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O Sol é um astro frio. O seu coração, espinhos de gelo. A sua luz, sem
perdão. Em fevereiro, as árvores estão mortas, o rio tornado pedra, como se a
nascente não deitasse água e o mar não conseguisse engolir mais. O tempo
imobiliza-se. De manhã, nem um ruído, nem o canto de um pássaro, nada
mesmo. Depois, um automóvel, outro ainda, e de súbito passos, silhuetas que
se não podem ver. O contrarregra bateu as três pancadas, mas o pano não se
ergueu.
É uma segunda-feira, a cidade agita-se por detrás do ecrã de nevoeiro. As
pessoas vão para o trabalho como nos outros dias, apanham o elétrico, o
autocarro, sobem para a imperial, e ficam a cismar ao frio. Mas o dia 20 de
fevereiro desse ano não foi uma data igual às outras. Contudo, a maioria
passou a manhã em tarefas árduas, mergulhada nessa grande mentira decente
do trabalho, com esses pequenos gestos em que se concentra uma verdade
muda, decorosa, na qual toda a epopeia da nossa existência se resume a uma
pantomima diligente. O dia passou-se assim, em sossego, normal. E enquanto
cada um ia e vinha entre a casa e a fábrica, entre o mercado e o pequeno pátio
em que se estende a roupa, e depois, ao escurecer, entre o escritório e o
botequim, para por fim regressar a casa, longe, bem longe do trabalho
decente, da vida familiar, à beira do Spree, alguns senhores apeavam-se de
viaturas diante de um palacete. Abriram-lhes obsequiosamente as portas dos
carros, e eles desceram dos grandes automóveis negros e passaram uns a
seguir aos outros por sob as pesadas colunas de grés.
Eram vinte e quatro, junto às árvores mortas da margem, vinte e quatro
sobretudos negros, castanhos ou conhaque, vinte e quatro pares de chumaços
acolchoados de lã, vinte e quatro fatos de três peças e um número idêntico de
calças pregueadas, com um grande debrum. As sombras penetraram no
grande vestíbulo do palacete do presidente da Assembleia; em breve, porém,
deixará de haver Assembleia, deixará de haver presidente e, dentro de alguns
anos, deixará até de haver edifício do Parlamento, apenas um monte de ruínas
fumegantes.
De momento, retiram-se vinte e quatro chapéus de feltro e põem-se a
descoberto vinte e quatro crânios calvos ou coroados de cabelos brancos.
Apertam-se dignamente as mãos antes da entrada em cena. Os veneráveis
patrícios estão ali, no grande vestíbulo; trocam pequenos gracejos,
respeitáveis; dir-se-ia estar a assistir às primícias um pouco afetadas de um
garden-party.
As vinte e quatro silhuetas venceram conscienciosamente um primeiro
lanço, depois devoraram um após outro os degraus da escadaria, detendo-se
por vezes para não fatigarem em excesso os corações já idosos, e, de mãos
aferradas ao corrimão de cobre, subiram, de olhos semicerrados, sem
admirarem nem o elegante balaústre, nem as abóbadas, como se passassem
por cima de um montão de invisíveis folhas mortas. Conduziram-nos, por
uma pequena porta, à sua direita, e aí, após darem alguns passos sobre um
chão axadrezado, escalaram os cerca de trinta degraus que levavam ao
segundo piso. Ignoro quem era o primeiro do grupo o que, no fundo, pouco
importa, visto que os vinte e quatro tiveram de fazer exatamente o mesmo,
seguir o mesmo caminho, voltar à direita, em redor da caixa de escada até,
por fim, infletindo para a esquerda, onde as portas de batente estavam
escancaradas, entrarem no salão.
A literatura autoriza tudo, diz-se. Poderia, por conseguinte, fazê-los rodar
indefinidamente na escada de Penrose, sem que pudessem nunca mais subir
ou descer, obrigados a fazer ao mesmo tempo uma e outra coisa. E, na
verdade, é um pouco esse o efeito que os livros têm sobre nós. O tempo das
palavras, compacto ou líquido, impenetrável ou cheio de pormenores, denso,
alongado, granuloso, petrifica os movimentos, imobiliza todos os que se
confrontam com ele. As nossas personagens entraram no palacete para todo o
sempre, como num castelo enfeitiçado. Ei-los fulminados logo à entrada,
lapidificados, transidos. As portas estão ao mesmo tempo abertas e fechadas,
as impostas desgastadas, arrancadas, destruídas ou pintadas de novo. A caixa
de escada brilha, mas está vazia, o lustre cintila, mas está morto. Estamos em
simultâneo por toda a parte, no tempo. Por exemplo, Albert Vögler subiu a
escada até ao primeiro patamar e, aí, levou a mão ao colarinho, a transpirar, a
escorrer mesmo, sentindo uma ligeira vertigem. Sob o grande lampião
dourado que ilumina a escadaria, endireita o colete, abre um botão, alarga o
colarinho. Talvez Gustav Krupp tenha também feito uma pausa no patamar e
dirigido uma palavra de compaixão a Albert, um pequeno apotegma a
respeito da velhice, lhe tenha, em suma, dado mostras de solidariedade.
Depois, Gustav retomou o caminho e Albert Vögler permaneceu ali, uns
instantes mais, sozinho sob o lustre, grande vegetal revestido de ouro, tendo,
ao meio, uma enorme bola de luz.
Por fim, entraram no pequeno salão. Wolf-Dietrich, secretário particular de
Carl von Siemens, demorou-se um pouco junto da janela de sacada, deixando
vaguear os olhos pela leve camada de orvalho que cobria a varanda. Escapa
por momentos à torpe cozinha do mundo, entre os flocos de neve, ali
suavemente adormentados. E enquanto os outros trocam algumas palavras e
fumam um Montecristo, discorrendo acerca do creme ou do acinzentado do
invólucro, preferindo uns o sabor macio, outros, um gosto a especiarias, todos
no entanto adeptos dos diâmetros enormes, do género osso de carneiro, ou
apertam distraidamente os anéis de ouro fino, ele, Wolf-Dietrich, perde-se em
sonhos diante da janela, ondeia entre os ramos despidos das árvores e flutua
sobre o Spree.
A alguns passos de si, a admirar as delicadas figurinhas de estuque que
ornamentam o teto, Wilhelm von Opel ergue e baixa os grossos óculos
redondos. Mais um, cuja família se acercou de nós desde a noite dos tempos,
desde o pequeno proprietário de terras da paróquia de Braubach, das
promoções por acumulação de togas e de fasces, de pequenas quintas e
empregos públicos, magistrados primeiro, depois burgomestres, até ao
instante em que Adam – saído das entranhas indecifráveis da mãe, tendo em
seguida assimilado todas as astúcias da serralharia – concebera uma
maravilhosa máquina de coser que fora o verdadeiro início da sua glória.
Contudo, não inventou nada. Arranjou trabalho num fabricante, observou,
deixou passar o tempo à espera de melhores dias, e depois aperfeiçoou um
pouco os modelos disponíveis. Casou-se com Sophie Scheller, que lhe trouxe
um dote substancial, e batizou com o nome da mulher a sua primeira
máquina. A produção começou então a aumentar. Bastaram alguns anos para
a máquina de coser passar a ser usada, cruzar a curva do tempo e integrar-se
nos hábitos correntes. Os seus verdadeiros inventores tinham chegado cedo
de mais. Uma vez garantido o sucesso das máquinas de coser, Adam Opel
tinha-se lançado no velocípede. Mas uma noite, uma voz estranha infiltrara-se
pela porta entreaberta; o seu coração pareceu-lhe então frio, tão frio. Não
eram os inventores da máquina de coser a exigir os seus direitos, não eram os
operários a reivindicar a sua parte dos lucros, era Deus que reclamava a sua
alma; foi necessário entregá-la.
Mas as empresas não morrem como os homens. São corpos místicos que
nunca perecem. A marca Opel continuou a vender bicicletas e passou, depois,
aos automóveis. A empresa já tinha mil e quinhentos empregados por ocasião
da morte do fundador. Não parou de crescer. Uma empresa é uma pessoa cujo
sangue lhe sobe à cabeça. Chama-se a isso uma pessoa moral. A sua vida
dura muito para além das nossas. De forma que, nesse 20 de fevereiro em que
Wilhelm medita no pequeno salão do palacete do presidente do Reichstag, a
companhia Opel é já uma velha senhora. Hoje, não passa de um império
incorporado noutro império e tem uma relação apenas muito longínqua com
as máquinas de coser do velho Adam. E, se a companhia Opel é uma anciã
muito rica, ela é, contudo, tão velha que já quase não reparam nela, tornou-se
parte da paisagem. É que agora a companhia Opel é muito mais velha do que
numerosos Estados, mais velha do que o Líbano, mais velha do que a própria
Alemanha, mais velha do que a maioria dos Estados africanos, mais velha do
que o Butão, onde, no entanto, os deuses se eclipsaram nas nuvens.
AS MÁSCARAS
O gabinete de trabalho está alagado pela luz das lâmpadas. Hitler percorre-
o com grandes passadas. Uma vez mais, o chanceler austríaco tem uma
sensação de mal-estar. E, assim que se senta, Hitler passa ao ataque,
anunciando-lhe que está disposto a uma última tentativa de conciliação.
«Aqui está o projeto, diz ele, não haverá negociação. Não lhe mudarei nem
uma vírgula! Ou assina, ou então não há razão para prosseguirmos as nossas
conversas. Tomarei a minha decisão durante a noite.» O Führer tem o seu ar
mais grave e mais sinistro.
Por fim, Hitler manda chamar Kurt von Schuschnigg. E aí, mistério da arte
de agradar, de praticar o duche escocês, de mudar de tonalidade entre duas
cenas, as silvas subitamente desapareceram. «Decidi-me, pela primeira vez na
vida, a reconsiderar uma decisão já tomada», lança Adolf Hitler, como se
concedesse um imenso privilégio. Nesse instante, talvez, Hitler sorri. Quando
os gângsteres ou os loucos furiosos sorriem, é difícil resistir-lhes; quer-se pôr
um ponto final, tão depressa quanto possível, na fonte do seu desagrado,
quer-se acima de tudo celebrar a paz. Além disso, entre dois episódios de
tortura moral, um sorriso possui sem dúvida um encanto particular, como se
fosse uma aberta. «Só que, repito-lhe», acrescentou Hitler, misturando de
súbito a gravidade e a confidência, «é mesmo a última tentativa. Aguardo a
entrada em vigor deste acordo num prazo máximo de três dias.» E aí, não
obstante nada ter mudado e mesmo as alterações de pormenor não irem ser
tomadas em consideração, apesar também de o prazo em que o ultimato deve
expirar ter sido sem justificação encurtado de cinco dias, Schuschnigg aceita
sem hesitação. Sem forças, como se tivesse obtido uma concessão, submete-
se a um acordo que é mais calamitoso ainda que o anterior.
Uma vez os documentos encaminhados para o secretariado, a conversa
prossegue amavelmente. Hitler dirigia-se agora a Schuschnigg como o
«senhor chanceler», o que era incrível. Por fim, assinaram-se os exemplares
datilografados e o chanceler do Reich propôs a Schuschnigg e ao seu
conselheiro que ficassem para jantar. O convite foi delicadamente recusado.
COMO NÃO DECIDIR
Durante esse tempo, sob uma lua glacial, as tropas alemãs carregaram a
toda a pressa o máximo de tanques que puderam em vagões de comboio.
Fizeram sem dúvida vir especialistas de Munique, maquinistas e operadores
de grua. Os comboios levaram então os blindados como se transporta o
equipamento de um circo. É que tinham de estar obrigatoriamente em Viena
para as cerimónias oficiais, o grande espetáculo! Deve ter sido uma cena
bizarra, aquelas silhuetas sinistras, aqueles comboios a circular de noite,
como se fossem ataúdes, ao longo da Áustria, com a sua carga de
autometralhadoras e de blindados.
ESCUTAS TELEFÓNICAS
E, hora após hora, Göring dita a sua ordem do dia. Passo a passo. E na
brevidade das réplicas, ouve-se o tom imperioso, o desprezo. O lado mafioso
deste caso salta de súbito à vista. Ainda mal tinham decorrido vinte minutos
após a cena que acabámos de ler, é Seyss-Inquart quem liga. Göring manda-o
ir de novo ter com Miklas e de o fazer compreender que, se não o nomear
chanceler antes de baterem as dezanove e trinta, pode cair sobre a Áustria
uma invasão. Está-se muito longe da conversa simpática entre Göring e
Ribbentrop, mantida deliberadamente para os ouvidos dos espiões ingleses,
muito longe da ideia dos libertadores da Áustria. Mas uma coisa mais deve
ainda reter a atenção; é a expressão que Göring utiliza, esta ameaça de cair
sobre a Áustria. Associam-se-lhe de imediato imagens terríveis. Mas é
preciso rebobinar o fio para compreender de facto, é preciso esquecer o que
pensa saber-se, é preciso esquecer a guerra, é preciso desfazermo-nos das
atualidades da época, das montagens de Goebbels, de toda a sua propaganda.
É preciso lembrarmo-nos de que, nessa altura, a Blitzkrieg não é nada. É só
um engarrafamento de panzers. É só uma gigantesca falha de motores nas
estradas nacionais austríacas, nada mais do que o furor dos homens, uma
palavra vinda mais tarde como uma jogada de póquer. E o que espanta nesta
guerra é o extraordinário sucesso do descaramento, de que uma coisa deve ser
retida: o mundo cede perante o bluff. Mesmo o mundo mais sério, mais
rígido, mesmo a velha ordem, se não cedem nunca à exigência de justiça, se
nunca se vergam perante um povo que se revolta, vergam diante do bluff.
Parece, às vezes, que aquilo que nos sucede está escrito num jornal com
vários meses; é um sonho mau que já se sonhou. Assim, cerca de seis meses
mais tarde, seis meses volvidos sobre o Anschluss, a 29 de setembro de 1938,
está-se em Munique, para a célebre conferência. E, como se os apetites de
Hitler pudessem ficar por aí, salda-se a Checoslováquia. As delegações
francesa e inglesa vão até à Alemanha. São bem acolhidas. No grande hall, o
lustre tilinta, os pingentes de cristal, tal como aqueles carrilhões que o vento
faz balouçar, executam a sua partição aérea por sobre as cabeças dos papões.
As equipas de Daladier e de Chamberlain tentam arrancar a Hitler algumas
concessões insignificantes.
Arrasa-se a História, admite-se que ela confere uma pose aos protagonistas
dos nossos tormentos. Nunca se veria a bainha suja, a toalha amarelada, o
talão do livro de cheques, a mancha de café. Dos acontecimentos, só nos seria
exibido o lado positivo. Contudo, se se olhar com atenção, na fotografia em
que se vê Chamberlain e Daladier, em Munique, imediatamente antes da
assinatura dos acordos, ao lado de Hitler e de Mussolini, os primeiros-
ministros inglês e francês não parecem muito satisfeitos com o seu papel.
Apesar de tudo, lá assinam. Depois de terem percorrido as ruas de Munique
sob as aclamações de uma imensa multidão, que os acolhe com a saudação
nazi, lá acabam por assinar. E podem ser vistos, um deles, Daladier, de
chapéu na cabeça, pouco à vontade, a retribuir com pequenos acenos, o outro,
Chamberlain, com o hat na mão e um grande sorriso. Este incansável artesão
da paz, como lhe chamam as atualidades desse tempo, sobe a escadaria
exterior, fixada para todo o sempre a preto e branco, entre duas filas de
soldados nazis.
Nesse momento, o comentador, inspirado, diz em voz fanhosa que os
quatro chefes de Estado, Daladier, Chamberlain, Mussolini e Hitler,
animados por uma mesma vontade de paz posam para a posteridade. A
História devolve estes comentários à sua irrisória nulidade e lança sobre as
atualidades futuras um descrédito pungente. Parece que em Munique teria
nascido uma imensa esperança. Os que dizem isso ignoram o sentido das
palavras. Falam a linguagem do paraíso, na qual, segundo se diz, todas as
palavras se equivalem. Um pouco mais tarde, Édouard Daladier, na Rádio
Paris, seiscentos e quarenta e oito metros em ondas longas, após algumas
notas musicais, conta o que se passou. Tem a certeza de ter salvado a paz na
Europa, é o que diz. Mas não acredita em nada disso. «Ah! os parvos, se eles
soubessem!», teria ele murmurado ao descer do avião, diante da multidão que
o aclama. Nesse grande bricabraque de miséria onde se preparam os piores
acontecimentos, domina um respeito misterioso pela mentira. As manobras
derrubam os factos; e as declarações dos nossos chefes de Estado serão em
breve arrastadas como uma cobertura de chapa de ferro por uma tempestade
de primavera.
OS MORTOS
Numa carta enviada a Margarete Steffin, com uma ironia febril a que o
tempo e as revelações do pós-guerra conferem algo insustentável, Walter
Benjamin conta que o fornecimento de gás foi de súbito cortado aos judeus
de Viena; o consumo que faziam acarretava prejuízos para a companhia
abastecedora. É que os maiores consumidores eram precisamente os que não
pagavam as faturas, acrescenta ele. Nessa altura, a carta de Benjamin a
Margarete adquire um tom estranho. Não há a certeza de a entender bem.
Hesita-se. O seu significado flutua entre os ramos, na palidez do céu, e
quando se torna mais claro, formando de súbito uma pequena poça de sentido
no meio de nenhures, a carta torna-se uma das mais tresloucadas e mais
tristes de todos os tempos. Pois se a companhia austríaca se recusava
doravante a abastecer os judeus, é porque estes se matavam
preferencialmente com recurso ao gás e deixavam as faturas por pagar.
Perguntei-me se isso seria verdade – de tal forma a época inventou horrores,
por um pragmatismo insensato –, ou se seria apenas um gracejo, um gracejo
terrível, inventado à luz de velas funestas. Mas pouco importa que se trate de
um gracejo especialmente amargo ou de uma realidade; quando o humor
pende para tamanho negrume, é porque diz a verdade.
Em tal adversidade, as coisas perdem o nome. Apartam-se de nós. E deixa
de poder falar-se em suicídio. Alma Biro não se suicidou. Karl Schlesinger
não se suicidou. Leopold Bien não se suicidou. E Helene Kuhner, também
não. Nenhum deles se matou. A sua morte não pode identificar-se com a
narrativa misteriosa das suas desditas. Não pode mesmo dizer-se que tenham
escolhido morrer dignamente. Não. Não foi um desespero íntimo a devastá-
los. A sua dor é uma coisa coletiva. E o seu suicídio, um crime cometido por
outrem.
MAS QUEM É TODA ESTA GENTE?
Basta por vezes uma palavra para congelar uma frase, para nos mergulhar
num qualquer devaneio; o tempo, contudo, não é sensível a essas coisas.
Prossegue a sua peregrinação, imperturbável, no meio do caos. De forma que,
na primavera de 1944, Gustav Krupp, um dos sacerdotes da indústria que
vimos logo no início desta história a dar o seu óbolo aos nazis e a apoiar o
regime desde a primeira hora, estava a jantar em companhia de sua mulher,
Bertha, e do filho mais velho, Alfried, o herdeiro do Konzern. Era o último
momento que passavam na Villa Hügel, o enorme palácio onde sempre
tinham vivido e em que o seu poder se encarnava. Agora, a aventura estava a
correr mal. Os exércitos alemães retiravam em todas as frentes. Era preciso
decidirem-se a deixar aquele seu domínio e a retirarem-se para as montanhas,
longe do Ruhr, em Blühnbach, onde as bombas não os atingiriam, na paz fria
e branca.
De repente, o velho Gustav ergueu-se. Tinha-se há muito afundado numa
demência irrecuperável. Incontinente e sem tino, mantinha-se desde há anos
silencioso. Contudo, naquela noite, a meio da refeição, ergueu-se
bruscamente e, apertando o guardanapo contra o peito num gesto de profundo
temor, estendeu um longo dedo magro para o fundo da sala, mesmo por
detrás do sítio onde estava o filho, e disse entre dentes: «Mas quem é toda
esta gente?» A mulher também se voltou, o filho olhou para trás. Tiveram
muito medo. O canto da sala estava mergulhado na sombra. Dir-se-ia que a
obscuridade se movia, que algumas silhuetas rastejavam lentamente na
escuridão. Mas não eram os fantasmas da Villa Hügel que o gelavam de
medo, não, não eram nem as lâmias, nem as larvas, eram homens
verdadeiros, com rostos reais, que o fixavam. Viu olhos enormes, figuras que
se destacavam das trevas. Desconhecidos. Teve um medo horrível. Ficou
petrificado, de pé. Os criados imobilizaram-se. Os cortinados pareceram
tornar-se de gelo. E ele teve a impressão de realmente ver, de nunca ter visto
tanto como naquele minuto. E o que ele viu, o que surgiu lentamente da
sombra, eram dezenas de milhares de cadáveres, os trabalhadores forçados,
os que as SS lhe tinham fornecido para as suas fábricas. Que surgiam, agora,
do nada.
Durante anos, contratara deportados em Buchenwald, em Flossenbürg, em
Ravensbrück, em Sachsenhausen, em Auschwitz e em muitos outros campos
ainda. A sua esperança de vida era de alguns meses. Se o prisioneiro
escapava às doenças infeciosas, acabava por morrer literalmente de fome.
Mas Krupp não foi o único a contratar tais serviços. Os seus comparsas da
reunião de 20 de fevereiro beneficiaram também deles; por detrás das paixões
criminosas e das gesticulações políticas, os interesses de todos eles eram
assim acautelados. A guerra tinha sido rentável. A Bayer arrendou mão de
obra em Mauthausen. A BMW contratava em Dachau, em Papenburg, em
Sachsenhausen, em Natzweiler-Struthof e em Buchenwald. A Daimler, em
Schirmeck. A IG Farben recrutava em Dora-Mittelbau, em Gross-Rosen, em
Sachsenhausen, em Buchenwald, em Ravensbrück, em Dachau, em
Mauthausen, e explorava uma fábrica gigantesca no campo de Auschwitz: a
IG Auschwitz, que, com todo o impudor, surge com esse nome no
organigrama da empresa. A Agfa recrutava em Dachau. A Shell, em
Neuengamme. A Schneider, em Buchenwald. A Telefunken, em Gross-Rosen
e a Siemens, em Buchenwald, em Flossenbürg, em Neuengamme, em
Ravensbrück, em Sachsenhausen, em Gross-Rosen e em Auschwitz. Todos se
tinham precipitado sobre essa mão de obra tão barata. Não é pois Gustav que
naquela noite tem alucinações, no meio do repasto familiar, são Bertha e o
filho que se recusam a ver. Porque os mortos estão de facto ali, presentes, na
sombra.
Num grupo de seiscentos deportados, chegados em 1943, às fábricas
Krupp, só restavam um ano mais tarde não mais de vinte. Um dos últimos
atos oficiais de Gustav, antes de ceder a direção da empresa ao filho, foi a
criação do Berthawerk, uma fábrica concentracionária com o nome da
mulher, que pretendia ser uma espécie de homenagem. Vivia-se aí negro de
imundície, infestado de pulgas, era-se obrigado a caminhar cinco
quilómetros, no verão e no inverno, calçado apenas de simples galochas, para
ir do campo até à fábrica e da fábrica até ao campo. Acordava-se às quatro e
meia da manhã, cercado de guardas SS e de cães treinados, e apanhava-se
pancada e era-se torturado. Quanto à refeição da noite, demorava por vezes
duas horas; não por causa do tempo que levava a comer, mas porque era
preciso esperar; não havia malgas suficientes para servir a sopa.
Regressemos agora por um breve instante ao início desta história e
observemo-los de novo, aos vinte e quatro, em redor da mesa. Dir-se-ia uma
qualquer reunião de chefes de empresa. São os mesmos fatos, as mesmas
gravatas escuras ou às riscas, os mesmos lencinhos de seda, os mesmos
óculos de armações douradas, as mesmas cabeças calvas, os mesmos rostos
razoáveis que hoje em dia se podem ver. No fundo, a moda não mudou. Daí a
algum tempo, em vez da Insígnia de Ouro, alguns usarão com orgulho a Cruz
Federal do Mérito, como entre nós se usa a Legião de Honra. Os regimes
celebram-nos da mesma maneira. Vejamo-los à espera, naquele dia 20 de
fevereiro, com um ar grave e razoável, enquanto o diabo passa mesmo atrás
deles, na ponta dos pés. Conversam entre si; o seu pequeno consistório é
perfeitamente semelhante a centenas de outros. Não acreditemos que tudo
isso pertença a um passado distante. Não se trata de monstros antediluvianos,
de criaturas desaparecidas miseravelmente nos anos cinquenta, por sob a
miséria pintada por Rossellini, arrastados no meio das ruínas de Berlim. Estes
nomes continuam a existir. As suas fortunas são imensas. As suas sociedades
fundiram-se por vezes umas com as outras e deram lugar a conglomerados
todo-poderosos. Na página do grupo Thyssen-Krupp, um dos líderes
mundiais da indústria do aço, cuja sede social se mantém em Essen e cujas
palavras de ordem são, hoje em dia, flexibilidade e transparência, encontra-se
uma pequena nota a respeito dos Krupp. Gustav, diz-se aí, não apoiou
ativamente Hitler nos anos que precederam 1933, mas uma vez este eleito
chanceler mostrou-se leal para com o seu país. Só se tornou membro do
partido nazi em 1940, esclarece-se ainda, por ocasião do seu septuagésimo
aniversário. Profundamente ligados às tradições sociais da companhia,
Gustav e Bertha nunca deixaram, a despeito de tudo e de todos, de manter
viva a que consistia em visitar os seus empregados mais fiéis por ocasião das
suas bodas de ouro. E a biografia conclui-se por uma nota tocante: durante
muitos anos, Bertha, com extrema dedicação, tratou do marido, que
entretanto ficara inválido, num pequeno edifício que ficava ao lado da
residência de ambos, em Blühnbach. Não são mencionadas, nem as fábricas
concentracionárias, nem os trabalhadores forçados, nada disso.
Durante o seu último jantar na Villa Hügel, uma vez ultrapassado o medo,
Gustav voltou tranquilamente a sentar-se no seu lugar e os rostos
regressaram à escuridão. De lá voltaram a sair, ainda uma vez, em 1958.
Alguns judeus de Brooklyn exigiram uma indemnização. Gustav tinha
oferecido sem pestanejar somas astronómicas aos nazis depois da reunião de
20 de fevereiro de 1933, mas agora o filho, Alfried, mostrava-se menos
pródigo. Ele que clamava que os ocupantes tratavam os alemães «como
negros», nem por isso deixará de tornar-se um dos homens mais poderosos do
Mercado Comum, o rei do carvão e do aço, o pilar da paz europeia. Antes de
se decidir a pagar aquelas indemnizações, fez arrastar a negociação durante
dois longos anos. Cada sessão com os advogados do Konzern era pontuada
por observações antissemitas. Chegou-se apesar de tudo a um acordo. A
Krupp comprometeu-se a pagar mil duzentos e cinquenta dólares a cada
sobrevivente; o que era bem pouco como pagamento de tudo o que se
passara. Mas o gesto da Krupp foi saudado unanimemente pela imprensa.
Isso valeu-lhe mesmo uma bela publicidade. Bem depressa, contudo, à
medida que os sobreviventes se davam a conhecer, o valor atribuído a cada
um deles foi-se tornando mais pequeno. Passou-se primeiro para setecentos e
cinquenta dólares e, por fim, para quinhentos. Finalmente, quando outros
deportados se deram a conhecer, o Konzern informou-os de que já não tinha
infelizmente possibilidade de efetuar mais pagamentos voluntários: os judeus
tinham custado demasiado.
Não se cai nunca duas vezes no mesmo abismo. Mas cai-se sempre da
mesma forma, com uma mistura de ridículo e de pavor. E deseja-se tanto não
voltar a cair, que se resiste, se grita. Partem-nos os dedos aos pontapés, os
dentes, com bicadas, roem-nos os olhos. O abismo está rodeado de moradas
imponentes. E a História ali está, deusa razoável, estátua imóvel no meio da
praça das Festividades, recebendo por tributo, uma vez por ano, ramos secos
de peónias e, à laia de espórtula, em cada dia, um pouco de pão para os
pássaros.