Você está na página 1de 14

UM LIBERTINO NO SALÃO DOS FILÓSOFOS

Quando o marquês de Sade, na


introdução das 120 journées de Sodome,
convida o leitor a apreciar seu cardápio de
paixões, associando-o a um magnífico
banquete de seiscentos pratos, ele adverte:

Estude intimamente a paixão que à


primeira vista parece assemelhar-se
completamente a outra e verá que essa
diferença existe e, por menor que seja, ela
possui precisamente este refinamento e
este toque que distingue e caracteriza o
gênero de libertinagem sobre o qual aqui
se discorre. I

Nesta advertência, há uma importante


sugestão que tem passado desapercebida
pelos estudiosos da obra sadiana: refiro-me à distinção que o autor faz a um f
específico "gênero de libertina em" que é objeto de sua reflexão. Tal distinção,
pouco nota a (normalmente identificamos a obra de Sade a um;libertinagem (
genérica, sem precisar diferenças), é retomada em diversas passagens de seus)
livros.
Uma abordagem inicial ao tema pode ser feita a partir da indicação do
"refinamento" que articulariza este gênero do deboche. Neste sentido, el .
viria se contrapor a outros, menos refinados, o que nos faz, de imediato,
lembrar as críticas do marquês a Restif de Ia Bretonne. Lê-se em "Idée sur lcs
romans":

1 Sade, Les 120 jOllrnées de Sodome, op. cit., p. 79.

77
l/MoI Nlllr, /1 Alll/tlll
lI/li lt! I 111/ /11/ '''''li ,1,,\ 1/1"\,11/\

\ Rl'SLirJ inunda () púhlico; (:/%-111 'f:dla /111111


1IIIIIIIdllllli I'! 11''SSOI'i!
I (,dl(,~('irll li!) ,tI Idll VIII? lIlIi 1I 11'11 1111111'1 (;01110 'Ia < vivida' 1"llI··Nt'i\(,ld.1por
da .cama;. felizmente apenas ela gemerá diante de sua,l 1 .rrfv .is pl'oduI; L'S; 11111 'llda \111I I·'·s? )\1' tipo d· dil 'I' 'II~"S viabiliza sua lnssiflca ão em diverso
estilo ba~xo e rastejante, aventuras repugnantes, scmpre extrai [as d:1 pior g 11'ros? LI' t ipo de I'l'gllll\ridlld·s (:tz om que se possa utilizar uma mesma
companhia; nenhum outro mérito, enfim, que o de uma prolixidade ... que só os
pal:lJra para I fini-la?
vendedores de pimenta lhe agradecerão.'
Para rc pender a essas questões é necessário investigar como se organiza ~

Nenhum refinamento,
.no 12lebeu Restif, marcando
literatura roduzida
portanto, o aristocrático e erudito mar~uês rec.cuili..e.çç
de forma bastante clara sua distância com o ti o de
or este. Já em 1783, antes mesmo de escrever seu primeiro
l
libertinagem setecentista nos campos em que ela ganha expressão, a saber, a história,
a literatura
..-
e a filosofia .

romance, encarcerado em Vincennes, Sade envia uma carta à marquesa


ANTECEDENTES: VESTfGIOS DA LIBERTINAGEM
encomendando-lhe alguns livros, e adverte: "Sobretudo não compreis nada de
Restif, pelo nome de Deus! É um autor da Pont-Neuf e da Biblioteca azul, de
A história da libertina _em remonta ao século XVI, na época já marcada pela
quem seria estranho que imaginásseis enviar-me qualquer coisa'".
rebeldia. Suas primeiras manifestações coincidem com o surgimento, em vários
A hostilidade não é unilateral. E, se as palavras de Sade podem sugerir apenas
ontos da Europa, de nov~rrentes culturai; ;Pol~ que vêm ameaçar a
uma avaliação estritamente literária, as críticas de Restif ao autor de Justine mostram
hegemonia da história sacra tradicional. Desafiando a ortodoxia "barroca" e criando
que estão mesmo em .ogo diferentes concepções de libertinagem: "Ninguém ficou
modelos alternativos que impregnam a cultura popular da época, esses movimentos
mais indignado que eu com as obras do infame Sade", dirá ele no prefácio a
de resistência ro õem a retomada de alguns ideais "renasc~~stas", fazendo
l'Anti-justine, observando que seu objetivo
circular subterraneamente os valores da pólis italiana sob nova.!~upagem. Al~
grupos voltam-se, com especial interesse, .eara o laicismo };2.agãode Mag!!.i~~l e
é fazer um livro mais saboroso que os seus, e que as esposas possam dar a ler a seus
maridos, para serem mais bem servidas; um livro em que os sentidos falem ao Guicciardino, ~quanto outros vêem na irônica mo~personagens de
coração; em que a libertinagem nada tenha de cruel para o sexo das Graças (...); Boccaccio um convite à insubmissão. Os mais radicais representantes dessas
em que o amor retomado à natureza, isento de escrúpulos e preconceitos, só correntes serão chamados de rebeldes ou libertinos".
apresente imagens risonhas e voluptuosas."
É nessa linhagem ue odemos pensar o movimento literário que surge na
França, na passa em do século XVI ara o XVII. Paul Hazard, René Pintard e,
Diferentes naturezas, diferentes volúpias libertinas.
posteriormente, Claude Reichler indicam ue essa literatura, vinculada
'É certo que, ao precisar o "gênero" de sua preferência, nas 120 journées, Sade
inicialmente à poesia burlesca, tem seus primeiros representantes em Théophile
não está referindo-se a Restif - ou, pelo menos, não somente a ele -, mas
de Viau, Cyrano de Bergerac, Saint-Amand, d'Assouci e La Mothe le Vayer, para
---'4/.--:~ .u..e~,_Q'Ldiversidade 4E formas ass~midas pelo deboche, há uma
citarmos apenas alguns nomes", No decorrer do século XVII o pensamento
por ele considerada su erior. ~ indicação é -;;~plexa, sobr~-;:do se
~rguntarm s com quem Sade 9tá dialogando, pois sabemos que, além de
'--'-~'--- ..
;~r siao fiõertino, ele pretendeu criar um sistema filosófico com sua ora
5 O trabalho de Sergio Bertelli. Rebeldes, libertinos y ortodoxos en el barroco (Marco Aurelio Galmarini (trad.),
Barcelona, Península, 1984), em que o autor examina as diferentes posições historiográficas resultantes do
.~!y:.rári.~~discutindo com outros homens de letras e filósofos de sua época. choque entre ortodoxos e libertinos, aponta importantes linhas de articulação entre um grande número de
pensadores europeus dos séculos XVI e XVII, qualificados de "libertinos", Entre eles estão Jean Bodin com
Isso nos coloca de imediato diversas questões: que sentidos tem a libertinagem a reductio ad hominem explicirada no Methodus, Francis Bacon propondo a passagem da história eclesiástica
para a história das religiões e Spinoza com o projeto de "hisroricizar" a Bíblia.
6 Sobre as correntes libertinas do pensamento francês no século XVII ver: Paul Hazard. Histoire de Ia litterature
française, tomo I. Paris, Larousse, 1923·1924, 1'1'. 233·36; tomo Il, 1'1'. 32·34; idem, Ia crise de Ia conscience
2 Sade, "Idée sur les rornans", in Les crimes de l'amour, op. cit., 72. '
européene, tomo I. Paris, Bouvin & Cie., 1935, 1'1" 157·205; René Pintard. Le Iibertinage érudit dans Ia
3 Carta à marquesa de Sade, datada de 24 de novembro de 1783, citada por Lély, Vie du marquis de Sade, tomo
premiêre moitié du XVII'"" siecle. Paris, Bouvin & Cie., 1943; e Claude Reichler. I'Âge libertin. Paris, Minuit,
lI, p. 231.
1989.
~ irado por Lély, ibidem, pp. 531·32.

78 79
lih 'nino g,II1I1,1visihili I.ld '11,1 '11.1 (dllll'all','all (',\,1. '1I.1()~,IOpOli n, ()S ,llIlnlt'~ llli 11til ',I 1'.d.IIt,lil'.I.ItI, f'v1.11'.11I
111"11(11 11111111111.11,.111.11 1'''1 II1 ".1111.1111111111'.1"
a ele vin ulad s ou p r ele inllu '11 ia I ; a tra zédin ti' Til 01 hile, 1>;1'11111' 1'1 IlIi~ u.t u-nt.u ivu dt, 111111.11 '11'.,\('111.1('1 .u, I"""VII. di
.II( ,"lIl1d, ,1.1('\'.,'.' 1111111
Thisbé, será reeditada inúmeras vezes durante o período, tornand -sc rcf '[,~11'i,\ .II.H, los, M.lis il1tr:lll~il' -nt ',S, m j,III,'. 'lti~('IS olo :\11\S' 110 .\I1\1l1lti 'h,ll.tllt.1 I
obrigatória para um expressivo número de escritores, ,Ipfllfl,~il' dI' I" rl!Li~ioll que pr .pnrnva Pas 'al visava dir 'Iam '111' os lih 'I'(illll'<, I),
Entre eles e~á Jacques Vallée, senhor des Barreaux, que, segundo Hazanl, III 1:1[o nun, protc~'lntes e católi os ass iam seus .sforços 11.ss . ar.ique, I','!ll
-t,., { "amava de forma extrema seus prazeres e a liberdade; só sonhava com divertimentos ,I 'oruc e porquc "há, na r~ralliber.0na.!. uma antecipação 10 'I 'tiS ( 111111111,
~ e boa companhia; era admirável nos entretenimentos da mesa, (.. .) Não acreditava III 10 é permitido!' nietzschiano'".
~ 'Je.. em nenhuma religião, nem em Deus, nem no Diabo", A maior parte de suas Todavia, essa afirrnaçâovainda que tenha sentido se tomarmos um.t ,,!tI I
.{"', poesias traz a marca da descrença e também a marca ele u~s~dão às ~es .orno a de Sade, peca por exagero. Não é ossível afirmar ue o P 'nS:llll"1I111
, ~pugnante. Seus poemas, que tematizam a volúpia, a corrupção da carne, o horr;[ libertino, sobretudo no século XVII, seja regido por um único cornportnmeuro
~
da morte, conheceram grand~uceSSõIla -época, embora sua reputação fosse ou uma única conce ão reli iosa. As evidências são muitas: se alguns d' M'II'.
criticada até mesmo por outros pensadores libertinos, como Gui Patin, qu~e~ representantes mantêm-se descrentes a vida toda, outros acabam se c nv '1\.111

À
'1'1
responsabilizava por "corrom er os espíritos de muita gente jovem que se deixa ao cristianismo, como Cyrano, Théophile ou Des Barreaux (ainda que este 50111('111,
~ c2ntaminar pela devassidão", Assim, COI1ª~ilIazard...Q~arr~ux r~Eresent~ "o renha se convertido às vésperas de sua morte, aos 71 anos); expressiva pan'I,I"
~t-' ~ o do libertino c ple1Q., libertino de conduta e libertino de op inião'". Uma destes pensadores adere ao deísmo, como é o caso de Saint-Évremontlo.
"/ apresentação de Sade confirma essas palavras, quando, ao mencionar a amizade Será necessário aguardar até o século XVIII para que a libertinagem ;ISSIIIII,I
entre esse poeta e Théophile, observa que "a impunidade e a devassidão desses caráter fundamentalmente anti-religioso e vincule-se, de forma definitiv.l. 111
dois amigos foram levadas ao cúrnulo'". ateísmo. Aqui, questões importantes se colocam: teria havido nessa pnss<1['.'111
Seria impossível, neste momento, tentar fazer uma "árvore genealógica" da ~lgum tipo de ruptura entre as correntes libertinas? Quais livres-pensa I r 'S dm
libertinagem, e não é esse nosso objetivo.~ tomarmos um trabalho como o de séculos XVI e XVII serão lidos, apreciados ou criticados no século XVIII? I~Ilfi 111.
~gio Bertelli veremos que a classificação de "liberti~o", em opos~ a~ que diferenças são engendradas no decorrer dessa história? A formulação (b.\,1
ortodoxos ~ barroco, refere-se a um contingente extenso e ~ificado de respostas certamente exigiria uma pesquisa mais densa, particularmente volt.ul.:
_escritores, filósofos e historiadores do eríodo. O mesmo se verifica nos estudo; ao tema. Arrisquemos apenas uma sugestão.
de Hazard, Pintard e Reichler, que contêm número significativo de referências. O sentido das palavras que, no decorrer do período, define o libertino podl'
Além disso, deve-se ter o cuidado de não homogeneizar as diversas correntes em ser de interesse para essa investigação. Nos séculos XVI e XVII a palavra rouâ qu '
jogo, que mantêm, em seu interior, uma série de diferenças e até mesmo de significa ao mesmo tempo devasso e supliciado, está ligada ao suplício da rod.r,
concepções conflitanres, Contudo, pode-se indicar, a partir dessas leituras, ~s castigo infligido a muitos e estendido aos rebeldes descrentes. Porém, S· 11m
nll--_.I-.;.".~os~undamentais do ensamento libertino, desde seus rimórdios. primórdios da libertinagem o termo carregava consigo a condenação a puniçne-,
Inicialmente é Eeciso apontar u~ o de con~~ entre libertinagem e rigorosas (Théophile é aprisionado e escapa por pouco da morte), depois de 171 ,
,~_........,:>:::,;-~~_r_e~li..g.,iã.,o_,..,
onstituindo-se em escolas de pensamento que, grosso modo, opõ~ com a Regência, os libertinos passam a ser assim designados ap '11.1~
ensinamentos da fé e da moral às constatações da experiência cotidiana e da simbolicamente: "dignos do suplício da roda por sua libertinagem", O diciondrio
'\. percepção sensorial:~libertinagem é marcada pela dúvida, muitas vezes insinuando Littré aponta os significados históricos da palavra libertin de forma cronológi ':1,
,J \<> o materialismo como saída possível. De forma geral, os libertinos são considerados iniciando pela versão ultrapassada, típica do século XVI ("aquele que não se suj ·i1.1
'r r

, V
~------------------------
7. 7 Paul Hazard e Joseph Bédier (orgs.). Histoire de Ia Littérature française, 1923-1924, tomo r. Paris, Larousse, 9 Claude Reichler. L~ge libertin, op. cir., 1989, p. 16.
~ 1955, p. 235
'o Ressalvamos que os dados biográficos não podem, por si sós, indicar a postura desses homens em rcl.«,,li' .\
• Sade, Histoire de [uliette, tomo 11,op. cir., P: 92.
religião, sobretudo se considerarmos que eles eram alvo de perseguições na época.
PjI
L ,

80 81
/1/,1/11 N,/h / / A 111/,,, ,

1\ '11\: S 'I' 'IHjaS 11'11\ ~,' I I':hi 'as Ia I' ·Ii ,i:to"), :\1~\ h('I',111III ('lltido I\\od '1'1\0, qu ' lilm('di .1. d(' .\('\1 ,~il"('IIIIII, 11II1II 111, 1"" I \ 1,11\ LI"I 1'1',llId'/0111(': 1111"1'1"11
,1111
data c.I sé ulo XVlll, já referindo-se à moral e à cxualid.i I,: u I 'SI' 'gr:l 10 no qu ,di'!, S', :1 p:ll'lil' I, '111.10,,I 11.ltllIl, li'; di) /)r //11///'/1 rerunr"; o pnn: '(SlltO 'pi 'Ul'ist:l
-respeito à n oralidade entre os dois sex~s passa a S'I" obj '10 !lI ivil '1\i.1lI) I, int .r 'S e e de reflexão para os des rentes, A
Isso le a a pensar que, se inicialmente os libertinos caracterizavam-se pel
----- atitud de indiícr '11~':l':11,1'I 'dsLi ';1 do omportamento estóico inspira o ceticismo
desafio aos dogmas da reli ião e à autoridade do poder, com o passar do temp de pensador somo 'abriel Naudé que, seguindo os ensinamentos de Charron,
e es vão substituindo a rebeldia política e religiosa ela afronta à moral. , tam em, fazem do livro De Ia sagesse uma espécie de bíblia da libertinagem'>.
;- que sugere Claude Reichler, em seu livro L'Âge libertin": Seria lícito supor tal Essa tendência está, também, profundamente ligada às idéias de Gassendi,
deslocamento? A questão é complexa, Numa abordagem inicial, se considerarmos que esboça uma filosofia fundada nas teorias de Epicuro e escreve obras de grande
as pontas dessa história - do final do século XVI às primeiras décadas do século repercussão entre os libertinos, o Syntagma philosophiae Epicuri e De vita et moribus
XVIII -, essa substituição arece realizar-se, e o alvo visado pela libertinagem Epicuri. Segundo Hazard, "Gassendi adapta a doutrina de Lucrécio aos hábitos
su ostamente transfere-se da política ara a moral. Não há como descartar a~ de um pensamento formado por muitos séculos de cristianismo"!", vindo a ter
'!,llotivações históricas que possam ter engendrado e~s~iment~quando nos inúmeros discípulos, dentre os quais Cyrano de Bergerac e Moliere. Logo após
recordamos ue durante a Re ência, o oder está nas mãos de libertinos, Melhor sua morte, em meados do século, o Abrégé de Iaphilosophie de Gassendi escrito por
dizendo, de um ti o bastante particular de libertinos; voltaremos a isso, Bemier torna-se leitura obrigatória entre os livres-pensadores, mantendo sua
No tocante à religião, porém, se houve algum deslocamento, este se de~o popularidade até o XVIII.
como mudança de alvo, ;:-as como radicalização de uma_postu!.a de~de ~pr~ Agnes Heller vai buscar as matrizes desse interesse pela filosofia estóico-
reivindicada pelos devassos, Basta lembrar que, se o ateísmo só é concebível epicurista no Renascimento.
histórica e conceitualmente a partir do século XVIII, não é possível falar do
surgimento do sentimento ateu sem fazer referência à libertinagem, Portanto, o Considerem-se os heróis e as heroínas do Decameron de Boccaccio: no meio
que podemos concluir daí é que a rebeldia diante da fé religiosa não só se manteve de um flagelo mortífero reúnem-se numa igreja - mas, em vez de se resignarem
como traço marcante desse grupo durante toda a sua história como também à graça divina, confiando na expiação dos seus pecados ou pedindo histericamente
o auxílio de santos ou objetos de devoção, partem para o atraente jardim de um
acirrou-se de forma decisiva~ assa em - da descr~ça difusa da libertinagem
castelo para "viverem uma vida de beleza", (..,) Durante todo o tempo em que a
de um século ao ateísmo radical com que ela se apresenta no outro - se constituirá peste grassou, não pensaram uma só vez na possibilidade da sua própria morte;
como co- ição essencial para o a -;recim;nto d<:.J!.mEen7ador c~mo Sade. não é em vão que se diz deles que "a morte não os vencerá".'?
Outro ponto importante - e que para quem estuda o marquês toma-se
fundamental - é o que diz respeito às fontes clássicas dos livres-pensadores,
13 Limito-me a indicar essas matrizes e suas articulações históricas na medida em que utilizo aqui fontes secundárias.
Aqui encontramos uma série de convergências a nos comprovar que já os libertinos Apresentar as doutrinas esróico-epicuristas dos séculos XVII e XVIII e discuti-Ias no campo da filosofia
implicaria a leitura dos autores apontados, e não dos historiadores do período aqui utilizados, que introduzem
do século XVII tomam o epicurismo e o estoicismo como as principais matrizes de forma breve e resumida essas concepções.
14 Bertelli cita a tradução para o italiano da obra de Lucrécio, feita por Alessandro Marchem, em 1664; Hazard
cita as traduções de Courures e de Hénaulr para o francês, dizendo que não são as únicas do século XVII;
Grimm confina, na sua Correspondance, a popularidade do autor já no século XVIII, citando a tradução de

o
11 Conforme Roger Vailland, Le Regardfroid. Paris, Bernard Grasset, 1963, pp. 78-79.
tese central do livro de Reichler é a de que haveria uma "prim~ira libertinagem', que remonta ao final do
século XVI, cujos seguidores caracterizam-se por desafiar a sociedade, declarando-se abertamente contra a
Lagrange, editada por d'Holbach. Sade abre o romance Aline et Valcour com uma epígrafe de Lucrécio;
sabemos que ele conhecia o poeta, pois, numa carta que envia à marquesa, em 25 de junho de 1783, de
Vinccnnes, ironiza seus censores dizendo: "Recusarem-me as Conftssions de Jean-Jacques é urna coisa
religião e a política. No decorrer do século seguinte, eles serão substituídos pelos filósofos céticos e pelos
excelente, sobretudo depois de me enviarem Lucrécio e os diálogos de Volraire ... ".
teóricos mundanos da honestidade, que não acreditam nas convenções sociais, mas lidam com elas, vindo
IS Perguntado sobre qual seria o melhor de todos os livros, Naudé responde que "depois da Bíblia me parece que

)a se compor com a autoridade que rejeitam para, afinal, criticá-Ia. A "terceira libertinagm:(,.!Í ica do é Ia Sagesse de Charron". Conforme Bertelli, Rebeldes, libertinos y ortodoxos en el barroco, op. cir., P: 299.
século XVIII, se caracterizaria elo su'eito ue se erde nas máscaras sociais, tendo na fi Ufa do~~
Sobre a repercussão dessa obra no século XVII ver Agnes Heller. "Estoicismo e epicurismo", in O homem
sua imagem privilegiada. Nesse momento, diz Reichler, "o discurso libertino desce do céu idílico à ~ do Renascimento, Lisboa, Presença, 1982, p. 86.
dos fazeres". Assim, segundo o autor, o desafio aos ensinamentos da é e auton a, :. política g:rm~
16 Paul Hazard e [oseph Bédier (orgs.). Histoire de Ia Littérature française, 1923-1924, op. cir., tomo lI, p. 32.
-----
sendo substituí o pe a rebeldia moral, visando à fruição do corpo (Claude Reichler. L'Age libertin, op. cir.).
- ,
17 Agnes Heller, "Esroicisrno e epicurismo" op. cit., p. 91.

83
fi ntitu I, los P 'rSOllag 'IIS do I rrrunrron, I 's,di:tlldo:t Ill<lll ' , Ollkl ill<lo; ()I ,I, l'.<,(l' 'ph 111i'01111111.111I 1111I /11i I di~1.11I1 " ou ''1WII,I,' illflll 11 i,l 11,1olH,1

t
vida - e seus Erazere - um scntid rnai 1', seria dpi :1 ti .stc novo tipo ti ' sacliana. EI' < .("tiV,lllll'lllt· 11111,1
d,I" !lI in 'ipais bas 'S do sistema filosó(1 O ti'
t\
r, rt 'mcl~lc
t ___
comportamento
in ue~ o pelos
"..!-a mpação
que passa a ser valorizado pelos homens renasccnti
rincí iõs de Epicuro:
de 6gnes
"en uan_t_o_vlv_e_mõs,
He}~er é interessante,
não há morte",
pois, ao identificar
tas,

traços do
?ade, o~itlli

disso,_ é também~a~ve
11<.I o-se

sobre o qual discorre e assumindo


'01110 ':1rn 'lcrl li a (u ndamental do "gêner
nele uma forma absolutamente
importante para entendermos as opções dO~lLês
dc lih .' agem"
eculiar". Além

tipo estóico-e icurista nos ersonagens de Boccaccio ou de Rabelais, e, ainda, diante das distintas direções que toma o deboche setecentista, Pois, no século 11:
-~~ar s;- proximidade com as teorias do prazer e do sentimenro formula as na -XVrrr;jâ exiSí:êm,_cla ente demarcados, elo menos dois ti12;s de libertinagem: {:{
"'------e-'p ••o-c-a-,-e~la
indTZa: a mesma linhagem de pensadores que Bertelli aponta como ade "espírito" e a de "costumes", ~ ~ c1i" t
~sora direta dos libertinos, herdeiros dessas correntes renascentistas. Tal;ez
~Tsso, mes~~m precisar essa filiação, ela possa afirmar que o ~ y~
A LlBERTINAGE D EsPRlT ~
De voluptate ac vero de Valia faz mais que repetir as questões consideradas pelos
epicuristas antigos; é também precursor da teoria do prazer francesa dos séculos Quem são os libertinos de espírito no século XVIII? Trata-se de uma gama •
XVII e XVIII. As suas premissas, combinadas com a teoria da utilidade, conduziram
tão variada de filósofos, homens de letras, divulgadores de idéias, vinculados aos <;o .;
às interpretações do Iluminismo francês, em particular as análises de Holbach e de '" "t;:
Helvetius." círculos eruditos ou aos populares, que fica difícil estabelecer, entre eles, ~ ~
características comuns além daquelas que já definiam seus antecessores do XVII "t1.,,~
A se crer nas teses de Bertelli, Hazard e Heller, a tradição estóico-epicurista é - o livre-pensar e o ataque à religião -, de quem são herdeiros diretos, Para se ~
redescoberta no Renascimento e sua trajetória se estende até o século XVIII, sendo, responder a essa questão é necessário perguntarmos inicialmente quem define, no
nesse percurso, objeto de inúmeras adaptações e releituras. Se tomarmos o exemplo XVIII, o estatuto de libertino, '&-
de Sade veremos que essa tradição chega a um leitor setecentista por meio de Robert Darnton mostra que, do ponto de vista de um inspetor de polícia
várias fontes: das traduções dos clássicos, em especial de Lucrécio, e dos filósofos que arquivava informações sobre os escritores da época, o epírero libertin servia
seus contemporâneos, como é o caso de d'Holbach e de Ia Mettrie, este último tanto para ilustres philosophes como para obscuros panfletistas. Assim, ao consultar
autor do Systéme d'Epicure e do Anti-Sénéque ou Discours sur le bonbeur'", E, como os relatórios do inspetor do comércio livreiro Joseph d'Hernery, escritos entre
o próprio marquês anota, da leitura dos romancistas: 1748 e 1753, encontrou nomes como os de Volraire, Piron e Diderot ao lado de
popularizadores da ciência, como Pierre Estéve, ou versejadores ateus, como um
o epicurisrno de Ninon de Lenclos, de Marion de Lorme, dos marqueses de certo abade Lorgerie que escrevera "uma epístola contra a religião", O critério de
Sévigné e de La Fare, de Chaulier, de Saint-Évremond, enfim, de toda essa classificação de d'Hemery era fundamentalmente político, na medida em que se
encantadora sociedade que, curada dos langores do Deus de Citem, começava a orientava pela idéia de que o ateísmo ameaçava a autoridade da coroa; por isso,
pensar, como Buffon, que no amor só havia de bom o físico, em breve mudou o
conclui Darnton, "os libertins constituíam a mesma ameaça que os libelles, e a
tom dos romances (...) envolvendo cinismo e imoralidades num estilo agradável e
jocoso, algumas vezes filosófico, e, se não instruíram, pelo menos agradaram.ê? polícia precisava reconhecer o perigo sob ambas as formas, quer atingisse pelas
costas, sob a forma de difamação pessoal, ou se disseminasse pela atmosfera, a
partir das águas-furtadas dos pbilosophes":

18 Agnes Heller, "Estoicismo e epicurismo" op. cir., P: 101.


I? Essas obras de Ia Metrrie indicam que a associação do epicurismo ao estoicismo não é tão automática como
parece: o Systeme é uma obra de apologia a Epicuro, enquanto o Anti-Séneque, como o nome indica, é um 21 Remeto aqui ao capítulo 5 de meu livro Sade - A ftlicidade libertina, op. cit., em que discuto a singularidade
livro crítico ao estoicismo. Segundo Geoffrey Gorer. Vida e ideas del Marqués de Snde. Buenos Aires, do esroicismo-epicurismo de Sade.
Pleyade, 1969, pp. 113 e 114. 22 Robert Darnron, "Um inspetor de polícia organiza seus arquivos: a anatomia da república das letras", in
)11 Sadc, "ldée sur les rornans", op. cit., P: 68. Darnton, O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro, Craal, 1986, pp. 239-40.

84 85
1)01' 11\, n:IO '1':1 :lp '1l:1~:1 poli ·i:1 'lU . I' iuni.t :llItOI"S I, liYI'(),~ t.lo dl~p,11 " \'111 111111':1 {:t ill "[1 '1IlI 11 ill do p 'IlS:111l ·IHo . .1:1d 'sd' :1.' I'dtilll.l, ti 1':11.1. do ~( ulu
suas inspeções, mas, igualmcnte, s agentcs land 'Slin S do '()J11 '1' io livr .iro, XVII 'sS'S Ir .ulos s5 , P I' ex clên ia, o I ai de apl' 'S 'nu, 50 . dis ussão I· I
capazes de colocar lado a lado obras filosóficas e libelos scnsa ionalisia . Entre novas i~ : Moliere reúne, em Aureuil, alguns íntimos: Bernier, Chapelle, des' ~.
esses dois pólos, os philosophes e os paníletisras, ainda havia espaço para um Barreaux, Ninon de Lenclos e Mme. Mazarin são as anfitriãs prediletas dos
significativo número de escritores que não se enquadram nessas extremidades, "espíritos fortes", La Morhe Le Vayer, Saint-Évremond. Boulainvilliers anima
como é o caso, por exemplo, de um Laclos, ou de um Mirabeau. O que determinava uma sociedade que se reúne no palacete do duque de Noailles, onde se discutem
)
esse agrupamento editorial? O critério, nesse caso, não era exatamente o mesmo livremente os grandes problemas fundamentais: origem do mundo, dos seres,
da polícia, mas dele decorrente: a proibição. Segundo Darnton, os comerciantes das espécies. Lá, os jovens Fréret e Dumarsais estudam as doutrinas do século
)
de livros proibidos - e talvez também os leitores - pareciam reduzir as obras - Descartes, Spinoza, Locke - enquanto os tradicionais corredores do
desses autores ao denominador comum da irreligiosidade, imoralidade e Templo testemunham o encontro do velho abade cego, Chaulier, com o jovem
incivilidade. Voltaire.
Já no século XVIII são os salões, então mais mundanos, ue a roximam os
Fosse qual fosse a combinação de causas em ação, o Ancien Régime colocava ~mens de espírito. Mme. du Deffand recebe uma sociedade de céticos e de'
Charlot et Toinette, Vénus dans le Clottre, D'Holbach e Rousseau nas mesmas analistas; Mlle. de Lespinasse reúne-se com a sua corte de espíritos fortes, e sua
caixas e sob o mesmo codinome. Livres philosophiques para os negociantes, mauvais
casa é chamada de "laboratóri; da Enciclopédià'; o salão da bela MIl!~. Helveci~s
livres para a polícia; fazia diferença? O que importava era a clandestinidade por
[freqüentado por- D"Tckrot, -Condorcet, d'Alembert; Mme. Geoffrin abre suas
eles partilhada. Havia igualdade na ilegalidade: Charlot e Rousseau estavam juntos;
irmanava-os a condição de renegados.P Rortas aos artistas nas segundas-fe~s e, aos escritores, nas quartas; Mme. d'Epinay,
Mme. Suard, Fanny de Beauharnais disputam a honra de anfitrionar os
Entre aqueles que a polícia e os livreiros clandestinos agrupavam juntos, porém, philosopbes'>.
existiam profundas diferenças. E se elas se manifestam para o historiador que, ~rém, esses salões, dirigidos pelas chamadas "mulheres-filósofas", dependem
como Darnton, sente" certo desconforto" ao vê-los assim reunidos, eram ainda muito da o inião da sociedade; embora recebam escritores como Lados, não são
mais graves entre os autores em questão. Os subliteratos desprezavam Voltaire, "o considerados o reduto ideal para abrigar a radicalidade dos livres-pensadores.
mondain, que estigmatizara Rousseau como um 'pobre diabo'". Voltaire, por sua Segundo Paulette Charbonnel, essas mulheres "se entregam às discussões, às
vez, horrorizava-se com os escritos de Charles Théveneau de Morande, um dos amizades e inimizades, motivadas mais por sentimentos que por princípios,
mais virulentos panfletistas da boemia literária. Por ocasião do aparecimento do criando freqüentes perturbações em sua sociedade'l". Entre os salões, portanto,
Gazetier cuirassé de Morande, ele anotou em seu Diciondrio Filosófico: "Acaba de se destacará sobremaneira aquele do palacete da Rue Royale Saint-Roch, que,
aparecer uma daquelas obras satânicas em que todos, do monarca ao último dos durante vinte anos, reunirá filósofos e homens de letras em torno de um
cidadãos, são insultados com furor; em que as mais atrozes e absurdas calúnias princípio claro - a independência do pensamento -, conferindo-lhe brilho
instilarn sua peçonha terrível em tudo aquilo que se respeita e arna?". Os filósofos único em toda a Europa. Trata-se do "salão do barão", como era conhecido na
e homens de letras eruditos, a exem 10 de Voltaire e de Sade, não deixavam de época, anfitrionado por um personagem extremamente importante para quem
marcar sua distância em relação à ueles que considera~am ~blitera~, embo-;:; estuda Sade: D'Holbach.
ara a olícia e os comerciantes eles fossem guase todos libertinos. O salão dirigido por d'Holbach recebe os amigos duas vezes por semana e
Quem são, então, os libertinos de espírito do ponto de vista dos philosophes? mantém as mulheres à distância.
Estão, certamente, entre eles, e freqüentam os exclusivos gru os de eruditos cuia
25 Sobre os salões, ver Hazard, Histoire de la Littérature française, 1923-1924, op. cit., tomo lI, pp. 32-33;
Paulette Charbonnel. "Inrroduction", in D'Holbach, Premieres (Euures, op. cit .• pp. 32-33; Carlos
2J Robert Darnton, Boemia'literária e reuolução. São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 206. Drurnmond de Andrade. "Prefácio", in As relações perigosas. Rio de Janeiro, Ediouro, s.d., pp. 10-11.
H Idem, O grande massacre de gatos, op. cir., pp. 45 e 35. . 26 Paulette Charbonnel, "Inrroduction", op. cit., P: 33.

86 87
"li 11 '1111di 11 ,1I1.1~
Ailld,l qu '11,10,' 'j,llIl 11'111to!.I', 11t'1I1fri.I'" ,111"1li 1111111,
til' V"I!.III1' 1I1 11111I 11111111 111111I 11 11li IV11ltliI,111111111
1"11111111111111111111
I
la qualidade daqueles qu ' S' '11 Ollll':11111:1, r 'WII.II1111'II1t',11I '1111111.1 1(,il,1 '111
I'IlI "'H I ',li h.tt,lill ~I 111111
, .!II" I 1/ 1'11"111111 ('\I('lil'lI di' h.tI" tll'IIIIIIIII.tlll!llllIl
assembléia maior e no sábado em comitê mais restrito. Sl'IlI;11I1M', 111',\,1~s duns
que '()Il~tillll'III, '1"111"" I 11111l11I1id,1', ,I dislill~':1Il ,\oci,d, " li'l'l('/ll I' 1111111
horas da tarde; a refeição é sempre copiosa, regado por vinhos da m .lhor qualidad "
irr '1'1" 'IlS(V,I vid" 111iVild.I, ( ) 1'1','110si'I':1l:IIU" ,I" Did 'rol ':dgllllS illlli/',O!I111 ~,
À saída da mesa prolonga-se a discussão sobre qualquer as unto da atualidade:
sua ons ·ill i:1 I' ~1I11'('1111 ti ' g:II1S0. Ek se fecha d f'illiliv:111l'111' IlO :11HI 11111 I 1111
"Deve-se ou não inocular contra a varíola? Deve-se ou não permitir a fabricação
como em umn illl'xpugn:lv ,I ·iladcla.29
de tecidos pintados na França?"

Além disso, debatem-se problemas mais gerais: história natural, medicina,


o que diz esse homem? O que publica clandestinamente? Edica urna ti '/1'llt1
de manuscritos pó~tumos de autores como Boulanger, Dumarsais, Frér tIO; :111;11
I Iltl'.
filosofia".
traduções e adaptações de livros profundamente anti-religiosos cs 'ri Ios 11111
Mais tarde, recordando essa época em suas memórias publicadas sob a
contemporâneos seus, e de clássicos da antigüidade, como Lucrécio. E ta 1111
H( 11111
Restauração, Morellet evoca com emoção as experiências de juventude
sua extensa obra pessoal, cujos títulos indicam por si só o conteúdo ateu: / I
compartilhadas com os amigos no salão de d'Holbach, E, mesmo tentando não
Christianisme dévoilé, ou Examen des principes et des e./fetsde Ia religion clJrll;m/lr,
se comprometer em demasia, diz:
De Ia cruauté religieuse, Examen critique de Ia vie et des écrits de saint Palll, ('111I I'
outros, e o livro que Sade considerava "a mais importante obra filosófica" til' 11
o barão era um dos homens mais eruditos de seu tempo, conhecendo várias
,'1\

línguas da Europa, e mesmo algumas das línguas antigas, possuindo uma biblioteca século, o ~steme de Ia natu,!.e,_ou des lois_du monde '-.hysique et du monde moral. ( ,.,
excelente e numerosa, uma rica coleção de desenho dos melhores mestres, excelentes pseudônimos por ele utilizados são igualmente expressivos: reaparecem cs ri I(11 (' ,

quadros dos quais era bom juiz, um gabinete de história natural contendo peças cujos textos póstumos ele havia editado, e outros como o abade Berni 'r, ,1111111
preciosas etc.
conhecido pela divulgação das idéias de Cassendi!'.

Sua casa, continua, "recebia os mais marcantes homens de letras franceses",


Os homens se enganam sempre que abandonam a experiência pelos Si.II('11II
como Diderot e Helvétius, além de "estrangeiros de distinção", como Hume, criados pela imaginação ... É, portanto, à física e à experiência que o hOI11'111d('vl
Wilkes, Sterne, Walpole, Beccaria e muitos outros, "Lá se ouvia a conversação recorrer em todas as suas investigações. São elas que ele deve consultar li:! ',11>1
mais livre, a mais animada e a mais instrutiva jamais realizada; quando digo livre religião, na sua moral, na sua legislação, no seu governo político, nas ciên ias . 11,1'
artes, nos seus prazeres e nas suas dores,
quero dizer em matéria de filosofia, de religião, de governo, pois os gracejos livres
de um outro genero
A
estavam b aruid os "28 ,
diz o barão já na abertura do Systeme de Ia nature. Rejeitando o dualismo (1" '
D'Holbach é um perfeito libertino de espírito, .Não só por se dedicar ao
opõe espírito e matéria, d'Hol'bach concebe uma natureza re ida
gênero de livre-pensar-;qu;~ r~fere Mo~ellet, mas também pela radical idade
~dem universal de leis imutáveis; portanto, o sobrenatural é sempre efeito di'
com ue ataca a religião, obrigando-o à clandestinidade, Apenas uma dezena de
7migos sabe da ocupaçã; secre~a a qu~~e dedica o barão: --
~ma
acatar
causa natural
a existência
cuja explicação
de milagres:
ainda
o Velho
não foi descoberta.
e o Novo Testamento
Não é possfvcl
~o rnistificaçõ ',',

Os obstáculos da Enciclopédia, as sentenças do Parlamento, da censura real


e do papa contra os livros de seus amigos, a prisão de uns, o exílio de outros, o 29 Citado por Charbonnel, "Introducrion", op. cir., p. 39. Segundo a autora, esses amigos são: Did "01,
algoz que tortura, esquarteja e queima em Toulouse, em Montpellier, em Arras, Marrnonrel, Sainr-Lamberr, de Chastellux, Suard, Roux, Darcel, Raynal, Helvétius e Morellct. EIII'l' "'
inspiram-lhe uma resolução feroz de luta contra o fanatismo e a intolerância, Ele poucas obras assinadas por d'Holbach estão seus primeiros escritos, algumas traduções e artigos 1""" "
Enciclopédia.
não disfarçará nos seus escritos, Ele dirá claramente, mas havia ouvido os conselhos
30 De Fréret é importante lembrar a Lettre de Tbrasybule à Leucippe, referência fundamental de Sade, inúrn ","
vezes citada em seus livros, especialmente na Histoire de [uliette.
31 A cultura clássica de d'Holbach teve significativa influência em sua obra. Segundo Charbonne 1, ele 1'1' ,(,., 1>'
27 Paulerte Charbonnel, "Introduction", op, cir., P: 34.
os latinos aos gregos, privilegiando os historiadores, os moralistas e os políticos. Conhecia bem Ti to 1.lvi".
2R Citado por Charbonnel, "Introduction", op. cir., P: 26.
Tácito, Cícero e Sêneca, e filiava sua filosofia ao De natura rerum.

88
89
111"1'1 /,',11" 1I ""'" ,

"rapsó 'ias I )$ 'as, ohrn do f:lll;\lisll1o .do ',I{I'jO", !llllll 11111111 "'111 I III 111/'/011'1' ~ '1',III.III~,1 di' d'lllIlI"lIll I1I 11111111 I'I".!IIII ',\'11 ,I Il'I,\1 110, Volt.til(' 11 ,11.11111111 d,
critique de [ésus hristl2. "rraidor", I id 'rOI 11.111 11 111 u luuu J.lllloIi.,

Faz-se necessário, portanto, investigar a origem ti 'SS:l.~ Illi~lirl .I~') 'S, o


nascimento dos sentimentos religiosos, para ponderar q~lc "todo ho mcrn quc Acusada de se constituir em "seita", em "sinagoga", em "capela holbachiann", o
núcleo militante do salão protestou em conjunto contra essas calúnias, divulgadn'
sofre, que treme e que ignora está exposto à credulidade", e concluir que "o
com o auxílio do ódio por devotos, jesuítas, amifilósofos, mercenários de pena
medo e a ignorância criaram os deuses". Se as crenças persistem é porque, vendidos a algum grande senhor, a algum ministro ou a algum clã, como o Palissot
uma vez renunciando à razão, os homens passam a aceitar mediadores entre ou Fréron." .
eles e as divindades, submetendo-se àqueles que possuem "o direito exclusivo
de entender e de explicar as Santas Escrituras". Concorrem para essa submissão A denúncia de Rousseau repercutiu pela França, em desastrosos ecos.
fatores sociais e políticos como a educação, a imposição de hábitos, a tirania Mas as idéias perigosas da "capela holbachiana" também ecoaram, Rousseau,
da força: portanto, enganara-se: aquela sociedade que parecia ser uma "confederação", uma
"seita" restrita a pequeno número de iniciados, acabou tendo seus princípios
o padre e o tirano têm a mesma política e os mesmos interesses: só recisa~ um divulgados muito além das paredes do palacete de d'Holbach. O anônimo barão
e outro, de sujeitos imbecis e submissos ...) ambos corr~pem, um par~elll~r, o tornou-se, ao lado de Jean-Jacques, grande sucesso editorial na clandestinidade.
outro ara ex iar; ambos se reúnem ara abafar as luzes, ara massacrar a razao <:
Entre os livros que figuram nos arquivos examinados por Darnton encontram-se,
para destruir até o desejo de liberdade no coração dos _~.
com destaque, a Histoire critique de[ésus Christ, Le christianisme deuolié, La thé%gie
portative e o Systéme de la nature, todos publicados sob pseudônimo. O comércio
Somente a razão pode combatê-los, pois, fundando-se na experiênci~e
de livros proibidos favoreceu a versão mais extrema do lluminismo, à La Mertrie
sustentando-se nos parâmetros da felicidade, individual e da utilidade social, os
e d'Holbach, como observa Darnton, produzindo a~guns dos best-se//ersda últimas
princípios da racionalidade
opõem-se aos dogm~s: ''A liberdade de pensar será
décadas do século XVIII: a demanda de livros ilegais "ultrapassava, evidentemente,
sempre funesta aos sacer d otes "33.
a impiedade voltairiana, chegando ao ateísmo descarado que horrorizava o próprio
Voltaire"36.
Foram essas algumas das idéias que fizeram de d'Holbach um filósofo
Are ercussão das idéias de d'Holbach sugere que a mais radicallibertinag 111
clandestino, um libertino de espírito que só teve a possibilidade de debater suas
concepções com alguns amigos próximos. Foram essas aI umas das idéias ue
de es írito ocupou, ainda que subterraneamen~ar im12-;tante no século Y;Y iu ~---
Estranha-se que a biógrafa do barão desconheça essa repercussão, e assegure r 'I'
uma pequena sociedade de ILvres-p~adores discutiu vivamente em meados do
l:: ". . 34 F bé tido ele "poucos leitores"3? Os trabalhos de Darnton mostram o contrário. Além
século XVIII, suscitando olêmicas e adesões em seu mtenor . oram, tam em,
disso, sabemos ue essas idéias che aram a erfurar até as muralhas de Vincenncs
es~déias que motivaram as graves acusa ões de Rousseau ao grupo que se reunia

~~)I
't:'
no palacete da Rue Royale de Saint-Roch.
Embora tenha fregÜentado o salão do barão durante alguns anos, mesm~
nas r~ões mais íntimas, Rousseau pareceu não hesitar em denunciar a e?5istência
eja Bastilha, ecoando na obra de um escritor que concebeu um gênero específico
de libertinagem,
experIência,
de Sade.
ao ual concorre
como defendia d'Holbach,
.
não só o es írito, mas também
terá um peso decisivo para os libertinos
a carne. A
J

de "uma confederação filosófica" de pri.r:cípi~s anti-religiosos, amea~

'\ 32 De acordo com Charbonnel, op. cit., pp. 68-69.


( 33 Citado por Charbonnel, ibidem, pp. 72 a 75. , " , .
j
/34
,.....
V.o Itarre,
. a par tiIr de 1768 ) combate o ateísmo de d'Holbach defendendo os prInClplOSdo
. " b _ Dideror,
ddeísmo. I _
, - t en ha colaborado no Svstême de Ia nature defende sem restrições as idéias o arao. sso 35 Charbonnel, "Inrroducrion", op, cir., p, 38.
que se supoe J' " lb nao
I
~ implica que ambos não tenham sido igualmente fiéis ~a cumplicidade com o anorumato de d Ho ac 1, 36 Roberr Darnton, O grande massacre de gatos, op. cit., P: 142,
37 Charbonnel, "Introducrion", op, cir., p, 50.
~ posto que essas polêmicas circulavam num grupo restrito de amigos.

90 91
A 1.1I11:'/(/1 NII(;f:' J)/::~' A/()f:'lJNS 1.1'/('111
d(,lv () 1',1,111\1(,
\11 Jl 1111 11I I1 I 11"1 11 111'1/1III.IVoI11'.,1'.11111111',11.
I

illll'l '~,';IV,Ip01' IlIIIX,III.I,1'>11111'111111111


dI 1111I,tl,olld, M' t'VO\,IV,1O dl.dlll .. 1111.1I
Se os libertinos de espíri to setecentistas s50 herdei ros ti iI' 'lOS dos IivI''s r.unbém que ,I· inst;ILII,1 11\1/1.11,I 111I l.tI 11111i.ihin .tc S"I' -ro, 11111
I.dlOl,lll'lIll1 dI
pensadores do século anterior, o que supõe uma continuidade (h~a vista :1 .c 'i~n ias", ondc rcal iznvn p 'squi~,ls misteriosa , ajudado por UIII qU(111I11I
recorrência da matriz ~s<ifi.ça estói~-e icurista), a libertina em de costumes .strangciro. O envenenarncnr , O as as inato "à italiana", ra um 1:\lII.ISIII.11101
, parece ser natural do século XVIII. Isso não quer dizer que não tenham existido ortc.
libertinos de conduta em outras épocas da história francesa: Chaussinand-Nogarci Malvisto em Versalhes, gozando de péssima reputação em Paris, c(!"sidl'I"1I111
observa que, nos séculos XVI e XVII, sobretudo nos períodos de crise e insegurança, pelo rei um "fanfarrão de vícios", o duque de Orléans parecia não se in '0111(111.11
"a delinqüência, sob suas formas mais brutais, pirataria, banditisrno, assassinato, com as opiniões a seu respeito. Pelo contrário, agradavam-lhe os escândalos: "I.'JI
foi um fenômeno de dimensões inquietantes na nobreza". O jogo de palavras se embriagava, fazia bastardos, freqüentava as piores companhias; blaS~·1l1,IV.1d.l
entre "gentilhomme", "gens-tue-hommes" e "gens-pille-hommes", que só faz manhã à noite, tinha os discursos mais adequados para elevar tudo '111('1m I
sentido em francês, aproxima "homem da sociedade" ao "homem que mata", e repugnante e arranjava para que a história de suas aventuras fosse divulg:ld.1 11111
revela que, embora os nobres tentassem ocultar seus marginais, os escândalos que todos os cantos"!'. Este comportamento acentua-se ainda mais depois qu . () (li1'1"1
resultavam da delinqüência aristocrática não facilitavam muito os seus segredos". assume a Regência.
O banditismo da nobreza nos séculos XVI e XVII, de certa forma ligado à e Em 1715, Philippe d'Orléans, aos quarenta e um anos, tem aquela 111:11111
id"tll
guerra e à caça, será substituído pelo crime de libertinagem, relacionado à vid~ que, segundo Sade, faz os libertinos lançarem-se de forma insaciável ~ liu ...•" dI
galante, ao Fefinamento dos razeres, à insaciável busca de nov~ experiências. novos requintes. Espirituoso, charmoso e fino, "ele havia recebido todos m tllIlI
Por isso, quando se diz que os libertinos de costumes são ersona ens do século da inteligência, todas as curiosidades do espírito, uma beleza real c exp,llI'dl I,
XVIII, isso significa que nesse momento um tipo de conduta não só adquire uma bravura, uma resistência e talentos que haviam brilhado na gucrra. M.I·, 111
visibilidade social mas também constitui ~ grupo reconhecido p::r característic~ depravação moral desconcertava e indignavà'42. As histórias são muitas.
particulares: <!esafio à moral e à religião, desprezo pelos preconceitos vulgares e _ O duque e seus companheiros entram num velório levando garraías 'UIIIII ,
prática de atos cruéis, princi almente a violência sexual!", Isso acontece sobretudo conversam com o morto, convidando-o a beber com eles; chega o pad 11', 11'
a partir das primeiras décadas do século, ou, mais exatamente, com a Regência", libertinos fingem acompanhar o cortejo cantando obscenidades; os P,leII t"I
Comecemos, pois, pelo Regente. Os anos que antecedem a sucessão de Luís protestam, os devassos cobrem-nos de injúrias e entram à força na igreja. NI'III
XIV são marcados pela morte de vários de seus herdeiros: o duque e a duquesa de todos os religiosos, contudo, são seus inimigos; entre eles existem também div '1:.11'I
Bourgogne, o duque de Bretagne, o duque de Berry. Essas mortes sucessivas não adeptos da libertinagem: o bispo de Beauvais, ligado ao Regente, instala sua al1l,IIIII'
parecem naturais, e geram suspeitas: quem lucraria com o desaparecimento desses no palácio episcopal, e ela passeia diariamente pela cidade no seu carro dI'
herdeiros do trono? Quem seria capaz de tamanha vileza? Apenas um nome vem cerimônia, ostentando o poder que seu ilustre amante lhe confere.
à mente daqueles que se indagam: o duque de Orléans. O ateísmo do príncipe, Uma das muitas acusações que paira sobre o Regente é a de incesto; sua filll,l
sua conduta depravada, suas intrigas na Espanha e seu interesse direto na sucessão preferida, a duquesa de Berry, tão depravada quanto ele, torna-se conhe ida plll
suas aventuras amorosas. Na corte, dizia-se que Rion, um de seus últimos ama 1111'\,
38 G. Chaussinand-Nogaret. Ia noblesse au XVIII,me siécle. Bruxelas, 1984, p. 112.
Cornplexe, fazia dela uma escrava, e a duquesa "gritava, chorava, se rebaixava, gozando d . SII,I
39 Ver, nesse sentido, Chaussinand-Nogaret, op. cit., pp. 112 a 114; André Bourde.
"Sade, Aix et Marseille: un
servidão e humilhação". "Para ela era um verdadeiro prazer receber propostas S\I;.I"
Autre Sade", in Le Marquis de Sade. Paris, Armand Colin, 1968, pp. 59-64; e M. Parrar. "l'affaire de
Marseille et le Parlernent d'Aix", in Le Marquis de Sade, op. cir., pp. 51-53. e escutar histórias obscenas. Renovava o gozo embriagando-se como um co lu-i 111,
40 Ressalvo que essa periodização só parece valer para a França, na medida em que a literatura sobre o assunto
alude constantemente à "corte licenciosa" de Carlos II na Inglaterra da segunda metade do século XVII,
retratada no famoso livro de John Wilmot, conde de Rochester, Sodom, or the Qjúntessence of Debauchery, 41 Pierre Gaxocce. Le siêcle de Louis xv. Paris, Hacherte, 1946, P: 21.
de 1684. 42 Idem, ibidern, p. 20.

92 93
h,IH'IHlol((II,d, 'V()IIIiI.IIII()~l)llI',llIlt,."III,1111·11\1.ldlllllll'I"". 1'1,1111'..11.,111 (:II.IIIII.li'. (1,00 l/CIO) I 11111111
tlll 1" di ' 1111',11",
lil! " 1111111
dll 1" (11\11" d
de incesto !l,1Oa iomovin, muito 111'IlOS:10 p,li: "1',"'1'111111'1" I' 1'\',,1IlIill ('~.III.II! IlIld,', ,I 1111'111,S.dlt'lIlIl', 111111111" '11.11'111.110. 1':,~pi1'ÍIlIOS(),lu ilh.uur- I
eram apenas descrentes em cus, mas exibiam publi ,II11l'IIIt'., 'li .11'(sino" , suas 'l'lI .ldadcs .tlill\l'III.!1I1,I ~I lIi ';1tI:1 R·,
\ 1111'1110, n ia 'ti· LlI(s V; dt' 1'1 11
Os anos de Regência são marcados pelo desvario e I '10 cx ' .sso: festas, 01' ,ias, I IItll·i:1sun 1115(;, ntra <llI'111IIIOV' III1l pI'O ess ; vive cmbria ndo, " 11.1111.11111
embriaguez, No inverno, três vezes por semana, há baile de máscaras na Ópera. 1',111'do l'mpo, fechado no pala (;CC de Montrnartre em companhia 1:ls:1111,1111
".
No verão, os libertinos divertem-se com prostitutas nas obscuras alamedas cios I111(
I' , as 111 LIitas histórias sobre as atrocidades que cometeu, conta-se q li . ;lss:lssi111111
Champs-Elysées, Todas as noites o Regente recebe para uma ceia no Palácio Real: criança doente, de seis ou oito meses, dando-lhe
11111:1 uma forte agu;)I' I '111' Jl,II.1
companhia brilhante, mas íntima, escolhida num círculo restrito. Entre as I11' h 'r. urra, mencionada em La phiLosophie dans le boudoir, revela qu', '1111,/.' I.
mulheres, além da amante do momento, encontram-se Mme. de Tencin e Mme. 1·1. matou um homem apenas por diversão:
du Deffand'", todas muito perfumadas, os cabelos cortados como dita a moda,
frisados e empoados, os vestidos longos, com aplicações de seda da Índia. Entre Voltando da caça, encontra um burguês parado em sua porta. I t' ~.IIII',l1l
os homens, os companheiros de libertinagem, com quem desafia as convenções, frio, o príncipe diz: "Vejamos se atiro bem naquele corpo!", apontando l'l1l '<1101
brincando com as palavras, as idéias, as reputações, "Os vinhos são bons: direção e lançando-o ao chão. No dia seguinte, ele vai pedir indulgência ao tllllllll
de Orléans, que, instruído sobre o acontecido, lhe responde: "Senhor, a indulg 11\101
champagne e Tokay, O tom se eleva. Eles se aquecem, dizem obscenidades em
que solicitais deve-se à vossa distinção e a vossa qualidade de príncipe d . ,~a1\g\ll':
altos brados, e quanto maiores as impiedades, melhor. No final do dia todo mundo ela vos será concedida pelo rei, mas ele a concederá ainda com maior I l'c~1',li
está embriagado":". àquele que tiver feito o mesmo a VÓS".50
São muitos os companheiros de deboche do Regente; além disso, a
libertinagem de costumes faz escola. Até o final do século, mesmo depois da r Só quando lemos essas histórias dos libertinos de costumes no século X VIII,
Revolução, se ouvirá falar desses homens. O cínico duque de Richelieu, o estranho ), ntendemos o sentido mais profundo do estranho parágrafo que abre as 13!}.jOIlI'll/I'I:
duque de Bourbons, o violento marquês de Bellay, o insólito marquês de
Pleumartin, o desconcertante marquês de Antonelle são alguns dos que encarnam . As guerras prolongadas com que Luís XIV foi sobrecarregado duran l . (1 M'II
perfeitamente o libertino setecentista'". Um deles nos interessa sobremaneira: reinado, esgotando as finanças do Estado e a substância do povo, continham te d,IVi,1
o segredo de enriquecer uma enorme quantidade desses sanguessugas sempre :11.-1'1,1',
aquele que, segundo Michelet, "n'airnait le beau sexe qu'à l'état sanglant" (só
às calamidades públicas que eles mesmos provocam, ao invés de atenuar, . i~111
amava o belo sexo quando o fazia sangrar):", Trata-se do duque de Charolais, que para melhor se aproveitarem delas. O final deste reinado, por outro lado tão sul li111(',
inspira diversos personagens de Sade'", foi talvez uma das épocas em que o império francês viu emergir o maior I1lr1\ll'lIl
de fortunas misteriosas, de origens tão obscuras quanto a luxúria e o debo h '\1111'
as acompanharam. Foi quase no final deste período, e um pouco antes de o Reg '1\1('
43 Pierre Gaxore, Le siêcle de Louis XV; op. cit., P: 60 ter tentado afugentar essa multidão de tratantes através do famoso tribun.il
44 Ernesr Lavisse, Histoire de ia France, tomo VIII, Paris, Hachette, 1911, P: 465. conhecido como Chambre de [ustice, que quatro deles conceberam a idéia d:l\
45 Quando jovens, Mme. de Tencin (mãe de d' Alernbert) e Mme. du Deffand abandonam-se à vida galante,
freqüentam as festas do Regente e convivem com os "liberrins des rnoeurs", mais maduras, elas irão dirigir
orgias singulares que vamos relatar. 5 I
seus próprios salões, freqüentados por filósofos e escritores, muitos deles "Liberrins d'esprit".
46 Pierre Gaxotte, Le siecle de Louis XV; op. cir., P: 60.
47 Uma interessante aproximação entre Sade e o marquês de Antonelle é feita por Pierre Guiral em "Un
Parágrafo da maior importância, que abre o livro e antecede a apresenta 50
noble provençal contemporain de Sade, le marquis d'Antonelle", in Le Marquis de Sade, Armand Colin dos devassos de $illing - um duque, um bispo, um magistrado e um finan il'l:1
- -"j
(org.), op. cit.
48 Citado por Alan Hull Walton na "Introdução" a [ustine, or the misfortunes of virtue, Londres, Corgi Books,
1964, p. 39. SO Sade cita essa passagem, atribuindo as palavras do duque de Orléans a Luís XV, para ilustrar a impunidade do
49 Charolais é citado em diversas passagens dos livros de Sade. Segundo Alan Walton, ele é o modelo que inspira assassinato. As informações sobre Charolais aqui apresentadas constam de uma nota de Yvon Belavnl C'"
o personagem Dolmancé de La Philosophie dans le boudoir; segundo Geoffrey Gorer, ele era um dos La Philosophie dans le boudoir (pp. 302-303). e são retiradas por sua vez do [ournal de Barbier, Chroniqur "r
personagens do manuscrito queimado Les [ournées de Florbelle, que, ao lado de Luís XV e do cardeal Fleury, ia Régence et du régne de Louis XV de 1857.
apareciam com seu próprio nome. Ver Walton, "Introdução", op. cit., p. 39, e Gorer, op. cir., p. 72. 5' Sade, Les 120 journées de Sodome, op. cit., p. 19.

94 95
I
Z'-
--.----.---
quc parc c ser (lias' .oruplcuun '111' ..~qllt,lidll 1I II1 11I1'111111 dI' ",111".
C )1'(1111,11 ()IIOI IlclIlllI, 111111111
11111111 VIIlI,lIll'llllld" ltilllloj',l.illllti lellll I

i: atraí os pela
-...,. ~
radical idade das sciscc11las ~'lixõ .s d,~ 111.1 111)',11.1
',CI',llil, !\S,~illl, ,"\ll)! 'o I 'llIa,:lJ OIlt.1,I (' i'.1 11 ,I di 111.1'dI' I '111 :ISSO
·i:t~·)'S ti 'sS' tipo 'xi·.!I'lllc' 11.1
D Annie Le Brun dirá que esta "incrível frase" tem o pod 'r d ' Il()~"1.1'1.
'I' j>;lssrtrpara prilll'ir:t mctad losé ulo VIII '1111l,\tis, '11U" las a rdrc d 's Frcres d ,l'lJltillll, I

-i iS o outro lado da ordem, para além da sombra do mundo,


selvageria do ser"52, sem, em momento
apresentada pelo autor, Do mesmo modo procederão
nenhum,
Iti.ond ' se c cond ' :1
aludir à referência
outros intérpretes
históri
da obra
a
rdrc I s Fr res d'Apollon,« 'o i ié du M ment,aAphrodités,a
lU s inritulam "sociedades do prazer", seguindo o modelo da ma
rdn dI' '~Ih I1
1l:\rI:I:

~ sadiana, ofuscados pela imaginação delirante do marquês, sem atentar para o fato Ao princípio maçônico de reunião em torno de uma mesma I' '1'1''M'III.II"11
de que o romancista propõe-se também como historiador. Como esquecer a paixão do Homem segundo a ordem da razão opõe-se a representação do Horn '111,"')',1111111
I

a ordem da sensualidade, À concepção da humanidade para além do 'Spil~1I(' ti I


de Sade pela história? Ora, não define ele como "historiadoras" as quatro prostitutas
duração opõe-se a concepção de Homem confinado na instantaneidnd ' ('111',011 dll
que relatam as paixões das 120 journées a partir de sua experiência nos bordéis desejo;?
parisienses?
É como se não pudéssemos aceitar que o "inconcebível" da literatura tivesse Além de se inspirarem no movimento maçônico, exemplo de r :Illil',:II,.11
I
seu ponto de partida na história. Seja como for, as histórias dos libertinos oculta, os clubes libertinos sã( também resultantes do desregramento d s o;~tllllll'
.,
setecentistas rovam ue não foi Sade quem introduziu a cruel ade na que ocorre sobretudo apó 1715: omo conseqüência dessa combina 50 d '1:11011'
~
libertinagem'". Ele é o primeiro a alertar disso, insistentemente, recorrendo de
------------
forma exaustiva a exemplos históricos. Além disso, as crônicas da época indicam
surge um novo tipo associativo:

que a devassidão dos personagens sadianos não deve ser creditada unicamente à A idéia de uma associação das inclinações pessoais de tal ou tal Lipodc' 11111111
fabulação excessiva de seu criador: ao descrever, em Nuits de Paris, os sensual não é nova (Ordre de Ia Boisson, 1705; Ordre de Ia Médusc, 171 .).1 1111
desregramentos do conde de Artois - depois Carlos X - num famoso bordel sua associação em categorias e sua normalização. (...) Um só desvio - 110NI'IIIIdll
que o entendem os psicanalistas - pode servir de critério associativo: a OIlMi 111i (
parisiense, Restif de Ia Bretonne chega a concluir que os feitos exemplares desse
de uma singularidade de costumes criada por uma minoria à qual ela S' lill(II,I.
libertino teriam inspirado a criação de algumas cenas de [ustine": uma conivência, um lugar social de tipo novo, mesmo se ele é artificial OLl ' 111('1
(1,111
A· questão, certamente, não é descartar a prod~giosa imaginação ?e Sade;
a- , a ordar sua o ra a artir da história a ibertinagem pode trazer surpresas Essas sociedades secretas têm, portanto, perfis diversos, Quoi-Bodin, ao omp,ll.11
para os estudiosos que, muitas vezes, ignoram tal associaçã055. Nesse~o; a Ordre de Ia Félicité à Ordre Hermaphrodite, observa significativas semclhanç.iv ('
uma outra faceta da libertinagem de costumes é bart;nte instigante, sobretu& diferenças entre arribas. Uma curiosa familiaridade está no fato de as duas ord 'li,
para quem estuda a obra do criador da Sociedade dos Amigos do Crime: as utilizarem um vocabulário secreto, empregando termos da marinha para desigll.11
.inúmeras sociedades secretas libertinas q~ se formam a_partir do sécul~ suas atividades, notadamente aquelas que dizem respeito .w, A à sensualidad
principal diferença é que a Ordre de Ia Félicité se diz uma sociedade hcdonist.r,
)2 Annie Le Brun, Soudain un bloc d'abtme, Sade, op. cit., P: 51.
dedicada à galanteria, "talvez um pouco erótica", mas "sem excessiva Iicenciosidade",
53 Pierre Guiral dirá que "o século XVIII foi um século de crueldade" ao traçar algumas semelhanças entre os
"gostos bizarros" de Sade e do marquês de Antonelle. "Un noble provénça\... •., in Le Marquis de Sade, enquanto a Ordre Hermaphrodite se declara uma associação voltada à prática crói j( ,I,
Armand Colin (org.), op. cir, p. 82.
54 Além dos relatos de época, como Les Nuits de Paris, de Restif de Ia Bretonne, consultar também o livro de
dedicando-se à organização de "santas orgias" e a todas as formas de deboch ,
Eugene Duehren (pseudônimo de Iwan Bloch), El marquês de Sade y Ia Europa de! siglo XVII! y XIX,
México, Ediciones Pavlov, s.d., que, embora publicado em 1904, continua sendo uma das poucas obras a
tecer relações entre a libertinagem histórica e a ficcional. 56 Esta última é citada por Sade numa passagem de [ustine, aludindo aos seus aristocráticos membros.
55 O único trabalho que conheço em que se tematiza essa associação é o de Jean-Claude Bonnet, "Sade historien", 57 Jean-Luc Quoi-Bodin. Les Six Livres de Ia République. Paris, Fayard 1986, p. 82.
in Sade, écrire Ia crise, op. cir., 1983, afirmando que o marquês está inserido na polêmica setecentista que 58 Idem, ibidem, P: 82.

opõe os eruditos e os filósofos. Bayle, Montesquieu, Voltaire e Diderot serão alguns dos filósofos que '" /.59 Quoi-Bodin (Les Six Livres de Ia Rêpublique, op. cit., p. 73) reagrupou os 254 termos utilizados em <1'""'"
"tomam o partido da história", considerando-a novo e importante domínio do conhecimento ao qual a C! rubricas: termos utilitários (vida social, doméstica), 157 palavras; atividade amorosa e sexual, 67; I"" 1<" .I"
filosofia não pode dar as costas. Assim também procederá Sade (p. 133). corpo, 20; a mulher, 15.

96 97
"1':SS,IH
<lIIIISCOI'I't'111
'o', lil'dol\isln ,Iih -rrinu, ,~lIhl,/111111 li 111tio
1I111 'XIII'lilO ()I.I, M' IOlll,\I'III()Hli,', \,1'1 11111'1,111
tllllI IIIII'~(OI, qll', md)('llIlH" 11("11,1111
S'. ulo XVIII, 1'.(1'lindo muito 'x;ll:1111rue :1 mar 'ha Ir' 11111.1
,'1(1'i, 1:1I, que S(' do ,~t(clllo XVIII
"1j\III' 11I'ivil'gi:ldo 1\:1lit .rut 111.1111)('11111.1 ,V('f't'IIl(l,~ 11"1'1,11'
Icsejava ao mesmo tempo sensual e sensível'f", diz Quoi-I)o Ii1\, .scjo <.1<;lifk;i I d 'f'.lld '111uma concep 50 baSI:lIl(' di!"I' .ntc daquela aI r 'S '111:1d:lpOI' 'll'II'N.11111
conciliação ue gerou não apenas essasdiferentes formas de associação q u ' os lI:l11ny, 1_:ll'aes es - a exemplo de uma m.arquesa de Merteuil, de l.a ·10,' I

clubes eróticos revelam, mas também um vigoroso-;r~ngo debate entreos escritor 'S r'lIlld:ullental negar o sentimento amoroso em função da eficá ia da ,~edll~':ltl,i'.I11
TIberti~~s,--g;;vitando-em torno da temática dos- sentimentos. Ou, mais \ do cálculo preciso e infalível a lhes garantir a conquista, seu objetivo "tllilllll.
propriamente, do amor. I\ssa mesma vert-;m-e evid~~cia-se nos libertinos sadianos que, não menos 'l'I'(,IH,1i"
Vale observar desde já que essa polêmica repõe a questão dos diversos gêneros que os tipos donjuanescos, também rebaixam a paixão amorosa diante tI:l 1':1/,,111
de libertinagem; vejamos rapidamente por quê. Um autor como Restif de Ia "Nã<: existe~.:::. q~e.!esist~feito_s de uma sã reflexão", conclui o persoll:II',l'lll
Bretonne, por exemplo, quando afirma o desejo de escrever "um livro em que os de La philosophie dans le boudoir":
sentidos·falam ao coração", d-;;ixa claro seu obj~Í:iv~ de harmonizar o ·sentifiento Porém, mais do que isso, eara os devassos de Sa~e é quando colocado .1
amoroso e a volúpia ·carn;l, apresentando assi~ ;:;;;a 7~~~~pção qu~, s~ prova do prazer que ~senti:nento amoroso desmorona por completo: "Amo dcm.ii ..,
_hegemônica:-é bas;;'nte comum na liter;tura liber~in~ setecentista. Semdhante O prazer para ter uma só afeição", vangloria-se a lúbrica Mme. de ainl-ÂIIJ',('
inte~ção encontramos num romance ~omo Te;esajjló~~fo, cuja histó~ia desenvolv~. diante do cínico Dolmancé, que completa:
- ----,. " ~
se a fim de demonstrar
---- ----
ao leitor a viabilidade dessa concepção, ao sugerir a maneira
-.-
~n~isadequada defazer convergir a paixão da car?e ~ a pajxão do coração. Relatando
•....
Oh! Como é falsa essa embriaguez que, absorvendo os resultados c!:ISSt'lllHlI,
111"1,
coloca-nos num tal estado que nos impede de enxergar, que nos im] cclcd\' I'XI·" 11
de forma progressiva cada passo da iniciação sexual da personagem até seu
sendo para esse objeto loucamente adorado! É isso viver? Não será, :\111(',_, 111'1"
defloramento, esse livro, como observa Renato Janine Ribeiro, "não trata de privação voluntária de todas as doçuras da vida?64
qualquer defloramento, mas de um que seja fruto do desejo e mesmo do amor:
Teresa só será penetrada quando o quiser plenamente, e pelo melhor homem Assim, por desprezar os "gozos metafísicos" que esse sentimento produz 1111,
~_ '. - c .•••
"'-'

possível em suas condições'F'. indivíduos, tornando-os dep'endentes e fracos, os libertinos sadianos só recon 1m ('111
Não é simples coincidência o fato de que outro romance, editado na ~ i~s;ci~bilidad; da-c~rne, Ao amo; que es~raviza el~~'contrapõe~;- libcrtinapcru,
Inglaterra em 1748 - exatamente o mesmo ano em que o marquês d'Argens,
--"- _. ""'......-
for~ libertador~a emancipar o indivídu~ _das indesejáveis dependências, faz 'l1d() (I
suposto autor de Teresa, publica seu livro na França -, traga a mesma proposta recuperar o estado original de egoísmo e isolamento de que foi dotado pela natu I't"/.:f~,
de equilíbrio É o caso 4e Fa"!!!L HilL ou Memórias
entre prazer e sentimento, Estes poucos exemplos já são suficientes para indicar que a literatura liccn 'iON:1
fte uma mulher de p'razer, de John Clelandf': as0m como Teresa, a jovem Fannz. também caminhou lado a lado com a libertinagem de costumes. Às diferentes COtT '1lI(','.
só é deflorada pelo homem que ama e, ainda que suas aventuras eróticas pelos dos clubes secretos correspondem as distintas posições acerca do amor expl' 'SS:IH
hordéis londrinos seja~ bem mais devas~q~e as _narrada_s pela- aprendiz de nesse gênero literário; isso sugere que.a sociedade do século XVIII exigiu de S<':lI~
filósofo, tudo termina na mais perfeita harmonia, com a heroína rica e feliz
---
,10 lado de seu amado.
-
Essas personagens
-- - ----- -
não precisam renunciar à sexualidade
contemporâneos não só uma profunda reflexão sobre o prazer, mas também UIII,I
opção definida quanto ~s suas P!á~s. A unidade entre pensamento e sensual i I:HII'
p.lra amar - co~o -;c~ece ;;-m suas contemporâneas Clarissa e Pamela, as defendida pelos libertinos de espírito certamente foi, para alguns homens setecentisrnx,
Jovens m~lodr~máticas de Richardson -, nem tampouco rejeitar o amor para uma experiência efetiva. Entre eles, o marquês de Sade, um radical.
realizar os prazeres da carne. ..-

•.li(~II(Ji.l3odin, Les Six Livres de Ia République, op, cit., P: 82,


"I 1('llnI"oJ anine Ribeiro, prefácio a Teresafil6sofo, Porto Alegre, LP&M, 1991, P: l l .
63 Sade, Ia Philosophie dans le boudoir, op, cir, p, 480,
u, Illhll lcland. Fanny Hill ou Memórias de uma mulher de prazer, Eduardo Francisco Alves (trad.), São Paulo, 64 Idem, ibidern.
1,:,t~ç"OLiberdade, 1997, 65 Desenvolvi esse tema em "Um outro Sade", prefácio a Os crimes do amor, op, cit, pp, 7·20,

98 99
I) ) SAI.A ) A<l /lU//J)U"" " .11110111,111
• ':1111'111'
" , (\
A )OV'111
' I 111,1111111\11,
I I I I ' I "r.
' gl',IVI( (OlllO " 1111'1,1111'011111
' II I
1;\'ri'.ld'hol11'ns"càsexualiti:ldt, 1l1110"III",ni a dos prazcrcs duuuur ", 1.111111111
Essas notas circunscrevem o campo de rcfcrên .inx d.1 01,1.1 I· S:td ': ti ' c o: S t .orias que concebem o ser humano unicamente 01110nsÍt'o, 0'1".11111,11111
um lado, a filosofia libertina, ue privilegiava as relações .n t rc S .nsual ida I, Se iundo as matérias que o compõem. Da mesma forma, em L'ér/II('(I/iol/ r/,'/ ti 111, ,

e pe~ento, tendo com_o matriz a f~nte clássica do esrói cisrno e do r mancc libertino do voltairiano Mirabeau, o personagem prin ipnl :\ 'oll~I'III,11I
epicurismo~ de outro, a históriada libertinagem, ..:...efC:;E.ida
a seus_antecedentes, heroína a leitura de Zadig, para que ela se familiarize com os prin '{Ilim tllI
mas sobretudo tratada na dualidade com que se apresenta. no século XVIII, determinismo ao mesmo tempo em que se prepara para novas expcriên 'i:\s S\'II',lloIl'
- -- - ""-

definida segundo "os costumes" ou "o espírito", Inúmeras questões decorrem Os exemplos se multiplicam e mostram que, para além das rclaçõ 's dv ".III~ 1111
dessas observações, mútuo" ou "complernentaridade" enfatizadas, por Rouanet, a literatura lil \'1.11
111'I
Ao examinarmos a filosofia libertina ,à luz dos registros históricos sobre os cumpre, no sécuÍo XVIII, o importante papd de testa-;-;'s teorias illllltllll' li ,
devassos setecentistas temos a impressão de que existe uma distância insuperável sobretudo aguelas p-;;-d:Zidas ela vertente materialista da Ilustração. 1'.\1I 111111
entre os libertinos eruditos e os de conduta. Ora, não parece estranho que filosofia particular_men:e vo~:..ada..!o te~a d::, sensações essa [itcrauu.t V,II1"111'"1
justamente um pensamento que deseja levar em consideração a experiência sensível, o desafio de suas a!covas lúbricas, laboratórios perfeitos onde a .x 111'11111I I I I
rejeitando a cisão espírito/carne, descarte qualquer relação com a prática libertina? imaginação estioa ~r~iço da matéria, e smde asjdéias só ganh:ll\\ ("~I,IIIIIIItil
Ou será que, entre os livres-pensadores que freqüentavam o salão de d'Holbach, ;erdade ao tomar corpo,
havia quem compartilhasse o deboche dos companheiros do Regente? De outro - Por isso, quando 5! m~uês de Sade, em 1795, escreve La Pbilosophi, '/,/1/1 /,

lado, seriam os devassos de conduta leitores desses filósofos eruditos? Que boudoir- afirmando a a!cova libertina como lugar para onde conver 'l'llI ,I Id" I111I
qualidade de relações teria existido entre os diversos tipos de textos considerados ;;;-erotismo -=cle está, ;n;e;de mais ~da, realizando uma notáv ,I ~{illl",1 ti,
libertinos (filosofia, romance, libelle etc.)? toda uma tradiçfude pensamento. Tradição essa que, embo~ncontre 11:1lill'l,lllll I
Ainda que não seja possível responder a todas essas perguntas, podemos ao licenciosa setecentista a sua expressão mais bem acabada, remonta, 01110Villlll ,
menos levantar algumas hipóteses a fim de esclarecer o gênero de libertinagem a ao final do século XVI, com os pensadores que opõem aos ensinamcruos d,1 111,1
que se vincula a obra de Sade. S.,Sgl:,ndo Sérgio Paulo ~~ de~oJ~eu-se constatações da experiência cotidiana e da percepção sensorial, e se mant ~III viva

-
entre as duas
complementaridade:
- correntes
- libertinas
- ..• _.
do século
- XVIII
-
"uma
um~ divisão de trabalho pela qual os filósofos se encarregavam
..•.
relação de durante todo o século seguinte,
Porém, se aos romancistas libertinos do século XVIII cabe o méri to d ' I'n II1iI
de minar os alicerces políticos do An~ien Régime, e os autores libertinos seus a libertinagem erudita e o deboche de conduta, ao marquês cabe uma gll'lIi.l,
alicerces morais", Assim,70ntinua
--- ele, - -

os filósofos forneceram os ar umentos teóricos de _qllc:....2~ romancistas libertinos


ainda maior: a de deduzir, dessa síntese, tal ordem de conseqüências
jamais concebida, e sobretudo de propor, a partir daí, seu próprio sistema (J1n.~<'lfi( I1
Ao transportar a filosofia para a a!cova, Sade não só coloca ~
ai ' VIII.III

prática as It'Illl,I',
precisavam para justificar a legitimidade-do e-;;tismo, e estes retribuíram o favor,
do primado das sensações no homem, tão em voga ~~~i~patizanl~'~ eI"
~nci~ando como linha auxiliar na crítica do Ancien Régime, e difundindo, em
materialismo na época, como também demonstra que a experiê!:cia da cru ,ld,lIll'
s~uasnovelas, as idéias políticas e sociais da l~ustração,66
i a úni~nseqüência lógica a ser tirada dessas te~ia~,-E, assim, funclu 1III1
sistema em que pensamento e corpo unem-se para realizar a experiência sobcr.uu
Assim é que, em Teresafilósofa, a idéia do corpo enqy~nto máqu0a ap~
do_mal, ~endo ;;-mo f~triz a relação entre~razer e do'7' A isso seus lib '1'1i1111'.
tanto para divulgar as concepções materialistas de La Mettrie
----e de d'H~lbach
-que Teresa ------ dão o nome de "filosofia lúbrica".
quanto para justifica~s prazeres ~~ais se proporciona
Para realizar tal empresa o marquês irá recorrer a um grande núrncru ell
t.t. Sérgio Paulo Rouanet. "O desejo libertino entre o Ilurninisrno e o Conrra-Ilurninismo", in Vários autores. O fontes, a princípio até discrepantes, reunindo em sua obra o barão de l'Llolh.u 11
desejo. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 168.
e o duque de Orléans, La Mettrie e o duque de Charolais, Lucrécio e () (':\1ell',tI

100 101
l\ ·IIIL ••• l\u!lolI • () 111.ln(l1 ~ d'/\II',I'"~' \'11111' 1.111111'.11111111', I' I ti 11' 1'ltI,IIII' dI'
rcfcrên ias ~ normalm 'IlI • int 'rpr .tncla :l p:1I til' d.! I h.IVI· ti" '\ I" 11", pllll (pio
de acumulação vertiginosa que caracterizaria o P 'I\S:11\1 '11111 ••••ltli.IIIO. ( rn, o

problema é que, sendo mais conceitual que histórico, esse prin (pio muitas vezes
impede o reconhecimento das fontes em questão, e, por conseqüência, o próprio
acesso ao pensamento de Sade. Torna-se, Eis, necessário levar em conta a
complexidade do marquês, ejnterpretar es~e ex~sso tendo em vista a pluralidadc
de elementos em jogo na obra de um_autor que, além de libertino, também foi

-E
literato, filósofo e historiador
-- -- --
da libertinagem.
- ~
não é assim que ele pede para ser lido? Deixemos com ele a última palavra,
recordando essa bela passagem de uma carta a Mlle. de Rousset:

A águia, senhorita, é, às vezes, obrigada a deixar a sétima região do ar para vir


se abaixar sobre o cume do monte Olimpo, sobre os antigos Pinheiros do Caucásio,
sobre o frio larício do Jura, sobre o branco píncaro do Taurus, e algumas vezes
mesmo perto das pedreiras de Montmartre. Sabemos pela história (pois a história
é uma coisa bela) que Carão, o grande Catão, cultivava seu campo com suas próprias
mãos, Cícero alinhava, ele mesmo, as árvores nas belas alamedas de Formies (não REPERCUSSÓES
sei se também eram podadas), Diógenes dormia num tonel, Abraão fazia estátuas
de argila, o ilustre autor de Telémaque fazia pequenos copos para Mme. Guyon,
Piron deixava às vezes os sublimes pincéis de Ia Métromanie para beber vinho de
Champagne e fazer a Ode à Priape. (... ) E nos nossos dias, senhorita, nos nossos
augustos dias, não vemos a célebre presidenta de Montreuil deixar Euclides e Barême
para falar de óleo ou salada com seu cozinheiro? ~is o que vos prova, senhorita,
ue o homem fez muito, elevando-se acima de si mesmo, mas há instantes fatais
~seu dia que, apesar disso, lhe recordam sua triste c~ndição de animal~~ qU,:1
sabeis q':!..em~ si~ (talvez por julgar segundo mim mesmo), que meu sistema,
d~,~o~~~~~ . .
~

G7 Carta a Mlle. de Rousset, enviada de Vincennes em 17 de abril de 1782.

102

Você também pode gostar