Você está na página 1de 18

Primeira edição brasileira: 1982

Traduzido de:
ÉTUDES D'HISTOIRE DE LA PENSÉE SCIENTIFIQUE

Copyright © Éditions Gallimard, 1973

CIP-Brasil. Catakjgação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Koyré, Alexandre.
K89e Estudos de história do pensamento científico/Alexan-
dre Koyré; tradução e revisão técnica de Márcio Ramalho.
— Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária; Brasília: Ed.
Universidade de Brasília, 1982.
(Coleção Campo teórico)

Tradução de: Études d'histoiie de la pensée scientifique


Bibliografia

1. Ciência - Filosofia 2. Ciência - História I. Título


IL Série

CDD - 501
509
CDU - 501.001
82-0287 501 (091)

Reservados os direitos de propriedade desta tradução pela


EDITORA FORENSE-UNIVERSITÁRIA
Av. Erasmo Braga, 227 - grupo 309 — Rio de Janeiro

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
LEONARDO DA VINCI
500 ANOS DEPOIS*

"De tempos em tempos, o Céu nos envia alguém que não é apenas
humano, mas também divino, de modo que, através de seu espírito e da su-
perioridade de sua inteligência, podemos atingir o Céu". — É assim que Va-
sari começa sua biografia de Leonardo da Vinci. Tais eram os sentimentos
dos contemporâneos de Vasari em relação ao grande florentino; tais teriam
sido, certamente, embora formulados de outra maneira, os sentimentos de
nossos próprios contemporâneos: sentimentos de respeito, de admiração,
até de veneração pelo grande artista, pelo grande sábio da Renascença.
É por isso que, em 1952, 500 anos depois do nascimento de Leonar-
do da Vinci, no mundo inteiro, na Itália, na França, na Inglaterra, nos Es-
tados Unidos, houve um grande número de celebrações e de comemorações
desse acontecimento, e ainda um certo número de reuniões em que artis-
tas, historiadores, sábios e homens de ciência se encontraram, não só para
comemorar, mas também para comparar seus pontos de vista e elaborar em
conjunto uma compreensão melhor de Leonardo da Vinci, uma apreciação
melhor do lugar que lhe deve ser destinado na história do espírito humano.
E sempre difícil a tarefa de interpretar o papel de um grande homem
na história. Um grande homem, naturalmente, pertence a seu tempo. En-

* Texto inédito de uma conferência feita em Madison (Wisconsin), em 1953,


traduzido do inglês por D. K.

91
tretanto — precisamente porque o chamamos "grande" —, ele não pertence
a seu tempo, pelo menos inteiramente, mas o transcede e lhe impõe sua
própria marca. Por assim dizer, ele transforma o passado e modifica o fu-
turo.
A fim de situá-lo exatamente, temos de confrontá-lo com seus prede-
cessores, seus contemporâneos e seus sucessores. Tarefa difícil e complica-
da, que se torna tanto mais difícil quanto maior é o homem de que fala-
mos, em suas aspirações, seu pensamento e sua obra.
Isso se torna ainda mais desafiador quando se trata de Leonardo, um
gênio universal, se é que em algum tempo houve algum.
Além disso, no caso em apreço, estamos em presença de uma dificul-
dade particular e única no gênero: não há um único Leonardo da Vinci; há
dois.
Por um lado, o Leonardo da Vinci que eu poderia chamar homem
"público" ou homem "exterior". O adolescente bem dotado, nascido em
15 de abril de 1452, filho de Ser Piero da Vinci e que, com a idade de 14 ou
15 anos, se torna aluno ou, antes, um aprendiz de Andréa Verrocchio e, a
seguir, seu colaborador.
Há o jovem bem apessoado, brilhante e dotado de dons excepcionais:
músico, pintor, escultor, arquiteto, engenheiro, que Lourenço, o Magnífi-
co, emprestou, em 1481, a Ludovic Sforza, cognominado II Moro, duque
reinante de Milão. Posto a serviço deste último em 1482, serviu-o durante
quase 20 anos, até a queda desse príncipe por ocasião da tomada de Milão
pelos franceses. Trabalhou para ele como uma espécie de "homem de sete
instrumentos": como mestre de cerimônias, organizando espetáculos e fes-
tas; como engenheiro e supervisor, abrindo canais e construindo fortifica-
ções e fossos; como artista, pintando para Ludovic o retrato de sua cunha-
da Isabella d'Este e também os de suas belas amantes, Cecília Callerani
(1485) e Lucrezia Crivelli (1495); mas, antes e acima de tudo, como escul-
tor, trabalhando durante anos na grande estátua eqüestre de Francesco
Sforza, a qual, ultrapassando em dimensão as de Donatelloe de Verrocchio,
devia dar a conhecer ao mundo o poder da dinastia dos Sforza e a glória de
Leonardo.
Eis o homem que, ao mesmo tempo em que trabalhava para II Moro,
pintou A Ceia e A Virgem no Rochedo, para os dominicanos de Santa Ma-
ria delle Grazie; que, mais tarde, em Florença, para onde voltou após a que-
da de seu patrão, pintou A Santa Família, Leda, Mona Lisa e A Batalha de
Anghiari, assim firmando sua reputação como o maior pintor de sua época.

92
Eis o homem que serviu César Borgia e que, em 1507, retornou a Mi-
lão, para ali trabalhar, desta feita para os franceses, para Charles d'Amboi-
se e para o Marechal Trivulzio; que, depois, sendo obrigado a partir quan-
do os franceses abandonaram a cidade, foi para Roma servir os Medicis, o
Papa Leão X, e que, enfim, cansado mas não alquebrado, vencido pelo
mundo mas não desencorajado, aceitou, em 1515, o convite do rei da
França, Francisco I, e passou os últimos anos de sua vida no castelo de
Cloux, perto de Amboise, onde morreu tranqüilamente em 2 de maio de
1519.
Eis o homem público ou "homem exterior" que o século XIX consi-
dera com admiração o maior representante de seu tempo, o artista e o ar-
tesão incomparável, exemplo perfeito do individualismo livre e criador,
afirmando-se em obras de uma perfeição e de uma beleza imperecíveis.
Ao mesmo tempo figura trágica, pois o destino foi duro para este ho-
mem e suas obras. Certos retratos foram perdidos. Perdidos também foram
os famosos desenhos de A Batalha de Anghiari. A Ceia se deteriora. A gran-
de estátua de Francesco Sfórza, D Cavallo, nunca foi moldada: não havia
dinheiro para pagar o metal; ou então o metal era necessário para a fabri-
cação de armas. Quanto ao modelo de argila erigido em 1493 sobre o pe-
destal onde devia ser colocado o monumento em bronze, desapareceu sem
deixar rastros sob a ação conjunta da chuva e das flechas dos soldados do
Marechal Trivulzio, que o utilizaram como alvo para seus arremessos.
Por maior que seja, este homem público não é Leonardo em toda a
sua inteireza. Há um outro Leonardo, o homem "interior", o homem se-
creto. O homem que Francisco I chamava respeitosamente "Meu Pai" e do
qual dizia a Benvenuto Cellini, vinte anos após a morte de Leonardo, que
este não era somente o homem que conhecia melhor do que ninguém a es-
cultura, a pintura e a arquitetura, mas também e, acima de tudo, um grande
filósofo; o homem que havia enchido de notas e de ensaios filosóficos e
científicos inumeráveis folhas de papel e as tinha coberto de desenhos geo-
métricos, mecânicos, anatômicos, projetos de livros a serem escritos e de
máquinas a serem construídas; o homem que escreveu essas notas e esses
ensaios em caracteres invertidos, decifráveis somente diante de um espelho
para protegê-los de olhares indiscretos, e que, além disso, os manteve em
segredo e nunca os mostrou a alguém ou, pelo menos, muito raramente. As-
sim, em 1517 eie os franqueou a Antonio de Beatis, secretário do Cardeal
Aragon, que em seguida fez um relatório a seu chefe, assinalando que aque-
les manuscritos eram muito bonitos e poderiam ser muito úteis se fossem
publicados.

93
Tais papéis jamais foram publicados. Em vez de deixá-los para Fran-
cisco I que, pelo menos, os teria guardado, todos reunidos, Leonardo, an-
tes de morrer, legou-os em testamento a Francesco Melzi, seu domes ticus,
aluno, secretário e amigo. Melzi os levou para a Itália e, do mesmo modo
que seu mestre, guardou-os mais ou menos em segredo. Depois de sua mor-
te, passaram a seus herdeiros, que os perderam em parte e, finalmente, no
fim do século XVI, venderam o que restava a um certo Pompeo Leoni,
escultor italiano a serviço da corte da Espanha.
A continuação da história desses papéis é complicada e longa demais
para ser narrada aqui. Eles foram encontrados na Espanha, depois nova-
mente na Itália, antes de serem dispersos entre Paris e Windsor, Turim e
Milão. O que importa é que, com exceção das partes dos manuscritos rela-
tivas à pintura, e que constituíram a base do Trattato delia Pittura, publi-
cado em Paris em 1651, do manuscrito com o nome de "Arundel" (Tho-
mas Howard, Lord Arundel, levou-o em 1638 da Espanha para a Inglater-
ra, onde o antropólogo alemão Blumenbach o viu em 1788), de certo nú-
mero de páginas relativas a problemas científicos que Libri subtraiu dos
Arquivos do Instituto de França e que mencionou em sua História das
Ciências Matemáticas na Itália, em 1841, todos os outros manuscritos
permaneceram desconhecidos.
Somente no último quartel do século XIX é que foram descobertos
nas grandes bibliotecas públicas, onde dormiam tranqüilamente havia vá-
rios séculos, alguns desses manuscritos. Foram transcritos, traduzidos e
finalmente publicados por Jean-Paul Richter (1888), Ravaisson-Mollien,
Mac Curdy e outros mais.
A impressão produzida por essas publicações foi considerável. O per-
sonagem Leonardo adquiriu proporções sobre-humanas. Foi proclamado o
maior espírito moderno, fundador das técnicas e da ciência modernas, pre-
cursor de Copérnico, de Vesálio, de Bacon e de Galileu, aparecendo mira-
culosamente como um proles sine matre no começo do mundo moderno.
A seguir, nos primeiros anos do século XX, o grande sábio e erudito
francês Pierre Duhem, a quem devemos a redescoberta da ciência medieval,
publicou sua famosa obra Léonard de Vinci, ceux qu 'il a lus et ceux qui
l'ont lu (1906-1913), na qual tenta destruir aquela imagem mítica de Leo-
nardo, que acabo de evocar, substituindo-a por outra estritamente histó-
rica.
O livro de Duhem é o ponto de partida de toda a pesquisa moderna
e, em comparação com seus imensos méritos, pouco importa que esse au-
tor, ofuscado e arrebatado por sua dupla descoberta, a da ciência medieval,
94
de um lado, e, de outro, a de elementos medievais no pensamento de Leo-
nardo, nos tenha apresentado, afinal, uma imagem algo estranha e para-
doxal do grande gênio: a imagem de um Leonardo que não era apenas um
homem de ciência, mas também um sábio tão grande quanto o próprio
Duhem: um Leonardo, último fruto da tradição medieval, sobretudo a dos
nominalistas parisienses, que havia cuidadosamente estudado e que havia
preservado e transmitido através de seus manuscritos aos homens de ciên-
cia do século XVII. Daí se seguiu que Leonardo não mais apareceu como
um gênio único, como o haviam visto os historiadores do século XIX. Mui-
to pelo contrário, na concepção de Duhem, ele se tomou um elo — o elo
mais importante — entre a Idade Média e os Tempos Modernos, restabele-
cendo, assim, a unidade e a continuidade do desenvolvimento do pensa-
mento científico.
Os eruditos contemporâneos, ao mesmo tempo em que reconhecem
numerosos elementos medievais no pensamento de Leonardo da Vinci
(com efeito, sua dinâmica, sua concepção da ciência, o papel atribuído à
experiência e às matemáticas, têm contrapartidas medievais), não aceita-
ram a imagem traçada por Duhem.
Nós que, graças ao movimento desencadeado por Duhem, conhece-
mos, bem melhor do que ele poderia ter conhecido, tanto o pensamento da
Idade Média como o da Renascença, aprendemos que, para impregnar-se da
tradição medieval, Leonardo não precisava meditar sobre os manuscritos e
os incunabula de Alberto da Saxônia ou de Bradwardine, de Nicolau de
Oresme ou de Buridano, de Swineshead ou de Nicolau de Cusa, se bem que
provavelmente ele os tenha lido ou compulsado alguns deles. Com efeito,
essa tradição antiaristotélica, a tradição da dinâmica baseada no conceito
do impetus, força, potência motriz presente nos corpos em movimento,
que os nominalistas parisienses opunham à dinâmica de Aristóteles1, estava
no ar. Era uma tradição ainda viva, que se achava presente tanto no ensino
universitário quanto nos livros populares escritos em língua vulgar - parti-
cularmente em italiano -, cuja importância e larga difusão agora sabemos
apreciar.
Sabemos também que, para reencontrar essa tradição, os homens de
ciência do século XVI - Bernardino Baldi, Cardano, Tartagliaou Benedetti
— não precisavam ler os manuscritos de Leonardo: poderiam encontrá-la
mais facilmente num grande número de livros impressos na época.
A concepção de Duhem, embora acentuando a continuidade do de-
senvolvimento histórico, teve como resultado paradoxal apresentar Leo-
95
nardo como um tardio espírito medieval, mais ou menos isolado em seu
tempo.
Historiadores mais recentes tendem a estabelecer uma ligação mais
estreita entre Leonardo e sua época. Levam-nos a notar a existência de
uma literatura científica e técnica em língua vulgar, como acabo de men-
cionar. Em particular, sublinham que a dissecação de corpos humanos era
bastante freqüente no século XV e no início do século XVI. Também rela-
cionam os estudos técnicos e os desenhos de Leonardo com o interesse por
tais questões, muito vivo na época, muito mais avançada sob esse aspecto
do que se acreditava ainda há pouco tempo. Efetivamente, um grande nú-
mero de máquinas representadas nos desenhos de Leonardo parece não
haver sido engendrado por seu espírito, sendo apenas épuras de objetos
que existiam, que ele tinha visto, provavelmente em seu redor. Outros sá-
bios, reagindo Violentamente contra a tentativa de Duhem de "medievali-
zar" Leonardo e defe fazer um erudito colecionador de alfarrábios, tendem
a ligá-lo diretamente aos gregos: a Arquimedes, por quem Leonardo real-
mente demonstrou um profundo interesse, a Euclides, cujo método, segun-
do claras evidências, ele tentou imitar. Quanto aos outros, incliriam-se a
aceitar a opinião dos contemporâneos de Leonardo: uomo senza lettere,
iato é, sem cultura.
Foi assim que eles substituíram a imagem, transmitida por Duhem,
de um Leonardo que lera tudo e fora por todos lido, pela imagem de um
Leonardo que nada lera e por ninguém fora lido. Quer parecer-me que, em
sua reação contra a teoria de Pierre Duhem, os sábios contemporâneos fo-
ram longe demais. Com efeito, Leonardo é um uomo senza lettere', ele pró-
prio no-lo diz, acrescentando, contudo,, que foram seus inimigos que o
cognominaram dessa forma, disputando entre si os direitos superiores da
experiência. Todavia, que quer dizer tudo isso? Nada acredito, a não ser
que ele não era um "homem de letras", um humanista, que lhe faltava
cultura literária, que jamais fez estudos universitários, que não sabia grego
e latim, que não podia utilizar o italiano precioso e requintado da Corte
dos Medicis, ou dos Sforza, ou dos membros da Academia. Certamente,
tudo isso é verdadeiro. De fato, segundo o último editor de seus escritos,
sua linguagem é a de um fazendeiro ou de um artesão toscano; sua gramá-
tica é incorreta, sua ortografia é fonética. Em suma, isso significa que ele
aprendeu tudo por si próprio. Mas autodidata não significa ignorante e
uomo senza lettere não se pode traduzir por pessoa iletrada, sobretudo no
caso em questão. Portanto, não devemos admitir, porque ele não podia
escrever em latim, que tampouco pudesse ler. Talvez não muito bem. En-

96
tretanto, se pôde ler Ovídio, o que seguramente fez, pôde ser-lhe muito
menos difícil ler um livro de ciências - geometria, ótica, física ou medici-
na —, assuntos que conhecia perfeitamente. As obras científicas são, de
fato, fáceis de ler, com a condição de que seus assuntos sejam familiares ao
leitor. Dificuldades se encontram no que se refere a textos literários.
Aliás, eu mepergunto se, impregnados como somos por nossa tradi-
ção intelectual, ao mesmo tempo acadêmica e visual, podemos figurar as
condições em que o conhecimento, pelo menos um certo tipo de conheci-
mento, podia ser adquirido e transmitido durante as épocas que precede-
ram a nossa. O grande historiador francês Lucien Febvre, que tanto fez pe-
la renovação dos estudos históricos na França, costumava, insistir na dife-
rença entre nossa estrutura mental — ou, pelo menos, nossos hábitos men-
tais, hábitos <ios povos que lêem em silêncio e que tudo aprendem visual-
mente — e a estrutura ou as estruturas próprias das pessoas da Idade Média,
e mesmo dos séculos XV e XVI, que liam em voz alta, tinham de pronun-
ciar as palavras e aprender tudo, ou pelo menos a maior parte das coisas
que sabiam, de ouvido. Aquelas pessoas, para as quais não só a fé - fides
—, mas também o conhecimento — scientia — era exauditu, não acredita-
vam que tivessem de ler um livro a -fim de saber' do que ele tratava, na
medida em que houvesse alguém que lhes transmitisse seu conteúdo de
viva voz.
Assim, não devemos minimizar tudo o que o jovem Leonardo pudera
aprender, por ouvir dizer, em Florença — os florentinos são particularmen-
te loquazes —, sobre Ficino e Pico e sobre as Atas da Academia, sem nunca
ter tido necessidade de abrir seus grandes in-folios. Por ouvir dizer, ele pu-
dera aprender suficientemente sobre o conhecimento que ali havia do
mundo — uma mistura de platonismo e de escolástica, de magia e de her-
metismo — para, daí, fazer uma livre escolha.
Tampouco devemos minimizar os conhecimentos filosóficos e cientí-
ficos que ele teria podido adquirir em Milão através do commercium (con-
tato) com seus amigos Marliani, um célebre médico, descendente de uma
espécie de dinastia de cientistas, Luca Pacioli, matemático, autor de uma
imensa Summa de aritmética, de álgebra e de geometria, aliás escrita em
italiano, e não em latim, que Leonardo comprou em Pádua, em 1494, ou
ainda com os adeptos e os discípulos de Nicolau de Cusa, dos quais um cer-
to número se encontrava em Milão, conforme hoje sabemos. Eles teriam
podido — e certamente o fizeram - mostrar-lhe textos importantes e con-
tar-lhe muitas coisas relativas às discussões medievais entre os partidários
da dinâmica aristotélica pura e os defensores da teoria do impetus, adotada
97
por Nicolau de Cusa, bem como por Giovanni Marliani, tio de seu amigo.
Eles teriam podido falar-lhe também das discussões relativas à unida-
de ti pluralidade dos mundos, questão debatida acaloradamente durante a
Idade Média e na qual os filósofos medievais, por razões teológicas, a fim
de não limitar a onipotência divina, defenderam contra Aristóteles e seus
sequazes a tese da pluralidade ou, pelo menos, da possibilidade da plurali-
dade dos mundos, dos quais diziam que Deus poderia criar tantos quantos
quisesse, embora, de fato, tivesse criado apenas um.
Não é concebível que Leonardo não tenha ouvido falar dessas coisas,
mesmo que não tenha lido o texto dessas discussões. Por mim, creio que o
dilema: "rato de biblioteca" que repete o que leu ou puro gênio original
que tudo cria e inventa, é um falso dilema, tão falso quanto as imagens
contraditórias de Leonardo filósofo e sábio ou prático ignorante. Essas
duas imagens provêm de uma projeção no passado das condições preponde-
rantes em nossos dias. Com efeito, estamos tão habituados a tudo aprender
na escola - as ciências e as artes, a medicina e o direito -, que facilmente
nos esquecemos de que, até o século XIX, e mesmo mais tarde, os técnicos,
engenheiros, arquitetos, construtores de navios e até de máquinas, sem fa-
lar dos pintores e dos escultores, não recebiam instrução em escolas, mas
aprendiam seu ofício na prática.
Também nos esquecemos — ou não compreendemos muito bem — de
que, por todas essas razões, os ateliês de um Ghiberti, de um Brunelleschi
ou de um Verrocchio eram, ao mesmo tempo, locais em que se aprendiam
muitas e muitas coisas. Tantas, se não mais, quantas se aprendem nas esco-
las nos nossos dias: cálculo, perspectiva — isto é, geometria —, a arte de
talhar as pedras e de moldar o bronze, a arte de desenhar um mapa e de
fortificar uma cidade, a arte de construir abóbodas e abrir canais.
Não eram ignorantes aqueles "iletrados", instruídos naqueles famo-
sos ateliês e, se seus conhecimentos eram principalmente empíricos, não
eram absolutamente desprezíveis. Eis porque Leonardo tinha toda a razão
ao opor os conhecimentos que adquirira pela experiência à ciência livresca
de seus adversários humanistas. Aliás, aqueles ateliês, sobretudo o de Ver-
rocchio, eram muito mais do que locais onde se conservava e se mantinha
uma habilidade tradicional: pelo contrário, eram lugares em que os proble-
mas novos e antigos eram estudados, onde novas soluções eram discutidas e
aplicadas, onde se faziam experiências e onde havia impaciência em apren-
der tudo o que se passava em outras partes.
O ateliê de Verrocchio não explica o milagre de Leonardo. Nada ex-
plica o milagre de um gênio, mas foi esse ateliê que o formou e deu a seu
98
espírito uma certa orientação que o conduziu à praxis e não à teoria pura.
Essa tendência prática é bastante importante para nos permitir com-
preender e avaliar a obra científica de Leonardo da Vinci.
Com efeito, ele é muito mais um engenheiro do que homem de ciên-
cia. Um engenheiro-artista, bem entendido. Semelhante a Verrocchio, que
George Sarton cognominou o São João de Leonardo. Semelhante a Alberti
ou a Brunelleschi. Um tipo de homem no qual o espírito da Renascença
encontra uma de suas melhores e mais eloqüentes encamações.
Leonardo, um homem da Renascença... Não é simplesmente demais?
Eu próprio não sublinhei a oposição entre Leonardo e os sábios eruditos e
homens de letras do Quattrocentol Certamente, eu o fiz e estou pronto a
admitir que, em boa medida, o espírito e a obra de Leonardo ultrapassam
a Renascença e até se lhe opõem, se opõem sobretudo às tendências míti-
cas e mágicas do espírito da Renascença, das quais Leonardo é completa-
mente liberto.
Também sei que o próprio conceito de Renascença, por mais clara-
mente que tenha sido determinado por um Burckhardt ou por um Wolflin,
foi submetido a uma crítica tão impiedosa pelos eruditos de nosso tempo,
que quase foi destruído por eles, que descobriram fenômenos típicos da
Renascença no meio da Idade Média e, vice versa, um grande número de
elementos medievais no pensamento e na vida da Renascença.
Entretanto, parece-me que o conceito de Renascença, sem embargo
da crítica a que foi submetido, não pode ser rejeitado, que o fenômeno his-
tórico que ele designa possui uma unidade real, se bem que, evidentemen-
te, complexo. Todos os fenômenos históricos são complexos e os elemen-
tos, idênticos ou análogos, produzem, em diferentes combinações ou dife-
rentes misturas, resultados diferentes.
Eis porque me sinto autorizado a sustentar que Leonardo da Vinci,
pelo menos em certos traços de sua personalidade — um gênio, repito, nun-
ca pertence inteiramente a seu tempo —, é um homem da Renascença e até
representa os seus aspectos mais significativos e mais fundamentais.
Ele é um homem da Renascença pela vigorosa afirmação de sua per-
sonalidade, pelo universalismo de seu pensamento e por sua curiosidade,
por sua percepção direta e aguda do mundo visível, sua maravilhosa intui-
ção do espaço, seu sentido do aspecto dinâmico do ser. Poderia dizer-se até
que, sob certos aspectos, em seu humanismo — se bem que ele seja moder-
no, por sua rejeição da autoridade e do saber livresco —, em sua evidente
indiferença pela concepção cristã do Universo, algumas das mais profundas

99
tendências da Renascença encontram sua afirmação no espírito de Leo-
nardo.
Mas voltemos ao nosso ponto de vista. Como afirmei, Leonardo é um
engenheiro-artista, üm dos maiores, sem dúvida alguma, que o mundo já
conheceu. É um homem da praxis, isto é, um homem que não constrói
teorias mas, objetos e máquinas, e que, na maior parte das vezes, pensa
como tal. Daí, sua atitude quase pragmática diante da ciência que, para ele,
é, não objeto de contemplação, mas instrumento de ação.
Mesmo em matemática, isto é, em geometria, embora lhe devamos al-
gumas descobertas puramente teóricas, como a determinação do centro de
gravidade da pirâmide e alguns teoremas curiosos sobre as lúnulas, sua ati-
tude é geralmente a de um engenheiro: o que ele busca são soluções práti-
cas, soluções que possam ser adotadas com sucesso na rerum naturae, por
meio de instrumentos mecânicos. Se estes nem sempre são estritamente
corretos, mas apenas aproximativos, ele acha que isso não tem importân-
cia, desde que sejam os mais próximos possíveis do ponto de vista da pra-
xis. Com efeito, por que nos deveríamos sentir constrangidos por diferen-
ças teóricas, se estas são tão insignificantes que nem um olho humano, nem
um instrumento, nunca as podem descobrir? Assim, a geometria de Leo-
nardo da Vinci é principalmente dinâmica e prática.
Nada é mais característico, a esse respeito, do que sua maneira de
tratar ou de resolver o velho problema da quadratura do círculo. Leonardo
o resolve fazendo o círculo rolar sobre uma linha reta... solução elegante e
fácil que, infelizmente, nada tem que ver com o problema levantado e tra-
tado pelos geômetras gregos. Mas, do ponto de vista da praxis, por que não
empregar métodos não-ortodoxos? Por que deveria ser permitido traçar
linhas retas e círculos e não rolar estes sobre aquelas? Por que deveríamos
ignorar ou esquecer a existência das rodas? Ora, se a geometria de Leonar-
do é de ordem prática, ela não é, absolutamente, empírica. Leonardo não é
um empirista. Não obstante sua profunda compreensão do papel decisivo e
da importância predominante da observação e da experiência na busca do
conhecimento científico, ou talvez justamente por causa disso, ele nunca
subestimou o valor da teoria. Pelo contrário, coloca-o muito acima do da
experiência, cujo mérito principal consiste justamente, segundo ele, em
que nos permite a elaboração de uma boa teoria. Uma vez elaborada, essa
teoria (boa, isto é, matemática) absorve e mesmo substitui a experiência.

Na obra científica de Leonardo, essa exaltação do pensamento teóri-


co permanece, infelizmente, algo teórica. Ele não a pode pôr em prática; ele
100
não aprendeu a pensar de maneira abstrata. Possui um maravilhoso dom de
intuição, mas não pode fazer uma dedução correta a partir de princípios dos
quais tem uma percepção instintiva, de modo que não pode formular a lei
de aceleração da queda dos corpos,- embora seja capaz de compreender a
verdadeira natureza desse tipo de movimento. Assim, não pode enunciar,
como princípio abstrato, o princípio da igualdade entre a ação e a reação
que aplica instintivamente em sua análise dos casos concretos — ou, mais
precisamente, semiconcretos — de percussão dos corpos, de que trata com
uma exatidão extraordinária, e que permanecerá inigualada por mais de um
século.
Entretanto, há um campo do conhecimento no qual a maneira con-
creta de pensar de Leonardo não era uma desvantagem: é o da geometria.
Com efeito, Leonardo é um geômetra nato e possui, no mais elevado grau,
o dom extremamente raro da intuição no espaço. Esse dom lhe permite
contornar sua falta de formação teórica. Não só ele trata de todo tipo de
problemas relativos às lúnulas e à transformação das figuras e dos corpos
uns nos outros, à construção de figuras regulares e à determinação de cen-
tros de gravidade, fabricando .'compassos para traçar as seções cônicas, co-
mo também, conforme já assinalei, consegue fazer algumas verdadeiras
descobertas.
Ao mesmo tempo — e isto me parece muito importante —, a geome-
tria, em Leonardo, domina a ciência do engenheiro. Assim, sua geometria é
principalmente a de um engenheiro e, vice versa, sua arte de engenheiro é
sempre a de um geômetra. É precisamente por essa razão que ele proibe
aqueles que não são geômetras de exercer essa arte e, até mesmo, de ensi-
ná-la. "A mecânica, nos diz ele, é o paraíso das ciências matemáticas." A
mecânica, isto é — o sentido desse termo mudou desde o século XV —, a
ciência das máquinas, uma ciência - ou uma arte - na qual Leonardo -
gênio técnico, se é que isso existiu alguma vez — desenvolve uma capacida-
de absolutamente alucinante. Que é que ele não construiu?! Máquinas de
guerra e máquinas para a paz, carros de assalto e máquinas perfuratrizes,
armas e gruas, bombas e,teares, pontes e turbinas, tornos para fazer parafu-
sos e para polir as lentes, palcos giratórios para espetáculos de teatro, pren-
sas para imprimir e rolamentos sem fricção, veículos e embarcações que se
moviam por si mesmos, submarinos e máquinas voadoras, máquinas desti-
nadas a tornar mais fácil o trabalho dos homens e a aumentar seu bem-
estar e seu poder. Todavia, para dizer a verdade, essas considerações práti-
cas e utilitárias não me parecem ter desempenhado um papel preponderan-
te, nem no espírito de Leonardo, nem em sua ação. E talvez eu me tenha

101
enganado ao chamá-lo "construtor de máquinas". Uma designação mais
correta seria "inventor".
Realmente, dentre todas as maravilhosas máquinas cujos desenhos
cobrem inúmeras páginas de seus manuscritos, não há nenhuma certeza de
que tenha construído uma única delas. Ele parece ter estado muito mais
preocupado com a elaboração de seus projetos do que com sua realização;
muito mais interessado no poder intelectual do espírito humano, capaz de
conceber e de inventar máquinas, do que no verdadeiro poder que elas te-
riam podido proporcionar aos homens e nas realizações práticas que lhes
teriam permitido. Eis, talvez, a razão profunda pela qual tão raramente ele
tentou fazer uso de suas próprias invenções, ou mesmo das de outrem. Por
exemplo, ao contrário de Dürer, ele nunca se serviu, pelo menos em seu
próprio proveito, das duas grandes invenções técnicas de seu tempo, a im-
prensa e a gravura, embora tenha inventado e aperfeiçoado a prensa de im-
primir e gravado, ele próprio, as pranchas com representações dos corpos
geométricos regulares para a obra De divina proportione, de seu amigo Lu-
ca Pacioli. E é provavelmente por essa mesma razão que os desenhos de
Leonardo, que encarnam a imaginação do teórico e não a experiência do
prático, são tão diferentes das obras e das coletâneas técnicas dos séculos
XV e XVI. Enquanto estas últimas são esboços ou pinturas, os desenhos de
Leonardo são "épuras", as primeiras que foram desenhadas.
Da mesma forma, enquanto é extremamente difícil reconstruir as
máquinas da Idade Média, das quais temos apenas a descrição ou os dese-
nhos, nada é mais fácil do que construir as de Leonardo ou, mais exata-
mente, nada é mais fácil do que construí-las hoje. Assim, por exemplo, Ro-
bert Guatelis construiu uma bela coleção de modelos de Leonardo que a
International Business Machine Corporation expôs, em 1952, antes de doá-
la ao museu de Vinci, lugar de nascimento de Leonardo. Mas duvido muito
que alguém, inclusive o próprio Leonardo, as tivesse podido construir em
sua época. Isso em nada diminui o gênio de Leonardo, mas o faz aparecer
em sua verdadeira natureza: o de um tecnólogo, muito mais que o de um
técnico.
O engenheiro Leonardo é, certamente, um dos maiores tecnólogos de
todos os tempos. Mas o que dizer do físico Leonardo? Historiadores mo-
dernos, por uma justificada reação contra os exageros de seus predecesso-
res, obervaram que suas expressões muitas vezes são vagas e muitíssimas ve-
zes contraditórias; que sua tecnologia carece de precisão; que sua concep-
ção da forza — força motriz que é a causa do movimento dos corpos Üvres
— é mítica ou poética (com efeito, ele a definiu ou a descreveu como a

102
única entidade neste mundo, onde tudo se esforça por persistir no ser, que
tende, pelo contrário, a sua aniquilação e a sua morte); que sua noção de
peso (gravidade), às vezes apresentada como uma causa e às vezes como um
efeito do movimento, é inconsistente. Sublinham, também, as variações de
Leonardo em sua concepção da taxa de aceleração da queda (livre) dos cor-
pos, proporcional, em certas passagens, ao espaço (trajetória) atravessado
pelo corpo e, em outras passagens, ao tempo gasto na queda.
Tudo isso é verdade. Porém, não devemos esquecer que esses concei-
tos e essas questões são difíceis e que, por exemplo, é muito fácil a confu-
são entre a aceleração em relação ao espaço e a aceleração em relação ao
tempo. Essa confusão é tão fácil que persistiu até Galileu e Descartes que,
também eles, a fizeram e tiveram dificuldade em desembaraçar esses con-
ceitos ambíguos.
Tampouco devemos esquecer que os escritos de Leonardo se esten-
dem sobre um grande período e que não sabemos exatamente quando tal
ou qual texto foi escrito. É bem possível que as contradições e as variações
não provenham da inconsistência, mas do desenvolvimento, da evolução do
espírito, do progresso. Não poderíamos admitir - de minha parte, isso me
parece extremamente provável — que, tendo começado a pensar de uma
maneira confusa — o pensamento sempre começa assim —, Leonardo tenha
progressivamente aberto caminho em direção à clareza? Se assim era, o
quadro seria muito diferente, e deveríamos atribuir a Leonardo o mérito
de ter compreendido a verdadeira estrutura da aceleração do movimento
da queda dos corpos pesados, embora, como já mencionei, ele tenha sido
incapaz de exprimir sua intuição em termos matemáticos e daí deduzir a
relação exata entre o tempo gasto e o espaço percorrido num tal movimen-
to. Entretanto, é possível que, nesse mesmo caso, sua intuição tenha sido
fundamentalmente correta.
Particularmente, penso que assim foi. Mas é difícil demonstrá-lo,
pois a terminologia de Leonardo é, de fato, extremamente vaga e inconsis-
tente. É a terminologia de um uomo senza lettere. Ele nos diz, por exem-
plo, que o espaço percorrido pelo corpo que cai cresce à maneira de uma
pirâmide, mas não especifica a que faz alusão: se à aresta, ao volume ou à
seção da pirâmide. Com efeito, é pena que Leonardo não tenha sido, como
queria Duhem, um aluno dos nominalistas parisienses. Nesse caso, teria ti-
do à sua disposição uma terminologia precisa e sutil e seria fácil, para mim,
expor com exatidão o que ele entendia com essa afirmação. Infelizmente,
ele não era sucessor deles, como não foi o predecessor de Galileu, do qual
se acha separado precisamente pela concepção da forza ou do impetus,

103
causa inerente do movimento, concepção da qual Galileu se libertou, ao
mesmo tempo em que liberava a física, substituindo essa concepção pela
da inertia.
Porém, apesar de seu atraso no domínio teórico, é muito interessan-
te, para um filósofo ou um historiador das ciências, estudar Leonardo co-
mo físico.
O historiador deve admitir que, embora não tenha conhecido o prin-
cípio da inércia, Leonardo não deixou de enunciar fatos que, para nós, im-
plicam uma referência ao princípio e que, além disso, só foram enunciados
depois de sua descoberta por Galileu. Portanto, Leonardo foi o único que,
durante mais de um século, em oposição à opinião unânime dos teóricos e
dos práticos — isto é, os pirotécnicos e os artilheiros -, afirmou que a tra-
jetória de um projétil de canhão era uma curva contínua e não, como se
acreditava, uma linha composta de dois segmentos de reta ligados entre si
por um arco de círculo. Voltando ao caso que já mencionei, ao estudo do
fenômeno do choque, ele foi o primeiro — e, além disso, o único, em cerca
de 150 anos — não só a estabelecer, para dois móveis iguais que se encon-
tram, a lei geral da igualdade da velocidade após o choque e a dos ângulos
de incidência e de reflexão, mas também a demonstrar que, se dois corpos
iguais se deslocam, um em direção ao outro, a velocidades diferentes, eles
trocarão essas velocidades após o choque. Quanto aos filósofos, poderão
admirar e analisar essa estranha faculdade que permitia a Leonardo chegar
a tais conclusões, ignorando as premissas em que se baseiam.
Com isso em mente, podemos descobrir, examinando-o mais de per-
to, que não só o físico, mas também sua física, oferece mais interesse do
que se admitia até recentemente, e que até em sua imperfeição e sua fragi-
lidade, essa física é mais original, pelo menos em suas intenções, do que
parece à primeira vista.
Parece que, com suas hesitações, suas contradições e suas inconsis-
tências, os textos de Leonardo revelam um persistente esforço no sentido
de reformar a física, tornando-a a um só tempo dinâmica e matemática.
Assim, o caráter dialético de sua concepção da forza poderia ser explicado
como uma tentativa de transformar a própria idéia da causa física, fundin-
do as idéias da causa efficiens e da causa finalis no conceito de potência ou
de força que tende a desaparecer no efeito que produz e no qual ela se es-
gota. É possível, também, que as variações na concepção do peso — fonte e
efeito do movimento - não possam ser compreendidas senão como uma
sucessão de esforços no sentido de "dinamizar" esse conceito e de fundir

104
estática e dinâmica, ligando uma à outra, a energia potencial de um corpo
pesadoà que ele adquire em seu movimento de queda.
Quanto à tendência a matematizar a física, além de sua tentativa in-
frutífera de deduzir a lei da aceleração da queda e de seu sucesso na análise
das leis do choque, ela se manifesta em seu profundo interesse por Arqui-
medes, que cita em várias ocasiões e cujos manuscritos pesquisou durante
toda a sua vida. Essa tendência se manifesta ainda mais em sua concepção
da ciência física em geral, concepção à qual a geometria euclidiana, com
toda a certeza, forneceu o modelo.
Segundo Leonardo, a física deveria começar por um conjunto de
princípios e de proposições que forneceriam a base de desenvolvimentos
ulteriores. Ideal admirável, com efeito, e que permanece um ideal.
Não preciso insistir na obra de Leonardo no campo das ciências natu-
rais, da geologia, da botânica e da astronomia. Ela é muito melhor conheci-
da e é indiscutível. Mas não se pode deixar de admirar a precisão, a quali-
dade artística de seus desenhos, sua visão aguda, a engenhosidade de sua
técnica, freqüentemente superior à de Vesálio. Porém, devo insistir no fa-
to de que toda a sua obra sobre anatomia visa a um objetivo muito definido
e precioso: descobrir a estrutura interná mecânica do corpo humano, para
torná-la acessível à observação direta, isto é, à visão.
Eis-nos levados diante de uma questão que já abordei nesta conferên-
cia: a importância relativa e a relação entre ver e ouvir, visus e auditus, co-
mo funções e instrumentos do saber em diferentes épocas e em diferentes
culturas.
Parece-me que, através de Leonardo e, com ele, talvez pela primeira
vez na história, o auditus tenha sido relegado ao segundo lugar, ocupando
o visus o primeiro.
O fato de que o auditus seja colocado em segundo lugar implica, no
domínio das artes, a promoção da pintura ao cume de sua respectiva hie-
rarquia. Isso, como Leonardo cuidadosamente nos explica, porque a pintu-
ra é a única arte capaz de verdade, isto é, a única capaz de nos mostrar as
coisas tal como são. Mas, no domínio do conhecimento e da ciência, isso
quer dizer algo diferente, algo muito mais importante. Isso significa, de fa-
to, a substituição de fides e de traditio, do saber dos outros, pela visão e
intuição pessoais, livres e sem constrangimento.
Leonardo da Vinci não desenvolveu a ciência que sonhou. Não o te-
ria podido fazer. Era cedo demais e ele tinha muito pouca influência sobre
o pensamento científico de seus contemporâneos e de seus sucessores ime-
diatos. Porém, seu lugar na história do pensamento humano é muito im-

105
portante: graças a ele e através dele, como vimos, a técnica tornou-se tec-
nologia e o espírito humano elevou-se ao ideal de conhecimento no qual,
um século mais tarde, se inspiraram Galileu e seus amigos, os Membros da
Accademia dei Lincei, que rejeitaram a autoridade e a tradição e quiseram
ver as coisas tal como eram.

1
Segundo a dinâmica de Aristóteles, todo movimento violento implica a ação
contínua de um motor ligado a um corpo movido. Não há movimento sem motor. Se-
paremo-los, e o movimento cessará. Assim, se se parar de puxar ou empurrar um veí-
culo, ele cessará de se mover e parará.
Muito boa teoria, que explica bastante bem a maior parte dos fenômenos da vi-
da quotidiana, mas que encontra as maiores dificuldades nos casos em que os corpos
continuam a mover-se, mesmo quando não são mais empurrados ou puxados por um
motor: flechas projetadas por um arco, pedras lançadas pela mão, etc.
É por isso que a crítica da dinâmica de Aristóteles sempre foi centrada sobre o
problema a quo moventur projecta? O que faz com que se movimente o objeto proje-
tado? É para explicar esse movimento que os nominalistas parisienses adotaram a teo-
ria do impetus, força motriz transmitida pelo motor ao corpo movido, força que per-
manecia no corpo movido, da mesma forma que o calor permanece no corpo aqueci-
do e se torna, assim, de algum modo, um motor interior que continua a exercer sua
ação sobre o corpo depois que este se acha separado de seu primeiro motor.

106

Você também pode gostar