar-me a fugir, a desaparecer como um vadio?
Não valeria mais sair da sua vida docemente, sem ruído, e depois, quando
as minhas coisas caminhassem bem lá em Viena … Oh! até esse dia, não
me doa a mim a cabeça; ela, ter-me-á talvez esquecido! Mas não se poderá
dar o caso de fazer qualquer asneira quando eu a deixar? Ela gosta de mim,
e eu …” Num movimento brusco, voltou-se de bruços; a mulher gemeu ao
seu lado, mantendo-se, porém, adormecida, enquanto ele enterrava a cabeça
na almofada: “Também eu a amo”, concluiu. “Meu divino Jesus, como eu a
amo! Nunca assim amei ninguém, nem a mamã, nem mesmo o tio Rudi,
ninguém! Nunca senti pessoa alguma tão perto, tão unida a mim!” Sufocava
de encontro à almofada, ao descobrir, na véspera da partida, que estava
apaixonado por aquela mulher, que se apaixonara sem mesmo dar por isso;
apaixonado pela sua doce voz escutada nas noites do hospital, apaixonado
pela sua alegria infantil e pelo seu ar despreocupado, pelas suas carícias
maternais, pelo seu corpo alto, forte, apetecível. Não, não era amor súbito,
nascido do contacto das epidermes; era um sentimento que havia
amadurecido silenciosamente desde o dia em que aquela rapariga parara
pela primeira vez junto do leito dele e, com a mão fresca, lhe afagara pela
vez primeira o braço.
Sufocava de encontro à almofada, sentindo-se enganado e enganador, pois
sabia que, a-pesar de tudo, partiria e que negaria, talvez, a tenção de partir.
“Mal consigo a amizade de alguém …”, repetia de si para si.
Estava ainda sem dormir, quando, pela madrugada, Ágata por sua vez
acordou e, incendiada de desejo, se uniu a ele com ímpeto. Depois ficaram
enroscados um no outro. Então, de súbito, a rapariga pediu:
- Tony, jura-me que mo dirás quando quiseres abalar. Sei bem que não
ficarás em Peste; lembras-te de já no hospital me dizeres que desejavas
estudar para arquiteto? Maltrataram-te na Universidade, tinhas, é claro, de
partir. Não havia razão alguma para ficares em Peste … Tanto pior. Não sei
bem porquê, mas creio que tu irás longe. Eu sei que partirás, mas jura-me
que me prevenirás disso … Aliás, não vais partir já, porque, eu ainda nem
sequer to disse, pedi três dias de licença, de domingo a terça-feira, e Marta
prometeu-me ficar no hospital todo este tempo. Durante três dias viveremos
juntos como marido e mulher … Nunca gostei tanto de ninguém como de
ti … Tony, não te irás embora antes de estares comigo estes três dias, não é
verdade? Depois partirás, e eu não tornarei a ver-te, talvez, nunca mais.
Todavia, fui eu que te tratei! Não é verdade que gostas também de mim?
No sábado à tarde, ele comprou um fiozinho de ouro com um trevo de
quatro folhas como berloque. Contemplou o trevo pensando:
“Dou-te este trevo para ele te dar sorte … para que me não esqueças … para
que … porque gostaste de mim! Meu Deus, como vai ser custoso!” À noite,
despediu-se dos velhotes, por não querer fazê-los levantar, de madrugada,
no dia seguinte. A tia Ana chorou e cobriu-o de beijos; o tio, perturbado,
proferiu, a espaços, algumas frases de encorajamento, procurando reprimir a
comoção. Cem vezes já a tia fora verificar se a mala estava em ordem, se a
fechadura funcionava bem, cem vezes ela lhe recomendara que metesse o
dinheiro num saquinho de tela e o pendurasse ao pescoço. O tio entregou-
lhe um pacote de cem cigarros, dizendo-lhe:
- É do velho Max Huber, que te manda isto; também ele se habituou a
estimar-te, meu filho …
Quando, na manhã imediata, se levantou às cinco horas, fê-lo contra
vontade, mas esta comédia era necessária porque não podia, de forma
alguma, dizer-lhes que saía de casa para ir passar três dias com uma
amiguinha! Os velhotes estavam já a pé e a criada também. Houve café e
pãezinhos doces quentes, e grandes beijos de ternura, e a grave e insistente
voz do tio que murmurava:
- Coragem, meu filho, coragem - Tony, escreve-nos … escreve-nos sempre
implorou a tia; depois a sua voz fletiu num soluço e ela nada mais
acrescentou do que estas palavras:
- Rodolfo … estamos já tão velhos! …
Seis horas: partiu no primeiro elétrico, completamente vazio àquela hora. A
rua estava escura, deserta e fria. Meia hora depois, chegou à estação de
caminho de ferro. A sua mala de viagem não pesava por aí além. Na estação
notava-se um agitado vai e vem, uma baforada do odor dos comboios veio
bater-lhe no rosto e a comoção comprimiu-lhe ora o estômago, ora o peito.
Foi direito ao depósito de bagagens, a-fim de lá deixar a mala; em seguida,
embrulhado no seu sobretudo novo e segurando na mão o embrulho de
vitualhas entregue pela tia como viático, encaminhou-se para a avenida das
Arenas, onde Ágata residia. Sete horas menos um quarto, era ainda
demasiadamente cedo. Entrou num Café, mandou vir um chá. Sete horas e
meia: a passo lento, dirigiu-se para casa dela.
“Os velhotes supõem que parti há já bastante tempo; a tia chora, com
certeza.”
Andou cá e lá, lá e cá, diante do prédio, e por fim entrou. No primeiro
andar, cruzou com uma morena alta: ela parecia-se com Ágata como se
parecem duas gotas de água, salvo na circunstância desta dar a impressão de
ser um pouco mais robusta. Ao passar-lhe pela frente, a juvenil criatura
sorriu-se entre mostrando os dentes, duma brancura deslumbrante. Era
Marta. Ele bateu no terceiro …
Ágata, de grande avental azul, lenço na cabeça e as mãos enfiadas numas
luvas brancas já esburacadas, abriu a porta:
- Desculpe - meu senhor, disse ela a rir - não estar ainda arranjada, mas
entre, há apenas dez minutos. Tenha a bondade de descer a escada e de me
trazer um litro de álcool para queimar; a mercearia é mesmo ali defronte.
Eu, entretanto, acabarei de arrumar a casa. Essa excomungada Marta
acordou hoje tardíssimo e abalou precipitadamente, deixando a cama por
fazer.
Também ele se pôs a rir. Desceu, trouxe o álcool. Vestindo apenas uma,
combinação azul, ela permanecia à porta da antecâmara e abriu antes
mesmo de ele ter tempo de tocar a campainha. Quando o rapaz entrou,
mediu-o dos pés à cabeça:
- Olha … como tu vens chique! … Tens um sobretudo novo?
- Sim.
- E que embrulho é este?
- Isto? São comestíveis.
- Da tua casa?
- Não, duma loja.
Ela fitou-o, após o que, sem dizer palavra, levou o embrulho para a cozinha.
Quando voltou, vinha de novo toda sorridente.
- Esquecia-me de perguntar-te se, quando subias, não encontraste Marta; ela
acabava de sair.
- Sim - respondeu ele - é uma rapariga bem bonita.
- Agrada-te? Mas eu sou mais bela do que ela, não é verdade? - interrogou
numa voz em que se mesclavam um pouco de galantaria e um pouco de
ciúme.
Ela tornou-lhe a cabeça e atraiu-o a si.
Na quarta-feira, Kádár despertou às cinco horas da manhã. Deslizou, com
precaução, para fora da cama. Não se quis lavar para não fazer ruído, e pôs-
se a vestir na escuridão. “Lá na estação, lavarei as mãos e a cara”, pensou.
Pegou no saquinho de tela que continha o seu dinheiro, colocou-o ao
pescoço e prendeu-o à camisa, com um alfinete. Já pronto, a rapariga
perguntou-lhe de chofre, numa voz estranha e fria:
- É esta manhã que tu partes?
Aquela voz novamente o transtornou. Sentou-se na borda do leito,
procurando a mão de Ágata. - Querida! …
- Dize-me se partes esta manhã? - e a sua voz recuperou o tom habitual -
Tony, meu amorzinho, dize-me a verdade, visto eu ter-te encontrado na
algibeira o passaporte assim como o fiozinho que queres dar-me de
presente.
Oh! nesse caso … tornava-se mesmo, deste modo, muito mais fácil não ser
obrigado a mentir, a negar, a iludi-la! “Não a enganarei; nem a ela, nem a
mim próprio; não procederei como um tunante” - meditou ele.
E respondeu, baixinho:
- Parto agora, de manhã.
A estas palavras, Ágata levantou-se, vestiu o roupão, correu para a cozinha
e dentro em breve voltou com um grande jarro de água quente.
- Lava-te, querido, tira o casaco, tens ainda muito tempo. A tua mala está
depositada na estação, não é verdade? Bem!
Ficou-se a vê-lo nas lavagens e estendeu-lhe a toalha:
- Ainda deixaste sabão nas orelhas …
Isto acabado, ele achou-se outra vez completamente vestido no meio do
quarto e sentiu que a meia hora que tinha de passar ainda junto da rapariga
poderia provocar conversas perigosas, conversas que varreriam adiante de si
coisas do porvir ou que deturpariam o sentido de coisas passadas. Resolveu
calar-se.
Ágata, sentada na cama, disse-lhe com a maior tranquilidade possível:
- Sabes, Tony, o rapaz de quem estive em riscos de ter um filho … tinha de
voltar para a “frente”, onde já estivera durante dois anos … Então, quando
recebeu ordem de partida, disparou um tiro de revólver na mão. Quis
perfurar a palma da mão, mas foi o pulso que lhe ficou despedaçado …
Naquela altura eu andava grávida, e a ele tiveram de amputar-lhe o braço.
Nessa época já eu trabalhava no hospital e, não obstante, ia visitá-lo todos
os dias. Ele estava cheio de medo, porque lhe instauraram um inquérito por
mutilação voluntária! Quando pôde levantar-se saiu a um corredor e atirou-
se do alto do segundo andar para a …
Subitamente, empalideceu e calou-se. Após um longo silêncio, prosseguiu:
- Sabes, Tony, supus de princípio que não poderia sobreviver-lhe … depois,
a pouco e pouco, fui serenando e recorri a um médico, porque não queria ter
um defunto por pai do meu filho …
Calou-se novamente; em seguida ergueu-se e colocou-se-lhe face a face:
- A ti, amei-te mais ainda … mas, dê por onde der, com a ajuda de Deus,
hei-de refazer-me também disto … Tony, meu querido, dá-me agora o fio …
não, prende-mo tu mesmo ao pescoço. Isso, assim está bem … E agora, vai-
te gentilmente, querido, almoça no bufete da estação, porque se me acabou
o café em casa. Não te esqueceste de nada? Levas o teu dinheiro? Um dia,
lá em Viena …
Ele inclinou-se para ela, procurou-lhe a boca:
- Ágata, querida, eu nunca, nunca, te … Vivamente, ela interrompeu-o:
- Não digas nada! “nunca” é palavra que se não deve dizer! - exclamou num
tom quase severo - Sabes tu, porventura, o que já amanhã te pode
acontecer?.
Tinham vindo para a ante-câmara. Ela tomou do cabido um lenço de
agasalho, de lã, passou-lho à volta do pescoço, ajeitou-lho debaixo da gola
do sobretudo:
- Podias sentir frio no comboio - explicou. E, docemente, impeliu-o para a
porta. - Tony, meu querido, vai-te embora por amor de Deus, eu não quero
chorar! …
Encontrava-se no corredor atravancado duma carruagem de terceira classe,
um pé assente na mala; o comboio deslizava suavemente sob o alpendre,
altíssimo e todo envidraçado, da estação. “Partimos” disse de si para si. A
paisagem decompôs-se em pormenores estranhos; o enorme gasómetro com
o seu bizarro contador era-lhe desconhecido, assim como os muros brancos
dos depósitos; desconhecida a rede emaranhada das traves de ferro da
ponte, e ignorada também essa montanha singular que, lentamente, se
afastava. Daquela estranha cidade não era custoso partir. Não era custoso? E
os três últimos dias?
Tinham sido vividos quase exclusivamente no quarto de cama. A jovem
tecera em volta de ambos um véu estranho excitante e apaziguador ao
mesmo tempo, cruzados nesse véu os fios dum desejo desenfreado e os da
nostalgia da maternidade inacessível. Ferira-o e, simultaneamente, aplicara-
lhe todos os bálsamos. Com uma palavra, ela procurara expulsar-lhe do
cérebro o espectro das recordações;
mercê doutra, fizera brotar uma centelha na sua imaginação; e como
aconteceu falar de Viena superficialmente e por mero acaso e visse então o
olhar dele animar-se, perguntar-lhe se ia partir para lá.
“Sim, um dia, mais tarde ou mais cedo”, tinha ele respondido. Mas como
logo depois, remexendo-lhe nas algibeiras, ela descobrira o passaporte
munido do “visto” austríaco, o círculo completara-se; o passaporte, o
dinheiro no saquinho da camisa, o fiozinho de ouro, o sobretudo novo e
pacote de comestíveis, tudo aquilo advertira a jovem de que esse comboio
de Viena partiria do próprio leito dela e de que os três últimos dias de “noite
de núpcias” eram adeuses que duravam três dias.
Palpou o lenço azul que lhe envolvia o pescoço e teve a ilusão de acariciar o
rosto de Ágata.
“Tony, querido, vai-te embora por amor de Deus, eu não quero chorar!”
voltou a ouvir. Deu uma gorjeta ao revisor, que lhe arranjou um assento na
última carruagem, era junto da janela esse lugar. “Isto começa bem”,
refletiu ao contemplar o Danúbio encoberto pelas neblinas do outono.
“Daqui a pouco deixarei de ver Peste - devaneou - viverei em Viena, numa
grande metrópole estrangeira. Não tenho ninguém em Viena”, cobrou na
música rítmica os eixos da carruagem, nas paisagens fugidias e nos
semblantes desconhecidos dos seus companheiros de momento, a sensação
de que aquela viagem era uma ótima viagem e de que era bom não ter
ninguém em Viena; - nem os velhos parentes de Peste, que tanto se afligiam
por sua causa; nem as duas sombras de
Deva, que já se iam velando; nem esse amplexo juvenil e ardente, tão
esquisito agora quanto fora agradável; nem aqueles sonos de chumbo de
que era despertado por ruídos surdos ou estrídulosou tamborilantes; nem
essas ruas familiares ao longo das quais ele arrastava remotas angústias;
nem aqueles discursos que lhe chegavam aos ouvidos como através do
escafandro da incompreensão; - tudo isso se evolava atrás dele e por cima
dos marcos quilométricos, por cima dos minutos fugitivos …
Quando, na fronteira, ouviu as primeiras frases em alemão, acendeu-se-lhe
nos olhos um clarão singular. Pareceu-lhe que um reposteiro cinzento caía à
sua retaguarda; tateou debaixo da camisa o saquinho do dinheiro e, na
algibeira, o passaporte; o mesmo fez à grande pasta de couro negro onde
guardava os seus papéis, e disse consigo próprio:
“Eh bem, vamos ver o que vai suceder agora!”
CAPÍTULO VI

Esbagoavam-se os dias no outono brumoso e frio: havia já quinze dias que


se encontrava em Viena e ainda mal dava tento disso. Depois de Deva,
povoado sem importância, de Kolozsvár, cidade dormente, de Budapeste
descolorida à força de tanto a ver, de Gorz, montão de ruínas, e de
Innsbruck, cidade estranha, misto de hospital e estância de vilegiatura, ele
esperava de Viena a sensação da grande cidade propriamente dita, com uma
tensão de espírito que nem sequer procurava dissimular. Não formara
programa, porque teria sido mesmo incapaz de elaborá-lo. Esperava o
milagre que a cidade devia produzir ante os seus olhos. Penetrara nela como
alguém que penetra, sem catálogo, numa galeria de quadros. Tudo para ele
era novo, tanto mais que não esperava senão novidades e que estabelecera
como princípio repelir quaisquer analogias com as coisas conhecidas. A
imagem da cidade formava um estranho amálgama: as ruas largas e limpas,
as praças amplas e duma aristocrática serenidade, e as grandes casas que
conservavam ciosamente o estilo da capital, residência imperial, - tudo isto
se lhe confundia um pouco no espírito com os cortejos que desfilavam pelas
ruas, com os autos das missões estrangeiras arvorando os seus pavilhões
nacionais, com as tabuletas berrantes dos botequins noturnos, cujo número,
de um dia para o outro, se multiplicara.
Seguindo as elegantes que se pavoneavam no coração da cidade ou que se
acotovelavam nas avenidas; atrás dos oficiais franceses, ingleses e italianos;
na cola da multidão andrajosa que formava “fila” nos bairros exteriores; no
encalço dos judeus dos rebuçados que, no bairro sito para além do canal do
Danúbio, traficavam ao ar livre, com agudos pregões, ele não podia
observar o burguês vienense que se quedava, com trágica estupidez e sem
nada compreender, perante o crítico da prosperidade burguesa: a “tipóia”, o
vinho novo e o rendimento seguro.
Tinham-no feito exaltar depois de o terem votado ao desprezo, mas agora,
cerrando na algibeira o seu dinheiro e na alma o ritmo langoroso da valsa do
Danúbio, curvava-se sobre si mesmo, imaginando estar nos tempos
anteriores a 1914.
Os seus negócios pessoais resolveram-se por si sós, no meio de pasmosa
facilidade. Possuía dinheiro e a moeda húngara valia ali o triplo.
Matriculou-se na Universidade mais depressa e mais simplesmente do que
teria conseguido comprar, em Peste, um bilhete de caminho de ferro.
Entabulou relações com um livreiro, a quem adquiriu os seus livros de
estudo; com um moço advogado que habitava no mesmo hotel e com alguns
estudantes. Por intermédio de um destes recentes conhecimentos descobriu,
ao termo dalguns dias, um quarto em boas condições, num segundo andar e
com janela para a rua, a poucos minutos da Universidade. A hospedeira
tinha o apelido Wessely; ela intitulava-se “Ministerialratswitwe” (Viúva de
conselheiro ministerial) e, dos seis aposentos de que dispunha, sub-locava
cinco. Nos quatro primeiros quartos alugados viviam estudantes: no quinto,
uma mulher alta e loura a respeito de quem nada se sabia.
Viam-na apenas dar volta à chave do quarto, todas as vezes que saía. A não
ser nestas ocasiões, era difícil pôr-lhe a vista em cima; abalava de manhã,
quando os rapazes estavam na Universidade, e não regressava senão pelo
serão dentro ou noite velha. Kádár tomava o pequeno almoço em casa da
senhora Wessely; ao meio dia, almoçava economicamente na cantina
universitária. O jantar, fazia-o duma lata de corned-beef. Calculara que,
desta maneira, o dinheiro que tinha lhe permitiria, segundo todas as
previsões, passar três semestres em Viena, Dentro em breve se viu levado a
estabelecer laços de amizade com os colegas dos outros quartos. No quarto
vizinho do seu residia um estudante do terceiro ano da Politécnica, chamado
Hummel; este, uma tarde, bateu-lhe à porta e permaneceu com ele até de
madrugada a contar-lhe histórias a respeito do seu domínio familiar no Ti-
rol, das aldeias que o constituíam, das florestas e dos lagos, do castelo dos
seus antepassados, no qual haviam tido a honra de receber Rodolfo de
Habsburgo, de todo um esplendor do qual lhe não restava, por causa do
vinho, das cartas, das mulheres e dos agiotas judeus, senão o título
nobiliárquico de “von und zu”. Pela madrugada, bocejando furiosamente,
ele ergueu-se dizendo: “É tempo de a gente se deitar”. Depois, já ao
transpor a porta, voltou-se para Kádár e perguntou-lhe inopinadamente:
- E que dirias tu se eu te dissesse que, disto tudo, nem uma única palavra é
verdadeira e que toda esta “hummeliada” não passa de pura invenção
minha?
- Não importa - respondeu Kádár- divertiste-me bastante.
Hurrnnel desatou às gargalhadas, no silêncio matinal do aposento, e foi-se
embora. Na Politécnica, soube Kádár que Hummel era filho dum padeiro de
Sankt-Polten e que tinha, pelo menos, cinco dos seus antepassados - todos
eles padeiros ou donos de casas de pasto - no cemitério daquela cidade.
Miilhbeck, o rapaz alto e delgado que ocupava o quarto ao fim do corredor,
era filósofo. Se alguém por acaso lá entrava, ia habitualmente encontrá-lo
sentado à mesa, a cabeça apoiada no punho direito, a escrever com a mão
esquerda num caderno de capa azul. file erguia-se então, cumprimentava
embaraçadamente o visitante, e voltava sem demora a sentar-se e
continuava a escrever. O quarto teria podido arder à vontade, à roda dele.
Wiedmann era o terceiro locatário. Este tinha a mania de jogar as cartas.
Além disso, estudava História da Arte. Trazia sempre um baralho de cartas
na algibeira e, a qualquer hora que fosse, estava disposto a jogar, mesmo
que a parada consistisse apenas numa bofetada ou num copo de água; e se
nem sequer nestas condições encontrava parceiro jogava consigo mesmo o
bacará, a sua mão esquerda adversária da sua mão direita.
No último quarto habitado por estudantes, o maior, viviam quatro rapazes
judeus, três dos quais cursavam medicina, ao passo que o outro frequentava
a escola rabínica.
O futuro rabi era o mais interessante de todos eles: tinha um corpanzil
arqueado, os olhos negros ardentes, orelhas grandes como velas de navio e
um enorme nariz adunco, à laia de sacada, sobranceiro a lábios grossos.
Viera de Cernovitz para Viena; fazia todas as manhãs a sua oração com as
faixas rituais postas e quando às vezes, ao serão, no quarto dos quatro se
reunia a rapaziada toda, tornava-se difícil acreditar que era do escolar
rabino a voz clara e dura, de timbre polido e retumbante, que então se fazia
ouvir. Adolfo Feuerstein tinha por hábito por-se no vão da janela, de costas
para a rua; o seu braço direito, de punho fechado, acompanhava as frases
proferidas com gestos bruscos nada judaicos. Havia ocasiões em que
permanecia assim horas seguidas, traçando sempre no ar, a murro sobre
murro, linhas verticais, a falar de Beethoven e de Pascal, do socialismo e de
S. Francisco de Assis, do Direito
Romano, de Shakespeare, dos caminhos de ferro americanos, de Manet, da
guerra e da Sociedade das Nações, da indústria química alemã, do teatro de
Rei-nhardt, da coleção de borboletas de Lord Rothschild, do bolchevismo,
da arquitetura do cimento armado, da crise mundial e da guerra dos Trinta
Anos. Citava Gcethe, a Bíblia, Ruskin e Peter Altenberg. Uma única vez
falou de si próprio, da sua família e de um dos seus irmãos que vivera em S.
Petersburgo e que tinha morrido afogado no Neva em 1906, por ocasião dos
tumultos. Da boca de Adolfo Feuerstein caíam erri cascata frases lapidares,
formuladas de maneira límpida, tomando a feição de sentença. Em seguida
começava o debate e as palavras tonitroavam no aposento cheio de fumo de
tabaco. Isto durava horas, até que o “rabi milagroso”
- Hummel assim cognominara Feuerstein - os mandava deitar. Aquelas
noções completamente novas, esses nomes desconhecidos e essas ideias de
que não havia formado anteriormente concepção alguma, assaltaram um
pouco bruscamente Kádár e, nos primeiros tempos, por mais de uma vez a
cabeça se lhe pôs a andar à roda, quando deitado. As discussões ouvidas
perseguiam-no, eram-lhe precisos dias inteiros para dar nexo a tudo aquilo.
Um serão, produziu-se um facto com o seu quê de insólito: estava
Feuerstein junto da janela e discorria sobre a psicose da guerra, quando de
súbito a porta se abriu e a dama loura entrou.
“Dão-me licença que ouça um pouco, meus senhores?” e, feito o pedido,
sentou-se na borda duma das camas de ferro.
Os rapazes, embaraçados, ergueram-se, mas a rapariga - sabia-se apenas que
era loura, alta e que residia, sob o nome de Gerda Buhr, em casa da senhora
Wessely - fez-lhes sinal para que se sentassem e se não incomodassem com
ela. Feuerstsin, esse, limitou-se a responder:
“Faça favor, Minha Senhora”, após o que, sem se perturbar, prosseguiu o
seu discurso. Os rapazes deitavam o rabinho do olho para a rapariga, que se
mantinha sentada na cama sobre as suas compridas pernas cruzadas, a
fumar um cigarro e a escutar, ao mesmo tempo que franzia as sobrancelhas
em arco. Uma espécie de inquietação se espalhou no quarto; alguns dos
rapazes interromperam o orador, dois outros cochicharam entre si; - o “rabi
milagroso” fustigou o ar com o punho fechado e continuou a falar. “As
repercussões da psicose de guerra coletiva …”
e os seus olhos fixavam-se ora aqui ora acolá, hipnotizadores. Sentia que a
presença da mulher cortara a corrente entre ele e o auditório, mas não queria
ceder. As palavras tornaram-se-lhe cada vez mais enérgicas, seus gestos
cada vez mais impacientes: “A psicose de guerra coletiva”, bradava ele, e a
sua voz ressoava, intolerante e imperiosa. O olhar fixou-se-lhe por último
unicamente na mulher; e o da mulher, em réplica, fixou-se nele. Todos
observavam aquele extraordinário duelo, no qual a arma eficaz dum era a
palavra, e a arma ainda mais cortante do outro, o silêncio; e todos sentiam
que se tratava de uma luta pessoal, estranha e incompreensível, entre aquele
enorme judeu de cabelos negros e a alta e loura crista.
“A psicose de guerra coletiva”, novamente se ouviu e, neste instante, Gerda
Buhr ergueu-se e declarou: “Agradeço-lhes. É muito divertido … mas você
não passa de um insosso palrador … ou, o que é pior, de um criançola!” e,
dito isto, desapareceu.
Seguiu-se um silêncio glacial: bonita maneira de corresponder à
hospitalidade concedida ! Os olhos de Feuersteín pestanejaram
precipitadamente e ele buscou, embaraçado, uma palavra de condigna
resposta. Foi Hummel quem salvou a situação:
“Deixa lá, não te importes, rabi milagroso! - disse. - Eu conheço aquela
espécie de fêmeas; é uma galdéria vulgar ou uma comunista, mas não creio
que valha mais de vinte coroas.” Graças a estas palavras, o caso de Gerda
Buhr ficou resolvido a contento geral; ninguém contradisse Humrnel,
porque todos estimavam bastante Feuerstein para não falarem mais no
assunto. Continuaram as discussões ao serão; como é natural, ela não voltou
lá.
Chegou a primavera. Ao domingo, que Kádár consagrava exclusivamente
ao descanso, dava longos passeios pela cidade e, mais tarde, meteu-se a
excursionar nos arrabaldes. Estes domingos decorriam agradáveis e fáceis:
ao fim de dez minutos, era certo e sabido encontrar qualquer rapariga
sorridente e viva com quem podia passar agradavelmente a tarde na
pândega; a maioria delas não hesitavam em aceitar o convite, quando,
depois da oferta dum café com creme ou dum copo de cerveja, lhes pedia
que subissem a casa dele. A senhora Wessely, por via de regra, encerrava-se
no quarto às sete horas da tarde e permanecia invisível até o dia seguinte de
manhã; a criada, uma lorpa cheia de sardas, passava quase todas as suas
noites com Miihlbeck, o taciturno; - de modo que ninguém impedia aquelas
rápidas visitas noturnas. Estas raparigas dominicais, caixeirinhas, filhas de
porteiras, vagabundas de amor um tanto disfarçadas, quadravam
perfeitamente com o seu programa, cujo leito motivo mais ou menos
inconsciente era: “nada de compromissos!” Sucedeu, o certo, que uma
jovem florista do bairro de Schot-tenring voltou a procurá-lo em casa três
domingos a fio, mas quando, no quarto domingo, ele declarou: “Não posso
sair, dói-me a cabeça” ela perguntou-lhe simplesmente: “É verdade doer-te
a cabeça, ou as tuas dores de cabeça são só para mim?”. Ele riu e não deu
resposta, em face do que ela voltou a pôr o seu chapéu vermelho, dum gosto
trivial, e atirou-lhe um “adeus, meu pequenote”, indo-se embora.
Momentos depois saiu, de bom-humor, e vadiou toda a tarde no Prater com
uma pequena que tinha arranjado num elétrico.
“Nada de responsabilidades, dizia de si para si, eu aqui sou estrangeiro!”
Esta vida, de liberdade desenfreada, prolongou-se até que, no começo de
junho, encetou conhecimento com uma certa Käthe, preceptora dos filhos
dum banqueiro.
Esta ligação durava já há muitas semanas e proporcionava-lhe muito mais
do que ele teria podido supor nos primeiros dias. Tendo partido para férias a
família do banqueiro, ele fora, um domingo, visitar Käthe a casa dos
próprios patrões. À despedida, ela dissera-lhe: “Poderás vir quando
quiseres, mas telefona-me primeiro, porque não quero que dês de cara com
a velha cozinheira”. E ele sentira imediatamente que esta ligação não
tomaria o mesmo curso que as anteriores, não por poder ir ter com Käthe
sempre que lhe aprouvesse, mas antes porque ela era seguramente diferente
das outras. Ágata veio-lhe então à idéia.
Procurou semelhanças entre as duas mulheres; porém, ao encontrar-se pela
segunda ou terceira vez com Käthe, descobriu que eram, em todas as coisas,
a antítese uma da outra. Depois da sensualidade generosa e exigente de
Ágata, o abandono agradecido desta, um pouco tímido, impressionável e
gênero menina pequena, aparecia-lhe como mais comovente. Depois das
impertinentes atitudes maternais de Ágata, a camaradagem de Käthe
impunha-se-lhe como mais suave, mais repousante.
Pouco a pouco, ela tinha-se posto ao corrente de todas as coisas que lhe
diziam respeito, ajudava-o mercê das suas palavras claras e inteligentes e
tornava-se-lhe útil, e de maneira tão natural que era a custo que ele dava
conta disso.
Chegado o estio, a cantina universitária fechou, e quando Käthe soube que
ele tomava as refeições numa casa particular onde pagava muito caro uma
alimentação detestável, encaminhou-o para uma pensãozinha nas
vizinhanças, onde passou a comer excelentemente e com economia.
Tendo percebido que a roupa dele era lavada por excessivo dinheiro e à
força de cloreto, ela indicou-lhe quem lha passou a trazer intacta e numa
brancura impecável, e ainda por cima com menor dispêndio.
Nunca uma palavra desagradável fora pronunciada entre os dois, nem um
nem outro querendo ver na sua ligação coisa diferente de.., de quê,
precisamente? “Quando estamos juntos, é como se ela fosse minha mulher,
pensava ele; e quando estamos separados, é como se fosse minha irmã.” O
verão era-lhes favorável. Um dia em que, vagueando ao longo do Danúbio,
bem distante da cidade, se surpreendeu a contemplá-la no seu vestidinho
branco, cabelos soltos, entretida a arremessar seixos roliços à água e a ver
os remoinhos nesta produzidos, experimentou uma sensação tépida e
benéfica; e vendo-se inclinado a refletir no nome a dar a essa sensação, não
encontrou outra expressão senão esta: “O lar”.
Naquela época, não havia já em casa da senhora Wes-sely mais do que três
locatários: ele, Gerda Buhr e, no quarto dos quatro, um estudante. Os outros
haviam partido, em gozo de férias, para suas casas, e o rabi milagroso
obtivera uma bolsa de interno na Escola rabínica.
Kádár conseguiu, com grande custo, levar um dia Käthe ao seu quarto. “É
preciso que vejas igualmente onde eu habito” dissera-lhe ele. Käthe lançou
um olhar em derredor; cinco minutos lhe bastaram para restabelecer a
ordem no quarto e no armário. A partir de então, apareceu mais de uma vez,
imprevistamente, em casa dele: “Quero saber o que fazes quando não estás
comigo”, declarava. As horas sem Käthe eram para ele bastante monótonas:
livros e desenhos, livros e mais desenhos. Desejava fazer o primeiro exame,
com autorização do reitor, antes do novo semestre. Para conseguir isso,
devia trabalhar duramente. Käthe mirava os seus desenhos com um tanto de
respeito e certa dose de desconfiança. Era com aqueles planos que ele
aprendia a construir prédios? E depois, havia toda aquela quantidade de
livros e um ror de desenhos e uma chusma de algarismos … sempre
supusera ser coisa mais divertida. Desataram a rir a bandeiras despregadas,
desta gracinha; de resto, todo o tempo que passavam juntos não era mais do
que uma brincadeira ininterrupta que lhes fazia bem.
Certa vez, passando ambos no “Wiener-Wald” um dia esplêndido e
inolvidável, Käthe declarou: “Nunca gozei, e não voltarei talvez a gozar
nunca, um tão belo verão”, e ele também sentiu que a vida era bela e que as
suas coisas caminhavam bem. Nunca dizia a Käthe: “Amo-te!” embora
sentisse, e cada vez mais, que a amava com amor verdadeiro, para além dos
impulsos da carne. Também ela lhe não perguntava nunca se a amava; não
era curiosa dessa espécie de confissões. Sabia que havia coisas que se
diziam de uma forma mais decente e mais bela sem falar. Uma ocasião em
que Kádár lhe falava do futuro, dizendo: “Vai ser preciso trabalhar e lutar
muito para conseguir o meu diploma; e quando o tiver, procurarei
primeiramente um lugar na empresa dum construtor e depois … depois, se
tu quiseres casarei contigo …” Ela pôs-se a rir: “Patetinha que tu és! talvez
eu nem sequer viva até lá!” Pelo meado de Agosto, a inquietação tomou
conta de Käthe: não tinha notícia alguma dos amos. “Oxalá eles não me
caiam aí de improviso!” Depois, nos fins desse mesmo mês, ela deu, pelo
meio do dia, uma saltada a casa dele; recebera um telegrama: “O Senhor e a
Senhora chegarão amanhã de manhã, os meninos só no dia seguinte”.
Deverás agora aguardar que te escreva para me ires procurar; ou então que
eu venha cá; põe na tua ideia o trabalhão que vou ter nestes primeiros dias!
Decorreu uma dezena de dias antes de receber dela uma palavra: “Tenho um
trabalho doido; as crianças não passaram um verão muito bom, o rapazinho
tosse constantemente; não sei mesmo, neste momento, quando poderei ver-
te; escrever-te-ei.”
Fazia um horrível calor de fim de verão. Sem Käthe, os dias passavam ocos,
vazios de sentido. Aproximava-se a época do exame, mas ele não tinha
cabeça para estudar e os desenhos não lhe saíam capazmente. Permanecia
longas horas sentado no quarto, perante um livro aberto ou um desenho
deixado em meio, a garatujar na margem dele, ou na própria prancheta,
palavras incompreensíveis. “Aborreço-me”, pensou um dia, e logo
estremeceu. “O quê? Estou por acaso em condições de permitir-me o luxo
do aborrecimento? Tenho tido mimo demais nestes últimos tempos!” Um
dia o bilhete de Käthe chegou, finalmente: “Espera-me amanhã de tarde;
irei atua casa”. Ela veio, com efeito, e esteve até às dez horas; não cessou,
durante o serão, de lamentar-se da má saúde das crianças, do carácter arisco
da pequena, da desarmonia existente entre os patrões. Quando ela abalou e
ele ficou só, uma sensação fria e desagradável se apoderou de Kádár, ou
antes, essa penosa sensação de inquietação, latente nele havia dias,
continuou. “Há qualquer coisa nisto que não vai bem …” magicou, “ou
então é qualquer coisa que começa a estragar-se. Estou demasiadamente
habituado a que tudo marche de maneira agradável segundo a minha
conveniência”.
Kathe vinha vê-lo regularmente uma vez por semana; mas havia nestas
entrevistas fosse o que fosse de insípido e de apressado, contado por
relógio, fosse o que fosse que … que se assemelhava a uma fuga. Ela
deixava no seu rasto a inquietação e a incerteza. Uma noite, já passadas as
dez horas, quando Kàthe se aprontava para partir, observou que ela tinha um
buraco numa das meias. “Kathe exclamou - essa meia está rota!” - “Sim, já
sei, - respondeu ela - vi isso na ocasião de calçá-la”. - “Olha, agora! porque
é que a calçaste, então?” - “Já vês, meu pequeno, eu vinha com pressa”,
disse isto e foi-se embora. Ele quis ainda alcançá-la mas desistiu e ficou a
medir nervosamente, às largas passadas, o quarto.
Uma voz brutal intimou nele: “Mo quero que me apareças com buracos nas
meias”.
Doutra vez, viu que Kathe trazia um dedo manchado de tinta: “Tens a mão
cheia de tinta”, notou-lhe, ao mesmo tempo que baixava os olhos.
- “É verdade, estive a escrever aos meus pais até rente à hora de sair” - “E
porque não lavaste as mãos?” Ante esta pergunta ela fixou-o, os olhos
dilatados de assombro: “Tony - disse docemente - que tens tu? Falas-me de
maneira tão estranha! Sabes bem que tive de vir a correr”. Ele não
respondeu e diligenciou retardar o momento de abraçá-la, a pretexto de uma
dor de cabeça e tomando na mão, vagarosamente, um sinete …
O novo semestre avançava: os livros, a cantina universitária e o cormd-beef,
nada havia mudado. Continuava a não pertencer a ninguém nem a coisa
alguma. A não ser com Käthe e com os locatários vizinhos, não convivia
com ninguém mais.
Vivia como que enterrado numa massa cinzenta e viscosa, na mediocridade
cotidiana duma resolução amarga, os músculos do queixo retesados.
Uma vez por semana, Käthe comparecia com a exatidão dum relógio, afim
de cobrar o seu crédito de amor; e, numa feia tarde de outono, fria e úmida,
enquanto ela se vestia à pressa, ele, deitado no leito, observou, à claridade
amarela e crua duma lâmpada elétrica, a dupla imagem da mulher diante do
espelho. Era extravagante; como parecia pequena e como tinha os seios
volumosos! Teria engordado? O espartilho escorregara e a rapariga
esforçava-se por apertá-lo cerrando os lábios e fazendo uma careta cómica e
pueril. Vendo isto, um riso maldoso, sacudido, rompeu da garganta de
Kádár. “Que é?” - perguntou Käthe, olhando-o na imagem do espelho. -
“Nada - respondeu ele em tom desprendido deu-me vontade de rir a tua
figura, a cara exquisita que fizeste!” - “A minha cara não te agrada?” -
replicou ela, ofendida, após um breve silêncio.
“Vejamos, minha Käthezinha - apressou-se ele a dizer com um pouco de
arrependimento na voz - não é caso para te melindrares; não houve mal
algum”.
“Estás certo disso?- perguntou Käthe, tornando-se agressiva, e se eu não
voltasse mais aqui?” - “Basta de tolices; hás-de voltar, pela certa”. De facto,
voltou, mas de então por diante quase deixaram de falar um com o outro.
Quando ela chegava, sentavam-se ambos à mesa, comiam qualquer coisa,
calavam-se um instante, depois trocavam algumas frases cada vez mais
hesitantes e estranhas, que recaíam imediatamente no silêncio. Por fim,
quando ele a puxava, ela despia-se e deitavam-se juntos.
Um domingo de tarde, em que uma ventania de extraordinária violência
fustigava a cidade com uma chuva misturada com neve, Kathe queixou-se
de lhe ter custado muito a vir, de lhe doer a cabeça e de sentir também, de
quando em quando, vertigens. Ele ergueu-lhe o rosto, fixou-lhe os olhos
cheios de olheiras, um tudo nada velados. Este gesto carinhoso, que havia
muito se não produzia entre ambos, enterneceu de súbito Kathe; enlaçou-o
com um ardor triste e fatigado e desatou a chorar. “Tony, querido, nós a-
pesar de tudo gostamos um do outro, não é verdade?” Ele teve medo
daquela voz e receou as explicações, lágrimas, promessas sentimentais,
porque, nesse caso … nesse caso, teria certamente abandonado Kathe,
fugindo do quarto e até da habitação.
Mas ela uniu-se-lhe com um desejo aceso repentinamente, e quando um
pouco depois ele sentiu no rosto o hálito quente e ofegante da rapariga,
pensou: “Deve ter febre; tem aspecto de estar doente a valer.” Na manhã de
quinta-feira seguinte, começaram de doer-lhe a cabeça e a garganta. Ao
meio-dia, na cantina universitária, sentia já fortes vertigens. No caminho
para casa, adquiriu numa farmácia um tubo de aspirina e pediu depois à
senhora Wessely o termómetro. A coluna de mercúrio subiu a 40º2. “É
gripe” pensou, e meteu-se na cama. Já nem tinha ânimo de tomar a aspirina;
a garganta incomodava-o horrivelmente; quis beber água, mas sentia-se
incapaz de estender a mão; e tudo o que pôde fazer foi apenas dirigir o
olhar, na obscuridade, para o lado onde estava o copo. Dormia ainda, ou
antes, encontrava-se estendido, meio inconsciente, no leito, quando no dia
seguinte de manhã a senhora Wessely lhe bateu à porta. “Deus de
Misericórdia! exclamou ela tornando-se lívida, pálida como o linho, mas o
senhor tem a cara e o pescoço cheios de borbulhas! É preciso chamar já o
médico!” Um médico recentemente formado morava no próprio prédio: ele
observou-o um instante e declarou: “É escarlatina. É necessário levá-lo
imediatamente para o hospital. Ou prefere tratá-lo em casa?” Seguiu-se um
vaivém, toda a gente com a cabeça perdida. A senhora Wessely torcia as
mãos a chorar.
Kádár conservava-se deitado, indiferente a tudo - era ainda de manha e já a
sua febre passava de quarenta graus. O médico conseguiu, depois de muitas
dificuldades, comunicar telefonicamente com uma empresa de ambulâncias.
Encomendou um carro para doenças contagiosas, fez outra chamada para o
hospital “Allgemeines Krankenbaus”, conversando com um dos seus
colegas de lá, e foi-se embora. Meia hora decorrida, chegou o carro.
Ninguém sabia o que fazer, ninguém se atrevia a penetrar no quarto do
rapaz. Neste instante surgiu no corredor Gerda Buhr. “Há já meia hora que
ouço este coro de lamúrias, disse ela; perderam nesse caso, todos, a
cabeça?” - “Mas, minha senhora, respondeu a criada sardenta, há aqui um
doente contagioso … e, enfim, a gente tem receio de ir e de apanhar a
doença.” - “Se têm medo, raspem-se daqui, deixem o campo livre, não
atravanquem ao menos a passagem!” ralhou-lhes ela, após o que entrou no
aposento de líádár. Os maqueiros preparavam-se precisamente na ocasião
para colocar na maca o enfermo. Este levantou a vista para a mulher, abriu
vagarosamente a boca.
“Isto vai bem, não se assuste, disse Gerda Buhr, tudo se arranjará.” E
dirigiu-se ao armário, abriu-o, arrumou aí, formando um pacote, as coisas
dispersas no quarto; depois pôs-se a remexer, a procurar: debaixo das
camisas e dentro duma caixa de metal, encontrou o dinheiro dele. “Olhem,
francos suíços!” exclamou.
Contou-os e voltando-se para Kádár: “Encontrei aqui seiscentos e vinte
francos suíços; guardo este dinheiro comigo, com receio de que … Podem
levá-lo!
determinou, dirigindo-se aos maqueiros, eu vou com os senhores.” Dizendo
isto, fechou o armário, tirou a chave; disse ainda algumas palavras à
senhora Wessely, que continuava em riscos de desmaiar: “Telefone ao
serviço de desinfecção para que venham aqui imediatamente”. Depois
vestiu um casaco comprido, azul, e foi atrás da maca.
CAPÍTULO VII

No hospital de “Allgemeines Krankenhaus”, pavilhão das doenças


infecciosas. Encontrava-se num quarto pequeno do primeiro andar, que
deitava para um patiozinho vazio, invernal: descerrando os olhos, enxergou
no outro lado do quarto um segundo leito. Aí, sentado e a olhar para ele,
via-se um rapazote. Ao descobrir que abrira os olhos, o outro
imediatamente lhe perguntou em voz baixa: “Então, está melhor?
Começávamos a supor que …” e calou-se, embaraçado. Houve um curto
silêncio. “Eu já vou bem, prosseguiu o outro, mas você, você esteve estes
três últimos dias gravemente doente. A sua irmã há-de contar-lho.” - “A
minha irmã?” interrogou, falando pela primeira vez desde alguns dias atrás,
e admirou-se da sua própria voz, agora tão velada e desconhecida, “Sim, a
dama loura que vem aqui duas vezes ao dia. Ou não é, nesse caso, sua
irmã?” Fechou os olhos fatigado, e não respondeu. “Minha irmã? Minha
irmã? Talvez a minha prima, Maria Gazda, que veio de novo a Viena?
Teria ela tingido de louro os cabelos?” Um silêncio, que o outro voltou a
quebrar: “Se me não engano … você já não é … criancinha. Como se
explica que, na sua idade, apanhasse a escarlatina?” Ele abriu, de espanto,
os olhos: “A escarlatina?” O outro desatou à gargalhada: “O quê! não sabia
talvez que estava com escarlatina!!” - “Sim, na verdade, sei isso, tenho
escarlatina!!” - “Não tenha dúvida, disse ainda o outro, também eu a tenho,
mas isto já vai melhor; mais umas duas semanas, e poderei voltar para casa.
E, ao dizer tal, fez um trejeito bizarro com os lábios. Em seguida,
guardaram um grande silêncio. Horas depois, a enfermeira - uma mulher
forte de faces rosadas - entrou e perguntou:
“Então, meu homenzinho, ei-lo enfim acordado? Não sente fome? Quero
que lhe traga uma gota de leite?” Ele bebeu o leite morno a pequenos goles;
subitamente, acudiu-lhe ao espírito qualquer coisa: “O meu dinheiro?
perguntou à enfermeira, que lhe segurava na chávena. - “O seu dinheiro?
Trazia dinheiro? Pela minha parte, não estou ao facto disso; deve perguntá-
lo à sua parente que o trouxe para cá.” - “A minha parente, a minha irmã?”
pensou ele de si para si. “Maria Gazela? Kathe? A senhora Wessely? ou
talvez a tia Ana?” Sentiu-se fatigado, a cabeça andava-lhe à roda; logo
tornou a cair no sono. Quando despertou outra vez, viu, sentada aos pés da
cama, Gerda Buhr. “Olha! está-se a ver! A minha irmã loura!” refletiu.
“Você começa a melhorar, disse a mulher; vai em bom caminho, isto. Tenho
esperanças em que há de saír-se desta o melhor possível. Ouvi dizer - fez
um sinal para o lado da outra cama - que você perguntou pelo seu dinheiro.
Está em minha casa, seiscentos e vinte francos suíços, ou antes seiscentos
francos, pois fui obrigada a trocar vinte para pagar algumas das suas
despesas. Não se preocupe agora com isso. Se tem necessidade dalguma
coisa, diga-mo.” Ele fitou aquela mulher que estava sentada junto do leito:
os cabelos louros usava-os cortados, os olhos tinham um tom azul-metálico,
a testa era alta e branca e as faces alvas e cor de rosa desmaiado.
“Até agora nunca tinha visto tão de perto o rosto dela. Mas … porque vem
cá?
Quem é, que me quer?” - “Perdão, minha senhora”, disse a custo. - “Que
deseja?” “Aproxime-se um pouco mais, faça favor”, e ele piscou os olhos
na direção do outro leito. Ela inclinou-se para o doente. “E então?- “Não
tem medo de apanhar nada? Tenho a escarlatina!” As sobrancelhas
franziram-se por cima dos olhos azulados. “Já a tive; mas mesmo que assim
não fosse não teria medo! - “Mas não irá a senhora espalhá-la consigo?” -
“Ouça, eu sei ter cuidado comigo assim como com aqueles com quem
convivo … não se preocupe! …
Ante palavras tão imperativas, excessivamente enérgicas mesmo sem
querer, ele calou-se. Fêz-se um silêncio. Com os olhos semi-cerrados, mirou
de perfil o rosto da mulher. “Faça favor, voltou a dizer minutos depois.-
“Que deseja?” … “Há quanto tempo estou eu aqui?”
“Há quatro dias”.
- “E ainda ninguém foi lá a casa perguntar por mim?” - “Não, disse Gerda,
ela não foi.” - “Ela não foi!” Como proferiu categoricamente estas palavras!
Com os olhos cerrados, reproduziu então na mente a cena de Käthe diante
do espelho, a apertar o espartilho. “Quereria encarregar-se duma
comunicação telefónica?”
“Pois não … respondeu ela tirando da malínha de mão uma agenda, dê-me
o nome …” - “Käthe Ulrich, em casa do sr. Diretor Lehrner.” - “Criada de
crianças?” interrompeu Gerda num tom vivo. - “Não! preceptora”,
esclareceu ele.
- “Sim, com que então preceptora? Agora já sei, ao menos, quem lhe
transmitiu a doença, seu grande maroto. Admirada ficaria eu se a sua amiga
não estivesse também atacada de escarlatina.” - “Ela, com escarlatina?”
perguntou Kádár aflito. E, neste momento, lembrou-se de que, no último
domingo em que ela o visitara, Käthe se queixara de dores de cabeça e de
vertigens e de que o seu hálito o queimava. Imediatamente se sentiu
inquieto. “Minha senhora, gostava de saber com absoluta certeza …”
requereu em voz alta. Mas Gerda mandou-o logo calar: “Silêncio! nada de
nervoso, terá notícias com exatidão.” - “Você é húngaro, não é verdade?”
perguntou daí a um momento o rapazote da outra cama.
“Sim, porquê?” - “Mas a sua parenta é de Viena, não é verdade?” - “Não é
parenta!” - “Que é, então?” - “Que é? respondeu em voz arrastada. Uma
senhora, um conhecimento da pensão em que habito.” O rapaz fez-lhe ainda
mais perguntas, mas ele não respondeu senão evasivamente, receando que o
outro o interrogasse a respeito de coisas relativas à mulher e a que não
soubesse responder. Tornar-se-ia completamente ridículo ser obrigado a
declarar: “Não sei quem ela é, nem porque vem aqui; não sei sequer coisa
alguma a seu respeito …” Por fim, o outro disse-lhe: “Vejo que está
fatigado. Não fale.” Ficou contente por se ver dispensado de conversar,
fechou os olhos, permaneceu tranquilamente deitado e em seguida
adormeceu.
- Veja como eu tinha razão, disse-lhe no dia imediato Gerda Buhr, é um
verdadeiro hospital a casa dos Lehrner. Falei com a senhora: as duas
crianças e Käthe estão com escarlatina. Devo dizer que essa “preceptora”
não é pessoa muito conscienciosa. De há muito que os seus educandos se
encontravam doentes e desde há muito que chocava nela própria a doença, e
todavia continuava a visitá-lo, a você. Mas, que importa isso agora?!
Mandei-lhe dizer que toda a gente lhe desejava as melhoras, inclusive o seu
primo António, acrescentou Gerda, rindo.
Também Kádár acedeu a rir, após o que ficou carrancudo. Käthe estava
doente.
“Estará muito mal? - “Não, julgo que não, mas, na próxima vez, trarei uma
resposta mais precisa.” - “Então, a senhora vai de novo telefonar para lá?”
“Está claro que vou.” Era uma mulher extraordinária, esta Gerda Buhr.
Tinha gestos curtos e enérgicos, palavras concisas, arrogantes. Qualquer
pessoa que a não tivesse visto antes não poderia acreditar que fosse rapariga
de … mas que idade podia ela ter? Mais de vinte e quatro ou vinte e cinco,
não parecia ter.
O seu rosto, a sua testa não mostravam uma única ruga, o olhar era puro e
penetrante, na figura dela havia um tudo nada que a assemelhava a um
rapaz. Em todo o seu ser existia qualquer coisa de áspero e de fresco. Ela
vinha mas não se demorava muito; se era necessário ocupar-se dalguma
coisa, ocupava-se; proferia algumas palavras inteligentes, divertidas,
animadoras, e abalava. E contudo … dir-se-ia permanecer sempre ali! Nos
oito ou dez dias primeiros, não falou muito com ela. Não estava bem, tinha
muita febre e o médico receava complicações nos rins. Sempre deitado,
nada o interessava. A enfermeira trouxera-lhe um dia um jornal: fora
incapaz de lê-lo. Quando desperto, por via de regra fixava o teto e
esforçava-se por não pensar em nada nem em pessoa alguma, nem em
Käthe que estava doente, nem em Gerda que via apenas durante o espaço de
minutos, nem sequer na circunstância de, por causa da doença, perder seis
semanas dos seus estudos. Às vezes, o garoto da outra cama dirigia-lhe a
palavra.
Era esquipático esse companheiro de quarto. Passava o tempo, sentado na
cama, a olhar, e mal ele abria os olhos, encetava conversa tão
confiadamente como na ocasião do seu ingresso nesse quarto hospitalar.
“Não precisa de nada? Quer que toque a campainha para chamar a
enfermeira?
Deseja ler alguma coisa? Não está fatigado? Pode responder-me quando o
interrogo? Você foi soldado? Porque deixou Budapeste? Que fazia lá? Que
idade tem?” A princípio Kádár respondia-lhe dificultosamente, um tanto
irritado com aquele rapazelho tão turbulento que não podia estar sossegado
um único instante e que o importunava com o moto-contínuo das suas
curiosidades. Depois, habituou-se um pouco à voz do companheiro, às suas
imprevistas e insistentes interrogações. Era verdadeiramente um rapaz
endiabrado! Chamava-se Paulo-Pauli Hesslein e tinha dezassete anos. Era
louro e tinha os olhos dum tom cinzento aveludado; numa dada ocasião em
que pôde observá-lo mais atentamente, surpreendeu-se ao verificar que a
pele dele era fina como a das raparigas e que as mãos, abstraindo da pessoa,
se diriam de mulher. “Você tem a sorte de haver alguém que vem todos os
dias ver se ainda está vivo … o interesse que consagram à minha saúde é
muito menor”, disse o rapazinho e acrescentou em ar pensativo: “E que eu
não estou em excelentes relações com os meus pais”. Se Kádár não tivesse
pressentido uma latente amargura na voz do mocinho, poderia achar
divertida a gravidade com que este enunciara a explicação.
“Essa agora! E porque é que você não está bem com eles?” - “Isso, sabe? é
uma história muito velha!” Não, não havia, na verdade, motivo para rir do
modo como aquele garoto louro com as mãos de menina, de dezassete anos
apenas e tez muito branca, declarava fazendo um gesto com a mão: “Isso é
uma velha história”
“Ouça, prosseguiu o rapaz, você supõe que se trata dum disparate ou dum
amuo de garoto!
Nada disso. A coisa começou com o meu nascimento, em volta do qual
houve uma irregularidadezinha. A mamã teve, com efeito, na época em que
nasci, um amigo, um amigo e um amor de infância … bem entendido.” -
“Seu idiota, você não tem vergonha de falar assim da sua mãe?! …”
interrompeu Kádár. - “Dê-me atenção e não me interrompa, respondeu
Paulo com uma fleugma desenvolta; possuo provas do que afirmo: a
correspondência do papá e da mamã, trocada nesse tempo e que fui
encontrar dentro dum velho armário, o ano passado, quando a mamã esteve
dois meses no sanatório. O facto, por si só, de alguém guardar uma
correspondência à qual se ligam recordações tão dolorosas, é, naturalmente,
uma prova daquela neurastenia … mas agora não se trata disso.
Que estava eu dizendo? ah! é verdade … contei a um dos meus amigos o
que continham as cartas adicionando a isso as minhas próprias observações
- você deve tê-lo visto aqui, um rapaz de cabelos pretos que há-de ser
psiquiatra e que está presentemente no quarto ano de medicina, - e foi ele
quem me explicou o caso. Em resumo … mas isto interessa-lhe alguma
coisa?” Subitamente, pôs-se todo vermelho e respirou a custo. Fascinado,
incapaz de pronunciar a menor palavra, Kádár não podia desprender a vista
do companheiro. Paulo pegou num copo assente na mesinha próxima da sua
cama e bebeu um gole. “Isto não é nada, felizmente, declarou em seguida;
os anos fazem-nos esquecer tais coisas. O homem é … um animal solitário,
e ainda eu tenho a sorte de ter junto de mim esse Ludwig Wirth, com quem
posso conversar nesses assuntos, e tenho os outros meus amigos; e, no fim
de contas, rio-me disto tudo. O papá é um cavalheiro chique; ganha muito
dinheiro. A mamã é uma bonita mulher; vive muito bem. Habitamos numa
casa enorme, não nos incomodamos uns aos outros. Basta que os criados
lhes digam que o sr. Paulo não desapareceu. Eu organizo a minha vida
conforme posso, e se a maneira por que a organizo não é a melhor, a culpa
não é minha … aliás, o que importa é que a nossa maneira de viver seja a
melhor para nós próprios … Nós, quem? Eh! para mim! … para os que são
meus amigos.
..” Ludwig Wirth, estudante de medicina, amigo e mestre de Paulo, veio de
novo no dia seguinte e, como de costume, trouxe alguns livros e folhetos,
entre os quais O Espírito da Terra, de Wedeking, e as peças teatrais de
Bernardo Schaw.
Ele anunciou a Paulo: “Hoje, ao meio-dia, vi a Rosinha; ela queria à viva
força vir comigo; como é natural, não lho consenti. Manda-te mil beijos;
põe na tua ideia quão impacientemente espera que tu saias.” Kádár viu-se
acossado por um pensamento fixo. Permaneceu toda a tarde pouco falador,
quase mudo. Depois da partida de Wirth ficou ainda silencioso algum
tempo, até que, de súbito, soerguendo-se na cama, murmurou de si para si:
“É curioso, nunca lho perguntei … “Dize lá, Paulo, inquiriu fixando bem os
olhos do outro, já possuíste uma mulher?” - “Eu? Vai fazer um ano … a
primeira …” - “Quem?”
perguntou, simploriamente, Kádár. - “Desejas saber o nome dela? disse o
outro, trocista, não é segredo: chama-se Rosinha Goldrain: é delgada e
loura; tem olhos castanhos e tem precisamente três meses menos do que eu.
O pai é conselheiro nas Finanças e tem negócios que não percebo muito
bem com o papá. Desejas saber mais alguma coisa?”. Durante momentos
Kádár sentiu a respiração suspensa. Era uma menina de boa família e não
uma enfermeira, uma criada de quarto ou uma preceptora! … e loura e
delgada, e com dezassete anos! “Estais a inventar …”
proferiu, firmando a sua esperança na dúvida. - “Porque te impressionaste
ao ponto de nem sequer ousares acreditar no caso? perguntou o outro.
Infelizmente, não tenho cá nenhum retrato dela, mas quando estivermos
curados, hei-de apresentar-ta.” Chegou o dia da saída de Paulo do hospital.
Os adeuses de ambos foram breves. - “Paulo, disse Kádár sentindo a
garganta seca, agradeço-te.” “Não me agradeças nada, interrompeu aquele,
mantém-te sossegado no teu leito, trata de curar-te o mais cedo possível;
provavelmente, virei ver-te”. Dito isto, saiu. Gerda continuou a vir todos os
dias e Kádár de cada vez a compreendia menos. De cada vez sabia menos a
natureza da sua situação perante ela. Vinha, sentava-se, envolta no seu
casaco branco, na cadeira ao pé da cama. “Como se sente? Vejamos a curva
das temperaturas …
Deseja alguma coisa? Disseram-me que não tem apetite. Porquê? A
alimentação não é boa? Deseja compota de frutas? Não há nada de novo; os
desempregados fizeram manifestações na cidade; da Universidade, não
tenho notícia alguma. A sua amiga vai bem.” Expunha tudo isto em cinco
minutos, após o que se erguia da cadeira e abalava. Trazia o que ele lhe
pedia, observava o que ele lia; certo dia disse-lhe: “Vejo que firmou
relações de amizade com esse rapaz que aí esteve … é um rapaz esperto,
não é verdade?” Depois ela continuou a trazer-lhe novas de Käthe. De
início, precisas e pormenorizadas; mais tarde, a partir da quarta semana da
sua doença, as informações de Gerda a respeito de Käthe tornaram-se de
cada vez mais concisas; habitualmente, contentava-se em declarar: “Vai
indo.” Kádár não fez reparo nesta sobriedade de palavras relativas a Kathe,
e quando uma tarde Gerda nem sequer falou nisso ele mesmo se esqueceu
de perguntar-lho. Era a própria Gerda quem preenchia agora as numerosas
horas dos seus ócios. “Porque razão vem ela ver-me? Já é esquisito o ter-se
encarregado das minhas coisas quando adoeci. Há já algumas semanas,
vejo-a todos os dias, falo com ela, e todavia nada sei ainda a seu respeito e
cada vez a compreendo menos. Aplicava o ouvido, procurava escutar dentro
dele próprio uma voz esclarecedora, buscava observar um só gesto da
mulher que constituísse uma explicação ou, pelo menos, que a aproximasse
de si. Que a aproximasse? Para quê? Não valeria bem mais pensar nela no
meio dessa tranqüila penumbra, enquanto decorriam as horas silenciosas e
nada saber de exato, - para crer em tudo o que quisesse? …
Segurou-se nas pernas com uma firmeza surpreendente quando, no termo da
quinta semana, o doutor lhe permitiu levantar-se. Passeou durante alguns
minutos de um lado para o outro, no quarto, tomou com muito apetite o
pequeno almoço, e depois, por prudência, meteu-se de novo na cama. Na
véspera, Paulo estivera lá de visita e contara-lhe que havia declarado ao pai
precisar de um explicador para se compensar do tempo perdido nos estudos.
Ver-se-iam, por consequência, todos os dias, desde que Kádár aceitasse dar
explicações a Paulo. Tinham tagarelado alegremente. Paulo trouxera
chocolate e um maço de cigarros finos; ficara o quarto cheio de fumo.
Desde que adoecera, era a vez primeira que fumava. “A tua loura
desconhecida veio hoje cá?”
perguntara Paulo, para implicar com ele. “Sim, veio; demora-se todos os
dias cinco minutos, como sabes.” - “Mas agora que estás só no quarto, não
fica mais tempo?” Kádár corou: “Não, porquê?” - “Suponho que não
ignoras que essa mulher está apaixonada por ti” prosseguiu Paulo.
- Fedelho! - invetivou Kádár, ao mesmo tempo que soprava para cima do
outro uma fumaça. “Sabes tu que isso quer dizer que …”, e corou outra vez.
“É preciso não hesitares muito, declarou Paulo com segurança e
descaramento - agora que recuperas a saúde, deita-lhe a mão, agarra-a pela
cabeça e dá-lhe o que ela deseja.” Kádár ficara embaraçado. Protestou: “Tu,
com essas ideias cínicas e superficiais …” - Tony - interrompeu Paulo -
tornaste-te completamente idiota? Então, de nada te serviu a educação que
te ministrei durante tantas semanas? - A estas palavras, desataram ambos a
rir. Depois conversaram mais uma meia hora, e Paulo foi-se embora.
O ter saído da cama fizera-lhe bem! Após uma hora de repouso levantou-se
novamente, sentou-se perto da janela e pôs-se a ver os flocos de neve
caírem lá fora. Não sentia sombra de fadiga. “Graças a Deus, tenho outra
vez saúde!”
Ao meio-dia comeu com grande apetite e tornou logo a deitar-se para
esperar, fresco e bem disposto, Gerda Buhr, que devia vir às três horas.
Às três horas em ponto, chegou ela. “Felicito-o por se ter levantado, tenho
esperança de que isto irá agora bem, Adeus, voltarei amanhã”, disse duma
só vez; e, sem mesmo se ter sentado, retirou-se.
Esta rápida partida causou-lhe aborrecimento. Quereria conversar um
pouco, mas nem sequer tivera tempo de retê-la. Voltou para a cama, da mau
humor, fixou a vista na parede, atazanado incessantemente por aquilo que
Paulo lhe dissera de Gerda Buhr. Adormeceu - Paulo também não tinha
vindo - e, após alguns minutos de vigília que teve de tarde, caiu no sono
profundo da noite, Na manhã seguinte a enfermeira trouxe-lhe a notícia de
que a senhora Buhr havia telefonado e mandado dizer que se encontrava
constipada e que não poderia vir, nem nessa tarde nem no outro dia. Antes
de sexta-feira, não viria certamente. Esta noticia arrasou-o por completo.
Encheu-se de aborrecimento, engoliu o almoço sem apetite e quase se sentiu
feliz com a partida de Paulo e de Wirth após a sua curta visita de meia-hora,
se tanto. No dia imediato, não esteve melhor; mas, pela tarde, a esperança
começou de desabrochar nele: “Ela virá talvez amanhã …” Depois,
repentinamente, uma tensão ardente, insuportável se lhe assenhoreou do
peito.
“Será possível que Gerda esteja apaixonada por mim?” Na tarde seguinte
ela veio, finalmente. Esperara-a, cheio de nervoso, sentado na cama.
Quando a viu chegar, interrogou-a com ansiedade:
- Não esteve gravemente doente, pois não?
- Não - respondeu ela - não quis que passados apenas dois ou três dias
depois de se ter levantado … ou antes, não quis que você me perguntasse
qualquer coisa a que eu fosse obrigada a responder.
Ele sentiu um enorme baque no coração: Gerda nunca lhe falara,
anteriormente, num tom semelhante àquele e com tanta” hesitações.
- Teria sucedido alguma desgraça? - interrogou, a voz sumida.
- Sim - replicou ela - baixando os olhos, contra o seu hábito: “Kathe
morreu …
há já dez dias, com uma meningite …” Os olhos espantados de Kádár
fixaram-se numa mancha loura e branca, que se tornou de súbito nebulosa, e
um pequeno soluço lha embargou a garganta. Correu-lhe pelo corpo todo
um frio intenso, acompanhado do loucas e desordenadas palpitações do
coração; em si próprio investigou-se, por detrás daquela turvação, se
dissimulava alguma dose de angústia, de dor, de acabrunhamento … Em
seguida, a mancha branca e loura readquiriu nitidez acentuando as feições
de Gerda, a rajada de palpitações do coração serenou-lhe; das profundezas
da sua alma extraiu um eco gemebundo: “o homem … é um animal
solitário”, e, nesse mesmo instante, no meio dum frio glacial, produzido por
extraordinário terror, todo ele externo teve a impressão de que Käthe estava
junto de si - mas como se nunca lhe tivesse pertencido …
como alguém caído na rua, em volta de cujo corpo os transeuntes parassem
um segundo para imediatamente prosseguirem caminho.
- Com uma meningite …! É terrível - murmurou ele, incapaz de dizer outra
coisa.
- Trate de evitar inquietar-se - recomendou com vivacidade Gerda; - por
isso é que lho disse mais cedo. A pobrezita começou a estar muito mal logo
no fim da primeira semana e, na terceira, declararam-se-lhe a meningite e
uma nefríte.
Felizmente, permaneceu sem dar acordo de si durante três dias completos
antes de morrer; mesmo assim, não sofreu pouco.
Nesse dia, Gerda ficou toda a tarde a fazer-lhe companhia. Ela viu logo que
o efeito da notícia da morte de Käthe se tornava estéril no rochedo da
indiferença, a custo dissimulada do rapaz; mas compreendeu
simultaneamente que, se o tivesse deixado sozinho, essa mesma indiferença
o teria assaltado a afligido com violência temível. Mercê de conversação
inteligente e interessante conseguiu afastar a emoção obrigatória do
primeiro momento e, visto que antes o não fizera, falou-lhe dos seus
assuntos privativos, da Universidade, e do futuro imediato. Ele tinha, em
todo o caso, razão assentia ela - em estudar em Viena, se bem que a cadeira
de arquitetura de Viena não fosse a melhor - deveria experimentar, um dia,
ir mais longe, a Zurich ou a Berlim. Evidentemente, sob o ponto de vista
económico, Viena era menos cara do que outra qualquer cidade da Europa,
sobretudo para quem tinha o seu dinheiro em francos suíços.
Prestou-lhe então contas: ele possuía ainda quinhentos e cinqüenta francos
suíços.
Os dias que teve ainda de passar no hospital escoaram-se num sombrio
aborrecimento, prurido de impaciência. Adquirira a certeza de que Kathe se
exilara tão completamente da sua vida como aquela escarlatina. E à viva
torça evocava o rosto dela, o seu sorrisozinho gentil. Esse rosto esfurnava-
se, porém; e se o reconhecia ainda, mesmo assim indistinto, era apenas
porque sabia que o evocação. Meditava nas miúdas intimidades das suas
relações carnais, mas estas imagens, evocadas de propósito, misturavam-se
com outros rostos, outros colos, outros ventres, e as suas recordações
sensuais pareciam constituir uma síntese com mil pormenores diversos e
dizer respeito a uma mulher super-humana. Tentou então representar na sua
ideia o semblante da morta: “Pobre rapariga”, murmurou na obscuridade,
esforçando-se por extrair dó, pouco que fosse, do coração. Este grande
esforço lacrimoso findou num sadio bocejo; daí a nada, caía no sono.
Gerda levara-lhe os livros de estudo. Folheou-os e refletiu com apreensão
no que já esquecera. Começou a traçar novos programas de vida, mas a
cada instante se via tomado dum sentimento de incerteza mui penoso, de
modo que achou preferível deixar que as coisas viessem por si próprias,
sem fazer provisões, e enquanto as aguardasse, readquirir boa saúde, sem
impaciências.
Gerda, nos dias últimos, não se demorava mais do que cinco minutos. Bem
diligenciou ele “videnciar-lhe, mediante processos pueris e rudes, o
interesse que lhe votava; qual uma concha loura e fria, Gerda Buhr cerrava-
se com lentidão imperceptível, mas implacável.
Finalmente, num sábado de manhã, a enfermeira rechonchuda conduziu-o a
um balneário; a água fervia no esquentador; em cima da cadeira encontrava-
se a roupa desdobrada; do cabide pendia o seu fato azul, o que usava todos
os dias, assim como o casaco de inverno. Fazia muito calor na casa de
banho; a enfermeira abriu uns instantes a janela rente ao teto, a-fim de sair o
vapor úmido.
Através da estreita abertura, via-se o céu de inverno, firme, azul, puro.
Ele olhou, cheio de admiração.
“Vamos, depressa - disse a enfermeira - há muita gente, esta manhã, à
espera do banho …”
CAPÍTULO VIII

Na primeira tarde que passou, novamente, na moradia da senhora Wessely,


os outros estudantes que aí viviam reuniram-se no quarto dele.
Conversaram e fizeram-no conversar, cansaram-no com anedotas e
fartaram-no de gulodices. Num intervalo, escapou-se um instante para o
corredor e foi experimentar a porta do quarto de Gerda: estava fechada. O
tempo corria; nove horas, dez horas, e ela sempre ausente. Encheu-se de
inquietação. Pelas dez horas e meia despediu-os a todos, a pretexto de estar
fatigado e desejar dormir.
Quando a casa caiu em silêncio e as luzes se apagaram, entreabriu
devagarinho a porta do quarto; pôs-se à espera de Gerda … Sentou-se numa
cadeira, atrás da porta … minutos, horas, anos decorreram … Uma chave
deu volta, suavemente, na fechadura da porta da escada … Chegava Gerda.
Numa única passada, encontrou-se no meio do corredor e, um instante
depois, foi esbarrar na mão que a rapariga estendia na sua frente.
- Quem está aí? - cochichou ela, assustada.
- Sou eu, Kádár - respondeu ele cochichando também.
- Eu devia ter logo desconfiado disso … que é que me quer?
- Menina Gerda … preciso falar consigo.
- Sim, mas não a esta hora! Amanhã de tarde, às seis horas, venha procurar-
me …
Mais uma noite decorreu. Ele teve um sonho confuso e complicado;
despertou coberto de suores, o peito arquejante, fatigado! Depois, mais uma
manhã lá foi levada; chovia, mas a atmosfera ofertava uma tepidez quase
primaveril. Dirigiu-se à Universidade, onde falou com um dos professores
assim como com muitos colegas, que o felicitaram pelo seu
restabelecimento. Almoçou na Cantina Universitária e voltou em seguida
para casa.
Quatro horas! Ouviu Gerda entrar e conversar com a senhora Wessely.
Aumentou-lhe a tensão no cérebro. “São apenas quatro horas e dez …
supunha que fossem já cinco horas”, disse de si para si consultando o
relógio. Acercou-se da janela e olhou para fora … Naquele momento a
porta abriu-se e Gerda entrou.
- Tenho de sair mais cedo esta noite, e por isso não esperei que me fosse
procurar - disse ela e sentou-se. - então, como vai isso? Não se sente
fraco? …
Ele guardou silêncio, embaraçado; e por fim, numa voz hesitante, disse:
- Primeiro que tudo, devo agradecer-lhe.
- Não me agradeça nada - interrompeu Gerda - qualquer pessoa teria feito o
que eu fiz … Quando se foi enfermeira durante a guerra e quando se vê um
rapaz que não tem ninguém …
- Foi enfermeira durante a guerra? - perguntou ele, admirado.
- Sim, quando o meu marido morreu, logo ao princípio, em 1914!
- Nesse caso, a senhora é …
- Viúva - completou Gerda; - em seguida e repentinamente, como se já
excedesse a conta das atitudes expansivas, supérfluas, prosseguiu num tom
de voz estranho e indiferente: - Em resumo, nada tem que me dizer
obrigado; aqui está o seu dinheiro, quinhentos e trinta e seis francos, e agora
volte a aplicar-se ao estudo.
Neste momento, sem mesmo saber como, achou-se em frente da mulher, a
apertar-lhe os dois delicados pulsos entre os seus dedos fortes, enquanto
palavras desconexas e brutais, anelantes, lhe jorravam da boca:
- Por amor de Deus! A senhora quer afastar-se e abandonar-me agora? Há já
um ano que sei que existe, e ignoro ainda quem é! Ignoro a razão por que ia
ver-me ao hospital, o que deseja de mim e porque nunca me disse sequer
uma palavra que me denunciasse quem é e o que faz,.. A senhora não vê
que estou doido por si! …
- Largue-me! Imediatamente! - sibilou Gerda retirando o corpo para trás,
largue-me, seu animal!
A pressão feita por Kádár deixara-lhe largos braceletes vermelhos nos
pulsos; com um pouco de palidez no rosto, foi apoiar-se à porta. Enquanto
ele permanecia, curvado e perdido, na sua frente, as cores subiram
lentamente às faces de Gerda …
- Seu grande bruto - proferiu numa doce voz - que deseja você? Não seria
uma pena acabarem hostilmente as nossas relações? Queres saber porque
me interessei por você, porque o visitei no hospital? Porque o meu falecido
marido sã parecia um pouco com você, de feições: simplesmente isto. Fez-
se silêncio (“E se eu a agarrasse e a abraçasse?” passou pela ideia a Kádár).
- Diz você que sabe há um ano que eu existo e que, todavia, desconhece
tudo da minha existência? … E que é que isso lhe importa? Nada temos que
fazer juntos.
Bem poderíamos, da mesma forma que habitamos aqui, habitar num hotel.
E se eu lhe dissesse que sou empregada de escritório ou dançarina, em que é
que o caso poderia interessá-lo? Escute, se me quer demonstrar o seu
reconhecimento por eu me ter ocupado de você enquanto esteve doente,
pense que se hão-de passar, como antigamente, dias e semanas sem, nem
sequer por acaso, nos encontrarmos no corredor … e pense mesmo tanto em
mim … como nessa pobrezita Käthe …
- Acredita que isso seja possível? - balbuciou ele tingindo-se-lhe o rosto
dum tom carmesim.
- Que criançola que você é! - exclamou ela, com a voz já um pouco
inclinada ao bom-humor; eu tenho pelo menos mais seis anos do que
você … Desencante aí, em qualquer parte, uma pequena, uma estudantinha
que lhe saiba embalar o pensamento e a imaginação; vá! dá-me a sua mão! -
disse Gerda estendendo-lhe a dela, miúda, branca e delicada. Era magra e
fresca, essa mão; durante segundos, Kádár queria prosternar-se diante da
rapariga, ou então … ou então … mas, nesse momento de devaneio, a mão
branca desprendeu-se do seu aperto quente e humilde, e voltou a encontrar-
se sozinho no quarto.
Durante muitos dias não tornou a ver Gerda, como se ela tivesse
desaparecido daquela moradia. E teve então noites tranquilas. “Precisava de
ver claro dentro de mim próprio, forçoso é examinar sinceramente se é ou
se me tornará insuportável que Gerda … que jamais eu e ela … ou se tudo
isto não é consequência das minhocas de que o Paulo, no hospital me
encheu a cabeça? Lá porque uma enfermeira se ocupou um pouco mais de
mim …” e imediatamente tornou a ver a sala do hospital de Peste, com a
cama num canto, debaixo da janela, e a discreta luz azulada da noite, e
Ágata, sentada na borda do leito, com a mão na dele. Um desespero lasso
insinuou-se-lhe no peito. “Ela foi boa para mim … e Gerda, não o foi
também? As suas palavras acalmantes e inteligentes não me fizeram bem?
Não vale mais a pena voltar para o lado a cara e não pensar mais nela?”
Sabia, de facto, que cada minuto e cada pensamento que consagrasse a
Gerda o arrastariam cada vez mais para uma coisa que não poderia alcançar
êxito algum, visto que não chegara sequer a começar.
Agora, porém, achava refúgio nos dias passados na Universidade; o
afastamento de Gerda fora-lhe menos doloroso do que ele havia suposto.
Sem sombra de dúvida, o seu desejo inconsciente de obedecer à ordem de
Gerda, que lhe intimara esquecê-la, alguma coisa influía nisso. O mistério
ficaria sendo mistério - fosse ela quem fosse, “uma simples galdéria ou uma
comunista”, não era necessário resvalar na vulgaridade. A estranha criatura
conservaria a sua estranheza, que o preservava de olhá-la com
aborrecimento.
Aferrava-se a Paulo com uma teimosia aflita e ingénua: mal se libertava da
Universidade, acorria com regularidade a casa dele e passava também
alguns serões na sua companhia.
“Daqui a algum tempo hei-de apresentar-te aos rapazes”, declarou Paulo,
assim designando os seus amigos, “então passaremos, provavelmente, todos
os nossos serões juntos!” Porque é que Paulo se ligava a ele? Que fito
perseguia, invertendo muito simplesmente os seus papéis oficiais e, em vez
de aprender com ele matemáticas e química, lhe ensinava toda a espécie de
coisas que, até à data, não haviam existido na sua vida? Aquele dava-lhe
livros, dos novos escritores alemãs, ingleses, americanos e franceses, que
Kádár por completo ignorava até então. Fazia-lhe ouvir nomes novos:
Ratheneau, Freud, Spengler; explicava-lhe o que significavam outros
nomes, como, por exemplo, Wilson e Massaryk, Noske, Poincaré ou
Baldwin. Pouco a pouco, todos estes nomes tomavam corpo, todas estas
palavras eram investidas duma significação. Muitas coisas que Kádár ouvira
outrora e depois esquecera, volviam a ser para ele vida vivida, penetrada de
sentido. Depois surgira nova maravilha: um enorme fonógrafo elétrico, de
fabrico americano; e regressou uma noite a casa profundamente perturbado
após ter ouvido no fonógrafo a sonata de César Franck, para violino e
piano. E, ainda por cima, Paulo, dava-lhe dinheiro, muito dinheiro, de sorte
que os seus francos podiam permanecer intactos no cofrezinho de aço,
oculto debaixo das camisas. Pelas supostas explicações, Paulo pagava-lho o
suficiente para fazer face a todas as suas despesas.
Uma tarde travou conhecimento com Rosinha. Há muito que serrazinava
Paulo, no desejo de vê-la. Finalmente, obteve que se encontrassem os três
numa sala do “Kunst-historisches Museum”. Quando Kádár chegou já a
rapariga estava lá, sentada num sofasinho no meio da sela, entretida a
folhear um catálogo. Logo ao transpor a porta ele se deu a observá-la: era
de talhe esbelto, tinha as pernas compridas e delgadas, os cabelos louros
cortados, as faces rosadas, esplendendo saúde. Percebeu imediatamente que
era ela, mas como Paulo não chegara ainda não se atreveu a abordá-la.
Manteve-se, primeiro, canhestramente junto da porta da sala vazia, e depois
especou-se, contrafeito, diante de um quadro. A jovem deu por ele e dirigiu-
lhe a palavra:
- Tenha a bondade … o senhor é o amigo de Paulo, não é verdade? Sente-se
então aqui … não compreendo porque é que Paulo vem atrasado.
Apertaram a mão um do outro, a seguir ao que Kádár se acomodou ao lado
dela, temendo os minutos imediatos, receando não saber entabular a
conversação. Ela mirou-o atentamente e, por fim, declarou:
- Está embaraçado sem necessidade alguma disso. Comecemos, ou antes,
continuemos a tagarelar como velhos amigos. Já o conheço muito bem,
deve pensar que Paulo me falou muito de si.
E, com efeito, proferidas as primeiras palavras, verificou que Paulo tinha
falado dele com muita afeição; também a rapariga sabia tudo a seu respeito,
absolutamente tudo, desde a morte dos pais em Deva até aos dias passados
no hospital, Rosinha falava e as suas palavras doces e gentis destravavam
também a língua de Kádár. Nem deram conta de que os minutos se
escoavam.
Apareceu Paulo, um pouco esbaforido e bem-humorado.
“Desculpem o atraso”, rogou ele, “o papá recebeu-me em audiência
dominical e eu não podia deixar escapar este raro ensejo de falar-lhe nos
meus projetos de verão. Suponho que lhes não oporão dificuldades; de
contrário, eu declararia simplesmente desejar passar o verão com a mamãe e
os meninos …
Vejo que vocês facilmente estabeleceram conhecimento, mesmo sem a
minha intervenção! Dize-me, Tony, porque é que deitas tanto o rabinho do
olho para esta dama? Já estás apaixonado por ela?” Percorreram todas as
salas, contemplando os quadros: depois, pela uma hora da tarde, dirigiram-
se a uma cervejaria do centro da cidade, onde alguns rapazes e raparigas,
amigos de Paulo e de Rosinha, estavam à sua espera.
“Apresento-lhes o meu amigo, Tony Kádár; já lhes falei dele”, declarou
Paulo; e, passada meia-hora, em Kádár havia o sentimento de ter já vivido
meses e anos inteiros na companhia daqueles jovens todos, A sociedade de
Paulo e de Rosinha, com exceção de Wirth, duma estudante de medicina já
tão juvenil, chamada Lily, e dum homem ainda novo, calmo e simpático,
senhor dum nome muito célebre da aristocracia austríaca, - compunha-se
sobretudo de condiscípulos de Rosinha no Conservatório. Estes rapazes e
raparigas, na maior parte oscilando entre os dezasseis e os dezoito anos,
formavam um rancho alegre. Alheados das preocupações cotidianas da
existência, davam-se ao capricho de agitar, com boa fé e com a graça da
inconsciência, os graves problemas sociais, morais e sexuais, cuja solução
ou, pelo menos, uma sua explicação completa, a vida livre que levavam
exigia. Assim como se foi habituando aos assuntos das discussões deles e à
sua índole, Kádár habituou-se também à sua maneira de viver; veio a achar
naturais e cheios de sensatez estes casais de camaradas, admitiu, sem
reservas as minúcias das suas existências: o facto, por exemplo, de Roberto
e Aninhas terem ido juntos, na Páscoa, a Salz-burgo; ou o de Hélia e Arno
possuírem aposentos comuns; ou ainda o de Eva se fechar em casa, durante
horas, com Hugo. E também o caso de Ila, a desastrada, ter-se visto
coagida, segunda vez, a recorrer a uma intervenção médica, e aquele outro
de Hélia e Alberto terem mudado de par. Tudo isto se passava às
escâncaras, porém com afetação de preferir a franqueza levada ao excesso,
mesmo diante de estranhos, à dissimulação e, principalmente, à negativa. E
os pais, as mães, essas famílias de médicos, de advogados, de funcionários
ou de proprietários, numa palavra, essas famílias de respeitáveis burgueses?
Elas suspeitavam desses factos sem quererem acreditar neles, sabendo-o
mas negando-o.
O inverno estava no fim; Kádár preparava-se afincadamente para o seu
segundo exame. Retesava os nervos, apertava as maxilas e fechava os
punhos, curvando-se sobre os livros e sobre os desenhos, porque o espírito
lhe fugia para longe, para junto duma rapariga chamada Tílly, a qual enchia
agora toda a sua vida e por causa de quem despendia os francos que lhe
restavam.
Òtília Baum ia nos seus dezoito anos e cursava, no Conservatório, o último
ano de piano. Pequenina de esqueleto frágil, possuía membros tão gráceis
que, às vezes ele se espantava de que essa mãozinha estreita tivesse força
para apertar outra mão e de que as suas pernas esguias pudessem suportar
passeios de muitos quilómetros. O rosto dela tinha uma brancura de leite tão
acentuada, que ia até à transparência, transparência que umas tantas sardas
acusavam até à inverosimilhança; os seus cabelos eram duma cor ruiva,
ardente, com um tom avermelhado; quando os soltava, caíam-lhe até abaixo
da cintura. Tilly morava numa rua tranquila e afastada, numa “vivenda” no
meio de enorme parque. O pai, um judeu baixo, de cabelo ruivo, de calvície
já muito avançada e que se via perdido na sala de dimensões exageradas, no
meio de móveis monstruosos e de quadros que revestiam paredes inteiras,
tinha pela filha um afeto quase neurastênico. Atulhava-a de vestidos e de
jóias que ela não usava nunca ter-se-ia tornado ridícula pondo pérolas de
enorme volume - e transferia para a Suíça milhares de dólares a favor de
Tilly. Tinham-se conhecido, ela e Kádár, em casa da Rosinha: Tilly estava
ao piano, a tocar um fox-trol americano. Ele sentara-se perto, a ouvir
silenciosamente e a olhar as mãos da rapariga. Depois outra qualquer a
substituirá ao piano e Tilly convidara-o para dançar com ela.
- Não sei dançar - respondeu ele, mas … estimaria outra vez piano!
- Porquê? Gosta de música? Sabe apreciá-la?
- Gosto, mas o que conheço dela é bem pouco!
- Não lhe é indiferente saber quem está tocando?
- Não … visto que me agrada ver as suas mãos sobre as teclas - confessara
ele. Naquela tarde fora acompanhá-la a casa. - Está mal disposto? -
interrogara ela no caminho, - Eu? Nem por sombras.
- Então porque vai tão calado?
- É desnecessário falar muito, desde que …- e calara-se, embaraçado.
À despedida dissera-lhe Tilly: - Amanhã à noite, recebo os meus amigos;
dar-me-ia você satisfação vindo também.
Como é natural, fora; e, a partir de então, haviam-si encontrado todos os
dias.
Por essa época, um rapaz chamado Norberto tornara-se taciturno e
desabrido.
Passados dez dias, Tilly convidará novamente Kádár para jantar, mas, desta
vez, sozinhos os dois.
- Norberto portou-se hoje mal comigo - tinha declarado, no decurso da
refeição, a rapariga; - chorou, mostrou-se violento e humilhou-se diante de
mim quando lhe participei o corte do nosso namoro.
- Cortou o namoro com ele?
- Porque finge você não saber nada? Sabes bem que foi por tua causa que o
fiz! …
Estavam apaixonados um pelo outro. Kádár, com êssí devotamento
instintivo e sem reserva devido à que era melhor, maior e mais educada que
as outras, um devotament que não desejava senão dar. Ela, com essa
comoção misturada de cansaço, própria da sua raça, e que se manifestava
em cada um dos seus gestos, na vibração um sistema nervoso excitado pela
arte depois também com o tédio dissimulado do seu ser aturado de um com
erotismo ávido duma criança gulosa, e, às vez ainda, com a moderação de
alguém terrivelmente embotado ao contacto das coisas do mundo.
Kádár era sempre o mesmo; Tilly, sempre nova, sempre impenetrável.
Sentada diante do seu piano Steinway, tocava Schumann; nessa sala de
música, o mobiliário compunha-se unicamente do enorme piano, duma
estante com a coleção de partituras e dalgumas cadeiras e poltronas.
Contígua a esta divisão, havia outra: o quarto de dormir de Tilly. Ninguém
ali podia penetrar sem licença sua.
Aliás, a enorme habitação encontrava-se habitualmente vazia. Quando o pai
de Tilly lá estava, conservava-se quase sempre na sala de fumo, não
solicitando ir para o pé da filha senão por espaço de algumas meias-horas,
ao serão, quando a sabia só, para a ouvir tocar piano …
A Toccata evolava-se, com grande eloquência do instrumento, quando, de
súbito, o som se interrompeu.
Isto não vai, já não posso mais! - exclamou Tilly, enervada; e logo cerrou,
com ruído, a tampa do piano.
Nas duas horas em que ela estivera ao piano, Kádár vivera numa felicidade
sem limites: Brahms e Chopin, Beethoven e Schumann.
Tilly ergueu-se, dando estalidos com os dedos; Kádár, que se encontrava
ainda estonteado do último acorde interrompido, pegou-lhe na mão:
“Obrigado, Tilly!”
E a jovem, sobre-excitada pelo erotismo das sonoridades, não tardou a colar
os lábios aos dele.
Pelas oito horas e meia, ouviu-se bater suavemente na porta: “Menina,
posso trazer o jantar? O senhor não fica esta noite em casa.” Entrou uma
mesa volante, de rodízios, espelherita de cristais, trazendo chá, carnes frias,
peixe, salchichas várias, molho de sabor esquisito, legumes requintados a
enfeitar os pratos, bolos, frutas, e bem assim um vinho espesso, um pouco
acre.
Pelas dez horas chegaram alguns pares dos amigos de Tilly, os quais
discorrerem coisa de uma hora, retirando-se Kádár ao mesmo tempo que
eles.
Chegando a casa, parou no meio do quarto, diante da mesa, em que azia o
desenho apenas esboçado …
Às três horas da manha, sem ser capaz de dormir, a cabeça a zumbir-lhe,
pôs-se a olhar na escuridão, onde linhas e letras dançavam em ziguezague
perante os seus olhos, sentindo o fluído de Tilly trespassar-lhe o corpo,
acompanhado, em cada um dos seus pensamentos, da cobiça do sucesso e
do dinheiro, e do enorme receio da incerteza no futuro.
Nervos e dinheiro: um e outro começavam de faltar-lhe. Recentemente,
mandara fazer um fato completo, num elegante alfaiate do centro da cidade;
além disso, tinha comprado roupa branca fina e sapatos da última moda. A
senhora Wessely cobrava-lhe uma exorbitância pelo banho diário - ele
adquirira esse hábito desde que observara a casa de banho de Tilly, de
mármore, o chão de mosaico, esplendente na sua alvura. Com camisas de
boa qualidade, tinha de pôr gravatas um pouco mais chiques.
Tilly exaltava-se sempre que ele trazia um segundo que fosse de atraso, o
que o obrigava muito frequentemente a meter-se num taxi para ir às
entrevistas com ela.
Os restaurantes e os bares, os teatros, cinemas e excursões emagreciam-lhe
fortemente a bolsa, se bem que as raparigas, de ordinário, não permitissem
que alguém pagasse em vez delas, e que as próprias despesas de Kádár
fossem liquidadas por Paulo. Mas quando Tilly admirava o esplendor duma
rosa italiana numa vitrina, ele não podia privar-se de lha oferecer; e quando
Tilly, meia-noite já dada, declarava sentir vontade de dançar, ele não podia
replicar-lhe que os taxis, o bilhete de entrada no baile e as garrafas de
champanhe eram gastos inúteis. Sim, ele aprendera a dançar; porém
quando, de boa estatura mas acanhado de gestos, se movia no meio da sala,
envergonhava-se de si próprio.
Recebera de Paulo, como presente, um smoking, e quando protestara contra
essa prodigalidade Paulo limitara-se a notar-lhe: “Creio que virás a ter
necessidade dele.” Aliás Paulo pagava-lhe precisamente quatro vezes mais
do que tinha sido combinado por explicações completamente supérfluas, e
Kádár aceitava do amigo esse dinheiro todo.
Sentia que, nesse momento, o dinheiro e amizade andavam estreitamente
ligados: sem dúvida, satisfazia Paulo, por intermédio, a evocação para
Mecenas nele existente, ou quereria então simplesmente que Kádár
partilhasse do mesmo nível de vida, sem se ver ferido todos os dias pelos
efeitos, superficiais mas não menos dolorosos, da diferença de fortuna de
ambos.
Ou então, seria ainda … porque, sendo dois a gastar, despenderiam mais o
dinheiro maldito … ou bendito … dos pais? Na ocasião, lá estava Paulo,
portanto; mas Kádár pressentia que aquele abuso não podia durar sempre e
que
Paulo encontraria dentro em pouco outra paixão, ou que os pais dele
restringiriam as suas liberalidades. Em certas noites silenciosas, cheias de
alarmes, uma interrogação, embora indefinida em seus contornos mas nem
por isso menos ameaçadora, o assaltava: “Quando isto acabar, que
sucederá?” E se, às vezes, se dava a observar que nos três últimos meses
gastara tanto como nos dezoito meses anteriores, uma arrebatada
determinação lhe mordia o espírito: “Dantes, não era vida a valer. Preciso
de viver sempre assim! Preciso de ter sempre bastante dinheiro.” Ter
dinheiro … O dinheiro causava extravagantes obsessões. Via-se metido na
pele dum arquiteto célebre, a receber numerosas encomendas, transferindo-
se de uma empresa para outra. Teria dinheiro, uma sorte inaudita que lhe
proporcionaria uma fortuna enorme. “E se eu desposasse Tilly com os seus
milhões na Suíça, a sua vivenda, os seus automóveis e tudo o que seu calvo
paizinho tem amontoado para ela?” veio-lhe à idéia. Mas imediatamente se
recordou de certa noite passada com Tilly: o seu corpinho frágil e nu
encontrava-se estendido no leito enorme, estando ele na outra extremidade
do leito, os olhos cerrados, os membros palpitando ainda das mil sensações
inéditas do último amplexo: depois quando, na luz doce dos primeiros
alvores do dia, mal perceptível ainda, abrira os olhos novamente para as mil
incomparáveis maravilhas daquela silhueta que fazia evocar um efebo, e
quando, reaceso o seu desejo, se acercara outra vez dela, jovem, retesando-
se numa atitude incompreensível, gritara-lhe: “Agora, vai-te, oh! vai-te
embora, vai-te! Trazendo à ideia essa noite, compreendia que Tilly não seria
nunca sua mulher, essa Tilly que, mesmo nua, valia mais que os seus
milhões e que, a-pesar-do seu palácio das suas jóias, era mais pobre que a
indigência! Tilly despedi-lo-ia, a ele também, um dia, com uma palavra …
ou então seria ele quem a deixaria, sem palavra dizer …
Pelos fins de Junho, com efeito, fecharam as aulas na Universidade e, a-par,
acabaram-se-lhe tanto o dinheiro como as relações com Tilly. Tinha ficado
aprovado no exame do segundo ano, com classificação razoável; o quarto e
a pensão estavam pagos adiantadamente até o fim de Julho, mas na sua
caixinha de aço havia agora apenas umas notazinhas.
Tilly preparava-se para partir com o pai para a Suíça e para Itália, onde
passariam o verão inteiro.
Despediu-se dela numa bela noite de Junho. O peito ofegante, os olhos
embaciados de comoção, assaltado bruscamente pelas mil dores da
recordação carnal, reteve a mão de Tilly na sua. Docemente, ela disse-lhe:
“ Então, adeus … até o outono … ou até nunca mais.
Ele amava, doravante, com um amor terrível, insuportável, essa ruivazinha.
Serões inteiros, parecia-lhe ouvir a voz dela, ver a sua silhueta, sentir o
aperto dos seus braços, escutar os sons doces ou a retumbância do seu
enorme piano. Ninguém podia compreender Tilly, a sua vida que se
transmudava a cada instante, os seus suspiros inesperados e as mil pequenas
contradições que, em conjunto, compunham a unidade indecomponível do
seu ser. Jamais alguém poderia compreender Tilly, jamais alguém poderia
esquecê-la …
Alegre e inesperado, Paulo fez novamente a sua irrupção nestes dias ocos e
vagos, como se empunhasse, com gesto seguro, a seringa de morfina do
esquecimento.
“Como sabes, já há meses preparei os meus pais com respeito aos meus
planos de verão; se quiseres, dentro de oito dias poderás partir comigo para
Londres”, declarou -lhe ele.
A viagem fora preparada até nas mínimas particularidades, a questão do
dinheiro previamente regulada; logo no dia seguinte compraram os bilhetes
“Basiléia - Paris Calais - Dover - Londres”.
Unicamente o passaporte de Kádár deu causa a uma pequena dificuldade:
tendo a
Legação da Grã-Bretanha em Viena recusado pôr o “visto” num passaporte
húngaro, a solicitude da senhora Pauli Hesslein conseguiu-lhe, de um dia
para o outro, um passaporte austríaco e não houve mais impedimento algum
à viagem dos dois rapazes …
Uma bela manhã, um grupo turbulento, ébrio de alegria, composto de nove
pessoas, subiu para uma carruagem direta que ostentava no flanco o letreiro:
“Wien West - Paris Físt.” Sete dos seus amigos acompanharam os dois
rapazes a Salzburgo;
durante a paragem duma meia-hora nesta última estação todo o comboio se
divertiu a ver esses rapazes e raparigas que se despediam entre mil abraços
e mil risos.
Rosinha e Paulo passeavam no cais, os rostos afogueados de comoção; já os
empregados do caminho de ferro fechavam as portinholas dos
compartimentos quando ambos se estreitaram em longo abraço. O
semblante de Rosinha refletiu uma espécie de emoção extraordinária. “Meu
Deus!” exclamou a rapariga, segurando ainda a mão de Paulo, que se
conservava de pé no estribo da carruagem, “eu devia ter-te acompanhado,
Paulo!
Expedir-me-ás imediatamente um telegrama, à tua chegada, e escrever-me-
ás todos os dias, não é verdade? Tony, tenha cuidado no Paulo!” Já caíra a
noite quando o comboio entrou na gare de Leste, em Paris; duas horas
depois, o rápido partia da gare do Norte para Calais. Ambos contemplaram,
por detrás dos vidros do seu taxi, a noite parisiense, regorgitante de
transeuntes e de ruídos e fulgurante de luz. Numa encruzilhada, o carro foi
obrigado a parar durante muitos minutos.
Uma rapariga loura, de boina branca, bateu na vidraça, arremessando-lhes
um “Hélio, boy l” sonoro, e alegre.
“Viste?” perguntou Paulo, “é uma inglesa; tomou-nos por ingleses!”
Daí a instantes, acharam-se na gare do Norte. Paulo correu lá adiante, mirou
a locomotiva: “uma bela máquina!” declarou. O carregador chegou com as
suas bagagens e pô-las diante de uma comprida carruagem Pulmann,
pintada de verde. No flanco da carruagem via-se escrito: “Paris-Nord-
Londres Victoria station”.
CAPÍTULO IX

“Não, não me sinto feliz em Londres. Esperava vir encontrar mais do que
isto, ou, pelo contrário, menos talvez? Não saberia dizê-lo. Tenho a
impressão de que Paulo, que dispõe do nosso tempo e do nosso dinheiro,
estragou tudo. Que vamos nós fazer? Nada sei a tal respeito; não é porque
não tenhamos um programa, de antemão e minuciosamente traçado para
cada dia; mas nesta ocasião foi Paulo ao Banco receber dinheiro. Vamos,
isso não me oferece dúvida, visitar os trabalhos preparatórios da Exposição
de Wembley. Paulo gostaria também de assistir a uma rusga em
Whitechapel; com este fito, procura agora adquirir relações entre a
Polícia … E, a seguir, haverá decerto um ror de galerias de quadros, de
bibliotecas, de exposições de escultura e de coleções de antiguidades, que
vamos honrar com a nossa visita; e uma enormidade de conferências a que
vamos assistir. Não privamos muito com os outros locatários da pensão; são
todos londrinos ou, pelo menos, ingleses. Não há, por assim dizer, gente
nova entre eles; e depois, sabem todos que somos vienenses, desconfiam
um pouco de nós. Os ingleses não são comunicativos e não se ligam a
ninguém facilmente. Às vezes conversamos com um rapaz que Paulo
abordou numa biblioteca e, de tempos a tempos, passamos o serão na
companhia de duas raparigas com quem travámos conhecimento um sábado
à tarde, graças ao carro dela ter sofrido uma pane na estrada real e nós, com
o Ford que Paulo aqui alugou, o termos rebocado até à cidade. Uma chama-
se Isabel Croven, abreviadamente, Ila; os pais vivem em Glasgow e ela
trabalha aqui no escritório dum lojista de vidros, seu parente afastado. A
amiga chama-se Yomaya; é altíssima, uma verdadeira indu de Madrasta.
Está estudando na Universidade.
Agora, desejaria dizer-te o que, até à data, vi de Londres: uma grande
cidade, num turbilhão estonteador de pormenores acumulados, sem uma
casa única já do meu conhecimento, sem um canto de rua familiar, sem uma
voz conhecida; e, todavia, essas casas estranhas, essas ruas desconhecidas,
esses ruídos insólitos não chegaram a produzir em mim a impressão
profunda do absolutamente novo. Pretende isto dizer que me não sinto à
vontade, aqui? Devo dizer, hoje que já semanas passaram sobre a minha
chegada: não estou ainda desencantado, ou não espero já mais nada? Não,
Tilly, se eu não me sinto feliz em Londres, é talvez porque demasiado me
pesam as saudades por Ti …” “Um dia destes, tive um curioso encontro.
Paulo fora visitar, essa manhã, uma distinta família londrina, para a qual
trouxera uma carta de apresentação. Aproveitei esse intervalo para dar uma
volta. De-repente, numa das ruas elegantes, perto dum grande hotel, dei de
cara com um antigo condiscípulo de liceu, Estêvão Varga, - devem, sem
dúvida, os tios estar lembrados do seu nome. Ele deu-me a sua direção em
Londres e em Ostende, intimando-me a visitá-lo no caso de, no fim de
agosto ou princípios de setembro, nus encontrarmos ainda em Londres.
Poderíamos então passar juntos alguns serões agradáveis. Imaginam decerto
como me deu prazer falar húngaro, coisa que me não sucedia há tempo
infinito! Este encontro agradou-me tanto mais quanto é certo que, no liceu,
Varga não se contava no número dos meus amigos; demasiadamente nos
fazia sentir, a nós outros, alunos pobres, que tinha uma situação nitidamente
superior. Passámos uma boa meia-hora de conversa, após a qual ele foi à
sua vida e eu voltei para a pensão.
“Para pôr termo a esta carta, devo repetir: faltar-me-iam a tinta e o papel
para lhes descrever, mesmo superficialmente, meu querido tio Rudi e minha
querida tia Ana, tudo o que há aqui de belo e interessante. Talvez um dia,
quando a tranquilidade dos dias vienenses mo permitir, ou então se a
Providencia ma levar ainda à vossa estimada e familiar residência da
avenida de Presburgo …”
CAPÍTULO X

Regressaram de madrugada.
Manhã alta, Kádár despertou, a cabeça pesada, os olhos baços, no rom-rom
torturado dum automóvel com avaria no motor. Consultou o relógio: eram 9
h.
Por de-baixo dos estores meio descidos, penetravam raios de sol no quarto.
Paulo estava diante do toucador, nu até à cintura, uma toalhinha em volta
dos rins, a cabeça inclinada rente ao espelho, no qual Kádár descobriu dois
olhos esbugalhados, a dançarem movidos pelo espanto.
- Que é isso? Que fazes aí? … - perguntou-lhe … e um súbito mau-estar
varreu-lhe logo e de todo o sono. Paulo voltou-se para ele num movimento
insolente desajeitado, pálido como linho:
- Nada - respondeu, numa voz sem timbre. - Já acordaste? …
- Tens má cara - prosseguiu Kádár. - Estás, ó miserável, com uma cabeça
indecente; bebeste demais, hein? …
- Faz-se o que se pode - replicou Paulo, lançando um último olhar para o
espelho, e começou de vestir-se.
- Não tomas banho? - estranhou Kádár, ou já tinhas saído do quarto?
- Não - respondeu Paulo num tom indiferente. - Creio que apanhei um
resfriamento.
Fêz-se silêncio. Nalguns minutos apenas, Paulo acabou de arranjar-se; o
rosto retomou-lhe a cor natural, mas qualquer coisa extravagante brilhava
em seus olhos.
Kádár, da sua cama, observava o amigo. Tinha a impressão de que se
passava fosse o que fosse de anormal. Paulo despediu-se dele em duas
palavras:
- Tenho voltas a dar na cidade, preciso também de ir ao Banco; voltarei à
hora; - e abalou sem detença.
Kádár tornou a deitar-se, no meio de interminável serie de bocejos. Pelas 11
horas despertou novamente, tomou banho, almoçou, abriu um jornal da
manhã, que percorreu a custo e que depois lançou para longe, a-fim de
dirigir-se à sala de visitas. O céu apresentava-se ligeiramente coberto; não
sentia vontade de sair.
Trocou algumas palavras com o sr. Colham. O proprietário da pensão
perguntou-lhes se eles não quereriam ir de tarde, na sua companhia a
Wimbledon, onde começavam os campeonatos de tennis.
- Não sei ainda - respondeu Kádár … -iria de bom grado se o sr. Paulo
quisesse ir.
Afinal, sempre saiu. Um auto-bus transportou-o até Blackfriars Bridge;
após um curto passeio na estrada marginal voltou a pé para a pensão …
Uma manhã vazia …
“Há muito que eu não tinha uma manhã livre”, pensou. “Paulo foi ao
Banco; o nosso dinheiro está quase a acabar-se, vamos marchar outra vez.
Já é tempo!”; e esforçou-se por não pensar na sua estada em Londres.
Era uma hora quando chegou à pensão. Entrou no quarto. Paulo estava, sem
colarinho, diante do espelho.
- onde estiveste? …
- Na cidade …
- Ah! eu também; - disse Kádár encarando muito nele - Porque é que tiraste
o colarinho? … - Paulo olhou para o ar o proferiu uma evasiva:
- Por nada. Depois foi à janela, voltou para defronte do espelho e, por fim,
deteve-se à distância de um passo de Kádár. Com o rosto cheio duma
palidez mortal, disse-lhe, numa voz estranha e grave:
- Escuta, Tony, é uma coisa horrível!
Aquela cara, aquele tom, aquela frase! Um terror sem nome se apoderou de
Kádár:
- Por amor de Deus, que é, que coisa horrível é essa? … - bradou.
- Tony - disse o outro, e a sua voz de baixo transformou-se numa lamúria
medrosa de criança, fui contaminado por Yomaya …
O sangue de Kádár congelou-se-lhe nas veias, num só instante. “Meu
Deus! … a sífilis? …” Ouvindo esta palavra, o rosto de Paulo contorceu-se
numa careta.
- Sim, acabo de vir do médico que procedeu à análise do sangue: resultado
positivo.
Kádár não conseguiu encontrar uma única frase; o peito sacudido por uma
náusea, olhou fixamente o seu amigo prostrado sobre uma cadeira, sem
vida, como um fantoche a que se soltou o elástico.
Este silêncio teve a duração de muitos minutos ou de bastantes quartos de
hora?
Paulo postara-se no centro do aposento, meio voltado para o espelho, meio
voltado para ele.
- Porque estás olhando para mim? … - gemeu Paulo, por fim.
Esta frase restituiu a fala a Kádár.
- Que vamos nós fazer agora? … - perguntou-lhe, desanimado,
profundamente envergonhado de gritar por socorro no momento em que
devia ser ele a prestá-lo.
- Agora … o que vamos nós fazer? Eh, bem! vamos para casa … Aqui não
posso … - disse Paulo, e calou-se novamente. Mantinha-se de pé, e Kádár
continuava afundado na cadeira. Uma horrível emoção, que lhe gelava o
sangue, estrangulava-o.
Recordava-se do que Wirth dissera um dia, a respeito da temível infecção,
inoculada por uma raça diferente … Também Paulo se recordava disso? …
Não se atreveu a proferir palavra; não ousou sequer interrogar Paulo sobre a
maneira como aquilo tinha acontecido. Caricato! Como acontecera
aquilo? … Não reparara ele em que a rapariga estava doente? … Mas
poderia perguntar-lhe fosse o que fosse, no instante em que Paulo
continuava de pé, em frente do espelho, a camisa aberta sobre o peito, os
olhos embaciados fixos sobre a sua própria imagem e mostrando, ao canto
das pálpebras, duas tristes lágrimas que iam engrossando? De súbito, em
silêncio, ele voltou-se; cada um dos seus movimentos era, nesse momento,
desastrado e anguloso.
- Tony - disse Paulo, aqui nada posso fazer … Vamos arranjar as malas e,
amanhã de manhã, levantarei dinheiro do Banco e partiremos.
Esse rosto de criança, angustiado, enlouquecido! Não havia senão uma
coisa a fazer, nesse instante … Ir direito a ele, abraçá-lo, apertá-lo nos
braços, incutir-lhe coragem e confiança em si-próprio … Via-se, porém,
incapaz de bulir sequer, na sua cadeira: a gélida serpente do desgosto
enroscava-se nele, num aperto viscoso … Sabia que se Paulo o tocasse
naquela ocasião se subtrairia ao seu contacto.
A imobilidade de Paulo transformou-se repentinamente numa agitação
febril e, tal como uma mosca à qual queimassem as asas, o rapaz corria de
canto para canto, com movimentos extravagantes, acutângulos e aflitos.
O criado trouxe as malas. A hospedeira acorreu e perguntou, admirada: “O
quê, os senhores partem? … assim, de súbito? … Nem sequer almoçaram
ainda … Como é natural, o preço da pensão compreende a semana
inteira … infelizmente, não me é possível deduzir os três últimos dias …”
“Bem entendido, respondeu Paulo com vivacidade, impaciente de a ver
pelas costas. Os fatos, a roupa miúda voaram do guarda-vestidos e
acogularam-se nas malas, este desvairamento de Paulo apoderou-se também
de Kádár; decorreram duas horas e as malas continuavam por fazer. Talvez
por saberem que, uma vez findo esse trabalho, teriam diante de si uma
estirada tarde. A partir das 4 horas, todavia, nada mais tiveram em que
ocupar-se. Consultaram o horário dos comboios: o rápido partia da estação
“Vitória” às 11 horas da manhã; estariam em Paris antes da meia-noite e
esperariam o primeiro comboio que seguisse para Viena. Paulo matava o
tempo arrastando o mais que podia os preparativos. Pediu a conta à senhora
Colham e pagou, com lentidão afetada, o custo da hospedagem até o fim da
semana; depois desceu à rua para comprar cigarros. Dez vezes pelo menos,
tirou da algibeira o passaporte e bem assim a sua carta de crédito sobre o
Banco Hudderston CADe.
Súbito, quebrou-se-lhes a grande animação.
Ambos ficaram afundados nas suas cadeiras, incapazes de fazer fosse o que
fosse.
Os minutos escoavam-se com uma morosidade incrível … e nada diziam
um ao outro … Pelas seis horas, Kádár ergueu-se finalmente e foi lançar um
olhar para a rua, que então se animava. Abrigava no peito uma sensação
amarga, tenaz e e dolorosa. Não tinha dado bom resultado, esta coisa da
vinda a Londres. Que sucederia, agora? … Que iam fazer? … Que faria
Paulo? Aguentariam um e outro as recriminações … de quem? Dos pais de
Paulo? …
importar-se-iam eles, no fim de contas, com a infelicidade do filho? … Ou
então de Wirth? Perante este não estava por completo justificado? … Não!
Ele dir-lhe-ia: “Não prestaste a atenção devida a esta criança” …
E depois, serial necessário ir ao encontro de Rosinha! … Santo Deus, seria
preciso dizer-lhe: “Rosinha, o teu Paulo …” calafrio percorreu-lhe todo o
corpo. Rosinha havia-lhe declarado outrora: “A camaradagem amorosa é o
melhor penhor duma vida pura e duma saúde perfeita.”!
E surgira, afinal, Yomaya, essa jovem indiana, de tez morena, com o seu
sangue envenenado, seus beijos sem consciência, . .
“Tony, explicara-lhe Paulo uns dias antes, deixa-me eu posso resistir-lhe,
não quero v. . resistir à sua singularidade, à sua raça estranha”. Ele dissera
isto como se fosse um velho devasso a quem urge o tempo. Não era mais
bela que Rosinha, nem mais alta, mas era diferente! dela … com os seus
grandes olhos semi-cerrados, de expressão ingénua, com a sua fala calma
duma entoação bizarra e profunda, assemelhando-se a uma contínua canção
com o seu sangue funesto …
Talvez ela própria o ignorasse, tendo-o recebido talvez à nascença, à
maneira de maldição dum antigo e maléfico amplexo …
Paulo deitara-se ainda antes de a noite cair. Nem sequer jantara. A criada de
quarto trouxe a Kádár chá e um prato de carnes frias; custou-lhe a engolir
alguma coisa antes de, por seu turno, se deitar.
O itinerário estava fixado; vinte vezes o tinham discutido: levantar-se-iam
às 7 horas e às 10 horas receberiam o dinheiro no Banco, após o que iriam
diretamente para a estação.
Kádár apagou a luz; imediatamente o reflexo dos auto-bus que passavam na
rua começou a projetar-se no teto, em feixes de luz que o varriam de lado a
lado. O silêncio reinava no quarto. Tinha já dado meia-noite, despertou dum
sono profundo, animal, surdo, sem sonhos: alguém caminhava ali dentro.
Soergueu-se: Paulo encontrava-se de pé junto da mesa, segurando na mão
uma costeleta fria, que havia ficado na bandeja. “Não consigo dormir,
cochichou ele, e sinto uma fome horrível.” A situação era quase cómica:
Paulo, descalço, envolto no pijama azul claro, de costeleta na mão.
- Não podes dormir porque estás esfomeado disse-lhe Kádár. - Come, que
logo dormirás, - e depois recaiu ele na almofada e ferrou-se outra vez no
sono.
Despertou novamente sob a ação de um grande ruído seco, a que se seguiu
outro leve, uma espécie de arrepanhar de mão em roupa distendida. Um frio
mortal lhe gelou os membros e todo o terror mau, absurdo, desconhecido,
da existência humana estremeceu na sua voz, quando, na luz indecisa da
aurora, chamou:
- Paulo, tu dormes? … Paulo … Paulo! …
De um salto, atingiu o interruptor; uma luz amarelada inundou o quarto;
Paulo não estava na cama … ou antes … arrebatando a ligeira colcha
castanha que a cobria, viu Paulo estendido de costas sobre a cama, a perna
direita dobrada sobre o ventre, e … e … o braço direito e todo o tronco
ocultos pela grande almofada branca, que o braço esquerdo parecia enlaçar.
Com certeza infalível Kádár soube então que qualquer coisa sucedera e não
se atreveu a desviar a almofada de cima da cabeça de Paulo. Quedou-se um
instante à cabeceira do leito, numa vertigem misturada de desgosto; depois,
o seu dedo precipitou-se para o botão da campainha …
Minutos decorridos todo o andar estava a pé, e quando o Dr. Ryborg, o
velho médico sueco, locatário da pensão, apareceu dentro do roupão enfiado
à pressa, ouvia-se já no silêncio da madrugada o ronco dum automóvel
parando em frente do prédio, e a pesada porta abrir-se e fechar-se. O quarto
transbordava de basbaques cheios de terror, sumariamente vestidos, o
semblante pasmado e pálido sob cabelos em desalinho e de olhos
arregalados. Silenciosos, deixaram o doutor passar. Este, pegando
suavemente no braço azulado que enlaçava a almofada, pô-lo ao longo do
corpo e levantou depois aquela. O rosto amarelo de Paulo - da sua boca
aberta e contorcida escorria um fio espesso! de sangue que lhe chegava ao
queixo - mergulhava num charco vermelho, ao passo que sobre o
travesseiro, à altura do pescoço, jazia um revólver miniatural, de reflexos
azuis.
Em tudo o que se seguiu houve alguma coisa própria de sonho, alguma
coisa de confuso, de estranho e de incompreensível: indivíduos de bata e de
barrete azul, depois um agente da polícia e outro mais, e também um civil
de bigode imponente. Todos o assaltaram com perguntas que ele
dificilmente compreendia; e mesmo que as tivesse compreendido bem,
nenhum som teria podido soltar-se da sua garganta empedernida. A senhora
Colham tremia a um canto, com um penteador cor de rosa, de ramagens
pelos ombros, e soluçava incessantemente: “Ah! que escândalo! … que
escândalo! …” A figura do Dr. Ryborg adquiriu dimensões sobre-humanas
no momento em que se inclinou para ele e o interrogou em alemão,
perguntando-lhe se sabia ou se, pelo menos, suspeitava da razão por que …
“Não, não sei absolutamente nada, não, não” e, neste instante, brotou-lhe no
espírito a ideia de que era forçoso dizer àquele homem o que Paulo soubera
na véspera … mas já o homem de grande bigode estava na sua frente, a
agitar na mão duas folhas de papel que descobrira em cima da mesa, perto
da bandeja com os restos do jantar. Kádár reconheceu imediatamente as
páginas pautadas azul da agenda de Paulo, assim como a sua caligrafia
desordenada, traçada sem dúvida ao débil clarão que se entrava da rua.
Numa das folhas achavam-se escritas palavras inglesas:
“À Polícia: Contraí uma doença incurável, e é por isso que me mato.
Comprei a arma esta manhã … Se for possível, evitem a autópsia. Desejo
que o meu corpo seja incinerado. Falem do caso, tanto quanto for possível,
como dum acidente de trânsito, e (seguia-se uma linha riscada, mas mesmo
assim legível) pede-se instantemente que se diga somente aos meus pais que
foi suicídio …” Na outra folha liam-se três linhas em alemão: “Tony, se lhes
falares em Viena, dize-lhes simplesmente: foi por causa deles que isto
aconteceu. Tanto quanto possível, fala a Rosinha de um acidente de
automóvel.” Depois, o cadáver foi levado dali.
O agente à paisana fez uma relação das coisas de Paulo, remexeu em tudo,
tomou tudo na mão e, a cada objeto perguntava: “É do senhor, ou seria do
defunto? …”
Ele tomou conta do minúsculo revólver assim como das duas cartas. Kádár
tremia, o coração num bater desordenado; esteve a ponto de sufocar-se ao
beber o soluto de brometo quente que lhe dera o doutor.
Havia apenas um instante que estava sozinho, bateu à porta a senhora
Colham. “O senhor é um gentleman, disse-lhe ela com um tremor nervoso
no corpo todo, e por isso suplico-lhe que deixe a minha casa, que parta sem
demora … compreende, o bom renome da minha casa … o senhor é um
gentleman, não é verdade? …”
Naturalmente sabia bem que não podia ali ficar, naquele quarto escuro,
impregnado da lembrança dos acontecimentos!
Levou a mão à fronte. “Eu nem me sinto …”, e, precipitou-se para o lavabo,
onde bebeu dum só trago três copos de água. Que sabor estranho …
Provavelmente, servira-se do copo de lavar os dentes … Seria o copo de
Paulo? … Um medo de animal perseguido lhe sacudiu os membros e o
estômago logo expeliu tudo o que acabava de tomar.
Bateram de novo à porta: era outra vez a senhora Colham, ainda de
penteador cor de rosa, acompanhada de um agente.
Este trazia uma citação para o dia seguinte, às 11 horas da manha, no
comissariado de BowStreet.
Na rua escura, Kádár caminhava cambaleando. “Que me querem eles? …
Podia eu adivinhar que Paulo ia suicidar-se? … Achou-se perante um
comissário, sentado a uma mesa em cima da qual estavam colocados o
revólver, as duas derradeiras cartas e o passaporte de Paulo. O funcionário
policial perguntou-lhe o nome e pediu-lhe o passaporte. Isto ainda ele
compreendeu; mas, para o resto, tiveram de ir buscar um intérprete. Com
muita dificuldade, lá acabaram por descobrir alguém conhecedor do
alemão. “Porque vieram os senhores a Londres? Que fizeram aqui? Com
quem estabeleceram relações? … Qual podia ter sido a causa do
suicídio? … É verdade que o seu amigo tinha uma doença incurável, e de
que doença se tratava? Como se chama o médico que a verificou? … O
senhor soubera que o seu amigo havia comprado um revólver? … Quem são
os pais do seu amigo e qual é a posição social deles? …
Quem é Rosinha? Tratava-se de um verdadeiro dilúvio de perguntas, a que
diligenciava responder com concisão e exatidão. Era seguida, o senhor de
bigode - não despegara dali, o homem - agarrou-lhe num braço, obrigou-o a
sentar-se e perguntou-lhe se se achava mal e se não queria um copo de água.
“Não”, recusou Kádár, com um gesto aflito ao voltar-lhe à ideia o copo de
lavar os dentes, lá da pensão.
“Não admira nada que ele esteja abatidíssimo” observou o da bigodeira ao
outro agente, “o amigo queimou os miolos à distância de dois metros dele;
sabe você,
Graham, o que são estes revolverzitos belgas, de cinco ameixas! …”
Propuseram-lhe, por último, um problema terrível: perguntaram-lhe se
queria e podia tomar as providências necessárias para prevenir a família e
mandar proceder à cremação do cadáver, Protestou, aterrado. Nesse caso
não teria senão que aguardar, no seu domicílio, que a polícia se pusesse em
contacto com a legação da Áustria. Kádár declarou imediatamente que tinha
de sair daquela pensão, e quando lhe perguntaram para aonde ia morar,
disse, ao acaso, o nome dum hotel, o hotel Grosvenor, perto da estação de
“Victoria”, onde se lembrava de ter estado instalado com Paulo, durante
dias logo após a chegada.
Depois disto, permitiram que se retirasse.
Ao voltar para a pensão, encontrou já as suas malas no átrio. No sábado
imediato, um agente ciclista levou-lhe ao hotel Grosvenor uma citação para
às 11 horas. No comissariado, encontrou novamente o senhor de bigode e
bem assim o intérprete. Informaram-no de que a autópsia, a qual não pudera
ser evitada, tinha, de facto, provado que o defunto contraíra uma doença e
que se podia, consequentemente, aceitar esta como motivo do suicídio.
Aliás, a família tinha já sido prevenida pela Legação, para Gastein, onde se
encontrava em vilegiatura. Por telegrama, os pais davam o consentimento
para a incineração do corpo, e todas as providências haviam sido tomadas
para isso. Também a família consentia que fosse entregue a Káclár o
dinheiro que sobrara da liquidação da carta de crédito, deduzidas as
despesas com o funeral e outras correlativas. As despesas subiram a
tanto … a incineração custava a quantia de … ficava, portanto, um saldo de
duas libras e sete xelins … “Tenha a bondade de assinar este recibo.” Como
decorreram os dois dias seguintes, até sábado? … Tinha a sensação de viver
sob um sudário negro, no hotel barulhento e buliçoso, e de estar separado
do mundo restante por esse sudário. Permanecia sentado no quarto e, com
os dentes cerrados, esforçava-se por não pensar em coisa alguma. Mal
tocava nos pratos que lhe traziam, e o facto de se isolar desta maneira
transformava a primeira comoção produzida pela catástrofe numa surda
resignação.
“Não me devo deixar ir abaixo … No fim de contas, eu não sou
responsável.
Responsável? … mas não se trata de responsabilidade, trata-se de Paulo, o
amigo que perdi.” Depois pensava: “não devo dar voltas ao miolo. Voltarei
para Budapeste, é caso arrumado”. E agora caminhava na rua, vindo do
comissariado para o hotel. Caminhava ao sol ardente do prelúdio do verão,
a mão apertando, dentro do bolso, as duas notas de libra entregues pelas
autoridades.
Já em casa, sentou-se à mesa e tirou para fora o dinheiro todo.
Duas libras e sete xelins, e algum dinheiro miúdo: aquilo representava a
herança de Paulo. Tinha ainda, na carteira, mais dois títulos de uma libra
cada, e bem assim dois xelins e alguns pennies no fundo do seu porte-
monnaie. Somava tudo: quatro … quatro libras, nove xelins e … O dinheiro
deslizava sobre a mesa; ergueu-se, abriu o armário, tirou de lá as suas
vestimentas, pegou na mala, num gesto de autómato atafulhou-a dos seus
fatos, juntou os objetos miúdos espalhados pelo quarto, encafuou tudo isso
nas malas, e depois tocou a campainha. “A minha conta, faça favor”; mas,
mesmo antes de lha trazerem, desceu ao ruidoso átrio, onde se sentou numa
poltrona em frente do escritório, com a bagagem aos pés. Um chasseur
trouxe-lhe a conta; dirigiu-se ao güichet, colocou em cima a conta e tirou da
algibeira todo o dinheiro que possuía, resmungando qualquer coisa. O caixa
olhou para ele admirado, apartou a importância da conta e entregou-lhe o
excedente. “Resta-me … só quanto? … três … três libras e cinco xelins.” -
“Quer que lhe levem a bagagem à estação de caminho de ferro?..
“ - “Não, apenas à passagem do auto-bus …” Achou-se na paragem do
auto-bus, junto da bagagem, sob os raios dum sol esplêndido. Os auto-bus
passavam uns atrás dos outros; não sabia qual tomar e ignorava o que ia ser
de si próprio. Afagava de quando em quando, metendo a mão no bolso, o
dinheiro. Um sujeito, todo vestido de cinzento, limpou da cinza o seu
cachimbo batendo com ele de encontro ao poste do candeeiro. Resíduos de
tabaco, de cinzas e até uma faúlha caíram no chão e, voaram para cima dos
sapatos de Kádár. “Mil perdões!” desculpou-se o indivíduo, levando o índex
ao chapéu e voltando-lhe logo as costas.
Três libras e cinco xelins … Em vez de dinheiro, teria sido melhor que o
comissariado lhe tivesse entregado o revolverzinho; ele continha ainda
quatro cartuchos intactos.
CAPÍTULO XI

A ruazinha denominava-se Little Chelsea Street;


dentro de casa, ele não a enxergava sequer. A sua janela dava para uma
paisagem singular; a cinco metros da vidraça, havia uma parede duma altura
e duma espessura extraordinárias. Caiada mas nalguns pontos amarelecida
pelas intempéries, ela projetava no quarto, à hora do meio-dia, quando os
raios de sol batiam de esguelha, feixes de luz furibunda. Outrora tinha visto,
não se lembrava já onde, um reflexo insuportável como aquele.
Havia já dois dias que permanecia naquele quarto, sentado perto daquela
janela.
Quando, na ante véspera, subira para o auto-bus, ignorava por completo o
seu destino.
Descendo em qualquer parte, à sorte, tinha alugado um aposento nesse hotel
de aparência modesta. Desde então nunca mais saíra, ficara à janela a olhar
a parede defronte e o patiozinho ajardinado do hotel. “Precisava de
regularizar certas coisas … Quais coisas? … Paulo … Paulo já não existe, e
se não quero afundar-me completa-mente, tenho de esquecê-lo. Regressarei
a Budapeste; acabou de todo este negócio, e, como é natural, Viena também
acabou para mim. Foi-se a Escola Politécnica o foi-se também Tilly. Mas …
Rosinha! É indispensável escrever a Rosinha … porém, primeiro que tudo,
é preciso abandonar esta cidade monstruosa, com a sua língua estranha,
seus lúgubres museus, suas bibliotecas terríveis, suas mulheres de cor e seu
forno crematório. Voltar para a Hungria.
Sim, mas como? O auto-bus, a alimentação durante dois dias, a gorjeta ao
rapaz, uma caixa de cigarros e os 14 xelins pagos adiantadamente por uma
semana de aluguel do quarto … com as 2 libras ainda que me restam. ..
onde vou eu parar?” Não fazia a menor idéia do valor do dinheiro que ainda
possuía, mas tinha a impressão de que devia ser medonhamente pouco, e a
distância entre Londres e Viena eram-lhe de maneira pavorosa ante seus
olhos. Com as pernas trémulas, desceu ao rés-do-chão e, com bastante
dificuldade, explicou ao proprietário do hotel desejar que telefonassem para
uma agência de viagens a-fim de saber o preço do bilhete para Viena.
Um suor frio lhe perlava a fronte enquanto escutava a conversação
telefónica do hospedeiro. “Dezassete libras”,! acabou este último por
informá-lo. Brotou nele, de súbito, um instintivo rancor contra Paulo:
tornou a ver o seu rosto pueril diante do espelho, seus olhos esbugalhados;
e, a evocação, um soluço interior pranteou o camarada perdido para sempre.
Findava a tarde desse segundo dia. As imagens evocadas esfumavam-se
cada vez mais e no lugar da saudade instalou-se um único pensamento:
partir … Partir dali …!
custasse o que custasse … Não querer saber nem de Rosinha, nem de Tilly,
nem de ninguém, mas partir para voltar para a sua terra! … Só então se
lembrou de certo troco recebido de Paulo no dia do suicídio, horas antes:
tinha mais duas libras na algibeira. Talvez pudesse viver com isso tudo
durante um mês …
E quando, na manhã seguinte, preparou o estojo de barba e fitou o próprio
rosto refletido no espelho, uma impressão dolorosa o oprimiu um momento,
mas isso durou apenas um segundo e uma vontade fria e resoluta lhe
insinuou logo no coração e no cérebro: “Passarei por cima destas coisas, irei
para diante! …” Na Legação da Áustria. Tinha vestido o fato azul
esforçando-se por dominar a tremura da voz, mandou anunciar-se ao
Conselheiro da Legação. Foi recebido por um indivíduo calvo, jovial, que,
no ouvir-lhe o nome abanou a cabeça em sinal de desaprovação. “Sim,
recordo-me do senhor, foi um caso muito desagradável. Que deseja?
Quer voltar para Viena? … O quê? Repatriado! Mas, que eu saiba, o senhor
não é cidadão austríaco, ou estarei eu enganado? …
- Não, húngaro …
- Não compreendo! Como é que as autoridades austríacas puderam, nessas
circunstâncias entregar-lhe um passaporte austríaco? …
Isto mereceria ser examinado a fundo … Seja como for, quanto ao seu
pedido, lamento não poder …
Na Legação da Hungria. Depois de o terem feito esperar numa vasta
antecâmara, acabaram por introduzi-lo num gabinete de trabalho ricamente
mobilado. Recebeu-o um homem novo, elegante, louro, de bigode à moda
tártara e de monóculo: “O senhor deseja? …” - “Eu tinha vontade de
regressar a Peste …” - “Regressar a Peste? … não compreendo visto que
possui um passaporte austríaco, ou dar-se-á o caso de o senhor ser cidadão
húngaro? … Tudo isto aparece aos meus olhos com um aspecto tão
suspeito …
Quando esteve pela última vez em Peste? … Em que mês? Porque saiu de
lá? … Em todo o caso, deixe-me ficar o seu passaporte, assim como os
outros papéis e algum dinheiro para as despesas de expediente. Se assim o
desejar, a Legação pode pedir informações, mas repatriá-lo … nem é
assunto para ser encarado …”
À tarde, sentara-se à mesa para começar uma carta: “Minha querida tia Ana,
meu querido tio Rudi”. Mas sentiu-se incapaz de traçar a menor linha no
papel, a pedir dinheiro aos velhotes. E quando, à noite, o estômago mordido
pela fome, se ergueu de ali, o que havia escrito era apenas o começo:
“Minha querida tia Ana, meu querido tio Rudi”.
No dia seguinte de manhã despertou fresco e bem disposto, e ele próprio se
admirou disso. Tirou da mala o fato cinzento claro e, como estava todo
amarrotado, tocou à campainha para o mandar passar a ferro. Meia hora
depois, saiu. Dinheiro na algibeira, caminhou a passo vagaroso, fitando
atentamente cada tabuleta, cada letreiro.
À hora do lanche, serviu-se dum bufete automático para meter na boca
alguns pastéis, não interrompendo assim o passeio. Tinha a cabeça repleta
de nomes de ruas e, no corpo, a fadiga de mais de quarenta vias percorridas.
No dia imediato, dirigiu-se de auto-bus, para outra parte da cidade, onde
vagueou ao acaso. À uma hora, bebeu uma chávena de caldo com um
bocado de qualquer coisa, e depois continuou passeando até às seis horas.
No quinto dia, o tom grisalho do asfalto rodopiava-lhe diante dos olhos e no
meio da rua, a visão do passeio produzia-lhe tonturas, Foi andando. Os pés
avançavam-lhe com uma regularidade mecânica, o ritmo do passo não se
alterara.
A sua respiração era regular. Aprendera a marchar assim no regimento,
durante os grandes exercícios; pena era que tal nunca lhe tivesse servido na
“frente”, onde era forçoso marchar duma maneira muito diversa. Fez toda a
diligência por não perder o bom-humor: Londres era uma cidade enorme …
e ele não podia rebentar ali de fome, sobretudo enquanto tivesse mais de
duas libras na algibeira, Na primeira cervejaria que encontrou bebeu duas
meias canecas, após o que novamente se lançou na rua; e, a noite, atirou-se
mesmo vestido para dentro da cama, porque nem forças tinha já para se
despir.
No princípio da terceira semana o mundo exterior começou de tornar-se
indistinto em seus contornos. Todos os dias percorria as ruas num passo
errante e quase demente na ideia fixa de descobrir um nome dum húngaro,
um indício da Hungria, e com a intenção bem assente de mendigar; e, ao
mesmo tempo, com essa passividade, essa impotência que o detinha e o
inibia de agir no próprio momento em que talvez o triunfo lhe fosse sorrir.
Na vitrina duma grande empresa comercial, viu um cartaz: “Precisa-se de
um Agente para o Continente e para os Balkãs estacionou uma boa meia-
hora em frente da vitrina sem se atrever a entrar. Tinha ainda algum
dinheiro na algibeira, não sabendo com exatidão qual a sua soma total, caía
uma chuva miúda e, ao atravessar a rua morna molhada, experimentava
como que a sensação de estar tentado a saltar às goelas do primeiro
transeunte. Caminhava por hábito, olhando sempre em frente e não já para
as tabuletas. Um auto-bus esteve a pontos de esmagá-lo no momento em
que passava rente ao passeio. Recuando por instinto, Kádár levantou os
olhos; viu no letreiro menção “Oxford Circus” e, neste instante, acudiu-lhe
uma idéia.
Entre Oxford Circus e a praça Langham ficava situado o hotel Langham.
Varga tinha-lhe dito, outro dia, que permaneceria ali até 10 de setembro.
Estava a 3 de setembro! … Subiu para o auto-bus com este já quase em
andamento; meia hora depois mergulhou na penumbra do átrio desse
elegante hotel.
“O sr. Varga, faz me o obséquio?” interrogou o porteiro. - “Nº 208”,
respondeu o empregado voltando-se devagar para o quadro das chaves.
“Nesta ocasião, não está cá.” Kádár sentou-se numa poltrona, frente à
entrada. Dez, vinte minutos, meia hora decorreram. Saiu e passeou outra
meia hora pela praça. Sim Varga ia livrá-lo de apuros. Mostrara-se muito
amável, da outra vez, quando do seu último encontro. Com toda a certeza
Varga o auxiliaria, com dinheiro e conselhos. Vivia há muito tempo em
Inglaterra e decerto viria em seu socorro, para o fazer regressar à terra natal
ou, então, para lhe conseguir em Londres um emprego.
Varga era rico e chique.
Cessara de chover. Voltou para diante do poiso do porteiro: o sr. Varga
continuava ausente. Sentou-se no átrio, tornou a sair, passou outra meia-
hora, engoliu uma sanduíche e um copo de cerveja, e por fim voltou ao
hotel. “O sr. Varga, faz-me o obséquio? …” - “Ainda não veio.” Doíam-lhe
os rins e sentia a garganta seca, quando transpôs pela terceira vez a porta
giratória. O relógio fronteiro ao hotel, marcava duas horas e meia. Rodou
sobre os calcanhares, voltou para o átrio, procurou assento numa poltrona
colocada numa reentrância da parede pegou numa revista ilustrada.
Despertou em sobressalto, piscou os olhos e olhou em volta, envergonhado
de se ter deixado adormecer. Felizmente, ninguém dera por isso. Procurou
com a vista o relógio de pêndula, de reflexos azuis, do átrio: indicava 5
horas e 10 minutos.
Em três passadas, correu ao balcão do porteiro. - “Faz-me um obséquio, o
sr. Varga? …” - “Sim, já entrou há aproximadamente meia hora.” -
“Obrigado”, respondeu Kádár dirigindo-se com passo incerto, para a
escada. As dores de rins voltaram a assaltá-lo e subiram-lhe pouco a pouco
à cabeça. Vamos, era necessário agora ter o raciocínio claro.
Segundo andar, nº 201 … 204 … 208. Suavemente, bateu à porta, revestida
de laca branca. “Yes!” disse uma voz masculina, no interior. Entrou: Varga,
de smoking, estava voltado para a porta, o semblante interrogativo. Numa
poltrona, uma rapariga loira envolta num impermeável azul e ostentando
um chapéu de seda brilhante, da mesma cor. “Desculpa-me vir incomodar-
te”, disse Kádar imediatamente, em resposta ao olhar admirado de Varga …
“Mas não me incomodas absolutamente nada, replicou o outro com
impecável cortesia, estou muito satisfeito por tornar a ver-te; desculpar-me-
ás, porém, de não estar só”, e apressou-se a fazer as apresentações. “O meu
amigo Kádár”. - “Miss Evelyn Campbell-Gray, irmã de um dos meus bons
amigos”. Atabalhoadamente, Kádár tentou justificar-se de se exprimir mal
em inglês e, com o rosto! purpureado de vergonha, disse a Varga em
húngaro: “Rogo-te o favor … um assunto muito importante … Poderia falar
contigo em particular? …” Num relance de olhos, Varga mediu-o da cabeça
aos pés: os sapatos estavam cobertos de pó mas em bom estado, o fato bem
passado a ferro … “De bom grado, estou à tua disposição: simplesmente,
nesse caso, tenho de pedir-te que te dês ao incómodo de acompanhar-me ao
salão.” Dito isto, Varga rogou mil desculpas a Miss Campbell-Gray,
prometendo-lhe voltar dentro de poucos minutos. Kádár fez uma mesura, a
jovem aquiesceu com um aceno de cabeça. Varga abriu a porta do salão e
deixou-o passar adiante. a janela larguíssima, formando triplico, do salão,
preenchia um vitral: o da luta vitoriosa de Jorge contra o dragão. Kádár
sentara-se em frente desse vitral, o busto empertigado, as mãos trémulas em
cima dos joelhos. Varga; postara-se diante dele, com os cotovelos fincados
numa mesinha redonda. Com os gestos lentos e circunspectos acendeu um
cigarro:
- Como vais de saúde, querido Kádár? Sinto-me feliz por me teres vindo
visitar; simplesmente, repito-te, é pena não me teres telefonado
primeiramente; poderíamos passar o serão juntos.
- Passar o serão juntos - repetiu Kádár inquieto; em seguida, erguendo os
olhos para o vitral, soltou um profundo suspiro antes de começar:
- Não te zangues, Varga, por eu me dirigir a ti em circunstâncias
extremamente delicadas … mas compreendes, aqui, em Londres” … porém,
logo às suas primeiras palavras, atrapalhou-se “Santo Deus, eu vou
mendigar!”: este pensamento trespassou-lhe o cérebro como um clarão.
- Pois bem! Que circunstâncias delicadas são essas? - perguntou Varga,
franzidas as sobrancelhas.
- Vejo-me numa situação terrível, sem que tenha a culpa disso.
Ao pronunciar estas frases, o rosto tingiu-se-lhe de pejo. Varga, porém,
posto em estado de desconfiança, perguntou-lhe à queima-roupa, abrigando-
se por trás de espessa nuvem de fumo:
- Em quê … de que maneira … que desejas tu de mim?
Esta pergunta aparecia formulada num tom tão humilhante, tão arrogante e
contendo já, previamente, uma recusa de tal modo decisiva, que Kádár no
seu pudor de pobre, se sentiu imediatamente invadido de cólera. Num só
gesto da mão, sacudiu o fumo que se interpunha entre ambos e declarou
numa voz seca:
- Dinheiro! …
O outro, fazendo soar um risinho semelhante a um ganido:
- Dinheiro? … Quererás explicar-te melhor, por favor? Kádár fechou então
os olhos e, engolindo a saliva, começou a sua narrativa:
- Tu já sabes que vim aqui em viagem de estudo com um rico jovem
vienense … na qualidade de preceptor, de mentor, de amigo mesmo …
Preparávamos precisamente para regressar … quando um malfadado
incidente … ele ficou esmagado debaixo das rodas dum auto-bus,.. e, agora,
eis-me apenas com duas libras na algibeira. Há já semanas que procuro uma
solução … e pensei que tu poderias emprestar-me o viático para ir para
casa …
Enquanto ouvia esta exposição o semblante de Varga cobriu-se de vincos
rígidos e o olhar fixou-se-lhe, desaprovativo, no do seu interlocutor.
- Há já semanas que ando à procura de um húngaro ou de um amigo que
estivesse em condições de auxiliar-me nesta difícil situação, adiantando-me
o custo da viagem … - prosseguiu Kádár.
- Meu querido amigo - disse Varga interrompendo aquela fala titubeante -
sinto muito a tua desventura, mas infelizmente não me é possível … A
viagem de ida para a Hungria custa, mesmo em terceira classe, uma quantia
bastante elevada, que lamento não poder emprestar-te, visto que eu próprio
vivo aqui sujeito a certos limites! Certos limites razoavelmente largos se
assim o queres … Mas emprestar-te dinheiro em semelhantes circunstâncias
equivaleria a fazer-te presente dele. Em compensação, se queres aceitar uma
pequena importância, a metade da que possues neste momento … -e, como
por encanto, uma nota de libra surgiu na sua mão, que estendeu a Kádár.
Dominando a tragédia da sua humilhação, este ouviu ressoar, no fundo de
si, um risinho grotesco. “Oferece-me uma libra …
Aha …! … e se eu lhe moesse a mão com pancada para mandar ao diabo a
sua esmola?! … pudesse isso, simplesmente, tirar-me de cima do peito este
peso! …
A voz de Varga tornou-se então benévola, enquanto recolhia a mão que
segurava o dinheiro:
- Mas porque não te diriges aos pais do teu aluno? - aconselhou. - No fim de
contas, não és responsável por um acidente e eles têm o dever de se
ocuparem de ti,! visto que não era para teu exclusivo prazer que …
O silêncio pairou por um instante. Kádár tinha a sensação de que uma
redoma de vidro multicolor e bizarra descia do teto, o envolvia e o separava
das coisas e dos sons do mundo.
Em sua volta era o silêncio completo.
As cores da redoma de vidro trespassavam-lhe as pálpebras e teve de cerrá-
las para que esse colorido alucinante o não cegasse.
Ouviu, vindos das profundezas longínquas, alguns fragmentos de palavras:
“a legação da Hungria … é o seu dever em casos desta natureza … A
legação da Hungria …” De súbito, levantou-se. Seus gestos eram dum
estranho e uma estranha voz pronunciou: “Obrigado, adeus”. Depois deu
meia-volta e achou-se à porta do salão, voltando as costas ao outro. Varga
alcançou-o em duas pernadas, mas Kádár continuou a andar, olhos fitos no
tapete vermelho. No largo corredor, Vargas disse-lhe num tom quase de
murmúrio:
- Lamentaria muito que um mal-entendido … lamentá-lo-ia
verdadeiramente.
- Não, não tem importância - respondeu Kádár, sempre descendo a escada e
sem voltar sequer a cabeça.
Encostado ao corrimão, Varga ficou um instante a vê-lo; depois, tossindo ao
de leve, encolheu os ombros, voltou-se e dirigiu-se para o corredor.
CAPÍTULO XII

Durante dois dias Kádár permaneceu em casa. Não tinha motivo algum para
sair e não teria sido aliás, capaz de o fazer. O céu transformava-se de quarto
em quarto de hora: agora chovia, logo o sol punha-se outra vez a brilhar, e
depois voltava a chover.
Como reação contra este remanso, na manhã do terceiro despertou cheio de
energia e do desejo de fazer qualquer coisa. A pé desde a aurora, envergou
as suas roupas melhores. A assobiar, barbeou-se cuidadosamente, tocou a
campainha pelo almoço; mal engolido o chá, com o último bocado de
torrada ainda na boca, encontrou-se no meio da rua. Percorreu quatro ou
cinco artérias, depois subiu para um auto-bus que o conduziu à margem do
rio.
A água, sob a luz do sol, fremia num tom pardo doirado. Em baixo, perto
dum embarcadoiro, estava amarrado um “gasolina” pintado de branco: um
marinheiro fez tinir uma sineta de timbre claro. Num dístico indicador, à
entrada do posto de embarque, lia-se isto: “Cattle Market Station …
Deptford.” Desceu rapidamente ao cais; um homem, de sacola na mão,
entregou-lhe uma chapazinha de cobre, com a qual subiu para bordo do
“gasolina”.
Cattle Market … Desconhecia ainda essa parte de Londres. A passo lento,
avançavam animais por cima duma pequena ponte. Começava a feira de
gado.
Atravessou a praça, contornou as casas ainda em construção, dirigiu-se ao
acaso para uma rua mais larga. Foi ao longo de diversos prédios de um ou
dois andares, chegou a uma estrada muito ampla, ocupada de um dos lados
por uma fileira de edifícios com quatro pavimentos que se estendiam a
perder de vista, ao passo que do outro se não via casa alguma, mas
unicamente uma paliçada escura, da altura de dois homens e de
comprimento infinito. Devia tratar-se de um vasto terreno para erigir uma
fábrica, e o que lhe ficava em frente eram, provavelmente, casas para
operários … Com efeito, ao longo do tapume podia ler-se em enormes letras
negras: BERTHAM’S DEPTFORD UNIVERSAL STEEL WORKS.
Kádár continuou sempre a andar, rente às casas; compreendiam estas
mesmo ao nível da rua, inúmeras habitações. Lojas, poucas; as que existiam
eram, por assim dizer, armazéns, como o testemunhavam as palavras
pintadas nas vidraças foscas: Coffee, Tea, Sugar, Milk, Flour, Bean, Bread,
Meat. Devia tratar-se de um importante distribuidor de géneros
alimentícios. “Aqui não há certamente nada para um estrangeiro”, pensou.
Daí a pouco descobriu, num recanto da rua, uma tabuleta de metal em que
se encontrava escrito: Dining room. Perto da porta, havia outro letreiro em
tom esverdeado, no que leu em caracteres que outrora deviam ter sido
vermelhos: Magyar-Vendéglö-Bor-Sör, Pálinka. Ao dar com os olhos nisto,
cortou-se-lhe a respiração. A mão tremeu-lhe tonto ou tão pouco sobre o
fecho da porta, o qual figurava um bico de pato, que foi incapaz de abri-la;
minutos decorreram antes que, do interior, alguém lha viesse abrir. Achou-
se então dentro da locanda e, com o peito arquejante, mil zumbidos nas
fontes, a língua a balbuciar, pronunciou no idioma materno: “Bom-dia”. Um
rapazinho alto e franzino, posto atrás do balcão, olhou admirado para ele,
após o que, sem dizer palavra, desapareceu por uma porta envidraçada; e,
um instante depois, um ancião de barbas, com um avental verde preso à
cintura, seguido de uma mulher menos idosa do que ele, pálida, de faces
cavadas como as do rapazinho, encontrou-se na sua frente. “Senhor! essas
suas palavras, essa saudação em húngaro … seja bem-vindo a esta casa …
É então húngaro … quem o mandou cá? … Veio de Peste? …
Como sabia o senhor da nossa existência aqui? … Na verdade, o senhor é
húngaro? …
A locanda estava quase vazia. Unicamente a uma mesa se via sentado um
homem andrajoso, diante de uma caneca de cerveja, a cabeça deitada sobre
o tampo, entre os dois punhos cerrados, imóvel como se estivesse
dormindo. As outras três pessoas, vermelhas de comoção, excitadas pelas
suas próprias vozes, apertavam-no com perguntas, não lhe deixando sequer
tempo para responder.
Alguns momentos depois sentaram-se todos num vasto aposento do rés-do-
chão, com janelas resguardadas por redes de arame. Essas janelas davam
para grandes terrenos vagos. Pouco a pouco a torrente das perguntas
atenuou-se. Conseguiu Kádár explicar-lhes que fora por acaso que se
perdera naquelas paragens e que só depois de ver o letreiro em húngaro se
decidira a entrar. “Vês tu”, disse o velhote voltando-se para a mulher,
“razão tinha eu em dizer-te, já o ano passado, que puséssemos o letreiro:
não podia causar-nos prejuízo e devia, sem sombra de dúvida, atrair os
húngaros que fizessem passagem por aqui”.
Quando perguntaram a Kádár o motivo por que viera àquele bairro e o que
fazia em Londres, toda a sua reserva se fundiu imediatamente na presença
desses desconhecidos. Narrou-lhes tudo: a viagem em companhia de Paulo,
a sua vida em Viena, a agressão de moca de cauchu com que fora
gratificado em Peste, e a seguir a recordação dos dias mais recentes, o
revólver, os passeios sem fim nem motivo, até chegar a catt Market. As
frases saíam-lhe da boca em rajadas incoerentes, como lava em erupção.
cada uma dessas palavras chorava a sua miséria, e quando ele findou, os
outros olharam-no com estupor e comiseração;
durante longos minutos reinou completo silêncio no aposento. Foi ele
mesmo quem o rompeu fazendo-lhes, por seu turno, algumas perguntas: “E
vossemecê, como é que vieram para aqui? …” O ancião, por sua vez, pôs-se
a falar com volubilidade, na volúpia de se entreter, de poder falar de si
próprio outro húngaro. Fora em 1910 que começara a aventura: Paulo
Csordàs, seu filho, socialista convicto, subtraíra-se ao serviço militar e
refugiara-se em Londres. Após um ano inteiro de trabalho, ele havia
economizado o bastante para mandar vir a família. Esta, com o produto da
venda da locanda que o pai tinha em Peste, abrira este restaurante húngaro
mesmo em frente da fábrica onde trabalhavam muitos compatriotas. Os
negócios tinham marchado à medida dos seus desejos. Os operários, tanto
os húngaros: como os nacionais do país, tinham-se habituado a tomar ali as
refeições; as moedas miúdas e os xelins foram-se amontoando em cima da
caderneta da caixa econômica com o seu nome, e todos se sentiam felizes.
Até que veio a Grande Tormenta … Durante a guerra, tiveram de passar por
muitas provações. Se bem que a filha houvesse casado com um inglês, as
complicações não lhes foram poupadas. Estas não cessaram senão no dia
em que seu filho Paulo se alistara voluntariamente no exército britânico. Ele
caíra morto em Arras. Agora, os dias lá iam correndo, o restaurante
prosperava e, desde 1914, era aquela a vez primeira que falavam com um
húngaro recém chegado da pátria.
Durante a conversa, começou de germinar uma ideia na cabeça de Kádár.
Observou o velho: o seu rosto, emoldurado de suíças, tinha uma expressão
simplista e ingénua. Os cabelos estavam já grisalhos e era alto e corpulento.
Se desse de cara com ele no meio da rua não pensaria ter diante de si um
húngaro. O olhar de Kádár transferiu-se logo a seguir para a mulher: tinha
um semblante pálido e fatigado, sob cabelos negros com madeixas
esbranquiçadas.
Os olhos dela tinham um tom azul deslavado. As mãos eram mal cuidadas,
o modo de andar lento e sem aprumo. O rapazinho, que podia ter aí os seus
quinze anos era tal qual os outros rapazes ingleses da sua idade. Proferia a
custo algumas frases em húngaro … Era pois a família … “Devo falar-lhes
agora … ou será melhor adiar isso para amanhã? … Não é conveniente
mostrar-me em grande aperto … Por outro lado, não devo perder ocasião
tão favorável”. Nesta altura das suas reflexões a voz do velho interrompeu-
as, convidando-o a ficar com eles para almoçar. De súbito decidido, pôs-
lhes então a questão à queima-roupa: “Escutem, vossemecê já sabem tudo a
meu respeito … Não poderiam confiar-me um trabalho qualquer? … Não
poderia eu ficar convosco até encontrar outra coisa, ou até possuir meios
para voltar para a minha terra? …” A sua voz era serena e firme. No fim de
contas, o velho Csordàs não passava de um taberneiro e a locanda de
Deptford não era o hotel Lang-ham.
No dia seguinte de manhã, arranjou as suas malas no hotel e, uma hora
depois, estava em casa dos Csordàs. Na véspera o velho não perdera muito
tempo a refletir, talvez por causa das recordações evocadas por aquele
compatriota surgido imprevistamente, ou fosse porque o filho falecido devia
andar pela idade de Kádár na época da sua vinda para Londres, ou ainda
mui simplesmente na esperança de contratar um criado a baixo salário. Ante
a proposta de Kádár ele olhara um instante no vago, consultara em seguida
a mulher, que estava ao balcão, e, ao fim de poucos minutos de deliberação,
declarara-lhe:
“Bem, pode ficar. Vai ajudar-nos no restaurante e em casa; como é natural,
isto é provisório, - não sabemos por quanto tempo poderemos conservá-lo
cá; - dormirá num dos quartos, terá cama, mesa e roupa lavada; nado, é que
não, mas se nos ajudar a servir os fregueses terá a sua parte nas gorjetas.
Não será coisa por aí além! mas sempre dará, mesmo assim, um pouco de
dinheiro” Em vista disto, apresentou-se no dia imediato em casa dos
Csordàs.
Contígua à locanda era a grande sala de jantar, que continha umas trinta
mesas; por trás ficavam cozinha e quatro quartos, cujas janelas deitavam
para um terreno ainda sem aplicação, dando as portas deles para corredor
comum, escuro.
Foi no último desses quartos que o instalaram; o seu leito ficava a um canto,
perto da janela. Nesse mesmo quarto existia outra cama, a de Maria a criada
que ajudava a senhora Cresse, nora de Csordàsi “Ela está na nossa casa há
já quatro anos; mas se não gostarem de ficar os dois no mesmo aposento,
não ter mais do que dividir o quarto em dois por meio deste resposteiro”.
A tarde principiou a tomar conhecimento com a nova roda de gente com
quem ia conviver.
Vagueou por todos os recantos da locanda, saiu à rua, familiarizou-se com o
“patrão”, com o rapazinho, com casas da circunvizinhança; caída a noite,
deitou-se na sua cama asseada, com tanto bem-estar como se tratasse de um
dos mais luxuosos aposentos do Savoy Hotel como se dispusesse de sólido
depósito bancário para fazer face a um tipo de existência elegante. Todavia,
logo de manhã, começou vida nova: erguer-se às cinco horas, pôr um
avental verde, varrer o chão … Já dada a meia-noite, caiu no leito como
uma pedra cai num poço, tão fatigado que nem reparou na presença de
Maria, a qual, na outra cama, respirava tranquilamente, boca aberta, o corpo
descoberto até à cintura, pois, imersa no sono e por causa da temperatura
tépida dessa noite do princípio do outono, tinha afastado de si a roupa. Não
reparou tampouco que ela não correra o reposteiro, suspenso a meio do
quarto.
Quando, pela madrugada, despertou, Maria já estava na cozinha. Levantou
os estores e olhou para fora, terrenos desocupados além. Chovia, o céu
apresentava-se todo cinzento e apenas ao longe, cimeiros às altas chaminés
das fabricas, dois claros feixes de luz o trespassavam. “Tenho trabalho”
pensou. “Graças a Deus tenho trabalho, mediante o qual posso comer e
abrigar-me debaixo de telha e ter um armário onde arrumar as minhas
coisas”. Invadiu-o uma grande confiança, abriu a torneira e colocou a
cabeça por baixo dela. - Varrer, esfregar o sobrado, limpar de pó as janelas,
transportar pacotes numa carrocinha de mão, dar lustro aos móveis … sair-
se bem disso tudo. O pior, porém, era ter de lavar, em água gordurenta,
fétida e morna, a baixela ainda com restos de comida. Sentia repugnância e
o estômago de tal modo se lhe transtornou ao fazê-lo que, todo o dia, não
conseguiu engolir fosse o que fosse. “Hei-de habituar-me”, disse consigo
próprio, cerrando os dentes. “Vale mais isto que rebentar de fome no meio
da rua”. E veio a habituar-se, de facto. Familiarizou-se cada vez mais com o
velho Csordàs, com as suas alternativas de bom e de mau humor, com a
doce e serena Margarida Cresse, que escondia a sua existência mortificada
sob um trabalho obstinado de dona de casa; assim como se familiarizou
com Júlio, esse rapazote um nadinha pateta, com os dois aborrecidos
criados do restaurante, com a freguesia proletária e, por fim, com a baixela,
a água suja e o avental verde.
As moedazitas que recebia, a título de gorjeta, perfaziam xelins. Passava as
tardes de descanso sentado na locanda, a conversar com um dos seus
remelosos frequentadores. Até que uma noite, no momento em que,
terminada a faina, entrava no quarto, notou Maria na tépida semi-nudez da
sua camisa. Era uma inglesa corpulenta, nem já muito nova nem
precisamente muito velha. Anteriormente, mal lhe tinha posto a vista em
cima durante o dia e apenas algumas palavras trocara com ela. Segundo o
seu hábito, acendeu tranquilamente a eletricidade. Maria não buliu sequer,
continuando a dormir. A fina colcha da cama que ela, com os cotovelos,
mantinha repuxada, denunciava-lhe nitidamente as formas. A camisa,
tendo-lhe deslizado pelo ombro abaixo, patenteava um seio branco e roliço.
Recordou-se neste instante de que, desde a sua chegada ali até à data, nunca
Maria fizera correr o reposteiro; e recordou-se também de que depois de
Elisa, isto é, havia perto de dois meses, não conhecera intimamente mais
mulher alguma. O desejo invadiu-lhe todo o seu corpo; mas, imediatamente,
tudo se lhe tornou confuso diante dos olhos até formar uma nuvem
atrigueirada, cor da pele de Yomaia … e um horrível sopro glacial varreu
essa súbita e ardente cobiça. Apagou a luz, atingiu, nos bicos dos pés, a sua
cama, enterrou a cabeça na almofada - e já o ruído das primeiras carroças
do leite alterava a calma da madrugada quando conseguiu adormecer, com
uma respiração opressa como a do estertor. O pérfido outono invadiu
subitamente a cidade. Como por obra de traição, uma noite, achando-se ele
à porta, depois de despedidos os últimos fregueses, pôde ainda ver; no
firmamento as estrelas cintilando com brilho esplêndido; mas, logo na
manhã imediata, caiu uma chuva torrencial. Nos dias seguintes choveu
ininterruptamente. Sem transição, sobreveio o frio. Passados uns dias mais,
os fogões de coque tiveram de passar a estar continuamente acesos nas
salas. Kádár não queria contar os dias mas dava vagamente conta de que
semanas tinham ido passando, e os Csordàs mantinham-se sempre tão
amáveis com ele como no primeiro dia. Executava conscienciosa-mente a
sua tarefa, e eles, em troca, cumpriam a promessa feita. As primeiras noites,
após esse trabalho manual até então desconhecido para ele, remataram num
sono profundo e negro. Depois, a par e passo que o corpo se lhe acostumava
aos mil gestos dessa labuta caseira, maquinal, porca e humilhante, começou
o drama noturno dos sonos entrecortados e das insónias. Enquanto Maria, a
criada, roncava no leito próximo, num sono sadio e profundo, assaltavam-
no várias perguntas torturantes: “A que estado chegaste tu? … em que é que
se converteram a tuas grandes resoluções? … Para que te serviram a
musica, os livros e o descobrimento de tantas coisas novas? … De que te
serviu sobreviveres à guerra, não teres sido fuzilado pelos romenos, não
teres morrido de fome quando estavas sem trabalho, não te ter levado a
escarlatina? … De que te serviu finalmente, não te veres arrastado para a
morte, contaminado por um amplexo funesto? … Que vantagem houve em
teres sido sempre protegido por qualquer coisa que nunca deixava de
indicar-te a via a percorrer e que te segurava de cada vez que estavas em
risco de te despenhares? …” E, para todas estas interrogações, vinha a
resposta única, na brutal violência duma machadada: “Para atingires a
situação de criado numa baiúca de Deptford! …” Certa noite de inverno, ao
despertar dum sonho confuso e pesado, notou que Maria estava sentada na
cama. Perguntou-lhe, a meia voz: “Maria, então não dormes? … - “Não,
respondeu ela, e tu?” O silêncio reinou durante muitos minutos. O peito
dele arquejava furiosamente, os seus olhos viam andar tudo à roda, numa
nuvem incandescente e movediça. Com avidez, aspirou num hausto
profundo o odor noturno desse quarto escuro, desceu da sua cama e, com os
joelhos trémulos, dirigiu-se para a outra cama …
Que mais queres tu, António Kádár, depois do avental verde, da vassoura,
da comida abundante com cerveja gratuita e banhos quentes aos domingos
de manhã, devidos à paternal bondade da família Csordàs,.. e depois do
humilde abraço de Maria?! …
CAPÍTULO XIII

O tempo foi correndo. já em perto de dois anos que se encontrava em casa


dos Csordàs. Já não sabia nada mal o inglês. As mãos tinham-se-lhe tornado
ásperas e avermelhadas. Começava a ser conhecido no bairro. Adquirira
camaradas entre os operários da fábrica, estava com precisão ao corrente do
valor de toda equipe nos campeonatos de foot-ball, e a faina doméstica de
cada dia mais que passava recobria, como véu espesso e cinzento, Paulo, os
livros, a Universidade, os seus sonhos de triunfo. Por trás das noites ao lado
de Maria desvanecia-se a saudade de Tilly. Tudo sofria redução e tudo se
obscurecia a seus olhos, agora; não queria pensar no passado, nem nele
poderia pensar mesmo que quisesse …
Uma manhã, outro húngaro veio por acaso parar ao restaurante. Kádár
achava se precisamente ao pé da porta, a olhar a rua. Um homem de chapéu
verde dirigiu-se ao seu encontro. Chegado à entrada, o desconhecido parou:
e, apontando a tabuleta, disse em húngaro: “Olha, não sabia da existência
dum restaurante húngaro em Londres! …” Depois, olhou para Kádat
atentamente. Este, apertando-lhe a mão, respondeu: “É como vê; que faz o
senhor por aqui? …
Entabulada assim a conversação, o desconhecido entrou.! O velho Csordàs
não estava em casa: encontraram-se, pois, sentados à mesa com os três:
Margarida Cresse, Kádar e o recém-vindo. Este último - o seu nome era
Estévão - excitado pela cerveja e pelo uso da língua materna, falava com
volubilidade. Contou que era criado de quarto do sr. Szervinszki,
conselheiro da Legação. Tinha vindo àquele bairro à procura dum antigo
criado do amo, por causa dumas botas que tinham desaparecido da casa.
Falou que se fartou do patrão, cavalheiro distinto soberbo mestre de
equitação, muito amado pelas formosas e lindas inglesas … Depois, entrou
a falar de si próprio explicando que viera para Londres por recomendação
do seu anterior amo, um inglês que residia em Budapeste que, após uma
estada ali de meses apenas, tivera de parti para a África. É uma história
engraçada, comentou ele. O meu amo é das relações da família dum
arquiteto! pessoas extremamente ricas, em casa das quais se encontrou com
uma viúva cujo marido fora sócio do arquiteto em referência. Ora,
imaginem vossemecês, essa viúva é de origem húngara, natural de Kassa.
“Ouve, Estévão disse-me o meu amo, repara nessa mulher … ali onde vês, é
uma desembaraçada mulher-homem … que por si própria administra os
seus negócios. Repara bem nela, disse-me ainda o meu amo, numa dada
manhã em que me mandou entregar-lhe um ramo de flores. Dirigi-me a casa
da senhora, com o ramo, e, visto já saber que era húngara, saudei-a na nossa
língua materna … “Beijo-lhe a mão, senhora! {14} Isto constituiu para ela
uma agradável surpresa. Interrogou-me a respeito da minha vida, quis saber
se gostava de estar em Londres e, de assunto em assunto, expliquei-lhe que,
não obstante a bondade do meu amo para comigo, tinha certos receios
quanto à estabilidade do meu lugar, dado que estes senhores da legação o
expedidos, ao sabor do acaso, para todas as partes do mundo. Ela desatou a
rir e, percebendo que eu desejava oferecer-lhe os meus serviços, respondeu
que não residia em Londres, mas sim em África, no Cabo, para aonde, se
me apetecesse, estaria disposta a levar-me. Sentir-se-ia muito feliz tendo um
compatriota ao seu serviço, entre todos aqueles estrangeiros. “Agradeço-lhe
muito, respondi-lhe eu, mas é demasiado longe para mim … Desses países
longínquos, não se volta mais”.
E Estêvão Tóth prosseguiu a narrativa falando ainda do amo, da boa vida de
Londres e das bonitas londrinas a quem seu amo punha as cabecinhas à
razão de juros …
Enquanto o homem falava, do mais íntimo de Kádár surgiu essa qualquer
coisa misteriosa, esse grão que, no moinho da sua vida, emperrando as mós
prestes a esmagá-lo, impedia sempre, por fim, que viesse a ser aniquilado.
- Como se chama essa mulher? - perguntou incidentemente, pressentindo
estar em vésperas de um acontecimento decisivo.
- E a senhora Maier, ou um nome assim parecido, replicou o outro.
Após esta resposta, Kádár deixou de prestar a mínima atenção a Estêvão
Tóth; as restantes palavras que lhe ouviu ficaram, para ele, desprovidas de
sentido. Andava-lhe a cabeça à roda e, dando-se o caso de entrar um
freguês, correu para o balcão; mais tarde, não se sentou à mesa sem,
primeiro, ir direitinho ao quarto do velho Csordàs, onde pegou na lista dos
telefones: aí, com tremor de mãos, procurou a rubrica dos arquitetos. A
indicação que viu logo à cabeça da coluna, foi esta: Abley Alcxis Hutton,
Mfers and Soclt, 42, Piccadilly. Myers, era sem dúvida a senhora Maier
citada por
Estêvão Tóth. A rede de arame pôs-se-lhe a dançar diante dos olhos,
pareceu-lhe que o teto ia desabar, quase a estante encostada à parede se
recusava a receber o volume que lá pretendia colocar, com irresoluta mão.
Através da porta aberta, ouviu a voz monótona do comensal, e no meio
desse caótico turbilhão do seu cérebro repercutiu um único ruído, um único
raio de luz cintilou, clamando e iluminando a direção: Piccadilly, 42.
CAPÍTULO XIV

- O senhor é arquiteto diplomado?.. - perguntou a senhora Myers, em


solteira Helena Szabó, de Kassa.
Não, ainda não - respondeu ele num tom desembaraçado. Até agora fiz
apenas dois exames … mas creio ter ideias aproveitáveis …
Ela encontrava-se sentada a uma secretária comprida e larga, ao passo que
Kádár tomara lugar, em sua frente, numa poltrona baixa. O aposentozinho
tinha por único mobiliário duas poltronas mais e um armário envidraçado,
de pequena altura, que encostava à parede do fundo.
Como ó que ali aparecera Kádár? … No dia seguinte ao da visita da Estêvão
Tóth havia pedido ao velho para lhe conceder dispensa da parte da manhã.
Correra para o banho, envergara o seu belo fato cinzento e, às onze horas,
achava-se perante uma casa de três andares, de soberba aparência, em
Piccadilly, A seguir a uma noite de insónia, os vapores demasiadamente
fortes do banho matinal estimulavam-lhe o corpo. Por cima da porta via-se
uma placa de mármore negro, diferindo de um bilhete postal apenas em ser
um tanto maior, onde se lia: “Abley, Alexis, Ihtlton, Myers and Scott,
achitects. Fizera soar a campainha da porta branca e baixa do primeiro
andar, em que minúsculas letras negras anunciavam: Office-Burean. Um
rapazinho de libré acorrera a abrir.
- Eu desejava falar à senhora Myers.
- Para efeito de serviço, ou para assunto particular? … para assunto
particular.
- Nesse caso, tenha a bondade de procurá-la no hotel Berkeley.
Sentira o sangue gelar-se-lhe quando, pelas cinco horas e meia, fora
perguntar ao porteiro do hotel Berkeley: “Mrs. Myers está, faz-me o favor?”
- “Está nos seus aposentos”, respondera o porteiro, indicando-lhe o número
do quarto dela.
Passado um instante encontrou-se, numa espécie de ante-câmara, perante
uma mulher com aspecto de governanta. “O senhor procura Mrs. Myers?
Da parte do quem, tenha a bondade?” - “António Kádár … Faça o favor de
dizer-lhe que sou húngaro e que lhe peço uma curta entrevista”.
Dois minutos decorridos, descerrara-se a porta envidraçada do aposento.
- É húngaro e deseja falar comigo? … - dirigira-lhe esta interrogação uma
mulher vestida de luto, ainda bastante nova.
A alta e robusta estatura de Kádár, o seu fato de bom corte e os sapatos
elegantes, os seus cabelos muito louros, o seu semblante claro e o olhar
franco, não denunciavam o mendigo. De facto, Kádár nada tinha de
mendigo nessa ocasião.
Pela tensão súbita dos seus nervos, pelo arroubo da sua imaginação, pela
sua decidida resolução a tudo, era o poeta dum sonho magnífico, o general
duma batalha decisiva, e, se tanto fosse necessário, seria o autor dum crime
abjeto.
Apresentara-se a si mesmo, num tom de voz suave e despreendido; com
gesto firme, levara aos lábios a mão da mulher para a beijar; em seguida,
com ar desenvolto, rogara-lhe que lhe concedesse uma breve conversação.
Admirado, quase estupefacto, observava a sua própria voz, os seus próprios
gestos. “Estou a desempenhar bem a comédia, ou estarei talvez a ser
ridículo sem me dar conta disso?” interrogou-se com angústia. A linguagem
empregada era castigada, a sua pronuncia saía muito pura, as palavras de
que se servia eram simples e, simultaneamente, escolhidas. Nada omitira,
nada esquecera; e, quanto a ela, achara-se logo desde os primeiros instantes
sob o encantamento da língua materna. Haviam atravessado dois
compartimentos sumptuosamente mobilados, após o que, acomodando-se
no gabinete de trabalho, ela o convidara a sentar-se defronte.
Disfarçadamente, Kádár tinha-se aplicado a observá-la bem. Ela dava-lhe só
pelos ombros, mas era de aparência fresca e jovem. As feições enérgicas do
rosto fundiam se nos doces tons da tez ligeiramente crioula. Os cabelos,
curtos e negros como azeviche, obedeciam a um penteado que os puxava
para a fronte. Os olhos eram da cor dos cabelos. No momento em que ela
acendeu um cigarro, reparou-lhe nas mãos: mãos delicadas de dedos longos,
cujas unhas eram de esmalte cor de rosa. “Sou mais alto do que ela, sou
louro, tenho os olhos azuis, e é na verdade uma linda mulher …” Esta
silenciosa observação e esta comparação involuntária foram interrompidas
por Mrs. Myers, que lhe ofereceu a caixa de cigarros:
- Com que então, é húngaro? …
- Sim, minha senhora … isto é, se assim quiserem, um pouco cosmopolita.
De origem transilvânica, descendendo de uma família saxónica, fiz os meus
estudos fora de Budapeste, em Viena e na Alemanha, e depois também na
Suíça e em França, onde vivi uns meses. Os anos de estudo não são bons
senão quando variados. Infelizmente, não está a Europa central, nem
mesmo todo o continente europeu, - disse isto expelindo para o ar uma
espessa nuvem de fumo e franzindo as sobrancelhas, - em condições de
satisfazer a ambição e a imaginação dum rapaz moderno. A liquidação da
guerra , (com que voz estranha pronunciou ele estas palavras?! …), o
continente em falência e já mesmo falido … (aquela voz era a de
weuerstein! …), a ruína moral e material da Europa … Na verdade, se um
jovem deseja conquistar o seu lugar ao sol não tem outra solução que não
seja a de emigrar para a América, ou então …
- chegado a este ponto, como por acaso, ergueu os olhos para ela - numa
colónia duma grande potência.
- Quais são, nesse caso, os seus projetos? …
- Não os formei ainda; nesta ocasião conservo-me em Londres e colocar-
me-ei, talvez ainda sem ordenado, na empresa de algum arquiteto de nome.
- É arquiteto diplomado?
- Não, ainda não. Até agora fiz apenas dois exames, mas creio ter ideias
aproveitáveis …
O rosto da senhora Myers carregou-se de sombras por um instante, mas o
tempo suficiente para que ele o percebesse. Kádár estava já à espera de que
ela lhe dirigisse a pergunta: “Como é que o senhor obteve a minha
direção? …” - Na Legação. - Escapou-lhe esta resposta e logo, medindo a
imprudência, um calafrio o percorreu todo, “isto é … por intermédio de um
dos meus amigos, que tem pessoas conhecidas na Legação … e como a
senhora é húngara …” - Ah! • exclamou Mrs. Myers, levantando-se e indo à
mesa de fumo acender um novo cigarro; depois, num movimento brusco,
parou diante dele e disse-lhe olhando-o fixamente nos olhos:
- Oiça-me. Eu não sei quem o senhor é, mas peço-lhe uma resposta franca a
respeito de dois assuntos. Eu quero fair play {15} entende?,.. Sabia, antes de
vir aqui, que pelo lado do meu falecido marido, eu estava associada a uma
grande empresa construtora? …
- Perfeitamente - respondeu ele - sentindo o peito estalar de emoção
intensa … e se o não soubesse já, sabe-lo-ia pela placa da vossa firma …
- Bem - prosseguiu ela - e veio cá para que eu lhe consiga emprego na nossa
empresa? …
Kádár sentiu a tentação de prosternar-se-lhe aos pés, diante dos seus
sapatinhos pretos, de lhe contar a vida de sofrimentos que levara, em
palavras para ela inéditas ainda e às quais não deixaria de prestar ouvido
complacente, de lhe dizer tudo, os destinos, as vidas e os homens com quem
se cruzara no mundo.
Sentiu a tentação de lhe dirigir uma súplica, no tom dum homem que nasceu
com alma de mendigo, ou então com a franqueza dalguém que merece
melhor sorte, e de se não erguer antes de lhe ser assegurada uma situação
em que ganhasse quatro libras por semana … Mas não! … não podia ficar a
meio do caminho; não existiam para ele senão duas possibilidades: ou
tudo … ou a esmola de uma libra do Varga. Então, com os nervos em tensão
máxima, por trás de uma fronte sem rugas e de uns olhos que sorriam, ao
mesmo tempo; amáveis e orgulhosos, declarou:
- Um emprego num escritório de Londres! A senhora é muito amável: mas,
desculpe-me, não é isso que pretendo.
Enquanto falava assim, estendia a mão para a caixa de cigarros, mesmo
dispensando convite. Após, suspendeu-a um pouco e, por fim, pousou-a
docemente, sem tremor, na borda da mesa. E os olhos dele procuraram, num
olhar límpido, os da mulher:
- Mas … se quiser levar-me consigo para a África, irei.
Decorrido algum tempo achou-se a deambular em Piccadilly. Tudo era
exultação dentro dele; tinha a impressão de ter ganho a primeira partida.
Mrs. Myers não o escorraçara! Não …
No momento em que declarara; “Em compensação, se quiser levar-me para
a África, irei”, o olhar da mulher parara um instante, estupefacto, no rosto
dele para se desviar imediatamente, e depois ela mudara de conversa.
Dirigira-lhe perguntas relativas à Hungria, donde partira onze anos antes, na
idade de 17 anos, com o falecido Mr. Myers, o onde os seus consócios
tinham a sede da empresa Em 1913, contudo, estavam já em Sidney; Mr.
Myers dirigira, efetivamente, os negócios coloniais da firma e, desde 1927,
ela vivera com o marido em Porto Isabel, até o horrível desastre sucedido
no ano anterior. Nesta altura da narrativa, os olhos da mulher tinham-se
enchido de tristeza - Mr. Myers tomara o avião para Dublin e, ao chegar às
proximidades de Londres, por cima de Watford, o avião sofrera um
desarranjo no motor, incendiara-se e despenhara-se de uma altura de 700
metros … Em seguida falaram de outras coisas, do próprio Kádár, dos pais,
fabricantes de papel antes da guerra, dos seus amigos de Londres em casa
de quem se instalara e que eram proprietários de muitos prédios nos
arrabaldes da cidade, do seu amigo, o jovem milionário vienense, com
quem viera em viagem de estudo pelo espaço de alguns meses e que fora
vítima de um estúpido acidente de trânsito … Não lera ela isso nos
jornais? … De novo a conversação tomou o rumo de Pôrto-Isabel. Ela dera,
há pouco, por terminadas as conferências com os sócios: ia zelar os seus
interesses na firma, por si própria se ocuparia dos negócios coloniais. De
resto, nesses quatro anos últimos, tinha tido ensejo de iniciar-se nos
negócios … Era boa gente, a de lá. No fim de contas, ninguém podia
defender melhor seus interesses do que o próprio interessado e no local
onde eles existiam. E depois, sobretudo, quando uma pessoa já viveu no
Cabo, quase que não pode ter satisfação em viver noutro lugar qualquer.
Voltar à Hungria? … Sim, talvez um dia, na qualidade de turista, dissera ela
rindo; mas, verdade verdade, não sentia a nostalgia da terra natal, se bem
que, às vezes, experimentasse o desejo de falar a língua materna. Assim,
recentemente, um criado de quarto húngaro, oferecera-lhe os seus
serviços … Kádár dominara-se, ao escutar tal, para não se pôr vermelho e
só ele ouvira as violentas pancadas do seu coração). Por fim, despedira-se
dela com licença de lhe telefonar, dentro de poucos dias, e retirara-se.
Pôs-se a passear pela rua. A primeira partida estava ganha. Mrs. Myers
devia estar sem dúvida, naquele mesmo instante, a perguntar de si para si o
que quereria ele dela. As palavras pronunciadas voltaram-lhe à memória e,
ao evocar a imagem da mulher, teve a certeza infalível de que ia ter início
em Piccadilly a sua ascendente carreira para o triunfo, para a riqueza, para o
Dinheiro! …
De passagem, mirou-se no vidro que revestia a frontaria duma loja. Deixava
de ser preciso pôr de parte aquele fato … nunca mais teria de pôr o avental
verde! … O céu, todo ele, era uma redoma cinzenta, da qual, de quando em
quando, a chuva caía. Tinha de viajar em auto-bus e de taxi. De quantas
outras coisas mais iria ter necessidade, nesses dias próximos? … Liberdade
e, sobretudo, dinheiro … Como consegui-lo … A quem o pedir? Obtê-lo de
quem? …
Os velhos Csordàs não lho dariam, certamente … Talvez Margarida? Ela
não o tinha para si própria e, aliás, a que título lho daria, se o tivesse? …
Júlio? … tirado dos seus dois xelins por semana, para gastos miúdos? Não
possuía já senão uma libra e alguns xelins … E, todavia, tudo dependia
disso.
Na extremidade da Feira de gado ficava o “Barbanfs pitblic House*, no
átrio do qual havia três aparelhos de jogo automáticos, com paradas que
eram, respectivamente, de um penny, de meio xelim e de um xelim. “Eu era
lá capaz de arriscar dinheiro, por menos que fosse, neste jogo de azar?!”
Rapidamente, decidido a isso sem mesmo saber como, encontrou-se diante
do aparelho automático de xelim a parada a dizer de si para si: “Nasci em
1898; soma estes algarismos 26:2 e 6 fazem 8. Colocou na abertura
correspondente ao número 8 um xelim e puxou a argola … Os cavalos
andaram à roda e o cavalo cor de rosa, com o número 8, parou em cima da
linha vermelha, indicadora da baliza. Á máquina soou e duas moedas de 73
xelim caíram na bandeja. Pegou no que acabava de ganhar e tornou a metê-
lo na mesma frincha e a puxar a argola.
Novamente os cavalos rodaram, até que o cavalo cor de rosa se deteve sobre
a linha vermelha: o automático deu alegre sinal … “O ano do meu
nascimento, é um bom canudo!” comentou consigo mesmo. O cavalo cor de
rosa deu-lhe, pela terceira vez, o ganho de um xelim … Então, pensou no
ano de 1908, o da sua entrada no liceu de Peste. Resultado da adição dos
algarismos: 9. Agora, o cavalo verde, que era o nono, parou em cima da
linha vermelha. Kádár encheu se de um riso íntimo. Olhou o relógio
dependurado no átrio; eram duas horas e meia. Alguém parou por trás dele e
ficou a observar o jogo. Voltou a pôr um xelim na fresta sobranceira ao 9.
Desta vez foi um cavalo roxo que parou na linha vermelha, e um som
metálico e a modos de malicioso retiniu, assinalando o seu revés. Teve um
estremecimento, mas recuperou a serenidade imediatamente. Aquilo não era
nada.
Introduziu outro xelim na frincha do número 9. Saiu vencedor, desta feita, o
cavalo negro: o aparelho fez ouvir novamente a sua voz de matraca. Não
obstante, o outro xelim no mesmo número 9! O cavalo negro venceu outra
vez. Nesta altura, já quatro ou cinco pessoas se encontravam atrás dele, e já
os outros dois aparelhos haviam conseguido também amadores da diversão.
Depois, acrescendo a quantidade de basbaques, umas dez a vinte pessoas
puseram-se a assistir ao jogo. Os aparelhos vizinhos perdiam e ganhavam
sucessivamente; o dele não fazia senão perder. Já uma multidão compacta
se amassara nas suas costas, enquanto, com passo vacilante, ele se dirigia ao
balcão para trocar a sua nota de libra.
Com uma nova provisão de xelins, voltou para o aparelho. Pelas cinco
horas, estava perdido o último xelim: recuou um passo e sentiu vontade de
esmurrar o vidro redondo, a modos escarninho, do aparelho, sob o qual os
cavalos andavam à roda … Por fim pôs-se a rir. Imediatamente os
circunstantes tomaram o seu riso como incentivo a um coro … e logo em
todo o recinto retumbou uma enorme gargalhada.
“É um bonacheirão, comentou alguém junto dele eu, no seu lugar, teria
atirado um pontapé a este aparelho indecente! …” Já estava no meio da rua
e ainda continuava rir.
“Perdi tudo o que tinha … Eu estava já a adivinhá-lo … o que vai agora
suceder? … Vinte e nove xelins ou nada o vem a dar na mesma? … Não
têm sombra de dúvida, vinte e nove xelins! …” Enxugou ao casaco as
palmas das mãos, que sentia úmidas alisou os cabelos em frente do espelho
duma balança automática e dirigiu-se para casa.
Csordàs encontrava-se sentado à mesa, no seu quarto dispondo-se a fazer
contas, quando Kádár entrou. Logo no limiar da porta, este começou a sua
história, dizendo que tinham chegado a Londres uns seus amigos vienenses,
que, a-pesar-de desprovido de dinheiro, se via na obrigação de solicitar do
velhote umas férias de uns dias, afim de os pilotar na cidade. Csordàs olhou
para ele com ar de aborrecido. “Está bem, se assim queres - respondeu -
ainda que eu não goste de ver um rapaz da tua idade ocioso. Concedo-te
uma semana … Mas por completo contrário aos meus princípios sustentar-
te de graça; pode sair de cá durante esse tempo, se quiseres, ou, no caso de
permaneceres, pagarás pelo alojamento e comida.. por exemplo, um xelim e
meio por dia. Não é caro, não é verdade? …” O riso que se apoderara dele,
horas antes ao abandonar o aparelho automático, começou a fazer-lhe
cócegas na garganta … Mas foi apenas um instante.
Instante que, todavia, bastou para o impedir de pronunciar as três palavras
que estiveram prestes a escapar-lhe dos lábios. “Um xelim e meio por dia?
na verdade, não é caro … Agradeço-lhe, mas ignoro ainda se ficarei com
meus amigos, ou se,” Evidentemente que, depois disto, era impossível pedir
qualquer coisa emprestada a Csordàs, nem tampouco Margarida, que iria
sem demora contá-lo ao velho … E não obstante, custasse o que custasse,
tinha de arranjar dinheiro, ainda que fosse preciso assaltar a casa de alguém,
incendiar ou assassinar! …
Ao cair da noite, invadiram-no a inquietação e a impaciência. “Onde e
como obter dinheiro?” Aí pelas dez horas, sentiu-se vergar ao peso duma
fadiga mortal, à força de dar voltas ao miolo sem resultado. Foi para o
quarto, despojou-se do vestuário, deitou-se Pôs-se a olhar o teto com
fixidez. Possuísse ele vinte libras e poderia ter outra vida bem diferente.
Com aquela mulher, iria para o fim do mundo! … “Mrs Myers, disse no
próprio íntimo … eu não posso viver sem a senhora … Que coisa tão
idiota … arranquemos esta máscara estúpida, eu não posso ficar aqui mais
tempo! Leve-me como criado de quarto, se assim quiser …
mas porque é que ela o faria? … Por piedade … sim, por piedade … Porque
é húngara? … Sim, porque é húngara, porque é rica e porque é mulher, e se
eu lhe posso ser útil de qualquer maneira … E, principalmente, porque já
não posso …
porque já não tenho ânimo para mais … Meu Deus, já não posso mais,
livrai-me desta existência se não quereis que eu rebente, ou então dai me a
coragem de suícidar-me, ou de qualquer outra coisa, meu Deus! … Meu
Deus! …” E estendia os braços para o teto aguardando, arquejante e com os
olhos fora das órbitas, que viesse a redenção … ou o sono, Um pouco
depois das onze horas, abriu-se docemente a porta. Maria entrou. Coisa
curiosa … até à data, ele jamais se deitara antes dela. Maria não acendeu a
eletricidade e perguntou-lhe em voz baixa: “Tony, estás a dormir? …” Ele
não respondeu e fingiu estar imerso num sono tranquilo. Percebeu que
Maria tateava na escuridão. Ela abriu a torneira, deixou correr a água, num
delgado fio, e durante muitos minutos fez-se ouvir um surdo chapinhar.
Quando findou o seu arranjo noturno, soltou um grande suspiro.
Kadár, com os olhos semi-abertos na obscuridade, conseguiu descortinar
uma alta e clara silhueta … Maria, toda nua, enxugava-se. Ele ouviu-a
arremessar, em seguida, a toalha molhada para cima do lavatório, e deu pelo
roçagar da camisa dela. Por fim, a cama gemeu sob o peso do corpo da
mulher.
- Maria - chamou, baixinho.
- És tu, Tony, então não dormes? …
- Não, Maria, escuta …
Saiu da sua cama, foi sentar-se em cima da de Maria. Estava sem dúvida
predestinado a desafogar o coração junto das mulheres, a entregar-se-lhes, a
toma-las como mães e como companheiras, para encontrar ao pé dela
esperança e consolo nas situações intrincadas. Tal como torrente
despenhada, as suas palavras transbordaram na trevas …
“Meu divino Senhor … Sabes bem, Maria, que andei estudando, que não
nasci para criado de taberna, que a minha cabeça está cheia de ideias … que
quero construi casas, palácios … compreendes? … e que devia continuar os
meus estudos … Conheces o acidente que me fez cair tão baixo … Poderia
sair da miséria … desta miséria, mas não tenho dinheiro … Não possuo um
penny sequer e não sei como consegui-lo … Deverei matar alguém? Se
desprezo esta ocasião única …” As suas palavras, caldeadas de lágrimas,
formavam uma balbuciação incoerente e febril. Nem reparou em que cabeça
lhe descaíra para o colo da mulher e em que inundando de pranto a camisa
de Maria, pronunciava estas frases pueris e sem nexo: “Não posso mais,
Maria … preciso acabar com isto … Não posso continuar a criado …
Quero construir casas, palácios … e se desperdiço agora a ocasião …”
Tomando-a entre as suas fortes mãos, ela afastou-lhe de repente a cabeça,
fê-lo sentar-se de novo no leito num movimento brusco, endireitou o
próprio corpo.. Fêz-se silêncio. “E se possuísses agora dinheiro, perguntou
ela, estás certo de que …?” Novo silêncio. O rosto de Maria aproximou-se
do de Kádár e, em seguida, ele apreendeu o som duma voz lenta que
murmurava: ouça, Tony, eu tenho dinheiro … tenho quarenta e seis libras,
de economias que fiz durante três anos … para dias da velhice … mas tenho
ainda tempo de pensar nisso … Tony, dou-to, esse dinheiro. Sei que mo não
restituirás … Também Jack, também ele nunca mo restituiu … há-de haver
uns três anos, dei-lhe trinta e duas libras … Tu restituir-mo-ás tanto como
ele.
O quarto desatou a girar à volta de Kádár, e de tal maneira que dificilmente
conseguiu manter a cabeça direita. “. Também não lho restituiu … e eu não
lho restituirei …” Colou-se à rapariga, para deixar o seu desespero, o seu
abandono e a sua fraqueza explodirem … Lembrava-se de que, muitas
vezes a fio, lhe lançara, purilmente, desastradamente, em cara o epíteto de
“criada …
criada …”, condição que ele não podia já suportar porque nascera senhor e
queria voltar a sê-lo … e era agora essa mesma rapariga, essa criada, quem
vinha oferecer-lhe dinheiro! … Depois dos bons petiscos de que ela, às
escondidas, o enchera sempre, depois dos seus gratos amplexos, dava-lhe
em dinheiro! “Jack não mo restituiu, tu restituir-mo-ás tanto como ele …”
Que se podia responder àquilo? … Neste instante sentiu nos ombros as
mãos de Maria, mãos que o estreitavam. “Não importa, Tony, cochichou
ela, dar-te-ei esse dinheiro … compreendi sempre que não eras como nós,
por exemplo, como eu, como o velho ou como há senhora … Tu havias de
abalar mais tarde ou mais cedo. e se eu não te desse esse dinheiro, poderia
acontecer -te alguma desgraça.
Dar-te-ei pois as quarenta e cinco libras, e se um dia voltares rico a
valer …”
Puxou para si a cabeça de Kádár. “Sabes, Tony, esta manhã, quando pediste
uma licença e partiste envergando o teu belo fato cinzento, logo suspeitei de
alguma coisa …” Os braços de Maria estabeleceram-lhe um nó apertado em
volta do pescoço e ele mais sentiu sobre a face estas palavras, do que ouviu
propriamente: “Tony, tem cuidado com esse dinheiro … não passas ainda de
uma criança … nem sabes quanto custa pôr de lado esses xelins e essas
moedazitas todas …
De madrugada, foi Maria quem despertou primeiro e o acordou a ele.
Amortecendo os passos, saltaram ambos da cama.
Às apalpadelas, Maria dirigiu-se ao armário, e aí rebuscou na parte de
baixo. Ele ouviu a lingueta duma fechadura correr … A seguir, sentados na
borda da cama contaram juntos as notas de libra … Uma, duas, dez trinta,
quarenta e cinco … Essas quarenta e cinco notas foram rechear a carteira
dele.
Eram apenas quatro horas, mas Kádár não sentia vontade nenhuma de voltar
a deitar-se. Vestiu-se e sentou-se ao pé da janela, os olhos fixando o terreno
contíguo e desocupado.
Às cinco horas também Maria se vestiu. Durante um espaço
insuportàvelmente longo permaneceram à mesa, mudos, face a face De
quando em quando, os lábios de
Maria mexiam-se remexiam-se como se fossem dizer qualquer coisa, mas
ela guardou silêncio. Olharam um para o outro …
Por fim Maria foi à sua lida; ele ficou só até clarear o dia Então, saiu para ir
tomar banho. Estava ainda escuro fazia frio e caía uma chuva miudinha;
mas ele nada sentia, nem o frio nem a chuva. Foi quase a correr até o
estabelecimento de banhos, onde não havia ainda senão reduzido número de
clientes. Mergulhou até o pescoço na água quente, limpa e azul. “Tenho
quarenta e cinco libras. restituí-las-ei …
restituirei cem libras! Hospedar-me-ei, mesmo, nas proximidades do hotel
Berkeley … e amanhã logo de manhã, telefonar-lhe-ei …
Quarenta e cinco libras! … Não seria mais acertado pegar nas minhas malas
e dirigir-me sem perda de tempo para a estação de Vitória”, donde parte às
onze horas o comboio para o Continente! … Seria loucura … Vou telefonar-
lhe já hoje..
Ao regressar, passada uma hora, declarou ao velho que ia começar a licença
nesse mesmo dia e que durante uma semana se instalaria noutra parte. Em
seguida pôr-se-a a vaguear no bairro de Piccadilly. Os prédios elegantes
deste bairro compreendiam apenas moradas burguesas; em parte alguma
enxergou tabuletas a indicar uma só pensão que fosse. Subiu a Regent-
Street. O sítio pareceu-lhe familiar. Em frente, numa praça, descobriu um
hotel: o hotel Langham. Por um instante, experimentou vontade de arrepiar
caminho e desatar a fugir; contentou-se em fitar largos minutos o hotel,
enquanto a boca se lhe enchia de saliva amarga. “Se eu entrasse para alugar
o quarto n.” 208 …”, pensou e, fazendo uma careta, apressou o passo.
Próximo do meio-dia, quando estava a cinco minutos apenas do hotel
Berkeley, deu com os olhos numa placa negra, de vidro, na qual brilhava em
letras de ouro: “Pensão
Viena”. Subiu a escada a quatro a quatro, até o terceiro andar.
Dez minutos depois havia pago a uma vienense baixa e rechonchuda as
cinco libras do custo da pensão por uma semana. Mal tinha lançado um
olhar para o bonito quartinho que ia pertencer-lhe. A seguir correu a casa
dos Csordàs a buscar as suas maletas. Tinha a pensão duma semana paga
adiantadamente e ainda lhe restavam quarenta libras na algibeira. À volta,
viu um auto-bus abrindo dificilmente caminho na rua atravancada. No
letreiro da direção lia-se “Victória Station”, a estação ferroviária donde
partia o comboio para a sua pátria. “Doido será se me metesse nele!” …
CAPÍTULO XV

Na “Pensão Viena”, em que se hospedavam uns quinze austríacos e


alemães, o horário das refeições adaptava-se aos hábitos da Europa Central.
Às oito horas da manhã, o pequeno almoço; à uma hora e meia, o almoço; e
às oito e meia da noite, o jantar. Se qualquer cliente o desejava, se a sua
profissão a tal o forçava, podia também viver ao modo inglês, mas a
senhora Kníipfer, a proprietária, não gostava muito disso, considerando ser,
esse, um tipo de vida desordenada. Na noite primeira, Kádár deitou-se logo
em seguida ao jantar. As roupas eram impecáveis, o leito, de metal, tinha
um colchão muito fofo, a mobília era bonita e havia água corrente no
quarto.
O caso começava bem; não poderia, na verdade, encontrar domicílio melhor
situado. Com os Csordàs arranjara-se tudo da melhor maneira possível. O
velho não lhe opusera a menor dificuldade, contentando-se em observar-lhe:
“Trá-los, se puderes, até cá” … Margarida desejara-lhe que se divertisse
bastante, Júlio abraçara-o afetuosamente, e Maria, na cozinha, voltara a cara
para o lado quando ele lhe estendeu a mão, limitando-se a dizer-lhe:
“Adeus.” Ele agora ali estava estendido na cama, mas já em Deptford, não
na Redburn Street, mas na “Pensão Viena”, no nº da Dover Street. Deixara
já de pensar em tudo isso, pensava agora só em Mrs. Myers, em Helena
Szabó, de Kassa, viúva do arqui-milionário Myers, proprietário duma
empresa da África do Sul … “Ela tinha dezassete a quando esse inglês
casou com ela … Como conseguira ela deitar-lhe o anzol? … E onde se
teriam encontrado, pela primeira vez? … Em Kassa? … e de que maneira?
quem eram os pais dela? … e depois, que lhe sucedeu até atingir a
maioridade? … Preciso de saber tudo a seu respeito! … Sim, mas como? …
Por intermédio de quem? … Essa mulher tem agora vinte e oito anos, isto é,
mais quatro do que eu … E que se segue daí? … Isso é-me completamente
indiferente … Não pretendo desposá-la..
não quero que … O quê? … Antes de mais nada, meter o pé na casa de
Pôrto-Isabel … Depois, se lá houver uma Universidade, terminar os meus
estudos … Mais tarde construir grandes edifícios … A quem estás tu
contando tão bonitas histórias?! …”
A vergonha assenhoreou-se dele, apagou bruscamente a luz e fechou os
olhos. “Adeus, Maria … Construiremos … Adeus, Paulo, e tu Tilly, e tu
Elisa …”
Essa noite decorreu toda num sono profundo e reparador. Devido ao hábito,
despertou às quatro e meia da madrugada; mas, dando conta da mudança
havida, voltou adormecer, graças ao silencioso ambiente. Passava da nove
horas e meia quando saiu do quarto. Já terminara o pequeno almoço e os
hóspedes haviam abalado para a suas ocupações.
O seu pequeno almoço foi-lhe servido numa mesinha. A senhora Knöpfer,
fazendo boquinhas, saudou-o com um afável sorriso. - Como dormiu esta
primeira noite que passou cá? - perguntou-lhe ela - bem, espero que … eu
estava com as minhas dúvidas, porque a discussão que se levantou, eram
ainda oito horas, podia tê-lo acordado. - Kádár, prazenteira e polidamente,
perguntou o que tinha acontecido.
- Foi a propósito dos anarquistas de Viena - respondeu ela - Dois dos meus
hóspedes discutiam a respeito da sentença - Dizendo isto, trouxe-lha um
jornal vienense. Aí leu Kádár imediatamente, na primeira página, em letras
enormes: A sentença do julgamento dos anarquistas. Todos os réus deste
processo monstro foram condenados em severas penas de prisão.
Seguia-se o texto do comunicado. “Ao termo de debates extremamente
movimentados e que duraram dezanove dias, o júri formulou finalmente,
ontem às duas horas da tarde, a sentença relativa ao processo dos
anarquistas. A Aloís Haçek, o réu que lançou a bomba, coube a penalidade
de treze anos de degredo; Norberto Ring, Peter Sesomoff e Gerda Buhr, os
três cabecilhas do grupo anarquista, foram condenados, cada um deles, a
oito anos de prisão; Coloman Fáher, o fabricante do engenho explosivo, a
cinco anos, e os outros acusados a cinco anos, cada um, de degredo. Sobre
os últimos debates e sobre os considerandos da sentença, ver pormenores na
nossa edição a manhã”.
O olhar de Kádár percorreu estas linhas e depois ficou cativo de um nome,
o de Gerda Buhr. Gerda Buhr? … Leu então, febrilmente, todo o resumo do
processo:
“Alois Haçek é um indivíduo baixo e gordo, robusto, de aspecto
despretensioso, cabelos negros arrepiados e olhar do sonso. Exprime-se em
linguagem atabalhoada e dá por vezes respostas incoerentes às perguntas do
presidente do tribunal.
O Presidente. - Conte-nos, Haçek, a maneira como entrou para essa
sociedade de anarquistas … Fale com toda a franqueza. Vamos lá!
Haçek. - Eu, senhor juiz, era empregado da estação postal nº 10 e fazia
serviço no guichê do registro de cartas e encomendas. Uma tarde, a menina
levou-me uma carta para registrar.
O Presidente. - A menina quê? …
Haçek. - Ah, sim! a menina Buhr.
O Presidente. - Bem, continue …
Haçek. - Ou então, dizendo melhor … ela chegou precisamente às 7 horas
em ponto. Eu não queria receber a carta, mas começou a pedir-me que lha
aceitasse, e então entabulei conversa com ela e disse-lhe, por fim: “Pois
bem, é pelos seus bonitos olhos, minha menina, que cedo a recebê-la
ainda …” Depois, disse-me … (o réu calou-se).
O Presidente. - Que lhe disse ela? … continue …
Haçek. - Disse-me que iria lá mais vezes.
Gerda Buhr. - Mente! , O Presidente (depois de impor silêncio à ré, volta-se
de novo para sena verdade tornou lá? …
Haçek logo no dia imediato … Levou-me seis cartas, eram sete horas,
exatamente.
Recebi-lhas, após o que parolámos um bocado.
O Presidente. - E o réu acompanhou-a até casa? …, Haçek. - Sim, senhor
Presidente, porque ela esperou que eu acabasse o meu serviço.
O Presidente. - Em que falaram pelo caminho?
Haçek (conservando-se em silêncio como se fosse idiota, parece refletir,
após o que balbuciou). Eu … eu … convidei-a a ir ao cinema …
O Presidente, - Ela aceitou o convite? …
Haçek. - Não … Respondeu-me “outra vez será; agora estou com muita
pressa”.
Haçek. - E quando é que se tornou encontrar com ela?
Haçek. - Perdão senhor, Juiz … No dia seguinte à tarde, ela voltou ao
correio;
aguardou que eu findasse meu serviço e acompanhei-a novamente a casa; e
isto sucedeu cinco ou seis dias a fio. Com a continuação, passou a ir mesmo
sem levar cartas nenhumas.
O Presidente. - E isso não lhe pareceu suspeito? pensou que as numerosas
visitas que fazia a menina
Buhr podiam ter um motivo especial? Não pensou que ela queria alguma
coisa de si? …
Haçek. - Sim, senhor Juiz; simplesmente, pensei que ela queria outra coisa.
(Risos na sala, imediatamente sufocados, visto a menina Buhr me dizer que
gostava de mim …
(Gerda Buhr. - Mente …
O Presidente (ameaça a ré de castigá-la, se ela continuar, e prossegue,
voltando-se para Haçek). - Bem Haçek, agora vai contar-nos como é que
essa amizade pôde degenerar em …
Haçek. - Em quê?
O Presidente. - Não me interrompa … em cumplicidade com os
anarquistas? …
Haçek. - Senhor Juiz … isso sucedeu porque esta mulher … isto é
(apoderou-se dele uma grande excitação), cometi uma terrível falta … isto
é … perdi completamente a cabeça e o juízo também … Apaixonei-me
loucamente por esta mulher … Ela naturalmente, compreendeu isso
mesmo … e procurou, sabendo muito bem o que fazia (o réu gaguejava, de
comoção), arrastar-me, exci … ci., . tarme … já me não lembro como é que
conseguiu arrastar-me para um meio desses …
Quando eles me falaram no atentado e quando perguntaram quem se
encarregaria da bomba … como ninguém se apresentasse, ela inclinou-se
para o meu ouvido e disse-me: “Encarrega-te tu, e terás o que desejas …”
Senhor Juiz … (com crescente emoção) eu tenho três anos de guerra e sei
que, neste mundo, não há nada perfeito … (novamente gagueja comovido),
mas … se esta mulher não tivesse feito o que fez … eu nunca teria sido
capaz de lançar …
O Presidente. - Oiça … Se esta mulher não tivesse feito o quê? …
Haçek (no paroxismo da comoção). - Se ela se me tivesse entregado …
(movimento de sensação geral, na sala). Na mesma tarde em que eu aceitei
a missão .. ela entregou-se-me … no gabinete de Ring … Eles tinham-nos
deixado sozinhos … E depois desse dia (disto aos berros), mais quatro
vezes, até o atentado …
Gerda disse numa voz fria e cortante. - Mentira tudo aquilo! …
O Delegado do Ministério Público. - Tenho a honra de propor ao Tribunal
que ordene se torne secreta a continuação da audiência …
O jornal escapou-lhe das mãos e caiu por terra, num ruído abafado. Gerda
Buhr, aquela loura fria e misteriosa, que se postara à cabeceira no hospital, à
semelhança de uma santa, de uma mãe, de uma …
- Meu Deus, que tem o senhor? … Não está doente?
- exclamou a senhora Knöpfer, que ia a transpor a porta;
- está pálido como linho …
- não é nada - pronunciou ele. este … este processo comoveu-me, porque
também vivi em Viena bastante tempo.
- É compreensível - comentou a senhora, tranquilizando-se. Pensar a gente
que há monstros assim! … Na minha opinião, a principal culpada é a
mulher. E, todavia, não foi ela quem apanhou a pena mais severa, mas sim
esse pobre carteiro meio doido! … Que quer o senhor, é a vida …
Felizmente, estamos longe desses horrores …
“Estamos longe” … Ao ouvir estas palavras, sentiu um grande e
extravagante alívio, que por completo o trespassou: Se naquela noite em
que a esperei no corredor, ela, em vez de repelir-me, me tem puxado para si
e se, no dia seguinte, em troca do seu amor, me pede vidas humanas! …
Porém, repeliu-me …
Porquê? … Não valeria eu tanto como esse Haçek? … Ou, pelo contrário,
valeria muitíssimo mais? … Estou já longe daquilo tudo … Já nau quero
saber … nem dela, nem dos outros. Estou longe daquilo tudo … Também
aquilo já passou à história …” Presentemente tratava-se de outra coisa.
Indecisa, a senhora Knöpfer mantinha-se de pé, à entrada da sala. Kádár
apanhou o jornal, colocou-o em cima da mesa e disse à hospedeira: “Já li;
muito obrigado, minha senhora.”
CAPÍTULO XVI

Sim, tratava-se presentemente de outra coisa.


Tratava-se de ter o maior domínio sobre si próprio para não correr ao
telefone e não chamar Mrs. Myers demasiadamente cedo. Era preciso não
parecer muito esfomeado, muito ávido, muito desprotegido, ocioso por
completo. Helena Szabó não devia ser posta em condições de perceber que
tudo, a vida dele e as suas quarenta e cinco libras, se encontravam em cima
de uma carta única, dependentes daquela partida de jogo. “Hei-de triunfar,
tenho de triunfar!.
.. Não deixarei a fortuna escapar-me.” No quarto dia, pôde enfim, sem
mostrar precipitação, telefonar a Mrs, Myers. Ela não estava em casa. Deu o
seu nome, mas a voz cantante e rápida que respondia no outro extremo da
ligação repetiu duas ou três vezes esse nome, indecisa. Poisando no
descanso o auscultador, imediatamente a inquietação o invadiu ao pensar
que a sua interlocutora de há pouco poderia não saber indicar corretamente
quem tinha telefonado. Certo era que Mrs. Myers podia facilmente
adivinhá-lo e que ele mesmo podia voltar telefonar, verificado o malogro da
primeira tentativa; todavia, uma incerteza assim … e, caminhando na rua,
não cessou de dizer de si para si valer mais e ser forçoso dar remédio a essa
incerteza. Na primeira loja de florista que encontrou, adquiriu uma
maravilhosa orquídea, de tons pálidos e azuis, e enviou-a, acompanhada de
uma frase de homenagem, a Mrs. Myers. A flor custou-lhe a bagatela de
libra e meia. Que importava? … Decidiu tornar a ligar, à noite, para Mrs.
Myers, recreando-se antecipadamente com a surpresa que ela
experimentaria ao saber que lhe habitava na sua imediata vizinhança.
Encontrava-se sentado, ao começo da tarde, no quarto, entretido a observar
o mapa de África. De súbito, bateram à porta. Era a criada. “Chamam-no ao
telefone, meu senhor, disse ela; é da parte de Mrs. Myers.” Estupefacto,
olhou um instante a rapariga e depois precipitou-se para o telefone. “É o
senhor Kádár? perguntou uma voz ao aparelho. - “Em pessoa”
“Aqui fala Mrs. Myers! …” - “Como é que sabe que estou residindo nesta
casa?”
Sei-o, isto não lhe basta? … Estou muito zangada por causa da flor …
Falaremos a esse respeito …
Entretanto agradeço-lhe … Está esta noite?” … -“Sim”- “então, espero-o
pelas sete horas.” Com um gesto brusco, abriu a porta do armário e olhou o
smoking, completamente amarrotado, suspenso dum cabide. Havia mais de
um ano que o não punha. E a camisa branca não estava engomada. Pudera
com o avental verde … “Caluda!” bradou uma voz dentro dele próprio “o
avental verde nunca existiu! … Com vivacidade, fez soar a campainha
elétrica e logo depois a criada levou smoking para ser passado a ferro,
enquanto ele saiu correndo a comprar o necessário. Nervoso, arrancou o
embrulho das mãos do vendedor: duas camisas de peitilho postiço, meia
dúzia de colarinhos, uma gravata de seda da última moda, dois pares de
peúgas finas e um par de luvas cinzentas claras, diabolicamente caras. Batia
já com os pés no chão, de impaciência, quando, pelas cinco horas lhe
trouxeram o smoking passado. Que escândalo! … ferro quente em demasia
pregara-lhe uma mancha! … Era perto das sete horas, quando, escanhoado,
em trajo de sair, negro e branco, se viu finalmente pronto.
e Mrs. Myers esperava-o no seu gabinete de trabalho numa mesa redonda,
colocada em frente da janela, estava posta para o serviço de duas pessoas.
“Estou muito zangada por causa da flor”, disse-lhe ela mal ele entrou. -que
criança que é!
esse ato de cortesia custou-lhe pelo menos duas libras, e quando se tem uma
bolsinha tão pouca recheada …”. Ele corou e pretendeu interrompê-la,
protestando com um gesto, mas Mrs. Myers prosseguiu sem perturbar:
- Oiça, nada de fingimentos, coloquemo-nos acima dessas coisas. Mandei
tirar informações exatas a seu respeito. Um rapaz tão pobre como o senhor
não pode permitir-se certos gastos … não se formalize, senão na
chegaremos a entender-nos. Não é vergonha nenhuma … eu também não
nasci princesa. - Ela disse tudo isto em tom tão familiar e tão amável, que
ele seria louco se não encarasse as coisas pelo lado favorável. Em todo e
qualquer caso, faria figura de estúpido continuando a representar a comédia.
- Sabe então tudo a meu respeito? - perguntou com ar desprendido, mas
com um leve tremor íntimo receando que- ela estivesse também ao facto do
caso de Estevo Totri.
- Tudo; isto é, tudo o que quis saber - respondeu ela, “Interessou-se então
por mim”, pensou Kádár, sentindo-se um pouquinho comovido, ao mesmo
tempo que deixava escapar a pergunta:
- Mas, de que maneira?
- Ingénuo rapaz! … Não bastará para isso um empregado de cartório um
pouco hábil? … Esquece-se de que a Inglaterra é a pátria de Conan
Doyle! … Diga-me cá, Mrs. Cresse é bonita? …
- É já velha - respondeu ele de chofre, mas pôs-se logo vermelho ao
acrescentar a mentira: Pode ter aí os seus quarenta anos mas está muito
cansada.
- Os Csordàs são seus parentes? … Que fazia em casa deles? …
Corava cada vez mais, debaixo do fogo destas perguntas, e engendrou uma
série de explicações intrincadas: não se tratava precisamente de verdadeiro
parentesco, mas antes de um parentesco à moda da Hungria … e, no
concernente ao trabalho, ele ocupava-se lá, de preferência das compras e
dos assuntos pecuniários. Ao mesmo tempo, continuava os seus estudos
interessando-se por tudo que dizia respeito à construção moderna.
- Com que então - interrompeu ela - Mrs. Cresse é idosa e nada bonita.
Também eu já sou velha … Pelo menos, sou mais do que o senhor …
- Não é verdade - declarou ele bruscamente e com energia. - A senhora tem,
pouco mais ou menos, a mesma idade que eu.
- Oiça - disse Mrs. Myers, provocadora, - quer fazer-me crer que, depois de
tudo o que até aqui lhe contei, não calculou já há muito que tenho vinte e
oito anos. Sim, meu jovem, estou velha …
Kádár fixando os olhos nela e sentindo no coração um calor benéfico,
respondeu:
- Tem vinte e oito anos mas parece ter só vinte; eu tenho vinte e quatro,
ignoro quantos pareço ter, mas posso bem dizer que já vivi duas vezes a
minha idade.
Mrs. Myers desviou, subitamente, o seu olhar do dele e estendendo,
hesitante, a mão para a caixa de cigarros, disse-lhe; “Faça favor de tocar a
campainha, tenho fome.” Mrs. Myers comeu bastante e com rapidez
extraordinária. Igualmente Kádár se sentia com apetite, e, sentado em frente
daquela mulher, não lhe saía da ideia este pensamento: “Ela tem vinte e oito
anos, quatro anos a mais do que eu” Mrs. Myers orientava com muita arte a
conversação e a satisfação do apetite dele. Vira desde o primeiro instante
que Kádár era de índole pouco loquaz, e ela própria conduzia pois o
colóquio, espraiando-se em infinitas variações a respeito da África do Sul,
de Mis. Myers, da vida naquela terra, de Sydney, onde tinham vivido
outrora, e da última e trágica viagem a Londres. Kádár começou a
interessar-se pela narrativa a partir do momento em que ela desatou a falar
de si própria, da sua mocidade. Helena Szabó contava apenas catorze anos
quando, num desgraçado dia outonal, dia de chuva, o pai - a mãe falecera
dez anos antes - caíra redondamente no meio da rua, levando as mãos ao
lado esquerdo do peito. Tinham-no levado para casa, onde o médico,
chamado a toda a pressa, não pudera fazer já outra coisa do que verificar o
óbito. A rapariguinha tora confiada aos cuidados de um velho amigo do pai,
o velho Vizsényi, que viera a ser, deste modo, seu tutor. O tio Vizsényi
permitiu-lhe inscrever-se num curso de estenografia.
Passados seis meses, arranjou um lugar de dactilógrafa no cartório do
advogado Simoncsics, com o ordenado mensal de vinte coroas. Certo dia
apareceu-lhe Mr. Myers arquiteto perito, de nacionalidade inglesa, do
principal cliente do seu patrão, Conde X … Tinham-no mandado ir ali por
causa de um processo complicado e que se arrastava havia já bastantes
anos. Logo desde os primeiros dias o inglês se pusera a andar à roda de
Helena Szabó, repetindo muitas vezes ao dia, em tom de brincadeira, que
com bom grado casaria com uma rapariga tão gentil. Mas aquilo que se
repete com frequência acaba por ser acreditado por duas pessoas, pelo
menos: aquela que fala e aquela que escuta. O arquiteto não permanecera
em casa mais do que uns quinze dias. Ao despedir-se da rapariga dissera-
lhe: “Eu teria muito gosto em que aprendesse inglês.” Helena corara até à
ponta das orelhas e … logo DO dia imediato fora matricular-se num curso
de inglês, noturno, na Escola Primária Superior. Pouco tempo depois
chegou de Londres um bilhete postal, em seguida outro e outro ainda, com
intervalos regulares; mais tarde, uma carta de Antuérpia, uma de Paris,
outra de Toronto e depois, novamente, uma de Londres. Por fim, um belo
dia, Mr. Myers voltara a Kassa, apresentara-se ao velho Vizsényi e,
passados quinze dias, Mrs. Myers, em solteira Helena Szabó tinham partido
de Kassa, no rápido da tarde, servindo-se de um compartimento de antemão
reservado só para eles. Nas suas costas, a cidadezinha agitam-se em mil
mexericos … Porém Kassa viera mais depressa a esquecer Helena Szabó do
que Mrs. Myers a sua cidade natal, cuja recordação jamais cessara de
persegui-la, a-pesar dos encantos de Londres, de
Sydney e de Pôrto-Isabel, recordação inextiguível, caldeada de espectativa,
um tudo nada penosa e, todavia, agradável.
“Ela veio de baixo, de mais baixo que eu!” murmurou uma voz dentro do
cérebro de Kádár. “Ela conduzir-me-á consigo, para a ascensão.” Essa voz
falou-lhe suavemente durante todo o serão, orientou suas palavras e seus
atos, recomendando-lhe prudência e interdizendo-lhe o menor gesto que
pudesse revelar o mendigo. “Atenção!” dizia-lhe essa mesma voz,
“presentemente, não se trata de uma esmola. Sê prudente, não te mostres
muito apressado, defende-te de traíres teus desígnios! …” Mrs. Myers
interrogava-o exclusivamente a respeito dos seus negócios particulares; a
conversa resvalava cada vez mais para os pastos sul-africanos. A imagem
da Terra Prometida formava-se à maneira de mosaico de cores: o porto
inglês em pleno desenvolvimento, num clima digno de Nápoles, tende a
mais o asseio de Amsterdão e, por detrás dele, a riqueza da Federação Sul-
Africana, De semana para semana abriam-se novas ruas e a cidade
edificava-se, graças emulação dos colonos holandeses, ingleses e alemães!
rivalizando todos eles, no máximo grau, em satisfazer os seus próprios
gostos de luxo e de conforto. A firma “Abley & C.”” participava
largamente, como é natural, neste trabalho de construção: o escritório de lá
ocupava além dos dois engenheiros-chefes, uma boa vintena de
empregados! A sua última grande empreitada, a construção do Entre-postos
e das docas da Companhia “Cunard Line”, em vias de abandono, fora ainda
concebida de harmonia com os planos do falecido Mr. Myers. Ia ser, para
ela, uma impressão estranha sentar se de novo, após um lapso tempo tão
longo, à mesa de trabalho … As fontes dela latejavam, de emoção. Ele
esperava uma palavra que.. Mas essa palavra não foi pronunciada.
Num dado momento numa súbita vertigem, pressentiu que não devia calar-
se e deixar escapar esse minuto. Era necessário ser ele mesmo a falar, a
dizer novamente: “Irei consigo.” Já a voz que murmurava dentro do cérebro
se calara …
e não encorajou a declarar-se: “Leve-me com a senhora.” Nistc Mrs. Myers
pôs-se a falar de Londres e das pessoas cor quem aí se dava, e ele observou
então, com terror, que cada uma dessas frases os afastava cada vez mais do
país dos seus sonhos. No íntimo de Kádár a voz sonora do aventureiro
lutava contra a lamúria do mendigo, ocultas ambas por um biombo de
palavras neutras. Aproximando-se a meia noite, teria dentro em pouco de
retirar-se Quando Mrs. Myers, referindo-se a um dos seus sócio de trato
bem desagradável, declarou “Não me importo muito, no fim de contas,
porque não hei-de aturá-lo senão durante uns quinze dias mais”.
Kádár experimentou, bem fundo, o suplício de ter perdido a sua causa,
suplício semelhante ao que produziria a picada dum milhão de alfinetes.
Verificou as horas no seu relógio e levantou-se. Nesse instante, perguntou-
lhe Mrs. Myers: “E o senhor que vai agora fazer?” - Que quer dizer com
isso?
- Quero eu dizer: qual é o seu programa para os meses próximos? … Vai
ficar em Londres?
Ele esforçou-se por mostrar um ar indiferente, mas o seu olhar hesitante
poisou, com um frémito, no rosto e na figura da mulher.
- Não sei ainda - replicou, conseguindo tornar a voz serena e desprendida.
- Pode ser que fique em Londres, pode ser também que …
Ela interrompeu-o:
- Não quer, então, que eu diga qualquer coisa a Scott, em seu benefício, para
ele lhe reservar um lugar no escritório?
Era talvez aquela ocasião derradeira. Tinha de pôr termo às habilidades de
acrobata, dizer à mulher numa voz lamentosa: “Sim, fale a meu respeito no
escritório de modo que, devido ao seu patrocínio, o meu pão seja ganho
com menos aspereza!” Mas a tenção de jogador arrebatou-o, e declarou
num tom frio, cheio porém de amigável gratidão:
- Oh! não, muito obrigado. Mesmo que ali me contratassem, isso estaria a
poucos passos da insensatez. Não seria uma solução para mim … isto é …
O semblante da mulher corou levemente.
- Ah! está bem … e … se eu lhe dissesse …
- Isso sim-interrompeu ele, desta vez numa voz triunfante de vencedor
seguro de si, abrangendo-a, toda inteira, num olhar cheio de malícia, onde
se patenteava não se tratar agora de coisas mas sim de pessoas, de uma
única pessoa - ela! Os dois pares de olhos fixaram-se, um instante, numa
tensão similar à que precede a descarga da faísca elétrica. Após, ela desviou
bruscamente o olhar e ergueu-se:
Como adivinhou o que eu queria dizer … visto que precipitou a resposta?
- A senhora queria dizer - replicou ele num tom firme e imperioso, que se
me convidasse a partir consigo …
Nos olhos de Mrs. Myers perpassou uma espécie de humilhação, qualquer
coisa que valia uma defesa.
Mesmo que eu quisesse dizer isso … - prosseguiu Mrs. Myers - não tomei
ainda nenhuma decisão a tal respeito.
- Peço-lhe que não se equivoque sobre o sentido das minhas palavras; não
as considere indiscretas; eu quis simplesmente dizer: se me convidar, irei
consigo para a África, ou fosse lá para aonde fosse.
E como teimava em perseguir com os olhos o olhar incerto, hesitante e
fugidio da mulher, olhar no fundo do qual ardia um fogo tranqüilo, a
delicada figurinha afastou-se bruscamente dele. Kádár adquiriu então a
certeza podia ir preparando já a sua bagagem: Mrs. Myers levá-lo-ia
consigo, para a África, ou fosse lá para aonde fosse.
CAPÍTULO XVII

No cofre forte de múltiplas divisórias, oculto na parede do gabinete de


trabalho e onde a Sociedade guardava os documentos mais importantes,
havia um compartimento especial em que A. . T. Kádár, o jovem e eminente
arquiteto, conservava os seus papéis pessoais. Documentos de todas as
espécies, recortes de jornais, cartas e notas diversas aí se amontoavam.
Havia lá, por exemplo, o seguinte:

Lista dos passageiros do vapor Falcônia, da “Cunard Line”, travessia de …


1932. Itinerário: Southampton - Gibraltar - Porto-Saíd - Adem- AíomJ baça
- Moçambique - Burban Porto Isabel.
Camarote nº 166: Mrs. Helena Myers, construtora, Pôrto-Isabel.
Camarote n. 167: Mr. A. Kádár, secretário particular, que se dirige para
Pôrto-Isabel.
Alvará da Prefeitura da Polícia de Pôrto-Isabel
… em virtude do qual é concedida licença de residência a Mr. A. Kádár
enquanto segue os devidos trâmites do seu pedido de naturalização.
Uma carta de Mrs. Myers, datada da Cidade do Cabo:
… Hooley manda-me dizer que, desde que parti de aí, o senhor passa dias
inteiros no escritório. Agrada-me sobremaneiramente que se ponha depressa
ao corrente de todos os nossos negócios, mas é preciso não exagerar. É
minha impressão que Hooley se sente um tanto enciumado da sua ação, mas
isso não deverá desanima-lo mesmo que Hooley lhe faça sentir esse
sentimento da maneira brusca que o caracteriza. Vejo que Growham
trabalhou bem e que obteremos provavelmente a encomenda da construção
da Biblioteca de C. T. Obtido o despacho do processo, regressarei
imediatamente …
Rubrica desportiva dum jornal:
A primeira surpresa surgiu do desafio de tennis em doublc mixte. A equipe
Kádár-Myers bateu, com notável facilidade, por 6-2 e 6-0, a equipe Dunn-
Dunn, vitoriosa o ano passado. O jogo harmoniosamente combinado do par
vencedor foi aplaudido com entusiasmo, até pelos partidários do par
contrário.
Carta do Dr. Bloomhard, diretor da “Union Technology de Johannesburgo:
Terei verdadeira satisfação em poder contar entre os meus alunos o
excelente colaborador da firma “Abley & C.””. Estou convencido de que,
em vista do seu talento e da sua experiência, dois ou três meses de estudo
permitir-me-ão apresentar-se, com probabilidades de êxito, no exame final
para obtenção do diploma de Arquiteto.
Um cartão de visita; A. Th. Kádár, arquiteto diplomado, diretor da Firma
Abley & C.a, Pôrto-Isabel.
Original da carta de Mr. Hooley, engenheiro-chefe,-a Mrs. Myers: “… Pela
parte que me toca, não posso senão regozijar-me, minha Senhora, pelo facto
de um moço cheio de ambições querer aliviar-me de uma parcela da minha
tarefa, sobretudo sendo ele pessoa, segundo me parece, que possui a vossa
inteira confiança. Tanto mais que estou desde há nove anos ao serviço da
firma e que já excede consideravelmente a conta dos quarenta anos de
idade. Mas precisamente, a minha idade e os longos anos passados ao vosso
serviço autorizam-me a chamar a vossa-atenção para certos factos. A
especulação feita sobre os terrenos de Kruegersdorp tirou-me o sono
durante meses inteiros. Deu resultado, é um negócio feliz, mas por muito
tempo me pareceu destinado ao malogro. Aceitar construir a Estação de
caminho de ferro de Pretória equivalia, em minha opinião, ao suicídio. Se
não vimos ir, nesse caso, o nosso dinheiro por água abaixo, devemo-lo
simplesmente ao caso. Em suma, a minha impressão é que, assumindo eu
por completo as mesmas responsabilidades que outrora a minha influência
deminuiu junto de vós, e, por consequência, também em Londres.
Não recrimino ninguém, mas considero dever meu incitar-vos a usar de
prudência.
Peço-lho minha Senhora, que não pense nunca que, quando Hooley refreia
um assunto, o faz por ciúme, nem que quando ele diz “não”, é por inveja.
Suponho que me não anquilosei ainda, mas, simplesmente, defendo os
interesse da vossa firma talvez melhor do que aqueles que vêem o mundo
através do seu temperamento juvenil e fogoso …”

Cópia oficial, enviada pela Central Londrina o Mrs. Mfers, de outra carta de
Mr. Hooley dirigida por este ao Escritório de Londres:
“… Nove anos de serviço nas colónias justificam o meu pedido de
transferência para o escritório de Londres. Todavia, se isto pudesse criar
dificuldades, eu teria então de lamentar o ver-me obrigado a renunciar à
honra de continuar a ser um dos vossos colaboradores …

Telegrama de Mr. Alexis, um dos sócios da Firma:


Chego dia 7. Esteja sem falta Pôrto-ísabel. Desejo falar também a Kádár.
Alexis.

Telegrama de Mrs. Alexis para Londres (minuta manuscrita:


Tudo perfeito. Inútil substituir Hooley. Kádár merece todos elogios. Alexis.

Recibo de um vale de correio:


Destinatária: Maria Tate, Londres. S. E. Deptford, Steelworks Row, c/o
Cresse.
Importância do vale: 100 libras.
Expedidor: A. Kádár, Pôrto-Isabel.

Telegrama de Growham, de Joannesburgo:


Mr. Kádár parte imediatamente. Construção entreposto obtida. Felicitações.
Growham.

Cortaria do Governo:
O Ministro do Interior ordena: Mr. António Teodoro Kádár será admitido
entre os cidadãos da União Sul-Africana e, especialmente, é concedido ao
requerente mudar o seu nome patronímico para “Cadar” e utilizar doravante
este nome na sua vida civil.

Recorte de tini jornal: Secção Mundana:


Mr. A. T. Cadar, o ilustre arquiteto, co-diretor da firma Abley, consorciou-
se ontem com Mrs. Helena Myers, viúva do falecido Mr. Myers, seu
antecessor na referida firma. O novo casal recebeu inúmeros telegramas de
felicitações das pessoas mais notáveis de Londres e do nosso país.

Cópia de uma sentença do Tribunal do Comércio” de Londres:


… O Tribunal do Comércio risca dos seus Registros a firma social “Abley,
Alexis, Hutton, Myers e Scott, Arquitetos” e inscreve, em seu lugar, a firma
social seguinte: “Abley, Alexis, Cadar, Hutton e Scott, Arquitetos”.

Carta a um alto funcionário da cidade:


… Não recuarei perante a necessidade de fazer sacrifícios, por mais
importantes que sejam, no interesse delevar avante este negócio. Todavia
coloco à cabeça de todos e de maneira absoluta a condição de essa compra
terrenos permanecer rigorosamente secreta, até o momento de se começar a
construção, isto é, até que eu próprio de início à respectiva publicidade …
Carta para Londres:
… Em conclusão, tenho absoluta confiança no bom resultado do meu
negócio, o qual, se vós não quiserdes participar nele, tomarei para mim só.
Presentemente, com efeito, não se trata apenas da minha impressão pessoal,
mas da convicção, baseada em algarismos de que a compra desse lote de
terrenos virá a ser um dos melhores negócios dos tempos que vão
correndo”!

Documento oficial:
… A saber: os terrenos vagos pertencentes à cidade, que se estendem a
oeste até o termo da mesma, e a leste até o limite administrativo da cidade
de Olchester, ao sul até o litoral de Algoa-Bay, e ao norte até à linha que se
estende paralelamente ao litoral e que se situa a uma distância de duas
milhas inglesas. A cidade cede, em regime de propriedade plena, ao sr. e à
sr.a A. T. Cadar os ditos terrenos, marcados em comum pelas duas partes e
que figuram na carta topográfica, por elas reconhecida exata, como sendo
os terrenos numerados no cadastro de a 1.000. A Cidade compromete-se, ao
mesmo tempo, a fazer executar, à sua custa, todos os trabalhos e a regular as
instalações denominadas abreviadamente “Melhoramentos Públicos”, cujo
inventário consta do processo anexo ao presente documento. Em troca das
concessões acima descritas, os compradores comprometem-se a construir,
instalar e pôr à disposição da Cidade as instituições de beneficência
definidas no processo anexo ao presente documento.
Anúncio:
O PARAÍSO DAS IDADES BÍBLICAS ENCONTRAVA-SE NA ÁSIA
MENOR … O PARAÍSO DOS TEMPOS MODERNOS ENCONTRAR-
SE-Á NA ÁFRICA DO SUL … PEÇAM SEM PERDA DE TEMPO OS
PROSPECTOS RELATIVOS AO NOVO PARAÍSO …

Anúncio:
A Côte d’Azur era considerada, até agora, como o mais belo litoral do
mundo. No ano próximo, será a Baía de Algoa. Desejais possuir uma
casinha para o vosso week-end? … Desejais uma vivenda luxuosa? …
Gostais do sol maravilhoso da praia, ou preferis a fresca sombra da floresta
majestosa? … O estilo das cabanas dos negros está de acordo com o vosso
gosto, ou achais, pelo contrário, delícia na moderna construção que aplica o
vidro como primacial matéria? … Sejam quais forem as vossas
preferências, não deixeis de visitar os nossos escritórios, onde tereis ensejo
de consultar inúmeros projetos e onde em contacto com os nossos arquitetos
podereis colher informações explícitas …

Reportagem dum grande periódico:


Rodámos do “Cadillac”, de dois lugares, do célebre arquiteto, ao longo da
costa esplendente, sobre a estrada nova, lisa como um bilhar. Dentro de
poucos minutos chegámos às proximidades do novo aglomerado de
moradias, “o Éden Sul-Africano”, em vias de construção.
Nota-se ali imensa quantidade de materiais, inúmeros camiões e máquinas
assim como rumorosa multidão de operários atarefados. É uma verdadeira
cidade … uma cidade maravilhosa onde o mar se une à floresta, o luxo à
simplicidade prática. Cada casa assemelha-se a um castelozinho isolado,
orgulhoso símbolo da divisa inglesa “My house is my castle” … (1) e
apesar disto, logo a partir dos primeiros instantes nos sentimos entre
amigos. Maravilha-se a gente perante o enorme campo de desporto, o
esplêndido cinema, o sumptuoso clube … Todos podem ali encontrar, quer
em suas próprias casas quer no exterior, o conforto, os prazeres e as
distrações que melhor convenham ao seu temperamento.
.. No decurso do caminho, tive ensejo de ouvir Mr. Cadar. “Estamos
bastante satisfeitos, declarou-me ele, com os resultados até agora obtidos.
Estes resultados são não só materiais como morais: desde os primeiros dias
afluíram as encomendas e fixaram-se em nós os olhares, não apenas da
África mas de todo o império Britânico.
Telegrama do corretor Smith:

Nota 1: “A minha casa é o meu castelo.”

Vendidos 610 a 634, peço reservar-me pelo menos cinquenta mais.

Telegrama do corretor Corbett:


Vendidos 80 a 105, peço responder telegraficamente se possível reservar-me
mais 10 talhões arborizados.

Telegrama do corretor Di Marcelli:


Todos terrenos no sector vendidos. Responder telegraficamente se
possibilidade aceitar construções estilo tirolês.

Aviso das autoridades:


Na inauguração do Bairro-Helena e das suas instituições de beneficência, o
governo far-se-á representar por individualidades que serão oportunamente
designadas.
CAPÍTULO XVIII

Chegara, finalmente, o grande dia.


Inauguração da cidade-jardim. Delegados do governo. Discursos.
Aclamações. Viva a União Sul-Africana! … Viva o Império Britânico! …
Viva o Bairro Helena! …
Vivam Mr. Cadar e Mrs. Cadar! … os seus excelentes colaboradores e todos
aqueles que os secundaram na criação deste Paraíso! O banquete de cem
talheres no Hotel timiretanha, já igualmente vendido, decorreu com tanto
maior brilho quanto é certo que toda a gente obtivera o que desejara: a
União Sul-Africana, o novo Éden; o construtor, o lucro de uma soma
incontável de libras esterlinas; o presidente da câmara municipal, uma
vivenda na nova cidade, a preço excepcionalmente módico, etc., etc.
Regressaram ambos a casa. No terraço da sumptuosa moradia, fronteiro ao
oceano, fumaram mais um cigarro. “Sinto-me fatigado, disse Cadar; -
vamo-nos já deitar não é verdade? …

- “Está bem”, assentiu ela, conservando-se em silêncio um instante; e


acrescentou: “pus na idéia que podíamos esvaziar juntos uma taça de
champanhe, agora a sós, os dois”.
- De bom grado - respondeu ele, distraidamente - Tens sede?
- Muita sede, não tenho; mas vejo que te esqueces-te …
- Perdoa, querida … - disse ele imediatamente - estava na verdade
descuidado e esquecido, mas toda esta balbúrdia de hoje.
Dirigiu-se para o bufete, onde pegou numa garrafa de champanhe francês e
em duas taças. Arrancou o arame do gargalo da garrafa, e a rolha foi
expelida com um ruído seco na noite azul. Era a noite do quarto aniversário
do seu casamento.
Tocaram as taças uma na outra, esvaziaram-nas, abraçaram-se e foram-se
em seguida deitar.
CAPÍTULO XIX

Cada dia que passava punha mais um tijolo no muro de separação entre
António Kádár e A. T. Cadar. Esse muro erguia-se por si próprio … não era
Kádár quem o construía … Assim como António Kádár nada, ou muito
pouco, fizera para chegar àquele ponto. António Kádár postara-se
simplesmente debaixo do céu, pensando muitas vezes, com os dentes
cerrados, que havia de vir o bom tempo, que tinha de ser … custasse o que
custasse. Postara-se simplesmente debaixo do céu, consentindo que O sopro
de uma bofetada, de uma doença ou de um beijo o arrastasse para A. T.
Cadar. O muro que se erguia entre a sua vida presente e o seu passado
atingia já grande altura. Ocultava-lhe já a imagem das coisas e das pessoas
de outrora, o som das músicas de antonio, o jato das antigas recordações.
Para cá do muro a vida era diferente … ou, dizendo melhor, para cá do
muro a vida era verdadeiramente a vida, E para lá do muro? … Que
importava o que havia para lá? … A grande empresa prosseguia
infatigavelmente a sua expansão, o trabalho aumentava e os depósitos nos
Bancos, tanto em Londres como em Pôrto-Isabel, iam em contínuo
acréscimo. A mulher era a sua companheira, no mais amplo sentido, desde
o ébrio minuto dos abraços até ao matinal passeio a cavalo; desde os
cálculos eriçados de algarismos, sobre a mesa de trabalho, até às muitas
revistas profissionais, que ela se não dispensava de ler também; desde os
numerosos filmes sonoros até ao teatro de Johannesburgo, aonde os levava
sempre, à viva força, o seu representante naquela cidade, Joe Lewis, todas
as vezes que ali se demoravam alguns dias. A mulher era a sua
companheira, quer quando permanecia a seu lado, quer também quando o
deixava sozinho, quando isto se lhe tornava necessário, quando se sentia
fatigado, quando estava nervoso, quando se via saturado de tudo e quando
carecia de algumas horas de solidão viajando em caminhos de ferro, ou na
sua casinha de week-end, no Bairro Helena.
Ao seu redor viviam ingleses, alemães e holandeses, relações estabelecidas
pelos negócios, amigos ou estranhos. Não faziam mal a ninguém, nem
tampouco ninguém lho fazia. O sol brilhava eternamente e os dias
escoavam-se, desta forma, numa despreocupação laboriosa, na saúde do
espírito e do corpo. Um dia, logo que instalou na moradia o novo aparelho
de T. S. F., passou o serão em demanda de sons no seio do éter. De súbito,
ouviu nitidamente uma voz de baixo … “Ides ouvir Dajos Bela e a sua
orquestra de boémios”. Seguiu-se, de facto, uma música boémia. A melodia
pareceu-lhe familiar, mas as palavras, dessas não se lembrava já. Escutou
durante algum tempo, reprimindo a respiração, e por fim deu volta ao botão.
Pendurado a parede, havia no seu escritório um mapa-mundi. Às vezes
parava junto dele, a olhá-lo … Londres … Depois do seu casamento,
tinham passado um mês em Londres; Viena … onde diabo ficava essa
cidade? … Ah! sim … lá estava ela … Nunca mais tivera notícias de
Viena! … Budapeste … Havia exatamente bem seis anos que tivera, pela
última vez notícias de Budapeste; já se encontravam há quase dois anos em
Pôrto-Isabel quando se resolvera a escrever uma carta, endereçada para
Budapeste, a duas pessoas idosas: “Querido tio Rudi e querida tia Ana, sei
bem que é grande ingratidão da minha parte ter estado tanto tempo sem dar
sinal de vida.
Presentemente os meus negócios caminham bem e, desta feita, venho
simplesmente pedir notícias vossas. Queria ainda perguntar-vos se não têm
necessidade de alguma coisa. Aguardo a vossa resposta urgente. Mil beijos
do Tony”.
Decorridos quatro meses, viera devolvida a carta, apresentando as mais
variadas espécies de etiquetas coladas no sobrescrito, o que significava que
se tentara o possível e o impossível para a entregar aos destinatários. O
correio tinha feito um inquérito digno de todos os elogios. Por baixo da
direção da Avenida Pozsony, via-se a nota “Mudou-se para Marosucca, nº
17.” Sob esta segunda morada, nova nota: “Mudou-se para Szvetenayucca
ló, n.” 6”. Daqui a carta fora enviada para outro endereço, tido como o
último domicílio do destinatário; por último, por baixo deste, encontrava-se,
a lápis vermelho, à laia de suprema sentença, a palavra: Falecido, Olhara o
envelope assim pintalgado com um olhar frio e indiferente. Ter-se-ia
julgado, talvez, um homem de coração se uma lágrima lhe tivesse deslizado
então pelas faces, a não ser que se julgasse, antes, um hipócrita; e como as
lágrimas se haviam tornado para ele mais caras do que o dinheiro, solicitara,
para intermédio da Legação.
Inglaterra em Budapeste, uma investigação a respeito do caso. A resposta
não demorou muito: Rodolfo Bayer, inspetor reformado dos Caminhos de
Ferro, morrera, após dois meses de tratamento no hospital, de um cancro no
estômago, ao passo que a viúva abandonara Budapeste uns dias depois do
funeral do marido.
Segundo palavras ouvidas à porteira do seu último domicílio, ela partira
para a Itália, na companhia de uma parenta ainda jovem … Esta devia ser
Maria, a esposa do oficial italiano. “É louvável da sua parte, pensara Cadar,
ao mesmo tempo que atirava a carta para o fundo duma gaveta. Rompera-se
o derradeiro liame que o prendia a Budapeste. Antes assim.
“Não estou ainda velho. Sou novo ainda. Vivo. Para que serve ter saudades,
pensar a gente no passado? … Mas é que se põe a pensar nos vultos
esquecidos, quem se recorda dos nomes extintos, dos sons desvanecidos …
quem pensa em tudo que outrora, há muitíssimo tempo, foi a sua vida? …
Faz a gente por não pensar nessas coisas e chega até a duvidar que elas
tenham sequer existido.
QUARTA PARTE

A ARENA

CAPÍTULO I

Miss Edna, a secretária de Cadar, trouxe o correio da manhã.


Trinta e sete cartas. Colocou-as na borda da mesa de trabalho e saiu.
Cadar pegou na que estava ao de cima e que trazia O carimbo do correio de
Budapeste, com a data de 24 novembro de 1929. Olhou-a com curiosidade
durante muitos minutos e deu voltas sobre voltas ao sobrescrito antes de o
abrir com a faca de papel.
Leu: “Prezado Kádár, um pequeno grupo de antigo condiscípulos teus
envia-te uma amigável saudação por ocasião do Natal …” “É na verdade
engraçado, pensou. Como se lembrara eles de mim? …” Voltando a página,
encontrou a explicação. André KJ lemen … “Recordo-me dele, era um
rapaz de cabelos castanhos que se sentava no quarto ou no quinto banco do
meio … E de todos os outros: Guilherme Weisz, Um gorduchinho de
bochechas encarnadas; e Zátony … qual era o seu próprio nome? …
Já sei, era um louro franziní
E depois Simon …
Simon … Simon? … Já me não lembro de quem este é …” Keleu mais uma
vez a carta por inteiro.., “É engraçado”, comentou pondo-a de lado. E pôs-
se a abrir os outros envelopes.
Pelas onze horas Mrs. Cadar subiu ao escritório.
“Olha querida” disse-lhe ele mostrando a carta: depois, mesmo sem dar por
tal, prosseguiu em húngaro: “Acabo de receber de Budapeste esta curiosa
carta, lê-a.
Fiz os meus estudos no liceu com esses rapazes.” Mrs. Cadar leu a carta e
soltou uma gargalhada: “É verdadeiramente engraçado, declarou, e é gentil
da sua parte.
Umas boas-festas do Natal vindas muito a propósito.” Depois não se falou
mais no caso.
Passados uns dias, Mrs. Cadar lembrou-se da carta.
- Já respondeste aos sujeitos de Budapeste? … - perguntou ela ao marido.
- Não, ainda não.
Ele próprio pensara uns dias antes, ao voltar a encontrar a carta em cima da
secretária, que seria conveniente demorar a resposta. Mandou então
procurar, no seu mais recente dossier de referências da imprensa, aquele
número do “World Sunday Pictures” a que Kelemen fizera alusão na sua
carta. Mirou a fotografia: “
The famous architect of Hwigarian origina Era aquele número em que o
jornalista, não satisfeito em escrever a seu respeito algumas linhas, tinha
querido descrever também toda a sua carreira. Restituiu à coleção a dita
foto, e simultaneamente meteu a carta na pasta dos assuntos suspensos.
Mais dias decorreram sem que escrevesse a resposta.
Certo dia falaram, ele e a mulher, da viagem à Europa que havia bastante
tempo projetavam.
- Que dizes tu? - interpelou-a de súbito. - Se, depois de Londres e de Paris,
fôssemos passar uns dias a Budapeste, aí uma quinzena, por exemplo? …
Com um brando tom de oposição da voz, ela respondeu:
- Isso é por causa da tal carta? … Não tens ninguém lá em Budapeste
que … ou procurarás tu matar velhas saudades? …
Manifestações de sentimentalismo? … Quanto a mim, não quero ir a
Kassa …
Cadar olhou em sua frente, com ar sonhador:
- Não te compreendo … mas pouco importa; não é por causa de pessoa
alguma …
que desejo ir a essa terra.! Tens razão, não possuo já lá ninguém. É uma
cidade hoje tão estranha para mim como Roma ou Estocolmo,; por
exemplo. Simplesmente, nessa cidade estranha passei eu boa parte da minha
vida …
Calou-se. Fez-se silêncio. Ela sentiu a censura implícita; nesse silêncio.
- Tony - disse Helena - sabes bem que iremos aonde tu quiseres. Se queres
ir a Budapeste, pois bem! vamos a Budapeste. Tanto mais que nunca fui a
Peste.
Ele conservou-se em silêncio.;
- Sabes? - voltou ela a dizer - quando era rapariguinha, tive um desejo louco
de ir a Peste. Teria dado lá, uma saltada, se Myera … Depois, vi tantas
grandes cidades do estrangeiro, não vi Peste! Hoje, a cidade de Peste deve
estar completamente diferente do que era então.
Um sopro tépido passou sobre o terraço, na serenidade da noite … o sopro
do Oceano Índico.
- Sim - confirmou Cadar - deve estar bastante modificada. Deve-se ter
desenvolvido muito, com certeza.
CAPÍTULO II

Cadar sentara-se diante da sua máquina de escrever, em que se encontrava


metida uma folha de papel com o timbre da firma: “Abley, Alexis, Cadar,
Hutton & Scott, Ar-íji quitects, London”, tendo por baixo, a vermelho,
indicação “Colonial Section, Port-Elisabeth”.
“Meu caro Kelerneri, a tua carta deu-me muito prazer como é natural,
lembro-me bastante de ti e de todos mais que a assinaram. Há muitíssimo
tempo que nos não vemos; eis o motivo por que me seria difícil e também
inútil falar de mim numa breve carta. Em compensação! é muito possível
que vamos a Peste na próxima Primavera, pois tenho assuntos a tratar em
Londres, e já tencionávamos viajar pela Europa. Deste modo, é na
esperança de brevemente vos tornar a ver, que vos saúdo, a todos. António
Kádár.” - E se não formos a Budapeste? … - perguntou Mrs. Cadar, lendo a
carta.
- Tanto pior, nesse caso! Esta carta, aliás, não encerra compromisso algum.
CAPÍTULO III

Julieta estava de pé junto da porta da cozinha. Ela enxugou a mão ao


avental, na ocasião em que ele entrou na ante-câmara, - O senhor tem uma
carta, é uma carta da América, de um país … uma coisa assim parecia com
Isa …
Isa …
O sangue fugiu das faces de Kelemen. A mão tremeu-lhe ao levar a carta
para debaixo da lâmpada. “Meu Deus!” … era a resposta de Kádár! …
Tinha sido em 24 de novembro último que ele mesmo levara a
correspondência do escritório ao correio, afim-de, pela sua própria mão,
deitar na caixa a carta para Kadár …
e estava-se agora em 6 de fevereiro. Haviam decorrido quase três meses …
um longo trimestre durante o qual o nome de A. T. Kádár se lhe tornou uma
verdadeira ideia fixa. Dias houve em que se supôs já na maravilhosa cidade
africana, inimaginável para ele e que, por consequência, se lhe pintava na
mente ao inteiro sabor dos caprichos da sua fantasia. Ele era o amigo, o
confidente e o braço direito do nababo A. T. Cadar.
Mas, em contrapartida, havia noites que escorraçavam da sua cabeça estes
devaneios; noites más e abjetas durante as quais chegava a convencer-se de
que jamais encontraria o seu ídolo. “Por que carga de água viria ele a
Budapeste? …
Por que diabo se daria isso? … Seria idiota pensar que a minha carta lhe
poderia ter ido escoltar o amor-próprio. “… Alguns regozijaram-se como
eu, outros mostraram um pouco de inveja, mas todos nós, no fundo,
experimentámos admiração pelo teu êxito na vida … Com um palavreado
assim podia-se fisgar um homem de Perto, mas nunca … um estrangeiro,
ainda que ele fosse de origem húngara …
É natural que o tenhamos invejado … mas que se importará ele com
isso? …”
Essas noites tinham-se tornado tanto mais terríveis quanto era certo que
Kádár e Pôrto-Isabel constituíam então a única cartada que lhe faltava jogar.
A casa onde estava empregado despedira doze pessoas em Janeiro. Salvara-
se por um tris dessa feita, mas desde aquela data o seu chefe de escritório
Czilek tratava-o de maneira insuportável. Em cada palavra que lhe dirigia
transparecia uma espécie de advertência, a modos de quem quer dizer:
“Desta concedi-lhe perdão, mas, para a outra vez, serei impiedoso.” Porém,
como a carta enviada a Kádár não viera devo vida e, se bem que não tivesse
tido resposta alguma, era ainda tempo de desesperar de a receber, restava-
lhe este derradeiro triunfo, este biberão de ópio que, na solidão amarga dos
seus serões, podia sugar, que o ajudava a subtrair-se à realidade do seu
cobertor já muito coçado, da sua lâmpada nua, sem abajour, da exalação
bafem da sua cama sem conforto. Era ainda assim, um benefício ter esse
caso do Kádár … embora o pensar nele nada lhe desse de positivo, não lhe
proporcionasse a menor sensação de bem-estar, compensatória de tantas
adversidades passadas e presentes que lhe perseguiam o sentido o
bacharelado incompleto, os sucessivos conselhos de visão durante a guerra,
falências nos negócios de peles nos bancários e, por último, a nenhuma
probabilidade de aumento de ordenado.
E eis que, nessa noite, quando ele menos a esperava lhe vinha tão à mão
aquela carta, a almejada resposta, linhas dactilografadas de Kádár. É muito
possível irmos na próxima Primavera a Peste … é também na esperança de
os tornar a ver brevemente que …” isto representava até mais do que ele
pusera no seu desejo, de que usara aguardar.
“Santo nome de Deus!- exclamou Kelemen,- sei muitíssimo bem que não
sou uma personagem notável, que não passo de um mísero falhado, mas
quando me acontece farejar qualquer coisa …”
CAPÍTULO IV

Refletia: deveria apressar ou retardar a sua ida ao café, deveria ser o


primeiro ou o último a chegar lá? Deveria pôr-se a gozar o espanto dos seus
“companheiros”, um por um e à medida que fossem entrando, ou seria
preferível provocar o efeito duma bomba colocando, em plena assembléia, a
carta em cima da mesa? Se a fosse mostrando a cada qual de per si,
garantir-lhe-ia isso um muito maior sucesso pessoal; mas, ao invés, lançar a
coisa em sessão plenária tornar-se-ia mais simples, além de que, verdade
verdade, não era indispensável que se falasse excessivamente no assunto.
Já passava das onze horas quando chegou ao café. Sentou-se e, daí a pouco,
no decurso da conversação observou como por mera incidência: “Agora a
propósito.
Já chegou a resposta do Kádár.” Todas as cabeças se voltaram,
instantaneamente, para o lado dele. Tirou então da algibeira a carta do
Kádár e arremessou-a para o meio da mesa. Foi Róna quem se apoderou
dela.
- Porque carga de água te escreve ele a ti, se fomos todos nós a assinar …?
- Escreve-me a mim - respondeu Kelemen com toda a sua arrogância -
porque suponho, deves lembrar-te de que combinámos que seria eu a figurar
como remetente. Ou já estás esquecido disso? …
- É exato, não te enxofres, já me não lembrava do caso.
- Deixa ver o sobrescrito - interveio Simon - tem-lo ainda em teu poder?
Kelemen apresentou o sobrescrito …
- Julgas que fui eu quem escreveu essa carta … Fui eu talvez quem mandou
imprimir esse timbre no alto da folha …
- Não te compreendo, meu velho - respondeu Simon estendendo a mão para
o sobrescrito - Porque motivo procuras conflitos esta noite? … Porque
pareces tão excitado? …
A carta é, sem dúvida, autêntica, e levou nada menos do que trinta e quatro
dias para cá chegar, disse ele passando-a ao vizinho.
A-par da carta, o sobrescrito também andou de mão em mão. Quando
chegou à de Kempner. este deu-lhe voltas sobre voltas. Depois, dirigindo-se
a Kelemen:
- Se fazes favor, meu caro Kelemen, gostaria de ficar com os selos. O meu
rapaz faz coleção, e estou em crer que lhe faltam precisamente estes. - Em
seguida, sem esperar sequer a resposta, Kempner puxou do canivete, abriu-
o e deslocou do envelope, com extrema prudência, os selos. Foi
consequentemente, o filhinho de Kempner, professor do liceu, quem em
primeiro lugar tirou proveito do caso
Kádár. Logo que Kempner restituiu o sobrescrito, Króh tomou a palavra,
mergulhando raivosamente, conforme era seu hábito, o olhar no do
interlocutor; - Olha lá, Kelemen? … Tu escreveste-lhe em separado? …
Kelemen tornou-se escarlate.
- Idiota! - negou ele - porque razão havia eu de lhe escrever à-parte? Que
quer isso dizer?
- Ouve - replicou Króh - arrastando as palavras com lentidão enervante.
Porque motivo estás esta noite tão melindroso? Não te perguntei se lhe
havias solicitado qualquer favor; quis simplesmente saber se lhe tinhas
escrito mais alguma coisa, em separado. Mas visto que afirmas …
Desdenhoso, Kelemen desviou a vista da do outro, enquanto Weisz, que,
segundo o seu velho costume, tomava sempre o partido de Kelemen,
apostrofou, entre dentes: “Idiota!” O Dr. Marton, cujo charuto apagara
momentos antes, reacendeu-o, - Está bem, está bem - disse ele a mascar uns
fios de tabaco. - Respondeu, e isso é gentil da sua parte. Manda dizer que é
possível vir a Budapeste. Também é gentil, embora não seja certo.
- Mas, afinal de contas - comentou o advogado Szeníle … - é gentil da sua
parte vir, sim; porém, ninguém o convidou a tal. Se tem de vir, que venha;
de contrário que nem ponha cá o pé … Asseguro-vos que não me não
deitarei de barriga no chão perante ele.
- Tens razão - observou o irónico Weisc creio que farias uma tristíssima
figura deitado no asfalto, de barriga para baixo. E, contra o que dizes, estou
persuadido de que, se ele vier, ficarás muito satisfeito, e de que, se o formos
receber em comissão, quererás ser o nosso orador.
- Tanto mais que - replicou o outro - se eu abrir a boca, não há-de ser para
dizer só asneiras …
- Paz, haja paz, meus senhores! … sinto-me radiante ao verificar que reina
uma permanente simpatia entre vocês todos - interveio o miúdo Zátony … -
Isso são coisas que ainda vêm longe … têm tempo de sobra para questionar
a seu respeito … Digam-me antes se já ouviram falar no casamento do
Varga?
- O quê - espantou-se um deles - qual é a viúva ricaça com quem vai
casar? …
Todos os restantes que estavam em torno da mesa ergueram um coro de
chacota e Zátony continuou a discretear sobre um tema assim tão bem
acolhido.
Meia-noite dada, começou a desguarnecer-se a mesa. Foi Róna quem,
depois de um enorme bocejo, se levantou em primeiro lugar. Voltando-se
para Kelemen, disse:
- Saúde e até Março! Se até lá tiveres notícias do Kádár, farás o favor de me
prevenir imediatamente.
Também os outros se aprestaram para a retirada imediata.
No instante último, cada qual encontrou ainda de súbito, a sua frase a dizer
a respeito de Kádár. “Se receberes mais notícias dele …” “Se ele chegasse
imprevistamente sem nos avisar,..” e assim sucessivamente …
Kelemen dirigiu-se para casa, na companhia de Simon. No meio da avenida,
Simon com um gesto largo, atirou para a calçada a ponta do cigarro, ainda
acesa:
- Olha lá, Kelemen, tu não crês que se poderia fazer qualquer coisa? …
- O quê? - interrogou o outro, fingindo não compreender ao passo que o
coração se lhe punha a palpitar com mais força.
- Sim, é claro, com Kádár, se ele viesse a Peste. Atenção! … Ele e aquele
Simon nunca haviam sido muito amigos um do outro … Sem posição social
bem definida … difícil seria saber, presentemente, quais os seus meios de
vida. Era vagamente jornalista, colaborador de revistas cinematográficas e
de folhas que exploravam o escândalo. Apresentava-se bem vestido,
frequentava os botequins noturnos, não andava senão de taxi, dava-se ares
de ter dinheiro. Talvez ele jogasse as cartas … Aquele Simon podia tornar-
se perigoso. Era preciso manter a atenção fixa sobre ele. - Cada vez te
compreendo menos … que queres dizer com isso? …
- Evidentemente, realizar qualquer coisa com ele, - Mas realizar, então, o
quê? …
- Não te faças idiota … Sei lá! … Realizar com ele, seja o que for! … Um
negócio no qual, necessariamente, não fosse ele a comer o dinheiro e donde
nos adviesse um lucro certo. Ainda é cedo para a gente se meter na cama …
Não queres vir daí comigo até ao Casino, para tomarmos, num instante, um
café?
CAPÍTULO V

Aladar Szende, advogado em Budapeste, ergueu-se da sua secretária,


descavalgou do nariz a luneta de mola, limpou-a cuidadosamente com o
lenço de seda violeta:
- Não, meu caro confrade - disse ao advogado da parte contrária, que se
encontrava na sua frente, sentado numa poltrona, ao mesmo tempo que se
dava a verificar a nitidez das lentes olhando através delas para o lado da
janela - não há mais nada a fazer. Há-de de convir, afinal, meu caro
confrade, que o empréstimo de que se trata tinha sido encarado para o prazo
de ano e meio e que foi precisamente o seu cliente quem protestou quando
lhe ofereci esclarecermos imediatamente o contracto por três ou quatro
anos, o que teria sido então aceite pelo meu cliente. Estamos atualmente na
quarta prorrogação de um ano, e é bem compreensível que o meu cliente
não queira, sobretudo em face da penúria de dinheiro que reina nestes
nossos dias …
- Eu não digo … Sei bem que é hoje difícil encontrar quem empreste sobre
aquela casa. Em compensação, basta uma aragem favorável dos negócios, aí
por três para que a fábrica por si própria se ponha à altura de reembolsar o
empréstimo. Mas se nos obrigarem a retirar esses sessenta mil pengoes do
fundo das operações correntes, será para ela um golpe mortal.
- Lamento, meu caro confrade, mas isso precisamente é uma coisa com que
o meu cliente nada pode ter.
E se, para abreviar, eu me visse obrigado a declararmos desde já que no dia
5 de Maio próximo futuro o meu cliente não estará em condições de fazer
face à liquidação do débito? …
- Meu caro amigo, procederemos então contra vós, requerendo uma
penhora, a não ser que …
O outro soltou um suspiro de alívio. Aquele a não ser que” custaria caro,
sem sombra de dúvida. Aquele “a não ser que” mostrava o dente do
usurário, e todavia, por trás, da frase, podia existir a tábua de salvação à
qual se agarraria o industrial em risco de afundar-se …
- Pois bem! que quer dizer com isso?
- Penso, de facto, que, antes do mês de Maio, chegará a Peste um dos meus
amigos, um cliente que reside no estrangeiro, homem que possui grande
fortuna.
Se eu conseguisse interessá-lo pelo prédio de que se trata, seja sob a forma
dum empréstimo a longo prazo, seja mesmo sob a da sua aquisição - a preço
razoável já se deixa ver - nós poderíamos partilhara comissão, meu caro
confrade - disse Szende a rir.
- Acredita, nesse caso, que …?
- O que acabo de dizer é sem compromisso algum. A data da chegada do
meu cliente nem sequer se encontra ainda fixada. Ele ultimamente
comunicou-me que chegaria durante a Primavera, mas repito-lho, o que
acabo de dizer a seu respeito não passa de simples sugestão, sobre a qual
seria prematuro assentar já qualquer acordo.
CAPÍTULO VI

Ficar-te-ia infinitamente grato, meu caro capitão {16}, disse Simon se quiser
fazer tudo o que está ao teu alcance.
- Mas, da melhor vontade, meu caro, repito-to; o seu registro criminal está
virgem; ele não deu sinal de si durante o regime comunista. No Outono de
1919, tirou um passaporte para toda a Europa e, segundo as indicações da
estação ferro-viária fronteiriça, saiu do país por Hegyes-haiom. Quanto a
esse sr. Bayer, em casa de quem declarou ter estabelecido domicílio e com
quem, de facto, viveu nos últimos tempos da sua estada lá, na Avenida
Pozsony, o homem morreu há já bastantes anos. Mandei tirar informações a
esse respeito. No concernente à sua estada em Budapeste, nada mais há a
fazer … Mas, se o desejas, vou falar a Vitoresco, da legação da Roménia,
para que lhe ordene um inquérito em Deva, sua terra natal; isto também
nada te custará. Vitoresco prestar-te-á de bom grado esse pequeno serviço.
- Tu és um anjo, meu caro capitão, fico-te muito reconhecido.
- Espera … Deixa-me tirar apontamento de que desejas exatamente saber.
- Tudo o que se puder apurar a respeito dele, da família, se ainda tem
parentes lá na terra, o seu nome e a sua situação … em suma, todos os
informes que lhe digam respeito.
- Compreendo. Inquérito geral. Torna a passar por aqui ou, antes, telefona,
vamos lá … daqui a duas ou três semanas, três é mais certo, porque estas
coisas exigem sempre delongas.
- Combinado, meu caro capitão, então até daqui a três semanas.
Antecipadamente to agradeço. Mas, afinal, quando é que tenho de enviar-te
as notas devidas por esta investigação? …
- Ah, é verdade, as notas … Quando quiseres, meu velho; se se arranja a
coisa, pode ser no sábado à noite.
- Combinado, capitão. Passa bem … Apresenta os meus cumprimentos lá
em casa.
CAPÍTULO VII

O esguio Weisz cobriu-se, mal atingiu o limiar da porta; mas quando já ia a


sair deu meia volta sobre os calcanhares e, de chapéu na cabeça, tornou ao
meio do aposento. Uma mulher de cabelos ondulados, tom louro claro,
permanecia perto da janela, na atitude de quem já se sentia maçada da
prolongada presença do intermediário de arrendamentos.
- Engana-se, minha senhora - declarou Weisz - se supõe poder alugar a sua
parte de casa retirando-me o direito de opção. Ela alugar-se-ia, pelo
contrário, bem mais facilmente, se, em vez de me retirar esse direito, a
senhora baixasse o preço. Ando agora à procura de uma coisa adequada a
um dos meus clientes, um arquiteto estrangeiro que há-de chegar dentro em
pouco a Peste … um milionário. Existe uma parte de casa numa vivenda de
Buda, na Avenida Pasarét: quatro quartos, vestíbulo, varanda janelas largas
como estas; tudo pintadinho de branco imaculado, cozinha subterrânea, casa
de banho para o pessoal, casa de banho para os patrões, etc … Um mimo …
Está vaga desde há ano e meio, porque fica um pouco longe. Sabe o que me
disse o proprietário? … É um tal Hevesi. Disse-me: Meu caro Weisz, que
Deus o abençoe: alugue-me você esta parte de casa por quatro mil pengoes,
tudo compreendido no preço; até mesmo só que seja por três mil, se for
preciso. Você terá 20 % para si. Alugue-a pelo prazo de dez anos ou
simplesmente para o Verão, contanto que consiga alugá-la, pois ver sempre
estes escritos na porta já me implica com os nervos”. Estou em crer que esta
parte de casa convirá ao meu amigo estrangeiro, que poderia toma-la por
um trimestre ou por seis meses, para todo o tempo da sua estada aqui.
Para ele, uma nota de mil a mais ou a menos não tem importância. Tenha,
pois, a bondade de refletir, minha senhora.
Como que para se abrigar deste alude de palavras, a dama ficou a encostar à
janela.
- Diga-me cá, meu caro senhor Weisz, respondeu ela numa voz hesitante e
levemente enrouquecida - não acha que é melhor manter o preço até à
chegada desse senhor estrangeiro? … Não poderá o senhor, da mesma
forma, fazer com que ele venha visitar a minha casa, que fica, mesmo
assim, um pouco menos distante do que essa da tal vivenda? … Isto no caso
de, por infelicidade minha, ainda estar vaga quando ele chegar.., Quanto à
sua visita … seria sempre possível trazê-lo cá. Quem nos diz que não é
justamente esta parte de casa que vem a agradar-lhe? …
CAPÍTULO VIII

Amman fincou os cotovelos na secretária e tomou a cabeça entre as mãos,


enquanto escutava Suhajda, que, sentado em frente dele e com os olhos
fixos no solo, lhe falava numa voz arrastada e um pouco áspera:
- Tu sabes bem, não é para me lamentar que venho aqui, é para te pôr ao
facto das coisas. Foi com o mais vivo empenho deste mundo que me
recomendaste, mas moveram-se pressões mais fortes contra mim.
Compreendes bem, não em favor dos outros, mas unicamente contra
mim … É assim mesmo. Impossível obter um modesto lugar nos Seguros
Sociais, que nem sequer me forneceria o pão quotidiano, mas apenas
algumas moedas.
- É horrível - disse docemente Amrnan - sinto-me sinceramente desolado.
Mas a tua clientela particular? …
- A minha clientela particular? … - murmurou Suhajda erguendo o olhar
quase com uma expressão de censura. - Se isto assim continua ser-me-á
impossível pagar o miserável quarto que aluguei. Não, Amman, não se trata
agora da crise, da miséria dos médicos, trata-se única e especialmente de
mim. A que é devido o triunfo? … às proteções e à reputação, adquiri uma
bastante lastimável …
Amman bocejou como um hipopótamo. “Desculpa-me, mas dormi noite
passada apenas algumas horas porque a conferência no Ministério acabou
bastante tarde.
Compreendo a tua situação e lamento-te. Por mais penoso que seja para
mim dizer-to, a única solução que vejo para a tua vida é expatriares-te.” Em
seguida, acabado o seu discurso, empertigou-se de súbito na cadeira.
“Escuta, acrescentou, tenho uma ideia. Tu sabes que aquele Tony Kádár
vem agora a Peste. E sabes também a carreira que ele conseguiu fazer na
África … Pois bem! meu velho, sem que eu possa prometer falar-lhe em teu
favor, porque, digo-te com a máxima franqueza, quero por meu lado
manejá-lo para um negócio de exportação, não hesito em dar-te um
conselho: acerca-te inteligentemente dele. No fim de contas em África
também há necessidade de médicos. Quem sabe? No liceu, davas-te bem
com ele? … Bem entendido, o que acabo de dizer-te deve ficar estritamente
entre nós …”
CAPÍTULO IX

Róna inclinou para trás a cadeira em que estava sentado, fê-la balançar,
estendeu as pernas para os pés da mesa e pôs-se a esgravatar os dentes:
- Olha, papá, ainda te lembras do Kádár, que andou comigo no liceu? …
- Kádár? … - interrogou o ancião - Não, como era ele?
- O gorduchinho que vinha aqui jogar tantas vezes ao ping-pong -
esclareceu a boa e idosa mamã - lembro-me eu dele muito bem.
- Não, mamã, não - retificou Róna - Primeiramente, o Kádár não era baixo e
gordo, mas alto e magro; em segundo lugar, ele, na sua qualidade de cristão,
não frequentava a nossa casa. Quando muito, podias lembrar-te de o veres
nos exames.
- Não, nesse caso - disse a velha dama - não me lembro dele. Que sucedeu
ao tal Kádár? …
- Foi para a África do Sul e fez lá enorme fortuna.
- Enorme fortuna? … - interrompeu o velhote, já mais atento a certeza
disso? … Começa por que não sei se tu saberás, meu filho, o que se entende
por enorme fortuna …
- Tranquiliza-te a esse respeito, papá. Eu que te digo que adquiriu uma
enorme fortuna, é porque assim é; e o Kádár virá muito brevemente a Peste.
- Que vem cá fazer? Por causa de negócios?
- Não, uma simples viagem de recreio. O seu maior prazer consistirá em
verificar que, presentemente, está toda a gente aqui na penúria, ao passo que
ele, lá naquelas terras, fez fortuna.
O ancião, que, aliás, se havia retirado do mundo dos negócios já uns anos
antes, acariciou com o índex da mão direita a sua barbicha branca, gesto
que, na sua pessoa, era sinal de meditação comercial. “Ouve, Ladislau, disse
ele, após breve reflexão. Tenho uma ideia. Se o teu amigo é, na verdade, um
homem tão rico como dizes …
talvez nós lhe pudéssemos impingir o serviço de porcelana de Herend, de
vinte e quatro peças, que te carrega nas costas desde a falência do conde
Stambach … Se ele, verdadeiramente, tem tanto dinheiro como isso …”
Ladislau Rória tirou o palito da boca, quebrou-o entre os dedos e atirou-o
para cima da toalha.
- Nem sequer pensas que, querendo ele porcelanas finas, não precisará de
vir comprá-las a Peste? … Em todo o caso … pode-se fazer uma
tentativa …
CAPÍTULO X

Na sala denominada “Sala dos Conselheiros Municipais”, do Distrito


Burguês, o advogado Marton encontrava-se no meio de um grupo bastante
numeroso.
Marton ainda não era membro do Conselho Municipal, mas, para as
eleições próximas, o seu nome vinha à testa da lista dos candidatos. O
advogado possuía uma bela voz de barítono.
“… Estou concorde, meus senhores, estou concorde. Ninguém é profeta no
seu país. Não obstante, é doença tipicamente húngara não reconhecer os
talentos da nossa própria terra, ou, se por acaso os reconhecemos, não lhes
render as homenagens que merecem. Acode-me isto ao espírito perante o
facto de um dos meus amigos, antigo camarada de liceu, ter partido daqui
há anos, repelido por todos, não levando consigo, na sua pobre trouxinha,
mais do que o seu talento e inabalável vontade de fazer face a todos os
obstáculos. E, com essa indomável vontade, ele voltou costas à nossa bela
mas ingrata cidade de Budapeste.
Eis que, decorridos longos anos, tendo ascendido ao cume da sua carreira,
ele pega na pena e me escreve nos seguintes termos:
“Sinto a nostalgia da pátria húngara, de Budapeste, dos meus antigos
amigos. Não vos quero na alusme procurar o vosso seio, encontrarei
acolhimento afetuoso? …”.
“Quem, entre vós, meus senhores, conhece o nome de Kádár? … Ninguém,
não é verdade? … E, todavia, ide gritar este nome não importa em que
metrópole da Europa da África ou da América, e imediatamente centenas e
centenas de pessoas se mostrarão atentas. “O célebre arquiteto húngaro”,
dirão elas Se depois disto, nós não tivermos força bastante para conservar
connosco, daqui para o futuro, um homem assim, em proveito da nossa
cultura, da nossa economia, da nossa coletividade, ou seja, indiretamente,
em proveito de cada um de nós, então, meus senhores, só me restará deixar
cair o fecho no chão e declarar: “Não somos merecedores do que …”
CAPÍTULO XI

Desta maneira, desde que, na sala de espera dum dentista, certa gravura fora
arrancada a um magazine, António Kádár tornara-se uma autêntica figura
lendária. Dimanada duma mesa de café e impelida pelas vibrações etéreas,
da imaginação, uma onda tinha ido atingir milhares de receptores da cobiça.
A princípio, apenas uma dúzia de pessoas se pusera ao corrente do caso;
depois, sob promessa de sigilo, essas doze haviam iniciado outras doze … e
assim sucessivamente. Os cérebros sentiam-se excitados,; apuravam-se os
ouvidos, surpreendiam-se olhos dilatados, abriam-se muitas mãos. Quando
entrou a Primavera, a cidade, à laia de arena e graças a mãos cuidadosas,
via-se limpados detritos da existência cotidiana; pás invisíveis e
destramente manejadas recamavam-na da areia loira, cor de oiro, das idéias.
Cada qual esforçava-se por parecer mais importante e maior do que era de
facto, a fim de arrancar um mais avantajado pedaço da presa comum. A
beca de cada um punha-se antecipadamente a andar à roda por causa da
vertigem em que esse mesmo estava resolvido a fazer voltar a cabeça de
certo semelhante seu. Imersas na miséria, as imaginações sementes
farejavam a mina de oiro; os apetites desenfreados saboreavam de antemão
o fino assado que lhes iria cair debaixo do dente; no arco preparado para
desfechar, caçadores afincavam se na espera do Pássaro Azul. Amadores e
profissionais, ricos e pobres, falhados e arrivistas aplicavam igualmente o
ouvido, perscrutando o céu primaveril … “Escuta … talvez agora … não o
ouves? …”
Por este mesmo tempo, já em Londres, António Kádár instalara-se numa
das salas da poderosa empresa, diante de sua máquina de escrever portátil, a
redigir uma carta para Budapeste.
“Meu caro Kelemen: De harmonia com o que já de Pôrto-Isabel te mandei
dizer, poderemos efetivamente fazer a viagem a Budapeste. Chegarei aí,
com minha mulher nos fins de Maio ou princípios de Junho, depois de
passarmos por Paris. Se isto te não fosse sobremaneiramente incómodo, far-
me-ias o obséquio de mandar reservar, em seguida à recepção de um
telegrama meu avisando da nossa partida, dois quartos com casas de banho
privativas, no “Rítz”. No caso de te não ser possível isto, peço-te que me
desculpes o incómodo e que me previnas do facto, numa só palavra que
seja, para a minha direção em Londres. Adeus, até breve …
Sempre muito cordialmente, Kádár.”
CAPÍTULO XII

Foi uma verdadeira sorte a carta ter chegado só alguns dias depois do mês
de Abril. Kelemen não disse nem uma nem duas. Decidiu imediatamente
não prevenir os “companheiros” da vinda desta segunda carta. Teria tempo
disso quando chegasse o telegrama de Kádár. Não se tornava necessário
falar demasiadamente no caso … Já a meia dúzia de palavras que, em
tempos, trocara uma noite com Sitinha bastado para o encher de
inquietação. “Existem, pois, outros mais, dizia de si para si, que, como eu
pensam, que se poderia tirar partida da vinda dele. É irritante,”!
Tratemos de pôr surdina no instrumento.” Por consequência, ficou
verdadeiramente aterrado quando um domingo de manhã, encontrou, na
avenida Andrassy,-Vavrinec, o qual se saiu com esta:
- Ouvi dizer que Kádár vem a Peste.
- Sim - respondeu ele aborrecido - é provável mas-não é ainda certo, Mas a
quem é que tu ouviste falar nisso?
- É assaz singular - replicou o outro - que eu não, tenha sabido diretamente,
da boca de vocês. Foi meu pai-quem colheu a notícia do cunhado de
Amniari. É desta forma que as notícias interessantes têm de chegar ao meu
conhecimento? …
“Fala-se então no caso - pensou Kelemen; não é necessário, por
conseguinte, que eu mesmo contribua para avolumar a publicidade em volta
dele.” Não soprou, pois, uma palavra sequer aos “companheiros”, mas
tratou de responder, sem demora, a Kádár:
“Sinto-me satisfeitíssimo com a vossa próxima chegada. Como é natural, o
assunto dos quartos ficará resolvido da melhor maneira possível.” Enquanto
esperava, ia suportando aquela atroz Primavera. Vivia uma dupla existência:
a que levava no escritório e no café, lenta e miserável; e a outra que
desabrochava na sua própria casa, pela noite dentro. Mal extinguia o luz,
olhava em frente, no escuro, sempre a meditar em Kádár e em Pôrto-Isabel.
Meditava em tal com a exclusividade duma ideia fixa, com a obstinação de
um cérebro prestes a sofrer desarranjo. “Há-de dar bom resultado! …
pensava ele; e não pensava se não nisso. Contudo, havia momentos em que
o seu eu cínico, a sua personalidade tipicamente pestense, observando-se de
fora, a si própria se advertia através dum esgar irónico: “Forte idiotice, a
minha! … Entusiasmo-me com este negócio como se o êxito dele
dependesse apenas de mim”. Mas estes raros instantes a lúcidos eram
varridos pelo devaneio em que se refugiara quase sem transição, após a
realidade por demais terra-terra dos anos anteriores, excessivamente cheia
dessa luta pelo dinheiro, transbordava de cuidados materiais e que lhe não
dera senão dissabores. Repetia a si mesmo, com o sorriso abstrato, lunático,
venturoso e extasiado dos dementes: “llá-de dar bom resultado … hei-de ter
sorte … a minha ora de sorte começa agora … Já começou quando reparei
na foto,.. E continuou quando, em Janeiro, não me despediram do
escritório … quando esta última carta chegou só depois da reunião do café,
não me vendo eu obrigado a falar nela. Sorte foi também poder arranjar as
coisas de modo a gozar as minhas férias na época mais oportuna …”
Transcorriam os dias. Um Maio radioso inundava a cidade de luz e de
alegria, Kelemen vivia, de olhos fechados, na ebriedade antecipada dos mil
projetos e das mil esperanças da sua futura existência. “Há-de dar bom
resultado.” Nada mais tinha para ele importância. Um sábado à noite,
jantando em casa da sua irmã Carlota, a mãe pôs reparo no seu ar distraído e
longínquo:
- Andrézinho que tens? … Porque te apresentas, desde há tempos, tão
preocupado e tão concentrado? As coisas no teu escritório vão mal?
- Não, mamã tranquilizou-a ele.
- Anda mulher no caso? … - perguntou Carlota, indiscretamente.
- Não, não se trata de mulheres - respondeu olhando fixamente a sua irmã
mais nova - Não minha coelhinha; trata-se mas é dum negócio de grande
calibre …
- Valha-te Deus! - exclamou a velha mãe, perdeste o juízo, André! …
A isto não retorquiu, vindo-lhe à ideia que se estava a 17 e que, daí a oito
dias, haveria reunião dos “companheiros” no café. Mas, depois, chegaria o
final de Maio e a seguir viria o começo de Junho …
Que bom seria esperar … num vasto prado luminoso e aromático … estar
debaixo do céu infinito e assim esperar por esse dia em que …
CAPÍTULO XIII

Em 3 de Junho recebeu de Paris o seguinte telegrama: Chegamos 5 noite


Oriente-Expresso, peço reservar quartos. Kádár.
Na noite de 4 os “companheiros”, prevenidos na manhã desse mesmo dia,
permaneceram juntos alguns minutos apenas. Zátony propôs, com
aquiescência tácita e inquieta de Kelemen, e afim de não assustar os recém-
vindos, que só Kelemen se dirigisse ao seu encontro, na estação de caminho
de ferro, e os acompanhasse ao hotel em que lhes estavam reservados
aposentos. Em contraposição, a maioria aceitou a moção de Simon, segundo
o qual, não se revestindo a recepção de carácter oficial dos quantos
quisessem nela participar teriam plena liberdade de se apresentar na gare.
Kelemen engoliu a custo a saliva e observou: “É muito natural,”
Finalmente, combinou-se que todos os que quisessem ir esperar o comboio
cuja chegada era pouco mais ou menos à meia-noite, se reuniriam pelas
onze horas no café, donde partiriam para lá em grupo.
CAPÍTULO XIV

Pelas onze horas, já se deixa ver que se encontravam todos no café, à mesa
habitual. Kóna apresentava-se vestido com calça de fantasia e jaquetão
preto.
Reparando no olhar irónico dum dos companheiros, explicou que vinha do
teatro.
Conversaram pouco, como se, nessa noite, o elo que os ligava se tivesse
quebrado.
Esse elo, constituíam-no ironia, a mofa, a incredulidade peculiarmente
pestenses, quais em conjunto formavam uma espécie de teia de aranha
dentro da qual se sentiam todos presos. O seu cinismo abrandava perante a
carta vinda de Pôrto-Isabel, o papel coberto de caracteres elegantes, grave e
distinto, perante o telegrama de Paris, aquilo não era bluff, poeira nus
olhos … Era coisa séria e que devia ser levada em conta, mesmo que nada
dali adviesse. E, afinal, que podia advir dali? … Nada, naturalmente.
Kádár, o milionário, chegaria, distrair-se-ia um pouco e voltaria a partir.
Quando muito, conseguiriam, entrementes colar-se a esse homem de destino
fantástico para colher também um pouco da poalha de oiro que ele aparecia
revestido. Mas, para isso, necessário era terem fé no mesmo destino, li
tinham-na, acreditavam nesse destino. Não se expandiam em palavras, para
se não denunciarem quanto ao abalo sofrido, naquele momento, no seu
ceticismo de pobres dias. Todavia, no meio dessa silenciosa tensão de
espírito, sabiam todos bem que, dentro em breve, iam encontrar-se face a
face com o Sucesso, essa coisa extraordinária e desconhecida que nunca
tinham deixado de invejar e de cobiçar.
Espiavam-se uns aos outros, consternados e um tanto envergonhados: era
aquilo possível? “Então eu, um rapaz de Peste, esperto, todo comovido
que …” E todos tiveram de confessar a si próprios, em segredo muito
íntimo, estupefactos e envergonhados, que criam nesse milagre, nesse
fenómeno … se bem que se não tratasse senão de um Tony Kádár … do
Pinguim.
Vinte minutos antes da chegada do comboio, estavam já no cais. A estação
via-se quase vazia: aquele comboio internacional devia parar apenas meia-
hora sob o seu alpendre envidraçado e, provavelmente, poucas pessoas
desceriam de comboio tão caro. Mediram a passos largos e vezes sem conta,
o cais, cada qual esforçando-se por mostrar um ar calmo e indiferente. Mas
o seu verdadeiro estado de alma produzia-se nos cigarros: havia-os que se
consumiam ao fim de poucos segundos, aspirados com nervosismo; outros
distraidamente esquecidos no meio da meditação, apagavam-se entre dois
dedos trémulos.
De súbito, uma comoção nervosa os trespassou a todos: ao longe, para lá da
abertura da gare, enxergaram-se os dois olhos de fogo da locomotiva e logo
se viu também uma grinalda de faíscas crepitando por cima da chaminé,
grossa como o cachaço dum touro, da máquina. O Orle I Expresso entrou
com pontualidade cronométrica na de Oeste.
Os olhos arregalados fitaram a série de janelas inteiramente escuras das
carruagens que desfilavam, com lentidão, diante deles. Foi Kelemen o
primeiro a descobrir Kádar, que assumava à portinhola, já aberta para trás,
da carruagem direta para Bucareste. Ei-lo! - bradou ele, o braço estendido.
No mesmo instante, Szende desatou a berrar:
“He, Kádár, salve! Aqui estamos!” Shnon, esse, chamou um carregador, e
depois todo o grupo se pôs a acompanhar a carruagem. Parado o comboio,
Kádár desceu e encontrou-se face a face com toda a companhia. Mudos,
encararam-se um instante, após o Kádár rompeu o silêncio:
- Boa-noite! Vejo que foi uma delegação completa que veio ao meu
encontro; é verdadeiramente gentil terem-se incomodado tanto por minha
causa. A falar verdade, eu não esperava isto. - Ao dizer tal notava-se sua
voz como que uma leve pesquisa de palavras e um leve sotaque estrangeiro,
dificilmente perceptível.
Despiu a luva da mão direita.
Neste momento Kelemen, em ponto de ebulição, avançou para ele. - Sê
bem-vindo, Kádár. Reconheces-me? … Sou o Kelemen. Viemos todos ao
teu encontro e sentimo-nos felizes por te vermos de novo nesta nossa terra.
- É certo! … - confirmou Szende ruidosamente - bem-vindo e bravo! Isto
causa-me verdadeiro prazer! … e, ao dizer tal, também ele avançou para
Kádár estendendo-lhe a mão.
Todos imitaram então o seu exemplo, todos estenderam a mão ao mesmo
tempo e apertaram, um a um, a dele, que a mantinha o mais possível
afastada do corpo, assim como quem pretende defender-se. No fim todos
aqueles apertos de mão, Kádár disse, voltando-se para a portinhola da
carruagem:
- Desculpem-me, vou ajudar minha mulher a descer.
Esta pequena pausa fora oportuna, porque basta um olho pestense um
minuto apenas para esquadrinhar até à moela uma pessoa estranha.
A primeira impressão colhida foi a de que Kádár era alto, bem mais alto do
que qualquer de entre eles todos. Tinha os ombros largos, o peito saliente;
apresentava a epiderme do rosto como se acabasse de receber a ação dos
raios duma lâmpada de quartzo: era uma tez rude, bronzeada pelo sol e pelo
vento, uma verdadeira tez inglesa.
Mas já novo espetáculo se oferecia aos seus olhares. Do último estribo, a
senhora de Kádár saltou em terra. Um vestido de viagem cinzento,
completado por uma boina e meias cinzentas, sapatos Richelieu cinzentos,
de saltos baixos, um lenço de seda, também cinzento, ao pescoço, luvas da
mesma cor. Da mão pendia-lhe um estojo de viajante, em forma de maleta,
que era igualmente cinzento. No meio desse cinzento todo, seus olhos
negros brilhavam com singular esplendor, fazendo contraste com o rosto
moreno.
- São os meus antigos camaradas de liceu - disse Kádár indicando o grupo,
e ninguém deu por que ele falava em húngaro. Nisto Kempner avançou dois
passos, a fim de pespegar o cumprimento em língua inglesa que decorara
mercê duma aplicação verdadeiramente professoral, sob a direção dum
colega seu, mestre de francês e de inglês. Saudou os recém-chegados nestes
termos:
- Madam! More than fourteen years have passed …
Mas não pôde continuar porque Mrs. Kádár, numa voz um pouco fatigada
mas em que o acento estrangeiro se fazia notar ainda menos do que na fala
do marido, pediu:
- Fale em húngaro, por favor, eu também sou húngara.
Foi uma surpresa que estava bem longe de ser esperada. Kempner, assim
projetado para fora do seu texto, ficou-se a olhá-la, de boca aberta; e todo o
grupo mostrou uma atitude tão consternada, tão ridiculamente surpreendida,
que, apesar de toda a sua natural fadiga, dos empuxões, do incómodo, da
poeira e da fuligem duma viagem de trinta horas, ela desatou a rir às
gargalhadas frescas e sonoras:
- Nem sequer punham isto na vossa imaginação, não é verdade? … Pois
também eu sou húngara.
Foi Simon quem, primeiro, recobrou a serenidade:
- Tanto melhor! Bravo! - exclamou. E esta circunstância provocou uma
pequena ovação tanto mais oportuna quanto é certo que o intermédio de
Kempner fora perturbar um tudo nada o primitivo programa da recepção.
Entrementes, Kelemen julgou chegado o momento de se destacar do grupo
e, dirigindo-se a Kádár, declarou em voz alta:
- Magnífico, tudo isto; creio porém que, após tão longa viagem, basta por
hoje.
Mandei-lhes reservar quartos no Ritz; o mais acertado seria a gente deixar-
vos agora, e que apenas um de nós vos acompanhasse até lá.
- Sim, é isso que convém, apressou-se a acrescentar a senhora de Kádár;
estou, efetivamente, um pouco fatigada.
Fosse porque o olhar brilhante de Kelemen lho tivesse sugerido, fosse por
efeito da correspondência trocada anteriormente entre ambos, Kádár definiu
sem demora esse desejo:
- Por que havemos de dar-lhes mais esse incómodo, se nós temos o
automóvel? … mas se tu, Kelemen, queres ter a amabilidade de
acompanhar-nos … Em todo e qualquer caso, vamos! …
Dirigiram-se para a saída. Ao abandonarem o átrio, chegavam aí os
carregadores com as bagagens: duas grandes malas-armários e seis maletas
de diversas dimensões. - Observa bem isto - disse Simon a
Marton, tocando-lhe com o cotovelo. - É alguma coisa, hein … - A senhora
de Kádár subiu para um taxi, enquanto Kelemen mandava pôr as bagagens
em dois carros mais. Kádár apertou a mão de cada um dos seus amigos,
dizendo-lhes:
- Grande gentileza a vossa, vindo esperar-me … Terei muito prazer, como é
natural, em tornar a ver-vos o mais cedo possível.
Talvez o melhor seja eu combinar isso com Kelemen, que depois vos
informará.
- Muito bem, Kádár.
- Combinado, boa noite.
- Boa noite! … Adeus.
- Mais uma vez, sentimo-nos muito felizes, sede bem-vindos.
Acompanharam Kádár até o carro e, enquanto ele se acomodava lá dentro,
despediram-se também da senhora de Kádár. Já Kelemen mandara seguir os
outros dois carros.
Subiu então, por sua vez, para o taxi, sentando-se no banco de dobradiça,
em frente do casal.
- Partamos - insistiu a senhora de Kádár, dirigindo gestos afáveis a todos. E
o carro pôs-se em andamento, Para o “Ritz”, passando pela avenida
Andrássy indicou Kelemen. Depois, dirigindo-se a Kádár:
- Permite-me que te ponha ao corrente do que fiz; mandei reservar dois
belos quartos com casa de banho comum, uma saletazinha de entrada e
varanda sobre o Danúbio. Ê da quarenta e oito pengocs a diária.
- Quarenta e oito pengoes - observou Kádár - menos de duas libras;
perfeitamente, agradeço-te …
Os “companheiros” dirigiram-se lentamente para a avenida central. Na noite
serena de princípio de verão, debaixo do céu negro e tépido, as miríades de
luzes da cidade cintilavam em concorrência com as estrelas que, no alto,
brilhavam em pleno esplendor. Batidas pelas luzes, as sombras indecisas
deles, com semelhança de títeres, imobilizaram-se uns instantes, para as
despedidas mútuas. E em seguida dispersaram.
CAPÍTULO XV

Kelemen, compenetrado do seu papel de guia zeloso, entreabriu a porta dos


quartos e meteu dentro a cabeça, como para se assegurar, num último olhar,
de que estava tudo em ordem. Encontrava-se tudo o melhor possível.
Do lado do elevador, acabavam de trazer as bagagens. Estendeu então a
mão a Kádár.
- Boa-noite, meu caro. Está pois combinado, telefonar-te-ei amanhã depois
do meio-dia. Evidentemente, se tivesses necessidade de mim antes … tens a
minha direção e o número do meu telefone, não é verdade? … Então,
adeus! - E abalou.
Puxou o chapéu para os olhos, ao descer a escada. Até ali, tudo ia à medida
dos seus desejos. Ao passar diante do porteiro, este saudou-o num rasgado
cumprimento. Kelemen correspondeu levando o índex ao chapéu.
Entretanto, Kádár e a mulher iam assomar-se ao balcão do quarto,
sobranceiro ao Corso {17} noturno. Rentes à água, havia luzes à beira do
Danúbio. A cidadela, o baluarte e igreja flamejavam batidos pelo clarão
teatral dos refletores. Até às vizinhanças do monte de Bude cintilavam
inúmeras luzes amareladas. Num sítio distante, para os lados da ponte, uma
luz verde. Ao longo do Corso, a perder de vista, um renque espaventoso de
luzes. No rio deslizava, sem rumor, um barco iluminado. E havia estrelas no
firmamento. Ouvia-se ao longe o ronco dos motores dos automóveis e,
vindo das águas, um aulido claro, grave e prolongado de sereia percutiu o
ar. Depois tudo se calou. Mas este silêncio foi interrompido pela música
discreta e aveludada dum jaband, que escorria do terraço sito no alto do
hotel. Ao ritmo do tambor e do piano casava-se o som doce e, todavia,
penetrante dum saxofone, que parecia rir e chorar ao mesmo tempo.
- É belo - disse ela - é na verdade muito belo, - Sim é belo - concordou ele -
Budapeste é uma bela cidade.
- Faz lembrar um cenário de teatro - observou Helena, - Calaram-se ambos,
uns instantes. Depois ela acrescentou: Que serenidade!
Sim, depois de estarmos em Paris … pode chamar-se a isto, aqui, um bairro
calmo.
- A-pesar-de tudo, a falar verdade, torna-se bastante singular que Budapeste
seja para mim … uma cidade estrangeira.
- Oh notou Kádár, há já tanto tempo … hoje, até para mim ela é também
estrangeira.
Faz-se silêncio. Durante momentos, arderam ainda dois cigarros no balcão
do segundo andar … Mas pouco depois passou a haver, sobre a margem do
Danúbio, menos dois clarõezinhos vermelhos e duas sombras humanas a
animar a noite.
QUARTA PARTE

A AVENTURA

CAPÍTULO I

As portas de dois batentes, quando abertas de todo para trás, formavam


estreito corredor através do lavabo, ligando os dois compartimentos-camas.
Apenas os leitos da parte de baixo se encontram descobertos. Um dos
compartimentos está imerso em escuridão, ao passo que a lâmpada de
cabeceira se conserva acesa no outro, Reina o silêncio, esse silêncio
específico dos comboios, o qual acompanha com a sua tranquila monotonia
o ritmo das rodas … um, dois, três, quatro … À maneira de um bom chefe
de orquestra, as rodas sabem marcar o compasso de todas as músicas que,
com o jeito de obsessão, se nos desenvolvem no cérebro: elas marcam um
diapasão suscetível de variar livre o imprevistamente … um, dois, três,
quatro … Ora se trata de uma melodia rápida a quatro tempos, ora tem
cadência de valsa, ora é uma ária a dois tempos, ora, por fim, evoca uma
marcha fúnebre. Mas não se fica por aqui, pois logo volta a variar
novamente. Às vezes, o rail solta um grito estridente, como de dor aguda,
cuja sonoridade se prolonga. Isto mesmo, porém, se pode muito bem fundir
na harmonia geral … um, dois, três, quatro …
No compartimento iluminado ouve-se de quando em quando o trémulo dum
jornal; dá prazer ouvir isto porque o ouvido se afez ao ruído das rodas. No
espaço retangular, da porta a luz torna um aspecto estranho, velado e
tranquilo; aqui e acolá, adquire reflexos, parece sobre os puxadores de
cobre mais intensa; é uma luz que lhe faz lembrar o sabor acre dos frutos
selvagens que, certa vez, quando era menino, o tinham adoentado. O estore
escuro não veda por completo a janela; a luz das janelas dum comboio que
corre em sentido contrário acaba de dardejar, por baixo do estore e para
dentro do compartimento, as suas flechas doiradas.
Ouve-se de novo o frémito das folhas dobradas, o botão da eletricidade
despede um ruído seco, a escuridão torna-se completa. De súbito, ele sente,
dominando o odor próprio do comboio, aquele odor da essência incolor e
fresca que ambos tinham adquirido dias antes no centro da cidade. Passados
um instante, há um novo ruído seco e reacende-se a eletricidade. Alguém se
mexe no compartimento do lado.
- Que é isso, querida? … - diz ele. - Porque não tentas dormir? …
- Fazes favor meu querido … Está aqui muito calor e não consigo dirigir o
ventilador. Quererás ajudar-me? …
Ele afasta a leva colcha azul, desce do leito, passa ao outro compartimento,
sobe cautelosamente para cima da guarda lateral do leito, dá volta ao espião
de cobre do ventilador; uma lufada de ar fresco penetra no compartimento.
- Obrigada, eu não sabia que era preciso dar volta, supunha que se devia
puxar para baixo.
- Bem, meu tesouro, agora trata de dormir. Boa-noite.
- Boa-noite … Olha, a que horas chegaremos a Viena?
- . É para a madrugada - respondeu ele. - Muito cedinho. Nem teremos
sequer necessidade de nos levantarmos.
- E quando estaremos em Brest?
- Depois de amanhã, já tarde.
- Bem, então boa-noite.
- Boa-noite.
Em seguida, ele sentou-se na borda da sua cama. A luz apagou-se, no outro
compartimento. Estendeu-se ao comprido. “Quero dormir, dormirei”, disse
de si para si. Reina o silêncio … somente as rodas marcam o compasso da
música dos eixos: um, dois, três, quatro …
CAPÍTULO II

- Um-dois-três-quatro … Y can’t give you anylhing but love, um- dois-três-


quatro - Baby - dois-três-quatro. Uma gentil americanazinha acabara de
cantar esta canção com a sua vozita um pouco enrouquecida, verdadeira voz
de cinema falado. O jazz também era muito bom, certamente; contudo, o do
“Savoy” era melhor … Mas estes músicos da mesma forma tocavam todas
as novidades e muitíssimo bem. A melodia de agora não era, a bem dizer,
novinha em folha. Já a haviam tocado no ano passado, o que significava
uma persistência sobremodo longa. Em suma, na ilha Margarida o jazz-
band era excelente.
Estava-se no começo, na noite do terceiro ou do quarto dia, no decorrer do
seu primeiro jantar com os “companheiros”. Kelemen tinha organizado as
coisas muito desusadamente. Dissera-lhe Kádár previamente “todos serão,
como é natural, meus convidados” e, não obstante isto, no fim do jantar
desataram todos a puxar das carteiras e a protestar: “Agradecemos-te mas,
na verdade, não podemos aceitar …
Não foi para isso que nos reunimos …” Zátony, esse louro plácido, foi o
que pôs mais teimosia nos protestos. “Extravagantes criaturas!” Às vezes,
parecia-lhe reconhecê-los a todos, mas logo uma palavra, um timbre de voz,
um só gesto bastavam para fazer deles criaturas completamente estranhas.
“Catorze anos” …
Eram todos estranhos, esse Róna, esse Szende … Todos.
Naturalmente, para os outros, o estranho era ele, Kádár … aquela tremenda
gafe logo no princípio, quando Marton - também esse, que rosto o seu, tão
diferente doutro aí … - quando Marton começara a contar que antigas
firmas, noutros tempos florescentes, se encontravam agora à beira da ruína
e quando, olhando de soslaio, declarara: “Perdão, Kádár, isto não pode
interessar-te, falemos de outra coisa …” Toda a companhia se calara então,
subitamente. “Partiremos daqui por oito dias, será tempo mais que
suficiente para podermos ver tudo”, dissera ele consigo mesmo naquele
momento. “Escuta”, pediu-lhe Ila {18}. I can’t give you … Foi com esta
canção que começou o concerto. Ila divertia-se em Budapeste, achava a
cidade e a ilha muito bonitas … E, entre os “companheiros”, era Amman
quem gozava da sua preferência.
Amman, um moço de figura imponente e de maneiras distintas, vestia nessa
noite smoking, era o único de smoking, além de Kelemen e de Kádár:
também este pormenor era desagradável; os outros sentiam-se, sem sombra
de dúvida, constrangidos dentro dos seus trajos de passeio. Amman
convidou-a para dançar e Kelemen perguntou-lhe se, depois dos outros se
retirarem, não teriam vontade de passar ao bar, para tomarem qualquer
coisa. “De bom grado”, respondeu Kádár, se bem que não tivesse nenhuma
vontade disso. Os outros haviam decerto notado que aqueles que vestiam
smoking se preparavam para ir, juntos, a alguma parte …
Abalaram todos, ambos Weisz, Szende e os restantes. Foi desagradável. No
fim de contas, que importava? Dada a meia-noite, transferiram-se para o
Bar. A americanazinha também para ali veio: sentou-se ao pé do tocador de
bombo, cantou, dançou, deslizou por entre as mesas, fez os seus volteios
habituais.
Era uma bonita criatura, muito gentil. A sala era igualmente engraçada, se
bem que vasta em demasia para dar a nota de intimidade dum verdadeiro
bar; todavia, agradava a Ila. Mal esta tinha novamente começado a dançar
com Amman, aconteceu entrarem na sala quatro ou cinco rapazes e três
raparigas. Pararam junto da porta, procurando com os olhos um lugar: uma
das mulheres ostentava um vestido verde claro, um vestido leve de soirée,
um tudo nada pretensioso, que se não podia dizer de maravilhosa elegância;
dava a impressão de ter sido arranjado a trouxe-mouxe, apenas na ideia de
conseguir um vestido leve, bonito. Logo ao entrar na sala a rapariga atraiu a
atenção de toda a gente, porque a sua cabeça apresentava-se adornada de
enorme e pesada coroa de cabelos ruivos, de risca ao meio, cabelos quase
vermelhos e que pareciam chamejar. Despenhavam se-lhe sobre as orelhas,
em duas espessas conchas que se ligavam por baixo da nuca.
Causaria efetivamente pena ver cortar essa cabeleira magnífica. O olhar da
mulher correu todas as mesas e, quando atingiu aquela em que estavam
Kádár e a companhia, ela ergueu o braço direito acenando com a mão
enluvada de branco:
“Olha, proferiu Kelemen, é a minha irmãzita! Não percebo nada …” Mas
já, sem detença e em passo desembaraçado por entre as outras mesas,
sentindo sobre si os fogos cruzados dos olhares dos convivas, a rapariga se
dirigia para a mesa deles. “Viva, André!”, exclamou. A voz parecia, ao
mesmo tempo, estranha e familiar, e o seu rosto também parecia familiar,
esse rosto de uma brancura de leite, rematado pelos Cabelos ruivos e em
que luziam uns olhos bizarros, de um tom entre o verde e azul. “Com que
então tu frequentas sítios tão chiques? …
- Eu podia fazer-te a mesma pergunta, retorquiu Kelemen, que denunciava
certo embaraço. Não percebo, Yoli, com quem tu vens …” - Estão além,
respondeu ela indicando com um dedo o grupo a distância; vim com aqueles
rapazes e raparigas.”
Depois, porque avistou uma mesa livre, fez de novo sinal aos do grupo,
gritando para o lado da porta “Otto …” e mostrando-lhes os lugares vagos.
Kádár levantara-se e esboçara a intenção de se apresentar a si próprio à
rapariga, “Posso ser eu a fazer as apresentações, disse de súbito Kelemen:
O meu amigo António Kádár, tu não te lembras dele, eras então ainda muito
pequenina … a minha irmã Yoli.” - O senhor é o antigo condiscípulo de
André, que chegou agora do estrangeiro, não é verdade? … Já ouvi falar em
si. E a sua esposa também aqui está? …
- Sim - apressou-se a responder Kelemen, em vez do amigo. - Mais logo, se
tornares a passar por aqui, apresentar-te-ei à senhora.
Kádár mantinha-se de pé perante ela.
- Já sabia então quem eu era, já sabia da minha existência?- perguntou
Kádár, voltando-se bruscamente para a rapariga e encarando-a.
- Pois está claro que sim; André disse-nos um dia que o senhor vinha de
visita a Peste. Quais são as suas impressões de Peste? …
Ele esboçou um sorriso.
- Agradeço-lhe o interesse. Peste é, sem dúvida, uma belíssima cidade.
Desenvolveu-se muito desde que …
- Diga-me, o senhor dança? … - perguntou ela então, desviando ao de leve a
cabeça para o lado.
- Sim - respondeu Kádár a rir (“que bonita rapariga!” pensou; - posso pedir-
lhe que dance comigo?
- Muito obrigada, mas preciso primeiramente de ir ter com meus
companheiros; logo mais, se quiser pode ir à nossa mesa convidar-me.
- Ah! isso não - observou Kelemen en tom severo; - ou nem sequer sei
quem são as pessoas com quem estás … Em compensação, se quiseres
sentar-te à nossa mesa daqui a bocado … no caso de tu dares licença, claro
está - rematou ele, voltando-se para Kádár.
Este último pôs-se a rir:
- Porque és tão severo para tua irmã, ó tirano? …- e, dirigindo-se a Yoli:
- Vem daqui a bocadinho, não é assim? Será gentileza da sua parte.
- Venho, sim - respondeu ela.- Até logo! … André, porque és tão
implicante? …
e, a rir, estendeu a mão, uma bonita mão, branca, fina, pequenina. Depois
afastou-se.
“I can’t give you anything” … Até o modo de andar dela pareceu a Kádár
ser já seu conhecido.
- Eu não sabia, André, que tinha irmãs. Mas Yoli é ainda muito nova, não é
verdade? …
- Vinte e um anos - respondeu o outro - ou, com mal exatidão, fez os vinte
anos não há ainda muito tempo.
Ila dançava maravilhosamente. Em Pôrto-Isabel, eles, tinham o hábito de
dançar com extrema frequência. Às vezes acontecia irem ambos passar o
serão ao Bairro Helef na, beberem lá um cocktail e depois fazerem uma
hora de dança no “Imperial Dancing”.
Kelemen não estava ainda em si por ter encontrado a irmã em lugar tão
luxuoso.
“Não percebo nada - repetia pela terceira vez com os seus botões; isto aqui
é um ponto de reunião caro, um botequim elegante, para gente de dinheiro.”
“Peço-te, protestou Kádár não se deve ser tão rigoroso. É verdadeiramente
encantadora a tua irmã … ó a mais nova, dizes tu? … Quantas tens
então? …
- Duas-respondeu o outro-tu não conheces Carlota, tampouco? … Essa já
está casada. Mas não gosto de que Yoli esteja aqui … Posso falar-te com
toda a sinceridade? … Ela nada tem que fazer em sítio tão snob.
És um homem de ideias à antiga - interrompeu Kádár; - na verdade, causas-
me espanto. Não Vejo inconveniente algum em que uma rapariga, com
pessoas amigas … E, subitamente, calou-se. A cabeça ruiva de Yoli
irradiava até ele, por cima das mesas, o seu esplendor. “É uma cabeleira
postiça, pensou, com uma caraça e um fato de máscara; uma figura de
teatro …” e, simultaneamente, um sentimento extravagante, feito de
embaraço e de hesitação, o invadiu. Yoli voltava neste instante a cabeça
para aquele lado e ele viu outra vez o seu rosto branco, os seus grandes
olhos entre azuis e verdes, com uns cílios exageradamente compridos,
demasiadamente artificiais. Com O olhar vagueando na direção da rapariga,
Kádár deixou soltar-se da sua boca uma frase pronunciada no tom de quem
interroga ou procura adivinhar: “Terá sardas na pele? …” - “O quê? … -
perguntou Kelemen, que disseste tu?” – “Nada … estava a olhar para a
cantora …” Kelemen desatou então a contar anedotas a respeito da
artista … Kádár nem sequer o escutava. Bruscamente interrompeu-o: “Olha
André, eu, decididamente, não quero incomodar os amigos de tua irmã, mas
quando minha mulher acabar de dançar dar-me-ás muito prazer se lha
apresentares.” - “Com muito prazer”, respondeu Kelemen, abrindo muito os
olhos e inclinando-se com constrangimento para o balde do champanhe.
Ila e Amman estavam de regresso, caminhando com lentidão por entre as
mesas. “O senhor dança muito bem, disse Ila a Amman; um tudo nada de
maneira diferente de nós outros, os ingleses.. com mais entusiasmo mas
tudo bem …” “Oh! respondeu
Amman com modéstia, nós sabemos dançar poucochinho”, e, acariciando
com a, ponta dos dedos exibindo bigode louro cortado à moda tártara, mirou
Ila com um olhar sorrateiro.
- Quem é aquela bonita rapariga que esteve aqui há pouco? - interrogou Ila.
- É minha irmã - respondeu vivamente Kelemen. Ila ergueu a vista e, por
cima das mesas, olhou os pares que dançavam:
- Ela dança deliciosamente … Que deslumbrante criaturinha! Depois,
voltando-se para Kelemen: “Obsequiar-me-á muito apresentando-ma …
Após o conhecimento que entabulei com tantos cavalheiros graves de Peste,
para variar um pouco devo tomar contacto com uma jovem petense …” E
Ila pôs-se a rir.
A cantora americana veio novamente cantar. Kelemen tirou para fora do
gelo a garrafa de champanhe. “Esta Yolí tem vinte anos; eu nunca a teria
tomado por irmã de Kelemen; não se parece nada com ele; verdade seja que
entre ambos existe grande diferença de idades”, meditou Kádár Em seguida,
levantando a sua taça, disse para o amigo: “À tua saúde!” Kelemen aplicava
todo o seu zelo e encher as taças. Ila esvaziou mais do que uma vez a sua;
gostava a valer de champanhe.
“Também pode ser, de resto, que tenha os cabelos tintos … Não; cabelos
loiros ruivos como aqueles são os que melhor se combinam com uma cútis
de tão rara brancura … Epidermes assim não se obtêm artificialmente. Os
lábios destas mulheres tampouco necessitam de pintura, estas ruivas cor de
jaspe têm uma boca dum tom vermelho vivo, natural”; e, ao refletir nisto,
experimentou de súbito o desejo de observar os lábios de Yoli:
“Já me não recordo se ela tem os lábios grossos ou delgados”, e, entre os
pares dançantes, procurou com os olhos a cabeça ruiva. Mas a juvenil
criatura deixara já de dançar; ao voltar descoroçado da pesquisa, o olhar de
Kádár chocou com o de Kelemen … Fitaram-se um instante, após o que
Kelemem desviou a vista para longe. Desenhava-se-lhe no semblante uma
preocupação, enquanto expelia para o ar nuvens de fumo e prosseguia a
conversação com Ila. Kádár tornou a ver a figura de Yoli, que se preparava
de novo para dançar. O seu par era, desta vez, um rapagão de largos
ombros, vestido de cinzento. As cabeças de ambos aproximavam-se muito e
eles falavam, rindo a bom rir. Passados instantes os volteios da dança
colocaram casualmente Yoli em frente de Kádár. Seguindo-a com a vista,
ele percebeu então que o olhar de Yoli se assestava naquela sua mesa … e
que era mesmo, deliberadamente, dirigido a ele. Kádár relanceou o o olhar
na direção de Ila … Esta, sentada no meio dos dois rapazes, tinha a pele
afogueada e premia entre os dedos um cigarro. Foi mesmo ela quem propôs
a Kelemen: “Olhe. Kelemen, peça então a sua irmã que venha tomar uma
taça de champanhe connosco …” Kelemen levantou-se do seu lugar e foi
direito à outra mesa. Baixando um pouco a cabeça, trocou algumas palavras
com um dos companheiros de Yoli, após o que esta se ergueu e, pondo a
mão sobre o braço do irmão, lançou um olhar em volta, correndo a sala
inteira. Coisa singular, os seus cabelos ruivos atraíram todos os olhares para
essa mulher que talvez, sem eles, teria parecido insignificante. Ela
correspondia aos olhares, parecia até provocá-los, Como caminhava pelo
braço de Kelemen, ninguém os teria tomado por irmão e irmã.
Kelemen fez as apresentações. Ila fitou
Yoli franzindo levemente as sobrancelhas:
- Sinto-me feliz em conhecê-la, minha menina; acabava precisamente de
dizer a seu irmão que tinha uma gentil irmãzinha.
Yoli pareceu um instante embaraçada; mas logo se sentou com ar natural e
estendeu a mão para pegar numa taça. “Não poderei demorar-me mais do
que um minuto, declarou; não devo deixar sozinhos os meus amigos”. A sua
boca estava longe de ser bela: era rasgada demais, com os lábios
excessivamente finos.
- Estou tão contente por a ter conhecido pessoalmente, minha senhora! –
disse Yoli a Ila. - Há-de permitir-me que vá um dia visitá-la … Com certeza
que há-de ter muitas coisas interessantes para me contar. A senhora vive
num mundo tão diferente do meu, em regiões que eu não conheço senão de
nome e através do cinema, ou de narrativas de viagem que raras vezes são
exatas …! E desatou a rir.
“A sua voz - pensou Kádár - este riso puro e sonoro, já ouvi qualquer coisa
semelhante, certo dia, sobre as águas dum rio, a bordo dum barco”.
- Mas, sem sombra de dúvida, terei muito prazer em recebê-la - disse Ila.
“Este rosto estranho e tão variado de expressões … iria jurar que já o vi
noutra qualquer parte. Ela parece-se … - neste momento, Amman levantou-
se e pediu a Yoli que fosse dançar com ele devido àqueles ombros estreitos
e à sua figura esbelta … parece-se com Tilly, não há que ver! … Tem,
simplesmente, os cabelos um pouco mais claros. Também a mão dela …
Devia ter olhado bem para essa mão”. Cem a vista, buscou Yoli entre os
dançadores. “Que pena! se, ao menos, não trouxesse aquele vestido verde!”
Ila pôs-se a falar a respeito de Yoli. Gabou a sua mocidade e a sua frescura.
“Sim, aquiesceu Kelemen, mas estou zangado com ela, porque não gosto
que uma rapariga tão nova dê nas vistas …”
Ila motejou do seu modo de encarar essas coisas. “As raparigas inglesas e
americanas percorrem o mundo inteiro completamente sozinhas, e o senhor
irrita-se só porque … Não creio na sinceridade de princípios tão
conservadores num rapaz como o senhor é”.
“Quero ver a sua mão” - pensou Kádár, e quando o par acabou aquela
dança, imediatamente se ergueu e perguntou a Yoli:
- Vamos agora nós dançar? …
- Sim, sim, muito obrigada; mas aguardemos que a música toque um tango
ou qualquer blue, porque não gosto muito destas danças mexidas demais.
Ela sentou-se, a taça de champagne na mão. A sua mão também se
assemelhava, com extrema parecença, à de Tilly.
- Diga-me uma coisa, Yoli - perguntou-lhe logo Kádár. sabe tocar? …
Tinha a certeza de que ela lhe responderia que tocava piano.
- Não - informou Yoli - infelizmente não; comecei em tempos com o estudo
de piano, tenho bom ouvido mas, em virtude de ter compreendido que não
tinha sombra de talento, abandonei isso.
- Efetivamente - acrescentou Kelemen, acontece o mesmo com toda a nossa
família: todos temos muito ouvido mas nenhum talento para tocar.
Nisto, começou uma dança lenta, arrastada, magoada, negróide. Era o
saxofone, acompanhado do piano, tocando baixinho. Yoli ergueu-se:
- Se deseja agora …
Também Amman se inclinou levemente perante Ila. E dirigiram-se todos,
em fila indiana, para o meio do recinto. Yoli colocou o rosto um pouco de
lado, mantendo-o pertíssimo do de Kádár … um dos cabelos ruivos, solto
do penteado, veio cocegar-lhe docemente nas pestanas; daqueles cabelos e
bem assim daquele rosto dimanava frescura, exalava-se deles um penetrante
e singelo odor de sabonete. O corpo esbelto da rapariga obedecia ao seu, os
passos dela seguiam os dele, à maneira de uma sombra, no ritmo da dança.
“Deveria dizer-lhe qualquer coisa para romper o silêncio … fosse o que
fosse..
que o tempo está bom, que é linda a ilha Margarida, ou então que a acho
parecidíssima com alguém que conheci outrora, ou que ela dança bem, que
me sinto verdadeiramente feliz por …”, mas não disse nada, afinal. Ela
também guardava silêncio. Unicamente a música falava, o saxofone na
lamentosa melodia, o tambor nos seus baques surdos, o piano em notas
desgarradas. E essa música estranha e enervante enlaçava-os, o seu ritmo
lento e interminável ligava os passos de ambos. Ele experimentava a
sensação de que, para além do recinto do baile e do bar, na confusão das
formas e do espaço, o seu corpo e o de Yoli avançavam ou recuavam com
uma serenidade desconhecida e incompreensível, enlaçados no tempo com a
simplicidade natural duma posse recíproca e imaterial … Fora assim que
aquilo principiara.
Nos dias imediatos, nada aconteceu de novo. Budapeste, a Budapeste desse
esplêndido começo de estio, oferecia aos estrangeiros um semblante
prazenteiro; à noite, com a sua ilha devotada às diversões; pelo meio do dia,
com os seus banhos de ondas artificiais, as suas excursões pelo Danúbio,
em canoas automóveis; ou ainda, a qualquer hora, com os passeios em auto
pelas montanhas do Sul.
Tendo Ila manifestado desejo de visitar a cidade, percorreram ambos a
avenida Andrássy de extremo a extremo; doutra vez, passaram durante
algum tempo, a pé, numa das ruas principais; numa terceira vez,
prolongaram a caminhada até um sítio dos arrabaldes. Kádár depressa se
sentia fatigado; o passo de Ila tornava-se incerto, mostrando-se ela
nervosa … Regressavam então ao hotel.
Com a intervenção de Kelemen, Kádár alugou, logo nos primeiros dias,
uma elegante conduite de quatro lugares. Ao volante sentia-se ele mais à-
vontade em Peste do que a andar a pé.
Kelemen, aliás, aparecia-lhes todos os dias, polidamente e com fervor,
inquiria da saúde deles e dos seus desejos eventuais.
- Kelemen é, na verdade, um excelente rapaz, bem educado declarara Ila um
dia … Com franqueza, cheguei a temer vê-lo exagerar o seu espírito de
amabilidade e tornar-se importuno … enganei-me.
Ao pronunciar estas palavras assomava-lhe na voz uma espécie de
desconfiança, desconfiança de que eram alvos tanto a cidade estrangeira
como esse estranho, Kelemen. Antes daquela viagem, bem raramente Kádár
falava, a Ila, de Budapeste, e sempre que o fazia era em termos vagos. “Ela
agora medita com certeza na minha vida de outrora, passada nestes sítios,
dizia consigo mesmo, há-de querer saber qual a casa em que habitei, quais
as paragens de que mais gostava”. Ila talvez, de facto, meditasse nisso, mas
não o interrogava a tal respeito. Não falavam, pois, nessas coisas. Kádár
tinha a impressão de que Ila não desejava aproximar-se de Budapeste, a não
ser por intermédio dele. Trata vá-se de uma cidade estrangeira … da qual
dentro em breve se afastariam.
O automóvel facilitava-lhes a vida, permitia dar gasto as horas em corridas
sem fim, ao acaso. Dir-se-ia uma bobina de atualidades cinematográficas:
era interessante, movimentada e não tinha, contudo, alcance algum,
nenhuma importância, nem estabelecia qualquer liame com quem a via
desenrolar ante os olhos. Era puro espetáculo. Quando o seu interesse
falhasse, bastaria deixar de olhar; abandonar-se-ia quando e como se
quisesse …
E, todavia, o caso não era tão simples como isso. Logo no primeiro desses
giros em auto Ila acompanhara o marido. O acaso levou-os a uma rua, onde,
afrouxando o andamento, contornaram certo casarão: era o liceu que ele
durante oito anos frequentara. Todas as manhãs e todas as tardes, ao ir para
as aulas ou ao sair delas, nesses longos oito anos, ali, num recanto da rua,
encontrava um cego, o qual, com um velho chapéu de coco sobre os
joelhos, aguardava as esmolas dos transeuntes. Lá continuava a estar, no
mesmo sítio, o bom do mendigo. Olhado de cima do carro, nada sofrera
nele alteração!
- Há catorze anos, já ali estava … - comentou Kádár, como falando consigo
próprio; e, de súbito, suspendeu a frase.
- O quê, a quem te referes? … - interrogou Ila.
- Nada … não tem importância.
O seu bom humor toldou-se bruscamente. No dia imediato meteu-se de
novo no carro, Ila adquirira o costume de dormir a sesta depois do almoço,
ele aproveitou o facto para vaguear umas horas, todos os dias, à aventura.
Certa vez, deu com os olhos num grande painel, à entrada duma larga
artéria: a avenida de Kõbánya. Pareceu-lhe que o nome lhe evocava
qualquer coisa, sem, contudo, se lembrar exatamente do que era. Apoderou-
se-lhe do espírito um sentimento desagradável. Desistiu de seguir, voltou
para trás. Doutra vez, indo a rodar por umas ruas estreitas, ao longo de
vivendas com jardinzinhos à frente, teve de súbito como que o
pressentimento de que ia encontrar Yoli. O seu pé aliviou de pressão o
acelerador, o carro pôs-se a andar muito devagarinho. Durante meia-hora
rodou assim, sem, todavia, a encontrar.
Dias e dias a fio, prosseguiu nestas explorações em automóvel, a que se não
entregara anteriormente em nenhuma outra cidade. Uma tarde perguntou-
lhe Ila: “Vais sair hoje também, enquanto eu faço a sesta?” - “Sim” -
“Aonde vais? - Não sei ainda; passearei ao acaso, como é meu hábito.” -
“Trata-se de uma manifestação de sentimentalismo?” perguntou ainda Ila.
Ele corou: “Sim puro sentimentalismo. Estas excursões sem objetivo são,
com efeito, supérfluas.
Vamo-nos retirar dentro em breve.” Na manhã seguinte Kelemen telefonou;
estava um tempo maravilhoso, ia fazer, provavelmente, muito calor. Não
teriam eles vontade de ir ver, à tarde, a praia de Eszter-gom? … Ila tomou
então o auscultador e ficou combinado que se encontrariam na praia
artificial, onde almoçariam também. Mais tarde, quando o calor abrandasse,
iriam visitar Gödöllö.
Kelemen esperava-os no átrio do estabelecimento de banhos.
- Já há muitíssimo tempo que vos não via; creiam que sinto uma espécie de
remorso por vos ter deixado, assim isolados, nesta grande cidade, sem
sequer perguntar se não desejariam alguma coisa que eu, na qualidade de
indígena …
- Oh! - respondeu Ila - meu marido não é aqui positivamente um
estrangeiro; quando muito, renova o seu conhecimento com a cidade.
Imagine o senhor que, todos os dias, se farta de percorrer, sozinho, essas
ruas todas.
Ela pronunciou estas palavras no mesmo tom em que, dias antes, declarara:
“Trata-se então de sentimentalismo? …
- Bravo! - exclamou Kelemen. - É para avivares as tuas recordações de
infância, Tony? … Esta pergunta agastou um pouco Kádár, que, sem dar
resposta, penetrou no estabelecimento.
Estava ainda pouca gente. Ao chegar à piscina, Kádár avistou Yoli, sentada
à sua borda, numa cadeira de verga. Tinha vestido um maillot vermelho e
sapatos de banho da mesma cor. Os cabelos ruivos, batidos pelo sol,
crepitavam; tinham a cor do maillot e dos sapatos.
- Bom-dia, Yoli.
- Bom-dia, senhor Kádár, como vai? … A sua esposa está além? …
Ila, que acabava de acercar-se, saudou a jovem muito afetuosamente:
- Já tinha perguntado por ti, minha pequena, ao teu irmão.
- Ela tem olhos azuis esverdeados … Ainda não tinha dado por isso, ou tê-
lo-ia eu esquecido? … A cor influi muito; esta brancura extravagante, o
corpo tão branco como a pele do rosto, de um branco quase anormal. E
depois, aqueles olhos, aqueles cabelos! E sem manchas de sardas … Porque
teria eu pensado que ela as havia de ter? … Nem sequer se pinta … Tilly
tinha bastantes sardas; foi isso que me fez supor que esta rapariga também
as teria.”
Achavam-se agora, todos os três, estendidos em transatlânticos” {19}. Sobre a
pele de Yoli o sol lançava faúlhas.
- Tinha tanta vontade de ir para qualquer parte - disse Yoli - mas estou a ver
que, este ano não há meio; não tenho dinheiro.
“Não tenho dinheiro”! … Como estas palavras adquiriam um timbre
esquisito na boca daquela rapariga!” Não tenho dinheiro” - dissera ela com
uma cara tão engraçada! … Quem a mantinha! … O irmão? … Os pais …
Viviam eles desafogadamente, ou na penúria … “Oh! prosseguiu a voz da
rapariga, este ano, não tem a gente outro remédio senão ficar em casa.
Verdade seja que, no ano passado, também não fui muito longe. Fui para
Lelle, à beira do lago Balaton. E, todavia, do que eu gostava era de partir
para muito longe, para a Suíça ou para as praias francesas, mesmo que
tivesse de abrigar-me lá num buraquinho. Porém, meu Deus, tudo isto é
quimérico …” Yóli deu então um salto por cima da balaustrada da piscina.
Com o corpo dobrado, pronto para o mergulho, deteve-se na extremidade da
prancha. Num gesto largo e lento, os braços levantaram-se-lhe, descobrindo
as axilas rapadas. A cabeça inclinou se-lhe um pouco para trás, arqueou o
busto, distendeu o corpo, o maillot revelou-lhe todas as formas, realçando
os seios pequenos e rijos. Numa graciosa curva, mergulhou na água. Uma
grande vaga, de cambiantes azuis e verdes, envolveu-os, reuniu-os.
O braço de Kadár tocou no ombro de Yoli. Voltando sã ela de repente,
encontraram-se ambos face a face. Os olhos da rapariga tinham a mesma
cor da água. Recordou-se então Kádár de que, em Kritzendorf, numa
excursãozita que durara um dia inteiro, se banhara igualmente na
companhia de Tilly, no Danúbio.
Tilly tinha um maillot preto, com uma estrela azul bordada no peito.
Do meio da piscina, alguém cumprimentou Yoli. “Bom-dia, querida Ila”
replicou ela a outra rapariga de touca branca.
“Não acha deveras engraçado que também esta senhorita se chame Ila e o
marido dela António? …” disse voltando-se de novo para Kádár e
borrifando-o todo com um jato de água da sua boca, aberta em riso franco.
Yoli resguardava a cabeça numa touca de banho vermelha, vermelha como
os seus cabelos, o maillot e os sapatos, Ila resplandecia: sob a bátega de sol,
o seu corpo brilhava na água azul; na atmosfera transparente, a figura dela
exalava mocidade e pureza, os seus cabelos negros cintilavam com um
esplendor igual ao dos olhos. A piscina estava agora cheia de gente.
Alguém, por trás deles, observou: “Olha, ali está o elegante casal de
ingleses do Ritz.” - Vi outro dia, sozinho num automóvel, o marido,
respondeu outro; mas a bela ruivazinha que está hoje com eles não é
inglesa. Encontrei-a muitas vezes nas margens do Danúbio e também
durante o inverno, no cinema … Uma franganota apetitosa … Anda a ver se
deita o anzol ao paspalhão do inglês.” Kádár sentiu ganas de se voltar, para
ver a cara dos dois atrevidos conversadores, mas limitou-se a observar de
soslaio Ila e Yoli; felizmente, elas nada tinham ouvido, com certeza. Puxou
então de um cigarro, deu meia volta e obrigou dois rapazes, que escoltavam
uma loira de grande estatura. “Pelo que ouvi, aqueles cavalheiros estão
então a supor que Yoli …” Dirigiu-se a um deles, que estava com o cigarro
na boca, e, em húngaro e em voz alta, pediu-lhe: “Dá-me lume, por
obséquio? …” Três pares de olhos cheios de embaraços, três rostos
consternados … “Muito obrigado”, rematou novamente num tom alto de
voz, tornando a acomodar-se no degrau inferior. Instantes decorridos,
voltando-se para trás outra vez, verificou que o grupo havia desaparecido.
Os Kádár e Yoli almoçaram no banho; Kelemen excusou-se a isso, alegando
ter que fazer, e combinou com eles adiarem a excursão a Gõdõlló.
“Telefonar-lhes-ei antes, se mo permitem”, e foi-se embora. Ila mandou vir
carnes frias e um gelado. Yoli pediu requeijão. Depois do almoço, puxaram
os “transatlânticos” para a sombra; Kádár tinha ido à procura do Times e do
Daily Hcrald, que se pôs a folhear enquanto escutava a conversa das duas
mulheres. Yoli, apoiando-se no braço esquerdo, voltava-se toda para Ila, que
estava deitada de ventre para baixo. A conversa seguia suavemente o seu
rumo. Os cabelos ruivos tinham, nesse momento, um reflexo bizarro o
esbatido pela sombra.
Enquanto de quando em quando deixava, por trás do jornal, descair o olhar
sobre aquela silhueta de maillot vermelho, a imagem do estabelecimento
começou de esbater-se na imaginação de Kádár: substituiu-a um caos
movediço; o vasto recinto da piscina, a água espelhenta, os vultos humanos
iluminados pelo sol cederam o lugar a uma rua estreita, na qual surgia, por
trás de um muro de pedra, alto como um bastião, um jardim imenso. A copa
das velhas árvores gigantescas projetava no caminho, coberta de areia loira,
uma espécie de mosaico, constituído pelas chapadas de sol e pelas sombras
das folhas: esse caminho, que começava num largo portão, conduzia à
enorme vivenda, de rasgadas janelas, da salas vastíssimas, cheios de móveis
e de quadros … De repente, pareceu-lhe ouvir, puro e nítido, o som de um
piano; a princípio era surdina, depois cada vez mais e mais forte e
penetrante e, por fim, com uma potência tal que dominava tudo o mais,
retumbou e repercutiu-se no seu íntimo a Toccata de Schumann.
Deixou cair por terra o jornal e, acima dos homens e das coisas, perdido no
tempo e nos sons, os olhos prestes a estalar de desejo desenfreado, a sua
vista faminta de reminiscências abateu-se sobre o corpo metido no maillot
vermelho.
Yoli falava de si própria, respondendo às perguntas de Ila. Revelava pouco a
pouco a sua vida, a vida de uma rapariga pobre de Budapeste.
Primeiramente, o seu lar, esse cenário de insuportável e profundo
aborrecimento no desenrolar monótono dos dias. Três divisões em que
coabitavam, por assim dizer, três famílias; em todo o caso, três gerações. A
mãe que ia envelhecendo, que estava cansada e um pouco rabugenta, e
cujos melhores momentos eram aqueles em que se punha a desfiar as suas
recordações ou as dos outros. A irmã mais velha, modelo de esposas fiéis e
de donas de casa … burguesinhas. O cunhado, que mantinha a família e que
dos insignificantes acontecimentos da sua vida de lojista pretendia novas
sensacionais, capazes de animar o lar. André, que era a única pessoa
simpática da família, mas de tal maneira absorvido pelos seus próprios
negócios que quase nenhum tempo podia consagrar aos outros.
“Verdadeiramente, eu nem saberia dizer em que me entretenho todo o santo
dia … ajudo um pouco minha irmã Carlota ou distraio a mamã, leio alguma
coisa … Tinha posto na ideia arranjar um emprego num escritório … foi
para isso que aprendi estenografia; mas encontrar-se hoje uma
colocação! …” Às vezes, saía acompanhada de alguns rapazes e raparigas
do seu conhecimento, matando o tempo mais facilmente de verão que de
inverno, por causa da praia e do Danúbio. Yoli falava docemente, erguendo
a cabeça e fitando Ila; a sua voz continha resignação mas também a revolta
perpassava nela, palidamente embora, Nisto, como os seus cabelos
enrolados em concha sobre a orelha direita estivessem em riscos de se
desmanchar, ela desenrolou-os por completo, assim como os do outro lado,
pondo-se depois a penteá-los com os dedos e arremessando para trás a
espessa cabeleira. “O seu anel é divino, disse a Ila, dá licença que o veja
melhor?,..”
Ila levantou a mão, para mostrar o fino aro de platina que tinha ao meio
uma enorme pérola e que eles, na Primaveril, haviam comprado em
Londres. Ao ouvir estas palavras de Yoli, Kádár lembrou-se de súbito do
protesto de Kelemen no bar da ilha Santa-Margarida: “Eu não percebo que
ela tenha podido vir a um sítio tão caro!” Gostaria bem de perguntar a Yoli
como é que ela, queixosa de não ter dinheiro para ir para fora, o tinha para
ir à praia, para passar os week-ends, para frequentar os cinemas e para tudo
o mais? Quem lho dava?” Sobressaltado, repeliu do cérebro este
pensamento. Que tenho eu com isso? … Que tolice, a minha! … É o irmão
quem lhe dá dinheiro … Mas não são coisas que me digam respeito”.
“Santo Deus! prosseguiu Yoli, algumas vezes acode-me ao espírito a
convicção - mas eu não digo senão asneiras que não lhes podem interessar -
de que a existência duma rapariga como eu não tem razão de ser, porque é
sem finalidade … porque não trabalho e, todavia, me canso de viver …
Esteve uns instantes calada, após o que continuou: “A mamã e a Carlota,
essas, vivem para os filhos e para o marido, a Carlota vai ter outro bebê, as
mãos dela estão sempre cheias de trabalho … e existem raparigas que são
empregadas ou que, então, aprendem qualquer coisa, quanto mais não seja a
coser, ou que tiram cursos, ao passo que eu, eu não faço nada, exceto …
pôr-me a pensar que seria horrível para mim casar-me com alguém como o
meu cunhado.
Penso também que só a riqueza permite viver realmente, fazer a gente tudo
o que queira, poder andar sempre a viajar e nunca estar em casa …”
Espreguiçou-se, soergueu-se no seu “transatlântico”, descrevendo no
espaço, em volta do corpo reteso, com os braços muito alvos, um simulacro
de voo.
Kádár, entretanto, ia ouvindo sempre, dentro de si mesmo, a Toccata.
“Temos melodrama, pensou, que tolice! …” Sentiu poisar-lhe no rosto o
olhar de Ila.
“Meu Deus! que chorrilho de patetices me saem cá para fora, disse Yoli,
quando desato a tagarelar … Não querem ir, outra vez, um bocado para a
água? … “ Caía já a tarde, foram deixar Yoli perto da casa dela, na avenida.
Ila despediu-se da rapariga dirigindo-lhe um convite: “Espero tornar a vê-la
muito brevemente, ou no banho, ou telefonando-nos para o hotel. Com
certeza, permaneceremos aqui mais uns dias ainda, não é verdade, Tony? …
- “Uns dias, sim, é provável”, respondeu Kádár. Yoli estendeu a mão, e a
cabeça de Kádár inclinou-se ao de leve ao mesmo tempo que, com a sua,
levantava a mão de Yoli; mas, significativa e firmente, o braço nu da
rapariga deteve esse gesto.
Não fixou o número da porta, mas ficou conhecendo o prédio em que
habitava Yoli.
No dia seguinte, ao meio dia, ele e Ila tiveram uma surpresa muito
agradável. No hotel, fêz-se-lhe anunciar um casal inglês: O capitão
Simmons, da legação, e a mulher. Mal eles surgiram ante seus olhos, Kádár
verificou que Edith Simmons era um seu antigo conhecimento de Londres;
o marido fora, duas vezes ou três semanas antes, nomeado para Budapeste,
mas só na véspera o casal soubera que os Kádár se encontravam em Peste.
O ministro, ao qual tinham ido de visita, é que lhes falou nisso.
“É verdadeiramente admirável! … O nosso bridge, eis-nos servidos para o
jogar aqui!” - “Jogam o tênis? …” - “Evidentemente, e até somos
campeões”.
Almoçaram os quatro juntos, após o que foram para a ilha, a-fim de assistir
a um desafio de polo. Durante o desafio Kádár sentiu-se invadido de certa
impaciência: puxava, a cada instante, do relógio. “Tens de ir a alguma
parte? …” perguntou Ila, reparando nesse gesto impaciente. - “Não, a parte
nenhuma”, respondeu Kádár. Aquela era a hora a que, ainda na véspera e
nos dias anteriores, passeava no seu carro, ao acaso, pela cidade.
Ila não cabia em si de contente, muito consolada por ter novamente
encontrado pessoas amigas de nacionalidade inglesa. Tanto ela como o
marido haviam-se tornado, a bem dizer, autênticos ingleses, sul-africanos. A
União Sul-Afrícana era um pouco menos que a Inglaterra, mas sempre era
mais alguma coisa que o continente europeu, que a Hungria … Era, pois,
muitíssimo natural que estivesse satisfeita por encontrar amigos ingleses.
Aquela hora transcorreu, mas a inquietação não libertou Kádár e continuou
mesmo a persegui-lo, quando, findo o desafio, foram todos abancar numa
pastelaria. “Como eu me deixei habituar àquela estúpida vagabundagem!”
Para não pensar mais no caso, esforçou-se por encher de cores e de sons os
olhos e os ouvidos …
Havia ali um já discreto e doce. Alguns pares deslizavam pelo chão
encerado, luzidio. Consultou mais uma vez o relógio; o seu olhar cruzou-se
com o de Ila.
Na testa de Ila cavou-se uma ruga estreita mas profunda …
Que loucura, não poder vencer um hábito de tal modo pueril! …
Convidou a senhora Simmons para dançar. Entretanto, chegou também
Simmons, que se ausentara uns instantes. “Budapeste é uma esplêndida
cidade, sentenciou ele, com entusiasmo; - há já dois anos que andava
desejoso de arranjar o lugar de adido a uma Legação, mas não sabia qual
escolher. Edith ambicionava simplesmente que fôssemos mandados para
uma cidade encantadora, a-fim de passarmos aí agradavelmente os nossos
primeiros anos de casados. Não se teria podido escolher melhor, não e
assim, querida?” A senhora Simmons estava mal instalada: era coagida, a
cada momento, a voltar muito o pescoço e a inclinar a cadeira, para ver os
pares dançantes. Quando Kádár deu por isso, trocou imediatamente o seu
lugar pelo dela. Instalou-se, desta forma, em frente da entrada, donde podia
observar os que chegavam e os que partiam. Ao som da música e ao sabor
duma conversação calma e alegre, os minutos foram correndo. O capitão
Simmons era um homem encantador. Encantadora era igualmente Edith. O
sítio, agradável e belo, sítio elegante, sítio luxuoso e caro. Estava certo de
que Yoli não viria ali, de que ela não se esgueiraria até àquele lugar. Sem
sombra de dúvida, devia estar em casa … sem se ocupar em coisa
alguma … a encher-se de tédio …
Nos primeiros tempos Ila gostara, evidentemente, de ver Kádár sair todas as
tardes … Pelo menos, não compreendera a razão dessas saídas. Aquela sua
pergunta: “São manifestações de sentimentalismo?”, que se reavivava com
frequência no espírito de Kádár, testemunhava isso mesmo. Todavia, com a
continuação, foi a obrigada a compreender a essência do móvel de tais
excursões;
veio a compenetrar-se de que ele demandava a antiga cidade da sua
infância, sem sequer o suspeitar. Ou, então, habituara-se ela àquilo. Certa
tarde em que Kádár ficara em casa, Ila perguntou-lhe:
“Porque não sais esta tarde?”
Ele ficou silencioso uns segundos e depois disse: “Estranho que nunca me
perguntes aonde fui.” - “Para quê? replicou Ila. Eu já o sei. O teu amigo,
Kelemen resumiu o caso, outro dia, em duas palavras: saudades da
juventude. Procederia eu talvez como tu, se também aqui tivesse vivido.”
Não volveram mais ao assunto. Ila continuava a dormir o seu peijueno sono
após o almoço, enquanto ele fazia rodar o seu carro, Uma tarde, no
regresso, passou pela Avenida. No dia seguinte, fez o mesmo; à terceira vez
ousou parar uns instantes diante da casa de Yoli, sem que, todavia, a
conseguisse ver. O sol dardejava os raios sobre a parede amarela e leprosa
do prédio, onde cada janela cinzenta, de estores corridos, correspondia ao
olhar dele como corresponderiam olhos cegos. “E se eu subisse a casa
dela?” interrogou-se bruscamente: Bom-dia,
Yoli, como está você? Idiota no caso, repreendeu-se a si próprio. Como é
que posso persuadir-me de que …? Querem ver que vou dar cabo da
cachimônia? …
Vamos mas é abalar, eu e Ila, quanto antes, decidiu; depois, com frieza
implacável, acrescentou mentalmente: descansa, que não me deixarei
arrastar, não! Tem parecenças com Tilly ou, antes, tem os cabelos da mesma
cor ruiva, mas nada se parece com ela: eis tudo. Vamos partir, sim!”
Tremeu-lhe a mão ao premir a alavanca da velocidade, as rodas dentadas,
rangendo, engrenaram umas nas outras e, com grande sacudidura, o carro
arrancou. Quase às cegas, atravessou praças e ruas. Num cruzamento, um
agente sinaleiro gritou-lhe: “Nem sequer vê a luz verde?! … Avance …”
Quando chegou ao hotel encontrou Kelemen em conversa com Ila. Aquele
telefonara durante a sua ausência e Ila convidara-o a subir.
Kelemen dispunha-se nesse momento a falar do escritório em que estava
colocado e de si próprio. Se bem que no gozo de férias, o seu chefe, na
manhã desse mesmo dia, pedira-lhe que passasse por lá, por causa de um
negócio importante, negócio de que Kelemen havia tomado a iniciativa
muitos meses antes e cujo estado A de madurez, para ser efetivado, se
verificara agora.
Desgraçadamente, tinha-se levantado, entre a direção da empresa e ele, uma
divergência de vistas, no respeitante ao lado material do negócio. “Trata-se,
de facto - plano meu - da organização dos transportes pela via continental,
mas os pormenores não de molde a interessar-vos;
em resumo, se eles querem pegar no negócio, reservando me um lucro
honesto, a coisa vai; senão …” - “Tens razão de sobra, aplaudiu Kádár;
deves, evidentemente, retirar proveito proporcional ao teu trabalho, para
poderes manter com dignidade a família.” - “Senão … repetiu Kelemen,
estou decidido a tudo … já lho fui dizendo antecipadamente. Se tanto for
mister, romperei com eles, instaurar-lhes-ei um processo.” Nisto, Kádár de
novo interrompeu Kelemen, perguntando-lhe: “Dize-me cá, André, quanto
ganhas tu, na realidade? …”
Pergunta esta indiscreta e estúpida! … Ila levou o olhar a perder-se no vago,
em atitude de quem não está à-vontade.
Kelemen franziu as sobrancelhas e respondeu: “Cinco vezes menos daquilo
de que teria necessidade e dez vezes menos do que merece o meu trabalho.”
Era uma forma hábil de replicar a pergunta tão alheia às normas da
correção. A fronte de Kelemen não se desenrugou antes de atingir o fecho
das suas considerações: “Ganho muito pouco, meu amigo, uma verdadeira
bagatela. Se te dissesse a cifra, até ficarias estupefacto …” E enquanto
Kelemen continuava a falar, em amargos termos, da obrigação que pesava
sobre todo e qualquer homem de valor de lutar pela conquista do pão
cotidiano … até ao ponto de se ver constrangido a abandonar a sua própria
terra, para ir mundo em fora, empunhando o bordão de peregrino - foram-se
pouco a pouco avivando na memória de Kádár os queixumes de Yoli, dias
antes, a propósito da sua existência de burguesinha sem recursos, da sua
falta de dinheiro, e do seu tédio imenso. Tornou a ver, em pensamento, o
vestidinho verde alinhavado às três pancadas que ela levara, então à ilha; e,
como contraste, veio-lhe também à ideia a maravilhosa toilette, de excelente
seda negra e brilhante, decotada atrás até à cintura, que Ila comprara para si,
nessa mesma primavera, em Paris. - “E Yoli, como está?” - “Está bem,
obrigado”, respondeu logo Kelemen. “Durante uns dias sofreu de uma
espécie de constipação nos rins, mas já hoje, à hora do almoço, a vi
levantada, sinal de que se encontra completamente boa. Ela considerar-se-á,
pela certa, muito feliz se vier passar algumas horas convosco, qualquer dia
destes, não causando isso transtorno ao vosso programa.” … “Ora essa, pois
não, garantiu Ila, amavelmente; não se esqueça de lhe dizer que terei
muitíssimo prazer em tornar a vê-la.” Esboçaram em seguida diferentes
excursões, e quando se puseram de acordo sobre a ida à Pousada do
Caminho, na tarde do dia imediato, desde que o tempo o permitisse, Kádár,
por sua vontade e cedendo à impaciência, teria mandado Kelemen
imediatamente e no seu próprio carro procurar Yoli, não fosse ela
comprometer-se com uma ida a qualquer outra parte.
Findo o jantar, Ila manifestou o desejo de dar um pequeno passeio,
simplesmente para andar alguma coisa a pé. Por duas vezes percorreram,
pois, a margem do Danúbio, sentando-se depois no terraço dum bar, donde
se puseram a contemplar a animação da noite no local. Decorridos minutos,
deram com os olhos em Yoli, que passeava na companhia de vários rapazes
e raparigas. Também ela, por seu turno, não tardou a avistá-los e, a um
gesto amigável de Ila, acercou-se da mesa em que ambos estavam.
Vestia saia azul claro e pullover branco, levando suspenso da mão o seu
chapelinho azul. “Aqueles meus camaradas foram buscar-me, explicou ela,
e descemos todos para respirar um pouco melhor.” Trocaram-se mais
algumas palavras. Ila convidou-a a sentar-se junto deles, excusando-se ela:
“Com esta fatiota não posso … além de que não devo deixar os meus
amigos. Dar-me-ia, contudo, muito prazer ficar aqui convosco um bocado.”
- “Bem nesse caso, até amanhã”, declarou Ila. - “Com a maior satisfação. O
André, que passou lá por casa esta tarde, já me disse que os senhores
tiveram a gentileza de convidar-me para o passeio de amanhã. Ficou
combinado que, com o irmão, Yoli iria ter com eles ao hotel.
- Sabes que esta rapariga é maravilhosamente bela? comentou Ila, passados
instantes; - e a verdade é que é difícil a uma ruiva ser bela; mas esta tem a
pele límpida, perfeita, e olhos dum tom bem raro. Pena é não ter a boca
mais bonita, não achas? …
- Efetivamente, não tem uma boca bonita, não, assentiu ele.
- Que importa isso, afinal - exclamou Ila - quando se tem vinte anos?! …
Yoli e Kelemen já se encontravam no átrio do hotel, quando os Kádár
desceram dos aposentos, ao cair da tarde seguinte. Yoli trazia outra vez o
vestidinho verde e, naquele dia, também Ila reparou em que a cor dos olhos
dela era igual à do vestido. E disse-lho, à sorrir. “Também já eu dei por isso,
mas foi por mero acaso … é um vestido branco que mandei tingir. A culpa
foi do tintureiro”, declarou ela, num riso franco. “A boca não é muito
bonita, é um tudo nada grande demais”, confirmou de si para si Kádár. “Em
compensação, tem uns dentes deslumbrantes, que brilham com um oriente
similar ao das melhores pérolas.”
Kelemen e Ila sentaram-se no banco interior do carro, ao passo que Yoli
tomou e assento da frente, ao lado de Kádár. Atravessaram lentamente a
cidade; as ruas apresentavam-se cheias de uma multidão buliçosa, de
veículos de todas as espécies, de luzes muito vivas. “Gosto mil vezes mais
da cidade à noite que de dia, confidenciou Yoli; à noite, tudo parece
diferente e mais amplo. Diga-me, numa grande cidade como Paris, por
exemplo, há mais luzes do que em Peste? …
“Oh! sim, muitas mais, e é de todo em todo diverso o aspecto em relação a
Peste.” Contornaram uma estação do caminho de ferro e encontraram-se,
finalmente, na estrada nacional; o potente carro pareceu dar um salto avante
e pôs-se, com estrépito, a devorar quilómetros sobre quilómetros. Kádár
sentia, à sua direita, um doce calor; e dominando o cheiro próprio do auto,
da gasolina e do óleo, um perfume fresco e puro como o dum bom sabonete,
arremeteu contra ele. Levava o olhar fixo na estrada, embranquecida pelos
faróis do carro mas sentia os olhos da rapariga poisados sobre si. De
soslaio, lançou-lhe uma mirada; mas viu que Yoli voltava de súbito a
cabeça.
“Oh! 110 quilómetros à hora, notou ela, sempre tive um pouco de medo de
andar de automóvel, mas, apesar disso, adoro correr assim. Seria, contudo,
prudente afrouxar na escuridão, um tanto …” Quando chegaram, viram que
a Pousada abarrotava até mais não. Muito a custo, conseguiram mandar pôr
uma mesa ao ar livre, junto do valado, já na curva da estrada nacional. Esta
perdia-se no seio da noite, ao fundo duma tranquilidade branca e
adormecida. As árvores que a ladeavam erguiam, a distância, uma sombra
mais negra que a negrura do horizonte.
Um céu magnânimo espalhava no firmamento, por cima da paisagem, os
seus tesouros estelares. Para os lados do campo, ouvia-se a orquestra rápida
das cigarras, cujos ritmos fundidos na harmonia universal formavam uma
espécie de acompanhamento à música que, um tanto amortecida, chegava à
mesa por eles ocupada. No terraço, iluminado por grinaldas de lampeões
via-se gente dançando.
Assumia grande estranheza essa melodia dolente, arrastada e desconhecida,
dum jazz tocando no terraço duma casa campestre, melodia que, depois de
pairar entre as velas que, em globos de vidro flamejavam por cima das
mesas, ia por fim perder-se no mistério do campo noturno.
Kádár fitava Yoli. Ela conservava-se silenciosa, mal proferindo uma palavra
de quando em quando; a sua mão branca tocava apenas, num gesto
sonhador, as iguarias colocadas na sua frente. “Está cansada, minha
amiguinha? perguntou Ila; dir-se-ia que está fatigada ou de mau-humor.” -
“Nem por sombras, respondeu a jovem; estou mas é gozando
profundamente esta noite deliciosa, visto que tudo é aqui tão singular e tão
belo.” Com efeito, o lugar era excepcionalmente estranho e cheio de beleza:
verificava-se no recinto a mistura um pouco artificial da elegância citadina
e da restauração do primitivo estilo da “Csarda” {20} clássica. Nesse
espetáculo se integravam o sabor do champanhe francês e o aroma a feno
no campo noturno, os sons do já e dos automóveis e a cintilação das velas.
Os semblantes, os trajos, os ruídos, os gestos: tudo isso provinha do baile da
ilha Margarida. Mas o céu de ali não era apenas uma tapeçaria, as estrelas
eram verdadeiras estrelas e não lâmpadas elétricas, e o horizonte não era, de
modo algum, cenário de teatro! …
O rosto de Yoli brilhava, pálido, ao clarão das velas.
Num dado momento, Kádár, ao estender a mão para pegar no pão, tocou
sem querer na de Yoli. Um estremecimento a percorreu toda. Ele deu por
isso, precisamente.
A mão branca retraiu-se, num movimento rápido. Uma impressão de torpor
invadiu o peito da jovem. Simulando colocar melhor a cadeira, ele mexeu-
se e tocou de novo, agora voluntariamente, o braço de Yoli, que estremeceu
toda outra vez e se desviou um pouco, como por acaso … Comeram,
conversaram, dançaram; e, quando, ao ritmo lento da música, os corpos de
Yoli e de Kádár roçaram um pelo outro, ele estreitou-a muito fortemente
contra si. Estremeceria ela desta vez também? … Em seguida ele tornou o
abraço ainda mais estreito … Durante esse abraço, sentiu, num dado
momento, que faltava a respiração a Yoli; e, no fim da dança, com mão
firme levantou à viva força a mão esquiva e pesada de Yoli e beijou-a acima
do pulso … Esse pulso era frágil, como delgados eram os seus artelhos e as
suas pernas. E a pele era de uma brancura impecável, o busto franzino, os
ombros pouco largos. E, sobretudo, ela tinha vinte anos. “Vinte anos!”
acentuou Kádár de si para si, recordando-se das palavras de Ila e sentindo,
simultaneamente, um leve aperto no coração. Ao acompanhá-la ao lugar,
em marcha sinuosa por entre as mesas, deixou-se ficar um pouco mais para
trás, na ideia de observá-la melhor, ao clarão incerto das velas.
Yoli parecia estar mal-disposta. Ila, pelo contrário, esvaziava uma vez e
outra o copo; estava alegre, buliçosa, tinha palavras afáveis para tudo e para
todos.
Coisa curiosa, parecia, nessa noite, mais nova do que Yoli. Resultaria isso
do contraste com o semblante branco até à inverosimilhança, tal como o das
máscaras, da juvenil irmã de Kelemen? …
Chocando-se em saúdes sucessivas, os copos tiniam no meio da música.
Esta convidava toda a gente a dançar. Enquanto se dirigiam, os quatro, para
o terraço, Kádár levou, com teimosia involuntária e inconsciente, a mão ao
braço de Yoli, agarrou com ímpeto nesse braço nu e atraiu-o a si. “Deixe-
me, por favor …, disse Yoli, eu não quero …” - “Porque é que não
queres? … Defendes-te de quê? …” Deu com o pé numa cadeira, pediu
desculpa à pessoa nela sentada; mas não largou o braço de Yoli, exceto um
momento, já no terraço, quando se viram face a face, e simplesmente para
lhe enlaçar o busto. O feixe de raios luminosos, azuis esverdeados, de que
os olhos de Yoli se mostravam sempre pródigos, pareceu-lhe, nesse instante,
repassado de espanto. Estranho, esse olhar? Estranho, não era bem assim;
esse olhar era agora, pelo contrário, familiar, ao ponto de ele se sentir
atónito perante a sua expressão.
Subitamente, convenceu-se de que mais valia cessar imediatamente de
dançar, desenrolar ali, sem disfarces, todo aquele negócio, regressar depois
a casa e abalar para longe, guardando bem no fundo da alma uma bela
recordação. “Os ingleses dançam todos otimamente, não é verdade?
perguntou Yoli. Sabe, eu gosto de ver dançar, juntas, pessoas da mesma
altura; e eu, eu chego apenas ao seu ombro, ou um nada mais acima …” “E
se me baixasse agora e lhe tomasse a cabeça, beijando-a? …” perpassou
pela mente de Kádár. “O senhor também dança muito bem mas o certo é
que, hoje, o senhor é já mais inglês do que húngaro … que, afinal, também
os húngaros dançam muito bem …” “E se eu agora me baixasse, e …?”. Era
o mesmo pensamento a persegui-lo sempre!
No regresso, foi Ila quem guiou o carro. Kelemen sentara-se ao lado dela,
ao passo que Yoli e Kádár tomaram lugar na bancada posterior. Yoli
inclinou-se toda para trás: trazia um manto negro que, envolvendo-lhe por
completo o corpo, ainda descaía para baixo do assento. Só a alva mancha do
rosto e os cabelos ruivos se destacavam da negrura do manto. Com as mãos
nos joelhos, de luvas calçadas, a sua atitude tinha a imobilidade da morte.
Durante minutos manteve os olhos cerrados. Iam todos em silêncio. Ila,
sobre a estrada sua desconhecida, guiava com prudência. Kelemen,
inclinado para a frente, observava a fita do macadame, que a luz dos faróis
branqueava. “Se eu agora lhe dissesse, pensou Kádár …
Yoli, dá-me a tua mão”; mas, neste instante, divisou, refletidos no
espelhinho fronteiro ao volante, os olhos negros e brilhantes de Ila, atentos
ao caminho.
Oh! os olhos negros, fiéis, puros e inteligentes de Ila! … Sentiu uma
vertigem … Aqueles olhos negros como o abismo, durante a primeira
viagem que faziam juntos, a bordo, na noite do dia em que embarcaram,
perto de Gibraltar!
Os seus lábios famintos e ávidos, o seu corpo branco e ardente, na
obscuridade, por trás da porta entreaberta da cabine, quando … “E se eu
dissesse agora muito docemente, muito baixinho, tão baixinho que só Yoli
me pudesse ouvir: Yoli, dá-me a tua mão … “ - “Oh! vejam como aquilo
brilha - disse de repente Yoli, não viram? …” - “Era com toda a certeza uma
lebre ou um gato bravo, uns olhos que brilhavam com um fulgor verde no
meio da escuridão …” Endireitou o corpo, reclinou-o para a vidraça lateral:
“Aquelas luzes, lá em baixo, são já de Budapeste, não é verdade? …” O
carro estacou diante do prédio sito na avenida.
Ele desceu, ajudou Yoli a descer por seu turno: Kelemen já se encontrava
junto da porta e acabava de tocar à campainha, Ila ficara ao volante;
inclinando-se para a portinhola, disse mais uma vez:
“Adeus, queridinha Yoli, vá visitar-nos logo que possa.” Apertaram-se as
mãos: “Boa noite.” “Se eu lhe dissesse agora …” pensou ele novamente. E,
nesse instante, sentiu que a mão de Yoli, assente na sua, se erguia num gesto
doce, humilde e quase incita-dor. A mão ergueu-se de maneira
imperceptível, até ele poder dobrar-se sobre ela e beijá-la. Ao levantar a
cabeça Kádár sentiu outra vez o feixe de raios luminosos, azuis
esverdeados, dos olhos de Yoli, projetar-lhe sobre o rosto, enquanto
Kelemen, encostado ao carro, os observava, atento, manhoso e meditativo.
Kádár teve o pressentimento de que Yoli não acederia ao amável convite de
Ila, de os tornar a visitar no dia seguinte, ou no imediato a esse. Mas quando
três dias transcorreram sem que ela aparecesse e ao ouvir Ila, uma noite,
declarar, ao mesmo tempo que puxava da sua agendazinha de couro
vermelho: “È preciso escrever qualquer coisa para a Suíça, ou supões que
bastará um simples telegrama a avisar a nossa chegada?”. -ele viu-se logo a
contas com a mesma inquietação dos dias anteriores, refletiu em que, se
durante esses três dias passados tivesse percorrido a avenida, teria sem
dúvida … teria, certamente, tornado a encontrar Yoli. “Se queres,
respondeu-a nessa ocasião, podemos escrever”, e imediatamente se
silenciou. “Bem, nesse caso, disse Ila, vamos escrever para Saint-Moritz e
para Flims, e depois … que disseste tu mais, este inverno? …
para Engelberg? …” Kádár não respondeu logo. Folheou distraidamente o
jornal inglês que estava na mesa e acabou por consentir, numa voz
arrastada: “Sim …”
“Não me estás ouvindo? perguntou Ila. Parece-me que já vimos Budapeste
mais do que suficientemente; creio que podemos marchar de aqui para fora.
Não concordas?
- “É justo, respondeu ele enquanto dobrava o jornal; mas, antes, desejava
estudar o tal negócio. Falei hoje nele a Abley, pelo telefone.” - “Queres
ocupar-te disso? perguntou Ila, num tom um pouco frio, ah! bom!”
Vivamente, Kádár replicou: “Ocupar-me, precisamente, não, não creio que
o faça; mas, em todo o caso, desejaria estudar o negócio. Abley também mo
aconselhou, - “Abley não pode julgar as coisas a distância, respondeu Ila; se
vale a pena estudar isso, ocupemo-nos nós, aqui, do assunto. Só tu és juiz na
matéria, e se pensas que a coisa vale a pena - acrescentou ela tomando, de
cima da secretária, o jornal - estuda-a; pela minha parte, é negócio que não
seduz.”
Kádár não deu palavra. “Também o próprio Abley aconselhou … -voltou Ila
à carga - é ridículo; que podia ele aconselhar-te que não fosse isso? …
Estuda tu o negócio; fá-lo, se te parece interessante, mas não te esqueças de
que não podemos tomar compromissos a longo prazo no Continente; pelo
menos, nós, os de Londres.
O negócio em referência consistia numa proposta do advogado Szende.
Esse último chamara-os ao telefone, dois dias antes. Tinha começado por se
informar da sua saúde, com uma amabilidade requintada e depois declarara
querer falar com Kádár por causa de certos negócios, se isto o não
incomodasse. Queria obter o seu conselho como perito nessas coisas, e ao
mesmo tempo provocar a sua atenção para um negócio que, no entender
dele próprio, Szende, se podia contar no número dos mais interessantes.
Constrangido e forçado, Kádár por mera delicadeza aceitara a visita.
- “Esse Szende, qual é deles? …” - interrogara Ila quando o marido a
avisara da próxima visita do advogado. - “É o … como hei-de eu descrever-
to? … É aquele de bigode negro, um tanto barrigudo e bastante barulhento a
falar.
Szende aparecera, no dia marcado. Tinha levado um bonito ramo de flores
para Ila, e como ela havia saído precisamente nessa ocasião, na companhia
de Mrs.
Simmons, ele lamentara muito não lho poder entregar pessoalmente. Em
seguida, entrara na matéria. Tratava-se de um dos clientes, que ele
recomendava muito particular mente a Kádár, chamando a atenção deste
para o facto de - abstraindo agora do referido cliente - ele, Szende,
desenvolver certa atividade no meio consagrado a transações de prédios e à
construção civil. Dispunha de relações magníficas e muito numerosas.
Szende falava com vivacidade, desenhando largos gestos, proferindo frases
fortemente coloridas, assaz subtis e astuciosas, um pouco no estilo retórico.
Kádár escutara a comprida aronga de Szende e dificilmente se contivera,
para não sorrir.
“Eu, comprar coisas em Budapeste? … construir em Budapeste? …”
perguntara a si mesmo durante a conversa, mas o seu esboçado sorriso
congelara-se-lhe sobre os lábios desde que cruzara o olhar com o do
advogado. Acudira-lhe, entretanto, uma ideia. Fixara qualquer ponto ponto
no ar cheio de fumo e respondera; “Ouve, Szende, assim à primeira vista,
não posso, como é natural, dar-te uma resposta em regra, nem sequer em
princípio. A minha intenção era não passar em Budapeste mais do que umas
semanas e, a falar verdade, poucos motivos tenho para me interessar, aqui,
por negócios; mas …” Olhou de novo o tal ponto invisível no ar, pensando
de súbito que havia já quatro semanas que se encontravam em Budapeste,
que não tardariam em partir e que Yoli não tornara a telefonar desde a
excursão da ante-véspera, e concluiu “… mas tenho muito empenho em
estudar o negócio que propões, e se vir que interessa …” A cara de Szende
estava radiante, os lábios recalcaram um sorriso matreiro e os olhinhos
negros, de pálpebras entumecidas, brilharam por trás dos vidros da luneta.
Voltaremos a falar nisto, meu amigo, voltaremos a falar nisto! assegurara
ele. Pela parte que me diz respeito, estou sempre e inteiramente ao teu
dispor.” Combinaram, por fim, permanecer em contacto por meio do
telefone.
Depois da ilusão a este negócio e da sua restante conversa com Ila, Kádár
saiu para a varanda e contemplou o Corso matinal. “Dentro de alguns dias,
partiremos, murmurou. Não há razão para que fiquemos mais tempo, salvo
se …” Fez um gesto de agastamento, como que para se convencer da
estupidez de tudo aquilo. “Vamos abalar para a Suíça, para Saint-Moritz,
para Flims ou para Engelberg, ou seja lá para aonde for; o mais tardar,
partiremos no meado da próxima semana …” Impaciente, voltou para
dentro do quarto, na idéia de consultar a guia dos caminhos de ferro. Não a
encontrou. “Onde a teria eu metido? … Talvez esteja no quarto de Ila …”
Mas a guia não apareceu em parte alguma. Olhou o seu relógio, acendeu um
cigarro, bebeu mais um cálice de conhaque e pegou no chapéu. As senhoras
esperavam-no na pastelaria, do meio-dia para o meio-dia e meia hora.
Contornou o largozinho ajardinado, enfiou pela avenida que orna a margem
do Danúbio. Estava calor. Com semelhante tempo seria delicioso ir para as
montanhas ou para o pé do mar.
Na pastelaria, juntou-se ao grupo de Ila e de Mrs. Simons. “Que há de
novo?
perguntou-lhe logo a mulher. - “Vamos deixar Budapeste pensou ele e, logo
no mesmo instante, escutou, a par de um baque mais forte do coração, a sua
própria voz, a qual, com entoação extravagante, a custo perceptível,
respondia: “Não sei ainda, tenho de estudar a coisa; à primeira vista, parece-
me interessante.”
Quanto tempo ficarão os senhores ainda em Budapeste?” quis saber Mrs.
Simmons.
“Não sei ainda, respondeu, estamos em vésperas de partir para a Suíça, mas
de bom grado ficaria ainda aqui uns dias se visse valer a pena ocupar-me do
tal negócio.” Também no dia seguinte Yoli não se deixou ver, e quando
Kádár, a instâncias de Ila, acabou por expedir as cartas para a Suíça, a-fim-
de obter informações - sabia ele já perfeitamente que o envio dessas cartas
era inútil: agarrar-se-ia ao pretexto, sobremodo simples, quase ridículo, que
lhe forneceria Szende. Estudaria o negócio, ocupar-se-ia dele, apenas para
poder demorar-se em Peste. “Enganarei o próprio Szende, refletiu, porque,
no fim de contas, não farei negócio nenhum, e enganarei também Ila … se é
possível enganá-la.”
Nos últimos tempos, devia haver já coisa de ano e meio, Ila deixara de
ocupar-se dos negócios, não tinha conhecimento deles senão por alto,
através das conversas de ambos em casa. Contudo, se ela viesse a
interessar-se por aquele negócio do Szendo, daria logo conta, desde o
primeiro instante e tão bem como ele mesmo, de que se tratava de uma
coisa absurda. Não era possível enganar-se Ila … e o nó da questão estava
em saber se ela se interessava pelo negócio em referência, ou não. Kádár
tinha de precaver-se contra esta circunstância, e, logo que atentou nela,
preparou friamente, lucidamente, até as próprias palavras que iria dizer,
tanto a Szende, que desejava envolver no seu jogo, como a Ila, a-fim-de
justificar perante ela a sua atitude! “Preciso de cumprir para como esta
cidade o dever que à minha consciência se impõe e o que nada adultera tão
elevado sentimento - farei, ainda por cima, um bom negócio” …
Mas esta falta de franqueza, este jogo das escondidas consigo mesmo não
durou mais que dois ou três dias, e Kádár acabou por confessar aos seus
botões: “Pois bem!
sim, é por causa da Yoli que eu fico mais algum tempo cá.” Quando chegou
a este ponto, teve de formular outra pergunta correlativa: “Porque quero
ficar por sua causa? Que queria eu dela? …” E, ante estas perguntas, deu-se
resposta mediante diversas mentiras. Yoli, todavia, continuava esquiva, nem
sequer se mostrava.
Apesar disto, Kádár deixara de andar inquieto. “Tenho tempo”, pensou; e
encetou as conferências com Szende. “Pobre Szende, que se encontra
firmemente resolvido a tirar proveito da minha pessoa!” Sorriu com um
sorriso satisfeito e maldoso, ao raciocinar: “Viu em mim um idiota, quis
intrujar-me, mas é ele o roubado. Já outrora, na escola, deu-me um dia cinco
aparos espelhentos em troca do meu frasco de goma. Após a troca,
verifiquei que eram aparos lavados depois de servidos, já com a ponta gasta.
Pobre Szende! E o mesmo direi dos outros, todos eles bem merecedores,
afinal, de sorte igual!” Szende não se esqueceu de chamá-lo ao telefone, e o
autêntico ar de escárnio que ele estapeava na cara, na manhã em que pela
segunda vez se apresentou a visitá-lo, era nada menos que repugnante. Não
dissimulava, o homenzinho, o seu triunfo. Se Kádár não se decidiu a pô-lo
imediatamente fora da porta, foi porque … O advogado Szende extraíra da
sua pasta um processo enorme, cheio de plantas, de fotografias de terrenos,
de contratos, de avaliações, de cálculos, atas, de exposições, de projetos, de
orçamentos. Foi por toda esta papelada que começou a comédia. Pobre
Szende! Mesmo que Kádár não tivesse necessidade dele como pretexto para
ganhar tempo, ninguém poderia ter mão em Szende … Nem nesse, nem nos
outros.
Durante todo o tempo da permanência de Kádár em Budapeste, Szende
elaborara, no fito de lha fornecer, uma pasmosa quantidade de planos, de
cálculos e de propostas, dera-se a angariar um acervo de informações e de
referências.
Agora, levava-o todos os dias a ver prédios em ruínas, sitos nos arrabaldes,
e exclamava, extasiando-se: “Casas para as classes trabalhadoras, meu
amigo! não têm escritos nunca, o operário é locatário que paga bem …”
Arrastava-o para onde existiam terrenos vagos, bons para fábricas,
seduzindo-o coro a vantagem que adviria de comprá-los a baixo preço.
Explodia de entusiasmo à vista de charnecas poeirentas, fora de portas,
propondo-lhe construírem aí um Bairro Helena húngaro …
Sim, Szende merecera bem o que lhe acontecera! Durante mais dum mês,
colara-se-lhe como sedenta sanguessuga. Dias e dias a fio, torturara os
miolos para fazer brotar uma só ideia que fosse, em que Kádár acabasse por
morder. Inventava coisas de inaudita complicação, cuja impossibilidade de
realização se metia pelos olhos dentro, ou, outras vezes, vinha com
projetozinhos duma tenuidade que causava dó. Chegava a não saber, com
justeza, se Szende o tomava por um perfeito imbecil, ou se Szende era, pelo
contrário, cego ou tolo além de todos os limites … Kádár já estava mais que
farto, mas resignara-se devido a não poder desembaraçar-se ainda dele. No
final de contas, a meia hora que passava, diariamente, na sua companhia,
não tinha grande importância. E, todavia, este jogo inspirava-lhe, muitas
vezes, desgosto. “Ficamos em Peste …
vou falar com Ila. Parvo sou eu em acreditar que Ila não vê claramente
através destes truques ingénuos.” Ao ter estes pensamentos, fechava os
olhos, cerrava os lábios. Mais valeria servir-se de outro pretexto que melhor
ocultasse a situação, enquanto isso pudesse durar.
“Os meus negócios retêm-me em Budapeste …” Esta comédia durara
meses, quase até o derradeiro dia passado em Peste; e fosse por que Szende
tivesse dado com a língua nos dentes, fosse por que os outros houvessem
farejado a peça de caça, todos tinham vindo, pouco a pouco, um a um.
Semblantes vários surgiram no hall do hotel, semblantes que o fitavam
cheios de ansiedade; inúmeros apelos soavam pelo telefone, cuja inflexão,
trémula de comovida, lhe não podia escapar.
Semblantes conhecidos e desconhecidos, semblantes que ele tinha
dificuldade em identificar através do nevoeiro duma distância de catorze
anos … Quase não havia semana que não trouxesse uma nova tentativa,
mais outro semblante.
Márton, também advogado, tentara o cerco com o conto fantástico e
intrincado duma pequena casa bancária a desencalhar e que seria
inigualável fonte de lucros para um capitalista sólido. Em seguida, Weisz, o
desleixado que entortava as pernas, com aspecto de bufarinheiro, viera
oferecer-lhe, a ele, construtor de fartos capitais, o ensejo de aquisições
particularmente lucrativos. Amman, também esse por ali passara, o elegante
Amman que, em linguagem castigada, fazia espalhafato das suas relações
com as mais altas personalidades do Estado: “Ignoro, meu amigo, se és
sensível aos títulos e às distinções, mas empenho-me em conseguir a tua
nomeação como cônsul honorário da Hungria lá nessa terra onde vives,
desde que, como é natural, faças uns pequenos sacrifícios.” Seguira-se
Simon, que, sem nenhuma proposta concreta, insistira na circunstância de
ser homem apto para tudo e que, como quem não quer a coisa, falara da sua
última viagem à Transilvânia no decurso da qual o caso lhe permitira ver,
em Deva, as tumbas dos pais de Kádár. Devia voltar lá muito brevemente, e
se Kádár sentisse vontade de acompanhá-lo … Depois, fora Suhajda a
aparecer, com o fato muito coçado, tímido e atabalhoado no falar; vinha
pedir a Kádár informações sobre as condições sanitárias, e médicas da
África do Sul.
Os olhos dele tinham adquirido um clarão exasperado e quase demente ao
balbuciar algumas palavras incoerentes a respeito da fatal ingratidão,
histórica mas imperdoável, que a Sociedade cristã do seu país,
reconquistada pelo judaísmo internacional, usava para com os seus
melhores filhos. Por último, um dia, no meio da rua, Róna tinha agarrado
Kádár por um braço, a-fim-de levá-lo, quase à viva força, ao seu elegante
armazém de porcelanas, no centro da cidade; aí metidos ambos num
gabinete em que o outro se envaidecia de se ver investido na pele de patrão,
foi lhe mostrado o serviço que o velho Róna comprara à família dum conde
arruinado: “É autêntica porcelana de Herend; não me importaria vendê-lo a
um preço irrisório, meu amigo; mas haverá alguém em Peste capaz de
comprar-mo? …”
E muitos mais tinham vindo, com ou sem recomendações, seus antigos
conhecimentos ou estranhos por completo, apresentados por um amigo, ou
cunhado ou um sobrinho, ou referindo-se outros, muito simplesmente, a um
fortuito encontro com ele, outrora. Tinham-lhe prodigalizado discursos
prudentes, aliciantes, vagos e fantasistas. Patentearam-lhe projetos
cambaios, sem nexo.
Lançaram-lhe no caminho ideias tão leves como penas … possibilidades,
sonhos, uns “talvez” … que, desde que houvesse dinheiro, se poderiam
converter em outras tantas realidades brilhantes, extraordinárias,
esplêndidas. Aquelas pessoas todas tinham fé na força magnética do
dinheiro, nessa lei da atracão que faz com que dinheiro atraia dinheiro. Para
elas, quanto mais se tem, mais se ambiciona e mais se é capaz de
conquistar, graças à faculdade que possui o dinheiro de se multiplicar por
seus próprios meios, de se fecundar, forçosamente, a si mesmo.
Engodavam-se todos na crença de que basta o facto de estar na proximidade
de uma grande fortuna para ver fugir para longe a miséria. Exatamente
como os touros bravos, excitavam-se todos à vista do pano vermelho do
negócio chorudo que, nos cérebros esquentados, delineavam. Todos
ofereciam e prometiam, faziam luzir esperanças e multiplicavam
exortações. Mostravam-se dedicados, generosos, alheios ao vil interesse.
Todavia, nenhum deles ousava pedir abertamente, nenhum queria mendigar,
não por vergonha, mas porque, se estendesse a mão, poderia obter …
quando muito, uma libra, como Kádár sabia por experiência própria.
Contudo, era visível que Ila gostava de estar em Budapeste; andava de bom-
humor e não tardara a deixar-se da insistência em partir. Tinha buscado e
conseguira-o com extrema facilidade, distrair-se na companhia dos
Simmons. Só quando a conversa resvalava para aqueles negócios de Peste,
quando ela via essa chusma de clientes-fantoches, quando Kádár tentava
justificar-se, explicar-se perante ela, só então Ila, sem abrir a boca, franzia
as sobrancelhas e uma rugazinha profunda se lhe cavava na fronte.
Cada vez mais assaltava Kádár este pensamento: “Impossível é que Ila
ignore não passar tudo isto de um pretexto; impossível é que não veja a
verdade!” Punha-se a espiar, num tremor íntimo, para ver se qualquer
mudança se produzia em Ila e se alguma coisa se alterava entre ambos, se
alguma saía de lugar próprio. “Não pode haver sombra de dúvida sobre o
estar ela ao corrente do caso de Yoli, refletiu; oxalá nada, apesar disso, se
tenha modificado entre nós!” Mas Ila não dizia palavra.
E, ao meditar um dia mais a fundo no silêncio de sua mulher, deu a si
mesmo esta explicação ingrata e cínica: “Ah, bem! está compreendido,
também eu poderia falar e sei calar-me “ Havia já algum tempo que Kádár
não saía de carro após o almoço. Enquanto Ila passava pelo sono, estendia-
se ele também no divã e lia ou, então, remexia nos seus papéis. Os negócios
do Pôrto-Isabel preocupavam-no, a-pesar de tudo, e passava às vezes dias
nervosos, à espera de qualquer telegrama de Scott. Mas lá tudo marchava
bem: os terrenos de Bloemfontein tinham sido vendidos ao Serviço
Aeronáutico do Estado e a firma havia obtido a encomenda dos trabalhos de
construção do novo aeródromo. De manhã, jogavam o “tennis”, na ilha
Margarida, com os Simmons. Os dias escoavam-se, repletos de propícia
espectativa, esses dias fáceis e belos que os estrangeiros ricos gozam em
Peste, durante o verão. Kádár sentia-se calmo, tinha confiança no tempo e
no mútuo silêncio de ambos. “Ela será, quando eu quiser, minha amante”,
pensou um dia; depois, num riso sacudido, refletiu: “Não tenho necessidade
de tal, nada quero dela. Nem sequer é bela, e mesmo … não se trata disso;
trata-se de saber se Ila está ao facto do caso da Yoli … Porque me apraz
encontrá-la … porque me informo da sua saúde, junto do irmão? … Porque
penso nela? … “Ante estas últimas palavras, sobressaltou-se. Ao pronunciar
a frase: “Penso nela”, teve, pela vez primeira, consciência de que, de facto,
pensava muito nela, que muitas coisas se teciam en torno dela, que vários
acontecimentos sofriam a sua influência, que se ocupava dela,
incessantemente, nos seus pensamentos, e também de que … tudo aquilo
não tinha ponta de senso: mais valeria que houvessem partido, ele e Ila,
logo ao fim do primeiro mês de estada em Budapeste.
Um dia encontrou Yoli, por acaso: “Bom-dia, Yoli! disse, detendo-lhe o
passo, há muito tempo que não temos notícias suas. Como está de saúde? (É
curioso refletiu, esta manhã estava mortinho por vê-la; e agora parece-me
que o facto me dá pouco prazer)” - “Efetivamente, há já muito tempo que
me vejo impossibilitada de visitá-los, não obstante o amável convite de sua
mulher” respondeu ela. - “Tem tido muito que fazer? …” continuou Kádár
mas sentiu imediatamente quanto a pergunta era tola e pretendeu emendá-
la: “Sai, sem dúvida, muito … Vai frequentes vezes à praia? …”
- “Oh! não, nada disso, replicou Yoli, nada tenho que fazer e não vou a parte
alguma.” - “Então, porque não telefonou? - “A bem dizer … nem sei.”
Kádár olhou-a de perfil. “E uma falta de gentileza, da sua parte”, lamentou,
um pouco embaraçado. Yoli, com vivacidade, cortou-lhe a palavra: “Para
que lado vai? se nada tem que fazer, de urgente, acompanhe-me um bocado;
tenho de comprar uma fita para pôr num chapéu velho e vou a um armazém
aonde estou certa de ir comprá-la mais barata.” Caminharam lado a lado,
conversando em coisas insignificantes. Enquanto andava, Kádár ia
observando Yoli. Trazia um vestidinho branco, tendo por cima um
casaquinho curto, encarnado, um barrete branco e sapatos entrançados,
brancos também. A marcha era ligeira mas imprimia ao corpo uma atitude
levemente compassada. Rente a ela, Kádár sentia às vezes o feixe de raios
luminosos dos raios luminosos dos seus olhos, azuis-esverdeados, envolvê-
lo todo. Os pés dela eram pequenos, belos porque não deformavam o
calçado. De súbito, atravessou o cérebro de Kádár um clarão: “Olha,
sandálias e saltos rasos …” e declarou então: “Conheci, já há anos, uma
rapariga em Viena que se parecia muito consigo, e eu e ela éramos muito
amigos.” Yoli soltou uma risada seca e desnorteante. “Tem conhecido, nesse
caso, bastantes mulheres ruivas?”
perguntou ela. Fixou-a; que poderia responder lhe? … Que réplica imediata
e curta lhe daria? … “Não me queira mal, observou Yoli, com uma espécie
de irónico arrependimento na voz, eu não quis verdadeiramente desfazer na
sua ruivazinha doutros tempos.” Um estranho sentimento de incerteza
agitava o peito de Kádár. Aquela rapariga tinha bastantes traços da Tílly
sem, contudo, se parecer nada com ela. Era diferente no rosto, nas mãos, na
estatura, nos pés, e, todavia, no conjunto fazia lembrá-la. Parecia ter o
mesmo tom de voz, se bem que Tilly fosse susceptível de ter mil vozes
diversas e que, com Yoli, trocara apenas escasso número de palavras ainda.
“Vamos, está zangado comigo a valer? … - disse Yoli rompendo o
silêncio …
- Garanto-lhe que não quis dizer nada desagradável, mas fui obrigada a
deixar sair cá para fora esta asneira, porque o senhor é um homem … tão
esquisito …”
- “Eu, esquisito.., é coisa que não sou.” - “Sim, ou por outra, um homem de
tal modo silencioso … mas eu gosto mais de que se calem. Naquela noite,
mal abriu a boca. Certo é que detesto as pessoas que tagarelam, sempre,
como sucede com esse horrível Simon. O senhor, vê-se bem que não é de
Peste, que é estrangeiro e que tem mais idade do que nós, mais idade do que
os rapazes e as raparigas com quem costumo sair. Já, naquela noite que
sabe, quando esteve todo o tempo calado, senti que havia em si qualquer
coisa minha conhecida, como se já o conhecesse há muito tempo. Mas
agora reparo em que estou a fazer-lhe a corte, ou quase. Então, não está
zangado comigo, não é verdade? …” - Não, não estou - respondeu Kádár; e,
num gesto desastrado e inconsciente, agarrou no braço de Yoli um pouco
acima do pulso. - “Peço-lhe …” protestou Yoli, desenvencilhando o braço,
com um único repelão. Após ter dado mais alguns passos em silêncio, parou
diante de um estabelecimento. “É aqui o armazém de que lhe falei ainda
agora; quer entrar ou esperar-me cá fora, se ainda dispõe de tempo?”
Alguns minutos depois ela reapareceu, trazendo, suspenso do dedo por um
fiozinho, um pequeno saco de papel. A voz tornara-se-lhe diferente, as suas
palavras eram revestidas de jovialidade: “Sabe que eu daria um guia
admirável, para acompanhar estrangeiros? Olhe, naquele armazém,
vendem-se as sedas mais caras e da pior qualidade; neste peleiro, há uma
maleta encantadora, a não ser que já a tenham vendido. Veja, veja, muito
me conviria um automóvel exatamente como o que está por trás daquela
vitrina. Infelizmente, não sei de que marca é, e depois, também … Olhe,
neste armazém aqui, compro eu discos, quando, o que raras vezes sucede,
posso pagá-los. Os discos custam por toda a parte o mesmo preço, mas
gosto tanto de entrar neste armazém e de ouvir esta musicata infernal! …” E
desatou a rir num riso fresco e alegre, que arrastou Kádár a fazer o mesmo:
“A Yoli daria, efetivamente, um guia admirável.” - “Sim, a-pesar de ser às
vezes um pouco maluca, replicou ela, mas isto não obsta, não é verdade? …
- “Não, não obsta nada”, respondeu ele, olhando-a outra vez de soslaio (“Se
eu lhe dissesse agora: Yoli, eu quero que possua tudo o que há de mais belo
no mundo …”).
Um jovem em cabelo, envergando um fato de linho, bonito rapaz, passou
em sentido contrário. Yoli, com a mão, dirigiu-lhe um gesto amigo. A esse
gesto, o jovem, um tanto desconcertado, parou e fixou seus olhos sobre os
dois, seus olhos piscos de míope, munidos de grossos óculos de aros de
tartaruga. Era um daqueles rapazes de smoking que a acompanhavam, da
outra vez, no bar da ilha Margarida.
“Salve, Yolizinha, como vai isso? … -” Salve, Totó, que andas tu por aqui a
fabricar a estas horas?” E Yoli fez as apresentações: “O doutor Otto Huszár,
o senhor António Kádár, ou antes, mister Kádár apenas, porque não sei
dizer o seu nome próprio em inglês; numa palavra, Totó, tu sabes, o amigo
de André que veio da África do Sul.” Prosseguiram os três juntos o mesmo
caminho, pondo-se o Dr.
Otto Huszár, com gentileza, do outro lado de Yoli. De quando em quando
Kádár deixa vá-se ficar meio passo atrás, para melhor os observar e escutar
a sua conversa, fútil e brincalhona. Fala bizarra … pestense da gema;
“Minha pequenina Yoli, meu pequenino Totó.” Estão em boas relações um
com o outro, são amigos, companheiros, pensou Kádár; e um tudo nada de
amargura lhe acudiu à garganta. Mostrou expressão hostil quando, num
recanto da rua, o doutor se despediu. “Quem é este cavalheiro? …”
perguntou a Yoli, poucos passos adiante.
- “Porque está com essa cara de zangado? quis saber Yoli num ar
implicante, não é um cavalheiro qualquer, é um bom companheiro. Além
disso, é médico, não precisamente célebre, mas já ganhando bem a sua vida,
sobretudo se tivermos em vista que acaba de se formar. É especialista de
doenças de pele, acrescentou ela com certo respeito. Huszár é um velho
amigo nosso, faz parte da nossa sociedade. É um rapaz muito gentil, muito
inteligente. Mas, para que lado vai agora o senhor? Eu, tenho de ir para
casa …” Quando Kádár chegou ao hotel, Ila não regressara ainda. Junto do
telefone encontrou o bilhete costumado, de aviso do local aonde ele podia ir
ao seu encontro: “Estou na “praia artificial”, com Edith. Estaremos de volta
à hora do almoço.” Pôs-se às passadas largas pelo quarto. “Não é bonita …
Há no seu rosto qualquer coisa de vulgar e a boca também nenhuma beleza
tem …” Como estava calor vestiu o pijama.
“Devo ir ter com Ila? … Ela levou o carro. Não, fico antes em casa,
jantaremos aqui no quarto”. E estendeu-se no divã. Pouco tempo depois, o
telefone soou discretamente, em cima duma secretária. Era Kelemen.
“Como vais? …” - “E tu, que fazes? … Desejava muito falar contigo …”
Combinaram que Kelemen iria ter com eles às quatro horas e que se
sentariam depois, em qualquer parte, dum terraço do Corso.
Kelemen, esse, era o mais discreto de todos. Mostrava não abrigar nenhum
desígnio particular e, todavia, era certo que também havia de querer alguma
coisa. Como é natural, um ouvido já experiente poderia até perceber isso
mesmo só por certas inflexões de voz, por certas meias frases. Ele queria
qualquer coisa e, mais tarde ou mais cedo, deitá-lo-ia cá para fora. Não
havia sombra de dúvida que Kelemen era o mais paciente, o mais
prudente … Seguramente, as suas ambições ultrapassavam as dos outros.
Mas o próprio Kádár não lha tinha pedido o mais que lhe podia pedir?
Pondo o auscultador no descanso, após a conversa com Kelemen, voltou a
estender-se no divã. Era natural e lógico que pensasse, neste momento, em
Yoli.
“Quem será aquele rapaz, aquele sábio de óculos de aros de tartaruga, que
conversa galhofeiramente em calão de Peste, aquele cavalheiro que não é
um cavalheiro mas sim um camarada, aquele fedelho? … Quando muito,
terá vinte e cinco anos, vamos lá, vinte e seis. Eu vou fazer trinta e três
anos; há sete anos de diferença. Em meu favor, ou para desvantagem
minha? … Yoli parece ser como unha e carne com ele … tratam-se por tu, e
o tal Totó pegou-lhe no braço num gesto sem cerimonioso, habitual, sem
que Yoli se defendesse disso; ela não o sacudiu, como fez comigo … Tudo
isto é uma enorme estupidez, como se eu fosse agora a ter ciúmes daquele
criançola … É idiota!” “É idiota” repetiu em voz alta, porque as pálpebras
começavam de pesar-lhe e não queria deixar-se adormecer.
Quando Ila entrou, ergueu-se em sobressalto, Ila vinha de bom-humor.
Referiu: “Coisa extraordinária, hoje; chegaram mais duas famílias inglesas
ao hotel S. Gerardo; um industrial de Birmingham acompanhado da mulher,
uma filha e um genro, e também um sujeito de Londres com a filha. A água
estava maravilhosa e o sol tão quente! … olha, vê as minhas costas, ainda
apanhei um bom banho de sol …” Enquanto Ila falava, interrogava-se sobre
se lhe devia dizer que encontrara Yoli por acaso. Este pensamento tornou-o
furioso. Tinha necessidade de se entregar a reflexões a esse respeito? Que
idiota! E sem demora interrompeu Ila: “Imagina tu quem encontrei na rua?
Yoli Kelemen. Perguntou-me se poderia vir, qualquer dia, ter connosco” “E
que lhe respondeste tu?” - “Disse-lhe, evidentemente, que teríamos prazer
em vê-la e que te telefonasse ela.” - “É claro que tenho prazer na sua
companhia, assentiu Ila. Mas que estava eu há bocado a dizer? … Ah! sim,
que nem podes pôr na tua ideia a pessoa engraçada e divertida que é essa
Mrs. Charvell, a mulher do industrial de Birmingham …”
“Yoli não virá nunca por iniciativa sua”, refletiu ele; pelo que, desta vez,
não quis confiar no acaso para conseguir novo encontro.
Agora já ele se permitia, frente a frente consigo mesmo, a franqueza
bastante para chegar a pensar:” “Terei gosto em encontrá-la, em vê-la, em
achar-me perto dela.” Tornava-se inútil recriminar, discutir. Sentia prazer
em ver Yoli e era-lhe agradável pensar nela. De que serviam, pois, as frases
austeras, as suposições, os raciocínios, as apreensões? …
Quando, no dia seguinte, se sentou com Kelemen no terraço dum café do
Corso, encetou logo a conversa convidando-os, a ele e à irmã, para jantarem
no hotel, numa das noites próximas. “Depois do jantar, poderemos subir, um
bocado, à esplanada cá do hotel, a não ser que as damas manifestem desejo
de sair.” Kelemen, claro está, aceitou com prazer o convite. Conversaram.
Pareceu a Kádár que, por trás das palavras um pouco abafadas de Kelemen,
se ocultava uma espécie de preocupação. “Com que então, divertem-se em
Budapeste … Eu já contava com isso; não há ninguém que não goste de
Budapeste, sobretudo se é apenas de passagem que se encontra.” Kelemen
pretendeu saber quanto tempo mais se demorariam ainda.
Kádár respondeu desconhecer ainda a data exata da partida, que, aliás, não
estava prevista para dia muito breve; a viagem à Suíça, adiá-la-ia
provavelmente, até que tivesse examinado mais a fundo as propostas de
Szende. Ao pronunciar estas últimas palavras, fixou Kelemen com olhar
perfurante. Kelemen soube dominar-se e só os dedos lhe tremeram ao
acender o cigarro que metera entre os lábios. “Ah! com que então Szende
fêz-te algumas propostas! … Muito bem, se se trata de negócio
importante …” E imediatamente ele entrou a falar dos seus próprios
negócios, que se lhe não apresentavam muito brilhantes. Começa por que
sabotavam - esta era a expressão que convinha ao acaso - a sua ideia, a qual
referira noutro dia, resumidamente, a Kádár. Não lhe diziam sim nem não,
queriam-no em suma, fazer render pela fome. Mas isso seria, mesmo assim,
o mal menor, nas circunstâncias atuais; naquele momento, o pior era não se
poder entender com o seu chefe de secção.
Este era um velho cioso que temia ver-se desapossado, por ele, do lugar que
exercia, fazendo-lhe portanto todas as partidas possíveis, a ele que jamais
impusera proteção alguma e que atingira o que era simplesmente pelo
próprio esforço … Abreviadamente, Kelemen deu a entender que não se
espantaria muito se recebesse mais dia menos dia a notificação de estar
despedido. Em seguida, deixou o assunto e a conversa tomou o rumo de
Porto-Isabel. Kelemen dirigiu inopinadamente esta pergunta: “Dize-me,
Tony, que espécie de gente é essa que tens ao teu serviço, lá em África? …”
- “Oh! é pessoal excelente, são técnicos de primeira ordem.” - “Sim, sem
dúvida, excelente sob o ponto de vista profissional, mas a respeito de
honestidade? …”
Kádár, admirado, fitou Kelemen. Não compreendeu imediatamente.
“Como?! a respeito de honestidade? …” Queres dizer: se eles fazem
desvios de dinheiro?.
.. Ou se eles metem a mão no cofre? …”- “Não, isso não, mas como hei-de
eu dizer … por exemplo, na compra de materiais … não cobram
comissões …?”
- “Ah! sim compreendo, replicou Kádár, queres saber se as pessoas
encarregadas de comprar por nossa conta não aceitam dinheiro dos
fornecedores, isto é, se não dão preferência àqueles que as subornam. -
“Sim, é isso …” - “Não, porque é impossível, Tu não podes compreender
isto sem conhecer bem como são as coisas naquele país. É impossível, em
primeiro lugar, porque sou eu próprio ou o Scott, o filho dum dos sócios,
quem dirige as compras. E depois, é impossível porque o mercado de lá
trabalha com tarifas fixas e qualidades bem especificadas, de modo que,
mesmo no caso de um dos empregados se mancomunar com um estranho
aceitando dinheiro dele, isto não poderia nunca fazer-se em detrimento da
qualidade do material fornecido e o fornecedor dispenderia inutilmente o
seu dinheiro em pagar uma comissão.” - “Sim, compreendo, disse Kelemen,
de semblante constrangido e parecendo já arrepender-se de ter atacado o
assunto. Eu não pensei um único instante em que o teu pessoal pudesse ser
indigno da tua confiança.” Prosseguiu a conversa, mas não tardou a
afrouxar. Não conversaram dali em diante senão de coisas vazias de
interesse, e o tom só se reanimou um instante quando Kelemen declarou:
“Desculpa-me, eu não gostaria de que visses nisto indiscrição, mas
interessar-me-ia enormemente saber como atingiste o que atingiste,
tomando como ponto de partida os bancos da escola de Peste … Uma
carreira como a tua, um triunfo assim tão raro …” - “Oh! seria difícil contar
isso”, respondeu Kádár, fazendo um gesto vago com a mão.
Subiu-lhe aos lábios uma frase corriqueira: “Tive de lutar muito.” Estava
quase a proferi-la mas conteve-se, substituindo-a pelas palavras: “Estas
coisas dão-se um pouco por questão de sorte … Um acaso feliz pode levar-
nos lá.” (Esse “lá”, pensou ele então, consistia naquela sua situação de, aos
trinta e dois anos, ter já muito dinheiro ganho, de ser o patrão de si mesmo e
de sentir-se uma potência na esfera da sua atividade; e, a-pesar disso tudo,
ali estava agora sentado na companhia dum pobre estrangeirito, famélico e
medíocre, um desses escravos, desventurosos sem dinheiro e sem mérito,
que existem pelo mundo fora aos milhões, ali estava a perder o seu tempo
com ele, unicamente no fito de … de ver Yoli.) Chegado a este ponto, o
pensamento de Kádár estacou, para, em seguida, voltar impotente à roda do
nome de Yoli. “Que faz a aqui …? perguntou a Kelemen, como vai ela? …
Não tem projetos quanto ao seu futuro? … Não seria bom que se
empregasse? … Não gostaria ela de trabalhar, quanto mais não fosse para
estar ocupada, como é o caso, em geral, das raparigas modernas? …”
Como estas, outras perguntas do mesmo género lhe saíram. As respostas de
Kelemen foram prudentes, um tanto reservadas; ele cingia-se estritamente
aos assuntos e mostrava-se lacónico até ao ponto de ser dissimulado. Kádár
percebeu este retraimento quase provocador. “Canalha! pensou. Deste por
que ela me interessava. Não queres entregar-te, fazes-te usurário?” Dois
olhares penetrantes se cruzaram então, após o que os dois homens se
apertaram mutuamente as mãos e se separaram.
Também Kelemen ia, sem dúvida, pensando em que talvez ainda …
Infelizmente, o combinado jantar não se efetuou. Nessa manhã, às oito
horas,
Ila tinha ido jogar o “tennis”, na ilha Margarida, e, meia-hora depois, já ela
telefonava, desesperada, de uma elegante casa de saúde de Buda: Mrs.
Simmons escorregara no terreno ainda um tanto úmido, caíra, e certamente
devia ter o tornozelo direito fraturado. Fizera com que a transportassem
para aquela casa de saúde e, agora, agitava-se à procura do ortopedista
recomendado pela direção da mesma. O capitão Sirnrnons encontrava-se em
Belgrado. Kádár atirou-se para dentro dum taxi e correu ali. Permaneceu lá
até findar a operação, que foi feita com êxito ao meio-dia, foi em seguida
telefonar ao capitão Simmons.
Este queria regressar imediatamente, de avião; o diretor da casa de saúde
teve de recorrer a toda a sua eloquência para o tranquilizar e dissuadi-lo
disso.
Ila ficou a acompanhar a amiga.
Kádár almoçou sozinho no hotel, subindo depois para o quarto. Lembrou-se
então do convite feito aos Kelemen para essa noite e de que era necessário
contra avisá-los.
Uma certa indecisão se apoderou do seu espírito e, durante algum tempo,
sentiu-se incapaz de anular o programa da noite. Vacilava na decisão a
tomar. Deveria mandar umas palavras a Kelemen ou a Yoli, ou deveria ir
pessoalmente, a sua casa? Acabou por telefonar a Ila, a pedir-lhe conselho.
A mulher respondeu-lhe num tom um pouco impaciente: “Evidentemente,
esta noite é impossível; eu, pelo menos, não poderei: mas, se queres, nada te
impede de recebê-los.” - “Está claro que, sem ti, não faço isso” concluiu
ele. Depois, num cartão de visita, informou Yoli e Kelemen do acidente,
desculpando-se desse contratempo e convidando Kelemen a ir vê-lo na
manhã seguinte, ao hotel, cujo chasseur foi o portador da mensagem.
Passadas umas horas, dirigiu-se novamente para a casa de saúde. Durante o
serão Mrs. Simmons foi acometida de dores muito difíceis de suportar. Ila
estava nervosa, agitada. Ele deixou-as sós, voltou para o hotel, andou de um
lado para o outro no quarto, encontrou afinal a guia dos caminhos de ferro
dentro duma gaveta onde fora remexer, leu alguns telegramas vindos de
Pôrto-Isa-bel e depois, debruçado da varanda, pôs-se a contemplar, de alto,
o Corso. Pelas nove horas, desceu à sala de jantar, engoliu sem apetite
qualquer coisa, ficou quase meia hora no terraço e, em seguida, recolheu-se.
A noite estava quente. Adormeceu imediatamente mas não tardou a
despertar, e ficou então bastante tempo sem dormir.
Eram já quase três horas da madrugada quando conseguiu recair no sono.
No dia imediato, o advogado Szende voltou a procurá-lo: mas Kádár,
impaciente, desembaraçou-se sem delongas dele. “Infelizmente, este
desagradável acidente impediu-me, disse-lhe Kádár, de ler com atenção as
tuas notas, mas espero ter, num destes dias próximos, um momento vago
para ir visitar contigo esses tais prédios.” Szende dissimulou o seu despeito,
mostrou uma expressão risonha e foi-se embora. Foi nessa mesma manhã
que Kádár se deixou arrastar, em frente de Kelemen, ao ponto de cometer
uma … -digamos a frase exata - uma ação infame.
Não passou de vaga palavra, de um vago encorajamento, mas Kelemen
bebeu essa palavra como uma esponja seca absorve um líquido infecto. No
decurso da conversa, ambos vagueavam à roda de qualquer coisa, como se
cada um deles esperasse do outro a palavra decisiva … No meio dessa
conversa conduzida aos solavancos, neutra e refreada, Kádár lançou, de
passagem: “lá, naquelas paragens, o mundo é, com efeito, diferente. O
talento e a força de vontade acabam sempre por triunfar ali, duma maneira
ou doutra, sobretudo quando há alguém a quem a gente se encoste …” Pôs-
se, em seguida, a falar doutra coisa, mas viu que o rosto um pouco fatigado
e um tanto gasto de Kelemen se reanimava e que, em seus olhos, um clarão
vivo e violento se acendia. Pouco depois Kádár acrescentou que não havia
situação alguma em que o homem tivesse o direito de se deixar ir abaixo,
sobretudo se nele houvesse fé, espírito de decisão ou uma ideia fixa, se
conservasse uma só réstia que fosse de esperança num futuro melhor. Ele
próprio, Kádár, era vivo exemplo disso; mas preciso era também que cada
qual visse nitidamente o que poderia esperar de outrem e o que lhe poderia
oferecer em troca. Nesta ocasião Kelemen deveria falar, oferecer e pedir,
visto que, de facto cada um deles sabia perfeitamente aquilo que queria do
outro e o que poderia dar … mas Kelemen guardou silêncio.
“Ele quer que seja eu quem fale primeiro, pensou Kádár. Quer conservar a
vantagem da posição”, mas ao surpreender no olhar de Kelemen aquela viva
chama, impossível de dissimular, disse de si para si: “Tu falarás, meu
amigo; conheço de sobra essa tática, esse silêncio, essa reserva …” Como
estavam um em face do outro, erguendo os seus cálices de conhaque e
envoltos na espessa fumarada dos cigarros, Kádár evocou subitamente uma
cena semelhante, passada num salãozinho londrino, tornou a ver-se a si
mesmo afundado numa poltrona, defronte duma mulher estrangeira, cujos
olhos e cujos cabelos tinham um tom negro luzidio e que estava vestida
também de negro. Tornou a viver o momento em que, já à beira de se
entregar, de perder as suas forças, se retemperara e escorraçara com uma só
palavra voluntariosamente indiferente o-mendigo que ia surdir dentro dele,
que fremia no desejo de implorar uma moeda mas que, a-pesar-de tudo, não
queria entregar-se a preço vil …
“Ele quer obter muito, e eu também, o que é justo”, raciocinou. A primeira
infâmia, instintiva no fundo mas premeditada nos pormenores, consumara-
se … Não voltaram a falar de Pôrto-Isabel nem de Yoli, salvo para acentuar
que era na verdade aborrecido terem ficado privados da reunião alegre da
véspera, esperando porém desforrar-se disso brevemente.
Pelo meio do dia Kádár dirigiu-se para a casa de saúde. Mrs. Simmons
descansava, pelo que não entrou no seu quarto. Conversou apenas uns
instantes com Ila, no largo patamar do primeiro pavimento. Na noite
anterior Edith tinha tido febre, dormira mal, a pobrezita. Se, ao menos,
tivesse ali o marido! Ele telefonara de manhã anunciando a sua chegada
para o dia seguinte. Nesta altura da conversação, atravessou o parlatório
uma enfermeira alta e cheia, de figura robusta. Ela parou um segundo no
limiar da porta, envolveu-os a ambos num só olhar e saiu. Quando se ia
embora, Kádár cruzou-se novamente, no corredor, com a mesma
enfermeira. Ela sorriu, fez menção de se deter e cumprimentou-o. “Boa-
tarde, sr. Kádár, não me reconhece? …”
Aquele sorriso! … Aqueles olhos negros, rasgados no belo semblante
redondo, de feições regulares, aquela madeixa de cabelo, negro como
azeviche, escapando-se por debaixo da coifa branca … Era Ágata.
“Mas, se me não engano … é você, Ágata”, disse, estendendo-lhe a mão
hesitante. - “Que coincidência! observou ela: quis o acaso que se fizesse
precisamente para aqui o transporte dessa dama inglesa … Já ainda agora eu
tinha reconhecido o sr. Kádár. Santo Deus! há tanto tempo que o não via …
como vai de saúde? … Como compreende este seu regresso a Peste? Desde
que nos apartámos não voltou mais a Peste, não é verdade? … Graças a
Deus, vejo que está bem …” As feições daquele semblante nada se tinham
modificado; apenas emanava agora de toda a sua figura, de formas roliças,
uma impressão de tranquilidade, de contentamento interior. A voz também
era a mesma, essa voz que o acariciara, mercê das suas inflexões
aveludadas, durante as penosas noites de doença e que ele tão bem conhecia
em todos os seus tons, desde o riso fresco de rapariga alegre até aos soluços
reprimidos da hora do adeus, sem exclusão dos suspiros estáticos da
volúpia. Ágata prosseguiu: “E a senhora, esta dama húngara, é sua esposa,
não é assim? Que mulherzinha encantadora e gentil! Meu Deus! como eu
gostaria de ouvir o senhor contar tudo o que lhe sucedeu durante todo este
período tão longo … mas vejo que está com pressa … Desço a acompanhá-
lo, se mo consente.” Dizendo isto Ágata voltou-se e foi-se colocar, com
deferência, à esquerda de Kádár. Durante os três minutos que levaram a
descer a escadaria, as perguntas dela, salpicadas de exclamações
admirativas choveram copiosamente em cima de Kádár,: “Santo Deus! é
então verdade que o senhor vive em África? … Inacreditável! E vejo que as
coisas lá correm bem … O senhor já está casado há bastante tempo e, já se
deixa ver, é feliz com esta senhora encantadora … Talvez ela seja de Peste,
não? …
Ainda não têm herdeiro? … Não … é pena, mas ainda não é tarde …”
Depois contou que, graças a Deus, também eles passavam bem, isto é, ela e
o marido, que era o chefe da secretaria da casa de saúde. “Há já mais de
quatro anos que estou casada com ele, desde que sou aqui enfermeira-chefe;
vai a gente indo o melhor que pode, ganhamos suficientemente …” Kádár
experimentou um agradável sentimento de serenidade na presença dessa
mulher que, transpirando saúde por todos os poros, se consagrava a velar
pela vida dos outros. Quando, já à porta, ele lhe estendeu a mão, Ágata, ou
seja a sra. de José Komives, apertou-lha com a mesma firmeza e a mesma
familiaridade de outrora. Um sorriso lhe iluminou o rosto; desabotoou a
blusa branca, na altura do pescoço cheio e alvo, e puxou para fora um
fiozito de ouro, do qual pendia, como talismã, uma folha de trevo: “Veja, sr.
Kádár, ainda o tenho e guardá-lo-ei toda a minha vida … graças a Deus,
deu-me sorte!” A magnética força que o impelira para a rua, nessa noite
tépida de Julho, emanava daquele trevo de ouro que Ágata trazia ao
pescoço. “Ela está, pois, feliz, opulenta e satisfeita”, considerou Kádár, no
regresso. Onze anos são passados … casou-se, o fio e o trevo levaram-lhe
felicidade.” Ao atravessar o túnel e a ponte, afrouxou o passo. Eram sete
horas quando chegou ao hotel. Sentia a cabeça estonteada. Aquela fora a
primeira mulher com quem … que … e, neste instante, viu mui nitidamente
o fiozinho de ouro em volta do pescoço esbelto e, todavia, gordinho, liso e
branco, e afincou-se, arrastado por uma curiosidade bizarra e pueril, em
alargar a sua visão, em avivar o passado. Teve a sensação quase física de
tocar na mão de Ágata, mão branca, de dedos finos e longos; voltou a ver o
seu corpo esbelto e, ao mesmo tempo, robusto, as suas espáduas, os seus
cabelos soltos; voltou a ter, perto de si, a Ágata de outrora, a imagem que
conservara dela, com o seu vestido castanho e com o seu grande avental
azul. Viu-a desaparecer na obscuridade, na fosforescência misteriosa do seu
corpo branco … Depois, essa visão turvou-se; tornou-se nebulosa,
transformaram-se-lhe as cores, dissiparam-se-lhe as formas, os cabelos
negros e soltos tomaram um tom mais claro, apareceu uma cor loura, a
princípio cendrada; em seguida, escurecendo de novo, tingiu-se de
vermelho até se tornar num ruivo ardente. O rosto, também ele se
transformara noutro rosto que não era conhecido nem desconhecido, como
se o nariz, a boca, o arco das sobrancelhas, a linha do pescoço, o
arredondado das espáduas e o dos seios pertencessem, cada um, a sua
mulher diferente.
Tudo era estranho, tudo diverso, na nova figura e, todavia, parecia-lhe já ter
visto em qualquer parte essa mulher misteriosa e impessoal. Fechou os
olhos esforçando-se por repelir essas recordações com cem semblantes, cem
corpos, cem aspectos vários. Ergueu-se e, atravessando o hall do hotel, saiu.
Sem fazer caso do seu carro, que estacionava junto do passeio do edifício,
dirigiu-se a pé para os lados da avenida Andrássy. “Tenho de subir ao meu
quarto, tenho de ir jantar e preciso de deitar-me …” Mas aquela força
magnética arrastou-o irresistivelmente, tal como a complicada máquina,
inteligentemente construído, apta para múltiplas funções, mas sem alma,
obedecendo a uma vontade estranha, exterior. Cessou de pensar; os sentidos
apreendiam as coisas e os sons de maneira vaga, apaziguadora, agradável e
que lhe não deixava responsabilidade alguma. O céu era azul, sem nuvens;
o crepúsculo morno caía docemente, como chuva finíssima.
Sentia delícia em caminhar no meio daquela atmosfera veludínea, doce e
quente.
Foi até ao fim da avenida Andrássy. Os habituais passeantes das tardes de
verão iam e vinham, na ondulação pacificadora e leda do passeio; passavam
rente dele mulheres e raparigas. Teve a impressão de que uma coisa a
qualquer sossobrava dentro de si: a dureza do coração, a força resoluta, a
vontade de lutar, os resultados obtidos. Contemplava a vida em redor com
os seus antigos olhos de estudante curioso, ávido de tudo. A rua vacilava
sob os seus passos; vinham roçar por ele risos, fragmentos de frases, a
música dum aparelho de T. S. F., que saía da janela dum primeiro andar.
Raios de luz qual dimanavam de olhos femininos atingiam-no no rosto,
olhares lentos que eram ofertas, uns, e outros fortuitos, fugidios.
Lentamente, encorporou-se no desfile. A passo miúdo, ia cruzando com
pessoas isoladas ou em grupos, cadeias de seres humanos, uma verdadeira
floresta humana no meio da qual poderia perder-se. Chapéus brancos,
barretinhos de cor, vestidos leves e pintalgados, pernas cingidas de meias
brancas e cor de carne, pernas esbeltas e juvenis, seiozinhos rijos e
provocadores, sob o falso segredo de blusas, debaixo de sedas coleantes, ou
oferecendo-se às escâncaras; depois, rostos de homens e de rapazes, com
olhares pesquisadores, atrevidos. Surpreendeu-se num recanto da rua, diante
de um “café” donde se exalava um cheiro a bebidas e a pão.
Pessoas de todas as classes, novas e velhas, homens, mulheres, crianças,
estavam ali abancadas, formando uma assembleia pitoresca e turbulenta …
Pôs-se de novo em marcha, cortando a multidão, com a sua alma distante,
como que imersa num sonho. Havia qualquer coisa dentro dele que
sossobrava; casas, torres, navios, toalhas da água, metrópoles, caminhos de
ferro sumiam-se à sua vista, e uma enorme quantidade de libras esterlinas
afundava-se também; o céu era dum azul profundo e muito vivo, sob o
esplendor perpétuo do sol. No meio desse inevitável e supremo naufrágio
das coisas surgiu, na noite mágica de Peste, o seu próprio vulto, branco e
puro como uma estátua triunfante, no sopé da qual se agitavam os prantos e
os risos, os triunfos e as derrotas de quinze anos de vida, o sonho e a morte.
Continuava sempre a andar.
Por cima dele, a segurança do firmamento eterno; sob os seus passos e para
trás, o sucesso esquecido, traído, a incerteza aventurosa do presente; e, na
sua frente, uma espécie de grande e estranha nostalgia, dolorosa e boa ao
mesmo tempo. Continuava a marchar. Bicos de gás tremeluziam à sua
passagem, lançando um clarão sobre as sombras que, pelos bancos, se
enlaçavam. De quando em quando um automóvel passava sem ruído,
repercutiam assobios, agentes ciclistas, em patrulhas dobradas, deslizavam
pelo meio da calçada. O silêncio, o aroma da noite, da poeira, das flores e
dos relvados. Ele seguia, sorria. Eis que surge uma bela avenida, com
pessoas distintas sentadas em inúmeras cadeiras. Mil lâmpadas elétricas
cintilavam num jardim a abarrotar de gente; depois, passavam outros
automóveis iluminados; da distância vinha um som musical. E viu-se
derrepente numa rua estreita, bordada de vivendas silenciosas e fechadas,
com seus jardins profundos, eriçados de grades … Houve então silêncio ao
seu redor, após o que percebeu uns débeis acordes, vindos de longe. Parou,
aplicou o ouvido, recomeçou a marcha, dirigindo-se para o sítio donde, cada
vez mais distinto, partia o som … dum piano. Atravessou a calçada,
avançou quase correndo na direção da música. Deteve-se diante do portão
gradeado duma vivenda que tinha uma janela toda aberta e iluminada. E
como que petrificado, ficou-se a escutar: mãos virtuosas faziam ali brotar
do piano a sonata de Chopin, na sua pureza de sons encadeados, nas
variações dos seus trilos, nos seus açores cristalinos, em toda a sua polifonia
indefinível e sublime, na sua imorredoira melodia … Aquela sonata brotava
de um piano Steinway … Kádár, instintivamente, pôs a mão no fecho do
portão; mas a peça de frio metal resistiu-lhe. Num pulo, encontrou-se em
frente da janela; escalando o muro baixo, ergueu-se até o pináculo do
gradeamento e segurou-se a um dos varões;
e através da folhagem das árvores, lançou um olhar ardente para o interior
da casa.
No aposento iluminado, diante do enorme piano, iria ele divisar uma
silhueta estreita de ombros, com abundante cabeleira ruiva e as mãos
esplendentes de brancura? …
Não! No aposento inundado de luz, perto da janela, via-se um piano de
natureza especial, revestido, a meio, de uma placa de vidro. Um indivíduo
calvo, levemente obeso, de roupão, era quem estava sentado diante dele. As
mãos, assentes em duas alavancas, entregavam-se a movimentos rígidos,
singulares; o busto acompanhava, com meneios rítmicos, a música; e os pés
do homem ocupavam-se em premir os pedais. Aquilo não era um piano
Steinway, mas uma simples pianola;
em lugar de ser música renascida de cada vez, recriada ao toque de
inspirada mão, era musica recolhida em registros, para uso dum
maquinismo perfeito: uma pianola! … Olhando o instrumento e deitado no
fundo dum leito de rodas, estava um rapazinho dos seus dez a doze anos, de
pele macilenta, a cabeça pendida para trás, semi-cerrados os olhos, os pés
paralíticos, embrulhados em cobertores …
O sonho, esse seu sonho nebuloso, caótico, redemoinhante, próprio de quem
tivesse tomado ópio, desvaneceu-se bruscamente. A ilusão que o tinha feito
sair de si mesmo acabava de descambar na realidade; o arrebatamento que o
havia erguido tão alto deixava-o cair na obrigação de fazer um exame de
consciência.
Ainda durante minutos se manteve na mesma posição, colado ao
gradeamento, naquela rua deserta, com os olhos sempre fixos na janela
iluminada. Depois murmurou “Amo-a” e, com precaução, saltou em terra,
ficou um segundo a refletir e pôs-se de novo a caminho. Acudiu-lhe ao
espírito uma frase, que lhe causou calafrios: “Estou envenenado”. Mal
pronunciou estas palavras, capacitou-se, com toda a lucidez do cérebro, de
que estava de facto, envenenado e de que o veneno penetrara já
profundamente, incuravelmente, na sua carne. Esse veneno, fosse qual fosse
o nome que lhe aplicassem, romantismo, sentimentalismo, recordações da
infância, nostalgia doutra vida, obsessões, neurastenia, ou, mais
simplesmente, efeitos de um agradável passeio e noite pelo bosque …-a
etiqueta seria tão indiferente como o frasco que o contivesse - a essência
dele, desse veneno, chamava-se Yoli. Era medonho, talvez mesmo
insuportável, mas, ao menos, era ponto averiguado. Deixara de debater-se
na incerteza a tal respeito! … “Santo Deus! … é espantoso … estou
apaixonado por ela … é terrível! …” Exclamações que tinham sinceridade e
que eram como que o protesto contra o facto de ele, o homem rico,
independente e sério, cheio de equilíbrio, ele, o marido de Ila, ter podido
apaixonar-se por aquela garota ruiva de Peste. Amargurava-o, humilhava-o
a confissão e, todavia, apenas o dizer consigo próprio “amo Yoli” fazia com
que um sentimento infinitamente doce lhe reaquecesse o coração e lhe
florisse de sorrisos os lábios. Meditou então em Yoli e também em Ila. A
mulher não o interrogara nunca; nem trocara sequer com uma única palavra
no que tinha sido a existência dele antes do casamento de ambos. Apenas a
sua união e a sua vida comum lhe importavam. Os dois iam, a par e passo,
envelhecendo com eles, à medida que caminhavam para o futuro, e o
passado nada interessava a Ila. Qual poderia ter sido o passado de Kádár? O
que constitui a existência de todos os rapazes: amores, mulheres mais ou
menos atraentes, que assim como surgem assim desaparecem. Tudo isso
poderia já ter tanto interesse como tinham tido, para ela, Kassa, sua terra
natal, e Myers, o seu defunto marido, Ila vivia hoje a seu lado, pertencia-lhe
e vivia para ele, e o seu único desejo era sabê-lo a viver para ela e com ela.
Naquela noite em que ele se introduzira na sua cabine, a bordo do
“Falconia”, Ila já o esperava. Em Pôrto-Isabel, durante os primeiros tempos,
permanecera sendo sua amante, e a circunstância de toda a gente estar ao
facto disso deixava-a indiferente. Não se quisera casar antes de ele se tornar
seu igual, de ser engenheiro-arquiteto, senhor dos seus próprios atos: Ila
aguardara que tal se desse. Era certo, tudo isto. Às vezes, quando ele a
esquecia, tinha o sentimento vivo de que ela esperava o seu regresso. E
agora …
“Enganá-la-ei mais uma vez, disse Kádár consigo mesmo, cheio o seu
coração de frieza, ser-lhe-ei novamente infiel; enganá-la-ei como logo no
começo do segundo ano, ainda não estávamos casados, em Johannesburgo,
a enganei com a filha do reitor da Universidade, Bloomhardt. Enganála-ei
como a enganei com aquela dançarina sueca com quem ia encontrar-me
todos os meses, no Trnnsvaal, para ficar com ela uns dias; ou como com
Isabel, que me secretariava há dois anos e que acabou por casar com
Growham; ou como com Lady Astifield, que se me lançou nos braços
durante uma crise de histeria …
Nunca pude resistir ao meu desejo, nunca soube renunciar, desviar-me da
tentação, permanecer fiel. Persegui sempre todas aquelas que cobicei,
atormentei-as, como sucedeu com Isabel, até fazê-las render. E agora,
também agora vou estender a mão para aquela que amo, agarrá-la-ei e
enganarei, atraiçoarei Ila novamente …” Num pequeno pulo ergueu-se da
cadeira em que se conservara sentado, havia bastantes minutos, no quarto às
escuras. Acendeu a eletricidade. Uma luz branca, pura e suave, luz
purificadora, espalhou-se em volta. Sentiu uma fome terrível: desde o meio-
dia que não comia nada. Essa fome tornou-se de súbito insuportável; desceu
à sala de jantar e pediu uma ceia. Era meia noite … O corpo ressentia-se-lhe
da fadiga do longo passeio, mas não tinha vontade de dormir. Saiu para a
margem do Danúbio, onde procurou uma cadeira. A atmosfera estava
pesada. Levantou-se, continuou o seu passeio, encaminhou-se para a
extremidade do Corso que dava sobre o cais. Junto do embarcadoiro, em
frente da sala de espera, havia bancos: sentou-se num deles. O odor da água
penetrou-lhe nas narinas como hálito purificador e refrescante. “Não é coisa
assim tão grave”, murmurou, olhando depois em volta, para se assegurar de
que ninguém o ouvira, “A coisa não é ainda assim tão grave como isso”,
repetiu mentalmente, e sentiu então grande alívio. No fim de contas, trata-se
apenas de uma criaturinha de Peste. É certo que tem vinte anos, mas tal não
é motivo para ninguém se deixar apanhar. Não havia perigo. Ele não se
deixaria cair na rede.
Ila, durante aqueles dias, era como se estivesse ausente de Peste. Passava-
os, quase por inteiro, ao pé da amiga, Mrs. Simmons, na casa de saúde; e
não queria ouvir falar, naquela ocasião, em deixar Peste. Edith Simmons
fora amiga da senhora Alexis e Ila conhecera-a em Londres. Tornava-se
natural que, no estrangeiro, um antigo conhecimento, ainda que apenas
superficial, se transformasse numa amizade muito íntima; todavia, na
afeição de Ila por Mrs. Simmons pareceu a Kádár descobrir uma espécie de
refúgio, de procura de amparo.
Ila continuava a passar a maior parte das suas horas na companhia de Edith,
mesmo depois da chegada do marido desta, e só quando começou o período
da convalescença de Mrs. Simmons ela se resolveu a permanecer junto de
Kádár a parte da manhã. Passavam-na, geralmente, na “praia artificial”,
onde também almoçavam, e em seguida Ila dirigia-se para a casa de saúde.
Umas vezes Kádár acompanhava-a a e prolongava a sua visita por uma
hora; outras, limitava-se a ir buscá-la já pelo serão dentro.
Com as tardes assim livres, consumia-as deitado no quarto, que mantinha
em escuridão. Punha-se a pensar em Yoli ou, então, quando o calor
abrandava, ia vaguear pela cidade, ao acaso. Procurava Yoli, e às vezes
conseguia vê-la.
Invadia-o uma sensação incómoda, glacial, sempre que fazia maior reparo
no facto de consagrar agora uma grande parte do seu tempo a pensar em
Yoli e quase toda a restante em explorações pelas ruas, no fito de encontra-
la!
“Já atingi os meus trinta e três anos, refletiu ele com pavor, já não sou um
colegial de quinze anos”. Mas quando alcançava um momento de
sinceridade consigo próprio via-se obrigado a confessar que esses devaneios
a respeito de Yoli, essas explorações em sua busca, lhe proporcionavam
instantes tão comoventes, tão agradáveis como aqueles que o penetravam na
presença dela.
De quando em quando Yoli passava uma manhã na companhia de Kádár, na
“praia artificial”, e outras vezes, encontrava-a Kádár sozinho, como por
acaso. Este acaso, forjava-o ele baseado em anterior conversação: Yoli
dissera, por exemplo, que em determinado dia iria a este ou àquele sítio, e
Kádár fixava isso para lá a encontrar “por acaso”.
Certo dia, interceptou um demorado olhar perscrutador de Ila, assestado
sobre o rosto de Yoli; pensou então que Ila ainda ignorava ter ele tido no
Transvaal, durante os seis meses em que aí se ocupara em construir os
entrepostos, uma jovem sueca, chamada Ingá; impossível cieria, porém, que
lhe passasse despercebida esta história de Yoli, “Qual história?! … retificou
imediatamente, haverá aqui seja o que for que se deva ocultar? … Tratava-
se, evidentemente, de uma nova mentira, tanto maior e mais profunda
quanto era certo que, por fim, já não referia a Ila esses seus encontros
fortuitos com Yoli. Esta não deixava nunca de lhe pedir notícias de Ila e
lamentava até que ela . se encontrasse presa na casa de saúde; mas parecia,
não obstante, aceitar como coisa natural o encontrar-se, tão frequentemente
e à conta do acaso, com Kádár, e estarem mesmo muito mais vezes sozinhos
os dois do que em companhia doutras pessoas.
De que falavam durante os seus grandes passeios? … Era, geralmente, Yoli
quem falava, limitando-se Kádár a responder às suas perguntas. Bastava-
lhe, a ele, ouvir a voz da rapariga, contemplar-lhe o rosto, a figura, o modo
de andar, marchando um nadinha atrás dela. Yoli falava-lhe da trivialidade
cotidiana da vida.
Esse era o seu eterno assunto, que tomava visos de idéia fixa. Enquanto
davam milhares de passos, Yoli falava incessantemente.
As suas palavras ferviam, semiconsciente, duma irritação contra a sua
existência de burguesinha, contra a habitação exígua, atulhada de gente,
contra os aborrecidos divertimentos baratos, os únicos ao seu alcance.
Ouvia-se, nessas palavras, gemer uma nostalgia, meio-consciente, duma
vida mais bela, melhor, mais rica. Quando falava de si, por trás da sua
franqueza glacial e cruel, por trás do desprezo quase sádico por ela mesma,
era a revolta que assomava.
Enquanto deambulavam ambos pelas ruas estivais, no decurso desses
passeios tornados, por acordo tácito, regulares - Kádár observava a jovem e
observava-se a si próprio, como se no seu íntimo existisse um estranho.
“Que desejo eu dela? …” interrogava-se amiúde, pensando imediatamente
em Ila. Que lhe importavam o joelho dorido da mãe de Yoli e a gravidez da
irmã?! … Ila, Edith, os amigos de Londres e os de Pôrto-Isabel vinham-lhe
à idéia. “Que poderá interessar-me que, em casa de Yoli, tenham de
improvisar quartos em todas as divisões?!” E logo evocou a sua vivenda de
Pôrto-Isa-bel, com o enorme terraço sobre o mar. “Que tenho eu que ver
com as preocupaçõezinhas cotidianas dela, com os seus desejos
insatisfeitos, com as suas inúmeras renúncias!? …” E invadiu-lhe de súbito
o espírito a imagem dos seus vastos escritórios de teto envidraçado,
pareceu-lhe ouvir o matraquear precipitado das máquinas de escrever:
consciente do seu poderio, levou a mão à algibeira do casaco, onde
repousava o espesso livro de cheques do Banco da União Sul-Africana.
Mas, em seguida, usou da sua brutal franqueza contra ele próprio,
injuriando-se: “Porque mentes tu? … Porque estás com essa comédia? …
Tu queres Yoli, queres possuí-la!
Para que estares a iludir-te, a negar a evidência?” Nisto, outra voz VOOU
nele, sondando-lhe o espírito ainda mais profundamente: Mas se a desejas,
porque hesitas? … Estende a mão para ela …” Sentia vagamente que
qualquer resistência lhe embargava o caminho e que era preciso, ou fugir
dela decididamente ou quebrar essa resistência num único ímpeto.
Permanecer hesitante, é que não.
E, contudo, houve uma semana em que teria podido … em que teria
devido … em que era, em que teria sido mais fácil … Fora no fim de Julho,
numa tarde em que, em Buda, num restaurante da moda, haviam jantado,
juntos, os quatro: Yoli, o irmão, Ila e ele. O serão decorrera segundo o rito
habitual. Kelemen prodigalizara a sua obsequiosidade costumada, Ila
conservara o seu ar distraído esforçando-se por parecer interessada por
tudo. Yoli declarara, a certa altura e como mero incidente, que, na tarde do
dia seguinte, teria de fazer uma compra nuns armazéns do centro da cidade,
o que era maneira de fixar uma entrevista com Kádár ao pé dos ditos
armazéns. Tinham ambos, agora, uma espécie de linguagem cifrada. Na
manhã imediata Kádár jogara ao “tennis” e ficara depois até o meio-dia na
praia. Após o almoço, acompanhara Ila ao sanatório e voltara para a cidade
precipitadamente. Yoli esta já à sua espera, diante dos armazéns. A passo
lento, foram passeando por uma das mais tranquilas ruas da cidade.
- Queria dizer-lhe já ontem, começou Yoli, que parto no sábado.” -
“Parte? …
Para aonde? … Por quanto tempo? … Com quem? …” perguntou Kádár,
suspendendo a marcha, - “Oh! não vale nada, uma semana ao todo. Eu a
princípio não queria, mas os meus amigos insistiram tanto, que, por fim …”
- “E aonde vai? …” tornou ele a perguntar, em voz surda. - “Vai ser bastante
divertido, respondeu Yoli; imagine que partiremos, num grupo de oito, de
barco para Viena e que levaremos conosco dois escaleres de passeio.
Depois, de Viena, desceremos o Danúbio, de escaler, até Peste. Levaremos,
bem entendido, um equipamento completo de week-end, tendas para o
camping, etc.” - “Com que então, serão oito? disse Kádár após uma pausa. -
“Sim, oito …” Nova pausa. - “Quatro vezes dois? …” Yoli, voltando
levemente a cabeça para ele fitou-o. Uma pequena pausa. Depois, com certa
frieza na voz: “Sim, quatro vezes dois, porque não? …
Tem alguma coisa a dizer a isso?” - “Ah! não, nada.” Nova pausa, finda a
qual Yoli prosseguiu: “Sim, espero que seja deveras divertido … Serão estas
ao menos, as minhas férias … Supõe que me não fará bem escapar-me de
tudo isto durante uma semana …?” - “E quem serão os seus
companheiros? …” - “Não os conhece, para que dizer os nomes? … - “O
Dr. Huszár faz parte do grupo, não é verdade? …” - “Pois está claro que
sim; faz!” Durante bastante tempo marcharam lado a lado, em silêncio.
Chegados ao fim da rua, já próximos da avenida, voltaram pelo mesmo
caminho. “Quatro vezes dois, remoía ele na ideia, e o Dr.
Huszár vai também.” Nervoso, levou a mão ao colarinho … Oprimia-o uma
sensação esquisita. Iam ambos calados. Por fim, Yoli rompeu o silêncio.
“Uma semana não é nada. Eu queria, sobretudo, perguntar-lhe se ainda
estarão em Peste, de domingo a oito dias, porque será nessa data que
regressaremos.” - “É possível; ao certo, não sei ainda, respondeu ele
hesitante, pode dar-se o caso de termos já partido.” Neste momento, em voz
estranha, calma e profunda, Yoli pôs-lhe inesperadamente o problema:
“Diga-me, não quer que eu parta? …” Uma luz, como um relâmpago, fugiu
no cérebro de Kádár: ela oferecia-se-lhe, conforme ele sempre esperara.
Chegado era o instante de a agarrar e de a arrebatar. E então, um pouco
desairosamente, com frouxidão, ofegante, disse: “É-me muito difícil
responder … Só você deve sabê-lo, deve senti-lo, Yoli …” No meado da
semana seguinte chegou, de Viena, um bilhete postal: era uma fotografia de
quatro raparigas e quatro rapazes, constituindo quatro casais, todos eles com
os cotovelos fincados na amurada do barco. “Mandámos um fotógrafo
ambulante retratar-nos”, escrevia Yoli na sua fina caligrafia, um tanto
inclinada para a esquerda. Além disso, dizia fazer lá um tempo soberbo e
que abalariam de ali no dia seguinte, de escaler, que desejava que
estivessem bem de saúde e que os voltaria a ver, em Peste, no princípio da
semana imediata.
Kádár mirou o postal ilustrado. Este representava quatro raparigas bonitas e
frescas e quatro rapazes de aspecto desportivo. Yoli aparecia numa das
extremidades do grupo, rindo e fixando o operador. Ao lado dela estava o
Dr. Huszár com os seus óculos, numa atitude negligente, um pouco
reclinado para Yoli, como quem se prepara para acender um cigarro. “Que
antipático fedelho!”, murmurou Kádár. “Não, não é verdade. Não é
antipático; tem, pelo contrário, uma testa larga de pessoa inteligente, como
já outro dia, quando nos encontrámos, pude observar. Tem o corpo bem
proporcionado e é sólido de ombros. É o tipo do homem moderno, do
homem desportivo. É médico. Na fotografia, está ao lado de Yoli, inclina-se
para ela. Como parece ligar pouca importância ao facto de o acaso o ter
posto junto de Yoli, na fotografia! Tudo o sublinha: a sua atitude, a maneira
como acende o cigarro, como se quisesse afirmar que essa coisa da
fotografia não tem importância alguma para ele … Aquele homem é o
amigo de
Yoli. Constituem um casalinho de companheiros …” Kádár adquiria a
certeza disso olhando aquela foto e, subitamente, invadiu-o uma tristeza que
lhe apertou o coração. Passou-a para as mãos de Ila, juntamente com os
jornais ingleses e uma carimbada de Londres. “É natural, continuou ele a
pensar … andam sempre juntos, vão juntos ao cinema, passam juntos ou
partilham todas as suas distrações …” E a boca crispou-se-lhe num riso
seco e duro. “Eu engano Ila, ao passo que Yoli engana esse Dr. Huszár. Sim,
ela engana-o comigo. Aquela sua frase, quando outro dia me perguntou,
com uma voz estranha, calma e profunda, que eu jamais lhe ouvira antes,
“Diga-me, quer que eu não parta? …”, era já infidelidade da sua parte, e
quando lhe respondi não sei que vaga idiotice … ela nem sequer se
formalizou; olhou-me de de soslaio e disse-me, pondo termo a um breve
silêncio: “Isso é uma resposta digna do senhor.”
Ila saiu do quarto, segurando numa das mãos a maleta azul que levava para
a praia, e na outra o postal de Yoli. “Com certeza ainda estaremos em Peste,
observou ela, como em resposta ao que continha o postal, que entregou ao
marido: “Toma lá, guarda-o tu … Como está bonita nesse retrato! Então,
Tony, estás pronto, podemos sair?” Kádár meteu a foto na carteira e não
mais a tirou de lá. O Dr.
Huszár não cessou de perturbar-lhe as noites, em pensamento, enquanto
Yoli se conservou ausente em Peste. “Devíamos partir já” pensou ele muitas
vezes no decorrer dessa semana crítica, e punha força de imaginação em
pormenorizar locais e modos de abalar de ali. Refletia em como achar
pretexto para a partida, no caso de Ila não querer ainda deixar Peste, por
causa de Mrs. Simmons: um telegrama para Londres, depois uma resposta
telegráfica para Budapeste … ou então, com a maior das simplicidades,
tomar o comboio e partir para Saint-Moritz. Abandonar Peste, Yoli, o Dr.
Huszár e toda aquela estúpida salgalhada …
Durante essa semana sentiu quanto era estúpido, aborrecido, odioso o que
lhe acontecia e tudo o mais que daí resultava: as suas relações com
Kelemen, o homem reservado, sustendo até a própria respiração, pronto a
abater-se sobre a peça de caça ou com Szende, ofegante e suarento; ou com
Márton, fanhoso e importuno; ou com Vavrinec tinha passado à beira do
Danúbio, pesquisando com olhos as janelas dos aposentos de Kádár. Kádár,
que estava precisamente nesse instante à janela, deu pelo homem que se
aproximava e que trazia os olhos erguidos para ele.
Imediatamente o reconheceu. Passados minutos, Vavrinec voltou sobre os
seus passos e levantou de novo os olhos para a janela: “É Vavrinec”, disse
consigo, sentindo ao mesmo tempo o sangue subir-lhe à cara. Com
vivacidade saíra para a varanda e olhara deliberadamente na direção de
Vavrinec.
Naquele momento Vavrinejs desaparecera por trás das sebes de buxo do
parque. “É o Vavrinec, aquele a quem devo toda a minha carreira! …”
Passou-lhe pela ideia descer para ir ao seu encontro, mas nesse instante o
telefone retiniu: era Ila a pedir-lhe que fosse à casa de saúde o mais cedo
possível, porque Edith desejava jogar uma partida de “bridge”. Ele
consumira o resto da tarde a desembaraçar-se do seu correio e a ler um
interessante artigo do Times sobre a situação da construção civil em
Inglaterra. Um pouco antes das seis horas estava pronto para sair; e, ao
transpor a porta do hotel, a primeira pessoa que vira na sua frente fora o
Vavrinec. “Naturalmente, raciocinou Kádár, esteve à minha espera toda a
tarde, a fazer quarto de sentinela diante do hotel, à espreita da minha saída”.
- Olha, é o Vavrinec! - exclamou, parando em frente do passeante. - Já ainda
agora te tinha visto, no Corso. E a mim que procuras? …
- Como estás Kádár? - disse o outro, avançando a mão e deixando-a logo
descair, num gesto hesitante (nem a voz nem o rosto dele haviam sofrido
qualquer mudança). Foi meramente por acaso que passei por aqui; desde
que não trabalhamos de tarde no escritório, é muito raro vir à cidade.
- Vou a Buda buscar minha mulher, mas ainda tenho tempo. Vem comigo, se
queres.
- Como marchavam lado a lado, Kádár rompeu fogo imediatamente:
- E tu, como vais, Vavrinec? … Há tantos anos que a gente se não via!
Conta-me alguma coisa a teu respeito, a respeito do que se tem passado
desde … Que fazes tu e como vives?
Vavrinec encarara-o com um olhar desconfiado.
- Vai-se indo, vive-se …
- Mas, dize lá, em que é que te ocupas?
Vavrinec pôs-se então a falar, a sua voz tornou-se mais quente, e a
desconfiança cedeu o lugar à confidência lamentosa:
- Vegeto por aqui. Sou engenheiro numa grande fábrica de máquinas. A
minha verdadeira especialização é em termo-dinâmica, motores de
explosão, etc., mas a situação que tenho atualmente é a de chefe da oficina
de caldeiras.
Qual o meu ordenado? Vale mais a pena nem falar nisso, meu amigo,
quando me ponho a pensar que já vou nos meus trinta e quatro anos de
idade …
Enquanto falava, uma certa apreensão se Ila no semblante dele e, quando se
calava entre duas frases, havia no seu silêncio como que uma exortação;
depois recomeçava a falar da fábrica, da azáfama da oficina, da sua
existência sempre falha de recursos pecuniários, desse meio
entranhadamente anémico de que ele gostaria de sair, indo para qualquer
parte do estrangeiro tentar fortuna, antes de adquirir crosta. Voltando para o
hotel, detiveram-se ambos no passeio. Quando Kádár poisou o pé no estribo
do seu carro, Vavrinec, enchendo-se de coragem, disse-lhe:
- Tu sabes Kádár … tinha ainda vontade de dizer-te uma certa coisa em que
tenho muitas vezes pensado … Refiro-me àquele mal entendido, àquele …
Demais sabia Kádár do que é que Vavrinece lhe desejava falar.
Interrompeu-o e, numa voz lenta, olhando fixamente, como se lesse nos
olhos do outro o que ia dizer, estadeou a sua situação brilhante:
- Escuta, Vavrinec, eu ainda não te falei de mim próprio. Ouve, eu possuo
em África uma grande empresa de construções que goza de renome no
mundo inteiro.
Vinte e dois empregados trabalham nos meus escritórios, isto só na sede,
além dos seis engenheiros e das centenas de operários a quem dou o pão a
ganhar.
Tenho vinte e quatro camiões e uma grande fortuna. Poderia dizer-te que
possuo dois milhões de libras ou três, mas tu não compreenderias o que isso
significa.
Na realidade, não tenho mais do que um milhão de libras esterlinas … Há
lá, evidentemente, fortunas muito mais avultadas, mas a minha é já
considerada como uma fortuna invejável.
Sou capitalista, um grande capitalista - e isto graças a ti, Vavrinec!
Agradeço-te teres feito com que eu apanhasse aquela sova, com que me
precipitassem da escada e me pusessem fora da Universidade. Doutra forma
talvez eu, hoje, fosse também sub-chefe de oficina em Peste! …
Abriu a porta do carro, sentou-se ao volante e acrescentou:
- Nada de mal-entendidos entre nós; sobretudo, não creias em que te quero
mal … Pelo contrário, estou-te reconhecido.
O motor pôs-se a arfar; em seguida, abafou-se-lhe o ruído. Ele fez a
manobra para o arranco:
- Custa a fazer mexer; é um carro alugado; em todo caso, não é muito mau.
Lá, tenho um “Cadillac” … Adeus, Vavrinec …
Fez-lhe um sinal com a mão e afastou-se lentamente. Riu-se de si para si. O
rosto de Vavrinec estava da cor da cidra e as pálpebras tremiam-lhe.
“A falar verdade, eu não quero mal nenhum a este pobre Vavrinec. Afinal
de contas, devo-lhe tudo … inclusivamente Yoli.” Transcorrera a semana.
Kádár, está bem de ver, não partira. Nem mesmo entre ele e Ila havia sido
discutido o assunto, quando, no princípio da segunda quinzena do mês de
Agosto, ela foi acompanhar Mrs. Simmons à Suíça.
Kádár, aliás, já chegara a um ponto em que tudo se lhe tornara indiferente.
Descera ao fundo do abismo e não sabia agora senão uma coisa, isto é, que
amava e desejava aquela rapariga. Ila e Edith tinham partido para
Montreux; esta viagem de ambas havia sido decidida em meia-hora e os
bilhetes foram logo comprados. Antes da partida, Ila perguntara-lhe se ele
as acompanharia e aceitara, sem mais, a sua resposta negativa. “Aquele
negócio de construção de que andava tratando …” Ela nem sequer dera
atenção de maior ao pretexto, e Kádár pôde claramente ver-lhe nos olhos
que a mulher contava de antemão com a recusa dele em partir. “No fim de
contas, gosto mais disto, dissera Ila; a Edith não está ainda refeita do seu
achaque e como é por causa dela que vou, preferível é que eu esteja
completamente livre.” Nesta frase não era difícil descobrir uma certa
inflexão, significativa de que via bem que a enganavam, mas que se não
opunha a isso. Combinaram falarem telefonicamente uma vez por semana e
também que o regresso de Ila a Peste se faria, da mesma forma, na
companhia de Mrs. Simmons. Tanto ele como o capitão Simmons
acompanharam as duas senhoras ao comboio. Kádár e Ila abraçaram-se e
depois, à pressa, ele voltou para a cidade. Tinha marcada uma entrevista
com Yoli, para as cinco horas, no começo da avenida Andrássy.
“Amo-te e quero-te!” Seguiram-se onze semanas, que se passaram todas
numa vertigem, num sonho louco, incoerente e incompreensível. Onze
semanas, até ao regresso de Ila, até ao momento em que se despediram de
Budapeste.
Meia-hora após a partida de Ila, já ele passeava com Yoli. “Ela partiu?”
perguntou Yoli. - “Sim” - “E o senhor? Porque é que as não
acompanhou? …”-“A
Yoli sabe-o bem”, respondeu Kádár. “Isso não é uma razão”, declarou Yoli,
num tom frio. - “Não é uma razão … E se eu a abraçasse agora e lhe
dissesse …”, pensou ele. - “Amo-a …”, disse finalmente.- “Muito obrigada,
retorquiu Yoli, eu já o sabia. Ama-me e quer-me, não vale a pena
continuar …” Kádár lançou-lhe um vivo olhar e comentou com um sorriso:
“Pequena descarada …” - “obrigada, isso faz parte do programa” - “Mas
então, porque é que você anda comigo?
Porque vem quando eu a chamo? … Onde quer você chegar?” disse Kádár
num tom brusco.- Está bem! vou raspar-me … ameaçou Yoli, dando dois
largos passos em frente mas sem, a-pesar-de tudo, se afastar.
Estava na convicção de que ia agora ver Yoli todos os dias. Sentia em seu
íntimo a paixão duma criança abandonada e com fome, e acreditava
também em que os frequentes encontros de ambos, a repetição constante
das mesmas palavras e a simples passagem do tempo quebrariam, por si sós,
a resistência da jovem. Porém, logo seguiram cinco ou seis dias em que não
conseguiu pôr a vista em Yoli.
Nem ela lhe telefonou para o hotel. Kádár, todavia, enviara-lhe um recado
em que lhe rogava que o fizesse. Mas Yoli guardou obstinadamente
silêncio. Chegado o quinto dia, Kádár, depois do almoço, ousou ir bater à
porta do terceiro andar onde ela morava. Uma criada eslovaca, imunda e
bronca, veio abrir e nem sequer o deixou entrar: “A senhora está a dormir e
a menina saiu.” Desceu contrariado, a escada escura.
Tampouco Yoli telefonou no dia imediato a esse. “Que fazer?
Escrever-lhe novamente? … ou ir postar-se diante da casa dela, a espiá-
la? …
Sim, com um revólver em punho, porque se sentia já fora de si. “Matá-la-
ei …”, mas, nisto, decidia coisa mais prática: “Comprá-la-ei …” E Yoli
continuava no seu jogo: Yoli era mais forte do que ele. O que não era de
estranhar: descera ao fundo do abismo e perdera todo o domínio sobre si
próprio. Chegou mesmo a abdicar por completo de ter vontade sua,
contentando-se em desejar somente, deixando de exigir para simplesmente
suplicar. “Mas sou eu, na verdade, quem assim procede? …
Avanço corajosamente até junto do obstáculo ou, por outra, sou arrastado
até aí, e eis-me a pretender transpô-lo por meio de súplicas?!” Aparecendo,
certo dia, Kelemen a visitá-lo, Kádár precipitou-se literalmente sobre ele, a
pedir-lhe notícias da irmã. Kelemen sublinhou, com um sorriso subtil e
inteligente, esse interesse que se manifestava sem precaução alguma e
marcou-lhe uma entrevista para o dia seguinte, num tom de voz que parecia
dizer-lhe: “Podes estar tranquilo; percebo; entregar-ta-ei.” “É um
alcoviteiro, refletiu Kádár, valeria mais a pena falar-lhe abertamente,
oferecer-lhe dinheiro …” Ao chegar a este ponto da sua ideia, suspendeu-se
perturbadíssimo: “Estarei doente? … Teria eu perdido todo o meu bom-
senso? …” Todavia na tarde do dia imediato, invadiu-o a mesma emoção de
sempre ao ouvir a voz fresca e irónica de Yoli dizer-lhe: “Recebi o seu
cartão de visita e soube também que esteve em minha casa, mas eu estava
ocupada, além de que me não apetecia nada.”
Kádár observou Yoli com desconfiança. “Ela mente” pensou ele, mente
quando fala, mente quando se cala” mente quando me oculta alguma
coisa …” Passaram em seguida a encontrar-se com extrema frequência. A
melhor parte do dia de Kádár era constituída pelas horas em que passeava
com Yoli, em Buda e na ilha Margarida, cheia de encanto estival. Depois,
quando se encontrava de novo só, tendo ainda no espírito a lembrança da
última palavra dela, ambígua e vaga, punha-se com impaciência e tormento
a aguardar o encontro seguinte. Ficava então estendido no quarto, ou
vagueava ao acaso pelas ruas, ou conversava com os seus antigos
condiscípulos, os quais, mordidos pela fome, continuavam a vir farejar em
volta dele. Mas Kádár em nada mais pensava senão em Yoli. “Meu
Deus! … estou envenenado, refletiu certa vez, fazendo ao mesmo tempo
uma careta de menino cheio de medo. Meu Deus! porque é que Ila se foi
embora? Porque me deixou neste abandono? …” Lutava contra as suas
repetidas alucinações, passava o tempo a engendrar projetos irrealizáveis:
“Dar-lhe-ei muito dinheiro, levá-la-ei para que possa manter-se-me fiel! …”
Desatava a rir como um homem ébrio. “Tudo isto é idiota. Vou levá-la
comigo para Pôrto-Isabel, contratá-la-ei como minha secretária … ou, por
outra, isso não. Levá-los-ei a ambos, o irmão e ela. Serão mais dois
emigrantes, e ninguém terá nada que dizer. Viverão en Grahamstown, ou em
Island London, e não haverá necessidade de ninguém saber nada a seu
respeito.
Ila tampouco saberá … E se ela vem a saber do caso … a-pesar-de
tudo? …”
Tinha já descido tão baixo que nem sequer lutava contra o próprio facto,
mas apenas contra a contingência de Ila o vir a saber. Era isto o que havia
de mais penoso nessa sua flutuação desordenada entre a realidade
representada por Ila e a ficção que Yoli representava. “Levá-la-ei para
Johanesburgo. Ila também nunca soube nada de Ingá …” Depois, um dia,
formulou-se-lhe no íntimo um problema que o deixou transtornado: “Até
quando durará isto? …
Não poderá durar eternamente … Eternamente, eis uma palavra estúpida …
Quando me sentir saciado dela, garantir-lhe-ei um futuro … Saciado
dela? …
Ainda não chegámos lá. Estamos agora ainda no ponto em que ela diz não,
não e não …” Atingira o fundo do precipício. Saía-se com tolices maldosas.
Falava amiúde de Porto Isabel, do dinheiro, do seu poderio, do apoio que
poderia conceder a quem visse que o merecia … Tudo isto era dito com
sobrescrito para Yoli, à laia de mensagem envergonhada e cómoda, por
intermédio do alcoviteiro.
Kelemen, nessa época, já havia perdido o emprego. Kádár ignorava se o
tinham despedido ou então se, embriagado pela proximidade da riqueza,
tinha sido ele próprio a abandonar o escritório; o certo era Kelemen não ter
agora modo de vida. Volta e meia, estava de visita a Kádár; telefonava-lhe
todos os dias. Mas nunca lhe dirigia pedido algum. Quanto aos outros, fosse
este ou fosse aquele, apresentavam-se ainda de tempos a tempos, para
tatearem o terreno com ninharias que até faziam despertar o riso. Vinham,
iam, tornavam mais tarde. Kádár a todos escutava, com o semblante grave,
aparentemente interessado. Examinava o teor dos negócios que lhe
propunham, a todos dava uma resposta dúbia, e cada vez mais se convencia
da insignificância desesperadora daquelas coisas, da ridícula falta de
seriedade da sua própria atitude. “Há de julgar-me idiota, toda esta gente,
com qual eu nem devia, antes, mandar pôr no olho da rua, por um lacaio …
“Que é isto? … Se eu não tenho já necessidade de qualquer pretexto para
ganhar tempo … então, vingo-me eu de Yoli sobre estes pobres diabos, que
nenhuma culpa têm? … Serei um sádico? Estimulo-os, empurro-os, enervo-
os, sabendo bem que um dia …” Szende voltava ainda, numa teimosia
exacerbada, ao passo que Márton deixara já de aparecer. Quando Kádár se
ocupava a valer desses assuntos, o que aliás era raro, cavavam-se profundas
rugas na testa de Kelemen.
“Recomendo-te prudência”, decidiu-se este último a dizer um dia; mas
Kádár atalhou com rudeza: “Prudência? … Supões então que não vejo
através de todos aqueles sujeitos? … que não sei o que valem e o que
querem? …
São burros! … todos uns burros, sem excluir o Varga”. Porque Varga, o
homem rico e distinto, também ele surgira, como solicitador. Kádár e ele
encontraram-se na sala de jantar do hotel. Varga tornara-se um cavalheiro
solene, um tudo nada calvo e barrigudo, muito janota, verdadeira
encarnação da fortuna ganha pelo próprio esforço, consciente e
administrador. Usava agora óculos de aro de tartaruga. Ele parara diante da
mesa para a esquerda: “Mas se me não engano, é o Kádár! … tinha ele
exclamado; que feliz acaso, na verdade! Para te ser franco, devo confessar-
te no entanto que, quando ouvi dizer que te encontravas em Peste, alimentei
a esperança de que nos encontraríamos não por simples obra do acaso, mas
sim porque tu próprio me procurarias. Porém, não quero de forma alguma
recriminar-te. Dás licença? … Apenas um minuto, até que cheguem os
meus visitantes estrangeiros”, e, dizendo isto, sentara-se à mesa do arquiteto
sul-africano.
“Sinto-me sinceramente feliz por ter sabido a teu respeito coisas
excepcionalmente elogiosas, coisas que me vieram dizer os nossos comuns
amigos de Peste e outras antigas relações nossas. Tivemos conhecimento de
que desejavas desenvolver alguma atividade na Hungria … tomar contacto
com a vida húngara …
Se assim é, considero um dever aconselhar-te a maior prudência e o maior
dos rigores na escolha dos teus futuros colaboradores. O nosso
estabelecimento coloca-se, evidentemente, à tua inteira disposição, para
toda e qualquer operação bancária. Conto com a tua visita aos meus
escritórios. Ah! além estão os meus amigos franceses. Mais uma vez, sinto-
me feliz a valer por te ter encontrado, depois de tão longa ausência …” -
“Sim, respondeu Kádár, procurar-te-ei se, na realidade vier a fazer aqui
alguma coisa, porque sei bem quão importante é possuir relações em todas
as partes do mundo. Se os negócios projetados se efetuarem, diligenciarei
concretizar essa tua amável oferta de entrar em contracto com o teu
estabelecimento, ainda que não seja senão sob a forma duma pequena conta
de depósito e que este se eleve acima de … vamos … uma libra esterlina.
Não se trata, é verdade, de grande quantia, mas às vezes uma coisa de nada
basta para encetar agradáveis relações …” Varga corou até às orelhas, um
clarão sombrio e rápido perpassou-lhe no olhar, más o tom correto, alegre e
afável da sua voz não sofreu alteração: “Com efeito, as relações importantes
começam muitas vezes por atos dos mais insignificantes, e, se tu o queres,
considera esses vinte xelins, vamos lá, como uma primeira pedra, ou um
símbolo …” Varga afastou-se. Kádár, ao encontrar-se só, ficou de mau-
humor. Não sentira, afinal, a menor satisfação em humilhar Varga, devido a
este ter neutralizado a sua vocação com uma atitude prudente e cortês,
digna dum comerciante e em que, todavia, espreitava o seu quê de desprezo.
Dera prova de mau-gosto. No fim de contas, quando Varga lhe oferecera em
Londres uma nota de libra, não o fizera por mal …
Simplesmente, Kádár queria então mais. Exatamente como lhe sucedia hoje
perante Kelemen e Yoli, essa rapariga para a qual tudo convergia e que, era
manifesto, não acedia a tornar-se sua amante.
Durante as noites desassossegadas formulava de si para si perguntas que lhe
penetravam na carne como golpes das lâminas. “Ela não gosta de mim? …
Ama outro? …
Deseja dinheiro? … Que é que ela ambiciona? … Poderia já obter tudo o
que quisesse …” Brutalmente, no seu íntimo, injuriava-a, cobria-a de
expressões imundas e deprimentes, para, quase logo a seguir, chorar de
angústia e de cobiça insatisfeita. Era estúpido, sincero, desprovido de tato
ridículo; Junto dela, falava-lhe do seu dinheiro, dizia que a raptará e fará
dela uma mulher chique. “Não chego a compreender-me a mim mesma”,
replicava nessas ocasiões Yoli. “Se outro homem qualquer me falasse deste
modo, já há muito tempo o teria deixado de conhecer.” Kádár recorreu, por
fim, às súplicas: “Eu não posso viver sem você … Se a não possuo, Yoli,
vai ser a minha perdição.
Não tem medo disso? E se eu um dia, a … e a mim próprio, a seguir …” Só
o desejo de tocar no braço da jovem era o bastante para o fazer tremer.
Tinha raiva a ele mesmo, por causa daqueles modos de caloiro
apaixonado … “Eu, que vou fazer daqui a pouco trinta e três anos!” Yoli
sorria, um tanto surpreendida: “Um homem sério não devia falar assim …”
Kádár ameaçou-a então de partir e de nunca mais voltar. Eu não posso
impedir que vá”, retorquiu Yoli, docemente. - “Você detesta-me, odeia-
me? …” perguntava cem vezes a Yoli. - Não lhe devo dar resposta”, suplica
a jovem. - “Bem, obrigado, isso basta.” -“Isto quê …?” - “O saber que me
detesta e que me odeia. Não é verdade? …” - “Não lhe respondo sequer.”
Chegava o Outono. Ila telefonou de Roma: “Pode ser que partamos para
Peste no meado da próxima semana ou, o mais tardar, no fim. Que há de
novo? (já havia semanas que ela nada inquiria a tal respeito). - “Nada.” - “E
esses teus negócios de Peste?” - “Não creio que saia daqui coisa que
valha …” - “Ah! bem; como vão os Kelemen, e a Yoli? …”
- “Bem … Vejo-os de quando em quando …” Nas semanas últimas tudo
efetivamente, se tinha baralhado no seu espírito. Nem uma coisa única se
lhe oferecia como certa; de um minuto para o outro, de pensamento em
pensamento, os seus impulsos modificavam-se e contradiziam-se. Era
acometido de fúrias que o sufocavam, de ódios selvagens, os quais, todavia,
iam todos findar na humilhação implorativa.
Escarnecia de si próprio, lamentava-se; convertera-se, em suma, numa
personagem grotesca. Estava assim pagando, bem caros, quinze anos de
tranquilidade e de presunção.
Num domingo de manhã, com um tempo doce e tépido de fins de outubro,
subiram ao monte de S. Gerardo. Kelemen acompanhava-os. Chegados ao
cume puseram-se, apoiando-se na colunata de ferro do parapeito, a
contemplar a cidade.
Inundado de sol, o céu apresentava um azul pálido, outoniço. Kádár sentiu
invadirem-no uma tristeza e uma lassidão profundas.
“Vamos partir desta terra”, disse ele, de súbito. Ao ouvir estas palavras
Kelemen fitou-o e fitou Yoli em seguida. Esta, distraída, afastou dos olhos o
binóculo. Pouco tempo depois desceram e encaminharam-se para o carro.
Kelemen, tomando avanço, foi o primeiro a chegar junto dele. Logo atrás
vinha Yoli. Ela calçava sapatos de desporto, castanhos e de salto baixo.
Quando já estavam todos ao pé do automóvel, Kelemen abriu a portinhola
e, inclinando-se para a irmã, pareceu dizer-lhe qualquer coisa: os lábios
moviam-se mas a voz permanecia-lhe imperceptível. “O quê? … perguntou
Yoli em tom forte e nítido, que disseste tu? …”. Kelemen voltou-se para ela
e respondeu: “Perguntei-te, pequenina, em que lugar querias sentar-te.” E,
sem aguardar resposta, tomou assento na bancada interior do carro. “Está
fresco, devia ter trazido o meu casaco de abafo.”
Durante o trajeto Kelemen conservou-se silencioso, mas, no momento da
despedida, disse, ruidosamente e por duas vezes a Kádár: “Até à vista.” No
dia imediato Yoli telefonou para o hotel. Estava livre da parte da tarde e
perguntava a Kádár se não queria levá-la ao cinema. “Se você quiser …”
respondeu Kádár, numa voz arrastada. - “Se é somente porque eu queira,
então não digo nada”, redarguiu ela. Já no cinema, Yoli inquiriu: “Vamos a
saber, quando partem os senhores? …” - “Ainda não sei o dia certo.” - “É
absolutamente necessário, isso? …” - “Sim, já estamos há muitíssimo
tempo ausentes de casa.”
- “E se eu lhe dissesse o quê? …” interrogou Kádár, com uma voz
estrangulada.
“Nada … “ Ficaram ambos silenciosos; o filme, na tela, oferecia mil
imagens aos seus olhos, os sons ofereciam-se-lhes aos ouvidos; mas ele não
via nem ouvia nada.
Depois, seguindo pela rua e fingindo fixar atentamente qualquer coisa
interessante que estava no passeio oposto, Yoli disse ainda: “Se não é
absolutamente obrigado a partir … se não é absolutamente necessário …”
Não havia dia algum em que ele não tentasse erguer um muro entre a sua
pessoa e a de Yoli; mas, imediatamente, ante uma simples frase incompleta
dela, ou porque no cinema lhe tocara na mão sem que ela a retirasse, esse
muro desabava e a noite que se seguia era para ele de perturbação. “Que é
isto? que quer ela de mim? Suspeitará de que me pus na defensiva?
Pressentirá que desejo subtrair-me à sua influência? … Ou andará a troçar
de mim! … Não lhe bastará o que já me tem atormentado …?” Passara-se
isto na tarde de sábado em que acabava de falar, pelo telefone, com Ila. Uns
minutos depois dessa comunicação pelos fios com a cidade papal, Kelemen,
igualmente pelo telefone, chamou-o e dirigiu-lhe as suas habituais palavras:
“Que há de novo, como vais de saúde? …” - “Agradeço o teu cuidado, dói-
me um pouco a cabeça. Acabo de falar com minha mulher, que chegará no
princípio da próxima semana, e partiremos daqui provavelmente, logo
depois.” Terminada a conversa com Kelemen, deitou-se em cima do divã.
“Dói-me a cabeça, como há muito tempo me não sucedia.
Detesto as dores de cabeça. Hoje nada tenho de especial a fazer lá fora; vou
ficar aqui no hotel. Ila está de regresso. Há já dois meses e meio que a não
vejo.” Estendido no divã, fixou os olhos no teto, esforçando-se por não
pensar em coisa alguma. “Aqui, tudo descarrilou”, refletiu com amargura.
A noite caiu lentamente. “Ainda aqui ficaremos mais algum tempo? … Ila
vai decerto perguntar-me pelo estado dos negócios de Peste; finalmente me
perguntará um dia. Terrível sintoma seria se ela nada quisesse saber, se isso
a não interessasse. Dir-lhe-ei uma mentira qualquer. Saberá ela já, de
antemão, que lhe vou mentir? … Será por isso que me não pergunta
nada? … Com que então vamos abalar dentro em pouco?, .. E que
aconteceria se tivesse de prolongar a minha estada cá? …” A escuridão
tornara-se completa. “Hoje, nada! Vou ao cinema; bestializo-me aqui,
estupidifico-me vou distrair-me.”
Neste instante abriu-se a porta e Kádár reconheceu, no seu retângulo
iluminado, a silhueta de Yoli. “Bati por duas vezes, disse ela, e, como não
recebesse resposta, ousei mesmo assim entrar. Tenha a bondade de acender
a luz.”
Num pulo, ele correu ao interruptor. Yoli cerrou a porta, avançou pelo
aposento.
Trazia vestido o seu impermeável azul escuro e, na cabeça, uma boina da
mesma cor. O rosto, à luz elétrica, parecia muito pálido. “Dá licença que me
sente um bocado? … Vi o André esta tarde, que foi lá a casa numa saltada.
Ele participou-me que Ila chega brevemente.” - “Sim, chega daqui a poucos
dias”, confirmou ele. Yoli conservou-se em silêncio. “Que quer isto dizer?”
interrogou-se a si próprio Kádár, sentindo um calafrio. “Que me quererá
ela? …
Sabia que eu estava só, que quer de mim? Até à data nunca veio aqui
sozinha! …” Yoli olhou no vago; depois, o alvo semblante dela ergueu-se e
os feixes de raios azuis esverdeados dos seus olhos erraram por aqui e por
ali, no aposento. “Devo perguntar-lhe como está de saúde, o que há de
novo, qual o estado do tempo, o que faz a mãe dela … em suma, qualquer
coisa. Impossível é suportar semelhante silêncio …” Neste momento, com
um tremor quase imperceptível nos lábios, num leve sopro, ela disse: “E o
senhor vai partir? …”
- “Sim”. Yoli calou-se, pondo-se a desenrugar as luvas de encontro aos
joelhos.
“E se eu lhe pedir que não parta? …” - “Porque havia eu de ficar?”
perguntou Kádár com expressão carregada.
Então, sacudidamente, Yoli levantou-se; sob a madeixa ruiva que se
escapava da boina, o rosto dela apresentava uma palidez de morte. Ergueu
lentamente a cabeça, pôs os olhos no chão e começou a falar num tom de
voz que pouco excedia o dum murmúrio. “Eu nunca tinha vindo só a esta
casa; o senhor há-de estranhar, seguramente, ver-me aqui, sobretudo, desde
que sei que, dentro de poucos dias, se irá embora. Eu não serei nunca tua
amante … Tu, porém, não chegaste a pronunciar aquela única palavra que
esperava de ti.
Eu não sou uma boa amante, não sirvo muito para isso, não me resigno a
tremer continuamente no receio de perder-te … Não é o teu dinheiro que eu
quero, e não quero fugir contigo … Quero antes, que te deixes ficar comigo.
Deixa-a partir, a ela. Escreve-lhe … telefona-lhe para que volte … essa
pobre e querida Ila.
Lamento-a, mas não quero que permaneças sendo dela, é preciso que te
divorcies … Não quero partilhas com Ila. nem com pessoa alguma …
Quero-te para mim só. É a ela que pertence o dinheiro? … Que importa, eu
não o quero para mim … Até agora, eu não sabia o que havia de fazer …
Torturei-te … Supões que me não fazia pena ver-te sofrer, debateres-te na
dúvida? Mas não quiseste nunca pronunciar a palavra que devias … A
princípio pensei em deixar que partisses e em te esquecer … Supuseste-me
leviana … Pois bem! não o era, não. Ainda agora, ao receber a notícia do
próximo regresso de Ila, tive imediatamente a noção do que devia fazer.
Ficarei agora contigo se assim quiseres … ou talvez seja melhor que tu me
acompanhes … É o que convém mais … Deixemos-lhe tudo.”
Yoli calou-se imóvel, sempre com o olhar baixo.
A Kádár, gelou-se-lhe a respiração. Fêz-se silêncio completo.
“Comediante”, ouviu dentro de si dizer uma voz escarnecedora. “Ao menos,
sabes agora o que ela quer. Comediante, cabotina de baixo estofo. O que ela
quer, é o teu dinheiro.
Não te partilhará com pessoa alguma. Não quer tornar-se tua amante. Tens
de divorciar-te e de casar com ela …” Nesse silêncio impenetrável e
sobrecarregado de tensão, impôs-se-lhe de súbito ao espírito esta expressão
trivial: “Eis o momento decisivo.” Sentiu imediatamente a indiferença com
que até ali contemplara o curso imutável da sua existência, como se fosse
perante si próprio um estranho, como se tivesse estado sempre fora de si
mesmo. Não soubera dominar essa indiferença senão duas únicas vezes na
sua vida: voltou a ver-se na linha de demarcação fronteiriça entre a Hungria
e a Roménia, em face dos oficiais romenos, no momento em que a sua alma
em farrapos se acolhera junto do oficialzinho inglês em quem
instintivamente adivinhava um amigo e que saudara com a palavra
Kamerad. Tornou, igualmente, a ver-se dentro da pele do aventureiro de
Londres, no salãozinho de Mrs. Myers, no instante em que acabara de
recusar com gesto elegante a esmola oferecida pela mulher que dele
suspeitava ainda, mas cujo coração já estava meio subjugado e que ele
conquistara definitivamente com estas palavras de efeito infalível: “Se me
levar consigo, segui-la-ei seja para onde for.” E agora? Tratava-se doutro
momento decisivo? … Teria de estender de novo, corajosa e livremente,
com inteira franqueza, a mão? … Pela derradeira vez na sua vida,
possivelmente, teria de segurar outro momento decisivo? …
Nada quebrava aquele silêncio, mas a comoção que transtornava o rosto de
Yoli cedeu o lugar a uma grande e serena lassitude. “Agora já sabes tudo, já
tudo te disse …” declarou ela. Não me respondas neste momento, vou
retirar-me … E, como sabes, espero-te …” Passado um instante, Kádár
encontrou-se sozinho no aposento.
Dias depois, Ila e Edith chegaram a Peste. Kádár e Simmons foram esperá-
las, de manhã, à estação. Frescas, alegres e beneficiadas por um bom
repouso, desceram ambas duma carruagem-cama vinda diretamente de
Milão. Edith estava por completo curada da fratura do artelho. Quanto a Ila,
o seu rosto trigueiro parecia mais claro.
Os dois casais abraçaram-se. “Meu querido Tony, estás pálido, observou Ila.
Tens trabalhado muito? … ou ter-te-ás metido muito na pândega? …” E
desatou a rir.
Oh, sim! andava pálido, desde a última vez em que vira Yoli. Ela não mais
dera sinal de si: esperava. Estava certa de que ele iria procurá-la …
Comediante …
Cabotina ruivazinha! Desempenhara o seu papel, aliás com bastante
habilidade. Achava-se confiada no efeito e supunha inútil mostrar-se.
Deixara-o a amadurecer o caso, a atormentar-se, a-fim-de correr depois a
prosternar-se-lhe aos pés. “Quer que eu me divorcie e case com ela …
Ama-me, adora-me. Não quer ser minha amante, como não se importaria
ser doutro qualquer, talvez mesmo como já o foi doutro homem.
Ruivazinha … Minha linda bonequinha ruiva … minha noiva … -Retiro-me
agora, e, sabes … lá te espero … - Sim esperas-me e esperas o meu
dinheiro, esperas e teu rico noivo, que não consentes em partilhar com
ninguém mais … Eu divorciar-me-ei e despacharei para casa dela a pobre,
querida e velha Ila, com todo o seu dinheiro … Casarei contigo, sem que
tenhamos sequer necessidade de esperar que ela regresse; bastará mandar-
lhe um telegrama: Inútil voltares. Cumprimentos.
Tony Kádár e a sua noiva … Depois de tantas infidelidades, mais uma a
derradeira … Oh! Yoli, linda ruivinha da minha alma … Vai-te,
comediante! …
Supões que não oiço a tua voz íntima, que não penetro em cada um dos teus
pensamentos, que não vejo toda a tua vida? … Crês que não percebo cada
um dos teus movimentos, a maneira por que fugiste com o braço …? Agora
já eu sei porque não querias partilhas … Não queres partilhar do meu
dinheiro? Não queres nada, dizes tu? … Que ela leve tudo consigo,.. E se é
a mim próprio que tu queres! … Vou abandoná-la por tua causa, minha
lindinha e ruiva Yoli … Poderia eu, na verdade, abandoná-la à pobre e
querida Ila? …” Mas isto fora durante uma noite apenas, e ainda se tinham
passado mais outras cinco noites e cinco dias sem Yoli, sozinho com ele
mesmo, até à chegada de Ila.
“Infelizmente, hoje não disponho de tempo”, dissera a Kelemen, que o
chamara ao telefone. “Agradeço o teu incómodo, mas ser-me-ia difícil
comprometer-me”, respondeu a Szende. Quando a Suhajda, a esse, tinha-o
mandado pôr, pura e simplesmente, fora da porta. Ao cruzar com Amman,
no meio da rua, limitara-se a levar a mão ao chapéu, acelerando o passo.
Tendo avistado, ao longe, Simon tratou de passar logo para o passeio
oposto. Um dia, surpreendera-se diante da casa da avenida de Pozsony.
Erguera os olhos, estivera uns instantes ali parado e depois voltara para o
hotel.
- Coisa divina! - extasiava-se Ila, no dia do seu regresso. -
Indescritivelmente belo! Mais tarde te contarei tudo pormenorizadamente.
Mas tu, Tony … não estou nada contente contigo. Tens muito mau aspecto.
Então, que há de novo? … Que se tem passado em Peste durante a nossa
ausência? …” - “Nada”, respondeu ele.
Tirou da cigarreira um cigarro, acendeu-o e atacou o assunto: “Na manhã de
28, temos barco em Brest. Por acaso, é precisamente o Falcônia. Partiremos
daqui em 28, no rápido da noite.” Ergueu-se da poltrona, foi tirar de uma
gaveta dois livretes de capa cor de rosa e colocou-os em cima da mesinha
redonda, ao meio do aposento. Fez-se um curto silêncio. “Vejam isto, disse
Ila com lentidão ao mesmo tempo que pegava nos livretes, mal chego tenho
de partir logo, outra vez.
Eu, ao menos, vi muita coisa; ao passo que tu … ainda, não estás farto de
Peste?” Novo e breve silêncio. “Então, já acabou esse negócio com a
Yoli? …
Ao ouvir esta pergunta, Kádár mostrou de súbito uma cara triste,
comprometida e singularmente infantil. “Acabou”, proferiu ele, semi-
inconsciente …
Seguiu-se outro silêncio, após o qual Kádár perguntou baixinho, numa voz
tímida de quem procura um amparo: “Então, tu sabias disso? …” Ila fixou o
olhar em qualquer ponto vago, atirando simultaneamente para o ar o fumo
do cigarro: “Tony, meu pequeno … que ingénua pergunta a tua! … Eu tenho
sabido sempre tudo. Nunca to quis dizer, mas agora é preciso. Conheço-te
bem. Conheço o teu semblante, os teus olhos, a tua voz, os teus
pensamentos. Soube sempre quando qualquer coisa dessas ia começar, e
depois o que seguidamente sucedia. Tony, meu pequeno … Daqui a pouco
tenho trinta e sete anos feito … E nós … amamo-nos. É preciso que eu
saiba tudo a teu respeito, para que possa velar por ti. Jamais te interroguei
sobre a tua vida passada, só o presente me interessa.
Mas soube sempre tudo: o caso da senhora Growham, assim como o da
suécazinha do Transvaal, e o de Jane Astfield. Quando a gente partilha da
vida de alguém, quando se está sempre na sua companhia … Muitas vezes,
deixei-te sozinho, lembras-te disso? … quando pressentia que estavas
saturado de mim, exatamente como te deixei agora também só. Se eu
tivesse pressentido que isto poderia ter consequências graves, não te teria
abandonado, teria ficado a teu lado; mas essa ruivazinha não era mulher
para infelicitar ninguém, para produzir uma catástrofe; podia, quando
muito, constituir uma aventura. Mas o lar, o teu aconchego próprio, é ao pé
de mim que o encontras hoje outra vez. Não houve, pois, mal algum, Mais
tarde, talvez daqui por dez anos, quando eu já tiver quarenta e sete e tu
apenas quarenta e três, se porventura vivermos ambos até lá … - e daí, bem
pode ser que mesmo então nada aconteça, nem nessa época nem nunca. Eu
sei que, às vezes, tens necessidade de afastar-te de mim por algum tempo,
mas sei também que voltas em seguida. És rico, independente, poderias
libertar-te por inteiro … Se o fizesses, eu em nada poderia obstá-lo; mas
não o fazes, pelo menos agora, e talvez o não faças nunca. Vês? Digo-te
tudo isto com plena franqueza, e nem sequer tenho medo de assim me
entregar tão inteiramente a ti … porque, vês tu? a tua única e verdadeira
família sou eu.” Um silêncio.
Apenas se ouvia a respiração ofegante de Kádár: “Estás com muito mau
parecer, meu bom Tony. Sofreste? … Valeria na verdade a pena? …” Numa
voz quebrada e lamentosa, escapou a Kádár: “Ila … juro-te …” - Cala-te,
interrompeu, já basta! não falemos mais nisso; não me interessa, não me
importa e não falemos mais no caso para que não tenhas de mentir. Há
direito de a gente se calar, assim é preciso mesmo algumas vezes; agora, de
mentir é que ninguém tem o direito. Já houve da tua parte um começo de
mentira, nos teus supostos negócios de Peste; aliás, rapidamente cessaste
com isso, sofreste, envergonhaste-te por esse motivo. Fiquei-te reconhecida
e a amar-te ainda mais.
Não falemos mais, portanto, de tudo isto. Seja o que for que tenha havido, o
que acabou não tem já importância, já lá vai … “ Ao pronunciar estas
palavras, a mão familiar e firme de Ila tomou a de Kádár, a sua boca fiel
procurou a dele, não como inimiga que perdoa, que se resigna mas que, no
íntimo, se lembra sempre … Não. Não. Ela mostrava-se o que havia sido
sempre, a companheira da sua vida, do seu corpo, do seu pensamento, a
esposa que se orgulhava de ser amante ao mesmo tempo, à qual se era
forçado a confessar: “É verdade, não estou comigo próprio senão quando
estou junto de ti …” e a quem se poderia mesmo confessar: “Sabes que
houve qualquer coisa … que se quebrou dentro de mim … O tempo será
capaz de repará-la? … Dize … “. . Ajudar-me-ás a esquecer? … Isto
desvanecer-se-á? …” Depois, passados uns dias, André e Yoli Kelemen
foram visitá-los mais uma vez, a convite telefónico seu. Os visitantes não
chegaram juntos. Kelemen vinha um pouco pálido, um pouco constrangido
e taciturno. “Desculpa-me (tinha ele dito na véspera, mostrando-se pela vez
primeira sincero com Kádár) de te expor um problema. Vejo-me sem
emprego e, para falar sem cerimónias, tinha dito de mim para mim … tive a
impressão de que, com o teu auxílio, arranjaria um … Pergunto-te, pois, se
posso contar contigo para me ajudares a encontrar uma colocação no
estrangeiro …” - “Eis uma coisa para mim totalmente imprevista,
respondeu Kádár, opondo uma derradeira mentira às primeiras palavras
francas de Kelemen - mas, na verdade, não vejo bem de que maneira …
nem em que campo eu poderia …” Kelemen não se demorou, assim, mais
do que dez minutos na visita.
“Conservaremos uma excelente recordação de Budapeste e dos meus
amigos também, declarou. Não fixámos ainda a data exata da partida, pode
ser mesmo que nos tornemos a ver daqui até lá … mas, em caso
contrário …” Yoli, que chegara meia hora mais tarde que o irmão,
tampouco se demorou muito tempo. Ila tinha, entretanto, mudado de
vestuário. As duas mulheres trocaram umas palavras. Yoli levantou-se,
enfiou o seu impermeável azul; o rosto tinha a brancura do mármore. “Sim,
estas faces e esta fronte extraordinariamente brancas, puras em excesso, por
baixo de uns cabelos ruivos que … pensou Kádár. E a boca dela não é
bonita”.
Ila ergueu-se, por seu turno. “Espere um momento, minha pequena, pediu
ela, nós saímos também, é só o tempo de arranjar a cara …” E transferiu-se
para o quarto vizinho. Kádár e Yoli encontraram-se sós. Um instante
mantiveram-se de pé, frente a frente; depois, subitamente, Yoli aproximou-
se tanto dele que Kádár lhe sentiu o contacto dos seios rijos, através do fino
impermeável. Ela perguntou-lhe numa voz segredante: “Não me abraça?” E
os olhos mergulharam nos dele. Num profundo silêncio, o olhar de Kádár
afrontou os raios azuis-esverdeados dos olhos de Yoli. Após, respondeu:
“Não”. A boca de Yoli contorceu-se um pouco; ela recuou um passo e
sentou-se em seguida. Depois os três juntos, desceram ao hall, onde os
Simmons já os aguardavam.
- “Pois bem! minha querida Yolizinha”, disse Ila abraçando-a, “se nos não
tornarmos já a ver … Adeus! Olha! está a chover …”, prosseguiu ela,
voltando-se para o marido: “Tony, leva esta pequena a casa, no carro; nós
ficaremos aqui à tua espera”.
O auto moveu-se lentamente sobre o asfalto escorregadio, de todo
encarchado.
“Não chegou sequer a responder-me, disse inopidamente Yoli, não me deu
resposta alguma àquilo que lhe perguntei outro dia. Esperei-o, mas nem
sequer se dignou dar sinal da sua existência”. - “Efetivamente, não”,
respondeu ele numa voz surda. Houve depois um silêncio. Yoli voltou,
porém, à carga: “Não me quis como esposa …”- Não, replicou ele,
sumidamente. - “Nem mesmo como amante? …”
“Não”, repetiu Kádár, e de novo caiu o silêncio entre ambos. O carro parou
diante do prédio. Aí ficou parado durante uma boa porção de minutos. O
coração de Kádár batia com força e invadiam-no vagas de calor, enquanto,
dentro do crânio, a sua razão impiedosamente lúcida espalhava um frio
glacial. Yoli não se mexia. Ficaram silenciosos. De súbito, Kádár sentiu
sobre a sua mão a mão de Yoli e a boca da rapariga pertíssimo da dele.
“Não me quer, então, abraçar? …” perguntou ela mais uma vez, num sopro.
- “Não”, replicou ele, com doçura. Yoli desceu, ele por sua vez saiu do
carro, e ambos se encontraram diante da porta. Yoli tirou a luva, estendeu-
lhe a mão, uma mão gelada: “Não me beijará sequer na mão? …”
perguntou-lhe ela ainda, enquanto os lábios se lhe crispavam: - “Não”,
obstinou-se ele, numa voz enrouquecida.
Encararam-se. “Está zangado comigo? …” interrogou Yoli, ao mesmo
tempo que um singular clarão se punha a brilhar ao canto dos seus olhos.
“Não”, disse ele desviando a vista. Um silêncio. “Meu Deus! proferiu Yoli,
muito baixinho, meu Deus! talvez seja esta a última vez que a veja, na
minha vida … e parte sem me dizer uma única palavra …” - “Não …” -
“Então … boa-tarde”. - “Boa tarde”.
Yoli sumiu-se na escada; Kádár subiu para o carro. “Boa-tarde.
Regressemos.
Depois de amanhã, partimos … Já bastou … e mal não houve. Um pouco de
coragem … e não falaremos mais no caso. Esta noite iremos ao cinema com
os Simmons, e depois de amanhã … Daqui até lá, pode-se dormir à vontade.
Cessou a necessidade de olhar em redor, visto que nada se passou. É preciso
pôr termo a tudo … a este martelar de artérias nas fontes … Não é difícil,
basta querer, estar decidido a isso …” Com efeito, o bater irregular do seu
coração acalmou-se pouco a pouco … Pressentiu que, dentro em breve a
pacificação lhe entraria no espírito. Nessa noite foram ao cinema, deitaram-
se depois e dormiram. No dia seguinte, Ila e ele passearam, juntos, pela
cidade fazendo ao mesmo tempo umas compras miúdas: uma cinta, um par
de luvas, um frasco de perfume.
Despediram-se dos Simmons. Na última tarde, Kádár foi entregar na
garagem o carro alugado. Quando passava uma das avenidas centrais, um
garoto esteve em riscos de ficar debaixo do automóvel: teve uma ligeira
avaria, os acumuladores ressentiram-se, sendo precisos uns bons minutos
para se pôr de novo em marcha. Deu-se isto precisamente defronte da casa
de Yoli. Antes da meia-noite, dirigiram-se para a estação do caminho de
ferro … Desde aquele instante, estava ele certo e seguro de que, dentro em
pouco, a calma, o apaziguamento se lhe instalariam por completo no
espírito … visto que já o ritmo do seu coração era mais regular …
O ruído dos eixos amorteceu-se, ouviu-se o ranger dos freios, o gemido dos
rails. E as rodas imobilizaram-se. Foram, alguns pregões em voz arrastada,
rumor de conversas, barulho de passos, tinir de ferragens, o uivo duma
locomotiva que passava noutra via, o timbre agudo duma corneta, o som
estrídulo do aparelho telegráfico da estação. Ele levantou-se, sobressaltado,
afastou a cortina um pouco, limpou a vidraça do vapor úmido que
embaciava e olhou para o exterior. As bagagens, registradas para Brest, iam
em vagão selado. Os passaportes, haviam-nos deixado nas mãos do revisor
das carruagens-camas. De aí a um nada, ouviu-se uma porta bater, foram em
seguida pronunciadas algumas palavras em voz baixa e houve alguém que
avançou, às apalpadelas, no corredor. Decorridos uns momentos de silêncio,
a voz de Ila elevou-se no compartimento vizinho:
- Tony!
- Que queres tu? …
- Ouvi-te mexer. Onde estamos?
- Em Hagyeshalon.
- É já a fronteira? …
- Sim.
Fez-se novamente silêncio; depois, Ila voltou a chamar:
- Tony.
- Que desejas, minha querida? …
- Ainda não consegui dormir.
- Também eu não. Mas já é mais que tempo de o fazermos, - Vou tentar.
Talvez, enquanto aqui estivermos parados …
Novo silêncio. Seguidamente ouviram-se falas em alemão, um assobio,
depois um novo e grave toque de sineta e a campainha do telégrafo a retinir,
ali perto.
Por fim, o comboio arrancou outra vez; as rodas começaram de mover-se
lentamente, lentamente … O ritmo do comboio foi-se acelerando, a sua
música tornou-se mais forte e mais variada, até dar toda a orquestração de
sons dum comboio que vai correndo, galgando através da noite. Rodava
com velocidade louca, fustigado pela chuva e perfurando a treva - vindo de
Peste e em direção a Viena, a Brest, ao Falcônia. Para a África, ao encontro
da paz …
Passava já da meia noite e ainda Kelemen se encontrava no bufete da
estação, a observar a gare através das vidraças. De súbito, deu pela presença
de Kádár junto do comboio de Paris. A mulher ia ao lado dele. O arquiteto
ocupava-se nesse instante em dar uma gorjeta ao empregado da carruagem-
cama, o qual se inclinou em profundo agradecimento. Depois, a senhora
Kádár, num passo leve, saltou para a carruagem, e o marido imitou-a. O
comboio, magnificamente iluminado, pôs-se em movimento, e Kelemen
abandonou a estação, remergulhando na obscuridade, caminhando sob a
chuva miudinha e ao longo de ruas mal limpas e lamacentas. Chegado a
casa, subiu vagarosamente a escada às escuras, tateando a parede para se
não enganar no andar. Doía-lhe a cabeça; sentia uma surda pressão sobre a
nuca, pressão acompanhada de zumbidos.
“Só o que me faltava, era isto!” pensou, furioso. E abriu com estrondo a
porta da casa. Esta estava imersa em trevas. Mas a porta da cozinha
escancarava-se-lhe em frente, e de lá saía um enjoativo cheiro a restos de
comida e à água das lavagens da louça. Pu-á-á! veio-lhe uma náusea,
complicada ainda com o arroto à cerveja que tinha emborcado no bufete da
estação. A pressa, dirigiu-se para o seu quarto, sempre às apalpadelas na
escuridão. à luz crua da lâmpada elétrica não tardou a despenhar-se sobre a
cama já aberta, de colcha no último fio e quase sem sinal de franjas, e sobre
o oleado da mesa.
« Pu-d-á ! Pu-â-ál … » Esta exclamação era a sua mais eloquente forma de
exprimir desgosto. Com gestos bruscos, arrebatados, despiu-se, espalhando
pelo quarto a roupa e arremessando para longe os sapatos.
Ao sentir o contacto úmido e frio da camisa de noite, teve um arrepio.
Depois estendeu-se, o corpo hirto na cama gelada, o olhar perdido na
escuridão.
Subitamente, atravessou-lhe o cérebro uma frase, aquela mesma que, desde
a véspera, desde o último aperto de mão de Kádár, se lhe aninhara no
espírito e ele se esforçava por escorraçar de lá para fora. Essa frase era, na
sua verdade cruel e irrefutável, semelhante a uma sentença derradeira, à
lapidar eloquência dum epitáfio. Ela dizia: “Falhou”. Essa sentença
“falhou” pôs-se-lhe a dançar diante dos olhos, em caracteres brilhantes e
glaciais. Eles tinham abalado.
Kelemen ouviu, vindo da rua, o toque da campainha dum “elétrico” das
carreiras retardatárias; esse som repetiu-lhe: “Falhou”. A atmosfera fria do
quarto cochichou-lhe também: “Falhou.” Tirou as mãos para fora da colcha
e, num gesto infantil e suplicante, levou-as à pobre cabeça dorida,
demasiadamente cansada e exausta para poder refletir, avaliar à justa a sua
situação. Em seguida, outra voz enfraquecida e lamentosa lhe surgiu do
íntimo: “É preciso principiar de novo … voltar atrás, ao ponto de
partida …” Cheio de angústia, escutou um instante essa voz; depois, num
esforço violento, os dentes cerrados, fechou os olhos e voltou-se para a
parede, num movimento de extremo abandono e soltando um débil gemido.
No dia imediato, depois do almoço, subiu as escadas da sua irmã Carlota. O
cunhado saíra já, mas Carlota estava em casa. Desde que se encontrava
outra vez grávida não ia para a loja do marido senão umas duas ou três
horas por dia, e apenas da parte da manhã. A mãe dormia a sesta, como era
seu costume. Yoli, sentada numa cadeira de baloiço, ia entregar-se à leitura
dum romance. Um forte cheiro, a couves empestava a atmosfera da sala de
jantar. “Também eu comi hoje couves, ao almoço”, disse Kelemen, ao
entrar.
- “Este fedor a couves é insuportável, comentou Yoli; já te pedi que abrisses
a janela,” Carlota, lentamente, ergueu o nariz no ar e farejou. “Não é tão
insuportável como isso, replicou; depois queixam-se de que faz frio aqui;
mas se o cheiro é insuportável a esse ponto, não tens mais do que deixar o
livrinho e ires tu própria abrir a janela …” - “Está bem”, disse Yoli,
continuando a leitura.
Kelemen sentou-se à mesa, pegou num palito, apoderou-se depois do
lorgnon da mãe e folheou, por fim, distraídamente, o jornal atirado com
negligência para cima de uma cadeira.
- Que há de novo, André? …- perguntou Carlota.
- Nada - respondeu ele procurando revestir-se de presença de espírito. - Não
leste aquilo? … o vampiro de Dusseldorf …
- Não te faças parvo. Que há de novo a teu respeito? … Nada? …
- Nada - respondeu ele numa voz quebrada de ânimo; - supões que é coisa
assim tão fácil, hoje? …
- Foste lá, a casa dos Menczer? …
- Não - disse ele na mesma voz surda - ainda não fui. A falar com
franqueza, não julgo que aquilo me sirva.
- Isso é que não está bem - replicou a irmã num tom duro de voz - não tens
o direito de formar uma opinião antes de teres ido ter com eles. Tanto mais
que o Carlos já lhes falou de ti … Ele vai ficar pasmado de tu ainda te não
teres dado ao incómodo de ir lá. E à vás? … Já lá foste? …
- Ainda não.
Carlota parou junto da mesa, em atitude um tudo nada teatral:
- André, a falar verdade, não te percebo. Esqueces-te de que são passados
quase cinco meses desde que … Kelemen quis interrompê-la.
Yoli levantou os olhos, mas não abriu a boca.
- Admiras-te depois de que nada dê resultado, e o Carlos bem se pode
cansar a recomendar-te para a direita e para a esquerda … Yolanda, peço-te,
prosseguiu Carlota voltando-se agressivamente para Yoli, sabes bem que
hoje é dia de a criada passar a ferro; estás para aí sem fazer nada,
preguiçosa, enquanto o trabalho cai todo em cima de mim …
- E depois? …
- E depois … A menina não teria a bondade de ajudar-me, não poderia
desembaraçar a mesa?
- Se é preciso, vá lá! … - disse Yoli; em seguida, num gesto indolente,
colocou o livro sobre o parapeito da janela; levantou-se, espreguiçou-se,
deu dois passos para a mesa e tomou na mão os óculos da mãe.
- Olha lá, André - interpelou ela, encarando o irmão - que fazes esta
tarde? …
- Não sei ainda, porquê? …
- Podes levar-me ao cinema, ou a uma pastelaria qualquer? …
- Ao cinema? … Não, francamente, não tenho nenhuma vontade disso …
- Bem, é-me indiferente- continuou Yoli … Desejava falar contigo, com
sossego, durante uma boa meia hora.
- Dar-se-á o caso de eu os incomodar? - perguntou Carlota, num tom
provocador.
- Com toda a certeza - respondeu com tranquilidade a irmã, fixando-a de
maneira insistente.
Então Carlota, furiosa, arremessou para cima da mesa com a escovinha das
migalhas e saiu, batendo com a porta atrás dela. Yoli, em silêncio, tirou a
toalha e atirou-a, juntamente com os guardanapos, para o aparador, para o
lado dos pratos e dos talheres. Findo isto, voltou a sentar-se na cadeira de
baloiço.
No rosto branco de Yoli, escoltando os seus lábios finos, cavavam-se dois
sulcos duros e amargos. Os olhos dela apresentavam círculos azulados em
torno. “
Tem vinte anos e meio”, considerou Kelemen, lançando de soslaio um olhar
à irmã. “Que mau aspecto que ela tem! …” Yoli sentada na cadeira de
baloiço, dobrou as pernas sobre o próprio corpo. Tinha vestida nessa
ocasião uma saia azul escuro, com um pullover branco; por baixo da saia
escapava-se um joelho assim como uma parte da coxa.
“Vê lá se te sentas como deves”, quis ele ainda dizer; mas engoliu essas
suas palavras antes de as ter pronunciado. Caiu o silêncio entre ambos,
apenas perturbado pelo ruidoso ranger duma porta lá para dentro,
assinalando a passagem de Carlota.
Yoli ergueu os olhos.
- É o programa do costume, depois do almoço. Agora, entram as
lágrimas … Meu Deus! que farta estou disto tudo! …
Kelemen tentou fazer desviar a conversa e disse bruscamente:
- Bem, a que cinema queres ir? …
- A nenhum - respondeu Yoli - não tenho a mínima vontade de ir ao cinema;
se te fiz a proposta foi simplesmente para nos desembaraçarmos da Carlota.
O que quero dizer-te, posso muito bem dizer-te aqui mesmo.
- Como quiseres - assentiu André numa voz estrangulada.
Sabia já do que se tratava. Esta conversa não podia deixar de efetuar-se; era
fatal depois daquela rápida frase que em voz baixa, dirigira a Yoli, do
automóvel, quando haviam ido ao monte de S. Gerardo …
Yoli fitou-o novamente, fustigando-o com o facho azul esverdeado das suas
pupilas:
- Eles já partiram? - perguntou na sua voz sacudida.
- Sim.
- Foste acompanhá-los à gare?
- Não, isto … é …
- Como, isto é? … Sim, ou não? …
- Não os acompanhei à gare, mas achei-me, sem bem saber como, no bufete
da estação.
Todavia não lhes fui dizer adeus.
- Compreendo - disse Yoli.
O silêncio caiu de novo entre os dois irmãos, um silêncio glacial que à laia
dê pesada cortina, os isolava do mundo exterior, um silêncio impenetrável,
intenso e impossível de suportar.
- Era isto que querias dizer-me? - perguntou André, apenas para não estar
calado, pois temia sufocar naquele silêncio.
- Sim - replicou Yoli, e novamente emudeceu. - Tu sabes que ele tornou a
passar aqui?
- Quando? …
- Ontem, de tarde. Mas não subiu. Eu ficara toda a tarde à janela, não para
ver se ele vinha, mas apenas porque, não tendo vontade alguma de sair,
queria passar o tempo a olhar a rua. O carro dele parou junto da casa ali
defronte … Não subiu e, depois de estar um bocadinho parado, foi-se
embora. Não chegou mesmo a descer do automóvel. Foi até só pelo carro
que eu conheci.
Novo silêncio; a cadeira de baloiço oscilou.
- Escuta, André, eu queria que … que me respondesses com toda a
franqueza, se puderes. Eu é que estraguei tudo? …
- Peço-te, Yoli … - esforçou-se ele por protestar - Eu não … Não
compreendo a tua pergunta e é, aliás, supérfluo falar agora nestas coisas.
Yoli ergueu-se da cadeira de baloiço. Nas suas faces brancas flamejam duas
manchas dum vermelho ardente.
- André, quanto a mim, não quero já saber do caso para nada, mas é preciso
que nós dois nos entendamos insistiu ela. Com quem queres tu que eu me
abra? … É bem contrariada que o faço, mas é absolutamente necessário,
porque … André, tu sabes, sim, o que ele pretendeu de mim …
Penoso e profundo silêncio, após o que a jovem continuou numa voz
branda, a custo perceptível:
- Sabes o que ele pretendeu de mim, e aconselhaste-me a ser
condescendente …
- Eu? …
- Sabias que eu já não era uma verdadeira donzela … e quiseste que …
- Eu, eu? …
- Sabias que ele me fazia toda a espécie de propostas, que me dirigia
mentiras, loucuras, oferecendo fazer-nos emigrar, a mim e a ti, para a
África …
O seu rosto, sob os cabelos ruivos, era agora todo ele uma ardente mancha.
- Pode ser que tenhas tido razão; simplesmente, o que ignoras é que sou do
género daquelas de que os homens se aborrecem de-pressa, muito de-pressa,
e então … teria sido grave … teria acabado mal … pois tu sabes que ele não
passa de um imundo egoísta … eu pressentia-o, eu sabia-o, e foi por isso
que..
Com os joelhos num tremor doentio, com o vácuo no cérebro, ele teve de ir
apoiar-se ao peitoril da janela, ficando a fitar, de aí, com os olhos fora das
órbitas, a irmã.
- Sabes? Eu fui, sozinha, ter com ele ao hotel … Um silêncio molestou-os
envolveu e oprimiu.
- Declarei-lhe, efetivamente, que nunca … me tocaria, a não ser que se
divorciasse do seu velho camafêu … e que casasse comigo …
Nos ouvidos de Kelemen fêz-se neste momento um medonho zumbido,
semelhante ao uivo de uma sereia e que, brando a princípio, se tornou cada
vez mais agudo, impedindo-o quase de ouvir a voz da irmã;
- Dize-me, André … Fui eu quem estragou o negócio? … Não se deveria
talvez …
ter querido tudo ao mesmo tempo … deveria eu ter-me entregado? … Ver-
se-ia depois? …
Aconselhaste-me a ser condescendente … Pois bem! Fui condescendente
demais, mas não bastou … Dize-me, foi por minha culpa que aquilo se
perdeu, para ti e para mim?
Kelemen tomou, bruscamente, uma atitude fria e dura:
- Não compreendo Yoli, o que estás para aí a dizer.
Perdeste o juízo? … Não sabes o que dizes …
- Visto que estraguei tudo, tanto pior. Também eu perdi completamente o
juízo.
Foi-se a ocasião. Não hei-de morrer por causa disso … Hei-de arranjar-
me … já que não foi ele … pelo menos com o Totó Huszár, e depois com
outros mais …
Num salto, André arremessou-se sobre ela e agarrou-lhe num pulso,
apertando-lho até quase o esmagar:
- Enlouqueceste? … Atreves-te a dizer uma coisa dessas diante de mim,
diante do teu irmão? …
A dor quebrou imediatamente a embriaguez da rapariga, fazendo-a voltar a
si, daquele seu acesso de sinceridade histérica. O tom vermelho
desapareceu-lhe do rosto, a voz retomou o timbre normal; voltou a sentar-se
na cadeira de baloiço e pegou outra vez no livro, que deixara no parapeito
da janela.
- André … seja, não falemos mais nisso.
Kelemen sufocava. Não podia suportar ficar ali mais tempo: “Não posso
ficar aqui nem mais um minuto …” e, neste mesmo instante, abriu-se a
porta do quarto da mãe e a velha senhora apareceu, fitando-a com os olhos
piscos, pesados da longa sesta:
- O quê, meu Andrézinho, tu estás cá? … Não sabia … Yoli, será preciso
pedir-lhes sempre, a ti e à Carlota, que me vão acordar? …
Impossível foi a Kelemen escapar-se. Foi obrigado a ficar uns minutos
mais. Ao observar a idosa senhora, uma dor vaga e inexprimível apertou-lhe
a garganta, um sentimento de piedade quase inconsciente invadiu-lhe o
coração. Uma madeixa de cabelos brancos caía-lhe, do lado direito, sobre a
testa da velha mamã. Ela trazia um vestido de andar por casa, cor de café,
com leite, e apresentava na frente da saia uma grande mancha clara, de
gordura ou coisa idêntica. A biqueira dos sapatos, deformada, recurvava-se
para cima. Kelemen nem temia já sequer que ela lhe fosse fazer perguntas
que o atormentassem e às quais não soubesse responder: “Que fez esse teu
amigo estrangeiro? …
Já encontraste, enfim, um emprego? … Ainda tens dinheiro? …” Nem
sequer temeu agora essas perguntas. O único sentimento que o dominava
então era a piedade por causa daquela madeixa de cabelos brancos caindo
sobre a testa, por causa da nódoa clara da saia e por causa das biqueiras
deformadas. “Pobre mamã! … Também tu, sim, terias aproveitado com
aquilo, minha mamãzinha, minha querida mamãzinha …” - Estou com
bastante pressa, mamã. Voltarei amanhã ou depois, disse ele, ao beijar a
mão da mãe. A Yoli lançou apenas um vago. “Passa bem!”
Na ante-câmara encontrou Carlota, que, amuada, lhe voltou as costas
quando passou ao pé dela.
Encontrou-se depois na avenida, com a chuva a cair-lhe em cima. A água
fustigava o seu guarda-chuva aberto, salpica vá-lhe de lama os sapatos e as
calças arregaçadas. Os transeuntes iam e vinham, movendo-se entre as
umbelas como se fossem títeres suspensos do céu por outros tantos
cordelinhos. “Meu divino Senhor! pensou ele, agora é com Totó Huszár,
amanhã será com outros; com António Kádár é que não, com esse Kádár
que … Foi ela quem estragou o negócio? … Qual negócio, santo Deus?! …
porque eu queria vendê-la … porque eu sabia que ela já não estava virgem,
que já tinha tido um ou mesmo muitos amantes, que o era agora de Totó
Huszár e viria a ser doutros mais?,.. Eu quis vendê-la … Quer eu tivesse
suposto que ela já o deixara de ser … quer eu supusesse de certeza que era
ainda uma donzela, não a teria querido de facto, vender? … Talvez tudo se
tivesse arranjado, tudo se teria passado pelo melhor, tanto para mim como
para ela própria, se aquilo tivesse dado resultado. Mas não deu.” Num
contínuo monólogo, reparou a certa altura em que caminhava precisamente
na direção oposta à da estação do caminho de ferro do Oeste, sítio aonde
tinha uma entrevista marcada. Chovia sempre; rabanadas violentas de vento
sacudiam as árvores despidas e enchardas: “Que tempo tão infame!
Naturalmente, na África do Sul, está sempre bom tempo … E, de súbito,
tomou-o todo uma lassidão de chumbo. Já na véspera se apossara dele
aquela mesma lassidão, quando, depois de uma noite quase toda em claro,
voltara da estação para casa. Estacou defronte da extremidade da ponte, na
paragem do “elétrico”.
Ao longe, do lado da avenida de Pozsony, vinha a chegar um carro. Este
aproximou-se lentamente e parou diante dele. Desceram do veículo dois
operários: “Tens lume?” - perguntou um dos homens para o outro. Uma
senhora gorda e idosa, com um chapéu de plumas, com uma pasta
amarrotadíssima debaixo do braço, subiu para o carro, que se pôs logo em
andamento. “Também eu devia ter subido”, refletiu e, depois de transposto
o extremo da ponte, tomou pela direita, para entrar num largozinho escuro e
onde se não via ninguém. “Eu devia ter enfiado pela esquerda, para o lado
onde há outra paragem de “elétrico”. Os seus passos eram pesados, como se
caminhasse enterrado na lama até aos tornozelos.
Subitamente, sentiu necessidade de sentar-se, com medo de cair para ali.
Encostou-se ao espaldar dum banco, mas este estava molhadíssimo. “Creio
que estou doente …” Escurecia cada vez mais. A fileira de altos candeeiros
projetava, do lado da ponte, uma luz branca. “Tenho de sentar-me, estou
incapaz de dar um só passo mais que seja …” O frio úmido fez-lhe correr
pelas costas um calafrio. “Vou entrar num café para tomar um copo de
cognac … ou, então, encontrarei de-certo aqui, no cais, um abrigo; é mais
perto …” disse consigo mesmo, descendo sempre em direção ao cais. Já há
trinta anos que vivo em Peste, e nunca tinha vindo para estes lados.”
Arrastou-se, com a cabeça perdida, o corpo arquejante de fadiga,
atormentado pela eterna inquietação da fuga.
Atingira já o embarcadoiro e ia agora ao longo dos entrepostos. Cada vez
estava mais escuro … dir-se-ia que se cerrara já a noite! … Uma boa e
tranquila noite, após todos os dias cheios de ruídos e de luz … “Quem me
dera dormir até fartar, pelo menos doze horas por dia, repousar
completamente!” O guarda-chuva foi embater no muro dum armazém.
Afastou-se assustado. Enxergavam-se, no alto, os lampadários do Corso e,
mais acima ainda, as casas despontadas de luzes. Lá muito no alto, via-se
uma janela magnificamente iluminada, num atelier de pintor ou de escultor,
sem dúvida. Os pontos luminosos da ponte tremeluziam a custo na
atmosfera úmida e brumosa. Inesperadamente, acabou ali o alinhamento do
tapume do entreposto e ele encontrou-se ao pé da escada que descia para o
embarcadoiro. Sentou-se aí, num banco, defronte da sala de espera, e
manteve-se com o guarda-chuva em punho, mas pendido para o lado, mal
lhe resguardando a cabeça. Tentou levantar-se, ir-se embora. Nisto, uma
espécie de inércia paralisou-lhe o braço e fez-lhe largar o guarda-chuva, que
bateu no chão com um ruído frouxo e rolou um pouco para diante, antes de
ficar imobilizado, com a parte interior para o céu, como qualquer animal
negro que para ali tivesse rebentado. “Santo Deus! … estou doente, devia ir
para casa, Santo Deus! vou desfalecer. Santo Deus! preciso de apanhar
aquele guarda-chuva … Que vim aqui fazer? … Porque é que não subi para
o “elétrico”? … Meus Deus! faz tanto frio, chove, eu precisava de sol.
Santo Deus eles vão pôr nos jornais: “Em Paks, o rio lançou à margem o
cadáver dum desconhecido”. Não, não é verdade, é o corpo de André
Kelemen, morador em Budapeste … Meus Deus! Tenho de me ir embora
imediatamente … Não me deixo ir abaixo … Não me deixo ir abaixo …” E
neste instante, uma luz pura e fria acendeu-se-lhe no cérebro, a calma pura e
serena da compreensão absoluta das coisas … Ergueu-se, avançou até à
borda da muralha, desceu dois dos degraus aí escavados, “Não … já nada
tenho a fazer. Sou incapaz de recomeçar toda esta vida inútil. É preciso
acabar de-pressa, bem, sem torpeza …” Desceu outros dois degraus. “A
minha vida está liquidada, caí por terra, melhor fora ter morrido durante a
guerra … Melhor fora … Desejaria viver doutra forma … mas é tarde
demais, é muito tarde já. Senhor! Perdoai-me, eu preferiria que isto fosse
doutro modo … Nunca supus que a desgraça se encarniçasse contra mim …
Não sabia que não era apto para criar coisas ou para manter-me, não sabia
que não servia senão para dar cabo de mim … nem mesmo isso … que não
servia senão para estragar tudo! A nossa geração não nasceu para … ela não
pode … já voltar ao princípio … Eu pelo menos, não posso, não … Eu não
queria isso, Senhor! …” Bruscamente o pé direito, que a água molhava já
até ao artelho, teve uma cãibra. Deixou-se cair sobre um dos degraus:
“Como está frio … Que bela cura pela água fria!” O rio apresentava-se
sombrio, inquieto, rápido; ondazinhas espumosas erguiam as suas cristas,
arremessando-as depois para trás … A água já lhe abraçava os joelhos …
a umidade enregelou-lhe imediatamente as pernas, entorpeceu-lhe o
pensamento. “É extraordinário, não está gelada de todo, está quase
morna … E depois, eu sei nadar.
..” O rosto dele tinha uma expressão infantil, amargurada. Estava tudo
escuro; somente algumas luzes vagas e longínquas lhe passavam diante dos
olhos … mas, dentro de si próprio, havia uma luz deslumbrante e pura, um
clarão suave, bom, doce e apaziguador. Subitamente, experimentou uma
sensação igual àquela por que passava outrora, na véspera do Natal, quando
era rapazinho, quando a árvore do Natal toda ornamentada, cheia de
presentes dos pais, se encontrava já pronta na sala de jantar e a porta desta
ainda se mantinha cerrada … Sabia que ia ter um conboiozinho, um castelo,
assim como uma lanterna mágica, brinquedos que mostrara desejos de
possuir …
e o que unicamente ignorava era como seriam o comboiozinho, o castelo e a
lanterna mágica … Sensação agradável, cheia de esperança, de felicidade e
de pressentimentos …
Então, docemente, deixou-se descair no seio da água.
Durou isto apenas um momento. Afundou-se logo. Um turbilhão tomou
conta dele e arrastou-o para a distância dalguns metros de ali. Em seguida, a
água restituiu-o à superfície: a sua cabeça emergiu. Neste instante soltou um
grande e horrível grito, com o desespero daquele que a morte já embebeda
ou que o instinto de conservação acaba de despertar dum delírio: “Só …
cor … or … rol …” O esforço exigido por aquele grito fez-lhe deitar água
pela boca e pelas narinas, mas as roupas molhadas arrastaram-no para o
fundo.
Desapareceu. Agitando furiosamente os braços e as pernas, conseguiu ainda
vir à tona de água uma vez mais, emergir entre as vagas até meio-corpo;
mas reafundou-se logo. O instintivo terror da morte, o último sobressalto da
sua consciência prestes a extinguir-se, fizeram com que expedisse um
derradeiro apelo, que soou com um uivo: “Só … cor … or … ro …” Neste
instante, a água sorveu a voz com um chapinhar cioso e voraz. Acabou-se
tudo.
O eco do seu grito deslizou sobre a superfície da água, foi embater nos
armazéns da margem e penetrou numa casinhota em que dois guardas da
alfândega fumavam de cachimbo, à luz mortiça e avermelhada duma
lâmpada elétrica.
- Estão a bradar por socorro - disse um.
E logo ambos saíram fora. O grito repetiu-se-lhes de novo nos ouvidos e,
iludidos pelo eco, puseram-se a correr na direção oposta. Estava escuro
como breu. Pararam hesitantes.
- Tu vês alguma coisa, José? …
- Não, e tu? …
Ambos olharam para a água negra.
- Contudo, gritaram, e até por duas vezes.
- Sim, não resta dúvida.
Um vento frio, incomodativo, fustigou-lhes o rosto.
- Mas eu não vi passar ninguém por aqui.
- Nem eu tampouco.
Um silêncio. A água chapinhava docemente de encontro à pedra da
muralha.
- Mas eu ouvi qualquer pessoa gritar por duas vezes.
- Sim. Eu também ouvi.
Então, o mais alto dos dois homens encolheu os ombros e desviou-se da
água:
- Em nome de D …! Mas um! assim como assim, já não há nada a fazer.
- Sim, já não há nada a fazer.
Depois, debaixo da chuva lenta e miudinha, recolheram ambos à barraca.

FIM
{1}
Existe em Vacs uma prisão célebre, onde depois da queda do bolchevismo na Hungria eram
encerrados os presos políticos.
{2}
O “fim-de-semana”, período de descanso, hoje generalizado a quase todo o mundo, que vai do
meio-dia de sábado à manhã de segunda-feira.
{3}
Abreviatura familiar de António.
{4}
Moeda húngara, cujo valor atual deve equivaler aproximadamente a um escudo.
{5}
Libra ou arrátel, medida de peso equivalente a 459 gramas.
{6}
Lago da Hungria, rodeado de vastos pântanos.
{7}
O nome da cidade de Presburgo em idioma húngaro.
{8}
As “notas brancas” (assim denominadas porque eram completamente brancas no verso), foram
emitidas na Hungria, pelo governo comunista de Béla-Kun.
{9}
Localidade a uma hora, pouco mais ou menos, de Budapeste em caminho de ferro.
{10}
Oriundo da Suábia, regia antigo ducado do império germânico, entre a Turíngia, a Baviera e a
Suíça.
{11}
Estas estrelas designavam as patentes do exército húngaro.
{12}
Da célebre “lei de Lynch”, espécie de processo sumário, usado nos E. U. da América do Norte,
em que a multidão se arrogava o direito de prender, condenar e executar os criminosos.
{13}
Notas emitidas pelos Correios húngaros e que, entre o povo, gozavam de preferência em relação
às notas do Estado, falsificadas em número ilimitado pelos comunistas.
{14}
É assim que, na Hungria, os homens cumprimentam as damas.
{15}
Expressão, psicologicamente, muito inglesa, de que aproximam as nossas: “jogo franco”, “jogo
leal”, etc.
{16}
Título dos inspetores da Polícia, na Hungria.
{17}
Passeio marginal do Danúbio muito frequentado.
{18}
Ila, diminutivo familiar do Helena, a esposa de Kádár.
{19}
Cadeiras de repouso, próprias de praias.
{20}
Dança e música tradicionais da Hungria.
Digitalização texto Doc: DESCONHECIDA
Formatação/conversão ePub: RELÍQUIA

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