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Ficha Técnica

Título: A Ordem do Dia


Título original: L’ordre du jour
Autor: Éric Vuillard
Edição: Cecília Andrade
Tradução: João Carlos Alvim
Revisão: Clara Joana Vitorino
Capa: Neusa Dias
Fotografia da capa: Gustav Krupp von Bohlen und Halbach
© Georg Pahl, German Federal Archive, Bundesarchiv
ISBN: 9789722064729

Publicações Dom Quixote


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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Para Laurent Évrard
UMA REUNIÃO SECRETA

O Sol é um astro frio. O seu coração, espinhos de gelo. A sua luz, sem
perdão. Em fevereiro, as árvores estão mortas, o rio tornado pedra, como se a
nascente não deitasse água e o mar não conseguisse engolir mais. O tempo
imobiliza-se. De manhã, nem um ruído, nem o canto de um pássaro, nada
mesmo. Depois, um automóvel, outro ainda, e de súbito passos, silhuetas que
se não podem ver. O contrarregra bateu as três pancadas, mas o pano não se
ergueu.
É uma segunda-feira, a cidade agita-se por detrás do ecrã de nevoeiro. As
pessoas vão para o trabalho como nos outros dias, apanham o elétrico, o
autocarro, sobem para a imperial, e ficam a cismar ao frio. Mas o dia 20 de
fevereiro desse ano não foi uma data igual às outras. Contudo, a maioria
passou a manhã em tarefas árduas, mergulhada nessa grande mentira decente
do trabalho, com esses pequenos gestos em que se concentra uma verdade
muda, decorosa, na qual toda a epopeia da nossa existência se resume a uma
pantomima diligente. O dia passou-se assim, em sossego, normal. E enquanto
cada um ia e vinha entre a casa e a fábrica, entre o mercado e o pequeno pátio
em que se estende a roupa, e depois, ao escurecer, entre o escritório e o
botequim, para por fim regressar a casa, longe, bem longe do trabalho
decente, da vida familiar, à beira do Spree, alguns senhores apeavam-se de
viaturas diante de um palacete. Abriram-lhes obsequiosamente as portas dos
carros, e eles desceram dos grandes automóveis negros e passaram uns a
seguir aos outros por sob as pesadas colunas de grés.
Eram vinte e quatro, junto às árvores mortas da margem, vinte e quatro
sobretudos negros, castanhos ou conhaque, vinte e quatro pares de chumaços
acolchoados de lã, vinte e quatro fatos de três peças e um número idêntico de
calças pregueadas, com um grande debrum. As sombras penetraram no
grande vestíbulo do palacete do presidente da Assembleia; em breve, porém,
deixará de haver Assembleia, deixará de haver presidente e, dentro de alguns
anos, deixará até de haver edifício do Parlamento, apenas um monte de ruínas
fumegantes.
De momento, retiram-se vinte e quatro chapéus de feltro e põem-se a
descoberto vinte e quatro crânios calvos ou coroados de cabelos brancos.
Apertam-se dignamente as mãos antes da entrada em cena. Os veneráveis
patrícios estão ali, no grande vestíbulo; trocam pequenos gracejos,
respeitáveis; dir-se-ia estar a assistir às primícias um pouco afetadas de um
garden-party.
As vinte e quatro silhuetas venceram conscienciosamente um primeiro
lanço, depois devoraram um após outro os degraus da escadaria, detendo-se
por vezes para não fatigarem em excesso os corações já idosos, e, de mãos
aferradas ao corrimão de cobre, subiram, de olhos semicerrados, sem
admirarem nem o elegante balaústre, nem as abóbadas, como se passassem
por cima de um montão de invisíveis folhas mortas. Conduziram-nos, por
uma pequena porta, à sua direita, e aí, após darem alguns passos sobre um
chão axadrezado, escalaram os cerca de trinta degraus que levavam ao
segundo piso. Ignoro quem era o primeiro do grupo o que, no fundo, pouco
importa, visto que os vinte e quatro tiveram de fazer exatamente o mesmo,
seguir o mesmo caminho, voltar à direita, em redor da caixa de escada até,
por fim, infletindo para a esquerda, onde as portas de batente estavam
escancaradas, entrarem no salão.
A literatura autoriza tudo, diz-se. Poderia, por conseguinte, fazê-los rodar
indefinidamente na escada de Penrose, sem que pudessem nunca mais subir
ou descer, obrigados a fazer ao mesmo tempo uma e outra coisa. E, na
verdade, é um pouco esse o efeito que os livros têm sobre nós. O tempo das
palavras, compacto ou líquido, impenetrável ou cheio de pormenores, denso,
alongado, granuloso, petrifica os movimentos, imobiliza todos os que se
confrontam com ele. As nossas personagens entraram no palacete para todo o
sempre, como num castelo enfeitiçado. Ei-los fulminados logo à entrada,
lapidificados, transidos. As portas estão ao mesmo tempo abertas e fechadas,
as impostas desgastadas, arrancadas, destruídas ou pintadas de novo. A caixa
de escada brilha, mas está vazia, o lustre cintila, mas está morto. Estamos em
simultâneo por toda a parte, no tempo. Por exemplo, Albert Vögler subiu a
escada até ao primeiro patamar e, aí, levou a mão ao colarinho, a transpirar, a
escorrer mesmo, sentindo uma ligeira vertigem. Sob o grande lampião
dourado que ilumina a escadaria, endireita o colete, abre um botão, alarga o
colarinho. Talvez Gustav Krupp tenha também feito uma pausa no patamar e
dirigido uma palavra de compaixão a Albert, um pequeno apotegma a
respeito da velhice, lhe tenha, em suma, dado mostras de solidariedade.
Depois, Gustav retomou o caminho e Albert Vögler permaneceu ali, uns
instantes mais, sozinho sob o lustre, grande vegetal revestido de ouro, tendo,
ao meio, uma enorme bola de luz.
Por fim, entraram no pequeno salão. Wolf-Dietrich, secretário particular de
Carl von Siemens, demorou-se um pouco junto da janela de sacada, deixando
vaguear os olhos pela leve camada de orvalho que cobria a varanda. Escapa
por momentos à torpe cozinha do mundo, entre os flocos de neve, ali
suavemente adormentados. E enquanto os outros trocam algumas palavras e
fumam um Montecristo, discorrendo acerca do creme ou do acinzentado do
invólucro, preferindo uns o sabor macio, outros, um gosto a especiarias, todos
no entanto adeptos dos diâmetros enormes, do género osso de carneiro, ou
apertam distraidamente os anéis de ouro fino, ele, Wolf-Dietrich, perde-se em
sonhos diante da janela, ondeia entre os ramos despidos das árvores e flutua
sobre o Spree.
A alguns passos de si, a admirar as delicadas figurinhas de estuque que
ornamentam o teto, Wilhelm von Opel ergue e baixa os grossos óculos
redondos. Mais um, cuja família se acercou de nós desde a noite dos tempos,
desde o pequeno proprietário de terras da paróquia de Braubach, das
promoções por acumulação de togas e de fasces, de pequenas quintas e
empregos públicos, magistrados primeiro, depois burgomestres, até ao
instante em que Adam – saído das entranhas indecifráveis da mãe, tendo em
seguida assimilado todas as astúcias da serralharia – concebera uma
maravilhosa máquina de coser que fora o verdadeiro início da sua glória.
Contudo, não inventou nada. Arranjou trabalho num fabricante, observou,
deixou passar o tempo à espera de melhores dias, e depois aperfeiçoou um
pouco os modelos disponíveis. Casou-se com Sophie Scheller, que lhe trouxe
um dote substancial, e batizou com o nome da mulher a sua primeira
máquina. A produção começou então a aumentar. Bastaram alguns anos para
a máquina de coser passar a ser usada, cruzar a curva do tempo e integrar-se
nos hábitos correntes. Os seus verdadeiros inventores tinham chegado cedo
de mais. Uma vez garantido o sucesso das máquinas de coser, Adam Opel
tinha-se lançado no velocípede. Mas uma noite, uma voz estranha infiltrara-se
pela porta entreaberta; o seu coração pareceu-lhe então frio, tão frio. Não
eram os inventores da máquina de coser a exigir os seus direitos, não eram os
operários a reivindicar a sua parte dos lucros, era Deus que reclamava a sua
alma; foi necessário entregá-la.
Mas as empresas não morrem como os homens. São corpos místicos que
nunca perecem. A marca Opel continuou a vender bicicletas e passou, depois,
aos automóveis. A empresa já tinha mil e quinhentos empregados por ocasião
da morte do fundador. Não parou de crescer. Uma empresa é uma pessoa cujo
sangue lhe sobe à cabeça. Chama-se a isso uma pessoa moral. A sua vida
dura muito para além das nossas. De forma que, nesse 20 de fevereiro em que
Wilhelm medita no pequeno salão do palacete do presidente do Reichstag, a
companhia Opel é já uma velha senhora. Hoje, não passa de um império
incorporado noutro império e tem uma relação apenas muito longínqua com
as máquinas de coser do velho Adam. E, se a companhia Opel é uma anciã
muito rica, ela é, contudo, tão velha que já quase não reparam nela, tornou-se
parte da paisagem. É que agora a companhia Opel é muito mais velha do que
numerosos Estados, mais velha do que o Líbano, mais velha do que a própria
Alemanha, mais velha do que a maioria dos Estados africanos, mais velha do
que o Butão, onde, no entanto, os deuses se eclipsaram nas nuvens.
AS MÁSCARAS

Poderíamos aproximar-nos assim sucessivamente de cada um dos vinte e


quatro senhores que entram no palacete, roçar de leve a abertura dos
colarinhos, o nó das gravatas, perdermo-nos por instantes no roçagar dos
bigodes, deixarmo-nos sonhar no riscado tigre dos casacos, mergulhar nos
seus olhos tristes e aí, no fundo extremo da flor de arnica amarela e picante,
daríamos com a mesma pequena porta; puxaríamos o cordão da sineta,
remontaríamos de novo até ao tempo em que teríamos direito a uma mesma
sucessão de manobras, de casamentos elegantes, de operações duvidosas – a
história monótona das suas façanhas.
Nesse 20 de fevereiro, Wilhelm von Opel, o filho de Adam, escovou
definitivamente o sebo que tinha incrustado nas unhas, arrumou o velocípede,
esqueceu a máquina de coser e usa uma partícula nobiliárquica em que se
resume toda a saga da sua família. Do alto dos seus sessenta e dois anos,
tossica enquanto olha para o relógio. De lábios cerrados, deita um olhar a
toda a volta. Hjalmar Schacht trabalhou bem – será em breve nomeado
diretor do Reichsbank e ministro da Economia. Em redor da mesa, estão
reunidos Gustav Krupp, Albert Vögler, Günther Quandt, Friedrich Flick,
Ernst Tengelmann, Fritz Springorum, August Rosterg, Ernst Brandi, Karl
Büren, Günther Heubel, Georg von Schnitzler, Hugo Stinnes Jr., Eduard
Schulte, Ludwig von Winterfeld, Wolf-Dietrich von Witzleben, Wolfgang
Reuter, August Diehn, Erich Fickler, Hans von Loewenstein zu Loewenstein,
Ludwig Grauert, Kurt Schmitt, August von Finck e o Dr. Stein. Estamos no
nirvana da indústria e da finança. Estão agora silenciosos, muito ajuizados,
um pouco fartos de esperar há quase vinte minutos; o fumo dos grandes
charutos faz-lhes arder os olhos.
Num quase recolhimento, algumas sombras detêm-se diante de um espelho
e ajustam o nó da gravata; todos, no pequeno salão, arranjam forma de se pôr
à vontade. Algures, num dos seus quatro livros de arquitetura, Palladio define
muito vagamente o salão como um lugar de receção, a cena em que decorrem
as comédias da nossa existência; e na célebre Villa Godi Malinverni, a partir
da sala do Olimpo, onde deuses nus se entregam a folguedos num cenário de
ruínas, e da sala de Vénus, onde uma criança e um pajem se escapam através
de uma falsa porta pintada, chega-se ao salão central onde se pode ler numa
moldura, por cima da entrada, o fim de uma oração: «E livrai-nos do mal.»
Mas no palacete do presidente da Assembleia, onde a nossa pequena receção
decorria, seria inútil procurar semelhante inscrição; ela não estava na ordem
do dia.
Alguns minutos passaram com lentidão sob o teto alto. Trocaram-se
sorrisos. Abriram-se pastas de couro. Schacht erguia de quando em vez os
seus óculos finos e esfregava o nariz, a língua na comissura dos lábios. Os
convidados mantinham-se disciplinadamente sentados, dirigindo para a porta
os seus olhinhos de caranguejo. Segredava-se entre dois espirros. Abria-se
um lenço, as narinas trombeteavam no meio do silêncio, e depois
recompunha-se a atitude, na espera paciente do começo da reunião. De
reuniões estavam eles fartos de saber, todos participavam em inúmeros
conselhos fiscais ou de administração, todos eram membros de uma qualquer
associação patronal. Para já não falar das sinistras reuniões de família desse
patriarcado austero e aborrecido.
Na fila dianteira, Gustav Krupp afaga com a luva o rosto rubicundo, assoa-
se e cospe religiosamente no lenço, está constipado. Com a idade, os lábios
finos começam a desenhar uma feia lua crescente invertida. Tem um ar triste
e inquieto; roda maquinalmente nos dedos um belo anel de ouro, por entre a
névoa das esperanças e dos cálculos – sendo bem possível que, para ele, estas
duas palavras tenham um único significado, como se tivessem sido
lentamente magnetizadas uma pela outra.

De repente, portas e soalhos rangem; conversa-se na antecâmara. Os vinte e


quatro lagartos soerguem-se nas patas traseiras e põem-se muito direitos.
Hjalmar Schacht engole a saliva, Gustav reajusta o monóculo. Por detrás dos
batentes de porta, ouvem-se vozes abafadas e, depois, um sibilar inquietante.
Por fim, o presidente do Reichstag entra a sorrir no salão; é Hermann Göring.
E isso, longe de nos surpreender, não passa, no fundo, de um evento bastante
banal, de uma rotina. Na vida de negócios, as lutas partidárias representam
pouco. Políticos e industriais estão habituados a frequentarem-se.
Göring deu a volta à mesa, dirigindo uma palavra a cada um deles,
cumprimentando-os com um aperto de mão cordial. Mas o presidente do
Reichstag não foi ali apenas para os receber, engrola algumas palavras de
boas-vindas e evoca de imediato as próximas eleições de 5 de março. As
vinte e quatro esfinges escutam-no com atenção. A campanha eleitoral que
está à porta é decisiva, declara o presidente do Reichstag, é preciso acabar
com a instabilidade do regime; a atividade económica exige calma e firmeza.
Os vinte e quatro senhores acenam religiosamente com a cabeça. As
lâmpadas do lustre parecem piscar, o grande sol pintado no teto brilha agora
mais do que há pouco. E se o partido nazi obtiver a maioria, acrescenta
Göring, estas eleições serão as últimas nos próximos dez anos; e até –
acrescenta, rindo – nos próximos cem.
Um movimento de aprovação percorreu a assembleia. Nesse mesmo
instante, houve alguns ruídos de portas, e o novo chanceler entrou enfim no
salão. Os que nunca se tinham avistado com ele estavam curiosos de o ver.
Hitler estava sorridente, descontraído, nada como o imaginavam, afável, sim,
até amável, muito mais do que poderia pensar-se. Teve para cada um deles
uma palavra de agradecimento, um aperto de mão tonificante. Uma vez feitas
as apresentações, todos voltaram a sentar-se nas suas poltronas confortáveis.
Krupp estava num dos lugares dianteiros, ajeitando com dedos nervosos o seu
minúsculo bigode; mesmo atrás dele, dois dirigentes da IG Farben, mas
também von Finck, Quandt e alguns outros cruzaram doutamente as pernas.
Houve uma tosse cavernosa, a tampa de uma caneta soltou um ligeiro
estalido. Silêncio.
Escutaram. O essencial da mensagem cingia-se a isto: era preciso pôr termo
a um regime fraco, afastar a ameaça comunista, suprimir os sindicatos e
permitir que cada patrão seja um Führer na sua empresa. O discurso durou
uma meia hora. Quando Hitler terminou, Gustav levantou-se, deu um passo
em frente e, em nome de todos os convidados presentes, agradeceu-lhe o ter
por fim clarificado a situação política. O chanceler voltou a dar uma rápida
volta à mesa antes de se ir embora. Felicitaram-no, mostraram-se corteses. Os
velhos industriais pareciam aliviados. Depois de ele se retirar, Göring tomou
a palavra, reiterando energicamente algumas ideias, para depois evocar de
novo as eleições de 5 de março. Tratava-se de uma ocasião única para sair do
impasse em que se estava. Mas era preciso dinheiro para a campanha; ora o
partido nazi não tinha cheta e a campanha eleitoral aproximava-se. Foi nessa
altura que Hjalmar Schacht se ergueu, sorriu à assembleia e proferiu: «E
agora, meus senhores, é passar à caixa!»
Este convite, decerto um pouco desenvolto, não representava nada muito
novo para aqueles homens; estavam habituados às luvas e aos pagamentos
por baixo da mesa. A corrupção é uma rubrica incompressível do orçamento
das grandes empresas, a que se dá vários nomes, lobbying, prendas,
financiamento dos partidos. A maioria dos convidados fez pois de imediato
entrega de algumas centenas de milhares de marcos, Gustav Krupp doou um
milhão, Georg von Schnitzler quatrocentos mil, tendo-se assim apurado uma
soma nada desprezível. Esta reunião de 20 de fevereiro de 1933, na qual se
poderia ver um momento único da história patronal, um comprometimento
inaudito com os nazis, nada mais é para os Krupp, os Opel, os Siemens que
um episódio bastante vulgar da vida dos negócios, uma banal recolha de
fundos. Todos eles sobreviverão ao regime e financiarão no futuro um sem-
número de partidos, em função das suas performances.
Mas para se compreender melhor o que é a reunião de 20 de fevereiro, para
captar bem o seu caráter de eternidade, é preciso passar a chamar estes
homens pelo seu nome. Já não são Günther Quandt, Wilhelm von Opel,
Gustav Krupp, August von Finck a estar ali, nesse fim de tarde de 20 de
fevereiro de 1933, no palacete do presidente do Reichstag; são outros nomes
que é preciso mencionar. Porque Günther Quandt é um criptónimo, dissimula
algo bem diferente do homenzarrão que suja os bigodes e se mantém
gentilmente no seu lugar, em volta da mesa de honra. Por detrás dele, mesmo
atrás, está uma silhueta bem mais imponente, uma sombra tutelar, tão fria e
impenetrável como uma estátua de pedra. Sim, sobrepujando poderosamente,
feroz, anónima, a figura de Quandt, e conferindo-lhe essa rigidez de máscara,
mas de uma máscara que se colasse ao rosto melhor do que a própria pele,
adivinha-se acima dele: Accumulatoren-Fabrick AG, a futura Varta, que nós
conhecemos, uma vez que as pessoas morais têm os seus avatares, tal como
as divindades antigas assumiam diversas formas e, ao longo do tempo,
incorporavam outros deuses.
É pois esse o nome autêntico dos Quandt, o seu nome de demiurgo, visto
que ele, Günther, não passa de um montinho de carne e osso, como o leitor e
eu, e uma vez que, depois dele, os filhos e os filhos dos filhos hão de por sua
vez ocupar o trono. Mas o trono, esse, permanece, enquanto o montinho de
carne e osso apodrece na terra. Assim, os vinte e quatro não se chamam nem
Schnitzler, nem Witzleben, nem Schmitt, nem Finck, nem Rosterg, nem
Heubel, como os seus cartões de identidade nos fazem crer. Chamam-se
BASF, Bayer, Agfa, Opel, IG Farben, Siemens, Allianz, Telefunken. Por
estes nomes, conhecemo-los. Conhecemo-los até muito bem. Estão aí, no
meio de nós. São os nossos carros, as nossas máquinas de lavar, os nossos
produtos de limpeza, os nossos despertadores, o seguro da casa, a pilha do
relógio. Estão aí, em toda a parte, sob a forma de coisas. O nosso quotidiano
pertence-lhes. Cuidam de nós, vestem-nos, iluminam-nos, transportam-nos
pelas estradas do mundo, embalam-nos. E os vinte e quatro homens presentes
no palacete do presidente do Reichstag, nesse 20 de fevereiro, são apenas os
seus mandatários, o clero da grande indústria; os sacerdotes de Ptah.
Mantêm-se aí impassíveis, como vinte e quatro máquinas de calcular às
portas do Inferno.
UMA VISITA DE CORTESIA

Uma propensão obscura deixou-nos à mercê do inimigo, passivos e cheios


de medo. Desde então, os nossos livros de História examinam esse
acontecimento assustador, em que a fulgurância e a razão teriam coincidido.
Desse modo, uma vez convertido o alto clero da indústria e da banca e
reduzidos ao silêncio os opositores, os únicos adversários sérios do regime
passaram a ser as potências estrangeiras. O tom foi aos poucos subindo com a
França e a Inglaterra, numa mistura de golpes e de palavras apaziguadoras. E
foi assim que em novembro de 1937, entre dois movimentos de irritação,
depois de alguns protestos puramente formais a propósito da anexação do
Sarre, da remilitarização da Renânia ou do bombardeamento de Guernica
pela legião Condor, Halifax, lorde presidente do Conselho, foi à Alemanha, a
título pessoal, a convite de Hermann Göring, ministro do Ar, comandante em
chefe da Luftwaffe, ministro do Reich para a floresta e a caça, presidente do
defunto Reichstag – criador da Gestapo. Muita coisa na verdade, mas Halifax
não manifesta qualquer surpresa, não lhe parece estranho aquele tipo lírico e
truculento, notório antissemita, carregado de condecorações. E não se pode
dizer que Halifax tenha sido aldrabado por alguém que escondia o jogo, que
não tenha reparado nos trajes de dândi, nos infindáveis títulos, na retórica
delirante, tenebrosa, na silhueta pançuda; não. Nessa época, já tinha passado
muito tempo desde a reunião de 20 de fevereiro, os nazis já se tinham
deixado de comedimentos. Além disso, tinham ido juntos à caça, tinham rido,
tinham jantado juntos; e Hermann Göring que não era parco em
demonstrações de ternura e de simpatia, que tinha sonhado ser ator e que à
sua maneira acabara por sê-lo, deve ter-lhe dado palmadinhas no ombro, deve
tê-lo trazido nas palminhas, ao bom do Halifax, e lançado em rosto um
aranzel de sentido ambíguo, desses que deixam o destinatário desconcertado,
pouco à vontade, como se de uma alusão sexual se tratasse.
Tê-lo-ia o grande caçador enrolado na sua echarpe de bruma e poeira?
Contudo, Lorde Halifax, tal como os vinte e quatro grandes sacerdotes da
indústria alemã devia saber alguma coisa a respeito de Göring, devia
conhecer um pouco a sua história, a sua vida de golpista, o gosto pelos
uniformes de fantasia, o vício da morfina, o internamento na Suécia, o
diagnóstico devastador a respeito das violências, da confusão mental, da
depressão, das tendências suicidas. Não podia ater-se ao herói do batismo do
ar, ao piloto da Primeira Guerra, ao comerciante de paraquedas, ao velho
soldado. Não era um ingénuo ou um amador, Halifax, e devia estar
demasiadamente bem informado para não ter achado um pouco curioso
aquele passeio, no decurso do qual os dois são vistos, num pequeno filme, a
admirar o parque de bisontes onde Göring, furiosamente descontraído,
providencia as suas lições de bem-estar. Não pode deixar de ver a estranha
pequena pluma que tem no chapéu, a gola de pele, a gravata bizarra. Talvez
Halifax goste também da caça, como gostava o pai, e nesse caso ter-se-á
sentido bem na Schorfheide, mas é impossível que não tenha visto o estranho
casaco de couro usado por Hermann Göring, nem o punhal à cintura, tal
como não pode ter deixado de ouvir as alusões sinistras envoltas em gracejos
licenciosos. Viu-o talvez atirar com arco, vestido de saltimbanco; viu sem
dúvida os animais selvagens domesticados, o leãozinho a ir lamber o rosto do
dono. E mesmo que não tenha visto nada disso, mesmo se se limitou a passar
um tempo com Göring, ouviu seguramente falar dos imensos circuitos de
comboiozinhos para crianças na cave da casa e ouviu-o fatalmente murmurar
uma série de disparates esquisitos. E Halifax, a velha raposa, não pôde
ignorar a sua egomania delirante; viu-o talvez mesmo largar bruscamente o
volante do seu descapotável e gritar ao vento! Sim, não pode ter deixado de
adivinhar o núcleo aterrador, por sob a máscara pastosa e inchada. Além
disso, avistou-se com o Führer; e também nesse caso será que Halifax não viu
nada? Ignorando as reservas de Eden, chegou ao ponto de dar a entender a
Hitler que as pretensões alemãs relativas à Áustria e a uma parte da
Checoslováquia não pareciam ilegítimas ao governo de Sua Majestade, desde
que isso ocorresse em paz e em concertação. Halifax não é nenhum intratável.
Mas um último episódio dá bem o tom da personagem. Junto a
Berchtesgaden, aonde o tinham conduzido, Lorde Halifax avistou uma
silhueta perto do carro, que tomou pela de um criado. Imaginou que o homem
tinha ido ao seu encontro, para o ajudar a subir os degraus da escadaria
exterior. De modo que, quando ele lhe abriu a porta do carro, Halifax
estendeu-lhe o sobretudo. Mas, de imediato, von Neurath ou outro qualquer,
um criado talvez, lhe segredou ao ouvido num tom rouco: «O Führer!» Lorde
Halifax levantou os olhos. Com efeito, tratava-se de Hitler. Tinha-o tomado
por um lacaio! É que não se tinha dignado a erguer o nariz, como contará
mais tarde no seu livrinho de Memórias, Fulness of Days: de início só lhe viu
as calças e, logo abaixo, um par de sapatos. O tom é irónico, Lorde Halifax
tenta fazer-nos rir. Mas não penso que isso seja engraçado. O aristocrata
inglês, o diplomata que se ergue orgulhosamente por detrás da sua pequena
linha de antepassados, surdos como trombones, tontos como asnos, limitados
como fields, deixam-me frio. Não foi o muito honorável primeiro visconde de
Halifax, que, na qualidade de chanceler do Tesouro, se opôs firmemente a
que fosse concedida qualquer ajuda suplementar à Irlanda durante todo o
tempo em que desempenhou esse cargo? A fome provocou um milhão de
mortos. E o muito honorável segundo visconde, o pai de Halifax, que foi
criado de quarto do rei e colecionador de histórias de fantasmas que, após a
sua morte, foram publicadas por um dos seus filhos fantasma, será que
alguém se pode realmente esconder atrás dele? E depois essa inépcia não tem
nada de excecional, não é a gafe de um velho irrefletido, é uma cegueira
social, uma forma de arrogância. Em contrapartida, no que toca às ideias,
Halifax não tem grandes pudores. Assim, a propósito da sua entrevista com
Hitler, escreverá a Baldwin: «O nacionalismo e o racismo são forças
poderosas, mas não as considero nem contranatura, nem imorais!»; e um
pouco mais tarde: «Não tenho dúvidas de que estas pessoas detestam
verdadeiramente os comunistas. E asseguro-lhe que, se estivéssemos no lugar
deles, sentiríamos a mesma coisa.» Tais foram as premissas daquilo que
ainda hoje se chama a política de apaziguamento.
INTIMIDAÇÕES

Estava-se pois na fase das visitas de cortesia. Contudo, a 5 de novembro,


cerca de doze dias antes de Lorde Halifax ter ido falar de paz com os
alemães, Hitler tinha confidenciado aos chefes das suas forças armadas como
é que planeava ocupar pela força uma parte da Europa. Invadir-se-ia primeiro
a Áustria e a Checoslováquia. É que se vivia mesquinhamente na Alemanha,
e já que nunca se atinge a verdadeira dimensão do que se deseja, que a cabeça
está sempre a voltar-se para os horizontes sem brilho, e que uma pitada de
megalomania acrescentada às perturbações paranoicas torna a propensão
ainda mais irresistível, depois dos delírios de Herder e do discurso de Fichte,
depois do espírito de um povo celebrado por Hegel e do sonho de Schelling a
respeito de uma comunhão dos corações, a noção de espaço vital não era uma
novidade. Decerto, esta reunião tinha-se mantido secreta, mas percebe-se um
pouco que género de ambiente devia reinar em Berlim, a poucos dias da
chegada de Halifax. E isso não é ainda tudo. A 8 de novembro, nove dias
antes da sua visita, Goebbels tinha inaugurado uma grande exposição de arte,
em Munique, cujo tema era «O Judeu eterno». Era esse o cenário. Ninguém
podia ignorar os projetos dos nazis, as suas intenções brutais. O incêndio do
Reichstag, no dia 27 de fevereiro de 1933, a abertura de Dachau, nesse
mesmo ano, a esterilização dos doentes mentais, ainda no mesmo ano, a
Noite das Facas Longas, no ano seguinte, as leis de salvaguarda do sangue e
da honra alemã, o recenseamento das características raciais, em 1935; era
realmente muita coisa.
Na Áustria, para onde se voltaram de imediato as ambições do Reich, o
chanceler Dollfuss, que se tinha apropriado – do alto do seu pequeno metro e
cinquenta – de todos os poderes, fora assassinado por nazis austríacos, logo
em 1934. Schuschnigg, que lhe sucedera, tinha prosseguido a sua política
autoritária. A Alemanha tinha então desenvolvido durante vários anos uma
diplomacia hipócrita, uma mistura de atentados, de chantagem e de sedução.
Enfim, três meses volvidos sobre a visita de Halifax, Hitler subiu de tom.
Schuschnigg, o pequeno déspota austríaco, é convocado para a Baviera,
chegou a hora do diktat; o tempo das manobras clandestinas chegou ao fim.

No dia 12 de fevereiro de 1938, Schuschnigg vai pois a Berchtesgaden,


para se encontrar com Adolf Hitler. Chega à estação disfarçado de esquiador
– o pretexto para a sua viagem é ir gozar alguns dias de desportos de inverno.
E, enquanto o equipamento de esqui é levado para o comboio, as festividades
em Viena estão no auge. Está-se no carnaval; as datas mais alegres coincidem
assim com os encontros sinistros da História. Fanfarra, quadrilha, peça final.
Executa-se uma das cento e cinquenta valsas de Strauss, recheada de
elegância e de encanto, sob uma avalancha de doçarias. O carnaval de Viena
é, decerto, menos conhecido que os de Veneza ou do Rio. Não se usam ali
máscaras tão belas e as pessoas não se entregam a danças tão febris. Não.
Nada mais é do que uma série de bailes. Mas é ainda assim uma imensa festa.
Os corpos constituídos do pequeno Estado católico e corporativo organizam
as celebrações. Assim, enquanto a Áustria agoniza, o seu chanceler,
disfarçado de esquiador, desaparece na noite para uma viagem improvável, e
os austríacos divertem-se.

Já de manhã, na estação de Salzburgo, há apenas um cordão de polícia. O


tempo está húmido e frio. O carro que transporta Schuschnigg passa pelo
campo de aviação e, depois, toma a estrada nacional; o céu cinzento fá-lo
sonhador. O seu devaneio acompanha as oscilações do carro, mistura-se com
os pedaços de geada. A vida é toda ela miserável e solitária; todos os
caminhos são tristes. Quando a fronteira se aproxima, Schuschnigg é tomado
por uma brusca apreensão; tem a sensação de estar prestes a descobrir a
verdade; olha para o crânio do condutor.
Von Papen foi recebê-lo à fronteira. O seu longo rosto elegante tranquiliza
o chanceler. Ao entrar para o carro, Von Papen anuncia-lhe que três generais
alemães assistirão à conferência – «Espero que não veja nisso
inconveniente», acrescenta, com negligência. A tentativa de intimidação é
grosseira. As manobras mais brutais deixam-nos sem voz. Não se ousa dizer
o que quer que seja. Um ser demasiado educado, demasiado tímido, lá bem
no fundo de nós, responde em nosso lugar; diz o contrário do que seria
preciso dizer. De modo que Schuschnigg não protesta e o carro prossegue o
seu caminho, como se nada se tivesse passado. Enquanto o seu olhar morto se
fixa na berma da estrada, um camião militar ultrapassa-os, seguido por dois
carros blindados das SS. O chanceler austríaco sente uma angústia surda.
Para que foi ele meter-se naquele vespeiro? Lentamente, iniciam a subida
para Berchtesgaden. Schuschnigg fixa o cimo dos pinheiros, esforçando-se
por controlar o seu mal-estar. Segue em silêncio. Von Papen também não diz
palavra. E então a viatura chega ao Berghof, a porta abre-se e volta a fechar-
se. Schuschnigg tem a sensação de ter caído numa armadilha horrível.
A ENTREVISTA DO BERGHOF

Pelas onze da manhã, após algumas figuras de cortesia, as portas do


gabinete de trabalho de Adolf Hitler fecham-se nas costas do chanceler da
Áustria. É então que tem lugar uma das cenas mais fantásticas e grotescas de
todos os tempos. Temos sobre ela um único testemunho. O de Kurt von
Schuschnigg.
É no capítulo mais doloroso das suas Memórias, Requiem pela Áustria,
que, após uma epígrafe um pouco pedante de Tasso, a sua pequena descrição
tem início junto de uma das janelas do Berghof. O chanceler da Áustria acaba
de sentar-se, a convite do Führer, cruza e descruza as pernas, pouco à
vontade. Sente-se entorpecido, desprovido de forças. A angústia de há pouco
está de novo presente, suspensa nos caixotões dos tetos, oculta nas poltronas.
Sem saber bem o que dizer, Schuschnigg volta a cabeça e põe-se a admirar a
paisagem; depois evoca, com entusiasmo, os encontros decisivos que devem
ter ocorrido naquele gabinete. De imediato, Hitler dirige-se-lhe com aspereza:
«Não estamos aqui para falar nem da vista nem do tempo!» Schuschnigg está
paralisado; tenta então, mediante um discurso empolado e inábil, sair daquela
situação difícil, e evoca o pobre acordo austro-alemão de julho de 1936,
como se tivesse ido ali apenas para esclarecer algumas pequenas dificuldades
passageiras. Enfim, num impulso desesperado, agarrado à sua boa-fé como a
uma pobre boia de salvamento, o chanceler austríaco declara ter posto em
prática durante os últimos anos uma política pró-alemã, decididamente pró-
alemã! Era a oportunidade que Hitler esperava.
Urra: «Ah! Chama a isso uma política pró-alemã, senhor Schuschnigg?
Pelo contrário, o senhor fez tudo para evitar desenvolver uma política
favorável à Alemanha!» E, após uma desajeitada tentativa de justificação por
parte de Schuschnigg, Hitler, fora de si, sobe ainda mais o tom: «Aliás, a
Áustria nunca fez nada para ajudar o Reich. A sua história é uma sequência
ininterrupta de traições.»
As mãos de Schuschnigg ficam imediatamente húmidas de suor; o aposento
parece-lhe desmedidamente grande! Contudo, tudo tem uma aparência calma.
As poltronas revestidas de um forro vulgar, as almofadas muito confortáveis,
os painéis de madeira regulares, os abat-jour cercados por pequenos
pompons. De súbito, Schuschnigg está sozinho sobre a erva fria, debaixo de
um grande céu de inverno, face às montanhas. A janela torna-se imensa.
Hitler observa-o com os seus olhos pálidos. Schuschnigg volta a cruzar as
pernas e endireita os óculos.

De momento, Hitler chama-lhe «senhor» e Schuschnigg, imperturbável,


continua a chamá-lo «chanceler»; Hitler despachou-o, e Schuschnigg, para se
justificar, vangloriou-se de ter posto em prática uma política pró-alemã; eis
que agora o chanceler alemão insulta a Áustria, indo mesmo a ponto de gritar
que a sua contribuição para a história alemã é igual a zero, e Schuschnigg,
tolerante, magnânimo, em vez de voltar costas e de pôr termo ao insulto,
procura desesperadamente na memória, como um bom aluno, um exemplo da
famosa contribuição austríaca para a História. A toda a velocidade,
completamente desorientado, procura nos bolsos dos séculos. Mas a sua
memória está vazia, o mundo está vazio, a Áustria está vazia. E os olhos do
Führer fixam-no obstinadamente. Então de que é que ele se lembra,
pressionado pelo desespero? Beethoven. Lembra-se do bom do Ludwig van
Beethoven, o surdo irascível, o republicano, o solitário desesperado. É a
Beethoven que recorre, ao filho de um alcoólico, ao de pele trigueira; é ele
que Kurt von Schuschnigg, o chanceler da Áustria, o pequeno aristocrata
racista e timorato, extrai do bolso da História e exibe de súbito como um
trapo branco diante do rosto de Hitler. Pobre Schuschnigg. Vai buscar um
músico para o opor ao delírio, vai buscar a Nona Sinfonia contra a ameaça de
uma agressão militar, vai em busca das três pequenas notas da Appassionata,
para demonstrar que a Áustria teve de facto um papel na História.
«Beethoven não é austríaco», responde-lhe então Hitler – numa imprevista
bicada – «é alemão.» E é verdade. Schuschnigg nem sequer tinha pensado
nisso. Beethoven é alemão, é indiscutível. Nasceu em Bona. E Bona, seja de
que maneira for, por mais que se forcem discretamente as coisas e se procure
em todos os anais da História, nunca foi uma cidade austríaca, nunca mesmo.
Bona está tão longe da Áustria como Paris! Por essa ordem de ideias, poder-
se-ia dizer que Beethoven é romeno, ou mesmo ucraniano, territórios que não
ficam mais longe. E porque não croata, já que estamos nisso, ou marselhês,
visto que de qualquer modo Marselha não fica muito mais longe do que
Viena?
«É verdade», balbucia Schuschnigg, «mas é austríaco por adoção.»
Decididamente, está-se bem longe de uma reunião entre chefes de Estado.

O tempo estava desagradável. A entrevista chegou ao seu termo. Foi ainda


preciso almoçarem juntos. Desceram as escadas lado a lado. Antes de
entrarem na sala de jantar do Berghof, Schuschnigg reparou num retrato de
Bismarck: a pálpebra esquerda do grande chanceler cai inexoravelmente
sobre a vista, o olhar é frio, desencantado; a pele parece lassa. Entraram na
sala, sentaram-se; Hitler a meio da mesa, o chanceler da Áustria à sua frente.
A refeição decorreu normalmente. Hitler parecia descontraído, tornou-se
mesmo falador. Num entusiasmo pueril, contou que, em Hamburgo, iria
mandar construir a maior ponte do mundo. Depois acrescentou, sem dúvida
incapaz de conter-se, que em breve se construiriam aí também os mais altos
buildings, e que os americanos veriam nessa altura que na Alemanha se
constrói em maior escala e com melhor qualidade que nos Estados Unidos.
Em seguida, passaram ao salão. O café foi servido por jovens SS. Por fim,
Hitler retirou-se, e o chanceler da Áustria pôs-se de imediato a fumar como
um sapador.
As fotografias que temos de Schuschnigg mostram-nos dois rostos: um
rosto afetado, austero, e um outro mais tímido, fechado, quase sonhador.
Num cliché célebre, apresenta-se de lábios cerrados, com um ar um pouco
perdido, deixando adivinhar no corpo uma espécie de abandono, de queda.
Foi em 1934, em Genebra, no seu domicílio, que essa fotografia foi tirada.
Schuschnigg está de pé, talvez inquieto. Há nos seus traços algo mole,
indeciso. Dir-se-ia que segura uma folha de papel, mas a imagem é indistinta
e uma mancha sombria torna invisível a parte de baixo da fotografia. Se se
olhar com atenção, nota-se que o avesso de um dos bolsos do casaco está
amarrotado pelo braço, e depois avista-se um objeto estranho, uma planta
talvez, que surge à direita do enquadramento. Mas esta fotografia, tal como
acabo de a descrever, ninguém realmente a conhece. É preciso ir à Biblioteca
Nacional de França, ao departamento de estampas e de fotografia, para poder
vê-la. A que conhecemos foi cortada, reenquadrada. De modo que, com
exceção de alguns funcionários do arquivo, encarregados da classificação e
da conservação dos documentos, ninguém viu nunca o avesso mal fechado do
bolso de Schuschnigg, nem o estranho objeto – uma planta ou não sei bem o
quê – à direita da foto, nem tão-pouco a folha de papel. Uma vez
reenquadrada, a fotografia produz uma impressão muito diferente. Adquire
uma espécie de significado oficial, de decência. Bastou suprimir alguns
milímetros insignificantes, um pequeno pedaço de verdade, para que o
chanceler da Áustria pareça mais sério, menos pasmado que no cliché
original; como se o facto de ter fechado um pouco o campo, apagado alguns
elementos desordenados, recentrando a atenção sobre ele, desse a
Schuschnigg um pouco de densidade. É tamanha a arte da narrativa que nada
é inocente.
Agora, porém, no Berghof, não estão em causa a densidade nem a
decência. Aqui, só um enquadramento vale, só uma forma de convencimento,
só uma maneira de obter o que se deseja – o medo. Sim, aqui é o medo que
reina. Terminaram as civilidades alusivas, as formas contidas de autoridade,
as aparências. Aqui, o pequeno junker treme. Está espantado, para começar,
que se ouse falar-lhe assim, a ele, Schuschnigg. Di-lo-á, de resto, um pouco
mais tarde, a um dos seus homens, sente-se injuriado. E, no entanto, não se
retira, não manifesta nenhum descontentamento, limita-se a fumar. Fuma
cigarro após cigarro.
Passam duas longas horas. Depois, por volta das dezasseis horas,
Schuschnigg e o seu conselheiro são convidados a juntarem-se a Ribbentrop e
a Von Papen, numa divisão contígua. Apresentam-lhes alguns artigos de um
novo acordo entre os dois países, esclarecendo que se trata das derradeiras
concessões possíveis ao Führer. Mas o que é que este acordo exige? Exige,
para começar – numa fórmula vazia e sem grande alcance – que a Áustria e o
Reich se consultem a respeito das questões internacionais que importam às
duas partes. Exige – e é aí que as coisas se complicam – que as ideias
nacionais-socialistas passem a ter livre curso na Áustria e que Seyss-Inquart,
um nazi, seja nomeado ministro do Interior, com plenos poderes – uma
ingerência prodigiosa. Exige ainda que o Dr. Fischböck, um notório nazi, seja
também nomeado para o governo. Exige em seguida a amnistia de todos os
nazis aprisionados na Áustria, incluindo os que cometeram crimes. Exige que
todos os funcionários e oficiais nacionais-socialistas readquiram os seus
direitos. Exige a troca imediata de uma centena de oficiais entre os dois
exércitos e a nomeação do nazi Glaise-Horstenau como ministro austríaco da
Guerra. Enfim, exige – o que é uma última afronta – o despedimento dos
diretores da propaganda austríaca. Estas medidas deverão tornar-se efetivas
dentro de oito dias, em troca do que – sublime concessão – «a Alemanha
reafirma a independência da Áustria e o respeito pela convenção de julho de
1936», que acaba de ser esvaziada do seu conteúdo. Depois, para acabar,
fórmula incrível após o que acaba de se ler: «A Alemanha renuncia a
imiscuir-se na política interior da Áustria.» Dir-se-ia estarmos a sonhar.
A discussão inicia-se então, e Schuschnigg tenta atenuar as exigências
alemãs; mas quer antes de mais salvar a face. Tocam em pequenos
pormenores. Parecem sapos em redor de um charco, a passarem entre si um
mesmo olho e um mesmo dente, e a servirem-se deles à vez. Por fim,
Ribbentrop aceita alterar três artigos, introduzindo-lhes, após laboriosas
negociações, algumas mudanças sem importância. De súbito, a discussão
interrompe-se: Hitler exige a comparência de Schuschnigg.

O gabinete de trabalho está alagado pela luz das lâmpadas. Hitler percorre-
o com grandes passadas. Uma vez mais, o chanceler austríaco tem uma
sensação de mal-estar. E, assim que se senta, Hitler passa ao ataque,
anunciando-lhe que está disposto a uma última tentativa de conciliação.
«Aqui está o projeto, diz ele, não haverá negociação. Não lhe mudarei nem
uma vírgula! Ou assina, ou então não há razão para prosseguirmos as nossas
conversas. Tomarei a minha decisão durante a noite.» O Führer tem o seu ar
mais grave e mais sinistro.

Agora, o chanceler Schuschnigg está face ao seu momento de opróbrio ou


de graça. Irá ceder a esta maquinação medíocre e aceitar o ultimato? O corpo
é um instrumento de prazer. O de Adolph Hitler agita-se perdidamente. Está
rígido como um autómato e virulento como um escarro. O corpo de Hitler
deve ter penetrado nos sonhos e nas consciências, pensa-se encontrá-lo nas
sombras do tempo, nas paredes das prisões, a rastejar sob os leitos de
precintas, em toda a parte, enfim, onde os homens gravaram as silhuetas que
os obcecam. Assim, talvez que no momento em que Hitler lança a
Schuschnigg o seu ultimato, no momento em que a sorte do mundo, através
das coordenadas caprichosas do tempo e do espaço, fica por instantes, por um
único instante, nas mãos de Kurt von Schuschnigg, a algumas centenas de
quilómetros dali, no seu asilo de Ballaigues, Louis Soutter estaria talvez a
desenhar com os dedos, numa toalha de papel, uma das suas danças obscuras.
Fantoches medonhos e terríveis agitam-se no horizonte do mundo, onde rola
um sol negro. Correm e fogem em todos os sentidos, surgindo de dentro da
bruma, esqueletos, fantasmas. Pobre Soutter. Tinha já passado mais de quinze
anos no seu asilo, quinze anos a pintar as suas angústias em pedacinhos de
papel, envelopes usados, sonegados ao cesto dos papéis. E, nesse instante em
que o destino da Europa se joga no Berghof, as suas pequenas personagens
obscuras, retorcendo-se como arames, parecem-me um presságio.
Soutter tinha regressado de uma longa permanência longe de casa, muito
longe, no estrangeiro, no outro extremo do mundo, num estado de degradação
inquietante. Após o que, tinha vivido de expedientes. Músico de chás
dançantes durante a estação turística, uma reputação de loucura tinha
começado a segui-lo por toda a parte aonde ia. No seu rosto imprimiu-se uma
melancolia profunda. E foi internado no asilo de Ballaigues. De tempos a
tempos, fugia; traziam-no de volta, emagrecido, meio morto de frio. No seu
quarto, no topo do edifício, acumulava desenhos sobre desenhos, uma
monstruosa pilha de esboços, representando seres negros, disformes, grandes
doentes palpitantes. O seu próprio corpo estava muito magro, fatigado por
longas caminhadas no campo. As suas faces estavam escanzeladas,
cavernosas; já não tinha dentes. Enfim, uma vez que já não era capaz de
segurar pincel ou pluma para desenhar, devido à artrose que lhe deformava as
mãos, começou a pintar com os dedos, limitando-se a molhá-los na tinta, por
volta de 1937. Tinha nessa altura cerca de setenta anos. Criou nessa fase as
suas obras mais belas; começou a pintar coortes de silhuetas negras, agitadas,
frenéticas. Dir-se-iam coágulos de sangue. Nuvens de gafanhotos. E essa
agitação intensa vivia no espírito de Louis Soutter, como uma forma de
obsessão que o aterrorizava. Mas, se se pensar naquilo que se passava na
Europa, em seu redor, durante os longos anos de reclusão em Ballaigues, no
Jura, pode admitir-se que essa longa torrente de corpos negros, contorcidos,
sofredores e gesticuladores, que todos esses colares de cadáveres anunciam
alguma coisa. Dir-se-ia que o pobre Soutter, cerrado no seu delírio, sem o
saber talvez, filma com os dedos a lenta agonia do mundo que o rodeia. Dir-
se-ia que o velho Soutter faz desfilar o mundo inteiro, os espectros do mundo
inteiro, atrás de um pobre carro funerário. Tudo se transforma em chamas e
em fumo espesso. Mergulha os seus dedos retorcidos no pequeno frasco de
tinta e oferece-nos a verdade morta do seu tempo. Uma grande dança
macabra.
No Berghof, estava-se bem longe de Louis Soutter, bem longe da sua
estranha timidez, bem longe do refeitório de Ballaigues. Levava-se a cabo
uma tarefa de mais baixa extração. Nesse mesmo instante em que Louis
Soutter estava talvez a molhar os dedos doridos no seu frasco de tinta preta,
Schuschnigg olhou fixamente para Adolf Hitler. Escreverá mais tarde, no seu
livro de memórias, que Hitler exercia sobre os homens um domínio mágico.
E acrescenta: «O Führer atraía os outros graças a uma força magnética, e
depois afastava-os com uma violência tal que se abria então um abismo que
nada podia preencher.» Por aqui se vê que Schuschnigg não era parco em
explicações esotéricas. O que justifica as suas fraquezas. O chanceler do
Reich é um ser sobrenatural, é aquele que a propaganda de Goebbels
pretendia mostrar-nos, uma criatura quimérica, assustadora, inspirada.

E, finalmente, Schuschnigg cedeu. Fez até pior. Atabalhoou-se. Depois


declarou que estava pronto a assinar, mas fez uma objeção, a mais tímida e a
mais abúlica de entre elas, a mais frouxa também: «Far-lhe-ei apenas notar»,
acrescentou ele, numa mistura percetível de malícia e de fraqueza que o deve
ter desfigurado, «que esta assinatura não lhe servirá para nada.» Deve ter
apreciado, nessa altura, a surpresa de Hitler. Deve ter saboreado a pequena
faísca de superioridade que foi capaz de sonegar ao destino. Sim, deve ter
gozado, também ele, mas de outra maneira, como um caracol frui os seus
pauzinhos moles. Sim, deve ter gozado. O silêncio que se seguiu à sua réplica
durou uma eternidade. Schuschnigg experimentou a sua parte invencível,
minúscula. E torceu-se todo na cadeira.
Hitler teve um olhar estupefacto. O que é que ele estava a dizer-lhe?
«Segundo a nossa Constituição», reforçou então Schuschnigg, com um tom
doutoral, «é a mais alta autoridade do Estado, isto é, o presidente da
República, que nomeia os membros do governo. Da mesma forma que a
amnistia é uma prerrogativa sua.» Então era isso, não lhe bastava ceder a
Adolf Hitler, tinha ainda de esconder-se por detrás de outro. Eis que ele, o
pequeno autocrata, no momento em que o seu poder se tornava envenenado,
aceitava partilhá-lo.
Mas o mais estranho foi a reação de Hitler. Gaguejou, por sua vez: «Então
tem o direito…», como se não compreendesse bem aquilo que estava a
suceder. As objeções de direito constitucional ultrapassavam-no. E ele que,
para servir a sua propaganda, fazia questão de manter as aparências, deve ter-
se sentido bruscamente desorientado. O direito constitucional é como a
matemática, não permite batotas. Gaguejou ainda: «Tem de…» E
Schuschnigg deve ter gozado então, verdadeiramente, a sua vitória; por fim,
tinha-o apanhado! Tinha-o apanhado com o seu direito, com os seus estudos
de direito, com a sua licenciatura! Trás pás, o brilhante advogado tinha
apanhado o pequeno agitador ignorante. Sim, o direito constitucional existe e
não é para térmites nem para ratinhos, não, é para chanceleres, para
verdadeiros homens de Estado, porque uma norma constitucional, caro
senhor, bloqueia a estrada com tanta força como um tronco de árvore ou uma
barragem policial!
Foi então que Hitler, num estado de agitação extrema, abriu brutalmente a
porta do gabinete de trabalho e berrou, voltado para o vestíbulo: «General
Keitel!» Depois, voltando-se para Schuschnigg, lançou-lhe: «Voltarei a
chamá-lo mais tarde.» Schuschnigg saiu e a porta fechou-se sobre ele.

No processo de Nuremberga, o general Keitel fez a descrição da cena que


se seguiu. Fora a sua única testemunha. Quando o general entrou no gabinete,
Hitler convidou-o simplesmente a sentar-se e sentou-se por sua vez. Por
detrás das misteriosas portas de madeira, o Führer declarou-lhe que não tinha
nada de particular a dizer-lhe, e depois manteve-se por momentos imóvel e
silencioso. Ninguém se mexia. Hitler estava absorto nos seus pensamentos e
Keitel mantinha-se sentado, a seu lado, sem dizer nada. É que o chanceler via
em Keitel um peão, um simples peão, nada mais, e utilizava-o dessa forma.
Eis a razão por que, por mais curioso que isso possa parecer, no decurso dos
longos minutos que durou aquela deliberação, não se passou nada,
estritamente nada. É pelo menos o que diz Keitel.
Durante esse tempo, Schuschnigg e o seu conselheiro temem o pior.
Admitem mesmo a hipótese de que os detenham. Passam quarenta e cinco
minutos… Com Ribbentrop e von Papen, continuam a discutir,
maquinalmente, as cláusulas do acordo; mas com que finalidade, visto que
Hitler declarou que não mudaria nem uma vírgula ao texto? Deve ser uma
maneira de Schuschnigg se tranquilizar, é preciso que, a qualquer preço, a
situação tenha o ar mais normal do mundo. Continua, pois, a agir como se se
tratasse de uma verdadeira conferência entre chefes de Estado, como se ainda
fosse o representante de um país soberano. Na realidade, evita apenas dar à
sua penosa situação um ar oficial que a torne irremediável.

Por fim, Hitler manda chamar Kurt von Schuschnigg. E aí, mistério da arte
de agradar, de praticar o duche escocês, de mudar de tonalidade entre duas
cenas, as silvas subitamente desapareceram. «Decidi-me, pela primeira vez na
vida, a reconsiderar uma decisão já tomada», lança Adolf Hitler, como se
concedesse um imenso privilégio. Nesse instante, talvez, Hitler sorri. Quando
os gângsteres ou os loucos furiosos sorriem, é difícil resistir-lhes; quer-se pôr
um ponto final, tão depressa quanto possível, na fonte do seu desagrado,
quer-se acima de tudo celebrar a paz. Além disso, entre dois episódios de
tortura moral, um sorriso possui sem dúvida um encanto particular, como se
fosse uma aberta. «Só que, repito-lhe», acrescentou Hitler, misturando de
súbito a gravidade e a confidência, «é mesmo a última tentativa. Aguardo a
entrada em vigor deste acordo num prazo máximo de três dias.» E aí, não
obstante nada ter mudado e mesmo as alterações de pormenor não irem ser
tomadas em consideração, apesar também de o prazo em que o ultimato deve
expirar ter sido sem justificação encurtado de cinco dias, Schuschnigg aceita
sem hesitação. Sem forças, como se tivesse obtido uma concessão, submete-
se a um acordo que é mais calamitoso ainda que o anterior.
Uma vez os documentos encaminhados para o secretariado, a conversa
prossegue amavelmente. Hitler dirigia-se agora a Schuschnigg como o
«senhor chanceler», o que era incrível. Por fim, assinaram-se os exemplares
datilografados e o chanceler do Reich propôs a Schuschnigg e ao seu
conselheiro que ficassem para jantar. O convite foi delicadamente recusado.
COMO NÃO DECIDIR

Nos dias que se seguiram, o exército alemão procedeu a algumas manobras


de intimidação. Hitler tinha pedido aos seus melhores generais que
simulassem os preparativos de uma invasão. Eis algo extraordinário. Já se
conheceram, decerto, todo o género de fingimentos, ao longo da história
militar, mas este é de outra natureza. Não se trata de uma componente da
estratégia ou da tática, visto ninguém estar ainda em guerra. É simplesmente
uma manobra psicológica, uma ameaça. É surpreendente imaginar os
generais alemães a prestarem-se a uma ofensiva de teatro. Devem ter feito
roncar os motores, zumbir as hélices, para depois, escarninhos, terem
mandado os camiões andar às voltas, sem finalidade, perto da fronteira.
Em Viena, no gabinete do presidente Miklas, o medo torna-se palpável. As
manobras exercem o seu efeito. O governo austríaco imagina que os alemães
se preparam de facto para os invadir. Encara-se então toda a espécie de
loucuras. Admite-se poder apaziguar Hitler oferecendo-lhe a sua cidade natal,
Braunau am Inn, com os seus dez mil habitantes, a sua fonte dos Pescadores,
o seu hospital e as suas cervejarias. Sim, ofereça-se-lhe a sua cidade natal, a
casa onde nasceu, com as suas belas impostas em forma de concha. Ofereça-
se-lhe um pedaço de recordações, a ver se ele nos deixa em paz! Schuschnigg
não sabe que mais há de inventar para conservar o seu pequeno trono.
Temendo a iminência da agressão alemã, suplica a Miklas que aceite o
acordo e nomeie Seyss-Inquart ministro do Interior. Seyss-Inquart não é um
monstro, assegura Schuschnigg, é um nazi moderado, um verdadeiro patriota.
E além do mais ficar-se-ia assim entre pessoas de boa extração; pois Seyss-
Inquart, o nazi, e Schuschnigg, o pequeno ditador que Hitler tiraniza, são
praticamente amigos. Ambos estudaram direito, folhearam as Institutas de
Justiniano, redigiram, um uma pequena nota erudita sobre coisas sem dono,
misterioso objeto jurídico herdado dos Romanos, o outro uma exposição
notável sobre não sei bem que ponto contestado de direito canónico. E depois
ambos gostam perdidamente de música. Os dois são admiradores de
Bruckner, e evocam por vezes a sua linguagem musical, nos gabinetes da
chancelaria, aí onde decorreu o congresso de Viena, ao longo dos mesmos
corredores em que Talleyrand arrastou os seus borzeguins pontiagudos e a
sua língua viperina. Schuschnigg e Seyss-Inquart falam de Bruckner sob a
sombra tutelar de Metternich, esse outro especialista da paz; falam da vida de
Anton Bruckner, da sua vida de piedade e de modéstia. Ao som dessas
palavras, as lentes de Schuschnigg ficam veladas, a voz enrouquece-lhe.
Lembra-se talvez da sua primeira mulher, do terrível acidente de automóvel,
dos anos de remorso e de tristeza. Seyss-Inquart soergue os pequenos óculos
de escaravelho e rumina frases compridas ao longo das janelas do hall. Diz
baixinho, com uma certa emoção, que Bruckner – o infeliz – esteve internado
durante três meses; Schuschnigg fica então cabisbaixo; e Seyss-Inquart,
pensativo, com uma veia qualquer a fremir-lhe na fronte, refere que Anton
Bruckner, durante os longos, longuíssimos e monótonos passeios, contava as
folhas das árvores e que, numa espécie de obstinação secreta e estéril,
passava de uma árvore para outra e via com angústia crescer o número que o
atormentava. Mas enumerava também as pedras da calçada, as janelas dos
prédios e, quando falava com uma senhora, não conseguia impedir-se de
contar rapidamente as pérolas do seu colar. Contava os pelos do seu cão, os
cabelos das pessoas que se cruzavam com ele, as nuvens do céu. Qualificou-
se isso como uma neurose obsessiva; era uma espécie de fogo que o
consumia. De modo que, acrescenta Seyss-Inquart, fixando os lustres do
grande hall, Bruckner isolava os seus temas musicais mediante a mofa dos
silêncios. Dir-se-ia mesmo que as suas sinfonias procedem de um arranjo
sábio, de uma sucessão regular de temas. Encontram-se nelas, murmura
Seyss-Inquart, deixando a mão arrastar-se pelo corrimão da grande escadaria,
particularidades de conexão que obedecem a um tão sólido e tão implacável
envasamento lógico, que lhe foi impossível completar a sua Nona Sinfonia.
Teve de deixar em suspenso o seu último andamento pelo espaço de dois
anos; e o seu incessante trabalho de correção deixou por vezes atrás de si até
dezassete versões de um mesmo trecho.
Schuschnigg devia estar fascinado por esse delirante sistema, feito de
hesitações e de arrependimentos. É talvez por isso que Seyss-Inquart e ele
gostavam acima de tudo de conversar – como um testemunho no-lo assegura
– a respeito da Nona Sinfonia de Bruckner, com os seus metais grandiosos, o
seu silêncio assombroso, seguido pelo sopro do clarinete e por esse pequeno
instante em que os violinos, lentamente, soltam as suas pequenas estrelas de
sangue. Depois evocavam muitas vezes Furtwängler, a testa muito alta, o ar
muito doce de músico e a pequena batuta que segura como um raminho. Por
fim falavam de Nikisch; e através de Arthur Nikisch, que interpretou
Beethoven sob a direção de Richard Wagner, através da direção muito
simples de Arthur Nikisch, que era no entanto capaz de extrair da orquestra
as mais ricas sonoridades, como se, com um gesto minúsculo e soberano,
libertasse as entranhas da própria obra dos sinais inscritos a tinta na partitura,
através de Nikisch, que foi dirigido por Liszt, de quem Salieri foi um dos
mestres, a providência oferecia-lhes Beethoven, Mozart e, no mais extremo
do seu delírio, adivinhavam Haydn, acedendo assim à mais fria miséria. Pois
Haydn, bem antes de se tornar o inesgotável compositor de óperas, de
sinfonias, de missas, de oratórias, de concertos, de marchas e de danças que
conhecemos, foi o pobre filho de um construtor de carroças e de uma
cozinheira, um miserável vagabundo das ruas de Viena, cujos serviços se
contratavam para enterros e casamentos. Essa miséria, porém, não interessa a
Schuschnigg e a Seyss-Inquart, que preferem seguir por outro caminho,
percorrendo, com Liszt, os salões da bela Europa.
Para Seyss-Inquart, o passeio concluir-se-á, no entanto, bem pior que para
Schuschnigg e, após ter ocupado alguns cargos em Cracóvia e na Haia,
acabará o seu percurso lastimável de comparsa em Nuremberga. Aí, como é
óbvio, nega tudo, em bloco. Ele que será um dos principais atores da
incorporação da Áustria no Terceiro Reich não fez nada; ele que receberá o
grau honorífico SS de Gruppenführer não viu nada; ele que será ministro sem
pasta no governo de Hitler, ninguém lhe disse nada; ele que será
representante do governador-geral da Polónia, implicado na pacificação
brutal do movimento de resistência polaco, não deu nenhuma ordem; ele que
por fim se tornará comissário do Reich para os Países Baixos, e fará executar,
nos termos da acusação proferida em Nuremberga, mais de quatro mil
pessoas, antissemita sincero, que erradicou os judeus de todos os lugares de
responsabilidade, ele que não é estranho às medidas que levarão à morte de
cerca de cem mil judeus holandeses, não soube de nada. E enquanto as
trombetas soam, mas desta vez por ele, retoma os seus hábitos de advogado,
argumenta, recorre a um documento, a outro ainda, folheia,
conscienciosamente, maços de provas.

A 16 de outubro de 1946, com cinquenta e quatro anos, ele, o filho do


diretor escolar Emil Zajtich, que preteriu esse nome preferindo-lhe um
patronímico mais alemão, ele que tinha passado a sua primeira infância em
Stannern, na Morávia, e tinha ido viver para Viena com nove anos de idade,
eis que se encontra de pé, por sobre o vazio, em Nuremberga. E aí, no
patíbulo, após várias semanas passadas na cela, vigiado de noite e de dia, sob
a luz de uma tocha que encandeia como um sol feito de gelo, depois de ter
sido, já durante a noite, informado de que chegara a sua última hora, tendo
descido alguns poucos degraus até ao pátio, avançado com passo incerto, em
fila indiana, por entre a soldadesca, e subido ao patíbulo, em último lugar,
quando estavam já mortos os outros nove condenados, ei-lo que por sua vez
segue trôpego atrás da grande ceifeira. No ginásio da prisão, onde as forcas
estão montadas, semelhante a um hangar de má qualidade, Ribbentrop foi o
primeiro. Não já altivo, como tantas vezes foi, não já inflexível como durante
as negociações do Berghof, mas acabrunhado em face da morte. Um ancião
claudicante.
Foi depois a vez dos outros oito, até chegar a vez dele, Arthur Seyss-
Inquart. Dá um passo em direção ao carrasco. É John C. Woods, que lhe
servirá de derradeira testemunha. E, sob a luz dos projetores, Seyss-Inquart,
como uma borboleta ofuscada, avista de súbito o rosto rotundo de Woods.
Um relatório médico assevera, numa gíria contraditória e um pouco postiça,
que Woods era um tanto ou quanto deficiente – mas quem, sem o ser,
suportaria desempenhar uma tal tarefa? Outros testemunhos mencionam um
pobre tipo, alcoólico e falador. Conta-se assim que, mesmo no fim da sua
carreira de carrasco, após quinze anos de leais serviços, ele se gabava, uma
vez ingurgitada a sua dezena de whiskies, de ter executado por enforcamento
trezentos e quarenta e sete condenados, um número contestado. É de qualquer
modo verdade que, naquele dia de outubro, já enforcou bastante gente desde
que modestamente se iniciara na sua profissão; e há uma fotografia em que o
podemos ver, noutro dia desse mesmo ano de 1946, ajudado por Johann
Reichhart, também ele especialista do saco e da corda, a proceder à execução
de uns trinta condenados; a fila da esquerda para Woods, a da direita para
Reichhart, que tinha já, pelo seu lado, executado milhares de pessoas durante
o Terceiro Reich e que os americanos, tendo em conta as necessidades,
haviam recrutado. Foi pois esse rosto, rubicundo, nutrido, já que a morte
acaba por oferecer-nos aquilo de que dispõe, que para Seyss-Inquart deu
forma à figura da grande ceifeira.
Então, Seyss-Inquart procura algumas palavras para dizer; onde estarão
elas, no entanto? Terminados os discursos de salão, as ordens, os argumentos
jurídicos, nada mais resta se não uma frase. Uma frase insignificante. Feita de
palavras tão pobres que deixam ver a luz à transparência e que de resto se
concluem por uma fórmula bizarra: «Acredito na Alemanha.» E Woods
enfia-lhe por fim o capuz sobre o rosto e ajusta o nó corredio antes de acionar
o alçapão. E Seyss-Inquart – no meio de um mundo em ruínas – desaparece
brutalmente no buraco.
UMA TENTATIVA DESESPERADA

Ainda só estamos, contudo, a 16 de fevereiro de 1938. Algumas horas antes


de expirar o ultimato, Miklas, recluso no seu palácio presidencial, cede por
sua vez. Amnistiam-se os assassinos de Dollfuss, Seyss-Inquart é nomeado
ministro do Interior e os SA desfilam pelas ruas de Linz com grandes
bandeiras. No papel, a Áustria morreu; passou a estar sob tutela alemã. Mas,
como se vê, nada aqui tem a densidade do pesadelo, nem o esplendor do
pânico. Tão-somente o aspeto viscoso das combinações e da impostura. Não
há sobranceria violenta, nem palavras terríveis e inumanas, nada mais do que
a ameaça, brutal, a propaganda, repetitiva e vulgar.
Contudo, eis que, alguns dias mais tarde, Schuschnigg bruscamente enerva-
se; aquele acordo imposto ficou-lhe atravessado na garganta. Num derradeiro
sobressalto, declara ao Parlamento que a Áustria se manterá independente e
que não haverá mais concessões. As coisas azedam. Alguns membros do
partido nazi vão para a rua espalhar o terror. A polícia não intervém, visto
que Seyss-Inquart, o nazi, é já ministro do Interior.
Nada pior do que essas multidões amargas, essas milícias com as suas
braçadeiras, as suas insígnias militares, uma juventude apanhada entre falsos
dilemas, dilapidando as suas cóleras numa horrível aventura. Nesse
momento, Schuschnigg, o pequeno ditador austríaco, joga o seu último
trunfo. Decerto, devia contudo saber que, em todos os jogos, há uma fase
crítica passada a qual é impossível recuperar; nada mais é possível do que ver
o adversário expor em quantidade as suas cartas principais e recolher as
vazas: as damas, os reis, tudo aquilo que não se soube jogar a tempo e que
febrilmente se conservou entre mãos na esperança de o não perder. Porque
Schuschnigg não é nada. Não possui nada, não é amigo de ninguém, não é
esperança seja do que for. Tem mesmo todos os defeitos, a arrogância da
aristocracia e certas conceções políticas absolutamente retrógradas. Quem, há
oito anos, se pôs à testa de um grupo de juventudes católicas paramilitares,
quem dançou sobre o cadáver da liberdade não pode esperar que esta voe, de
súbito, em seu socorro! Nenhum raio de sol atravessará bruscamente a sua
noite, nenhum sorriso irromperá na face do espectro a fim de o encorajar a
cumprir o seu último dever. Nenhuma palavra de mármore sairá da sua boca,
nem uma partícula de graça, nem um vestígio de luz, nada. O seu rosto não
será inundado pelas lágrimas. Schuschnigg é apenas um jogador de cartas,
um fraco calculista; pareceu mesmo acreditar na sinceridade do seu vizinho
alemão, na lealdade dos acordos que lhe tinham acabado de extorquir.
Assusta-se um pouco tarde de mais; invoca as deusas que injuriou, reivindica
promessas ridículas feitas a uma independência já morta. Não quis olhar a
verdade de frente. Mas, agora, ei-la que se dirige a ele, que o toca quase,
horrível, inevitável. E a verdade cospe-lhe no rosto o segredo doloroso dos
seus compromissos.
Então, num derradeiro gesto de afogado, vai procurar o apoio dos
sindicatos e do partido social-democrata, interditos contudo há quatro anos.
Face ao perigo, os socialistas aceitam, no entanto, apoiá-lo. Schuschnigg
lança de imediato uma proposta de plebiscito sobre a independência do país.
Hitler fica louco de raiva. Na sexta, 11 de março, às cinco da manhã, o criado
de quarto acorda Schuschnigg para aquele que será o mais longo dia da sua
existência. Pousa os pés no chão. Está frio, o soalho. Calça os sapatos de
quarto. Anunciam-lhe vastos movimentos de tropas alemãs. A fronteira de
Salzburgo está encerrada e os transportes ferroviários entre a Alemanha e a
Áustria encontram-se interrompidos. Uma cobra desliza nas trevas. O
cansaço de viver é insuportável. Sente-se de súbito muito velho,
horrivelmente velho; mas terá todo o tempo para pensar nisso, viverá sete
anos na prisão, durante o Terceiro Reich, e disporá de sete anos para se
questionar sobre se terá feito bem em organizar, no passado, o seu pequeno
grupo católico paramilitar, sete anos para apurar o que é realmente católico e
o que o não é, a fim de separar a luz e as cinzas. Mesmo tendo alguns
privilégios, a prisão é uma provação terrível. De modo que, uma vez libertado
pelos Aliados, viverá por fim uma vida sossegada. E – como se duas vidas
fossem uma possibilidade para cada um de nós, como se o jogo da morte
pudesse destruir-nos os sonhos, como se, na sombra desses sete anos, tivesse
perguntado a Deus: «Quem sou eu?» e Deus lhe tivesse respondido: «Um
outro que não tu» – o antigo chanceler irá viver para os Estados Unidos e
tornar-se-á um americano exemplar, um católico exemplar, um professor
universitário exemplar, na universidade católica de Saint Louis. Um pouco
mais e quase teria podido discutir em roupão a galáxia Gutenberg com
McLuhan.
UM DIA PASSADO AO TELEFONE

Pelas dez horas da manhã, enquanto Albert Lebrun, presidente da


República francesa, rubrica um decreto sobre a denominação de origem
controlada do vinho juliénas (o célebre decreto de 11 de março de 1938), e se
interroga, à medida que os seus olhos percorrem os batentes da janela do
escritório, sobre se realmente os vinhos de Émeringes e de Pruzilly merecem
essa denominação, enquanto chove e algumas pequenas gotas embatem nas
vidraças como uma peça de piano executada por mão principiante – pensa
Albert Lebrun, com um toque de poesia –, no preciso momento em que depõe
o decreto sobre uma enorme pilha, um perfeito caos! e agarra noutro, que
estabelece o orçamento da Lotaria nacional para o próximo exercício – deve
ser o quinto ou o sexto que ele assina, desde que entrou em funções, porque
alguns decretos regressam ao seu gabinete de trabalho, como os gaivões às
grandes árvores dos cais, a cada novo ano; assim, enquanto Albert Lebrun
divaga interminavelmente a coberto do imenso egoísmo do seu abat-jour, em
Viena, o chanceler Schuschnigg recebe um ultimato enviado por Adolf
Hitler. Ou retira o seu projeto de plebiscito, ou a Alemanha invade a Áustria.
Não há qualquer discussão possível. Terminada a ilusão da virtude, é agora
preciso limpar a maquilhagem e despir o fato. Decorrem quatro intermináveis
horas. Às duas da tarde, depois de desistir do almoço, Schuschnigg anula por
fim o plebiscito. Uf. Tudo vai poder continuar como antes: os passeios à beira
do Danúbio, a música clássica, a tagarelice inconsistente, os bolos das casas
Demel ou Sacher.
E contudo, não. O monstro é mais guloso do que ele. Exige agora a
demissão de Schuschnigg e a sua substituição por Seyss-Inquart no cargo de
chanceler da Áustria. Nem mais, nem menos. «Que pesadelo, será que isto
nunca mais acaba?» Na época em que era prisioneiro dos italianos, ainda
jovem, durante a Primeira Guerra, Schuschnigg deveria ter lido os artigos de
Gramsci, em lugar de romances de amor; teria assim talvez dado com estas
linhas: «Quando discutes com um adversário, tenta pôr-te na pele dele.» Mas
ele nunca se colocou na pele de ninguém, quando muito envergou o fato de
Dollfuss, depois de lhe ter, durante alguns anos, lambido as botas. Pôr-se na
pele de alguém? Nem sequer vê muito bem para que é que isso serve! Não se
pôs na pele dos operários espancados, nem dos sindicalistas presos, nem dos
democratas torturados; então, agora, só faltaria mesmo que conseguisse pôr-
se na pele dos monstros! Hesita. É o derradeiro minuto da última hora. E,
como de costume, capitula. Ele, a força e a religião, ele, a ordem e a
autoridade, ei-lo que anui a tudo aquilo que lhe pedem. Basta que não lho
peçam com delicadeza. Disse que não à liberdade dos sociais-democratas,
com firmeza. Disse que não à liberdade de imprensa, com coragem. Disse
que não à conservação de um parlamento eleito. Disse que não ao direito à
greve, às reuniões, à existência de outros partidos para além do seu. E
contudo, será esse mesmo homem que será contratado, no pós-guerra, pela
nobre universidade de Saint Louis, no Missuri, como professor de ciência
política. Claro que ele era um conhecedor da ciência política, ele que tinha
sabido dizer não a todas as liberdades públicas. De modo que, uma vez
passado um pequeno instante de hesitação – enquanto uma matilha de nazis
penetra na chancelaria –, Schuschnigg, o intransigente, o homem do não, a
negação feita ditador, volta-se para a Alemanha, com a voz estrangulada na
garganta, o focinho vermelho, o olhar humedecido, e pronuncia um débil
«sim».
Enfim! não havia mais nada a fazer, confia-nos ele nas suas Memórias.
Cada um consola-se como pode. Dirige-se, pois, ao palácio presidencial, no
fundo aliviado, dorido, mas aliviado. Vai apresentar a sua demissão ao
presidente da República, Wilhelm Miklas. Mas aí, para sua surpresa, eis que
Miklas, filho de um pequeno empregado dos correios, que fora mantido como
presidente da República por simples pró-forma, que servia de caução e se
limitava, habitualmente, a fazer figura de corpo presente ao lado de Dollfuss
e, depois, de Schuschnigg, durante as cerimónias oficiais, eis pois que esse
pacóvio do Miklas não aceita a demissão. Merda! Telefonam então a Göring.
Göring já não pode mais com os cretinos dos austríacos! Se ao menos o
pudessem deixar em paz! Mas Hitler reage diferentemente; é imperativo que
Miklas aceite a demissão, berra ele, com um auscultador de telefone em cada
mão; exige-o. É curioso como até ao fim os tiranos mais convictos respeitam
vagamente as formas, como se quisessem dar a impressão de não brutalizar as
regras procedimentais, no preciso instante em que abertamente as atropelam.
Dir-se-ia que o poderio não lhes chega e que sentem um prazer adicional em
forçar os inimigos a cumprir, por uma última vez, em seu favor, os rituais do
poder que estão a derrubar.
Decididamente, é bem comprido, esse dia 11 de março! Tique-taque, tique-
taque, o ponteiro do relógio por cima da secretária de Miklas continua,
imperturbável, o seu minúsculo trabalho de verme da madeira. Miklas não é
um cabo de guerra, permitiu que Dollfuss instalasse a sua pequena ditadura
na Áustria e pôde assim, sem dizer palavra, conservar o seu lugar de
presidente. Conta-se que, a respeito das violações da Constituição, Miklas,
em privado, fazia as suas críticas – grande coragem! E, contudo, é um tipo
curioso, esse Miklas, visto que no pior momento, por volta das duas da tarde
desse 11 de março, precisamente quando um santo cagaço começa a tomar
conta de todos, na altura em que Schuschnigg diz sim, sim, sim, a cada passo,
eis que Miklas diz não. E não diz não a três sindicalistas, a dois empresários
da imprensa, a um grupo de gentis deputados sociais-democratas; diz não a
Adolf Hitler. Homenzinho estranho, esse Miklas. Ele que era tão apagado,
um simples figurante, presidente de uma república defunta há cinco anos, ei-
lo que recalcitra. Com o seu rosto largo de notável, a bengala, o fato
completo, o chapéu de coco e o relógio de bolso, deixa de ser capaz de dizer
sim. O homem não é um ser previsível; um pobre diabo qualquer pode de
súbito ir ao fundo de si próprio e encontrar aí uma resistência absurda, um
pequeno prego, um espinho. E eis então que um tipo aparentemente sem
grandes princípios, um pateta sem amor-próprio, inesperadamente se agasta.
Decerto, não por muito tempo, mas mesmo assim. O dia será ainda longo
para Miklas.
Num primeiro tempo, após várias horas de pressão, acaba por ceder. Os
nazis ficam aliviados; eles, que fazem rolar os seus tanques sobre tapetes
vermelhos, querem absolutamente obter a anuência de Miklas. «Sim,
Schuschnigg pode demitir-se, de acordo, não insistirei mais nesse assunto.»
Surpreendente palinódia. Tanto mais que, ainda mal acabou de dar o seu
consentimento, pelas dezanove e trinta, ainda mal Schuschnigg mergulhou no
esquecimento da História, enquanto os nazis, tranquilizados, se preparam
para celebrar com um espumante de reflexos coloridos a entronização de
Seyss-Inquart, o bom do Miklas puxa-lhes pela manga às dezanove horas e
trinta e um minutos para lhes dizer que, embora tenha concordado com a
demissão do imbecil do Schuschnigg, recusa em contrapartida
categoricamente nomear Seyss-Inquart.
São agora vinte horas. Então, os alemães que, como se diz nos manuais,
queriam acima de tudo manter as aparências para não espavorir a comunidade
internacional (que, é claro, ainda não deu por nada), cansados de ameaçar
Miklas, decidem ignorar o assunto. Se Seyss-Inquart não é ainda chanceler,
será como ministro do Interior que lhe darão utilidade. Para poderem ordenar
à Wehrmacht que viole a fronteira austríaca, sem darem demasiado a
impressão de transgredir as regras do direito, pedem a Seyss-Inquart o favor
de convidar os alemães a entrar no seu belo país e de o fazer depressa e
oficialmente. Decerto, ele só é ainda ministro, mas, visto que o presidente
Miklas não o quer nomear chanceler, é preciso atropelar um pouco o
protocolo. Por mais que pretenda manter-se o cenário do direito
constitucional, as circunstâncias são imperiosas e nada pode prevalecer contra
elas.
Aguarda-se pois o apelo de Seyss-Inquart, o pequeno telegrama com o qual
pedirá aos nazis que o vão auxiliar. São vinte e trinta, nada acontece. O
espumante morre nos copos. O que é que andará a fazer, bons deuses, esse
Seyss-Inquart? Esperava-se maior rapidez, esperava-se que ele se
despachasse a escrever o seu pequeno telegrama e que toda a gente pudesse,
finalmente, ir jantar. Hitler está fora de si, aguarda há horas! há anos, sem
dúvida! Então, com os nervos em franja, exatamente às vinte e quarenta e
cinco, dá ordem para invadir a Áustria. Que se lixe o convite de Seyss-
Inquart. Passarão sem ele! Que se lixe o direito, que se lixem os alvarás, as
constituições e os tratados, que se lixem as leis, esses pequenos insetos
normativos e abstratos, gerais e impessoais, as concubinas de Hamurábi, elas
que são, diz-se, iguais para todos, essas putas. Pois não será o facto
consumado o mais sólido dos direitos? Invadir-se-á a Áustria sem autorização
de ninguém e far-se-á isso por amor.
Apesar de tudo, uma vez dado início à invasão, acaba por considerar-se
que, mesmo assim, com um convite formal, as coisas seriam mais seguras.
Redige-se então um telegrama, que gostaria de receber-se; são assim os
amores, alguns contentam-se em ditar à amante os bilhetinhos com que
sonham. Três minutos mais tarde, Seyss-Inquart recebe pois o texto do
telegrama que deverá enviar a Adolf Hitler. Assim, por um efeito subtil de
retroação, a invasão transmutar-se-ia em convite. O pão deve tornar-se carne.
O vinho deve tornar-se sangue. Eis, porém, que – nova surpresa – o muito
prestadio Seyss-Inquart não parece completamente disposto a vender a pele
da Áustria. Os minutos vão passando, o telegrama não chega.
Enfim, no termo de um longo corredor de discussões, encolhendo os
ombros largos, cansado, enojado sem dúvida, o velho Miklas, já perto da
meia-noite, quando os nazis já se apoderaram dos principais centros do poder
e Seyss-Inquart continua obstinadamente a recusar assinar o seu telegrama,
quando na cidade de Viena prosseguem algumas cenas de loucura,
desordeiros assassinos, incêndios, urros, judeus arrastados pelos cabelos
através de ruas repletas de destroços, quando as grandes democracias
parecem não se aperceber de nada, a Inglaterra se deitou e ronrona
tranquilamente, a França faz belos sonhos e toda a gente ignora o assunto, o
velho Miklas, com relutância, acaba por nomear o nazi Seyss-Inquart
chanceler da Áustria. As catástrofes maiores anunciam-se por vezes com
pezinhos de lã.
ALMOÇO DE DESPEDIDA
EM DOWNING STREET

No dia seguinte, em Londres, Ribbentrop foi convidado por Chamberlain


para um almoço de despedida. Após vários anos passados em Inglaterra, o
embaixador do Reich acabava de obter uma promoção. Doravante, passava a
ser ministro dos Negócios Estrangeiros. Regressara, por conseguinte, pelo
espaço de alguns dias a Londres, para se despedir e entregar as chaves da
casa. Porque se conta que, antes da guerra, Chamberlain, que possuía alguns
apartamentos, tinha por locatário Ribbentrop. Deste facto anódino, deste
conflito curioso entre a imagem e o homem, deste contrato, através do qual
Neville Chamberlain, designado como «o senhorio», se comprometeu, a troco
de uma verba, «o aluguer», a garantir a Joachim von Ribbentrop o usufruto
tranquilo da sua casa de Eaton Square, ninguém foi capaz de tirar a menor
consequência. Chamberlain devia receber o valor desse aluguer no intervalo
de duas más notícias, de dois golpes baixos. Mas é claro que é preciso que os
negócios prossigam. Ninguém vislumbrou pois aí qualquer anomalia,
ninguém atribuiu a esse pedacinho de direito romano o menor dos sentidos,
nada. A um pobre diabo julgado por roubo, censura-se-lhe todo um conjunto
de antecedentes, os factos falam de súbito por si, abundantemente. Mas se os
factos dizem respeito a Chamberlain, então é preciso ser prudente. Uma certa
decência é admissível, a sua política de apaziguamento nada mais é do que
um erro lamentável, e as suas atividades de senhorio não ocupam, na
História, mais do que uma nota de rodapé.
A primeira parte da refeição passou-se no mais franco bom humor.
Ribbentrop pôs-se a contar as suas proezas desportivas e, em seguida, após
algumas graças a respeito de si próprio, evocou os prazeres do ténis; Sir
Alexander Cadogan ouvia-o educadamente. Divagou primeiro, durante um
bom momento, sobre o serviço e esse pequeno planeta de borracha coberto de
feltro branco, a bola, cuja vida é muito curta, insistiu ele, nem sequer dura
todo o tempo de um jogo! Depois evocou o grande Bill Tilden, que fazia o
serviço como um semideus, dizia ele, e tinha reinado sozinho no ténis dos
anos vinte, como ninguém o conseguiria fazer no futuro. Durante cinco anos,
Tilden não perdeu um jogo, e ganhou sete vezes seguidas a taça Davis. Tinha
aquilo a que então se chamava um serviço estilo bala de canhão, uma vez que
o seu físico estava em absoluto votado a essa sublime performance: era alto,
magro, de ombros largos e mãos enormes. Ribbentrop recheava o seu
inesgotável discurso de revelações e anedotas picantes; por exemplo, Tilden
sofrera, no início da sua mais prolífica série de vitórias, a amputação da
extremidade de um dedo; tinha-o malfadadamente estropiado na rede. Depois
da operação, passou a jogar ainda melhor, como se aquela ponta do dedo
tivesse sido um erro da seleção natural que a cirurgia moderna, entretanto,
corrigira. Mas Tilden era sobretudo um estratega – insistiu Ribbentrop,
limpando os lábios ao guardanapo –, e o seu livro, A Arte do Ténis no
Relvado, é uma mina de reflexões sobre a disciplina tenística, como o livro de
Ovídio sobre a arte de amar. Mas, principalmente – quinta-essência do ser
para aquele que os camaradas de juventude tinham gentilmente denominado
Ribbensnob –, Bill Tilden era descontraído, supremamente descontraído. E
elegante, a sua esquerda parecia uma reverência. Contudo, num corte de
ténis, era um monarca absoluto, ninguém o conseguia vencer, e mesmo as
vitórias dos seus adversários, quando chegou aos quarenta anos, não lhe
roubaram o primeiro lugar, o lugar que o seu estilo altaneiro conferia a todos
os jogos que disputava. Depois, Ribbentrop falou um pouco de si, das
características do seu jogo. Sir Cadogan, a bem dizer, estava terrivelmente
farto daquelas histórias de ténis e escutava, com um sorriso, o ministro do
Reich. A senhora Chamberlain também fora apanhada na armadilha, no início
da refeição, e aguentava polidamente aquela maré de palavras. Ribbentrop
evocava agora a sua permanência no Canadá, quando jovem, numa altura em
que, de camisa e calças brancas, maltratando os seus mocassins nos cortes de
ténis, servia ases quase à vontade. Foi a ponto de se erguer e de imitar um
lob, e quase derrubou um copo, mas não, conseguiu apanhá-lo a tempo e
aquilo passou por uma graça. Voltou por momentos a falar de Tilden, das
doze mil pessoas que tinham ido vê-lo jogar em 1920, o que era um recorde
absoluto para a época, e continua ainda hoje a ser um número assombroso.
Mas principalmente tinha continuado a ser o number one, repetiu várias vezes
Ribbentrop, mantivera-se como number one durante muitos anos. Deus seja
louvado, chegou por fim o prato principal.
Como entrada, fora servida meloa da Charente gelada, que Ribbentrop
tratara de engolir sem lhe prestar atenção. O prato principal era uma galinha
de Louhans à Lucien Tendret. Churchill saudou a qualidade desse prato e,
talvez para se divertir à custa de Ribbentrop e para irritar Cadogan,
reencaminhou o ministro do Reich para o seu tema do ténis. Não tinha, esse
Bill Tilden, sido comediante na Broadway e autor de dois romances
execráveis, um chamado A Estrada Fantasma e o outro O Serviço sem
Energia, ou algo do género? Ribbentrop não sabia. Ignorava, de resto, muita
coisa a respeito de Tilden.
A refeição prosseguiu dessa forma. O embaixador do Reich parecia
completamente à vontade. De resto, Adolf Hitler reparara nele precisamente
por causa do seu desembaraço, da sua elegância old fashion e da sua cortesia,
que se destacava no meio daquilo que era o partido nazi, uma súcia de
bandidos e de criminosos. A sua atitude altiva, somada a um fundo de
perfeito servilismo, tinha-o projetado para o posto de ministro dos Negócios
Estrangeiros, um lugar invejado; estava naquela altura – nesse 12 de março
de 1938, em Downing Street – no auge daquilo que a vida lhe reservava.
Tinha iniciado a sua carreira profissional como importador de champanhes
Mumm e Pommery, e Hitler enviara-o depois para Inglaterra a fim de fazer
lobbying a favor do Reich, sondar os estados de espírito e obter, aqui e ali,
um certo número de informações. Nunca deixou, durante esse período
perturbado, de assegurar a Hitler que os ingleses eram perfeitamente
incapazes de reagir. Encorajava sempre o Führer a levar a cabo as ações mais
temerárias, lisonjeando as suas tendências megalómanas e brutais. Era assim
que haviam sido vencidas as etapas da glória nazi por aquele a quem Hitler,
sem que ele o soubesse, chamava por vezes «o pequeno vendedor de
champanhe», de tal forma os preconceitos são tenazes mesmo entre os mais
profundos destruidores da sociedade.
A meio da refeição, conforme o menciona Churchill nas suas Memórias,
um enviado do Foreign Office fez-se anunciar. Talvez estivessem nessa altura
a partilhar uma última perna de galinha, a menos que estivessem já nas
corniottes de queijo branco, acompanhados de limonada, ou que estivessem a
experimentar uma tarte de sêmola: duzentos gramas de farinha, cem gramas
de manteiga, um ou dois ovos, uma pitada de sal, dois decilitros e meio de
leite, sêmola, e água para não ficar tão espesso1. Poupo-vos aos pormenores
da guarnição e da cozedura. Porque se usavam muitas vezes receitas
francesas em Downing Street; o primeiro-ministro, Neville Chamberlain, era
um apreciador. E, de resto, porque não haveria ele de se envolver em
questões de culinária? Conta-se algures, na História Augusta, que no passado
o Senado de Roma deliberou durante horas a respeito do molho que deveria
acompanhar um cherne. Foi assim entre o tilintar dos garfos que o enviado do
Foreign Office entregou discretamente um envelope a Sir Cadogan. Houve
um silêncio de mal-estar. Sir Cadogan parecia ler muito atentamente. Aos
poucos, voltou novamente a falar-se. Ribbentrop fez de conta que nada se
tinha passado; segredou dois ou três elogios à dona da casa. Foi então que
Cadogan se ergueu e entregou a nota a Chamberlain. Cadogan não parecia
nem surpreendido nem contrariado por aquilo que acabara de ler. Refletia.
Chamberlain leu, por sua vez, com um ar preocupado. Durante esse tempo,
Ribbentrop continuava o seu número de tagarelice. A sobremesa acabara de
ser servida, morangos silvestres de um vermelho-vivo, como Escoffier sabia
prepará-los. Uma verdadeira delícia. Degustaram-nos com fervor e Cadogan
retomou o seu lugar, levando consigo a nota. Mas Churchill, que abrira um
dos seus grandes olhos de cocker e o voltara na direção de Chamberlain,
notou que este tinha uma ruga cavada entre os olhos; concluiu que estariam
perante uma notícia preocupante. Ribbentrop, esse, não via nada. Divertia-se,
sem dúvida absorvido pela alegria que lhe causava o ser agora ministro. A
convite da senhora Chamberlain, passaram ao salão.
Foi servido o café. Ribbentrop pôs-se então a falar dos vinhos franceses, a
sua especialidade, manteve dessa forma, ainda um momento, uma conversa
que aos poucos estiolava. Para ilustrar não se sabe bem o quê, apoderou-se de
um copo de champanhe invisível, colocado no topo da sua invisível pirâmide
de copos e fez uma saúde brilhante. O copo invisível estava devidamente
gelado, o champanhe invisível rondava os seis graus, temperatura ideal. A
sua faca de sobremesa toca ligeiramente no copo; Ribbentrop acena com a
cabeça, sorri. Lá fora, choveu, as árvores estão molhadas, os passeios
brilham.
Os Chamberlain manifestam a sua impaciência, mas delicadamente. Não se
pode abreviar uma receção deste género, com o ministro de uma potência
europeia. É preciso tato, dar com o momento certo para a retirada. Em breve,
os convidados tiveram também, sem dúvida, a sensação de que alguma coisa
se passava e que uma conversa subterrânea decorria entre Chamberlain e a
mulher, envolvendo cada vez mais protagonistas: Cadogan, Churchill e a
esposa, bem como alguns outros. Houve então uma primeira vaga de partidas.
Mas os Ribbentrop insistiam em ficar, alheios ao embaraço, ele
principalmente, a quem aquele dia de despedidas parecia embriagar,
privando-o do mais elementar dos tatos. A impaciência avolumou-se. Ainda
uma vez, muito delicadamente, sem o mostrar. Não se podia, com certeza,
pôr fora um convidado de honra; era preciso apenas que ele compreendesse
por si próprio que tinha chegado o momento de deixar o salão, de envergar o
sobretudo e de regressar ao seu grande Mercedes, com a cruz gamada.
Mas Ribbentrop não compreendia nada, absolutamente nada; tagarelava. A
sua mulher encetara, também ela, uma conversa animada com a senhora
Chamberlain. A atmosfera tornava-se irreal; os donos da casa manifestavam,
mediante muito ligeiras inflexões de voz, uma impaciência quase
indiscernível, mas que uma genuína educação deveria captar. Neste género de
ocasiões, costumamos perguntar-nos se seremos loucos ou demasiado
escrupulosos, se os outros sentirão o embaraço que nos parece palpável; mas
não, nada. O cérebro é um órgão estanque. Os olhos não traem o pensamento,
as mímicas impercetíveis são ilegíveis para os outros; crer-se-ia que o corpo
é, todo ele, um poema que nos deixa em chamas, mas de que os nossos
vizinhos não entendem patavina.

De repente, tentando controlar-se, Chamberlain diz a Ribbentrop: «Queira


desculpar-me, há um assunto urgente de que tenho de tratar.» Era um pouco
abrupto, mas não se tinha lembrado de outro modo de pôr um ponto final à
situação. Ergueram-se então, e a maioria dos convidados despediu-se dos
donos da casa e deixou Downing Street. Mas os Ribbentrop demoraram-se
um pouco mais entre os que não saíam. A discussão durou ainda um longo
momento. Ninguém evocou a nota que Cadogan e Chamberlain tinham lido
durante o almoço, e que flutuava entre eles como um pequeno fantasma de
papel, uma réplica desconhecida que todos teriam gostado de ouvir, e que era,
na realidade, o verdadeiro guião desta estranha comédia. Finalmente, todos se
retiraram, mas não antes de Ribbentrop ter debitado todas as suas insípidas
mundanidades. É que o antigo ator de teatro amador estava a desempenhar
um dos seus papéis secretos na grande cena da História. Antigo patinador de
gelo, jogador de golfe, tocador de violino, não há nada que Ribbentrop não
saiba fazer! Nada! Até mesmo prolongar o mais possível uma refeição
protocolar. Era realmente um estranho farsante, uma mistura curiosa de
ignorância e de requinte. Fazia, segundo parece, horríveis erros de sintaxe; e
Von Neurath, para o prejudicar – apesar de lhe passarem pelas mãos os
memorandos que Ribbentrop redigia, pelo seu próprio punho, para o Führer
–, evitava cuidadosamente corrigi-los.

Os últimos convidados acabaram por se retirar, e o casal Ribbentrop


levantou o acampamento. O motorista abriu-lhes a porta do carro. A senhora
Ribbentrop segurou delicadamente o vestido e ambos entraram na viatura.
Houve então uma franca demonstração de alegria. Os Ribbentrop riram-se da
partida que tinham pregado a toda a gente. Tinham-se evidentemente
apercebido muito bem de que, uma vez trazida a nota pelo agente do Foreign
Office, Chamberlain parecera preocupado, terrivelmente preocupado. E, é
claro, sabiam exatamente de que é que constava essa nota, e tinham-se
atribuído a missão de fazer com que Chamberlain e a sua equipa perdessem o
máximo de tempo possível. Tinham, por isso, eternizado a refeição, depois o
café, depois as discussões tidas no salão até ao limite do razoável. Durante
todo esse tempo, Chamberlain não pudera tratar do mais urgente, fora forçado
a falar de ténis e a saborear bolinhos de maçapão. Os Ribbentrop, conscientes
da sua enorme delicadeza, uma delicadeza quase doentia, que fazia com que
até a razão de Estado pudesse esperar, tinham-no utilmente desviado do seu
trabalho. É que essa nota, trazida pelo agente do Foreign Office, e cujo
mistério perdurara durante aquela infindável refeição, continha uma notícia
terrível: as tropas alemãs acabavam de entrar na Áustria.
1 Corniottes e tarte de sêmola (tarte au shion, no original) são especialidades francesas da região de
Louhans (Borgonha). (N. do T.)
BLITZKRIEG
Durante a manhã de 12 de março, os austríacos esperaram febrilmente a
chegada dos nazis, num entusiasmo indecente. Em bastantes filmes da época,
veem-se as pessoas de mão estendida em face dos balcões dos quiosques ou
das camionetas de feira, a tentar adquirir uma bandeirola com a cruz gamada.
Por toda a parte, punham-se nos bicos dos pés, empoleiravam-se em cornijas
e muretes, agarravam-se aos candeeiros, utilizavam fosse o que fosse, desde
que pudessem ver. Os alemães, porém, fazem-se esperar. Passou a manhã… e
depois a tarde foi deslizando, estranha; por momentos, um grande ruído de
motor tomava conta dos campos, as bandeiras agitavam-se, os sorrisos
floresciam nos rostos, «Estão a chegar! Estão a chegar!», ouvia-se gritar por
toda a parte. Os olhos desorbitados fixavam o asfalto… e nada. Voltava-se a
esperar, e depois serenava-se, de braços pendentes, e passado um quarto de
hora já se estava de novo sentado no chão, acocorado na erva, a discutir.
No dia 12, ao anoitecer, os nazis de Viena tinham previsto realizar uma
marcha com archotes, para celebrar a chegada de Adolf Hitler. A cerimónia
devia ser comovente e grandiosa. Esperou-se até bastante tarde, ninguém
veio. Não compreendiam o que se passava. Os homens bebiam cerveja e
cantavam, cantavam, mas em breve deixaram de ter grande vontade de cantar,
sentiam-se vagamente desiludidos. Então, quando três soldados alemães
desembarcaram de um comboio, houve um instante de júbilo. Soldados
alemães? Um milagre! Tornaram-se os convidados queridos de toda a cidade;
nunca ninguém gostou tanto deles como os vienenses naquela noite! Viena!
Ofereceram-lhes todos os teus chocolates, todos os teus ramos de pinheiro,
toda a água do Danúbio, todos os ventos dos Cárpatos, o teu Ring, o teu
palácio de Schönbrunn, com o seu salão chinês, o quarto de Napoleão, o
cadáver do rei de Roma, o sabre das Pirâmides! Tudo! E no entanto eram
apenas três soldadinhos, encarregados de tratar do acantonamento do
exército. Mas estavam tão ansiosos por que os invadissem, que os passearam
pela cidade, transportando-os em triunfo. E eles não compreenderam bem, os
três desgraçados, o entusiasmo que suscitavam. Não sabiam que podiam ser
tão amados. Tiveram até um pouco de medo… O amor é por vezes
inquietante. As pessoas começavam contudo a interrogar-se. Onde estava a
máquina de guerra alemã?, perguntavam. Que era feito dos tanques? Das
autometralhadoras? E de todos esses animais fabulosos que nos prometeram;
onde estavam eles? O Führer já não quereria saber da sua Áustria natal? Não,
não, não era isso, mas… um rumor começava a circular, ninguém ousava
realmente falar disso em voz alta. Era preciso, apesar de tudo, desconfiar dos
nazis, que ouviam tudo o que se dizia… Contava-se – não havia a certeza,
mas a situação confirmava de todo o modo os boatos – que, depois de ter,
com um ímpeto extraordinário, atravessado a fronteira, a fabulosa máquina de
guerra alemã tinha lamentavelmente gripado.
Na verdade, o exército alemão tivera as maiores dificuldades em passar a
fronteira. Isso fizera-se no meio de uma desordem sem nome, com uma
lentidão assustadora. E agora estava estacionado perto de Linz, tendo
percorrido não mais de cem quilómetros. Estava porém um belo tempo,
segundo parece, nesse 12 de março, um verdadeiro tempo de sonho.
Tudo começa muito bem! Às nove horas, ergue-se a barreira da alfândega,
e op! ei-los na Áustria. Sem mesmo necessidade de violências ou de trovões,
não, aqui está-se entre apaixonados, conquista-se sem esforço, com doçura,
no meio de sorrisos. Os carros blindados, os camiões, a artilharia pesada, toda
a parafernália, progridem lentamente para Viena, para a grande parada
nupcial. A noiva consente, não é uma violação, como alguns pretenderam, é
uma boda. Os austríacos esforçam a garganta de tanto gritar, fazem o melhor
que podem a saudação nazi, em sinal de boas-vindas; andam a treinar-se há
cinco anos. Mas a estrada para Linz é difícil, os carros engasgam-se, as
motocicletas tossem como se fossem escavadoras. Ah! melhor teriam feito,
os alemães, em ir jardinar, em dar uma voltinha pela Áustria para voltar logo
depois a Berlim, muito bem-comportados, e em transformar todo aquele
material em tratores, e em plantar couves no parque de Tiergarten. Porque
nos arredores de Linz tudo se complica. O céu está, no entanto, imaculado,
sereno, um dos mais belos céus possíveis.

O horóscopo de 12 de março foi maravilhoso para as pessoas dos signos


Balança, Caranguejo e Escorpião. O céu apresentava-se, em contrapartida,
nefasto para todos os outros. As democracias europeias opuseram à invasão
uma resignação fascinada. Os ingleses, que estavam ao corrente da sua
iminência, tinham prevenido Schuschnigg. Foi a única coisa que fizeram. Os
franceses, esses, estavam sem governo, a crise ministerial vinha mesmo a
calhar.
Em Viena, nessa manhã de 12 de março, apenas o chefe de redação do
Neues Wiener Tagblatt, Emil Löbl, publicará um artigo de homenagem ao
pequeno ditador Schuschnigg – um pequeníssimo ato de resistência, que será
quase o único. Durante a manhã, um grupo invadirá o jornal e forçá-lo-á
brutalmente a deixar as instalações. Os SA irrompem nos escritórios e
espancam os empregados, os jornalistas, os redatores. E contudo não são
nenhuns esquerdistas, os do Neues Wiener, não disseram nem palavra quando
o Parlamento se dissolveu no vazio, aprovaram com circunspeção o
catolicismo autoritário do novo regime, aceitaram as purgas sofridas pelas
redações durante o tempo de Dollfuss; e o afastamento dos sociais-
democratas, postos na prisão, impedidos de trabalhar, não os incomodou
excessivamente. Mas o heroísmo é uma coisa bizarra, relativa, e, em suma,
naquela manhã, é ao mesmo tempo comovente e inquietante ver Emil Löbl
ser o único a queixar-se.
Em Linz, as coisas passaram-se de igual forma. Tinham procedido a
horríveis depurações, e a cidade era agora completamente nazi. Cantavam por
toda a parte, anelantes, sempre na esperança de ver chegar o Führer. Dir-se-ia
que todos estão ali, o sol brilha e a cerveja corre livremente. Depois, a manhã
passa, dormita-se ao canto de um bar e, como não há nada que trave o tempo,
chega de súbito o meio-dia, o Sol atinge o zénite sobre o Pöstlingberg. As
fontes silenciam-se, as famílias regressam a casa para almoçar, o Danúbio
continua a correr. No Jardim Botânico, a fabulosa coleção de catos está cheia
de fiapos, as aranhas confundem-nos com moscas. Em Viena, ao balcão do
Café Grande, murmura-se que os alemães ainda não chegaram a Wels, que
talvez ainda nem sequer estivessem em Meggenhofen! Os maus espíritos
insinuam por troça que eles se enganaram de direção, que vão a caminho de
Susa ou de Damieta, que os verão no próximo ano no Bobino! Mas alguns
evocam já, em voz baixa, uma falha, uma imensa falha de carburante, um
grande problema de abastecimento.
Hitler saiu de Munique, de automóvel, o rosto açoitado por um vento
glacial. O seu Mercedes passa por florestas profundas. Tinha previsto ir
primeiro a Braunau, a sua terra natal, depois a Linz, a cidade onde passara a
juventude, e finalmente a Leonding, a terra onde os pais estão sepultados.
Era, em suma, uma bonita viagem. Por volta das dezasseis horas, Hitler tinha
transposto a fronteira em Braunau; estava um tempo radioso, mas muito frio,
o seu cortejo era composto por vinte e quatro automóveis e uma vintena de
camiões. Estão todos presentes: as SS, as SA, a polícia, todos os corpos de
exército. Comungam com a multidão. Param por um momento diante da casa
natal do Führer, mas não há tempo a perder! Já estão tão atrasados. As
meninas estendem ramos de flores, a multidão agita as pequenas bandeiras
com as cruzes gamadas, está tudo a correr bem. A meio da tarde, o cortejo já
atravessou numerosas aldeias, Hitler sorri, acena com a mão, é visível o
entusiasmo na sua cara; faz a saudação nacional-socialista a torto e a direito,
mesmo a vagos agrupamentos de campónios ou de meninas. Mas, as mais das
vezes, contenta-se com o gesto estranho que Chaplin parodiou com tamanha
felicidade, o braço dobrado num movimento desenvolto, um pouco feminino.
UM ENGARRAFAMENTO DE PANZERS

A Blitzkrieg é apenas uma fórmula, uma palavra agregada a um desastre


pela publicidade. O doutrinário dessa estratégia agressiva chama-se Guderian.
No seu livro Achtung – Panzer!, de título seco e surpreendente, Guderian
desenvolveu a teoria da guerra-relâmpago. Evidentemente, leu John Frederick
Charles Fuller; adorou o seu mau livro sobre o ioga, percorreu febrilmente as
suas profecias delirantes, onde pensou ter descoberto o terrível mistério do
mundo; mas foram sobretudo os artigos sobre a mecanização dos exércitos
que o fizeram perder noites e noites de sono. E deram-lhe que pensar, os
livros de Fuller, gostou da sua evocação apaixonada de uma guerra heroica e
brutal. Porque John Frederick Charles Fuller é um homem apaixonado, tão
apaixonado que um pouco mais tarde se ligará a Mosley, na deploração da
indolência das democracias parlamentares e no desejo de um regime um
pouco mais entusiasmante. É assim que ele se tornará membro da Nordic
League, cujo objetivo era a promoção do nazismo. O pequeno concílio
reunia-se em segredo, numa casa de campo bem inglesa, e dedicava longas
horas a falar dos judeus. Mas os seus simpatizantes não eram apenas
comerciantes de Mayfair, não, de modo nenhum, havia também Lady
Douglas-Hamilton, que gostava imenso de animais; porque, já se sabe, as
misérias estão, todas elas, sediadas na alma humana. Havia o bom duque de
Wellington, Arthur Wellesley, a coqueluche dos salões, antigo aluno de Eton,
que beneficiara de todas as facilidades do mundo, indesculpável portanto,
conhecedor de Propércio e de Lucano, que se passeava sem dúvida, ao nascer
do dia, a tocar uma flauta de Pã, pelo parque de sua casa, no meio dos
pastores de Teócrito, colecionador de obras de arte, talvez não bem das
melhores, mas ainda assim. E que, no entanto, tinha o crânio afilado, uma
boca sem energia, o olhar ausente, de tal forma que, se tivesse nascido num
arrabalde de Londres, nunca ninguém teria falado dele.

«Achtung – Panzer!» Nesse dia 12 de março de 1938, os blindados abriam


a parada; à frente do 16.o corpo de exército, Heinz Guderian ia por fim
realizar o seu sonho. O primeiro blindado alemão fora construído em 1918,
tendo sido feitos apenas vinte carros; era uma pesada carcaça de metal, uma
caixa de duzentos cavalos, um grande carrinho muito lento, de condução
complicada. Um deles, no final da Primeira Guerra, enfrentou em combate
singular um blindado inglês e foi irremediavelmente destruído. Se, após esse
primeiro batismo, o tanque tinha progredido bastante, o certo é que muito
estava ainda por fazer. O Panzer IV, por exemplo, que iria ser durante algum
tempo a rainha das batalhas, só estava ainda, naquele março de 1938, nos
seus primeiros vagidos. Fabricado pela Krupp, esse pequeno carro de assalto
era então um carro de combate muito medíocre. Com uma blindagem
excessivamente ligeira, incapaz de resistir aos obuses anticarros, o seu canhão
só lhe permitia atacar alvos pouco resistentes. O Panzer II era ainda mais
pequeno, uma verdadeira lata de sardinhas. Era rápido, ligeiro, mas incapaz
de romper a blindagem de um carro inimigo, enquanto ele próprio era
vulnerável. Ficou obsoleto logo à saída da fábrica. Devia, de resto, desde o
início ser apenas um carro de treino e formação, mas o fabrico atrasou-se; a
guerra chegou mais depressa do que fora previsto, e foi necessário colocá-lo
no ativo. Quanto ao Panzer I era quase uma miniatura, só dois homens é que
lá cabiam, sentados diretamente em cima do metal, como se fossem
professores de ioga. Além de ser excessivamente frágil, dispunha de um
armamento demasiado fraco, mas era em contrapartida barato, pouco mais
custava do que um trator.
O Tratado de Versalhes proibira aos alemães o fabrico de tanques, as
empresas alemãs produziram-nos pois no estrangeiro, por intermédio de
sociedades-sombra. Já por aqui se vê que a engenharia financeira tem servido
desde sempre para as manobras mais nocivas. Assim, às ocultas, a Alemanha
formara, ao que se dizia, uma prodigiosa máquina de guerra. E era justamente
esse novo exército, essa promessa enfim realizada às escâncaras, que todos os
austríacos aguardavam à beira da estrada, nesse dia 12 de março de 1938.
Deviam estar, pois, um pouco inquietos, um pouco febris sob o céu radioso.

Foi então que um minúsculo grão de areia se introduziu na formidável


máquina de guerra alemã. Houve primeiro uma fila inteira de blindados que
foi parar à berma do caminho. Hitler, cujo Mercedes teve de se afastar,
observou-os com desprezo. Depois, foram outros veículos da artilharia
pesada que se imobilizaram no meio da estrada; por mais que se buzinasse,
que se gritasse que o Führer tinha de passar, não houve nada a fazer, os
tanques remavam em cola. Um motor é uma coisa sublime, um verdadeiro
milagre, quando se pensa nisso. Um pouco de carburante, uma faísca, e op! a
pressão aumenta, afasta o pistão que provoca a rotação da cambota, e o
movimento inicia-se! Mas lá está, só é simples no papel, quando se avaria é
uma merda! Não se percebe nada. É preciso meter as mãos numa horrível
sebentice, desaparafusar, voltar a aparafusar… Ora, naquele 12 de março de
1938, não obstante o sol maravilhoso, estava um frio dos diabos. Não tinha
graça nenhuma ter de puxar da caixa das ferramentas à beira da estrada.
Hitler está fora de si, o que devia ser um dia de glória, uma travessia viva e
hipnótica, transforma-se em obstrução. Em vez da velocidade, a congestão;
em vez da vitalidade, a asfixia; em vez do impulso, o engarrafamento.
Nas pequenas cidades de Altheim, de Ried, um pouco por toda a parte, os
jovens austríacos aguardam, de cara arroxeada pelo vento. Alguns choram
mesmo de frio. Naquela época, na grande feira das personalidades, as
francesas querem ver Tino Rossi nas Galerias Lafayette e as americanas
querem dançar ao som das músicas de Benny Goodman. As austríacas,
porém, estão-se nas tintas para Tino Rossi e Benny Goodman; querem é
Adolf Hitler. De modo que, regularmente, à entrada das aldeias, ouve-se
gritar: «Der Führer kommt!» E, em seguida, pois que nada chega, põem-se a
falar seja do que for.
É que não eram apenas alguns tanques isolados a ter entrado em pane, não
era apenas um pequeno blindado aqui e além, não, era a imensa maioria do
grande exército alemão; e a estrada estava agora completamente bloqueada.
Ah! dir-se-ia estar a ver um filme cómico: um Führer ébrio de cólera, os
mecânicos a correr pela calçada, ordens gritadas à pressa na língua áspera e
febril do Terceiro Reich. Além de que um exército, quando avança em
direção a alguém, quando desfila à luz do Sol a trinta e cinco quilómetros por
hora, ocupa um belo espaço. Mas um exército paralisado não é nada. Um
exército paralisado é o ridículo garantido. O general leva uma reprimenda e
tantas! Urros, injúrias; Hitler considera-o responsável pelo fiasco. Foi preciso
afastar os veículos pesados, rebocar alguns tanques, empurrar alguns
automóveis, para deixar passar o Führer. Que chegou por fim a Linz, já a
noite tinha caído.

Durante esse tempo, sob uma lua glacial, as tropas alemãs carregaram a
toda a pressa o máximo de tanques que puderam em vagões de comboio.
Fizeram sem dúvida vir especialistas de Munique, maquinistas e operadores
de grua. Os comboios levaram então os blindados como se transporta o
equipamento de um circo. É que tinham de estar obrigatoriamente em Viena
para as cerimónias oficiais, o grande espetáculo! Deve ter sido uma cena
bizarra, aquelas silhuetas sinistras, aqueles comboios a circular de noite,
como se fossem ataúdes, ao longo da Áustria, com a sua carga de
autometralhadoras e de blindados.
ESCUTAS TELEFÓNICAS

A 13 de março, no dia que se seguiu ao Anschluss, os serviços secretos


britânicos surpreenderam uma curiosa comédia telefónica entre a Inglaterra e
a Alemanha – «Senhor Ribbentrop», queixava-se Göring, que estava
encarregado do governo do Reich enquanto Hitler voava para a sua pátria,
«essa questão do ultimato, com que teríamos ameaçado a Áustria, é uma
abominável mentira. Seyss-Inquart, que foi levado ao poder pelo
assentimento do povo, pediu-nos ajuda. Se soubesse a brutalidade de que faz
uso o regime de Schuschnigg!» E Ribbentrop responde: «É incrível! É
preciso que o mundo inteiro fique a saber.» A conversa prosseguiu nesse tom
durante uma boa meia hora. E é necessário imaginar a expressão dos que
anotaram aquelas frases estranhas, que devem ter ficado com a impressão de
ter de súbito acedido aos bastidores do teatro. Depois, o diálogo termina.
Göring evoca o tempo radioso. O céu azul. Os pássaros. Está na varanda de
sua casa, diz ele, e pode ouvir na rádio o entusiasmo dos austríacos. «É
maravilhoso!», exclama Ribbentrop.
Sete anos depois, no dia 29 de novembro de 1945, ouviu-se de novo o
mesmo diálogo. Eram as mesmas palavras, menos hesitantes talvez, mais
escritas; mas eram exatamente as mesmas palavras desenvoltas, o mesmo
sentimento de troça. As coisas passam-se, desta feita, em Nuremberga, no
tribunal internacional. O acusador dos Estados Unidos, Sydney Alderman, a
fim de sustentar a acusação de conspiração contra a paz, retira do seu dossiê
uma mão-cheia de folhas. Esta conversa entre Ribbentrop e Göring parece-
lhe muito esclarecedora; ouve-se nela uma espécie de «linguagem dupla», diz
ele, que visa induzir em erro as outras nações.
Alderman começou então a sua leitura. Lê o pequeno diálogo como se leem
as réplicas no teatro. De forma que, quando pronunciou o nome de Göring,
referindo a primeira personagem, o verdadeiro Göring, no banco dos
acusados, esboçou o gesto de se erguer. Percebeu, contudo, muito depressa
que não o estavam a chamar, que iam apenas desempenhar o seu papel diante
dele e reler as suas tiradas. Com uma voz monocórdica e pesada, Alderman
leu a pequena cena.

Göring – Senhor Ribbentrop, como sabe, o Führer confiou-me a direção do


Reich na sua ausência. Queria pois informá-lo da imensa alegria que
submerge a Áustria e que poderá ouvir na rádio.
Ribbentrop – Sim, é fantástico, não é?
Göring – Seyss-Inquart temia que o país mergulhasse no terror ou na guerra
civil. Pediu-nos que fôssemos imediatamente, e nós avançámos logo para a
fronteira, para evitar o caos.

O que Göring, no entanto, ignorava naquele momento, a 13 de março de


1938, era que um dia iriam apanhar algumas afirmações mais verídicas. Ele
próprio tinha pedido aos seus serviços que tomassem nota das suas conversas
importantes; era preciso que a História pudesse um dia conhecê-las. Viria
talvez a escrever, na velhice, a sua Guerra das Gálias, quem sabe? E poderia
basear-se nas notas tomadas ao vivo, no decurso dos grandes episódios da sua
carreira. O que ele ignorava era que essas notas, em vez de lhe irem parar à
secretária, quando já estivesse reformado, acabariam nas mãos de um
procurador, aqui, em Nuremberga. Puderam então ouvir-se outras cenas,
como as que tinham sido representadas entre Berlim e Viena, dois dias antes,
na noite de 11 de março, quando se pensava que ninguém estaria a escutar,
ninguém, pelo menos, para além de Seyss-Inquart ou de Dombrowski, o
conselheiro da embaixada que servia de intermediário e, claro, a pessoa que
anotava para a posteridade aquelas conversas prodigiosas. Não sabia que, na
realidade, toda a gente estava a ouvi-lo. Oh! não na altura em que falava, não,
mas no futuro justamente, naquela posteridade que tanto almejava. É assim.
Todas as conversas que Göring teve naquela noite estão, com efeito,
perfeitamente arquivadas e disponíveis. As bombas pouparam-nas por
milagre.

Göring – Quando é que Seyss-Inquart pensa constituir o seu governo?


Dombrowski – Às 21 horas e 15.
Göring – O governo tem de ficar constituído às 19 horas e 30.
Dombrowski – … às 19 horas e 30.
Göring – Keppler indicar-lhe-á os nomes. Sabe quem é que vai ser o
ministro da Justiça?
Dombrowski – Sim, sim…
Göring – Diga o nome…
Dombrowski – É o seu cunhado, não é?
Göring – É isso mesmo.

E, hora após hora, Göring dita a sua ordem do dia. Passo a passo. E na
brevidade das réplicas, ouve-se o tom imperioso, o desprezo. O lado mafioso
deste caso salta de súbito à vista. Ainda mal tinham decorrido vinte minutos
após a cena que acabámos de ler, é Seyss-Inquart quem liga. Göring manda-o
ir de novo ter com Miklas e de o fazer compreender que, se não o nomear
chanceler antes de baterem as dezanove e trinta, pode cair sobre a Áustria
uma invasão. Está-se muito longe da conversa simpática entre Göring e
Ribbentrop, mantida deliberadamente para os ouvidos dos espiões ingleses,
muito longe da ideia dos libertadores da Áustria. Mas uma coisa mais deve
ainda reter a atenção; é a expressão que Göring utiliza, esta ameaça de cair
sobre a Áustria. Associam-se-lhe de imediato imagens terríveis. Mas é
preciso rebobinar o fio para compreender de facto, é preciso esquecer o que
pensa saber-se, é preciso esquecer a guerra, é preciso desfazermo-nos das
atualidades da época, das montagens de Goebbels, de toda a sua propaganda.
É preciso lembrarmo-nos de que, nessa altura, a Blitzkrieg não é nada. É só
um engarrafamento de panzers. É só uma gigantesca falha de motores nas
estradas nacionais austríacas, nada mais do que o furor dos homens, uma
palavra vinda mais tarde como uma jogada de póquer. E o que espanta nesta
guerra é o extraordinário sucesso do descaramento, de que uma coisa deve ser
retida: o mundo cede perante o bluff. Mesmo o mundo mais sério, mais
rígido, mesmo a velha ordem, se não cedem nunca à exigência de justiça, se
nunca se vergam perante um povo que se revolta, vergam diante do bluff.

Em Nuremberga, Göring escutou a leitura de Alderman com o queixo


apoiado no punho. Por momentos, sorri. Os protagonistas da cena estão
reunidos na mesma sala. Já não estão em Berlim, em Viena e em Londres,
estão a alguns metros uns dos outros: Ribbentrop e o seu almoço de
despedida, Seyss-Inquart e o seu servilismo de kapo, Göring e os seus
métodos de gângster. Enfim, para terminar a sua demonstração, Alderman
voltou ao dia 13 de março. Leu o final do pequeno diálogo. Leu-o com um
tom monótono que lhe retirava todo o prestígio e tornava patente aquilo que
de facto era: uma pura e simples canalhice.
Göring – O tempo aqui está maravilhoso. O céu está azul. Estou sentado na
minha varanda, protegido por uma manta, ao ar livre. Estou a beber o meu
café. Os pássaros chilreiam. Ouço na rádio o entusiasmo dos austríacos.
Ribbentrop – É maravilhoso!

Naquele instante, por debaixo do relógio, no banco dos acusados, o tempo


imobiliza-se; alguma coisa se passa. Toda a sala se volta para eles. Conforme
Kessel, enviado especial do France-Soir ao tribunal de Nuremberga, conta,
ao ouvir aquela palavra «maravilhoso!», Göring põe-se a rir. Ao lembrar-se
daquela exclamação enfática, sentindo talvez até que ponto aquela réplica
teatral estava nos antípodas da grande História, da sua decência, da ideia que
se tem dos grandes acontecimentos, Göring olhou para Ribbentrop e pôs-se a
rir. E Ribbentrop, por sua vez, foi percorrido por um riso nervoso. Face ao
tribunal internacional, diante dos juízes, diante dos jornalistas do mundo
inteiro, não puderem conter o riso, no meio das ruínas.
O ARMAZÉM DOS ACESSÓRIOS

A verdade vive dispersa no meio de toda a espécie de poeiras. De modo


que, muito antes de adotar o nome Anders, Outro, o intelectual alemão
Günther Stern, emigrado para os Estados Unidos, pobre, judeu, forçado a
uma vida de trabalhos subalternos, que se tornou acessorista já com quarenta
anos feitos, trabalha no Hollywood Custom Palace, cujas galerias encerram
todo o passado do homem em matéria de vestuário. É que o Hollywood
Custom Palace é um guarda-roupa, aluga ao cinema os trajes de Cleópatra ou
de Danton, dos saltimbancos da Idade Média ou dos burgueses de Calais.
Encontra-se de tudo no Hollywood Palace, roupa usada de toda a
humanidade, o sublime nada, migalhas de glória dispersas pelas prateleiras,
simulacros de lembranças. Aqui conservam-se as espadas de madeira, as
coroas de cartão, os tabiques de papel. É tudo falso. O carvão no colarinho do
mineiro, a pele desgastada dos joelhos do mendigo, o sangue no pescoço do
condenado. A História é um espetáculo. No Hollywood Palace, tudo aquilo
que existiu se cruza num único presente: o vestuário dos mártires é estendido
e posto a secar nas mesmas cordas que as togas dos patrícios. Não se fazem
distinções. Parece que as imagens, o cinema, as fotografias não são o mundo
– não estou bem certo disso. Assim, os andares do edifício, onde as épocas se
amontoam, deixam uma impressão de absurdo ou de loucura. Como se se
estivesse no coração da grandeza, mas imobilizado, diminuído, como se a
poeira fosse apenas pó, o desgaste, ilusão, a sujidade, maquilhagem, e a
aparência, a verdade das coisas. Mas toda a humanidade, é decididamente
excessivo. E o Hollywood Palace empilha demasiados trapos, amontoa
demasiadas variantes, acumula demasiadas épocas. Pode lá encontrar-se o
drapeado romano dos filmes épicos, o egípcio de pacotilha, o babilónico de
circo, o grego caricaturado; mas também todas as variantes das tangas e dos
saiotes, o sari colorido das mulheres do Gujarate, o rico baluchari de
Bengala, o algodão ligeiro de Pondicherry; detetam-se ainda todos os
sarongues malaios, os vestidos de enfiar pela cabeça, ponchos, casacões,
paenulae; os primeiros vestidos de mangas, túnicas, blusas e camisas, o
cafetã, as peles de animais da pré-história e todos os antepassados das calças.
O Hollywood Palace é uma caverna maravilhosa. Claro, o trabalho que lá se
desenvolve não é muito brilhante, dobrar as peças de roupa do cadáver de
Pancho Villa, ajustar a gargantilha de Maria Stuart, arrumar o chapéu de
Napoleão na prateleira. Mas ainda assim, que privilégio: ser um acessorista
da História.
No seu diário, Günther Stern insiste: há ali todo o género de vestuário,
mesmo a roupa envergada pelos macacos de circo ou pelos pequenos cães de
Deauville; desde a parra de Adão até às botas dos SA, há mesmo tudo. Mas o
mais surpreendente não é o facto de se encontrarem aqui todos os trajes da
terra, é que já lá estejam os trajes dos nazis. E a ironia do caso, como nota
Günther Stern, é que seja um judeu a engraxar-lhes as botas. Porque é
evidente que é preciso tratar de todo aquele vestuário! E, tal como qualquer
outro funcionário do Hollywood Palace, Günther Stern tem de engraxar as
botas dos nazis com o mesmo cuidado com que escova os coturnos dos
gladiadores ou as sandálias dos chineses. Aqui, o drama não é admissível, é
preciso que os fatos estejam prontos para as filmagens, para a grande
encenação do mundo. E ficarão prontos; e têm um ar completamente
verdadeiro, mais que verdadeiro mesmo, mais exatos do que aqueles que se
encontram nos museus; réplicas perfeitas às quais não faltam nem um botão,
nem um fio e que, como nas prateleiras das lojas, têm um tamanho para cada
caso. Mas esses trajes não devem ser apenas réplicas indiscutíveis, devem
estar também gastos, rotos, sujos. Pois, de facto, o mundo não é um desfile de
moda e o cinema tem de dar a ilusão da realidade. É preciso pois manter os
falsos rasgões, as falsas manchas, as falsas marcas de ferrugem. É preciso dar
a impressão de que o tempo passou.
De forma que, muito antes de a batalha de Estalinegrado ter tido lugar,
antes de ter sido delineado o plano da operação Barbarossa, antes que o
tenham pesado e decidido; antes da campanha de França, antes mesmo de os
alemães se terem lembrado de a levar a cabo, a guerra já ali estava, na
estanteria do espetáculo. A grande máquina americana parece ter-se já
apoderado do seu imenso tumulto. Só descreverá a guerra sob a forma de
proeza. Torná-la-á um rendimento. Um tema. Um bom negócio. Afinal de
contas, não são nem os panzers, nem os stukas, nem os órgãos de Estaline
que refazem as coisas, as remodelam e as destroem. Não. É ali, naquela
Califórnia industriosa, na quadrícula formada por algumas avenidas, à
esquina de um donut e de uma bomba de gasolina, que a densidade das
nossas existências adota o tom das certezas coletivas. É ali, nos primeiros
supermercados, diante dos primeiros televisores, entre a torradeira e a
calculadora, que o mundo se descreve à sua genuína cadência, a cadência
que, em definitivo, acabará por adotar.
E enquanto o Führer se dedicava a preparar a sua agressão à França,
enquanto o seu Estado-Maior se dedicava a repetir as velhas fórmulas de
Schlieffen, e os mecânicos estavam ainda a reparar os panzers, Hollywood
tinha já posto os trajes que eles envergavam nas prateleiras do passado.
Estavam pendurados nos cabides dos casos encerrados, dobrados e
amontoados na secção das velharias. Sim, muito antes de a guerra começar,
na altura em que Lebrun, cego e surdo, assina os decretos sobre a lotaria, na
fase em que Halifax desempenha o papel de cúmplice e o povo aterrado da
Áustria crê vislumbrar o seu destino na silhueta de um louco, as fardas dos
militares nazis estão já arrumadas no armazém dos acessórios.
MÚSICA NO CORAÇÃO

A 15 de março, diante do palácio imperial, a toda a largura da praça, até à


grande estátua equestre de Carlos de Áustria, a multidão, a pobre multidão
austríaca, enganada, maltratada, mas em última análise aquiescente, está ali
para aclamar. Quando se soerguem os horríveis andrajos da História, é isso
que se encontra: a hierarquia contra a igualdade e a ordem contra a liberdade.
De modo que, induzida em erro por uma ideia de nação mesquinha e
perigosa, sem futuro, esta imensa multidão, frustrada por uma derrota
precedente, estende o braço para o ar. Diante dela, da varanda do palácio de
Sissi, com uma voz terrivelmente estranha, lírica, inquietante, eis que Hitler
conclui o seu discurso num grito rouco e desagradável. Vocifera num alemão
muito próximo da língua que será mais tarde inventada por Chaplin, feita de
imprecações, e em que apenas se distinguem algumas palavras dispersas,
«guerra», «judeus», «mundo». Neste ponto, a multidão uiva, é
numerosíssima. O Führer acaba de proclamar o Anschluss, a partir da
varanda em que discursa. As aclamações são tão unânimes, tão poderosas,
brotam com tamanha intensidade, que é legítimo interrogarmo-nos sobre se
não será sempre a mesma multidão que se ouve nas atualidades daquela
época, a mesma banda sonora. Porque são os filmes que se veem, são os
filmes de informação ou de propaganda que nos mostram esta história, são
eles que fabricaram o nosso íntimo conhecimento dos factos; e tudo aquilo
que pensamos está condicionado por esse homogéneo pano de fundo.
Nunca poderemos vir a saber. Já não se sabe quem fala. Os filmes desse
tempo transformaram-se nas nossas recordações mercê de um sortilégio
assombroso. A guerra mundial e o seu preâmbulo são arrastados por esse
filme infinito em que não se consegue distinguir o verdadeiro e o falso. E,
pois que o Reich recrutou mais cineastas, montadores, cameramen, técnicos
de som e maquinistas que qualquer outro protagonista deste drama, pode-se
dizer que, até à entrada na guerra dos russos e dos americanos, as imagens
que temos da guerra foram encenadas para toda a eternidade por Joseph
Goebbels. A História desenrola-se sob os nossos olhos como um filme de
Joseph Goebbels. É extraordinário. As atualidades alemãs tornam-se o
modelo da ficção. Dessa forma, o Anschluss parece um sucesso prodigioso.
Mas as aclamações foram evidentemente acrescentadas às imagens; estão,
como se diz, pós-sincronizadas. E pode bem ser que nenhuma das ovações
insensatas aquando das aparições do Führer tenha sido idêntica à que nós
ouvimos.
Revi esses filmes. Claro, é preciso não nos deixarmos enganar, vieram
militantes nazis de toda a Áustria, prenderam-se os opositores, os judeus,
trata-se de uma multidão escolhida, expurgada; mas os austríacos estão de
facto lá, não se trata apenas de uma multidão cinematográfica. Estão lá
aquelas jovenzinhas alegres, de tranças louras, está lá aquele parzinho que
grita a sorrir – ah todos aqueles sorrisos! aqueles gestos! As bandeirolas que
estremecem à passagem do cortejo! Nem um só tiro foi disparado. Que
tristeza!

Porém, nem tudo se tinha passado como se previa; e «o melhor exército do


mundo» acabava de mostrar que não era ainda outra coisa senão uma
agregação de metal, uma chapa de ferro vazia. No entanto, apesar da sua
impreparação, apesar de um material defeituoso, não obstante ainda há pouco
o zepelim que dava pelo nome de Hindenburg ter explodido antes de aterrar
em Nova Jérsia, e de trinta e cinco passageiros terem morrido, apesar de a
maioria dos generais da Luftwaffe ignorar ainda muita coisa acerca da
aviação de caça, apesar de Hitler se ter arrogado o comando militar supremo
sem nenhuma experiência do assunto, as atualidades do tempo deixam a
sensação de uma máquina implacável. Vê-se os blindados alemães
avançarem, em planos sabiamente enquadrados, no meio de uma multidão
jubilosa. Quem poderia imaginar que acabam de sofrer uma gigantesca
avaria? O exército alemão parece marchar a caminho da vitória, uma vitória
muito simples, juncada de flores e de sorrisos. Suetónio conta que Calígula, o
imperador romano, tinha transportado dessa forma as suas legiões até ao
Norte, e que, num momento de hesitação ou de êxtase, as tinha alinhado
diante do mar e lhes ordenara que apanhassem conchas. Pois bem, ao ver as
atualidades francesas, tem-se a impressão de que os soldados alemães
passaram o dia a respigar sorrisos.

Parece, às vezes, que aquilo que nos sucede está escrito num jornal com
vários meses; é um sonho mau que já se sonhou. Assim, cerca de seis meses
mais tarde, seis meses volvidos sobre o Anschluss, a 29 de setembro de 1938,
está-se em Munique, para a célebre conferência. E, como se os apetites de
Hitler pudessem ficar por aí, salda-se a Checoslováquia. As delegações
francesa e inglesa vão até à Alemanha. São bem acolhidas. No grande hall, o
lustre tilinta, os pingentes de cristal, tal como aqueles carrilhões que o vento
faz balouçar, executam a sua partição aérea por sobre as cabeças dos papões.
As equipas de Daladier e de Chamberlain tentam arrancar a Hitler algumas
concessões insignificantes.
Arrasa-se a História, admite-se que ela confere uma pose aos protagonistas
dos nossos tormentos. Nunca se veria a bainha suja, a toalha amarelada, o
talão do livro de cheques, a mancha de café. Dos acontecimentos, só nos seria
exibido o lado positivo. Contudo, se se olhar com atenção, na fotografia em
que se vê Chamberlain e Daladier, em Munique, imediatamente antes da
assinatura dos acordos, ao lado de Hitler e de Mussolini, os primeiros-
ministros inglês e francês não parecem muito satisfeitos com o seu papel.
Apesar de tudo, lá assinam. Depois de terem percorrido as ruas de Munique
sob as aclamações de uma imensa multidão, que os acolhe com a saudação
nazi, lá acabam por assinar. E podem ser vistos, um deles, Daladier, de
chapéu na cabeça, pouco à vontade, a retribuir com pequenos acenos, o outro,
Chamberlain, com o hat na mão e um grande sorriso. Este incansável artesão
da paz, como lhe chamam as atualidades desse tempo, sobe a escadaria
exterior, fixada para todo o sempre a preto e branco, entre duas filas de
soldados nazis.
Nesse momento, o comentador, inspirado, diz em voz fanhosa que os
quatro chefes de Estado, Daladier, Chamberlain, Mussolini e Hitler,
animados por uma mesma vontade de paz posam para a posteridade. A
História devolve estes comentários à sua irrisória nulidade e lança sobre as
atualidades futuras um descrédito pungente. Parece que em Munique teria
nascido uma imensa esperança. Os que dizem isso ignoram o sentido das
palavras. Falam a linguagem do paraíso, na qual, segundo se diz, todas as
palavras se equivalem. Um pouco mais tarde, Édouard Daladier, na Rádio
Paris, seiscentos e quarenta e oito metros em ondas longas, após algumas
notas musicais, conta o que se passou. Tem a certeza de ter salvado a paz na
Europa, é o que diz. Mas não acredita em nada disso. «Ah! os parvos, se eles
soubessem!», teria ele murmurado ao descer do avião, diante da multidão que
o aclama. Nesse grande bricabraque de miséria onde se preparam os piores
acontecimentos, domina um respeito misterioso pela mentira. As manobras
derrubam os factos; e as declarações dos nossos chefes de Estado serão em
breve arrastadas como uma cobertura de chapa de ferro por uma tempestade
de primavera.
OS MORTOS

A fim de sancionar a anexação da Áustria, organizou-se um referendo.


Prenderam-se os restantes opositores. Os padres apelaram no púlpito a que se
votasse a favor dos nazis e as igrejas adornaram-se com bandeiras com cruzes
gamadas. Até o antigo líder dos sociais-democratas apelou a que se votasse
sim. Quase não houve vozes discordantes. 99,75% dos austríacos votaram a
favor da integração no Reich. E enquanto os vinte e quatro homenzinhos do
princípio desta história, os sacerdotes da grande indústria alemã, estudavam
já o desmembramento do país, Hitler tinha feito aquilo a que pode chamar-se
uma volta triunfal pela Áustria. Durante esse fantástico reencontro, fora
aclamado por toda a parte.
E no entanto, imediatamente antes do Anschluss, houve mais de mil e
setecentos suicídios numa só semana. Em breve, noticiar um suicídio na
imprensa tornar-se-ia um ato de resistência. Alguns jornalistas ousarão ainda
escrever «morte súbita»; as represálias farão com que rapidamente se calem.
Procurar-se-ão outras fórmulas usuais, sem consequência. De modo que o
número dos que puseram termo aos seus dias continua a ser ignorado, como
ignorados continuam os seus nomes. No dia seguinte ao da anexação,
puderam ainda ler-se na Neue Freie Presse quatro necrologias: «No dia 12 de
março, de manhã, Alma Biro, funcionária, de 40 anos de idade, cortou as
veias com uma navalha, antes de abrir o gás. Nessa mesma altura, o escritor
Karl Schlesinger, de 49 anos de idade, meteu uma bala na cabeça. Uma dona
de casa, Helene Kuhner, de 69 anos, suicidou-se igualmente. Durante a tarde,
Leopold Bien, funcionário, de 36 anos, atirou-se da janela. Ignoram-se os
motivos do seu ato.» Esta pequena apostila banal causa imensa vergonha.
Porque, no dia 13 de março, ninguém pode ignorar esses motivos. Ninguém.
Não se deve de resto falar de motivos, mas de uma única causa.
Alma, Karl, Leopold ou Helene terão talvez visto, da janela, os judeus
arrastados pelas ruas. Bastou-lhes vislumbrar aqueles a quem raparam a
cabeça para compreender. Bastou-lhes entrever o homem sobre cujo occipital
os transeuntes pintaram uma cruz de Santo António, a cruz dos cruzados, que
ainda há uma semana era usada pelo chanceler Schuschnigg na lapela do
casaco. Terá mesmo bastado que lho tenham referido, que o tenham
adivinhado, calculado, imaginado, antes até de acontecer. Ter-lhes-á bastado
ver as pessoas sorrirem para perceber.
E pouco importa que naquela manhã Helene tenha ou não visto, por entre a
multidão ululante, os judeus acocorados, de gatas, obrigados a limpar os
passeios sob o olhar divertido dos transeuntes. Pouco importa que tenha ou
não assistido às cenas ignóbeis em que os obrigaram a comer erva. A sua
morte traduz apenas o que ela sentiu, a grande desgraça, a realidade
hedionda, o seu nojo de um mundo que ela viu revelar-se na sua nudez
assassina. Porque, no fundo, o crime já ali estava, nas bandeirinhas, nos
sorrisos das jovens, em toda aquela primavera pervertida. E até mesmo nos
risos, no fervor desenfreado, Helene Kuhner deve ter sentido o ódio e o
prazer. Deve ter pressentido – numa antevisão aterradora – que, por detrás
daqueles milhares de silhuetas e de rostos, se escondiam milhões de forçados.
E adivinhou, no júbilo assustador, a escadaria de granito de Mauthausen.
Então viu-se a morrer. No sorriso das jovens de Viena, nesse dia 12 de março
de 1938, no meio dos gritos da multidão, no perfume fresco dos miosótis, no
coração daquela alegria bizarra, de todo aquele entusiasmo, deve ter
experimentado uma mágoa de trevas.
Serpentinas, papelinhos, bandeirolas. Que terá acontecido a essas meninas
loucas de entusiasmo, o que terá sucedido aos seus sorrisos? à sua
despreocupação? aos seus rostos tão sinceros, tão alegres! a todo esse júbilo
de março de 1938? Se uma delas de repente hoje se reconhece no ecrã, em
que é que pensará? O verdadeiro pensamento é sempre secreto, desde o
princípio do mundo. Pensa-se por apócope, em apneia. Lá em baixo, nas
profundezas, a vida escorre como uma seiva, lenta, subterrânea. Mas agora
que as rugas lhe roeram a boca, irisaram as pálpebras, silenciaram a voz –
com o olhar a correr, à superfície das coisas, entre o televisor que cuspinha as
suas imagens de arquivo e o iogurte, enquanto a enfermeira se ativa em redor,
sem nenhum conhecimento dos factos, de tal forma está longe da guerra
mundial, pois que as gerações se rendem umas às outras como fazem as
sentinelas na noite mais escura –, como separar a juventude que se viveu, o
cheiro a fruto, essa irrupção de vida de cortar a respiração, e o horror?
Ignoro-o. E no lar para onde a mandaram, no meio do cheiro enjoativo a éter
e a tintura de iodo, na sua fragilidade de pássaro, será que aquela criança
idosa e fanada que se reconhece no pequeno filme, no retângulo frio do
televisor, ela que continua viva, depois da guerra, das ruínas, da ocupação
norte-americana ou russa, com as sandálias a gemer no linóleo, as mãos
tépidas cobertas de manchas que deslizam lentamente dos braços de vime da
cadeira, quando a enfermeira abre a porta, será que ela por vezes suspira,
retirando do formol as suas penosas lembranças?
Alma Biro, Karl Schlesinger, Leopold Bien e Helene Kuhner não viveram
tanto tempo. Antes de se atirar da janela, a 12 de março de 1938, Leopold
tivera de enfrentar várias vezes a verdade e, em seguida, a vergonha. Pois não
era, também ele, austríaco? e não tivera de suportar, desde há anos, as
facécias grotescas do nacional-catolicismo? Quando de manhã dois nazis
austríacos lhe bateram à porta, o rosto do jovem pareceu de súbito muito
envelhecido. Há já algum tempo que procurava palavras novas, sem ligação
com a autoridade e a sua violência; mas não conseguia dar com elas. Andava
dias a fio pelas ruas, sempre no receio de deparar com um vizinho mal-
intencionado, ou com um antigo colega que lhe virasse a cara. A vida de que
ele gostava deixara de existir. Nada tinha sobrado: nem os escrúpulos do
trabalho, que o faziam sentir um certo prazer em fazer bem as coisas, nem a
refeição frugal do meio-dia, uma merenda que comia sentado nos degraus da
entrada de um prédio já velho, a olhar para os transeuntes. Tudo isso fora
destruído. De modo que, nessa manhã de 12 de março, quando tocou a
campainha, o pensamento envolveu-o numa densa neblina e escutou um
instante a pequena voz interior que escapa sempre às longas intoxicações da
alma; abriu a janela e saltou.

Numa carta enviada a Margarete Steffin, com uma ironia febril a que o
tempo e as revelações do pós-guerra conferem algo insustentável, Walter
Benjamin conta que o fornecimento de gás foi de súbito cortado aos judeus
de Viena; o consumo que faziam acarretava prejuízos para a companhia
abastecedora. É que os maiores consumidores eram precisamente os que não
pagavam as faturas, acrescenta ele. Nessa altura, a carta de Benjamin a
Margarete adquire um tom estranho. Não há a certeza de a entender bem.
Hesita-se. O seu significado flutua entre os ramos, na palidez do céu, e
quando se torna mais claro, formando de súbito uma pequena poça de sentido
no meio de nenhures, a carta torna-se uma das mais tresloucadas e mais
tristes de todos os tempos. Pois se a companhia austríaca se recusava
doravante a abastecer os judeus, é porque estes se matavam
preferencialmente com recurso ao gás e deixavam as faturas por pagar.
Perguntei-me se isso seria verdade – de tal forma a época inventou horrores,
por um pragmatismo insensato –, ou se seria apenas um gracejo, um gracejo
terrível, inventado à luz de velas funestas. Mas pouco importa que se trate de
um gracejo especialmente amargo ou de uma realidade; quando o humor
pende para tamanho negrume, é porque diz a verdade.
Em tal adversidade, as coisas perdem o nome. Apartam-se de nós. E deixa
de poder falar-se em suicídio. Alma Biro não se suicidou. Karl Schlesinger
não se suicidou. Leopold Bien não se suicidou. E Helene Kuhner, também
não. Nenhum deles se matou. A sua morte não pode identificar-se com a
narrativa misteriosa das suas desditas. Não pode mesmo dizer-se que tenham
escolhido morrer dignamente. Não. Não foi um desespero íntimo a devastá-
los. A sua dor é uma coisa coletiva. E o seu suicídio, um crime cometido por
outrem.
MAS QUEM É TODA ESTA GENTE?

Basta por vezes uma palavra para congelar uma frase, para nos mergulhar
num qualquer devaneio; o tempo, contudo, não é sensível a essas coisas.
Prossegue a sua peregrinação, imperturbável, no meio do caos. De forma que,
na primavera de 1944, Gustav Krupp, um dos sacerdotes da indústria que
vimos logo no início desta história a dar o seu óbolo aos nazis e a apoiar o
regime desde a primeira hora, estava a jantar em companhia de sua mulher,
Bertha, e do filho mais velho, Alfried, o herdeiro do Konzern. Era o último
momento que passavam na Villa Hügel, o enorme palácio onde sempre
tinham vivido e em que o seu poder se encarnava. Agora, a aventura estava a
correr mal. Os exércitos alemães retiravam em todas as frentes. Era preciso
decidirem-se a deixar aquele seu domínio e a retirarem-se para as montanhas,
longe do Ruhr, em Blühnbach, onde as bombas não os atingiriam, na paz fria
e branca.
De repente, o velho Gustav ergueu-se. Tinha-se há muito afundado numa
demência irrecuperável. Incontinente e sem tino, mantinha-se desde há anos
silencioso. Contudo, naquela noite, a meio da refeição, ergueu-se
bruscamente e, apertando o guardanapo contra o peito num gesto de profundo
temor, estendeu um longo dedo magro para o fundo da sala, mesmo por
detrás do sítio onde estava o filho, e disse entre dentes: «Mas quem é toda
esta gente?» A mulher também se voltou, o filho olhou para trás. Tiveram
muito medo. O canto da sala estava mergulhado na sombra. Dir-se-ia que a
obscuridade se movia, que algumas silhuetas rastejavam lentamente na
escuridão. Mas não eram os fantasmas da Villa Hügel que o gelavam de
medo, não, não eram nem as lâmias, nem as larvas, eram homens
verdadeiros, com rostos reais, que o fixavam. Viu olhos enormes, figuras que
se destacavam das trevas. Desconhecidos. Teve um medo horrível. Ficou
petrificado, de pé. Os criados imobilizaram-se. Os cortinados pareceram
tornar-se de gelo. E ele teve a impressão de realmente ver, de nunca ter visto
tanto como naquele minuto. E o que ele viu, o que surgiu lentamente da
sombra, eram dezenas de milhares de cadáveres, os trabalhadores forçados,
os que as SS lhe tinham fornecido para as suas fábricas. Que surgiam, agora,
do nada.
Durante anos, contratara deportados em Buchenwald, em Flossenbürg, em
Ravensbrück, em Sachsenhausen, em Auschwitz e em muitos outros campos
ainda. A sua esperança de vida era de alguns meses. Se o prisioneiro
escapava às doenças infeciosas, acabava por morrer literalmente de fome.
Mas Krupp não foi o único a contratar tais serviços. Os seus comparsas da
reunião de 20 de fevereiro beneficiaram também deles; por detrás das paixões
criminosas e das gesticulações políticas, os interesses de todos eles eram
assim acautelados. A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão de
obra em Mauthausen. A BMW contratava em Dachau, em Papenburg, em
Sachsenhausen, em Natzweiler-Struthof e em Buchenwald. A Daimler, em
Schirmeck. A IG Farben recrutava em Dora-Mittelbau, em Gross-Rosen, em
Sachsenhausen, em Buchenwald, em Ravensbrück, em Dachau, em
Mauthausen, e explorava uma fábrica gigantesca no campo de Auschwitz: a
IG Auschwitz, que, com todo o impudor, surge com esse nome no
organigrama da empresa. A Agfa recrutava em Dachau. A Shell, em
Neuengamme. A Schneider, em Buchenwald. A Telefunken, em Gross-Rosen
e a Siemens, em Buchenwald, em Flossenbürg, em Neuengamme, em
Ravensbrück, em Sachsenhausen, em Gross-Rosen e em Auschwitz. Todos se
tinham precipitado sobre essa mão de obra tão barata. Não é pois Gustav que
naquela noite tem alucinações, no meio do repasto familiar, são Bertha e o
filho que se recusam a ver. Porque os mortos estão de facto ali, presentes, na
sombra.
Num grupo de seiscentos deportados, chegados em 1943, às fábricas
Krupp, só restavam um ano mais tarde não mais de vinte. Um dos últimos
atos oficiais de Gustav, antes de ceder a direção da empresa ao filho, foi a
criação do Berthawerk, uma fábrica concentracionária com o nome da
mulher, que pretendia ser uma espécie de homenagem. Vivia-se aí negro de
imundície, infestado de pulgas, era-se obrigado a caminhar cinco
quilómetros, no verão e no inverno, calçado apenas de simples galochas, para
ir do campo até à fábrica e da fábrica até ao campo. Acordava-se às quatro e
meia da manhã, cercado de guardas SS e de cães treinados, e apanhava-se
pancada e era-se torturado. Quanto à refeição da noite, demorava por vezes
duas horas; não por causa do tempo que levava a comer, mas porque era
preciso esperar; não havia malgas suficientes para servir a sopa.
Regressemos agora por um breve instante ao início desta história e
observemo-los de novo, aos vinte e quatro, em redor da mesa. Dir-se-ia uma
qualquer reunião de chefes de empresa. São os mesmos fatos, as mesmas
gravatas escuras ou às riscas, os mesmos lencinhos de seda, os mesmos
óculos de armações douradas, as mesmas cabeças calvas, os mesmos rostos
razoáveis que hoje em dia se podem ver. No fundo, a moda não mudou. Daí a
algum tempo, em vez da Insígnia de Ouro, alguns usarão com orgulho a Cruz
Federal do Mérito, como entre nós se usa a Legião de Honra. Os regimes
celebram-nos da mesma maneira. Vejamo-los à espera, naquele dia 20 de
fevereiro, com um ar grave e razoável, enquanto o diabo passa mesmo atrás
deles, na ponta dos pés. Conversam entre si; o seu pequeno consistório é
perfeitamente semelhante a centenas de outros. Não acreditemos que tudo
isso pertença a um passado distante. Não se trata de monstros antediluvianos,
de criaturas desaparecidas miseravelmente nos anos cinquenta, por sob a
miséria pintada por Rossellini, arrastados no meio das ruínas de Berlim. Estes
nomes continuam a existir. As suas fortunas são imensas. As suas sociedades
fundiram-se por vezes umas com as outras e deram lugar a conglomerados
todo-poderosos. Na página do grupo Thyssen-Krupp, um dos líderes
mundiais da indústria do aço, cuja sede social se mantém em Essen e cujas
palavras de ordem são, hoje em dia, flexibilidade e transparência, encontra-se
uma pequena nota a respeito dos Krupp. Gustav, diz-se aí, não apoiou
ativamente Hitler nos anos que precederam 1933, mas uma vez este eleito
chanceler mostrou-se leal para com o seu país. Só se tornou membro do
partido nazi em 1940, esclarece-se ainda, por ocasião do seu septuagésimo
aniversário. Profundamente ligados às tradições sociais da companhia,
Gustav e Bertha nunca deixaram, a despeito de tudo e de todos, de manter
viva a que consistia em visitar os seus empregados mais fiéis por ocasião das
suas bodas de ouro. E a biografia conclui-se por uma nota tocante: durante
muitos anos, Bertha, com extrema dedicação, tratou do marido, que
entretanto ficara inválido, num pequeno edifício que ficava ao lado da
residência de ambos, em Blühnbach. Não são mencionadas, nem as fábricas
concentracionárias, nem os trabalhadores forçados, nada disso.
Durante o seu último jantar na Villa Hügel, uma vez ultrapassado o medo,
Gustav voltou tranquilamente a sentar-se no seu lugar e os rostos
regressaram à escuridão. De lá voltaram a sair, ainda uma vez, em 1958.
Alguns judeus de Brooklyn exigiram uma indemnização. Gustav tinha
oferecido sem pestanejar somas astronómicas aos nazis depois da reunião de
20 de fevereiro de 1933, mas agora o filho, Alfried, mostrava-se menos
pródigo. Ele que clamava que os ocupantes tratavam os alemães «como
negros», nem por isso deixará de tornar-se um dos homens mais poderosos do
Mercado Comum, o rei do carvão e do aço, o pilar da paz europeia. Antes de
se decidir a pagar aquelas indemnizações, fez arrastar a negociação durante
dois longos anos. Cada sessão com os advogados do Konzern era pontuada
por observações antissemitas. Chegou-se apesar de tudo a um acordo. A
Krupp comprometeu-se a pagar mil duzentos e cinquenta dólares a cada
sobrevivente; o que era bem pouco como pagamento de tudo o que se
passara. Mas o gesto da Krupp foi saudado unanimemente pela imprensa.
Isso valeu-lhe mesmo uma bela publicidade. Bem depressa, contudo, à
medida que os sobreviventes se davam a conhecer, o valor atribuído a cada
um deles foi-se tornando mais pequeno. Passou-se primeiro para setecentos e
cinquenta dólares e, por fim, para quinhentos. Finalmente, quando outros
deportados se deram a conhecer, o Konzern informou-os de que já não tinha
infelizmente possibilidade de efetuar mais pagamentos voluntários: os judeus
tinham custado demasiado.

Não se cai nunca duas vezes no mesmo abismo. Mas cai-se sempre da
mesma forma, com uma mistura de ridículo e de pavor. E deseja-se tanto não
voltar a cair, que se resiste, se grita. Partem-nos os dedos aos pontapés, os
dentes, com bicadas, roem-nos os olhos. O abismo está rodeado de moradas
imponentes. E a História ali está, deusa razoável, estátua imóvel no meio da
praça das Festividades, recebendo por tributo, uma vez por ano, ramos secos
de peónias e, à laia de espórtula, em cada dia, um pouco de pão para os
pássaros.

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