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Este e-book em PDF foi feito a partir de uma cópia


original da edição de 1990 publicada no Brasil pela
Editora Rocco e visa a preservação do conteúdo, já
que o livro não é mais publicado. Foram mantidos o
número de páginas e as imagens em suas devidas
páginas originais. A acentuação do português foi
atualizada. Boa leitura!

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TOM WOLFE

DA BAUHAUS
AO NOSSO CAOS

Tradução de
LIA WYLER

Rio de Janeiro – 1990


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Créditos das fotos:

Brent C. Brolin (pp.8,50, 58, 72); de Bauhaus and Bauhaus People de Eckhard Neumann,
copyright © 1970 by Van Nostrand Reinhold Company (p.13); Granger Collection (pp. 15, 20,
23, 24, 25, 38); UPI (pp. 32, 63); foto de Don Wallace, cortesia de Edgar Tafel (p. 44);
Hendrich-Blessing (p. 43); Ezra Stoller © ESTO (pp. 58, 69, 88); Edward Durell Stone
Associates (p. 67), © Norman McGrath (p. 88), cortesia de Max Protetch Gallery (p. 93); ©
Laurin McGracken (p. 97).
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A Michael McDonough
que sabe onde se escondem todos os ângulos
agudos na malha estrutural.

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Ó Bela, dos céus infinitos, dos louros trigais ondulantes, existirá
outro lugar na terra em que tanta gente rica e poderosa tenha pago e
tolerado tanta arquitetura que detesta do que dentro de suas fronteiras?
Duvido seriamente. Toda criança vai à escola em um prédio que
parece a cópia xérox de um armazém atacadista de peças de reposição.
Nem o comissário escolar, que encomendou e aprovou o projeto, é
capaz de entender como foi que isso aconteceu. O problema é tentar
fugir à obrigação de explicar aos pais dos alunos.
Toda casa de verão de 900 mil dólares construída nas matas de
Michigan ou nas praias de Long Island tem tantos gradis tubulares,
rampas, escadas circulares em metal fresado, painéis industriais de
vidro plano, baterias de lâmpadas de tungstênio-halógeno e cilindros
brancos, que mais parece uma refinaria de inseticida. Uma vez vi os
donos de uma casa dessas chegarem à beira da privação de sentidos com
a brancura & leveza & enxuteza & limpeza & nudez & despojamento
daquilo tudo. Procuraram desesperados um antídoto, do tipo cor &
aconchego. Tentaram esconder os sofás obrigatoriamente brancos sob
almofadas de seda tailandesa em todos os tons iridescentes e sediciosos
de magenta, rosa e verde tropical imagináveis. Mas o arquiteto voltou,
como sempre, mais parecendo a consciência de um calvinista, e lhes
pregou um sermão, e os intimidou, e arrancou fora os mimos cintilantes.
Toda grande firma de advocacia em Nova York se muda sem um
ai sequer de protesto para um edifício de escritórios tipo "caixa de
vidro" com laje de concreto por piso e laje de concreto por teto de 2,38m
de altura e paredes de gesso e corredores mínimos – e depois contratam
um decorador e lhe entregam um orçamento de centenas de milhares de
dólares para transformar esses quadrados e cubos mesquinhos numa
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fantasia horizontal de palacete inglês da Restauração. Vi carpinteiros e
marceneiros e compradoras carregando mais cornijas, abobadilhas,
pilastras, molduras talhadas, nichos, mais painéis com dobras de linho,
mais lareiras (sem fogo) enfeitadas com festões de frutas em mogno,
mais lustres, apliques, candelabros, sofás de couro e relógios de
carrilhão do que Wren, Inigo Jones, os irmãos Adam, Lord Burlington
e os Dilettanti, trabalhando juntos, poderiam ter imaginado.

Rue de Regret: A Avenida das Américas em Nova York, Ruas e Mies van der ruas de “caixas
de vidro”: habitações operárias com cinquenta andares de altura.

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E se mudam sem dar um pio! – mesmo que as “caixas de vidro”
os apavore.
Essas impressões não são apenas minhas, posso garantir. Se
alguém quiser provas detalhadas é só freqüentar as conferências,
simpósios e debates em que os arquitetos hoje se reúnem para discutir
a situação da arte. Confessam-se apavorados. Com a cara mais limpa
dirão que a arquitetura moderna está exaurida, acabada. Até eles
mesmos caçoam das “caixas de vidro”. Usam esse termo com uma
risadinha. Philip Johnson, que construiu para si uma casa de vidro em
Connecticut em 1949, diz a frase com o deleite de um antiquário, do
jeito que alguém falaria de uma velha armação de cama de bronze
descoberta no sótão.
Em todo o caso, o problema está em vias de ser resolvido,
tranqüilizam-nos. Há agora novas abordagens, novos movimentos,
novos ismos: Pós-modernismo, Modernismo Tardio, Racionalismo,
Arquitetura Participativa, Neocorbusianismo, e os Los Angeles Silvers.
Que se resumem em quê? Em coisas tais como construir mais “caixas
de vidro” e revesti-las de vidro espelhado para que reflitam as “caixas
de vidro” vizinhas e distorçam as tediosas linhas retas transformando-
as em curvas.
Acho o relacionamento atual do arquiteto com o cliente nos
Estados Unidos maravilhosamente excêntrico, beirando a perversidade.
No passado, aqueles que eram contratados e pagos para projetar
palácios, catedrais, teatros, bibliotecas, universidades, museus,
ministérios, terraços sobre colunas e casas de campo cheias de alas não
hesitavam em transformá-las em visões da própria glória. Napoleão
queria transformar Paris na Roma dos Césares, só que com música mais
ressonante e mais mármore. E assim foi feito. Seus arquitetos lhe deram
o Arco do Triunfo e a Madeleine. Seu sobrinho, Napoleão III, queria
transformar Paris em Roma com Versailles de quebra e assim foi feito.
Seus arquitetos lhe deram a Ópera de Paris, um anexo ao Louvre e
quilômetros de novas avenidas. Palmerston certa vez jogou fora os
resultados de um concurso de projetos para o novo Ministério do
Exterior britânico e disse ao mais importante arquiteto do renascimento
gótico da época, Gilbert Scott, que o construísse no estilo clássico. E
Scott assim fez, porque foi o que Palmerston o mandou fazer.

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Em Nova York, Alice Gwynne Vanderbilt mandou George
Browne Post projetar um castelo francês na esquina da Quinta Avenida
com a Rua Cinqüenta e Sete, e ele copiou o Castelo de Blois até no
detalhe do cinzelado nas travas de bronze das janelas de batentes. Para
não ficar atrás, Alva Vanderbilt contratou o arquiteto americano mais
famoso da época, Richard Morris Hunt, para projetar uma casa de verão
em Newport, réplica do Petit Trianon, e ele assim fez, com prazer.
Estava pronto a satisfazer essa ou qualquer outra fantasia dos
Vanderbilts. "Se quiserem uma casa com uma chaminé embaixo", dizia
ele, "farei uma". Mas a partir de 1945 os nossos plutocratas, burocratas,
presidentes de conselhos, diretores executivos, comissários e
presidentes de faculdades sofrem uma mudança inexplicável. Tornam-
se inseguros e reticentes. De repente estão prontos a aceitar aquele copo
de água gelada na cara, aquele tapa revigorante na boca, aquela
reprimenda pelo excesso de gordura em sua alma burguesa, conhecida
como arquitetura moderna.
E por quê? Não sabem dizer. Erguem os olhos para as fachadas
nuas dos edifícios que compraram, aquelas estruturas gigantescas que
odeiam tão radicalmente, e eles próprios não conseguem entender. Suas
cabeças chegam a doer.

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I

O PRÍNCIPE DE PRATA

A nossa história começa na Alemanha logo após a Primeira


Guerra Mundial. Jovens arquitetos americanos, bem como artistas,
escritores e intelectuais diversos, perambulam pela Europa. Essa grande
aventura boêmia é chamada de ' 'a Geração Perdida". Significando o
quê? Em The Liberation ofAmerican Literature, V.F. Calverton diz que
durante os séculos XVIII e XIX os artistas e escritores americanos
sofreram de um "complexo colonialista" e timidamente copiaram
modelos europeus – mas que após a Primeira Guerra Mundial
finalmente encontraram a confiança e o senso de identidade para se
libertar da autoridade européia nas artes. Na realidade não poderia ter-
se enganado mais redondamente.
A máxima da Geração Perdida foi, nas palavras de Malcolm
Cowley, "Na Europa se faz tudo melhor". O que estava em curso era
uma excursão promocional pós-guerra em que praticamente qualquer
americano – não somente, como nos velhos tempos, um Henry James,
um John Singer Sargent, ou um Richard Morris Hunt – podia viajar ao
exterior e aprender como se tornar um artista europeu. O "complexo
colonialista" agora paralisava mais que um golpe de luta livre.
O artista europeu! Que figura deslumbrante! André Breton, Louis
Aragon, Jean Cocteau, Tristan Tzara, Picasso, Matisse, Arnold
Schoenberg, Paul Valéry – tais criaturas sobressaíam como as estatuetas
de bronze e ouro de Gustave Miklos contra os destroços fumegantes da
Europa após a Primeira Guerra Mundial. Os destroços, as ruínas da
civilização européia, eram parte essencial do quadro. O monte de ossos
calcinados ao fundo era precisamente o que fazia um vanguardista
como Breton ou Picasso se destacar com tanto brilho.
Para os jovens arquitetos americanos que fizeram aquela
peregrinação, a figura mais deslumbrante de todas era Walter Gropius,
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fundador da Escola Bauhaus. Gropius abriu a Bauhaus em Weimar, a
capital alemã, em 1919. Era mais que uma escola; era uma comuna, um
movimento espiritual, uma abordagem radical da arte sob todas as
formas, um centro de filosofia comparável ao Jardim de Epicuro.
Gropius, o Epicuro dessa peça, tinha trinta e seis anos, os cabelos negros
e bastos penteados para trás, era magro, vestia-se com apuro e
simplicidade, era irresistivelmente atraente para as mulheres, correto e
educado à maneira clássica alemã, fora tenente da cavalaria na guerra,
condecorado por bravura, uma figura que transpirava calma, certeza e
convicção no centro do turbilhão.
A rigor, não era aristocrata, uma vez que o pai, embora abastado,
não pertencia à nobreza, mas as pessoas não podiam deixar de pensar
nele como se o fosse. O pintor Paul Klee, que ensinava na Bauhaus,
chamava Gropius de o “Príncipe de Prata”. Prata era perfeito. Ouro seria
demasiado vistoso para um homem tão fino e preciso. Gropius parecia
um aristocrata que por um milagre de sensibilidade tivesse conservado
todas as virtudes da linhagem e se despojado de todos os esnobismos e
pesos mortos do passado.
Os jovens arquitetos que acorreram à Bauhaus para viver, estudar
e aprender com o Príncipe de Prata falavam em "começar do zero".
Gropius emprestava apoio a qualquer experiência que quisessem fazer,
desde que as fizessem em nome de um futuro limpo e puro. Até novas
religiões como a Mazdaznan. Até mesmo regimes alimentares naturais.
Durante um certo período em Weimar a dieta na Bauhaus consistia
unicamente de um papa de legumes frescos. Era tão insossa e fibrosa
que precisavam temperá-la repetidamente com alho para que tomasse
um gosto qualquer. A esposa de Gropius à época era Alma Mahler, ex-
Sra. Gustav Mahler, a primeira e mais importante representante daquela
espécie maravilhosa do século XX, a Viúva da Arte. Os historiadores
nos informam ter ela comentado anos mais tarde que os marcos do estilo
Bauhaus eram os cantos de vidro, os telhados planos, os materiais
honestos e a estrutura explícita. Mas ela, Alma Mahler Gropius Werfel
desde então acrescentara o poeta Franz Werfel ao enredo – garantia que
a característica mais inesquecível do estilo Bauhaus era “o bafo de
alho”. Contudo! – que puro, que limpo, que glorioso era... começar do
zero!

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Marcel Breuer, Ludwig Mies van der Rohe, Lázló Moholy-Nagy,
Herbert Bayer, Henry van de Velde – todos foram professores na
Bauhaus em algum momento, ao lado de pintores como Klee e Josef
Albers. Albers ensinava o famoso Bauhaus Vorkurs, ou curso
introdutório. Albers entrava na sala, depositava uma pilha de jornais na
mesa, e informava aos alunos que voltaria dali a uma hora. Nesse
ínterim, deviam transformar as folhas de jornal em obras de arte.
Quando retornava, encontrava castelos góticos feitos de jornal, iates
feitos de jornal, aviões, bustos, pássaros, estações de trem, coisas
surpreendentes. Mas sempre havia algum aluno, um fotógrafo ou um
vidreiro

Walter Gropius, o Príncipe de Prata. O Deus Branco n.01. Jovens arquitetos iam estudar
a seus pés. Alguns, como Philip Johnson, só conseguiram se levantar muitas décadas
depois.

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vidreiro, que simplesmente pegava uma folha de jornal e a dobrava uma
vez armando-a como uma tenda e deixava por isso mesmo. Albers
apanhava a catedral e o avião e dizia:
“Esses objetos foram projetados para serem executados em pedra
ou metal e não em jornal.” Então apanhava a tenda feita distraidamente
pelo fotógrafo e exclamava “Mas isso! – isso utiliza a alma do jornal.
O papel pode ser dobrado sem partir. O papel tem força tensiva, e uma
vasta área pode se sustentar em duas arestas finas. Isso! – é uma obra
de arte em jornal.” E todos os córtices cerebrais na sala trocavam isso
em miúdos. Tão simples! Tão belo... Era como se a luz penetrasse no
cérebro obtuso da pessoa pela primeira vez. Puxa vida! – começar do
zero!
E por que não... O país do jovem bauhäusler, a Alemanha, fora
esmagado na guerra e humilhado em Versailles; a economia entrara em
colapso num delírio de inflação; o kaiser se fora; os socialdemocratas
tinham assumido o poder em nome do socialismo; bandos de jovens
ricocheteavam pelas cidades bebendo cerveja à espera de uma
revolução ao estilo soviético vinda do leste ou, no mínimo, de algumas
brigas violentas. Destroços, ruínas fumegantes – começar do zero! Se a
pessoa fosse jovem era uma maravilha. Começar do zero significava
nada mais que recriar o mundo.
É bem instrutivo face ao espantoso efeito que teria na vida dos
Estados Unidos – recordar algumas das exortações daquele curioso
momento vivido na Europa Central há sessenta anos:
“Pintores, arquitetos, escultores, a quem a burguesia paga alta
recompensa pelas obras – por vaidade, esnobismo e tédio – Ouçam!
Esse dinheiro está manchado com o suor, o sangue e a energia nervosa
de milhares de pobres seres humanos acossados. Ouçam! É um lucro
sujo... Precisamos ser verdadeiros socialistas – precisamos fazer brilhar
a maior virtude socialista: a fraternidade dos homens.”
Assim rezava o manifesto do Novembergruppe, que incluía
Moholy-Nagy e outros projetistas, que mais tarde se reuniriam a
Gropius na Bauhaus. Gropius era presidente do Arbeitsrat für Kunst
(Conselho de Desenvolvimento das Artes) do Novembergruppe, que
procurava reunir todas as artes “sob a proteção de uma arquitetura
maior”, que “interessaria a todo o povo”. Segundo se compreendia em
1919, todo o povo era sinônimo de operariado. “O intelectual burguês...
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se provou indigno de conduzir a cultura alemã”, dizia Gropius. “Novos
níveis intelectualmente não desenvolvidos do nosso povo estão se
erguendo das profundezas. São a nossa maior esperança.”
O interesse de Gropius pelo “proletariado” ou “socialismo” afinal
não passou de algo estético, de um modismo, um pouco como o
interesse dos presidentes Trujillo da República Dominicana ou Mao da
República Popular da China no republicanismo. Todavia, conforme
disse Dostoievski, as ideias têm consequências; o estilo Bauhaus tinha
origem em determinados pressupostos sólidos. Primeiro, a nova
arquitetura estava sendo criada para os operários. O mais sagrado dos
objetivos: aperfeiçoar a habitação do trabalhador. Segundo, a nova
arquitetura devia rejeitar tudo que fosse burguês. Uma vez que quase
todos os envolvidos, tanto arquitetos quanto burocratas social-
democratas, eram eles mesmos burgueses no sentido literal e social da
palavra, "burguês" tornou-se um epíteto que significava qualquer coisa
que se quisesse. Referia-se a qualquer coisa que não se gostasse nas
vidas das pessoas acima do nível de um servente de pedreiro. O
importante

A Bauhaus. O reduto de Gropius, construído depois que a Bauhaus se mudou


de Weimar para Dessau em 1925.

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importante era não ser apanhado desenhando alguma coisa para a qual
alguém apontasse e comentasse, com devastador desdém: “Que coisa
mais burguesa”.
Os sociais-democratas tanto da Alemanha quanto da Holanda
estavam financiando conjuntos habitacionais operários e, por razões
políticas próprias, contratando jovens arquitetos antiburgueses como
Gropius, Mies van der Rohe, Bruno Taut e J.J.P. Oud, que aos vinte e
oito anos fora nomeado arquiteto-chefe da cidade de Rotterdam. Oud
era membro de um grupo holandês conhecido como de Stijl (o Estilo).
A Bauhaus e o de Stijl, a do Novembergruppe à prova de burguesia, não
eram academias nem firmas; na verdade não se pareciam com nenhuma
organização na história da arquitetura anterior a 1897. Em 1897, em
Viena, um grupo de artistas e arquitetos, que incluía Otto Wagner e
Josef Olbrich, formaram um grupo chamado de Dissidência Vienense e
formalmente "romperam" com a organização cultural austríaca
oficialmente reconhecida, a Künstlerhaus. Nem mesmo os
impressionistas franceses tinham tentado tal coisa; o Salon des Refusés
que organizaram não passara de um grito estridente dirigido ao Instituto
Nacional: Queremos entrar! A Dissidência de Viena (e as de Munique
e Berlim) deram origem a uma forma inteiramente singular de
associação, o reduto de arte.
Um reduto de arte anunciava-se, de uma forma ou de outra, em
geral através de um manifesto: “Acabamos de retirar a divindade da arte
e da arquitetura das mãos da estrutura oficial de arte I (a Academia, o
Instituto Nacional, o Künstlergenossenschaft, ou seja o que for), e ela
agora habita conosco, no nosso reduto. Deixamos de depender do
patrocínio da nobreza, dos empresários, do Estado, ou de quaisquer
outras entidades externas, para a nossa divina eminência. Doravante,
qualquer um que queira se banhar na luz divina da arte deve ir a nós, ao
nosso reduto, e aceitar as formas que criamos. Não permitimos
alterações, encomendas especiais, ou imposições de clientes. Sabemos
o que é melhor. Somos os donos exclusivos da verdadeira visão do
futuro da arquitetura.” Os componentes de um reduto formavam uma
comunidade artística, reuniam-se regularmente, concordavam com
certos princípios morais e estéticos e os anunciavam ao mundo. A
Dissidência Vienense – a exemplo da Bauhaus de vinte anos depois –
construiu realmente um reduto concreto sob a forma de um edifício
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modelar, a Casa da Dissidência, a que denominaram “um templo de
arte”.
A criação desse novo tipo de comunidade provou-se
absolutamente estimulante para artistas e compositores, bem como para
arquitetos, em toda a Europa, nos primeiros anos deste século. Somos
independentes da sociedade burguesa que nos cerca! (Apaixonaram-se
pelo termo burguês.) E superiores a ela! Foram os redutos que
produziram o género de vanguardismo que constitui uma boa parte da
história da arte do século XX. Os redutos fossem cubistas, fauvistas,
futuristas ou dissidentes – apresentavam uma tendência natural ao
esoterismo, à geração de teorias e formas que frustravam a burguesia.
Não tardaram a descobrir que o recurso mais perfeito era pintar,
compor, desenhar em código. A genialidade peculiar dos primeiros
cubistas, tais como Braque e Picasso, não foi criar “novas maneiras de
ver”, mas criar códigos visuais para as teorias esotéricas de seu reduto.
Por exemplo, a técnica cubista de pintar um rosto em perfil cartunesco,
com os dois lados do mesmo lado do nariz, ilustrava duas teorias: (l) a
teoria da ausência de relevo, advinda da ideia de Braque de que uma
pintura não era mais que uma determinada composição de cores e forma
sobre uma superfície plana; e (2) a teoria da simultaneidade, derivada
das descobertas feitas no novo campo da estereótica indicando que uma
pessoa vê um objeto simultaneamente de dois ângulos. Na composição
musical, Arnold Schoenberg começou a pesquisar música
matematicamente codificada que se a maioria dos compositores achou
confusa, que dirá a burguesia – donde tanto mais irresistível a atração
que exerceu na nova era do reduto de arte.
Compositores, artistas, ou arquitetos de um reduto começaram a
desenvolver os instintos do clero medieval, que dedicavam a maior
parte de suas atividades exclusivamente a se distanciar do povão. No
lugar de povão leia-se burguesia e se terá o espírito de vanguardismo
do século XX. Uma vez no reduto, um artista passava a pertencer à
igrejinha para usarmos um velho termo aplicado à intelligentsia com
pretensões clericais.
Mas qual era supostamente a fonte da autoridade de um reduto?
Ora, a mesma de todos os movimentos religiosos: acesso direto à
divindade, que no caso era a Criatividade. Donde, uma nova forma de
documento: o manifesto artístico. Nunca houve manifestos no mundo
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da arte antes do século XX e da criação dos redutos. Os futuristas
italianos divulgaram seu primeiro manifesto em 1910. Depois disso não
houve como deter os vários movimentos e ismos. Começaram a
divulgar manifestos dia e noite. Um manifesto não era nada mais que
os Dez Mandamentos de um reduto: “Subimos ao alto da montanha e
trouxemos de volta a Palavra, e agora declaramos que...”
Naturalmente, uma coisa eram os artistas – os futuristas,
vorticistas, orfistas, puristas, dadaístas, surrealistas – descerem do alto
da montanha com os seus mandamentos e declarações de independência
e a sua prometéica indiferença à burguesia. E outra bem diferente os
arquitetos, dependentes como são dos favores dos indivíduos
normalmente conservadores – e, caso prefiram, dos burgueses – que
tinham o dinheiro necessário para construir. Por mais surpreendente que
seja, porém, a estratégia funcionou logo da primeira vez que foi
experimentada, pela própria Dissidência Vienense. Graças a um
acidente na história austríaca, o governo interviu concretamente (entrou
no reduto) e honrou as reivindicações absurdas da Dissidência. Houve
um período de uns cinco anos em que Otto Wagner e os outros
receberam importantes encomendas 1 . Foi o bastante. A ideia do
arquiteto inconciliável tornou-se extremamente contagiosa. Antes da
Primeira Guerra Mundial, o Deutsche Werkbund financiado pelo
privado desandara a criar formas perfeitas de arquitetura e artes
aplicadas para toda a Alemanha. (O cliente devia naturalmente pedir em
altos brados para entrar e receber a sua parte.) Gropius fora uma das
principais figuras do Werkbund.
Após a guerra, vários redutos – Bauhaus, de Stijl, Construtivista,
Neoplasticista, Elementarista, Futurista – começaram a competir entre
si para estabelecer quem tinha a visão mais pura. E o que determinava
a pureza? Ora, aquela velha estória do que era burguês (sórdido) e do
que era não-burguês (puro).
A luta para ser o menos burguês de todos tornou-se um tanto
desvairada. Por exemplo, no início da jogada, em 1919, Gropius foi a
favor de trazerem simples artesãos para a Bauhaus, peões, trabalhadores
honestos, gente de testa enrugada e unhas largas que fizesse peças a

1
O governo julgou (erroneamente) que uma arquitetura nwa e cosmopolita poderia contribuir
para transcender as virulentas hostilidades étnicas e raciais que existiam na Áustria.
18
mão para os interiores arquitetônicos, móveis simples de madeira,
objetos simples de cerâmica e vidro, uma coisa simples aqui, outra coisa
simples ali. Isso parecia muito operário, muito não-burguês. E se
interessou também pelos desenhos curvilíneos de arquitetos
expressionistas como Erich Mendelsohn. As teatrais formas curvas de
Mendelsohn rompiam todas as concepções burguesas de ordem,
equilíbrio, simetria e as rígidas construções de alvenaria. Tudo bem –
mas mesmo assim você foi um pouco ingênuo, Walter! Em 1922
realizou-se o I Congresso Internacional de Arte Progressiva em
Dusseldorf. Foi o primeiro encontro de arquitetos dos diversos redutos
de toda a Europa. Ingo de saída puseram em discussão essa estória de
não-burguês. Theo van Doesburg, um dos mais ardentes autores de
manifestos, deu uma única olhada nos trabalhadores honestos e nas
curvas expressionistas de Gropius, soltou uma risadinha desdenhosa e
exclamou: Que coisa tão burguesa! Só os ricos podiam comprar objetos
bonitos, conforme demonstrara a experiência do movimento Artes e
Ofícios na Inglaterra. Para ser não-burguesa, a arte tinha que ser
produzida à máquina. Quanto ao Expressionismo, suas formas
curvilíneas eram um desafio à máquina e não à burguesia. Não eram
apenas de fabricação cara, eram “voluptuosos” e “suntuosos”. Van
Doesburg, com seu monóculo, nariz comprido e surpreendente desdém,
podia fazer qualidades parecerem burguesas a ponto de provocarem
mal-estar. Gropius era uma força espiritual sincera, mas era também
suficientemente perspicaz e competitivo para perceber que van
Doesburg o estava encurralando em um canto incômodo.
Da noite para o dia, Gropius imaginou uma nova máxima, um
novo componente heráldico para o reduto Bauhaus: “Arte e Tecnologia
– uma Nova Unidade!” Completo com ponto de exclamação e tudo! E
agora? Isso devia segurar van Doesburg e todas as comadres
holandesas. Trabalhadores honestos, unhas largas e curvas
desapareceram da Bauhaus para sempre.
Mas isso foi apenas o começo. As definições, argumentos e
acusações e as contra-acusações, contra-argumentos e contradefinições
do que era e não era burguês tornaram-se tão requintados, tão rarefeitos,
tão arcanos, tão dialéticos, tão escolásticos... que finalmente o desenho
arquitetônico em si passou a visar apenas uma coisa: ilustrar a Teoria
do Século deste mês a respeito do que era finalmente, infinitamente e
19
absolutamente não-burguês. Os edifícios se tornaram teorias
construídas em concreto, aço, madeira, vidro e estuque. (Materiais
honestos, não-burgueses, teoria de.) Por dentro e por fora, eram brancos
ou beges com um ocasional detalhe contrastante em preto e cinza.
Bruno Taut, membro do novo grupo de Mies van der Rohe, o Círculo,
desenhara sua parte do conjunto habitacional operário de Hufeisen, em
Berlim, com fachadas vermelhas. “Frente Vermelha!” bradava, caso
houvesse alguém demasiado obtuso para entender. Bruno era um sujeito
simpático. E Deus sabe que era profundamente não-burguês...
emocional e intelectualmente... Afinal de contas, era marxista até nas
veias saltadas da testa. Era o tipo de homem a quem naturalmente
encarregaram de projetar um conjunto habitacional operário chamado
Cabana do Pai Tomás (Onkel Toms Hütte) em Berlim. Mas uma fachada
vermelha? De cor? Bem, quero dizer, puxa – que coisa burguesa! Por
que

O observatório Einstein Tower projetado por Erich Mendelsohn, exemplo máximo de


arquitetura expressionista.

20
que não foi até o fim e pintou capuchinhas na fachada como fez Otto
Wagner com a sua Casa Majólica em Viena em 1910! Ah, como
caçoaram do pobre Bruno por causa de sua querida fachada vermelha.
A partir de então, branco, bege, cinza e preto tornaram-se as cores
patrióticas, a bandeira geométrica, de todos os arquitetos. dos redutos.
Com isso adeus cor. Brandiu-se esse tufão sagrado, a Teoria, até
que os edifícios projetados pelos artistas dos redutos passaram a não
visar muito mais que isso. Tornaram-se supremamente, divinamente
não-funcionais, embora tudo fosse feito em nome da “funcionalidade”,
a palavra funcional sendo um dos vários eufemismos para não-burguês.
Por exemplo, existia agora a teoria inviolável do telhado plano e
da fachada lisa. Decidira-se, na batalha das teorias, que os telhados de
águas e cornijas representavam as "coroas" da antiga nobreza, à qual a
burguesia passava a maior parte do tempo imitando. Portanto, dali em
diante só haveria telhados planos; telhados planos formando impecáveis
ângulos retos com as fachadas dos edifícios. Nada de cornijas. Nada de
beirais. Esses jovens arquitetos trabalhavam e construíam em cidades
como Berlim, Weimar, Roterdã, Amsterdã, aí pela altura do paralelo
52, que também passa pelo Canadá, ilhas Aleutas, Moscou e Sibéria.
Nessa faixa do globo, com neve e chuva suficientes para deter um
exército, como a história demonstrara mais de uma vez, não havia isso
de telhado plano funcional e de fachada funcional sem beirais. 2 Na
verdade é difícil imaginar onde tal construção poderia ser considerada
funcional, a não ser no Deserto Pintado. Todavia, não houve recuo do
telhado plano e da fachada lisa. Tornara-se o próprio símbolo da
arquitetura não-burguesa. Nada de beirais; e com isso, muito depressa,
um dos marcos do trabalho dos redutos, que nunca se fazia referência
nos manifestos, passou a ser a parede exterior de reboco bege ou branco
permanentemente manchada e riscada pela água.
E havia ainda o princípio da “estrutura explícita”. A burguesia
sempre fora perita em fachadas falsas (nem é preciso dizer), grossas
paredes de alvenaria e outros materiais nobres, cobertos de todo o tipo

2
Ocasionalmente permitia-se a construção de um telhado de "água única", um teto com um
plano inclinado ao invés de dois; e essa exceção à regra encontrada nos conjuntos habitacionais
operários da década de vinte recebe hoje devota homenagem, em escala gigantesca, nas torres
comerciais como a Citicorp em Nova York e a Pennzoil Place em Houston.
21
de quina e aresta e dintel e arcos revestidos de pedra, elementos
antropomórficos aconchegantes como entablamentos e capitéis,
pilastras e colunas, plintos e bases rusticadas, para criar a impressão de
cabeça, tronco e pés; e todo o tipo de despropósito – agulhas, telhas
vitrificadas, sacadas envidraçadas, consoles – com o intuito de criar
uma impressão desonesta do que ocorria dentro da casa arquitetural ou
socialmente. Tildo isso teve que ser dispensado. Toda a alvenaria, todo
aquele granito, mármore, arenito e tijolos cerâmicos maciços e
"luxuosos" eram suspeitos, a não ser quando obviamente usados de
maneira a não sobrecarregar. Dali em diante as paredes seriam finas
películas de vidro ou estuque. (Pequenos tijolos vitrificados de
cerâmica bege também eram válidos quando necessários.) Uma vez que
as paredes já não eram usadas para sustentar a construção – isso agora
era tarefa das estruturas de aço, concreto ou madeira – era desonesto
fazer as paredes parecerem atarracadas como as de um castelo. A
estrutura interior, os elementos fabricados por máquinas, os retângulos
mecânicos, a alma moderna de um edifício devia estar expressa no seu
exterior, completamente livre de adornos sobrepostos. A expressão
máxima desse princípio era a Casa Schroeder do arquiteto Gerrit
Rietveld do movimento de Stijl. Rietveld vestiu o exterior de projeções
cuja única função era indicar o reticulado, o diagrama, o paradigma, a
progressão geométrica em que os planos se baseavam. Assombroso!
Que virtuosidade! Que coisa tão não-burguesa!

Assim sendo, no mundo dos redutos de arquitetura, a competição


agora transcorria em dois níveis. Não havia meramente a competição
imemorial para receber encomendas e ter uma oportunidade de mostrar
ao mundo o que se podia fazer construindo edifícios e vendo-os subir.
Havia também a competição puramente intelectual das teorias. Uma vez
que a divindade da arte agora habitava os redutos e nenhum outro lugar,
não havia nada que impedisse um homem inspirado e genial, um
sacerdote, um hierofante, um Duns Scotus, de fazer seu nome sozinho
sem sequer abandonar o recinto sacerdotal. Com isso nasceu mais um
fenômeno único: o arquiteto famoso que construía pouco ou nada.
O primeiro do gênero foi o futurista Sant'Elia, com as suas
construções visionárias destinadas à Milão do futuro, que ele projetou
22
em grande detalhe nos anos que antecederam a guerra. Mas Sant'Elia,
que morreu na guerra, não foi nada comparado à estrela do mundo
artístico parisiense, o suíço LR Corbusier. LC Corbusier era o tipo do
intelectual incansavelmente racionalista que somente a França é capaz
de amar de todo o coração, o lógico que voa cada vez mais alto em
círculos concêntricos sempre decrescentes até que, numa última
indução absolutamente inevitável, ele desaparece pela própria abertura
fundamental e sai na quarta dimensão sob a forma de um longilíneo
passarinho fusco.
Os instintos de Corbusier com relação à era do reduto foram
impecáveis. Anos antes, ele parecia ter compreendido o que veio a se
tornar um axioma na competição artística do século XX. Ou seja, de
que o jovem artista ambicioso tinha que aderir a um "movimento", uma
"escola", um ismo – o que equivale dizer, a um reduto. Ou ele se
dispunha a aderir a uma igrejinha e subscrever seus códigos e teorias ou
desistia de qualquer esperança de prestígio. Esmiúça-se em vão a
história

A Villa Savoye projetada por Corbusier. Telhado plana Fachada lisa. Estuque branco. E
“estacas” (pilotis). “Coluna” era uma palavra burguesa.

23
da arte e da arquitetura a partir de 1900 em busca de uma figura
de grande prestígio que, à maneira de Thoreau, marche ao ritmo de um
tambor diferente, o gênio solitário cuja obra só possa ser descrita como
sui generis. (Com a possível exceção de Frank Lloyd Wright, cujo
destino examinaremos daqui a pouco.) Ao invés, a muito aclamada
figura solitária que encontramos é o artista ou arquiteto que, a exemplo
de Kasimir Malevich, é suficientemente inteligente para se ocultar sob
a exterioridade de um movimento, de um ismo, e fundar o reduto de um
homem só. Ou, se consegue encontrar um companheiro, um reduto de
dois homens. E então proclama: “Sou um suprematista! (ou um purista!
ou um orfista!) Não pensem que estou aqui sozinho! O resto da
rapaziada vai chegar a qualquer momento!” Le Corbusier deu o braço
ao colega Amédée Ozenfant – e passou a ser o Purismo.
Le Corbusier era um homem magro, pálido, míope que andava
numa bicicleta branca, metido em um terno preto e justo, camisa branca,

A Casa Schroeder de autoria de Gerrit Rietveld. Os holandeses sabiam realmente fazer


uma casa à prova de burguesia.

24
gravata preta, óculos redondos de aros pretos como os de uma coruja e
um chapéu-coco preto. Aos espantados circunstantes, ele explicava que
se vestia assim para parecer o mais arrumado, preciso e anônimo
possível, para ser o perfeito manequim produzível em série na Era da
Máquina. Chamava as casas que projetava de “máquinas de morar”. Le
Corbusier ia a Alemanha e a Holanda e era muito conhecido em todos
os redutos e em todos os congressos, conferências, simpósios e debates,
em todos os lugares em que se fizesse ouvir a batida insistente do
manifesto, a música dos redutos: Declaramos...! Declaramos...!
Declaramos

Le Corbusier, O Sr. Purismo Mostrou a todo o mundo como se tornar um arquiteto famoso
sem construir nada. Construiu a Cidade Radiosa no crânio

25
Declaramos...! Ele era veemente, incisivo, brilhante, era Tomás
de Aquino, os jesuítas, Doutor Sutil e os escolásticos, Marx, Hegel,
Engels, e o Principe Kropotkin num homem só. Seu Vers une
architecture era um evangelho. Por volta de 1924 era considerado um
dos gênios reinantes da nova arquitetura. No seu mundo ele era...
Corbu! do mesmo jeito que Greta Garbo era Garbo! Tudo por força do
seu manifesto, do seu fanatismo, e de um punhado de casinhas:
construídas para o irmão, para Ozenfant, para os parentes e boêmios.
Em seguida construiu uma para Mamãe e Papai. O asilo para idosos da
Mamãe, que ela custeou e teve que aguentar, tornou-se o próprio
símbolo da arquitetura de reduto.
Foi a sina particularmente triste de Le Corbusier morar e trabalhar
na França. Quem na França ia aceitar os termos de um reduto de
arquitetura? Que seriam: “Doravante, quem quer que deseje se banhar
naquela luz divina deve vir a nós, ao nosso reduto, e aceitar as formas
que criamos. Não permitimos alterações, nem encomendas especiais
nem imposições de clientes.” Quem se aventuraria! Praticamente
ninguém, a não ser que estivesse possuído de um amor semelhante ao
da mãe de Corbu ou fascinado pelo Le Moderne, como o urbanizador
Frugés, que encarregou Le Corbusier de projetar apartamentos
econômicos na cidade de Pessac, Bordeaux, em 1925. A maioria dos
mortais em posição de encomendar edifícios preferiam o estilo Belas-
Artes, a síntese dos últimos dias dos reflorescimentos que começaram
na Renascença. Os redutos nem possuíam público, nem clientela no
sentido comum. A realidade brutal é que era difícil os arquitetos de
redutos arranjarem trabalho a não ser que houvesse um governo –
normalmente socialista – que tivesse realmente decidido: precisamos
imprimir um novo estilo por aqui, e parece que vocês têm um. Tomem
aqui o orçamento; façam o que quiserem.
Afinal, foi o governo social-democrata alemão de Stuttgart que
entregou a Le Corbusier uma das principais incumbências de sua
carreira. Isso aconteceu em 1927, e graças a Mies van der Rohe. O
governo de Stuttgart encarregou Mies de uma exposição de conjuntos
habitacionais operários, o projeto Weissenhof Werkbund. Apesar do
orçamento extremamente exíguo, Mies conseguiu transformar o projeto
em uma feira mundial de conjuntos habitacionais. Chamou Le
Corbusier da França, Oud e Mart Stam da Holanda, e Victor Bourgeois
26
da Bélgica e outros onze alemães, inclusive Gropius, Bruno Taut, o
irmão de Bruno, Max, e Peter Behrens. Os não-participantes se
surpreenderam com a harmonia ou mesmice (dependendo se gostavam
ou não do estilo) da obra desses arquitetos de quatro países diferentes.
Era como se um novo estilo internacional estivesse no ar. A verdade é
que o mecanismo interno de competição nos redutos, o perene
reducionismo – não-burguês! – os colocara todos no mesmo cubículo
minúsculo, que não cessava de encolher, como o quarto num conto de
Poe. A não ser que desistissem inteiramente do divino jogo, não lhes
seria possível distinguir um do outro de forma visível a qualquer mortal
exceto outro arquiteto de reduto equipado, como um criptógrafo, com
as lentes da Teoria.
E que aparência tinham esses conjuntos operários? Não-burguesa,
mas por pouco: os telhados planos, sem cornijas, as paredes lisas, as
janelas, sem arquitraves, dintéis, capitéis ou frontões, nas cores únicas
dos redutos, branco, bege, cinza e preto. Os interiores não tinham coroas
nem diademas. Tinham cômodos imaculadamente brancos, despojados,
purgados, liberados, livres de quaisquer revestimentos, cornijas,
abobadilhas, molduras (para não falar no resto), pilastras, e até frisos
ogivados nos tampos das mesas e perolados nas gavetas. Apresentavam
grandes vãos livres, acabando com a velha obsessão burguesa,
individualista, de intimidade. Nada de papéis de paredes, nada de
reposteiros, nada de tapetes grossos e floridos, nada de abajures com
copas e bases franjadas que pareciam vasos ou colunas gregas, nada de
paninhos rendados, bricabraques, consoles de lareira, cabeceiras de
cama ou disfarces para radiadores. Deixavam as serpentinas dos
radiadores nuas, honestas, abstratas, objetos esculturais que eram. E
nada de móveis estofados com tecidos “bonitinhos”. A mobília era feita
de materiais honestos em tons naturais: couro, tubos e aço, verga, cana-
da-índia, lona; quanto mais leves – e mais duros – melhor. E nada de
tapetes e carpetes “luxuosos”. Linóleo cinza ou preto era o quente.
E que achavam os operários da casa operária? Ah, eles se
queixavam, como era de sua natureza nessa etapa da história. Em Pessac
os pobres coitados frenéticos viravam os cubos nus de Corbu pelo
avesso tentando fazê-los aconchegantes e coloridos. Mas era
compreensível. Conforme dizia o próprio Corbu, precisavam ser
“reeducados” para compreender a beleza da “Cidade Radiosa” do
27
futuro. Em questões de gosto, os arquitetos agiam como benfeitores
culturais dos operários. Não adiantava consultá-los diretamente, já que,
conforme Gropius observava, ainda se encontravam “intelectualmente
subdesenvolvidos”. De fato, nisso residia a grande atração do
socialismo para os arquitetos na década de vinte. O socialismo era a
resposta política, o grande sim-senhor às reivindicações aparentemente
impossíveis e absurdas dos arquitetos dos redutos, que insistiam que o
cliente ficasse de boca calada. No socialismo, o cliente era o
trabalhador. Ai dele, o desgraçado só agora estava começando a tirar o
pé da lama. Entrementes, o arquiteto, o artista e o intelectual
resolveriam a vida dele. Usando a frase de Stalin, seriam os engenheiros
de sua alma. Nos blocos de apartamentos que construiu em Berlim para
os empregados da Siemens, o "engenheiro da alma" Gropius decidiu
também poupar os operários dos tetos altos e dos corredores largos,
além de outros objetos e decorações fora de moda. Tetos altos e
corredores largos e "amplidão" sob qualquer forma eram grandiosidade
burguesa, expressa em espaços ocos ao invés de sólidos. Tetos de 2,10m
de altura e corredores de 90cm eram a medida certa para... recriar o
mundo.

Começando do zero! Bem, puxa vida! Os peregrinos americanos,


os jovens arquitetos americanos que estavam excursionando pela
Europa a preços promocionais – Louis Kahn, Edward Durell Stone,
Louis Skidmore, e muitos outros – só precisavam comparar a posição
daqueles rapazes com a deles. Qual era a melhor coisa que um jovem
arquiteto poderia esperar nos Estados Unidos? Se fosse uma pessoa de
sorte excepcional, talvez recebesse a incumbência de projetar uma casa
de fim de semana no litoral norte de Long Island para algum fominha
de Wall Street. George Howe, amigo de Louis Kahn, gostava de dizer:
“Costumávamos construir para eles solares normandos completos à
exceção do monte de estrume no pátio.” O máximo. O auge da
excitação nos círculos de arquitetura americanos eram aqueles
admiráveis estilos novos, Normando Litoral Norte e Tudor
Westchester, também conhecidos como Meio-vigamento de Corretor.
Que aspiração... comparada a... recriar o mundo!

28
Até então o arquiteto americano fora um homem cujo trabalho era
emprestar coerência e detalhe às fantasias românticas dos capitalistas.
Mas agora, na Europa, viam-se grupos de arquitetos trabalhando com a
divina autonomia dos grandes artistas.
Não, a atitude dos redutos europeus, de Gropius e da Bauhaus, de
Mies, Corbu, e de Stijl, era absolutamente irresistível. Havia diversos
problemas a superar, porém. Para começar, a ideia de começar do zero
não fazia sentido algum nos Estados Unidos. A triste verdade é que os
Estados Unidos não tinham sido reduzidos a escombros fumegantes
pela Primeira Guerra Mundial. Saíram da guerra por cima.
O único combatente não demolido, dizimado, exaurido, ou atirado
numa revolução. Era agora uma das Grandes Potências, jovem, em
ascensão, explodindo de vigor e de uma saúde sobre-humana. E não era
só isso, não possuía monarquia nem nobreza a derrubar, desacreditar,
culpar, vilanizar ou atacar de alguma forma. Nem mesmo possuía
burguesia. Na ausência de uma nobreza ou tradição de nobreza, o
conceito europeu de burguesia não podia ser aplicado. (Escritores
americanos, fascinados pelo exemplo europeu, importaram-no mesmo
assim, como se importa um par de sapatos Lobb ou um vidro de caviar
Beluga, e começaram a falar de “bujoasi”, “Babbitt”, “ufanismo” e todo
o resto.) Havia muito pouco interesse pelo socialismo. E menos ainda
por conjuntos operários. Nem se falava nisso.
Contudo... tinha que ser! Como é que alguém podia retroceder
depois de ter visto a Cidade Radiosa? A grande visão da nova
arquitetura europeia de conjuntos operários tinha que ser levada aos
Estados Unidos pelos meios que fossem necessários, da forma que fosse
possível. De qualquer forma.
Ó jovem príncipe de prata destacando-se dos destroços ao fundo!

29
30
II

UTOPIA LIMITADA

Assim foi que se escreveu um dos documentos mais influentes e


excêntricos de toda a história do complexo colonialista. Era uma obra
intitulada The International Style, da autoria de Henry Russell
Hitchcock e Philip Johnson, o filho de vinte e seis anos de um rico
advogado de Cleveland. O rapaz doara ao Museu de Arte Moderna o
dinheiro para fundar uma divisão de arquitetura, que então 'passou a
chefiar. Hitchcock e Johnson escreveram The International Style para o
catálogo da mostra de fotografias e maquetes organizada pelo museu
em 1932 com o objetivo de apresentar a Nova York o trabalho de
Gropius et alii. O termo “International Style” foi tirado do título de um
livro que Gropius publicara sete anos antes, International Architecture.
O catálogo de museu, que é uma espécie de erudição resultante de
trabalho forçado ou de revólver apontado para a cabeça, é um texto
famoso pela sofistaria se não pelo patente ridículo. Mas The
International Style era literatura de categoria superior. Refulgia... com
a clareza alucinatória de um folheto da Igreja de Galilee Walker. Os
dois homens uivavam enamorados de uma lua prateada e principesca.
Com absoluta seriedade estabeleciam uma distinção entre
arquitetura e construção, a exemplo de Vitruvius há uns dois mil anos
atrás. O grifo, presumivelmente, visava indicar que esses termos eram
categorias científicas objetivas. Na Europa, Gropius, Mies van der
Rohe, Le Corbusier e Oud – os quatro grandes “funcionalistas
europeus”, como Hitchcock e Johnson os chamavam – estavam criando
arquitetura. Nos Estados Unidos, até os arquitetos que pensavam serem
modernos e funcionais estavam apenas fazendo construções. Ah,
sempre havia Frank Lloyd Wright, naturalmente... e algo entediados,
Hitchcock e Johnson prestavam homenagem à sua obra... no passado
distante... e em seguida concluíam que ele era apenas “meio-moderno”.
O que equivalia a dizer que já era e podia ser esquecido.
31
Quanto ao orgulho da arquitetura americana do século XX, o
arranha-céu, eles mal conseguiam conter o riso. Os arranha-céus eram
composições vazias decoradas com “festões” e Deus sabe o que mais.
Os arquitetos americanos, e muito particularmente os arquitetos de
arranha-céus, estavam sempre dispostos a “desfigurar” seus edifícios
com um mau traço, se o cliente exigisse. Os europeus, insinuavam,
dariam as costas a um contrato antes de se submeter a uma idiotice
dessas.
Em seu prefácio ao The International Style em forma de livro, o
diretor do Museu de Arte Moderna, Alfred Barr, deu uma olhada nos
remates, nas coroas, dos arranha-céus mais famosos de Nova York.
Ficou

O Empire State Building (esquerda) e o Chrysler Building (direita). Ah, como caçoaram dos
enfeites de árvore de natal no topo!

32
Ficou estarrecido. “As gárgulas de aço inoxidável do Chrysler
Building”, “o fantástico mastro de amarração no alto do Empire State”
– como é que se materializavam tais vulgaridades! Muito simples: os
arquitetos americanos paravam e escutavam o que o cliente tinha a
dizer. Já ouvira até arquitetos argumentarem, talvez cinicamente, que
os pavorosos enfeitezinhos e ocas grandiosidades eram “funcionais”,
uma vez que uma das funções de um edifício era agradar ao cliente.
“Exigem”, dizia Barr, “que levemos a sério o gosto arquitetônico dos
especuladores imobiliários, administradores imobiliários e corretores
hipotecários!”
Hitchcock e Johnson gastaram muitas páginas analisando os
projetos dos grandes “funcionalistas” – e nenhuma analisando questões
inconvenientes tais como operários, habitações operárias e socialismo,
e menos ainda as batalhas desvairadas entre redutos. Havia apenas o
comentário obscuro e ocasional de que os arquitetos americanos não
podiam "reivindicar para seus arranha-céus e edifícios de apartamentos
a ampla justificativa sociológica que existe para os conjuntos
habitacionais operários, as escolas e os hospitais da Europa".
De fato, não davam qualquer indicação de que o Estilo
Internacional – e esse rótulo pegou imediatamente – tivesse se
originado em um contexto social, uma terra firme, de qualquer tipo.
Apresentavam-no como uma tendência inexorável, de natureza
meteorológica, como uma mudança de tempo ou uma maré. O Estilo
Internacional era nada menos que o primeiro grande estilo universal
desde os reflorescimentos medieval e clássico, e o primeiro estilo
verdadeiramente moderno desde o Renascimento. E se os arquitetos
americanos quisessem pegar essa onda, ao invés de serem engolfados
por ela, primeiro teriam que compreender uma coisa: o cliente só era
levado em conta na hora de custear a obra. Se cooperasse, e não fosse
muito chato, admitia-se que participasse da nova visão. De que maneira
isso funcionaria na prática, ninguém dizia. Uma maré precisava dar
explicações?
A mostra e o catálogo criaram uma fantástica agitação na
comunidade americana de arquitetura, principalmente devido à
importância do museu em si. O Museu de Arte Moderna era o complexo
colonialista inflado a dimensões prodigiosas. Na Europa, os
movimentos de vanguarda, quer fossem fauvistas, cubistas,
neoplasticistas ou a Bauhaus, eram iniciados e desenvolvidos por
artistas e arquitetos. Na Europa, é claro, nem se precisava repetir. Numa
33
etapa posterior, como acontecera em Viena após a virada do século e
em Paris e Londres no início da década de vinte, os empresários mais
aventureiros e outros membros da burguesia talvez os apoiassem, por
razões políticas ou por piedade cultural ou simplesmente para
parecerem chiques, “modernos”, e nada burgueses. Só nos Estados
Unidos acontecia exatamente o oposto. Só nos Estados Unidos os
empresários e suas esposas apresentavam a arte e a arquitetura de
vanguarda e abriam caminho com a bandeira desfraldada incitando os
profissionais a segui-los, se tivessem agilidade mental para tanto.
O Museu de Arte Moderna, afinal de contas, não era bem filho
intelectual de socialistas e boêmios visionários. Fora fundado na sala de
estar de John D. Rockefeller, Jr., para sermos mais precisos, em
companhia de A. Conger Goodyear, e a Sra. Cornelius Newton Bliss e
a Sra. Cornelius J. Sullivan. Tinham visto seus congêneres em Londres
regalando-se com o chique e a excitação de Picasso, Matisse, Dérain, e
o resto de Le Moderne e estavam decididos a importá-lo para Nova
York e para si. Em 1929 inauguraram o museu e consolidaram o
modernismo europeu na pintura e na escultura, institucionalizaram-no
da noite para o dia, de maneira avassaladora, como o novo padrão para
as artes americanas. A exposição International Style estava destinada a
fazer o mesmo pelo modernismo europeu em arquitetura.
Os nossos vanguardistas visionários! Rockefellers, Goodyears,
Sullivans e Blisses! Ó petroleiros, madeireiros, comerciantes de secos
e suas mulheres!
Foi maravilhoso. Parecia o enredo da opereta de Gilbert e
Sullivan, Utopia Limited. O Rei Paramount, governante de um paraíso
tropical, ouvindo contar que os ingleses eram a última palavra em
matéria de roupas, fala, modos e cultura, converte sua corte ao estiIo
inglês. Ele e seus servidores despem imediatamente os saiotes, folhas
de palmeiras e orquídeas e enfiam calções, sobrecasacas, perucas,
espartilhos, saias rodadas e sapatos de bico fino. E ordenam aos súditos
que façam o mesmo. Perplexos, mas impressionados, eles obedecem.
Na opereta, como se poderia prever, o rei e seus conterrâneos
descobrem, com o passar do tempo, que os costumes nativos afinal eram
melhores; e o alvo da última risada são os europeus. Nesse ponto Gilbert
e Sullivan e o mundo artístico de Nova York se distanciam. Nem por
um instante os petroleiros e Os madeireiros ou seus súditos – os artistas
– tiveram a menor dúvida de que as ideias europeias eram melhores.
Durante toda a década de trinta, os artistas locais, notadamente Arshile
34
Gorky, murmuraram e protestaram que o museu dedicava todos os seus
recursos às obras europeias e nunca lhes dava uma chance. Mas eles
não estavam realmente interessados. O complexo colonialista se tornara
tão intenso que a reação-padrão à reputação dos europeus não era
competir com eles mas imitá-los, muitas vezes com total descaramento.
O modelo de Gorky era Picasso, e pouco lhe importava se alguém
sabia disso. Um amigo disse a Gorky que, em sua opinião, as obras mais
recentes de Picasso pareciam feitás com preguiça e desleixo. Em muitas
telas as bordas estavam borradas. Havia até pingos de tinta escorridos.
“Se Picasso borra” – disse Gorky – “então eu borro. Se ele pinga,
eu pingo.”
No momento seguinte, porém, sua posição parecia insustentável.
Caía eme depressão. Certo dia convocou todos os artistas que conhecia
para uma reunião em seu estúdio.
“Vamos enfrentar” – disse-lhes. “Estamos falidos.”
Tal era a atmosfera mental em que Hitchcock e Johnson
introduziram o Estilo Internacional. Mal sabiam que eram apenas o
mensageiro Elias, os Mahaviras, os arautos batistas de um evento mais
milagroso do que qualquer deles teria ousado suplicar: a vinda.

35
36
III

OS DEUSES BRANCOS

Repentinamente, em 1937, o próprio Príncipe de Prata estava nos


Estados Unidos. Walter Gropius; em pessoa; em carne e osso, e viera
para ficar. Na esteira da ascensão nazista ao poder, Gropius fugira da
Alemanha, indo primeiro para a Inglaterra e agora para os Estados
Unidos. Outras estrelas da fabulosa Bauhaus chegaram mais ou menos
na mesma época: Breuer, Albers, Moholy-Nagy, Bayer e Mies van der
Rohe, que se tornara diretor da Bauhaus em 1930, dois anos depois que
Gropius, já então sob pressão devido à aura esquerdista do reduto,
pedira demissão. Ali vinham eles, desenraizados, exaustos, sem vintém,
homens sem pátria, golpeados pelo destino.
Gropius possuía o saudável amor-próprio de qualquer homem
ambicioso, mas era acima de tudo um cavalheiro, um cavalheiro da
velha guarda, um homem que sempre se preocupava com o senso de
proporção, tanto na vida quanto na arte. Na qualidade de refugiado de
uma terra assolada, teria se contentado com uma recepção amistosa, um
lugar para descansar a cabeça, duas ou três refeições por dia até que
conseguisse se pôr outra vez de pé, um sorriso de vez em quando e uma
oportunidade de trabalhar, se alguém precisasse dele. Ao invés...
A recepção a Gropius e seus confrades foi como uma certa cena-
padrão nos filmes de selva daquele período. Bruce Cabot e Myrna Loy
fazem uma aterrissagem acidentada na selva e se arrastam para fora dos
destroços metidos em calças de montaria de gabardine bege e blusas
safári brancas da Abercrombie & Fitch e cambaleam até uma clareira.
São cercados por selvagens com pedaços de ossos atravessados no nariz
– que imediatamente se curvam e se prostram e iniciam um canto
estranho e gemido.

Os Deuses Brancos!
Vieram finalmente do céu!

37
Gropius foi nomeado diretor da Escola de Arquitetura de Harvard,
e Breuer se reuniu a ele. Moholy-Nagy abriu a Nova Bauhaus, que
acabou se transformando no Chicago Institute of Design. Albers abriu
uma Bauhaus rural nas montanhas da Carolina do Norte, no Black
Mountain College. Mies instalou-se como decano de arquitetura no
Armours Institute de Chicago. E não só como decano; mestre-
construtor também. Deram-lhe um campus universitário para criar,
vinte

Ludwig Mies van der Rohe. O Deus Branco nº2. Ele enfiou metade dos Estados Unidos nos
cubos criados para os operários alemães.

38
vinte e um prédios ao todo, quando o Armour Institute se fundiu
ao Lewis Institute para formar o Illinois Institute of Technology. Vinte
e um grandes prédios, em plena Depressão, num momento em que as
construções tinham quase parado nos Estados Unidos – para um
arquiteto que só terminara dezessete obras em sua carreira.
Ó Deuses Brancos!
Tantas prostrações! Tantas homenagens! O Museu de Arte
Moderna homenageou Gropius com uma mostra denominada
“Bauhaus: 1919-1928”, anos em que Gropius a dirigiu. Philip Johnson,
agora com trinta e quatro anos, não conseguiu mais resistir a presença
física dos deuses. Levantou acampamento rumo a Harvard para estudar
arquitetura aos pés de Gropius. Começando do zero! (Se a verdade fosse
dita ele teria preferido estudar ao pés de Mies, mas para um rapaz
supremamente urbano como era Johnson, podemos estar certos de que
a ideia de se mudar para Chicago, Illinois, durante três anos, era um
pouco mais zero do que tinha em mente.)
Foi embaraçoso, talvez... mas era o tipo de coisa com que se
aprende a conviver... Em três anos o curso de arquitetura americana
mudara, por completo. Não era tanto pelos edifícios que os alemães
projetaram nos Estados Unidos, embora Mies viesse a se tornar
influentíssimo uma década depois. Era mais pelo sistema de ensino que
introduziam. E não só isso, era a presença deles em si. As criaturas mais
fabulosas de toda a mitologia da arte americana do século XX – ou seja,
aqueles fascinantes artistas europeus posando de forma tão exótica com
os destroços ao fundo – estavam... ali!... então!... na terra do complexo
colonialista... para governar, em pessoa, a grande Nigeriazinha das
Artes.
Essa curiosa fase da história colonial tardia de maneira alguma se
restringia à arquitetura, porque o complexo colonialista permeava tudo.
Estrelas dos dois grandes movimentos rivais da pintura europeia, os
cubistas e os surrealistas, começaram a chegar como refugiados em fins
da década de trinta e início da de quarenta. Léger, Mondrian,
Modigliani, Chagall, Max Ernst, André Breton, Yves Tanguy – Ó
deuses brancos! A Cena Americana e a pintura Social Realista dos anos
30 desapareceram para nunca mais reaparecer. Com os europeus, os
artistas de Nova York aprenderam a criar a própria igrejinha.
O primeiro reduto de arte americano, a chamada Escola de
Expressionismo Abstrato, de Nova York formou-se na década de
quarenta, com reuniões regulares, manifestos, novas teorias, novos
39
códigos visuais, o pacote completo. Arnold Schoenberg, o deus branco
de todos os deuses brancos da música europeia, chegou refugiado em
1936. Nos quarenta anos seguintes, a música séria nos Estados Unidos
tornou-se uma nota de rodapé na teoria da composição séria de
Shoenberg. Havia uma considerável ironia nisso. Muitos compositores
consideravam o jazz americano e os compositores americanos da
qualidade de George Gershwin, Aaron Copland e Ferde Grofé forças
libertadoras, saídas para a hiper-racionalização da música de vanguarda
européia tipificada por Schoenberg. Mas os compositores americanos
sérios, de um modo geral, não queriam saber disso. Agiam como
sauditas a quem se dissesse que suas tendas são maravilhosas porque
são tão. naturais e indígenas e ecológicas. Queriam o artigo genuíno –
o artigo europeu – e o agarraram com todas as forças. Dali em diante
falava-se de Gershwin, Copland e Grofé com condescendência ou então
flagrante desdém.3
Na arquitetura, naturalmente, o Príncipe de Prata tornou-se o
principal dirigente, o governador da colônia, por assim dizer. O ensino
de arquitetura em Harvard se transformou da noite para o dia. Todos
começavam do zero. Todos agora aprendiam os fundamentos do
Estilo Internacional – o que equivale a dizer, o estilo do reduto. Toda a
arquitetura tornou-se uma arquitetura não-burguesa, embora deixassem
o conceito em si discretamente inexplícito, por assim dizer. As velhas
tradições das Belas-Artes tornaram-se heresia, bem como o legado de
Frank Lloyd Wright, que para começar mal chegara às escolas de
arquitetura. Em três anos, tudo que se poderia chamar de importante
contribuição americana à arquitetura contemporânea – de autoria de
Wright, H. H. Richardson, criador do românico-rústico americano, ou
Louis Sullivan, líder da “escola de Chicago” de arranha-céus – tinha
caído ao nível das notas de rodapé, dos matagais do ibid.
O próprio Wright ficou furioso e, uma das raras vezes na vida,
perplexo. Era difícil dizer o que o incomodava mais: o fato de sua obra
ter sido desdenhada pelos europeus ou o fato de passar a ser tratado

3
Ocorreu o mesmo no campo da psicologia. psicanalistas freudianos de renome aportaram
aos Estados Unidos (por exemplo, Heinz Hartmann e Ernst Kris), que o país se transformou
no único centro importante de psicologia freudiana do mundo. As contribuições americanas
à psicologia, mesmo as bem-vistas na Europa, tais como as de William James foram
consideradas atrasadas nos quarenta anos seguintes.

40
como uma espécie de cadáver ambulante. Não o privaram de honrarias
e reverências, mas quando as prestavam, na maioria das vezes pareciam
homenagens póstumas. O Museu de Arte Moderna, por exemplo,
realizou uma exposição da obra de Wright em 1940 – mas acoplada a
uma mostra da obra do diretor de cinema D. W. Griffith, que se
aposentara em 1931. Mies fez uma declaração muito elegante falando
da genialidade de Wright e da maneira como abrira os olhos dos
arquitetos europeus... antes da Primeira Guerra Mundial... Mas quanto
à gratidão que poderia ter sentido diante dos oitenta e tantos edifícios
que Wright projetara desde então, ele nada disse.
O final da década de 20 e o início da década de 30 tinham sido
desastrosos para Wright. Já completara cinquenta e oito anos quando,
em 1925, um incêndio destruiu seu estúdio em Taliesin, Wisconsin.
Problemas com a amante, Miriam Noel, pareciam paralisar o seu
trabalho. Os negócios tinham sofrido uma séria queda mesmo antes da
Depressão. Wright finalmente se entocara, como um russo branco em
penúria, no refúgio reconstruído em Taliesin, com uns doze aprendizes,
conhecidos como os Companheiros de Taliesin, e seus chapéus de feltro
de copa chata e aba revirada, boinas, colarinhos altos e gravatas
esvoaçantes, e suas pelerines de Stevenson, o alfaiate de Chicago. O
próprio Wright fora aprendiz de Sullivan e rompera com o mestre ou
fora despedido – cada qual tinha a sua versão – mas Wright levara
consigo a visão de Sullivan de uma arquitetura totalmente nova e
totalmente americana, nascida do solo e do espírito americano do Meio-
Oeste. Bom, agora, finalmente, em fins da década de trinta havia uma
arquitetura totalmente nova nos Estados Unidos, e viera diretamente da
Alemanha, Holanda e Franca, o componente francês sendo Le
Corbusier.
Todas as vezes que Wright lia que Le Corbusier terminara um
edifício dizia aos companheiros: “Bom, agora que terminou um
edifício, vai escrever quatro livros sobre ele.” Le Corbusier fez uma
visita aos Estados Unidos – e criou uma fobia a esse país – e Wright
criou uma fobia a Le Corbusier. Recusou a única oportunidade de
conhecê-lo. Não quis ser obrigado a lhe apertar a mão. Quanto a
Gropius, Wright sempre se referia a ele como “Herr Gropius”. Não
queria lhe apertar a mão, tampouco. Certo dia Wright fez uma visita
surpresa a um canteiro de obras em Racine, Wisconsin, onde a primeira
de suas casas “Usonianas”, versões de custo médio dos solares
projetados na Prairie School, estava em construção. O Lincoln Zephyr
41
vermelho de Wright parou na entrada. Um de seus aprendizes, Edgar
Tafel, ia ao volante, servindo de motorista. Naquele instante, vinha
saindo do prédio um grupo de homens. Entre eles ninguém menos que
o próprio Gropius, que viera à Universidade de Wisconsin fazer uma
palestra e se mostrara ansioso por ver alguma coisa do trabalho de
Wright. Gropius aproximou-se, pôs a cabeça na janela e falou:
– Sr. Wright, é um prazer conhecê-lo. Sempre admirei o seu
trabalho.
Wright nem mesmo sorriu ou ergueu a mão. Meramente virou a
cabeça um tantinho à toa na direção do rosto à janela e disse pelo canto
da boca:
– Herr Gropius, o senhor é convidado da universidade local. Só
queria dizer que são tão esnobes aqui quanto em Harvard, só que não
falam com o sotaque da Nova Inglaterra. – E dizendo isso voltou-se
para Tafel: – Bom, temos que ir andando, Edgar! – Recostou-se, e o
Zephyr vermelho partiu veloz, deixando Gropius e seu séquito na
calçada sem saberem o que fazer com seus sorrisos radiosos de orelha
a orelha.4
Ponto para Papai Frank! – era como os Companheiros chamavam
Wright quando não se achava por perto. Mas foi um ponto sem
ressonância. Papai Frank acabara de ver o rosto do alemão que o
substituíra no papel de Futuro da Arquitetura Americana.
Tafel e seus Companheiros eram os únicos seguidores de Wright
a essa altura. Entre os estudantes de arquitetura nas universidades só se
ouvia falar do Estilo Internacional. O entusiasmo vinha crescendo desde
que os peregrinos regressaram da Europa e o Museu de Arte Moderna
começou a fazer publicidade dos arquitetos dos redutos. Quando os
deuses brancos repentinamente desembarcaram, o entusiasmo se
transformou em conversão, num sentido religioso. Havia um zelo por
esse estilo que ultrapassava as paixões comuns no gosto estético. Foi o
fervor esotérico, hierofântico do reduto que se apossou de todos.
“Doravante, a divindade da arte e a autoridade do gosto habitam
conosco...” Os departamentos de arquitetura das universidades
tornaram-se versões americanas dos redutos. Ali estava uma abordagem
da arquitetura que transformava o arquiteto americano de provisor em
vendedor de contratos e finalmente em engenheiro da alma. Com a

4
Edgar Thfel, Appentice to Genius: Yars with Frank Llloyd Wright (Nova York: McGraw-
Hi11 Book Company, 1979).
42
Depressão em curso, os vendedores de contratos não estavam mesmo
contribuindo muito para a prosperidade da arquitetura. As novas
construções tinham quase que cessado. Isso fazia com que fosse ainda
mais fácil para a comunidade de arquitetura aderir às teorias dos deuses
brancos e começar do zero.
O estudo da arquitetura deixava de ser uma questão de aprender
um conjunto de técnicas e alternativas estéticas. Antes que desse por si,
o estudante se via atraído por um movimento que lhe confiava um
conjunto de princípios invioláveis de estética e moral. O campus
universitário em si se transformava em um reduto físico, como ocorrera
com a Bauhaus. Quando os estudantes falavam de arquitetura, era com
um sentido de missão. Os redutos universitários americanos diferiam
entre si – num grau íntimo, da mesma forma que de Stijl diferia da
Bauhaus. Harvard era Bauhaus pura. Em Yale faziam experiências com
variantes. Num determinado momento o princípio da “estrutura de
madeira com junções integrais” parecia euforicamente sediciosa – mas
exigria a mente super-requintada do próprio Doctor Subtilis para
explicar por quê. Isso era, também, uma imitação dos redutos europeus.
Os professores da faculdade resistiam à paixão do reduto por sua
conta e risco. Os estudantes se tornavam indisciplinados. Faziam
requerimentos – manifestos em embrião. Acabaram-se as trabalhosas
aguadas de nanquim ao velho estilo das Belas-Artes! Acabaram-se as
tediosas

A Casa Robie projetada por Frank Lloyd Wright, Chicago, 1906. Exemplar do seu Estilo
Pradaria e do seu sonho de uma arquitetura inteiramente americana. Continue sonhando,
continue sonhando...

43
tediosas pinturas renascentistas! Afinal de contas, vejam os
desenhos de Mies. Ele não usava sombreado algum, apenas linhas
rápidas, secas e retas, despojadas e incisivas. E vejam os de Corbu! Sua
técnica de desenho – um verdadeiro rabisco! Um jorro desordenado de
ideias! Suas pinturas eram aquarelas em tons lilases e castanhos, ligeiras
e terríveis como uma tempestade! Gênio! – a pessoa precisava deixar
que a coisa esguichasse! Declaramos: “Acabaram-se os penosos
detalhes do renascimento clássico!” as faculdades cederam. Por volta
de 1940, os esboços do palpitante passarinho fusco de Corbu tinham se
transformado no padrão moderno de desenho. Com a euforia um tanto
medonha de Savanarola queimando as perucas e as fantasias das ricaças
florentinas, os decanos de arquitetura saíram instruindo os zeladores
para jogarem fora todos os gessos de detalhes clássicos, recursos
pedagógicos que tinham se acumulado durante mais de meio século.
Quero

Frank Lloyd Wright por volta de 1935. Ele espiou o futuro da arquitetura americana... e viu
a cara de Walter Gropius. Não ficou nada satisfeito.

44
Quero dizer, puxa vida, todas aquelas fontes esquilinas e capitéis
do templo de Vesta... Que coisa tão burguesa!
Em Yale, no concurso anual de desenho, um júri sempre escolhia
um estudante que era com efeito o melhor da mostra. Mas agora os
estudantes se rebelavam. E por quê? Porque das escrituras fazia parte a
frase do próprio Gropius: “o erro pedagógico fundamental das
academias nasce da sua preocupação com a ideia da genialidade
individual.” A expressão favorita de Gropius e Mies era trabalho “de
equipe”. A própria firma de Gropius em Cambridge não se chamava
Walter Gropius & Associados, Inc., nem nada parecido com isso.
Chamava-se The Architects Collaborative. Em Yale os estudantes
insistiam em um trabalho de grupo, um projeto em colaboração, para
substituir a corrida obscena pela glória individual.

Agora, no fim da década de quarenta e início da década de


cinquenta, Buckminster Fuller recebia o merecido reconhecimento.
Fuller era um projetista americano com um infindável estoque de ideias
engenhosas, uma das quais era o domo geodésico, um domo construído
de milhares de montantes curtos de metal fino dispostos em tetraedro.
O domo de Fuller encaixava-se lindamente no princípio moderno de
criar grandes estruturas com superfícies leves feitas de materiais
produzidos à máquina e usando tensões e esforços para fazer o trabalho
que os apoios maciços fizeram pela velha ordem (burguesa). Mas
Gropius e os outros nunca se sentiram muito à vontade com Fuller. Era
difícil dizer se ele era arquiteto, engenheiro, guru ou simplesmente
aquela espécie de biruta conhecido em todo o mundo: o inventor. Mas
para os estudantes universitários americanos ele era no mínimo um
guru. Proferia surpreendentes palestras de doze horas de duração,
grandes e inconsúteis domos geodésicos de palavras que os jovens de
colunas flexíveis e bons rins achavam inspiradoras, e até mesmo
inebriantes. Em Yale, após uma das surpreendentes apresentações de
Fuller, os estudantes de arquitetura foram arrebatados por um êxtase de
atividade subversiva e cooperativa. Construíram um enorme domo
geodésico de montantes de papelão e colocaram-no no topo do Weir
Hall, o edifício da escola de arquitetura de Yale construído em pedra
cinzenta no estilo do Reflorescimento Gótico e praticamente desafiaram
o decano de arquitetura a tentar reagir. Ele não reagiu e o domo
gradualmente apodreceu com toda a sua eminência.
45
Em 1950, Yale ganhou um bauhausler próprio quando Joseph
Albers veio a Carolina do Norte para chefiar o ensino das Belas-Artes.
Albers imediatamente instituiu o fabuloso Bauhaus Vorkurs, só que
agora não estava interessado em empilhar folhas de jornal na mesa.
Agora depositava quadrados de papel Color-aid na mesa e mandava os
alunos criarem obras de arte. Como pintor, o próprio Albers passara os
quatorze anos anteriores procurando resolver o problema (se é que
havia) de superpor quadrados de cor, uns aos outros. Agora contava
com os estudantes de Yale para fazer isso... e os meses foram passando.
Yale, simplesmente porque era Yale, atraía artistas notáveis das escolas
de segundo grau dos Estados Unidos. Um rapaz que fosse capaz de
pegar um pedaço de mármore e esculpir um travesseiro que parecesse
tão cheio de volumes voluptuosos e macios que a pessoa teria de boa
vontade enfiado a cabeça nele – essa reencarnação do próprio Bernini
sentava-se ali com os implacáveis quadrados de Color-aid de Albers nas
mãos... começando do zera.. e observava Albers apontar para as
camadinhas bonitinhas de quadrados coloridos montadas por algum
fotógrafo de cérebro cartilaginoso e dizer: “Mas isso! – é forma
esculpida pela luz!” E as paredes do reduto se fechavam um pouco mais.
Quanto aos tabus dos redutos a respeito do que era burguês e não-
burguês, não tardaram a se transformar no próprio sistema nervoso dos
estudantes de arquitetura nas universidades, como se isso estivesse
gravado em seu código genético. À época corria na imprensa a est6ria
bizarra de um bêbado que apontara um revólver para a cabeça de um
batista das montanhas do Tennessee e ordenara que praguejasse contra
Jesus Cristo. A vítima não tinha a menor intenção de se tornar mártir;
na realidade, desejava desesperadamente salvar a própria pele. Mas era
um verdadeiro crente, e não conseguia fazer com que as palavras
saíssem de seus lábios por mais que tentasse, e seus miolos foram
estourados. Deu-se o mesmo com a nova geração de arquitetos aí pelo
fim da década de quarenta. Não havia circunstância em que um cliente
pudesse convencê-lo a incorporar telhados de três águas ou cornijas
italianizadas ou frontões interrompidos ou colunas caneladas ou dintéis
ou qualquer outra peça da bagagem burguesa em seus projetos. Por mais
que tentassem, não conseguiam fazer o lápis desenhar tais formas.
Ó deuses brancos!
Uma fraqueza intelectual – e a salvação – do estudante americano
é ter sido sempre incapaz de ficar quieto ouvindo falar de ideologia e
de suas lógicas e dialéticas rigorosamente construídas. Não a aceitam e
46
não a compreendem. Qualquer possível ligação que os conjuntos
operários ou os ideais antiburgueses tivessem com um programa
político, na Alemanha, Holanda ou qualquer outro lugar, fugia à sua
compreensão. Só percebiam o lado sentimental da coisa. Lembro-me
dos planos ousados que os jovens arquitetos de Yale e Harvard faziam
para o homem do povo no início da década de cinquenta. Esse era o
termo que usavam, homem do povo. Tinham a vaga noção de que o
homem do povo era um trabalhador, e não um executivo de publicidade,
mas tirante isso era tudo Trilby e Dickens. Projetavam coisas para o
homem do povo até os detalhes verdadeiramente íntimos, tais como
interruptores de lâmpadas. O novo homem do povo liberado viveria
como um Asceta Instruído. Seria modelado à imagem do bacharel
boêmio de Greenwich Village dos fins da década de quarenta – camisas
de lã escura de Hudson Bay, paletós de tweed, calças de flanela,
cachimbos de urze branca, sandálias & simplicidade – exceto que iria
viver numa enorme colmeia de vidro e aço, isto é, em um conjunto
habitacional de Estilo Internacional com elevadores, ao invés de um
prédio de quatro andares em arenito pardo sem elevador. Quanto à
ideologia, não é preciso dizer mais. Mas compreenderam em toda a
precisão de implante de agulha estereotáxica o lado criativo dos redutos.
Em Yale os estudantes começaram a reparar que tudo que projetavam,
tudo que o corpo docente projetava, tudo que os críticos-visitantes (que
faziam a crítica dos trabalhos estudantis) projetavam... parecia igual.
Todos desejavam a mesma... “Caixa” ... de vidro e aço e concreto,
substituindo-os ocasionalmente por tijolinhos bege. Isso se tornou
conhecido como "A Caixa de Yale". Desenhos irônicos da caixa de Yale
começaram a aparecer nos quadros. “A Caixa de Yale no Deserto
Mojave” – e lá estava o desenho de “A Caixa de Yale” em meio às
moitinhas de artemísia e as iúcas a nordeste de Palmdale, Califórnia.
“A Caixa de Yale visita o ursinho Puff” – e lá estava o desenho do cubo
de vidro e aço no alto de uma árvore, a casa de brinquedo da criança do
futuro. “A Caixa de Yale em Busca do Capitão Nemo” – e lá estava o
desenho da Caixa de Yale a vinte mil léguas submarinas com um
periscópio no alto e uma hélice atrás. Havia alguma coisa gloriosamente
desvairada nessa estória de A Caixa de Yale! – mas nada se alterou.
Mesmo nos momentos a sério ninguém conseguia desenhar outra coisa
exceto caixas de Yale. A verdade é que a essa altura os estudantes de
arquitetura de todos os Estados Unidos estavam de suas encerrados

47
nessa caixa, a mesma caixa que os arquitetos dos redutos tinham
construído em volta deles na Europa, vinte anos antes.
O apartamento de todo jovem arquiteto, o quarto de todo estudante
de arquitetura, era aquela e aquele santuário. E no santuário havia
sempre o mesmo ícone. Ainda o vejo. A sala de estar era um
espaçozinho mesquinho nos fundos de um prédio sem elevador. O sofá
era um colchão sobre uma porta lisa sustentada por tijolos e coberto
com burel de frade. Havia mais burel de frade à guisa de cortina e no
assoalho um tapete de sisal que deixava marcas cordiformes nas solas
dos pés da pessoa pela manhã. O lugar era iluminado por lâmpadas
térmicas com refletores de alumínio em concha em que se substituíam
as lâmpadas térmicas por lâmpadas comuns. A uma ponta do tapete
havia... a cadeira de Barcelona. Mies a desenhara para o pavilhão
alemão na Feira de Barcelona de 1929. O ideal platônico de cadeira,
puro aço inoxidável e couro de habitação operária, a peça mais perfeita
em matéria de desenho de móveis do século XX. A cadeira de
Barcelona alcançava o preço atordoante de 550 dólares, e isso no
atacado. Quando se contemplava aquele objeto sagrado no tapete de
sisal, sabia-se que se estava em uma casa onde um arquiteto novato e a
jovem esposa tinham sacrificado tudo para trazer para casa o símbolo
da missão divina. Quinhentos e cinquenta dólares! Ela chegara a abrir
mão do serviço de fraldas e estava lavando as fraldas no tanque A coisa
ganhou tais proporções que se eu visse uma cadeira Barcelona, onde
quer que fosse, imediatamente – no clássico estímulo-resposta – sentia
cheiro de fraldas desfraldadas ao vento.
Mas se já tinham a cadeira, por que a mulher ainda estava lavando
as fraldas a mão? Porque uma cadeira era apenas metade do caminho
para Meca. Mies sempre as usava aos pares. O estado de graça, a Cidade
Radiosa, eram duas cadeiras Barcelona, uma de cada lado do tapete de
sisal, diante do sofá de porta, sob a luz dos refletores térmicos.
Se um rapaz sofresse e se sacrificasse dessa forma, cortasse as
gorduras de sua vida mental e revelasse o brilho Mazda no ápice de sua
alma – quem no mundo terreno poderia detê-lo?
Foi por volta dessa época, fins da década de quarenta e início da
de cinquenta, que O Cliente nos Estados Unidos começou a perceber
que algo muito estranho ocorrera com os arquitetos. Em Yale o primeiro
brusco sobressalto – muitos se seguiriam – ocorreu em 1953 com uma
ampliação da Yale Art Gallery. Escassos dez anos antes, às vésperas da
Segunda Guerra Mundial, Yale completara um programa de obras de
48
vastas proporções que transformara o campus universitário em algo tão
próximo a Oxford e Cambridge quanto seria possível à mente humana
conceber de uma hora para outra no sul de Connecticut. Edward
Harkness, sócio de John D. Rockfeller, e John Sterling, que fizera
fortuna com estradas de ferro, doaram a maior parte do dinheiro.
Dezoito fortalezas medievais se ergueram, torre após torre, em estilo
Gótico Universitário, para abrigar dez colégios residenciais (o Yale
Mid-Atlantic para dormitórios), quatro escolas de graduação, uma
biblioteca, uma usina de força, cuja chaminé de contrafortes lembrava
a Catedral de Rheims, um ginásio de dez andares conhecido como a
Catedral do Suor, e a Harkness Tower de vinte e um andares, com um
carrilhão no alto. Todas essas estruturas altaneiras tinham fachadas
rusticadas. O Reflorescimento Gótico foi levado a extremos não só de
usarem armações de chumbo nos caixilhos das vidraças como também
de mandar artesãos soprarem, gravarem e pintarem as vidraças com
desenhos medievais, muitos deles minuciosas representações de figuras
religiosas e animais míticos, e instalá-las a intervalos aparentemente
fortuitos. O resultado foi um campus universitário quase unificado,
arquiteturalmente, a exemplo da Jefferson University na Virginia.
Fossem quais fossem as consequências, Yale tornou-se para os barões
empresariais a imagem do colégio luxuoso para os filhos da elite que
iriam dirigir o novo império americano.
O anexo da galeria de arte, na esquina das ruas York e Chapel em
New Haven, foi o principal projeto de Yale após a Segunda Guerra
Mundial. Nomearam arquiteto um homenzinho grisalho chamado Louis
Khan. Sua maior recomendação era aparentemente ser amigo do diretor
do departamento de arquitetura, George Howe. A galeria existente,
construída vinte e cinco anos antes, era um palazzo italiano de estilo
românico projetado por Egerton Swartwout, um arquiteto de Yale, e
fora custeada por Harkness. Tinha maciças cornijas e um pesado
telhado de ardósia. Do lado da Rua Chapel, abriam-se grandes janelas
emolduradas por arcos duplos de pedra.
O anexo de Kahn foi... uma “caixa” ...de vidro, aço e concreto e
minúsculos tijolinhos bege. Suas maquetes e desenhos deixavam claro
que do lado da Rua Chapel não haveria arcos, cornijas, pedras talhadas,
telhado inclinado – apenas uma parede absolutamente cega de pequenos
tijolos bege vitrificados. Os únicos detalhes discerníveis nessa
superfície lustrosa e lisa seriam quatro cintas estreitas de concreto
(cornijas lineares), a intervalos aproximados de 3m. Aos olhos de um
49
marciano ou do aluno padrão de Yale, mal se poderia distinguir tal
edifício de uma loja de departamentos Woolco em um shopping center.
No principal salão da galeria destinado ao público o teto era um
tetraedro de concreto cinza, inteiramente visível. Isso dava ao interior a
aparência de uma garagem subterrânea.
Os administradores de Yale tiveram um choque. Kahn era
arquiteto há vinte anos, mas fizera pouco mais que trabalhar como
arquiteto-assistente, sob a supervisão de Howe, entre outros; em alguns
projetos habitacionais. Sua aparência também não impressionava
muito. Era baixo. Tinha cabelos ralos, branco-avermelhados, que
apontavam em todas as direções. O rosto era todo retalhado em
consequência de um acidente na infância. Usava camisas amassadas e
ternos pretos. As costas de suas mangas eram lustrosas. Sempre
carregava um charutinho de uma cor infeliz na boca. A gravata
permanentemente frouxa. Era míope, e nas classes em que trabalhava
como crítico-visitante, via-se Kahn segurando a planta baixa de um
aluno medindo quase um metro, a menos de dez centímetros do rosto,
e girando a cabeça sobre o papel como um radar.

A Yale University Art Gallery. O edifício original (direita) construído por Egerton
Swartwout em 1928. O Anexo (esquerda) criado por Louis Kahn vinte e cinco anos depois.

50
Mas isso era apenas exteriormente. Lá no íntimo dessa ruína
parecia haver um cerne forjado de confiança... e destino arquitetônico...
Kahn entrava na sala de aula, encarava os alunos meio cego, abria a
boca... e de suas entranhas saía uma voz notável:
—Todo edifício precisa ter... alma própria.
Certo dia entrou na sala e começou uma aula com as seguintes
palavras:
— A luz... é. — Seguiu-se uma pausa que pareceu durar sete dias,
apenas suficientemente longa para recriar o mundo.
Sua aparência física insólita só tornava esses momentos mais
impressionantes. A paixão visionária do homem era irresistível. Todos
se sentiam esmagados.
Kahn encarou os administradores desse mesmo jeito, e a voz
falou:
— Que querem dizer com “Não tem nenhuma relação com o
edifício existente”? Não compreendem? Não veem? Não veem as
cornijas lineares? Elas expressam as linhas do piso do edifício existente.
Elas revelam a estrutura. Durante um quarto de século, esses pisos
estiveram escondidos pela alvenaria, completamente escondidos. Agora
ficarão à mostra. Agora toda a estrutura ficará à mostra. A forma
honesta — a beleza, como preferem chamá-la — só pode resultar de
uma estrutura visível!
Estrutura visível? Ele disse estrutura visível! Perplexos, mas um
tanto intimidados, como se Cagliostro ou Jacmel Hoongan lhes
falassem, os administradores de Yale cederam ao destino da arquitetura
e aguentaram o tranco como gente grande.
Administradores, diretores, conselheiros, comissões municipais
e diretores executivos vêm aguentando como gente grande desde então.

51
52
IV

FUGA PARA ISLIP

Nesse ponto nos deparamos com uma das ironias da vida


americana no século XX. Afinal, este foi o século americano, no mesmo
espírito em que se poderia considerar o século XVIII o século britânico.
Este é o século em que os Estados Unidos, o jovem gigante, tornou-se
a nação mais poderosa da Terra, inventando os meios de arrasar o
planeta ao acionar um simples botão, mas também os meios de fugir
para as estrelas e explorar o resto do universo. Este é o século em que
os Estados Unidos se tornaram a nação mais rica da história do mundo,
com uma riqueza que alcançou todos os níveis da população. As
energias e os apetites carnais e os prazeres até mesmo das classes
operárias — o próprio termo agora parece antiquado — tornaram-se
enormes, fantásticos, excitantes, absurdos. O carro da família
americana foi um Buick Electra de 6,70m e 425 cavalos com rabo-de-
peixe e dois seios de borrachas preta no para-choque dianteiro. As férias
do entregador de bebidas americano ou de estivador de carga passaram
a ser duas semanas em Barbados com a terceira esposa ou a nova gata.
A convenção da indústria americana passou a ser uma orgia regada a
gim em um coliseu municipal do tamanho da cidade de Roma, e
oferecia no estacionamento carretas estocadas com prostitutas deitadas
em fofos tapetes para uso exclusivo dos membros daquela associação.
O estilo de vida do americano fez o resto da humanidade contemplá-lo
com inveja ou nojo, mas sempre com assombro. Em suma, foi o período
americano de vigorosa turbulência juvenil do tipo que-se-danem eu
quero é me liberar – e qual é a arquitetura que o país tem para mostrar?
Uma arquitetura cujo credo proíbe toda manifestação de exuberância,
poder, império, grandiosidade, e até mesmo animação e leveza de
espírito por serem todos como o máximo do mau gosto.
A gente se prepara para dar um salto incrível por cima dos
telhados do mundo — e ouve um pigarro de concerto.

53
Em suma, o estilo arquitetônico reinante, nessa verdadeira
Babilônia do capitalismo, foi o dos conjuntos habitacionais. Conjuntos
habitacionais, concebidos por um punhado de arquitetos de redutos em
meio aos destroços da Europa no início da década de vinte, erguiam-se
agora por toda parte, sob a forma de anexos de galerias de arte
tradicionais, museus para mecenas, apartamentos para ricos, sedes de
empresas, prefeituras, de campo. Usaram-no para toda e qualquer
finalidade, na verdade, exceto para habitação operária.
Não que habitações operárias nunca tenham sido construídas para
trabalhadores. Na década de cinquenta e início da de sessenta o governo
federal ajudou a financiar a versão americana do Siedlungen alemão e
holandês da década de vinte. Aqui receberam o nome de conjuntos
habitacionais públicos. Mas de alguma maneira os trabalhadores,
mesmo sendo intelectualmente subdesenvolvidos, conseguiram evitar
tais conjuntos públicos. Chamaram-nos simplesmente de “conjuntos”,
e os evitaram como se tivessem mau-cheiro. Os trabalhadores — se por
esse nome nos referimos às pessoas que têm emprego — rumaram ao
invés Dara os subúrbios. Acabaram em lugares como Islip, Long Island
e o San Fernando Valley em Los Angeles, compraram casas com tetos
tradicionais de ardósia e revestimento de tábuas sobrepostas, e nada de
estruturas aparentes se pudessem evitar, com cópias de lampiões a gás
nas entradas e caixas de correio equilibradas em pedaços de correntes
enrijecidas que pareciam zombar da lei da gravidade — quanto mais
engraçadinhos e velhuscos os detalhes, tanto melhor — e encheram
essas casas de “cortinas” que desafiavam qualquer descrição e carpetes
de parede a parede onde se podia perder um sapato, e no quintal
construíram churrasqueiras e tanques com peixes em que urinavam
querubins de concreto, e estacionaram os Buick Electras à porta
enquanto as lanchas-cruzeiro Evinrude descansavam em reboques no
telheiro além.
Quanto aos honestos objetos esculturais projetados para os
interiores das habitações operárias, tais como as cadeiras de Mies e
Breuer, os proletários ou não tomaram conhecimento delas ou as
trataram com desprezo porque eram visivelmente desconfortáveis.
Esses móveis são hoje símbolos de riqueza e privilégio, adaptados
principalmente aos gostos das mulheres de empresários que passam
diariamente no D & D Building, o principal bazar de decoração de Nova
York. O móvel mais famoso de Mies, a cadeira Barcelona, é atualmente
vendida no varejo a 3.465 dólares e somente através de decoradores. O
54
preço exorbitante deve-se em grande parte aos materiais não-burgueses
e honestos da habitação operária: aço inoxidável e couro. Hoje em dia
pode-se encomendar o couro apenas no tom negro ou em tons
castanhos. No início da década de setenta, parece, certos elementos
burgueses andaram mandando fazê-la nas variações mais chocantes...
couro de zebra, peles Holstein, jaguatirica e tecidos bonitinhos.5
As únicas pessoas que continuam presas em conjuntos públicos
hoje nos Estados Unidos são as que não trabalham em lugar algum e
vivem encostadas na previdência social — esses são os únicos
habitantes dos “conjuntos” — e, naturalmente, os ricos urbanos que
moram em edifícios como o Olympic Tower na Quinta Avenida em
Nova York. Desde a década de cinquenta o termo "edifício de alto luxo"
passou a denotar um determinado tipo de prédio de apartamentos que
na realidade não é nada mais que os Siedlungen de Frankfurt e Berlim,
unidades sobrepostas, trinta, quarenta, cinquenta andares de altura, que
são alugadas ou vendidas à burguesia. O que é o mesmo que dizer,
habitação puramente não-burguesa exclusiva da burguesia. Por vezes
as torres são feitas de aço, concreto e vidro; outras, de vidro, aço e
tijolinhos vitrificados brancos ou beges. Mas os tetos são sempre
baixos, com menos de 2,40m, os corredores, exíguos, as salas, estreitas,
mesmo quando são compridas, os quartos, pequenos (Le Corbusier
sempre foi a favor disso), as paredes finas, as portas e janelas não têm
esquadrias, as juntas não têm molduras, as paredes não têm rodapés, e
as janelas não abrem, embora por vezes haja pequenas saídas de ar ou
venezianas. A construção é invariavelmente ordinária tanto no sentido
pejorativo quanto no literal. Que os construtores pudessem apresentar
essas “caixas” na década de cinquenta, descaradamente, como um luxo
e que homens e mulheres bem-educados as aceitassem como luxo — é
um testemunho objetivo dos que são obtusos demais para ironias sobre
o domínio estético da estética de reduto, do Príncipe de Prata e suas
legiões coloniais nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
Todos os instrumentos respeitados de opinião sobre arquitetura e
refinamento, da Domus à House & Garden, afirmaram aos habitantes
da urbe americana que isso é que era viver. Isso era o bom gosto atual;
isso era moderno e não tardou que o Estilo Internacional passasse a ser
conhecido simplesmente como arquitetura moderna. Todos os

5
Robert Venturi, o arquiteto, também encomendou uma em tecido bonitinho no interesse da
"referência irônica" (ver mais adiante).
55
domingos, o The New York Times publicava na seção de design a foto
do mesmo tipo de apartamento. Comecei a pensar nele como aquele
apartamento. As paredes eram sempre imaculadamente brancas e sem
molduras, esquadrias, rodapés e todo o resto. Na sala de estar havia uns
17.000 watts de spots R-40 encaixados em latas brancas e suspensas do
teto, compondo o que se conhece como track lighting. Havia sempre
um conjunto de cadeiras moldadas, abençoadas por Le Corbusier, em
que ninguém nunca sentava porque acertava o incauto na altura dos rins
como um golpe de caratê. A mesa de jantar era uma prancha acetinada
de madeira clara (nada de ornatos nas bordas ou nos pés), cercada por
um conjunto de cadeiras de tubos de aço em forma de S e assento de
palha, projetadas por Mies van der Rohe — a segunda cadeira mais
famosa do século XX, sendo a primeira, a cadeira Barcelona de sua
própria autoria, mas também uma das cinco mais desastrosamente
desenhadas, de tal modo que na altura em que chegava o prato principal,
pelo menos um convidado já caíra de cara no bisque de lagosta. Perto
havia uma palmeira ou uma dracena ou qualquer outra enorme planta
tropical, porque a mobília era tão enxuta e lisa e nua e despojada que se
não houvesse algum exemplar prodigioso e copado de planta vitoriana
cultivada em viveiro a sala parecia absolutamente vazia. O fotógrafo
sempre conseguia colocar a planta no primeiro plano, de modo que a
cena nua além era algo que se espiava através de um arabesco de
vegetação equatorial. (E aquele apartamento continua conosco, todo
domingo.)
E daí se a pessoa vivia num edifício que parecia uma fábrica e
tinha o aconchego de uma fábrica, e pagava uma nota preta por ele?
Todo edifício moderno de qualidade parecia uma fábrica. Essa era a
moda atual. Era só pensar no campus universitário que Mies construíra
para o Illinois Institute of Technology, a maior parte na década de
quarenta. O edifício principal com as salas de aula parecia uma fábrica
de sapatos. A capela parecia uma usina de força. A usina de força em
si, também projetada por Mies, parecia bem mais espiritual (conforme
observaria Charles Jencks), graças à chaminé, que pelo menos se
projetava em direção ao céu. O edifício da escola de arquitetura tinha
armações de aço negro atravessando o telhado de cada lado da entrada
principal, à moda das lavadoras de carros de Los Angeles. Todos os
quatro eram "caixas" de vidro e aço. A verdade era que isso era
inevitável. O estilo do reduto, com os seus tabus não-burgueses,
reduzira de tal modo as opções do verdadeiro crente que todo edifício,
56
e a casa de praia não menos que o arranha-céu, acabava tendo a mesma
aparência geral.
E daí? Os termos caixa de vidro e repetitivo, primeiramente
usados como termos humilhantes, transformaram-se em insígnias de
honra. Mies teve muitos imitadores americanos, Philip Johnson, I. M.
Pei, e Gordon Bunshaft sendo os mais famosos e mais espalhafatoso*
E os mais descarados. Os maledicentes diriam que cada um dos
edifícios de Philip Johnson era uma imitação de Mies van der Rohe. E
Johnson arregalaria os olhos e daria aquele seu maravilhoso sorriso de
falsa inocência e responderia: “Sempre adorei ser chamado de Mies van
der Johnson.” Bunshaft projetara o Lever House, sede empresarial da
companhia de sabões e detergentes Lever Brothers, na Park Avenue O
edifício fez tal sucesso que se tornou o protótipo da “caixa de vidro”
americana, e Bunshaft e sua firma, Skidmore, Owings & Merril fizeram
muitas variações do mesmo projeto. À acusação de que só projetava
“caixa de vidro”, Bunshaft gostava de retrucar: “É verdade, e vou
continuar a projetá-las até fazer uma que eu goste.”
Para um hierofante do reduto, era fácil demonstrar confiança! Que
lhe importava dizerem que estava imitando Mies ou Gropius ou Corbu
ou qualquer um deles? Era o mesmo que acusar um cristão de imitar
Jesus Cristo.
A estrela de Mies subira sem parar desde a sua chegada aos
Estados Unidos em 1938, devido em grande parte à influência de Philip
Johnson. Johnson escolhera Mies como um dos quatro grandes
modernistas na sua mostra do Estilo Internacional em 1932. Em seguida
ajudou-o a emigrar para os Estados Unidos e a conseguir o
extraordinário emprego no Armour Institute. Em 1947, quando a
maioria dos edifícios projetados por Mies para o campus universitário
estavam em andamento, Johnson publicou o primeiro livro sobre sua
obra. Mies estava beirando os sessenta, mas graças a Johnson embarcou
em uma nova e gloriosa carreira nos Estados Unidos. Todavia, com ou
sem Johnson, Mies sabia se arranjar sozinho numa era de redutos de
arte. Fora diretor de arquitetura do Novembergruppe nos idos de 1919;
fundara a revista do grupo, G (de Gestaltung “força criativa”); tornara-
se um exímio propagandista com um talento para aforismos. O mais
famoso era “Menos é mais”, ao qual acrescentou: “Minha arquitetura é
quase nada.” Sua ideia era combinar os elementos usuais dos conjuntos
operários de maneira que fossem austeros e elegantes ao mesmo tempo,
na mesma linha do que hoje se conhece por “minimalismo”.
57
À esquerda: O Lever House projetado por Gordon Bunshaft, a mãe de todas as caixas de
vidra fértil como uma coelha. À direita embaixo: O Seagram Building. Mies levanta uma
casa de operário de trinta e oito andares e as capitalistas a usam como sede de
corporação. Notem-se as cortinas e persianas só são permitidas três posições — baixadas,
erguidas, e meia altura. À direita, no alto: canto do Seagram Building. Vigas de abas
largas em bronze sob medida aplicadas ao exterior para “expressar” verdadeiras
escondidas sob o concreto.

58
Pessoalmente Mies estava longe de ser austero. Era um indivíduo
grande, gordo mas bonitão, que fumava charutos caros. Nada menos
que coronas. Parecia mais um industrial do Ruhr. Era também uma
criatura afável, a tal ponto que até Frank Lloyd Wright gostava dele.
Era o único deus branco que Wright conseguia tolerar.
Em 1958, o único e maior monumento à arquitetura dos redutos
holandeses e alemães foi erguido na Park Avenue, defronte ao Lever
House. Foi o Seagram Building, projetado pelo próprio Mies, com a
colaboração de Philip Johnson como assistente. O Seagram Building
era habitação operária, absolutamente não-burguesa, trinta e oito
andares plantados na Park Avenue para a firma que produzia o uísque
de centeio chamado Four Roses. Combinando com a cor da garrafa de
uísque americana, as vidraças dessa caixa de vidro e aço, a maior de
todas, eram âmbar-escuro. Quanto ao aço exposto, bom, uma vez que
aço âmbar não existia, exceto quando enferrujava, escolheram o bronze.
Não estariam com isso acrescentando cor, como fizera o pobre Bruno
Taut? Não, bronze era bronze; era essa a cor que tinha quando saía da
fundição. Quanto ao vidro, todo vidro acabava adquirindo uma
corzinha, em geral esverdeada. Colorí-lo de âmbar era apenas um
controle de coloração feito pela máquina. Certo? (Além do mais, era
uma obra de Mies.) A exposição do material apresentara um problema.
A visão de Mies da máxima pureza não-burguesa era um edifício
composto apenas de vigas de aço e vidro, com lajes de concreto
formando os pisos e tetos. Mas agora que se encontrava nos Estados
Unidos, deparou-se com os códigos de obras e de prevenção de
incêndios. O aço era fantástico para edifícios altos porque podia
suportar grandes tensões laterais bem como sustentar grandes cargas.
Sua fraqueza era que o calor de um incêndio poderia provocar o
empenamento do aço. Os códigos americanos exigiam que os elementos
estruturais de aço fossem revestidos de concreto ou outro material à
prova de fogo. Isso só retardou Mies um pouquinho. Já resolvera o
problema em Chicago, nos edifícios de apartamentos que construíra em
Lake Shore. O que fez foi revestir os elementos de aço de concreto
conforme exigiam, e revelá-los a seguir, expressá-los, colocando vigas
de abas largas na parte externa do concreto, como se dissesse: “olhe! É
isso que há por dentro.” Mas colocar coisas no exterior dos edifícios...
Não era isso exatamente que se conhecia em outras eras, por ornatos
sobrepostos? Havia algum jeito de se chamar uma coisa dessas de
funcional? Nenhum problema. No cerne do funcional, como todos
59
sabiam, não residia a função mas a qualidade espiritual conhecida por
não-burguês. E o que poderia ser mais não-burguês do que vigas de
abas largas sem adornos, saídas diretamente das manoplas de um
operário de construção.
O único problema que restava era a proteção das janelas: estores,
persianas, cortinas, o que fosse. Mies teria preferido que os grandes
painéis de vidro plano não tivessem proteção alguma. A não ser que se
pudesse induzir todos os edifícios a usá-las da mesma cor (branco ou
bege, naturalmente) e a erguê-las e descê-las ou abri-las e fechá-las ao
mesmo tempo e na mesma altura, porque sempre destruíam a pureza do
desenho exterior. No Seagram Building, Mies chegou o mais próximo
que um homem chegaria de concretizar esse ideal. O inquilino só podia
ter estores ou persianas, e só havia três posições em que poderiam ficar:
baixadas, erguidas, ou à meia altura. Em qualquer outra posição não
paravam de escorregar.
Nada de impulsos intelectualmente subdesenvolvidos, por favor.
A essa altura tal atitude se tornara padrão entre os arquitetos de reduto
nos Estados Unidos. Policiavam igualmente os impulsos dos clientes e
inquilinos. Mesmo depois do edifício terminado e do contrato
cumprido, eles voltavam. Os imitadores de Le Corbusier — e havia
muitos — construíam casas de campo caras em áreas florestadas nos
moldes da Villa Savoye de Corbu, com instruções rigorosas de que os
quartos, sendo no primeiro andar e visíveis apenas aos pássaros, não
tivessem cortinas de tipo algum. Cansados de acordar às cinco da
manhã todo dia à luz do sol de verão, os proprietários penduravam
cortinas brancas. Mas o engenheiro da alma inevitavelmente voltava e
arrancava aqueles trapos ofensivos... e já que estava com a mão na
massa aproveitava para jogar fora aquelas almofadas lindinhas de seda
tailandesa.

Nas grandes torres empresariais, os empregados de escritórios


encostavam arquivos, escrivaninhas, cestas de papel, plantas envasadas,
nos painéis de vidro que iam do chão ao teto, qualquer coisa que
servisse de barreira à sensação de pânico de estarem prestes a despencar
de cabeça nas ruas embaixo. No alto dessas paredes sem solidez
penduravam simulacros de cortinas que pareciam os varais dos cortiços
de Nápoles, qualquer coisa que afastasse aquele sol de ferver os miolos
e escaldar os olhos que incendiavam as vidraças todas as tardes... E
durante a noite os zeladores, a polícia sectária de -Mies cumprindo
60
ordens rigorosas, invadia e arrancava essas patéticas barricadas
erguidas à visão pura dos deuses brancos e do Príncipe de Prata. Com o
tempo, todos desistiram e aprenderam como fizera a haute bourgeoisie,
a aguentar a coisa como homens.
Até aprenderam a aceitar os dois grandes argumentos circulares
dos sectários de Mies. Para os filisteus que ainda eram tão gauches a
ponto de dizer que faltava à nova arquitetura a riqueza de detalhes da
velha arquitetura das Belas-Artes, os elementos de gesso, de metal, a
alvenaria e assim por adiante, os sectários de Mies diriam com
considerável condescendência: “Ótimo. Arranjem-nos artesãos que
façam esse tipo de trabalho e então conversaremos. Eles não existem
mais.” Verdade. Mas por quê? Henry Hope Reed conta que uma vez ia
de carro pela Rua Cinquenta e Três Oeste em Nova York, na década de
quarenta, com alguns empregados da E.F. Caldwell & Cc., uma firma
especializada em obras em bronze e luminárias. Quando o carro passou
pelo Museu de Arte Moderna, os homens começaram a brandir os
punhos para o museu e a gritar: “Esse maldito museu está nos
destruindo! Esses filhos da mãe estão nos matando!” Nos tempos
prósperos da arquitetura de Belas-Artes, a Caldwell empregava mil
serralheiros, marmoristas, maquetistas e projetistas. Agora a companhia
estava resvalando para a insolvência, juntamente com muitas outras
firmas do ramo. Não é que o artesanato estivesse morrendo. Muito ao
contrário, o Estilo Internacional é que estava acabando com a demanda
desses produtos, principalmente na construção comercial. Usando o
mesmo argumento, aos que se queixavam que os edifícios do Estilo
Internacional eram acanhados, tinham paredes demasiado finas interna
e externamente e, de um modo geral, um aspecto ordinário, a resposta
astuta era: “Atualmente é demasiado caro construir em qualquer outro
estilo.” Mas não era demasiado caro, apenas mais caro. O ponto crítico
era aquilo que as pessoas tolerariam ou não esteticamente. Era possível
construir em estilos ainda mais baratos do que o Estilo Internacional.
Por exemplo, a Inglaterra começou a fazer experiências com escolas e
conjuntos habitacionais construídos à semelhança de hangares de
aviões, com metal corrugado preso com cabos de retenção. Os
arquitetos de lá também diziam: “Atualmente é muito caro construir em
qualquer outro estilo”. Talvez um dia desses todo o mundo (tout le
monde) aprendesse a aguentar isso também como homem.
A Comissão de Seleção esteve de prontidão o tempo todo, para
auxiliar no processo. Acabara-se a época de monarcas da importância
61
de um Ludwig II da Bavária, ou de autocratas do mundo dos negócios
como um Herbert F. Johnson da Johnson Wax, que selecionava
pessoalmente os arquitetos para os grandes edifícios públicos. Os
governos e as empresas agora entregavam a tarefa à Comissão de
Seleção. E a Comissão de Seleção tipicamente incluía no mínimo um
arquiteto de prestígio, que, por ter prestígio, era naturalmente um
produto dos redutos. E à medida que chegavam os desconcertantes e
proibitivos projetos dos outros arquitetos de redutos, os vários diretores
e executivos que participavam da comissão se dirigiam confusos ao
arquiteto que os tranquilizava: “Atualmente é caro demais construir em
qualquer outro estilo”. E: “Ótimo. Arranjem-nos os artesãos que façam
esse tipo de trabalho e então conversaremos.” E o círculo se fechou para
sempre. E os mais poderosos entre os poderosos aprenderam a aguentar
a coisa como homens.

Nem mesmo o pessoal que está na pior, os que vivem do seguro


desemprego, presos nas arapucas que são os conjuntos habitacionais,
aguentaram a coisa tão passivamente. O lúmpen-proletariado entrou em
guerra com as legiões do Príncipe Brilhante, e ganhou umas duas
batalhas. Em 1955 inauguraram em St. Louis um imenso conjunto
habitacional chamado Pruitt-Igoe. O projeto, de Minoru Yamasaki,
arquiteto do World TYade Center, ganhou um prêmio do American
Institute of Architects. Yamasaki desenhou-o nas linhas clássicas de
Corbu, concretizando a visão do mestre de altas colméias de aço, vidro
e concreto, separadas por áreas gramadas. Os operários de St. Louis,
naturalmente, não corriam nenhum perigo de se deixarem apanhar em
Pruitt-Igoe. Já tinham levantado acampamento para os subúrbios tipo
Spanish Lake e Cretwood. Pruitt-Igoe foi ocupado principalmente por
migrantes recentes vindos do sul rural. Mudaram-se para os blocos de
quatorze andares de Pruitt-Igoe vindos de áreas dos Estados Unidos
onde a densidade demográfica era de quinze a vinte habitantes por
2,5km, onde a pessoa raramente chegava a mais de três metros do chão
a não ser que trepasse numa árvore.
Em cada andar havia passagens cobertas, em harmonia com a
ideia de Corbu de “ruas suspensas”. Uma vez que não havia no conjunto
nenhum outro lugar onde pecar em público, tudo que talvez acontecesse
normalmente em bares, bordéis, clubes, bilhares, galerias de jogos,
armazéns, paióis de milho, horta de nabos, montes de feno, cocheiras,
62
agora se desenrolava nas ruas suspensas. Os bulevares de Corbu faziam
o Gin Lane de Hogarth parecer uma rua de sonho à beira-mar, em
Southampton, Nova York. As pessoas decentes bateram em retirada,
mesmo que isso significasse viver em buracos nas calçadas. Milhões de
dólares e incontáveis reuniões da comissão e projetos especiais foram
gastos numa tentativa desesperada de tornar o Pruitt-Igoe habitável. Em
1971, a força-tarefa final convocou uma reunião geral de todos que
ainda habitavam o conjunto. Pediram sugestões aos residentes. Foi um
momento histórico por duas razões. A primeira porque pela primeira
vez nos cinquenta anos de história de conjuntos operários, alguém
finalmente pedira dois tostões de opinião ao cliente. A segunda, o coro.
O coro começou imediatamente: “Explodam... o conjunto! Explodam...
o conjunto! Explodam... o conjunto! Explodam... o conjunto!
Explodam... o conjunto!” No dia seguinte a força-tarefa refletiu sobre a
sugestão. Os pobres coitados estavam certos. Era a única solução. Em
julho de 1972, a cidade dinamitou os três blocos centrais do Pruitt-Igoe.

O Conjunto Habitacional de Pruitt-Igoe em St. Louis, 15 de julho de 1972 A humanidade


finalmente chega a uma solução prática para resolver o problema da habitação popular.

63
Essa parte da saga dos conjuntos operários ainda não terminou.
Mal começou. Quase ao mesmo tempo que o Pruitt-Igoe era demolido,
o conjunto Oriental Gardens era erguido em New Haven, a cidade
modelo da renovação urbana nos Estados Unidos. O arquiteto, um dos
membros de reduto do maior prestígio, era Paul Rudolph, decano da
Yale School of Architecture. O departamento de habilitação e
desenvolvimento urbano do governo federal, que custeava o projeto,
saudou o traço audacioso de Rudolph como a visão dos projetos
habitacionais do futuro. O Oriental Gardens era formado de conjuntos
de módulos pré-fabricados. Nunca se acabava com um número maior
de desprivilegiados do que de apartamentos. Podia-se continuar a
acrescentar módulos e a agrupar os coitados dos migrantes até
Bridgeport. O problema era que os módulos não se encaixavam muito
bem. Pelas frestas entravam o frio e a chuva. Portas afora, as que ainda
se abriam, saíram as pessoas respeitáveis que de início tinham entrado.
Por volta de setembro de 1980 só restavam dezessete inquilinos. No
início de 1981, o próprio departamento que o financiara, o HUD,
começou a demoli-lo.
Outros monumentos americanos em homenagem aos conjuntos
operários da Europa Central da década de vinte começaram a se
desmoronar por contra própria. Havia gigantescos ginásios esportivos e
centros de convenções, tais como o Hartford Civic Center, com telhados
planos. A neve foi demais para eles — mas sofreram um colapso
piedoso, prestando ao caírem homenagem ao dito de que os telhados
inclinados eram burgueses.

64
V

OS APÓSTATAS

Segundo a sua versão da história, Edward Durell Stone, um dos


primeiros arquitetos do Estilo Internacional nos Estados Unidos,
embarcou em um avião em Nova York com destino a Paris, certa noite
de 1953, e viu-se sentado ao lado de uma mulher chamada Maria Elena
Torchio. O pai da moça era um arquiteto italiano; a mãe nascera em
Barcelona; e Maria, Stone gostava de dizer, era “explosivamente
latina”. Apaixonou-se por ela durante a travessia do Atlântico e pediu-
a em casamento quando sobrevoava o Canal da Mancha. Mas ela não
cedeu assim tão depressa. Para começar, achou que as roupas dele
pareciam as de um professor universitário. E não morria de amores
pelos edifícios que construía, tampouco. Eram edifícios muito
cautelosos, muito contidos, um tanto frios, um tanto sem vida, e verdade
seja dita... não eram lá muito explosivamente latinos...
Em 1954 Stone se casou com Maria Elena Torchio e mudou por
inteiro o seu estilo e criou as formas luxuosas e ornamentais da
embaixada americana em Nova Déli, com suas grades de concreto e
mármore, suas colunas de aço revestidas de folha de ouro, seus jardins
aquáticos cortados por ilhas, ilhotas e ilhéus curvilíneos. Imaginava a
embaixada como o seu “Taj Maria”. O que aconteceu a Stone no mundo
da arquitetura após desvelar o Taj — folha de ouro? — nos deu uma
visão do reverso da paixão dos redutos. Mostrou-nos o destino do
apóstata.
Stone era o homem que desenhara a primeira casa em Estilo
Internacional da Costa Leste, a Casa Mandel em Mount Kisco, Nova
York, em 1933. (Um emigré austríaco, Richard Neutra, construíra uma
em Los Angeles, a Casa Lovell, em 1928.) Em 1934 Stone ergueu a
segunda casa em Estilo Internacional em Mount Kisco, a Casa
Kowalski, e a comunidade se rebelou e mudou o código de obras local
para pôr um fim à frustrante infestação. Até aí, tudo bem; uma
65
rejeiçãozinha de parte dos filisteus prestava bons serviços a um
arquiteto no reduto. As credenciais de Stone eram tão impecáveis, de
fato, que o Museu de Arte Moderna o escolheu como arquiteto,
juntamente com Philip L. Goodwin, para construir o seu prédio da Rua
Cinquenta e Três Oeste, quase na esquina da Quinta Avenida, no local
onde antes se erguiam os palacetes de John D. Rockefeller, Jr. e do
próprio John D. Ali se ergueria o edifício-modelo do museu para
mostrar a toda Nova York o Estilo Internacional. Stone fora escolhido
para conceber a aula-objeto, a nave-capitânea da Utopia, Ltda. No
momento em que a embaixada de Nova Déli foi inaugurada, o le monde
da arquitetura elegante, o que equivale dizer, o mundo dos redutos
europeus que tinham suas bases nas universidades, largou Stone como
se ele fosse um vigarista. Ouro aqui e Luxuoso lá e mármore acolá e
curvas por toda a parte... Que coisa tão bur... Não, era burguesa ne plus
ultra. Não havia hipótese nem do próprio Mies, mestre da viga de abas
largas em bronze, arranjar argumentos para escapar ileso de uma
produção dessas. E o que era mais mortificante é que Stone nem mesmo
tentou argumentar. Deu adeuzinho ao Estilo Internacional. Aos críticos
do seu Kennedy Center em Washington, uma versão grandemente
ampliada do Taj Maria, Stone retorquiu que o edifício representava
“2.500 anos de cultura ocidental e não 25 anos de arquitetura moderna”.
O homem nem chegava a ser relapso. Era pura e simplesmente um
apóstata. Renunciara aos princípios fundamentais.
Classicamente, a sina do apóstata é aquela maldição conhecida
por anátema. No mundo da arquitetura, entre aqueles que estavam em
posição de construir ou destruir reputações, todo edifício que Stone
projetou a partir de então foi sepultado em excomunhão. Quando o
Museu de Arte Moderna decidiu erguer um da Rua Cinquenta e Três
Oeste, não havia uma chance em mil de Stone ser escolhido para
ampliar o próprio projeto. A tarefa coube ao arquiteto de reduto mais
em voga, Philip Johnson, agora formado pela escola de arquitetura de
Harvard, quiçá ainda aos pés do Príncipe de Prata. Em uma das
reviravoltas mais simpáticas da história da arte americana, ao invés,
Stone foi escolhido por Huntington Hartford para projetar sua Gallery
of Modern Art, a nove quarteirões de distância do Columbus Circle.
Hartford era um independente na cena artística, colecionador de pré-
rafaelitas e de Salvador Dali, para mencionar apenas dois de seus gostos
fora de moda. Estava construindo um museu especificamente para
desafiar a Utopia, Ltda. e todas as suas obras. Lembro-me vividamente
66
dos risinhos maquinais, do revirar de olhos que a menção do edifício de
Stone para Hartford provocava à época. As críticas dos colunistas de
arquitetura foram bastante más. Mas nem mesmo termos como “kitsch
para os ricos” e “pirulitos de mármore” transmitem a maligna atmosfera
psicológica em que Stone se viu. Por fim, ficou reduzido a retrucar
coisas do gênero “Qualquer chofer de táxi de Nova York lhe dirá que é
o edifício favorito dele”. Depois de tudo que fez! De uma vida inteira!
— ser acuado, finalmente, ao último refúgio populista de um Mickey
Spillane ou de uma Jacqueline Susan... Ó Senhor! Anátema!

Os dois Stones 1939: Edward Durell Stone, o verdadeiro crente, projeta o edifício do Museu
de Arte Moderna (esquerda). 1964: Edward Durell Stone, o apóstata, faz a Gallery of
Modern Art para Huntington Hartford. “Pirulitos de Mármore!” bradaram os verdadeiros
crentes.

67
É de se notar que os negócios de Stone não entraram em colapso
a partir da apostasia, apenas seu prestígio foi afetado. O Taj Maria
operou milagres na sua clientela em termos comerciais. Afinal, o Estilo
Internacional era bem odiado até por aqueles que o encomendavam.
Havia ainda outros que de saída se dispunham a chegar a extremos para
não ter qualquer relação com ele. Ficavam bastante satisfeitos de
encontrar um arquiteto com credenciais modernistas, mesmo que
tivesse cometido deslizes, que quisesse lhes oferecer outra coisa. Mas
em termos de reputação na fraternidade, Stone era veneno. Colocara-se
aquém de qualquer cogitação séria. Abandonara a corte. Estava fora do
jogo.
A experiência de Eero Saarinen foi semelhante, embora as
hostilidades não tenham sido tão virulentas. Saarinen pertencia a uma
aristocrática linhagem de arquitetura modernista. O pai, Eliel, era um
arquiteto finlandês muitas vezes comparado aos Dissidentes de Viena.
Saarinen fora arquiteto do Estilo Internacional convencional até 1956,
quando projetou o terminal da Trans World Airlines no Aeroporto
Idlewild (hoje Kennedy) em Nova York. O edifício foi construído com
materiais convencionais, vidro, aço e concreto, mas parecia
inequivocamente... uma águia. Seu terminal para o Aeroporto Dulles
em Washington era a escultura ainda mais escandalosa de um pássaro
em voo com sugestões de pagode... O ringue Ingalls para hóquei no gelo
em Yale lembrava uma baleia ou uma tartaruga. (Não são os primeiros
animais que o hóquei no gelo traz à lembrança, mas vá lá.) No caso de
Saarinen, as formas curvilíneas eram o menor dos males. O homem
degenerara para uma espécie de zoomorfismo hindu. Saarinen decidira
trilhar um caminho próprio, numa franca diligência para se tornar o
gênio singular da arquitetura do século XX. Declarou que gostaria de
conquistar “um lugar na história da arquitetura”. Escolhera a era errada.
Havia gênios na arquitetura, mas não podiam ser singulares. Tinham
que fazer parte de um reduto, de um “consenso”, para usarmos um
termo de Mies. O mundo dos redutos simplesmente observou-o
desaparecer nas pantanosas brumas zoomórficas. Raras vezes o
atacaram diretamente, como aconteceu com Stone. Foi banido de
cogitação, e ponto final. Lembro-me de ter escrito um artigo para a
revista Architecture Canada em que mencionei Saarinen em termos que
indicavam que era digno de estudo. Encontrei um dos articulistas de
arquitetura mais conhecidos de Nova York em uma festa, e ele me
puxou de parte para me dar uns conselhos paternais.
68
— Gostei do seu artigo — falou — e concordo com o seu ponto
de vista, em princípio. Mas preciso lhe dizer que só irá prejudicar a sua
causa se usar Saarinen como exemplo. As pessoas simplesmente não
vão levá-lo a sério. Quero dizer, Saarinen...
Gostaria de poder de alguma forma descrever a expressão de seu
rosto. Era um misto de desdém e sacudir de ombros em que os franceses
são tão bons, a expressão que indica que o assunto é tão outré, tão
infradesprezível, tão de la boue, que não se pode nem perder tempo
analisando-o sem se contaminar.

O teto alado de Eero Saarinen ara o Dulles International Airport (no alto) e o
seu terminal em forma de águia para o TWA enfureceram os modernistas. A
originalidade do traço se tornara um pecado capital.

69
O princípio ilustrado pelo caso Saarinen foi o seguinte: nenhum
arquiteto poderia conquistar uma grande reputação fora dos redutos,
que agora se encontravam sediados nas universidades. O arquiteto que
insistisse em seguir um caminho próprio não tinha a menor chance de
ser saudado como pioneiro de uma nova e importante corrente. Na
melhor das hipóteses, poderia esperar que o considerassem acêntrico,
tais como Saarinen ou os arquitetos de Oklahoma, Bruce Goff e Herbert
Greene. (Já de saída Oklahoma não era um ponto de observação tão
fantástico assim.) Na pior das hipóteses seria um apóstata,
anatematizado, como Stone.

Stone e Saarinen, a exemplo de Frank Lloyd Wright, Goff e


Greene, eram americanos demais, o que significava ao mesmo tem po
provincianos demais (não faziam parte do Estilo Internacional) e
burgueses demais. De alguma maneira eles realmente contribuíam para
a exuberância barroca da civilização americana. Quando Stone projetou
o Kennedy Center em Washington com um saguão da altura de seis
andares e 192m de comprimento — tão grande, comentou um jornalista,
que teria feito o arremesso mais poderoso de Mickey 'Mantle parecer
apenas uma bolinha longa — consideraram-no uma obscenidade. Stone
na realidade estava lisonjeando a megalomania americana.
Estimulando a basbaquice bárbara. Enaltecendo os sentimentos de
grandiosidade d'O Cliente.
Naturalmente era difícil pôr tudo isso em palavras. Donde o
sacudir de ombros e aquela expressão, que ainda vigoram hoje em dia.
De que outra maneira tratar as basbaquices bárbaras dos principais
arquitetos de hotéis, tais como Morris Lapidus e John Portman?
Provavelmente nenhum arquiteto jamais se empenhou tanto para captar
o espírito da riqueza e do encanto americano do pós-guerra do que esses
dois homens: Lapidus, com os seus hotéis Americana e Eden Roc em
Miami Beach; Portman, com os seus Hyatts espalhados por todo o país.
A obra deles era tão impressionante e em escala tão vasta que era
impossível aos colegas arquitetos ignorá-la. Então assumiam aquela
expressão. Portman ganhou um sacudir de ombros e aquela expressão.
Lapidus, aquela expressão e uma risota.
Lapidus começara a carreira no teatro e daí fora para Columbia
estudar arquitetura, com a ideia de ser cenógrafo. Terminou arquiteto.
Não se deteve nem um momento com debates sobre materiais honestos
70
e estrutura aparente. Sua visão permaneceu teatral do princípio ao fim.
Tinha uma abordagem americana à Rimsky Korsakov que era, a seu
modo, tão completa e monolítica, quanto a de Gropius ao modo dele.
Quando Lapidus projetava um hotel de férias, desenhava tudo, até o
galão nas jaquetas dos garçons, embora os incorporadores raramente
fossem meticulosos na execução de tais detalhes. Seu saguão para o
Americana Hotel em Miami Beach, com uma floresta tropical enfiada
em um cone de vidro, ombro a ombro com uma versão. Duas Semanas
na Flórida da grande escadaria da Ópera de Paris — bom, ali estava a
opulenta vida americana do pós-guerra, numa única e espalhafatosa e
grandiosa imagem.
Em 1970 a obra de Lapidus foi escolhida para tema de uma mostra
e debate da Architectural League of New York intitulada: “Morris
Lapidus: a arquitetura do prazer.” Habitualmente isso era uma honra.
No caso de Lapidus ficou difícil dizer o que era. Convidaram-me para
participar da mesa — provavelmente, quando me lembro agora, na
esperança de que apresentasse uma perspectiva "pop". (Essa tal de
"pop" já passara a ser uma das maldições da minha vida.) A atmosfera
do debate foi um tanto artificial e constrangedora — Lapidus em pessoa
apareceu na plateia. Seu trabalho estava sendo encarado mais como um
fenômeno pop do que como arquitetura, a exemplo do que acontecia
com Dick Tracy ou com os filmes de Busby Berkeley. Passei o tempo
todo tentando meter meus dois tostões sobre o problema geral da
representação do poder, da riqueza e da exuberância americanos na
arquitetura. Foi o mesmo que falar de numerologia no Yucatán. O mal-
estar inicial passara e os arquitetos reunidos começaram
previsivelmente a desancar o trabalho de Lapidus. Ao final, o próprio
Lapidus se levantou e disse que os soviéticos certa vez o convidaram a
ir à Rússia projetar casas populares e tinham ficado satisfeitos com os
resultados. Em seguida sentou-se. Ninguém entendeu nada, a não ser
que aquilo fosse uma reivindicação desesperada de algum redentor
significado social... que o tornasse menos radiativo em um mundo
arquitetônico que sucumbira aos hotéis, edifícios de luxo, escolas e
sedes empresariais estilo conjunto habitacional operário.
De lá para cá, John Portman ocupou o lugar de Lapidus. Seus
gigantescos hotéis, verdadeiras zigurates babilônicas, com saguões de
trinta andares, jardins suspensos e elevadores de cristal, tiveram maior
sucesso que qualquer outro gênero de arquitetura para firmar o estilo do
centro de cidade, do glamour urbano nas décadas de setenta e oitenta.
71
Mas nos redutos universitários — não e que ela atacado... ele
simplesmente não existe. É invisível. Assume es contornos indefinidos
do arquiteto folclórico. Torna-se uma versão extremamente comercial
(e portanto irredimível) de Simon Rodia, que construiu o Watts Towers.
Afinal o que era um saguão-zigurate Hyatt senão uma produção Watts
Tower com a ajuda de corretores hipotecários e elevadores
automáticos?

O saguão do Hyatt Regency O’Hare Hotel próximo ao O’Hare Airpot em Chicago de


autoria de John Portman. A exuberância americana de Portman foi mais do que os filhos
do Príncipe de Prata conseguiram engolir.

72
Nos redutos universitários não havia hipótese de um arquiteto
conquistar prestígio com uma arquitetura que fosse totalmente singular
ou especificamente americana em espírito. Nem mesmo Wright
conseguiu tal feito — nem mesmo Wright com a mais fantástica
produção de obras da história da arquitetura americana. De 1928 a 1935,
apenas dois projetos de Wright foram construídos. Mas em 1935 ele
edificou Fallingwater, uma residência para Edgar J. Kaufmann, Sr., pai
de um de seus aprendizes. Essa estrutura de lajes de concreto, ancoradas
na rocha e que se projetam sobre uma cascata nas montanhas da
Pennsylvania, foi o começo da última fase da carreira de Wright. Tinha
sessenta anos de idade, então. Nos vinte e três anos seguintes, até
morrer, em 1959, com a idade de noventa e um anos, ele produziu mais
da metade da obra de sua vida, mais de 180 edifícios, inclusive a sede
das Ceras Johnson em Racine, Wisconsin, a mansão de Herbert F.
Johnson, Wingspread, em Taliesin West, o campus universitário
Florida Southern, as casas usonianas, o Price Company Tower e o
Museu Guggenheim. Nos redutos universitários isso granjeou para
Wright uma reputação semelhante à de Andrew Wyeth no mundo da
pintura: tudo bem em termos de velharia.
De certa forma, a própria produtividade de um homem como
Wright, Portman ou Stone era um ponto contra, dada a nova atmosfera
intelectual nas universidades. Ah, não era nada difícil, supunha-se, sair
em campo e lisonjear, seduzir e dançar para os clientes e ganhar
contratos para construir edifícios. Mas o indivíduo corajoso era aquele
que permanecia no reduto, mantinha-se na órbita universitária e
arriscava os primeiros dez, vinte anos de sua carreira na competição
intelectual, fazendo um edificiozinho ocasional, quando aparecesse
uma boa oportunidade à moda de Corbu: uma casa de verão para um
amigo, uma ampliação para a casa de algum membro do corpo docente
e — se tudo mais falhasse — aquela velha possibilidade sempre à mão,
do asilo para mamãe, que ela custearia. Já não bastava construir prédios
extraordinários para o mundo ver. O mundo podia esperar. Agora era
necessário ganhar a competição que se realizava unicamente no âmbito
da arquitetura acadêmica.
Tanto assim que nas artes maiores americanas o prestígio era
agora determinado pelas igrejinhas ao estilo europeu. Por volta de
meados da década de sessenta, o caso da pintura era realmente grave. O
reduto dos expressionistas abstratos conseguira se manter no poder uns
dez anos, mas depois disso novas teorias, novos redutos, novos códigos
73
começaram a se suceder uns aos outros numa corrida alucinada. Arte
Pop, Arte ótico-cinética, Minimalismo, Abstração Linear, Cores Puras,
Arte Ecológica, Arte Conceitual — a parcialidade natural dos redutos
com relação ao que era arcano e frustrante ultrapassou todos os limites
conhecidos. O espetáculo era uma coisa de doidos, mas os jovens
artistas tendiam a acreditar — e corretamente — que era possível chegar
a uma posição proeminente sem entrar no jogo. No campo da música
séria, o caso era ainda mais desesperador; de fato, era praticamente
terminal. Nos redutos universitários, os compositores tinham se tornado
tão ultra-Schoenberguianos, tão exoticamente abstratos que mais
ninguém do mundo demonstrava o menor interesse, e muito menos
compreensão, no que ocorria. Nas cidades, nem mesmo o exército de
Gideão que se conhece por “público frequentador de concertos” se
sentia atraído por um só programa de música contemporânea. E eles só
aconteciam nas salas de concerto universitárias. Aqui no campus
universitário o programa começa com “Maple Leaf Rag” de Scott
Joplin, seguido de uma das primeiras composições de Stockhausen
“Punkte”, e depois dos “Ensembles for Synthesizer” de Babbitt, um
toque de Easley Blackwood e Jean Barraqué para variar um pouco, e a
apresentação obrigatória de algo diferente ou, como dizem, de uma peça
“conjectural” para piano, metais, sintetizador Moog e computador, de
Iannis Xenakis. O programa termina com “You Gotta Be Modernistic”
de James P. Johnson. Joplin e Johnson, naturalmente, são
aconchegantes e familiares como um acalanto, mas são essenciais ao
programa. As mesmas trinta e cinco ou quarenta alminhas, todas
pertencentes ao corpo docente e discente da universidade, constituem a
plateia de todo evento de música contemporânea. O medo indizível é
que nem elas compareçam a não ser que lhes prometam um docinho no
início e um docinho no. fim. Os números de Joplin e Johnson são bem
aceitos porque os dois eram pretos e pouco apreciados como
compositores sérios em sua época.
Os coreógrafos mostraram-se lentos em compreender a ideia do
reduto, talvez porque a dança sempre parecera, por sua própria natureza,
uma representação. Mas por volta da década de sessenta já tinham
recuperado o tempo perdido. George Balanchine, o coreógrafo russo
que emigrara para os Estados Unidos, via Paris, em 1934, por volta de
1962 já estava encenando balés neoclássicos abstratos no Lincoln
Center. Coreógrafos tais como Merce Cunningham e Yvonne Rainer
puseram-se a eliminar todos os traços de sexualidade da dança, mesmo
74
na simples classificação de papéis masculinos e femininos, todos os
traços de narrativa, cenário e figurinos, até mesmo todos os traços de
música como fonte de marcação de dança. Na realidade, indivíduos de
todas as artes pareciam obcecados com a criação de igrejinhas, com a
proposta de frustrar a burguesia, por menos prováveis que parecessem
as possibilidades. Por exemplo, a fotografia sempre parecera uma forma
de expressão dotada de uma implacável obviedade. Mas os fotógrafos
e seus teóricos, a exemplo de John Szarkowski, curador de fotografia
da Utopia, Ltda., começou a descobrir uma maneira de contornar esse
obstáculo. Braque não exigira o reconhecimento de que a pintura não
passava de uma disposição de formas e cores numa superfície plana?
Ou seja, não transformara em virtude o que sempre parecera um
defeito? Claro que sim. Portanto agora Szarkowski & Co.
transformavam em virtude o que sempre fora considerado defeito em
fotografia: falta de nitidez, perspectivas grotescas, cores irreais,
imagens cortadas pela moldura do filme, e assim por diante. Realizaram
seu objetivo: conseguiram tornar a fotografia absolutamente frustrante
para os que não estivessem dispostos a entrar no reduto e aprender as
teorias e os códigos.
Igrejinhas! Redutos! Códigos! Novos arcanos! A moda europeia
provou ser irresistível. Até os romancistas. O carro-chefe da ficção
americana no século XX fora o romance e o conto realista. O romance
realista americano da década de trinta alcançara considerável prestígio
na Europa, precisamente devido ao seu rústico vigor animal. Os
realistas americanos pareciam tão livres e dionisíacos quanto os
músicos de jazz. Mas no fim da década de sessenta os jovens escritores
americanos mais talentosos da universidade — e poucos escritores
novos vinham de qualquer outra parte — agora tendiam a encarar o
romance realista como uma forma irremediavelmente antiquada e
primitiva. Saíram expurgando de sua obra todos os diálogos realistas,
cor local, questões sociais, ou outras facetas da vida real. Procuraram
escrever fábulas modernas ao estilo dos mestres contemporâneos
europeus, tais como Kafka, Zamyatin e os dramatistas Pinter e Beckett
O século XX, o século americano, já transcorrera agora dois terços
— e o complexo colonialista estava mais forte que nunca. Os jovens
filósofos nas universidades andavam completamente embasbacados
com a moda francesa das pseudo-abordagens analíticas da filosofia, tais
como o Estruturalismo e o Desconstrutivismo. A ideia era que as velhas
preocupações “idealistas” da filosofia do século XIX — Deus,
75
Liberdade, Imortalidade, o destino do homem — eram
incorrigivelmente ingênuas e burguesas. A preocupação certa da
filosofia era a natureza do significado. Ou seja, a preocupação certa da
filosofia eram os arcanos da própria igrejinha filosófica. Numa era em
que as guerras tinham se tornado tão abrangentes que eram conhecidas
como guerras mundiais — em que as pessoas se concentravam em
metrópoles de escala e complexidade nunca antes imaginadas pelo
homem — em que os conflitos raciais começaram a sacudir a
estabilidade do globo em que o homem usurpou o poder divino de
mergulhar o mundo na destruição — numa era dessas, qual era a
preocupação dominante dos filósofos americanos? Ora, era a mesma
dos filósofos franceses a quem eles idolatravam. De dia, os
estruturalistas construíam a estrutura do significado e ponderavam
sobre o significado da estrutura. De noite, os desconstrutivistas
demoliam o edifício intelectual. E no dia seguinte os estruturalistas
recomeçavam tudo de novo...
Ó fiéis colonos!
Não era necessário nem à pessoa mais culta preocupar-se muito
tempo com a filosofia, a pintura ou a música contemporânea. No caso
da música, era óbvio que não era necessário nem mesmo se preocupar.
Mas o caso da arquitetura era bem diferente. Não havia a menor
hipótese de evitar os modismos dos redutos de arquitetura, por mais
esotéricos que se tornassem. Na arquitetura, a moda intelectual era
exibida de cinquenta a cem andares de altura nas cidades e em
infindáveis perspectivas pintadas por de Chirico nos shopping malls dos
novos subúrbios americanos.
O conjunto habitacional.

76
VI

OS ESCOLÁSTICOS

E que arquitetos aqui na colônia, cinquenta anos depois iria mudar


as coisas? Que arquiteto, enquanto a Águia proclamava sua supremacia
no século XX, ousaria projetar para os Estados Unidos algo além de
homenagens à habitação operária da Europa Central da década de vinte?
Para sermos justos, não era simplesmente uma questão de ousadia,
conforme demonstrara a experiência de Stone e Saarinen. Não, a única
maneira de provar a própria originalidade e ser respeitado, era agir com
infinita sutileza e consumado respeito pelas conveniências. E deixar
para lá a construção de edifícios. A nova estratégia foi demonstrada pela
primeira vez em 1966 por um arquiteto de quarenta e um anos de idade,
Robert Venturi, que não chegara a construir meia dúzia de edifícios na
vida.
Venturi publicou um livro intitulado Complexity and
Contradiction in Architecture que fazia parte de uma série do Museu de
Arte Moderna sobre “os alicerces teóricos da arquitetura moderna”.
O ensaio de Venturi parecia, num exame superficial, pura
apostasia. Ele pegou o famoso ditado de Mies “Menos é mais”, e o virou
de pernas para o ar. “Menos é chato”, disse. Exigia uma “vitalidade
desordenada” para substituir a “unidade óbvia” do modernismo,
elementos “híbridos” para substituir os elementos "puros" do
modernismo; preferia o torto ao direito, o ambíguo ao explícito, o
inconsistente e equívoco ao direto e claro, “ambos e” ao "ou um... ou
outro , ao “preto ou branco”, “riqueza de expressão” à "clareza de Em
A Significance for A & P Parking Lots ou Learning from Las Vegas e
“Learning from Levittown” ele e seus colaboradores, Denise Scott
Brown e Steven Izenour, diziam onde se poderia encontrar a necessária
“vitalidade desordenada”. As deixas vinham da arquitetura “vernácula”
dos Estados Unidos na segunda metade do século XX. “A Rua Central

77
é quase aceitável”, segundo um dos seus ditados. E também o eram os
projetos habitacionais (Levittown) e as faixas comerciais (Las Vegas).
Venturi parecia estar dizendo que já era hora de afastar a
arquitetura do mundo elitista das universidades — dos redutos— e
torná-la de novo conhecida, confortável, aconchegante, e atraente para
as pessoas comuns; e tirá-la do nível da teoria devolvendo-a ao terreno
comprometedor e inconsistente e todavia fértil da vida real.
Era por essa razão que as pessoas se sentiam tão frustradas com
os edifícios de Venturi em si. Havia pouquíssimos edifícios de Venturi,
compreensivelmente, uma vez que era jovem e rebelde. (Um era da
Mamãe.) Na época em que Complexity and Contradiction in
Architecture foi publicado, seu único edifício de porte era o Guild
House, um conjunto quaker de apartamentos para idosos em Filadélfia.
Para um jovem tão direto (entre os arquitetos, qualquer pessoa com
menos de cinquenta anos era jovem), Venturi trabalhava de uma
maneira um tanto... experimental. Se estava se afastando do
modernismo, recuava meio sem jeito, com passinhos miúdos e pisadas
leves. De fato, o Guild House apresentava uma semelhança
curiosamente intensa com a Frente Vermelha de Bruno Taut! — o
conjunto operário construído em Berlim trinta e sete anos antes. E
Bruno, apesar do ocasional lapso no bom gosto, como por exemplo usar
cores, dedicara a vida a fazer tudo certinho dentro do figurino ortodoxo.
À primeira vista, as palavras de Venturi pareciam rebeldes. Mas seus
projetos nunca passaram de obras tímidas.
Uma pista para esse enigma era o fato de Complexity and
Contradiction ter sido publicado numa série do Museu de Arte
Moderna. Em Utopia, Ltda., não se publicavam livros sobre “os
alicerces teóricos da arquitetura moderna” escrito por apóstatas.
As credenciais acadêmicas de Venturi eram excelentes. Estudara
arquitetura em Princeton e integrava o corpo docente de Yale. A
exemplo do amigo Louis Kahn, também estudara um ano em Roma
como bolsista da American Academy. Na realidade, Venturi era o
clássico intelectual-arquiteto da nova era: jovem, esguio, fala macia,
calmo, irônico, urbano, educadíssimo, charmoso com a dose certa de
reticência, sofisticado nos usos e estratégias da arquitetura moderna,
capaz de misturar palavras simples a eruditas, referências históricas do
tipo mais esotérico — Lutyens, Soane, Vanbrugh, Borromini — a
referências mais banais — quadros de avisos. sinais elétricos, shopping-
centers, caixas de correio de portão. Complexity and Contradictions
78
apareceu com endossos comoventes e até ligeiramente pomposos sob a
forma de uma apresentação assinada pelo eminente historiador da
arquitetura, Vincent Scully, e de um prefácio de Arthur Drexler, curador
de arquitetura do Museu de Arte Moderna. Scully disse que a obra de
Venturi “parece adquirir um status trágico na tradição de (Frank)
Furness, Louis Sullivan, Wright e Kahn”. (O elo trágico entre os quatro,
pelo que se pode concluir do texto de Scully, é que em alguma época
todos tiveram que trabalhar na Filadélfia.

O Hufeisen Siedlung em Berlim, 1926, projetado por Bruno Taut (no alto) e o Guild House
em Philadelphia, 1963, de Venturi. Foram preciosos trinta e sete anos para chegarmos a
esse ponto.

79
Examinado com maior atenção, o tratado de Venturi afinal não é
nenhuma apostasia mas, ao invés, saltos ágeis e brilhantes do alto do
muro que cerca o reduto. Para começar, ele o chama de um "suave"
manifesto. Mas manifestos não são suaves. São mandamentos, trazidos
do alto da montanha, ao ribombar do trovão. Na realidade, Complexity
and Contradiction não é manifesto algum; Venturi não tenta retirar a
divindade da arte e a autoridade do gosto da sede social. Ele assinala
isso desde o início:
“Gosto de complexidade e contradição em arquitetura. Não gosto
da incoerência ou arbitrariedade da arquitetura incompetente nem das
preciosas filigranas do pitoresco ou do expressionismo.” Tradução: eu,
tanto quanto vocês, sou contra o que é burguês (pitoresco, precioso,
intrincado, arbitrário, incoerente e incompetente). Além disso, tanto
quanto vocês, não tenho interesse no que é meramente excêntrico (ao
estilo de Saarinen ou de Mendelsohn). Venturi continua: “Ao invés, falo
de uma arquitetura complexa e contraditória baseada na riqueza e
ambiguidade da experiência moderna, inclusive naquela experiência
que é inerente à arte.” Essa é por sinal a frase mais importante do livro.
Inclusive naquela experiência que é inerente à arte. Tradução: tanto
quanto vocês, estou trabalhando aqui entre essas quatro paredes. Ainda
sou membro do reduto. Não se preocupem, as complexidades e
contradições que vou lhes mostrar com sua “vitalidade desordenada”,
não serão recolhidas das tolices do mundo exterior (exceto,
ocasionalmente, para obter efeitos espirituosos) mas da nossa própria
experiência enquanto filhos do Príncipe de Prata, daquela experiência
que é inerente à arte; ou seja, das lições esotéricas de Mies, Corbu e
Gropius sobre a arquitetura moderna em si. Vou lhes mostrar como
fazer arquitetura que divirta, encante, cative outros arquitetos.
Essa foi, então, a genialidade de Venturi. Conduziu o modernismo
à sua era escolástica. A Escolástica na Idade Média era a teologia que
testava a sutileza dos outros teólogos. A Escolástica do Século XX era
a arquitetura para testar a sutileza dos outros arquitetos. Venturi tornou-
se o Roscellinus da arquitetura moderna. Roscellinus, um dos
escolásticos mais brilhantes, andou beirando a heresia e a excomunhão,
sugerindo que a lógica absoluta talvez exigisse que sendo Jesus Cristo,
Deus e o Espírito Santo triunos (a doutrina da Trindade), então Deus e
o Espírito Santo também possuíam corpo, orelhas, dedos dos pés, tudo
enfim. Mas não foi excomungado, e não foi considerado herege. Estava
apenas levando a lógica ao seu limite e fazendo-a dar uns saltos
80
ornamentais e, é de se presumir, procurando fazer seu nome. Nem por
um instante questionou a divindade de Deus ou a existência da
Trindade. E aqui temos Venturi e, pelo que nos diz respeito, a
arquitetura Pós-Moderna, como é em geral conhecida.
Nem por um instante Venturi questionou as premissas
fundamentais da arquitetura moderna; ou seja, que se destinava ao
povo; que deveria ser não-burguesa e despojada de ornatos; que havia
uma inexorabilidade histórica nas formas a serem usadas; e que o
arquiteto, de seu posto de observação no interior do reduto, decidira o
que era melhor para o povo e o que ele inevitavelmente deveria receber.
De maneira muito espirituosa Venturi redefiniu esses dois tópicos
mitológicos da agenda do reduto — o povo e o não-burguês — e em
seguida apresentou os elementos do desenho ortodoxo moderno em
forma de piada, com tabuletas de “Me chute” pregadas às costas. Essas
apresentações se tornaram conhecidas entre os arquitetos como
“referências irônicas” ou “espirituosas”.
Na cosmologia de Venturi, já não se podia pensar o povo em
termos de proletariado industrial, trabalhadores com os punhos
erguidos, artérias branquiais congestionadas e pescoços mais grossos
que as cabeças, as massas espezinhadas do marxismo vivendo em
guetos urbanos. O povo agora era “a classe média-média”, como
Venturi a chamava. Vivia em loteamentos suburbanos como Levittown,
fazia compras na A& P do shopping-center, e passava as férias em Las
Vegas da mesma maneira que antes costumava ir a Coney Island. A
classe média-média não era a burguesia. Era a massa "em expansão",
em oposição à massa “compacta”. Agir de forma esnobe com relação a
ela era ser elitista. E o que poderia ser mais elitista nessa nova era,
Venturi queria saber, do que a tradição miesiana do Estilo Internacional,
com a sua ênfase em formas “heroicas e originais”? O modernismo de
Mies em si... tornara-se burguês! Os arquitetos modernos tinham se
deixado obcecar pela forma pura. Comparava a “caixa” de Mies a uma
venda de beira de estrada em Long Island construída em forma de pato.
A estrutura inteira visava expressar um único pensamento: “Aqui
patos”. Da mesma maneira, a “caixa” de Mies. Era nada mais nada
menos que uma única expressão: “Aqui arquitetura moderna”. O que a
transformava em expressionismo, certo? Heroica, original, elitista,
expressionista — que coisa tão burguesa!
Com isso Venturi fez aos sectários de Mies exatamente o que
tinham feito a Otto Wagner, Josef Hoffmann, e aos arquitetos da
81
Dissidência Vienense meio século antes. Consignou-os à barcaça de
lixo do desviacionismo burguês.
Quanto ao povo, a classe média-média, Venturi a encarou
exatamente da mesma maneira que o Príncipe de Prata encarara o
proletariado de cinquenta anos antes. Era culturalmente
subdesenvolvida, embora Venturi nunca tivesse sido gauche a ponto de
usar tais expressões. Não se devia perder tempo perguntando-lhe do que
gostava. Como era hábito nos redutos, o arquiteto fazia as decisões
nessa área.
As decisões de Venturi lembravam as de Grbpius, que resolvera
que os operários deviam viver em habitações de tetos baixos, quartos
pequenos e corredores estreitos. Venturi explicava que as pessoas
tinham todo o direito de ter em casa os símbolos explícitos e familiares
que a ornamentação podia oferecer. Assim sendo no alto de seu Guild
House colocou uma gigantesca antena de televisão de alumínio
anodizado dourado. Não estava, porém, ligada a nenhum televisor. Era
um “símbolo para os idosos”.
Símbolo para os idosos? Scully ofereceu uma explicação mais
ampla. A antena de televisão de Venturi era surpreendentemente direta,
revigorantemente cândida. “Afinal, uma antena de televisão na escala
correta coroa (o edifício), da mesma forma que preenche — e é apenas
um fato, nem bom nem mau — a vida dos nossos velhos. Seja qual for
a dignidade que haja nisso, Venturi a incorpora, mas não nos mente nem
uma vez a respeito dos fatos.” A frase “seja qual for a dignidade”
referia-se, presumivelmente, à dignidade dos mentecaptos da classe
média-média esperando os anos dourados terminarem narcotizados pela
luz azulada e tísica do aparelho de TV. Exatamente qual a extensão do
prazer, se é que houve algum, que os residentes de Guild House
encontraram nesse símbolo e familiar, ele não nos contou.
Mas e daí! A antena de televisão do Guild House era acima de
tudo uma amostra do talento de Venturi para a piada modernista. A
televisão era uma peça de ornato e, sobretudo, uma coroa, um remate,
tanto quanto o “fantástico mastro de amarração” no alto do Empire State
Building — isto é, uma óbvia violação do Estilo Internacional. Mas na
realidade era apenas uma antena de televisão, que é um objeto comum
produzido em série (ótimo) cuja função exige (ótimo) que seja colocado
no alto de um edifício. Assim sendo somente aqueles em quem o
arquiteto desse um toque teriam possibilidade de percebê-la como um
ornamento, para começar. Temos aqui um exemplo do que na era de
82
Venturi se tornou conhecido como “referência irônica”. E o mesmo se
aplica ao acabamento dourado da antena. O ouro, como no caso da folha
de ouro de Stone, era o epítome de tudo que havia de irremediavelmente
burguês na arquitetura. Mas alumínio anodizado dourado já era
diferente, não é mesmo? Era um material convencionalmente usado
para produzir em massa o brilho cotidiano da classe média-média, como
por exemplo nas barras ajustáveis de um carrinho de TV.
Venturi insinuou que se o Guild House não fosse dirigido por
quakers, que são contra as imagens, ele teria coroado o edificio “com
uma madona de braços abertos feita de gesso policromático”. Teria
coroado... mas não o fez. As sediciosas exaltações que Venturi fazia
“do vernáculo” levavam as pessoas a procurar não só madonas de gesso
mas muito mais em seus edifícios. Mas por alguma razão nunca as
encontravam. A estratégia de Venturi era violar o tabu — sem o violar.
Usou tijolos aparentes (burguês) na parte superior da fachada do Guild
House — afinal era apenas um tijolo escuro especialmente escolhido
para combinar com os tijolos “enfarruscados de smog” das decadentes
habitações operárias à volta (não-burguês). Colocou uma enorme
coluna (burguês) na entrada — mas afinal não possuía ornatos (não-
burguês), nem capitel (não-burguês) nem frontão (não-burguês). Não a
assentou de lado, mas bem no meio da entrada, fazendo-a perder a
imponência (burguês) e parecer mais espremida (não-burguês). As
sacadas receberam gradis decorativos (burguês à E. D. Stone), mas
pareciam ter sido estampados pelo processo industrial mais barato
possível, como se usassem uma prensa perfuradora (definitivamente
não-burguês).
Ó complexidade! Ó contradição! Violar o tabu — sem violá-lo!
Que virtuosidade! Venturi teve seus detratores, mas ninguém nos
redutos conseguia deixar de se impressionar. Ali estava um homem que
pulava, gritava, dava saltos mortais na beirinha do muro do mosteiro —
sem escorregar nem cair uma única vez.
É claro, um marciano — ou, podemos presumir com relativa
segurança, um velho de Philadelphia instalado no Guild House até o
fim dos seus dias televisivos — olhou para o edifício e viu apenas uma
anônima estrutura institucional moderna, descorada (vermelho-
enfarruscada) típica. Mesmo nos redutos, havia os que cometiam o erro
de descrever a obra de Venturi nesses termos. Philip Johnson e Gordon
Bunshaft chamavam o trabalho de Venturi de “feio” e “comum”.
Ambos viveram para se arrepender. Venturi era brilhante nessas
83
situações. Era um mestre do jiu-jitsu. A exemplo dos fauvistas e
cubistas de antanho, adotava cada epíteto como uma máxima gloriosa.
“Feio e comum!” — exclamou. Então transformou-o em “F & C” e
brincou um pouco com a sigla. É melhor F & C do que “H & O” —
heroico e original, que era a postura dos sectários de Mies tais como
Johnson e Bunshaft. H & O, J & B... que coisa tão burguesa.
Venturi muitas vezes elogiou os artistas pop da década de
sessenta, como se estivessem restabelecendo uma espécie de ligação
entre as artes superiores e a cultura popular. A estratégia de Venturi era,
na verdade, exatamente a mesma dos artistas pop — e nenhum deles
tinha o menor interesse na cultura popular além da ludicidade e
afetação. A arte pop não era uma revolução. Os artistas pop, não menos
que os expressionistas abstratos a quem eclipsaram, continuavam a
observar religiosamente os princípios fundamentais do modernismo no
tocante ao plano (“a integridade do plano da pintura”) e ao não-
ilusionismo. Tinham o cuidado de só fazer pinturas de outras pinturas
— rótulos, cartuns, bandeiras, páginas de números — de tal modo que
os colegas hierofantes percebessem que não estavam realmente
voltando ao realismo. Os proponentes de Jasper John diziam que suas
pinturas de bandeiras e números, por exemplo, eram as pinturas mais
planas e mais não-ilusionistas já expostas, porque retratavam coisas que
eram pela própria natureza bidimensionais e abstratas. A pop era uma
brincadeira, uma piscadela travessa, mas no fundo respeitosa, à
ortodoxia da época.
A muitos arquitetos mais jovens, a Grande Piscadela de Venturi
era irresistível. O homem era um gênio. Imaginara a estratégia perfeita
para desbaratar a turma antiga, os adeptos da caixa de Mies, sem
procurar desmantelar o sistema do reduto em si. Venturi descobrira seus
pontos vulneráveis: primeiro, a pavorosa solenidade e exagerada
seriedade; segundo, a idade e distanciamento da vida moderna. As
idéias de formas produzidas à máquina e em massa vinham do período
anterior à Primeira Guerra Mundial. A abordagem à Mies para atingir o
ideal não-burguês resumira-se em se tirar o “vernáculo industrial” do
“outro lado da sociedade”, nas palavras de Venturi, e introduzi-lo nas
“áreas nobres da cidade”. Venturi estava fazendo mesmo, só que
atualizando o processo. Usava o “vernáculo comercial” (comercial de
Las Vegas) e o “vernáculo do empresário da construção” (os
loteamentos suburbanos). Morram as vigas de abas largas. Vivam uma
antena de TV aqui e um gradil de ferro perfurado ali. Isso é que era o
84
bom da coisa. Afinal Venturi estava apoiando um princípio
fundamental dos redutos. Mantinha-se fiel ao outro lado da sociedade.
Guardava a fé não-burguesa.

Havia quem, como Venturi, achasse que a fonte de "referência"


arcana (a terminologia da linguística estrutural era agora usada como
um monóculo) devia ser a massa média-média em expansão que vivia
fora dos muros. Charles Moore, antigo decano de arquitetura de Yale,
hoje na UCLA, tornou-se o mestre da referência histórica da afetação.
Moore era capaz de colocar uma talha vitoriana hiper-rebuscada
(burguesa e meia) sobre uma porta de uma residência — mas com os
seguintes toques que a salvariam no último instante das garras da
apostasia: l. Colocava a talha apenas no alto deixando o resto do portal
com a moldura mesquinha de estuque de uso normal na habitação
operária. 2. Não usava nem esquadria nem os alizares que em geral se
vê à volta de uma porta (se é que se precisa olhar par uma imagem
retrógrada dessas), mas moldura para quadro, pela qual se pendura uma
pintura, com arame ou fita decorativa. Caso houvesse alguém que
continuasse sem entender, ele colava uma tira de espelho verticalmente
de um dos lados do alizar, a fim de enfatizá-la pela repetição. Mas
enfatizar o quê? Ora, o fato de que isso era apenas uma “referência
histórica irônica”. Intelectualmente, o alizar continuava tão alheio e
remoto como se estivesse por trás de uma vitrine em um museu de arte
folclórica.
Gradualmente começou a se formar um movimento Venturi ou de
“arquitetura pop”. Dele participavam Moore, Hugh Hardy, o amigo de
Moore, William Turnbull e Robert Stern. Na qualidade de editor da
revista Perspecta, quando era aluno de arquitetura em Yale, Stern
publicara parte de Complexity and Contradiction um ano antes do
lançamento do livro, e ajudara a chamar a atenção de Vicent Scully para
Venturi. A essa altura, Scully serviu à ala Venturi da arquitetura
americana da mesma forma que Guillaume Apollinaire servira aos
cubistas, ou seja, como estudioso, conselheiro e intercessor especial.
Sem a menor dúvida, Scully firmara suas credenciais de profeta.
Na apresentação de Complexity and Contradiction in Architecture
descrevera o livro como a obra mais importante de arquitetura desde
Vers une architecture de Corbusier. Os anos seguintes provariam que
tinha razão. Venturi foi o primeiro arquiteto a realizar uma mudança
85
importante no reduto do Príncipe de Prata. E à semelhança de
Roscellinus, Venturi tinha seus inimigos, e alguns bem rancorosos. Mas
um a um foram envolvidos no jogo absolutamente sério que ele iniciara:
arquitetura de infinita sutileza para deleite e espanto dos outros
arquitetos. Desvendavam-se os novos arcanos! de um monge para
outro.
A recessão do início da década de setenta intensificou o processo.
Ela destruiu a estrutura comercial da arquitetura americana quase tão
inteiramente quanto a Grande Depressão quarenta anos antes. Houve na
década de sessenta uma fantástica expansão na construção civil;
praticamente todos os principais centros urbanos no Leste americano
foram reconstruídos em pouco tempo. Fundaram-se muitas firmas
novas de arquitetura, e outras tantas mais antigas cresceram a ponto de
empregar mais de cem pessoas. A expansão chegou a um fim natural
no momento em que se iniciava a derrocada financeira. Da noite para o
dia, ou assim parecia, de trinta a quarenta por cento dos arquitetos
estavam desempregados. Firmas com duzentos empregados ficaram
repentinamente reduzidas a dez. Sócios principais passaram a atender
telefones. E desenhistas foram promovidos a vice-presidentes. Dessa
forma, ao invés de receberem salários, ganhavam participação nos
lucros, que já não existiam. Então sobreveio o êxodo. Metade dos
arquitetos dos Estados Unidos parecia estar trabalhando, quando
estavam, para o Xá do Irã. Quarenta por cento pareciam estar
trabalhando para o Rei Saud, o Bom. O restante continuou no país
batalhando pela fama no âmbito da competição intelectual das
academias.
Em 1972, um novo reduto, conhecido como o dos Brancos, ou os
Cinco de Nova York, fez o seu lançamento com um livro intitulado Five
Architects. Os cinco sendo Peter Eisenman, Michael Graves, John
Hejduk, Richard Meier, e Charles Gwathmey. Representavam o papel
de Anselmo ou Abelardo frente ao Roscellinus de Venturi. Na tentativa
de parecerem originais sem violar os pressupostos fundamentais do
modernismo, assumiram a posição de que o verdadeiro caminho se
encontraria não na terra da massa média-média em expansão mas no
retorno aos princípios iniciais. Sua ideia era retornar ao mais puro dos
puristas, ao Dr. Purismo em pessoa, Le Corbusier, e explorar as sendas
que ele indicara. O Apolinário do grupo era Colin Rowe, professor de
arquitetura em Cornell, que escrevera uma influente exegese da obra de
Le Corbusier. Receberam o nome de Brancos porque praticamente
86
todos os seus edifícios eram brancos, por dentro e por fora, como os do
mestre.
Sua posição era que Corbu abrira um universo de formas corretas
e inevitáveis porque procediam do próprio cerne — “da estrutura
profunda” para usar uma expressão de Eisenman do significado da
arquitetura. O significado da arquitetura? Para a maioria que se
aproximava dos Brancos desprevenida, isso era uma noção
desconcertante. Mas... ah! — os Brancos estavam preparados para os
olhares intrigados.
A essa época a filosofia — e o jargão — da linguística estrutural
francesa estava na crista da onda nas universidades americanas. Até
Venturini, com toda aquela conversa de “vernáculos”, “códigos”,
“referências”, e “ambiguidades”, fora afetado pelo modismo. O
Estruturalismo nascera na França no que se poderia chamar de brumas
do Marxismo Maneirista ou Tardio. Os estruturalistas pretendiam que
a linguagem (e portanto o significado) tem uma estrutura profunda
imutável, que brota da própria natureza do sistema nervoso.
Instintivamente, as classes dominantes, os capitalistas, a burguesia,
tinham se apropriado dessa estrutura para seus desígnios pessoais e a
saturaram com uma espantosa propaganda interna.
Se essa ideia parecesse um tanto incompreensível, não importava.
O que importava é que os estruturalistas eram pessoas dedicadas a
destrinchar toda essa confusão burguesa até os ossos. Os estruturalistas
beneficiavam o povo pela própria natureza de seu trabalho. Portanto
não havia necessidade de andar se metendo em política. A mesma aura
de beneficência envolvia os Brancos. A verdade pura e simples é que
seria quase impossível se importarem menos com política. Em todo o
caso, não precisaram fazê-lo. Presumia-se que as experiências
experimentalistas eram boas para o povo.
A obra dos Brancos era identificável à primeira vista. Seus
edifícios eram brancos... e frustrantes. Mal permitiam a introdução do
ocasional toque preto ou cinzento, como por exemplo a faixa preta
pintada na base da parede para desempenhar a função dos antigos (e
burgueses) rodapés. Estavam convencidos de que o caminho para o não-
burguês, na nova era, era se manterem escrupulosamente puros, como
Corbu se mantivera escrupulosamente puro, e serem frustrantes.
Frustrantes era a contribuição deles.

87
88
Corbu era transparente comparado a, digamos, Peter Eisenman,
um arquiteto que dirigia o Institute for Architecture and Urban Studies
em Nova York, e que lançou os dois principais órgãos dos Brancos,
Oppositions e Skyline. Eisenman seria Corbu, se Corbu tivesse ido
algum dia à Holanda e sido hipnotizado por Gerrit Rietveld. Eisenman
projetava edifícios brancos que eram o Paraíso da Estrutura Expressa.
Eram como uma peça de música serial de Milton Babbitt. O leigo
achava-os absolutamente incompreensíveis. O entendido — o colega
arquiteto de reduto — conseguia distinguir que havia uma espécie de
padrão, uma espécie de paradigma complexo, subjacente a todos os
estranhos ângulos e projeções, mas droga, não conseguia imaginar qual
era. A própria alma esotérica humana clamava por uma explicação.
Mas as explicações de Eisenman não ajudavam muito, mesmo ao
iniciado. Eisenman adotara sem reservas a tal linguística... Outros
andavam falando de nuanças sintéticas e semiologia da infraestrutura e
semântica da superestrutura e morfemas do espaço negativo e dos
polifemas da pós-imagem arquitetônica. Falavam de coisas como a
“articulação do perímetro da estrutura percebida e seu diálogo com a
paisagem circundante”. (Isso levou um lógico de Harvard a perguntar:
“E o que foi que a paisagem disso?” O arquiteto não teve nada literal a
relatar.) Mas eles eram todos redatores da United Press International,
não podiam ser mais simples, comparados a Eisenman. A grande
genialidade de Eisenman era usar expressões relativamente claras do
jargão lingüístico e fazer a pessoa engolir em seco levando o cérebro de
roldão. “O significado sintático aqui definido”, dizia, “não está ligado
ao significado que se soma aos elementos ou às verdadeiras relações
entre os elementos, mas à relação entre as relações”.
Eisenman era uma graça. Levava qualquer homem vivo a engolir
em seco com uma única frase. Eisenman era um purista de tal ordem
que nas poucas vezes em que se construíram as casas que projetou, não
se referia a elas pelos nomes dos donos, como faziam outros arquitetos
(por exemplo, a casa Robie de Wright, a casa Scho roeaer de Rietveld).
Referia-se às casas por números: Casa I, Casa II, e assim por diante. Era
como se não pertencessem a ninguém, embora alguém tivesse pago por
elas. Pertenciam å estrutura profunda da arquitetura; ou se preferirem,
à
Os Brancos. A meia-volta da vanguarda arquitetura, retrocedendo resolutamente à década
de vinte e à fase inicial de Corbu, com uma para descanso e recreio na de Gerrit Rietveld.
Alto: Casa II de Peter Einsenman. Meio: A Douglas House desenhada por Richard Meier.
Embaixo:residência de Bridgehampton projetada por Charles Gwathmey.
89
à história. Seu confrade Hejduk referia-se às casas que projetava por
números por uma razão diversa. Nenhuma delas jamais fora construída.
Eram tratados de teoria corbusiana em duas dimensões, tais como a
“Hemicasa”, que consistia em plantas baixas e projeções axonométricas
baseadas no semicírculo, semilosango e semiquadrado. A única obra
que Hejduk tinha a seu crédito era a reforma do interior do principal
edificio da Cooper Union em Nova York, cidade onde era decano da
escola de arquitetura. Era bastante singular: um barco corbusiano
enfiado, contra todas as expectativas, numa garrafa de estilo Belas-
Artes. Vi-o pela primeira vez quando compareci å reabertura dos
trabalhos da Cooper Union em 1980. Mal consegui me concentrar no
evento em pauta. O Cooper Union fora declarado tombado, de modo
que Hejduk não pudera mexer no exterior. O continuava praticamente
igual ao que era quando Fred A. Petersen o projetara cento e vinte e
Cinco anos antes. Era uma grande valsa de arenito pardo com janelas
em arco, cesuras, cornijas e loggias, ao estilo palazzo italiano,
ocupando um quarteirão inteiro. E no interior? No interior da velha
casca de alvenaria, a um enorme custo, Hejduk ampliara a pequena
Villa Savoye de Corbu como se fosse um balão. As paredes brancas, as
rampas, os gradis tubulares, os cilindros... Era tudo muito bizarro. E por
que fizera isso? Porque sendo um verdadeiro arquiteto de reduto, um
verdadeiro Branco, um verdadeiro Neopurista, não poderia fazer outra
coisa. Petersen projetara grandes janelas ao longo das escadas. A ideia
era captar o máximo possível de luz natural para iluminá-las. Mas isso
significava que qualquer um que descesse as escadas poderia olhar para
fora e ver grandes seções da maldita alvenaria parda e burguesa de
Petersen. Assim sendo, Hejduk encerrou meticulosamente as escadas
em cilindros corbusianos brancos, convertendo-as em caixas. No alto,
na escuridão de cada patamar, havia um único tubo circular fluorescente
de 22 watts, sem qualquer adorno, do tipo que se conhece em Nova
York pelo nome de Auréola de Senhorio.

90
VII

BRANCO-PRATEADO,
CINZA-PRATEADO

Em 1973 os Venturi, ou arquitetos pop, lançaram um ataque aos


BRANCOS que, na fase de planejamento, pareceu uma grande
brincadeira. Foi num artigo intitulado “Five on Five” publicado na
Architectural Forum. A ideia era que cinco arquitetos da ala Venturi
Moore, Stern, Jaquelin Robertson, Allan Greenberg e Romaldo
Giurgola — fariam uma crítica de Five Architects. Stern foi o primeiro
com um artigo intitulado “Stompin' at the Savoye”. A maioria dos
colegas de equipe de Stern começaram as investidas com alguns
cumprimentos e simulações de cortesia profissional, mas Stern entrou
no espírito da luta desde o início. Descreveu Colin Rowe como o “guru
intelectual” dos Cinco, um homem preso à “estética de estufa da década
de vinte”, fiel “aos aspectos mais questionáveis da filosofia de Le
Corbusier” — e despeitado com a afirmação muito exata de Vincent
Scully de que Venturi coexistia no mesmo plano de Corbusier como
uma "criador de formas' Disse que Hejduk estava fazendo a única coisa
para que serviam seus desenhos: “arquitetura de papel”. Quanto a
Eisenman, suas teorias lhe davam “dor de cabeça”, e suas casas eram
um “despropósito de paredes, vigas e colunas” que não contribuíam
para a “estrutura profunda” e sim para a claustrofobia. Chamou Graves
e Meier de “compulsivamente modernos” e mais, considerou Meier
capaz de fazer projetos de "carregação". Robertson tentou ser generoso
e equilibrado ao abordar a obra de Meier e Gwathmey, mas quando
chegou a Graves não pôde mais se conter. Em Graves, dizia, a pessoa
se deparava com tudo que era “fraco” e “incorrigível” no Neocorbu.
Suas casas estavam “inçadas por dentro e por fora de uma espécie de
hera moderna e ruim que assumia a forma de corrimões, grades
metálicas, canos inexplicados, vigas aparentes, tubos obtusos e
injustificados — a maioria sem nenhuma aparente finalidade
arquitetônica ou real”.
91
Os Brancos protestaram aos gritos. Gritaram com tanta virulência
que nunca mais os arquitetos americanos se atracaram diretamente pela
imprensa. Gritaram, mas na realidade os Venturi lhes prestaram um
grande favor. Fizeram os Brancos parecerem uma das duas grandes
legiões que se enfrentavam nas planícies celestes pela alma do
movimento moderno. O próprio futuro da arquitetura americana parecia
estar dependendo do resultado do combate entre os Brancos e os
arquitetos pop, ou Venturianos ou do Eixo Yale-Filadélfia... ou que
nome tenham. Alguém sugeriu “Cinzentos”, que era o mais simples.
Então passou a ser os Brancos contra os Cinzentos. Era só o que se
ouvia nas universidades, os Brancos contra os Cinzentos; os jovens
arquitetos começaram a tomar partido. O fato de que os dois lados
continuassem a obedecer aos pressupostos do modernismo parecia ficar
esquecido na agitação.
Os jovens arquitetos europeus não conseguiam crer no que estava
acontecendo. Aqueles eternos colonizadores, aqueles nativos
obedientíssimos, os americanos tinham usurpado a vanguarda,
imaginem só, da teoria da arquitetura. Estavam se divertindo a valer,
mesmo em meio à depressão comercial que afetava a profissão. A
mesma depressão atingira a arquitetura europeia. Em alguns aspectos,
fora até mais grave. Encomendas particulares quase já não existiam. Os
arquitetos sentavam-se por ali mordiscando estudos governamentais de
viabilidade, qualquer coisa que aparecesse. Por que não fazer como os
americanos? Um teórico de arquitetura poderia construir uma reputação
sem encomendas. Poderia no mínimo obter convites para palestras e
seus desenhos poderiam valer dinheiro.
Seja como for, os racionalistas nasceram nesse momento. Os
principais racionalistas eram um italiano, Aldo Rossi, um espanhol,
Ricardo Bofill, e dois irmãos de Luxemburgo, Leon e Robert Krier. Os
racionalistas se assemelhavam aos Brancos na medida em que
acreditavam que o caminho inevitável e verdadeiro do modernismo era
voltar aos princípios iniciais. Mas achavam que os Brancos não tinham
retrocedido o suficiente. Os racionalistas gostariam de retroceder no
mínimo ao século XVIII; melhor ainda ao início do Renascimento. Os
racionalistas queriam construir edifícios pré-século XIX — despojados
de toda a ornamentação burguesa. A ideia era retrocederem à época
anterior à revolução industrial, anterior ao capitalismo; ou seja, anterior
ao capitalismo ter poluído a arquitetura com a sua corrupção.

92
As brumas marxistas que envolviam o racionalismo eram ainda
mais densas, mais sufocantes e mais sentimentais do que as que
envolviam os estruturalistas. Os racionalistas tinham a noção romântica
e prolecultista de que os mestres artesãos do Renascimento construíam
de impulsos naturais e inevitáveis do povo, como se isso decorresse de
alguma espécie de estruturalismo dos reflexos motores. O fato de que
os edifícios fossem em geral encomendados e pagos por reis, déspotas,
duques, pontífices e outros autocratas não importava. Pelo menos não
eram capitalistas.
Não tardou muito e os racionalistas estavam acrescentando um
certo sabor primitivo ao debate americano sobre arquitetura. Nas
conferências de arquitetura nos Estados Unidos, saíam gritando
“Imoral!” para qualquer um com quem discordassem. Eram
constrangedores, mas fascinantes. Venturi os enfurecia. “Imoral!”
Venturi exaltava a sordidez do capitalismo na sua fase moderna, ou seja,
a faixa comercial. “Imoral! Corrupto! Americano!”

Apartamentos em Milão, projetados por Aldo Rossi, orgulho dos Ratos. Arquitetura à prova
de burguesia para a escola europeia dos marxistas primitivos, ultra-ortodoxos.

93
Quanto ao trabalho que faziam, parecia... bem, estranhamente
fascista. Tanto na Itália quanto na Alemanha, a arquitetura tinha
apresentado traços clássicos despojados dos ornatos ou estilizados.
Quando lembravam isso a racionalistas como Leon Krier, eles perdiam
as estribeiras. Fascista ou não, o trabalho de Aldo Rossi era
fantasmagórico. Com as arquitraves, dintéis, arcos compostos e todo o
resto removido, suas janelas renascentistas acabavam com o aspecto de
lúgubres espaços vazios mergulhados em sombras. Os racionalistas não
tardaram a ficar conhecidos como Ratos.
Os arquitetos britânicos mostravam-se céticos a respeito dessa
teorização, mas nem por isso menos intrigados. Um jovem arquiteto
americano, Charles Jencks, cujo trabalho lembrava o de um adepto de
Venturi-Moore, foi à Inglaterra e publicou um livro intitulado The
Language of Post-Modern Architecture, em que catalogava e analisava
todas as novas correntes. Qualquer que fosse seu status como arquiteto
ele imediatamente se firmou como o autor de arquitetura mais instruído
e espirituoso em atividade. O termo pós-modernismo foi adotado para
todas as manifestações posteriores à exaustão do modernismo em si.
Conforme o próprio Jencks comentou com rara felicidade, o pós-
modernismo talvez fosse um termo muito confortável. Informava o que
a pessoa estava abandonando sem contudo comprometê-la com
nenhum destino em particular. E estava certo. O novo termo por si só
tendia a criar a impressão de que o Modernismo terminara porque fora
substituído por algo novo. De fato, os pós-modernistas, fossem
Brancos, Cinzentos ou Ratos, nunca saíram da caixinha sobressalente
que Gropius, Corbu e os holandeses criaram em 1920. Na maioria
contentaram-se simplesmente em promover mudanças nos mesmos
conceitozinhos estanques, agora com sessenta anos, em benefício
próprio.

Em maio de 1980 um dos Brancos, Michael Graves, professor de


arquitetura em Princeton, foi o único arquiteto entre os trinta e sete
artistas, compositores e escritores que receberam prêmios da American
Academy e do Institute of Arts and Letters nas cerimônias anuais
realizadas no auditório da academia em Novã York. Graves ergueu-se
da cadeira que ocupava no palco e recebeu o Arnold W. Brunner
Memorial Prize for Architecture. Dezessete premiações mais tarde,
Gordon Bunshaft, já com setenta e um anos e professor antigo do
94
Instituto, foi chamado para ler as menções a cinco pintores e lhes
entregar os envelopes com os cheques correspondentes. Após entregar
o último, Bunshaft voltou-se para a plateia e disse:
— Suponho que isso seja uma cena que não se vê todo o dia, um
arquiteto entregando dinheiro a artistas.
A plateia riu educadamente, indicando ter percebido a tentativa de
gracejo, sem contudo entender muito bem qual fosse.
— Mas, por outro lado, muitas coisas mudaram — continuou
Bunshaft. — Costumávamos premiar arquitetos por fazerem edifícios.
Agora premiamos arquitetos por fazerem desenhos.
Em seguida sentou-se. Nem um pio da plateia. Apenas uns poucos
— todos arquitetos de reduto — tinham uma letre ideia do que queria
dizer. Bunshaft não mencionara Graves, que se encontrava sentado atrás
dele no palco, nem olhou em sua direção. Mas Graves era o único
arquiteto que recebera um prêmio, e era verdade: fora premiado por
desenhos. Ou melhor, por seus desenhos, teorias, sua posição de Branco
residente de Princeton, ou Neopurista. Não por construir, isso é certo.
Podia-se contar as construções de Graves nos dedos de uma mão.
“Construções” — uma ampliação aqui, uma reforma ali, e umas
casinhas. pareciam obra de Gerrit Rietveld de porre, graças à
Inexplicável "brotação de hera" sob a forma de corrimãos, tubos e vigas
de que Robertson se queixara.

O tipo de desenho à Corbusier que tornou Graves famoso: proposta de uma ponte-centro
cultural sobre o Rio Red, entre Fargo, Dakota do Norte e Moorehead, Minnesota.

95
E daí! Na nova atmosfera intelectual, na fase escolástica da
arquitetura moderna, a carreira de Graves brilhava com uma
inconfundível radiância. Havia algo sórdido em se construir muito.
Mesmo entre os Brancos, os New York Five, falava-se de Gwathmey e
Meier sotto vóce, como pesos leves, principalmente porque tinham uma
boa clientela e ganhavam realmente dinheiro com a arquitetura. Meier
era superior a Gwathmey porque, além de construir edifícios, ensinava
em Harvard e enunciava teorias devidamente obscuras. Não eram, no
entanto, tão profundamente obscuras quanto as de Graves.
Quando Graves falava “leituras múltiplas inerentes a um código
de abstração” e “um nível de participação que envolve a interação da
pessoa com o edifício”, quase alcançava as alturas estruturalistas de
Eisenman. (Quase, faltava pouco; Eisenman conseguira se tornar
absolutamente obscuro.) As teorias de Graves eram conhecidas e
discutidas nos departamentos de arquitetura de todas as universidades
importantes do país. Suas aquarelas de edifícios não construídos eram
lilases, azuis, breves, e terrivelmente belas, como uma tempestade.
Corbu! Bastava se falar em “Michael”, como os amigos o chamavam,
e todo arquiteto aspirante no circuito sabia que se tratava de Michael
Graves.
Não se podia dizer o mesmo de Gordon Bunshaft — apesar das
dezenas de gigantescos edifícios de vidro que projetara ou inspirara.
Nos redutos universitários podia-se dizer “Gordon” ou até “Gordon
Bunshaft”, e só o que se recebia era um olhar tão vidrado quanto a
fachada do Lever House.
Ao diabo com os edifícios gigantescos! Todo arquiteto esperto
sabia que antes de mais nada era preciso se sobressair na competição-
intelectual dos redutos. Houvera uma inegável pureza em Corbu, em
sua carreira bem como em seus desenhos. Corbu triunfara unicamente
pela inteligência e genialidade, pelos manifestos, tratados, discursos,
debates, desenhos, planos visionários e a pura força moral de sua
missão. Tornara-se um dos maiores arquitetos do mundo, respeitado e
admirado por todo arquiteto de vanguarda; criara aquela Cidade
Radiosa que era ele próprio — sem o benefício de encomendas, clientes,
orçamentos, construções. Todas essas coisas tinham lhe chegado às
mãos mais tarde. Com o tempo receberia encomendas de projetos como
a do complexo de Chandigarh na província indiana de Punjab. Os
clientes, os governos, os construtores, os povos do mundo, tinham-no
procurado porque ele era a Cidade Radiosa, que fora uma criação de
96
sua mente e nada mais que sua mente. Tinham lutado, finalmente, para
entrar no seu reduto, que fora chamado, muito acertadamente, de
“Purismo”.
Esse mesmo processo apenas se iniciava para Graves. Portland,
Oregon, acabara de contratá-lo para construir o novo Public Services
Building. Provocaram furor em Portland tanto o projeto proposto
quanto o modo pelo qual Graves fora escolhido — falou-se muito na
influência de Philip Johnson — mas não se pode mudar o fato de que
foram as vitórias intelectuais de Graves nos redutos universitários que
o levaram a isso, ao primeiro grande edifício, ou pelo menos o primeiro
que tinha probabilidade de ver construírem. Havia ainda dividendos
incidentais, mas lucrativos. Os fabricantes de móveis começaram a
procurar

Anexo da Casa Benacerraf projetado por Michael Graves. Sob a hera metálica de Gerrit
Rietvelt há uma sala de refeições matinais e uma sala de brinquedos.

97
procurar as estrelas do pós-modernismo para desenhar salões de
exposição. Graves foi contratado para projetar salões para a Sunar
Company em Nova York, Chicago, Los Angeles e Houston. Venturi foi
contratado para desenhar um novo salão de exposição em Nova York
para a Knoll International, a firma especializada em móveis modernos
mais conhecida do país.
Em fins da década de 70, os arquitetos mais sintonizados
procuravam criar uma nova abordagem para a empresa de arquitetura.
Criavam firmas que combinavam as duas vertentes da competição
moderna — a construção de edifícios e a teorização da arquitetura —
numa única entidade. Ou seja, transformaram as firmas em redutos.
Ofereciam uma determinada abordagem do desenho, um conjunto de
formas, uma filosofia — e um filósofo, um porta-voz, acadêmico,
profundo, e até abstruso, se o protocolo assim o exigisse. A
Arquitectonica, a SITE e a Friday Architects foram as que mais se
destacaram. A vida no reduto empresarial chegava a ter um quê da
existência comunal na Bauhaus ou no de Stijl. James Wines da SITE
tornou-se um convidado assíduo em conferências de arquitetura nos
Estados Unidos e na Europa. Suas fachadas à Magritte para a cadeia de
lojas Best eram ao mesmo tempo escultura ou “arte ambiental”, para
usar um termo de época, e arquitetura. De qualquer modo, o desperdício
de tanto talento e inteligência com uma cadeia de lojas perpetrado pela
SITE enfureceu os Ratos. Eles pensaram, pensaram, e finalmente
acharam umas palavrinhas para Wines e a SITE: “Imoral! Corrupto!
Americano!”
Para o arquiteto ambicioso, ter uma teoria tornou-se tão vital e
natural quanto ter um telefone. Finalmente, a pressão atingiu até John
Portman. Ele resolveu que já estava na hora de elaborar uma filosofia.
Escreveu um ensaio para a Architectural Record. Bom, Portman podia
ter mudado a aparência do centro das cidades americanas, mas nesse
jogo ele era novato. Sua mensagem foi demasiado clara e
compreensível por inteiro. Tinha a profundidade e a capacidade de
emudecer de um pingo de chuva. As pessoas gostam de árvores e de
água e de edifícios públicos numa escala humana, e é isso que devemos
lhes dar... teorias ao nível daquilo que as pessoas querem. Bom, como
se pode imaginar... o que riram do pobre John Portman por causa disso!
Contudo, pareceu vital, até para os gigantes comerciais, ao menos
entrar na nova jogada. Dezembro passado, a firma de Gordon Bunshaft,
Skidmore, Owings & Merrill, os gigantes comerciais da moda das
98
velhas de vidro de Mies, deram um passo um tanto desesperado.
Convidaram os editores da Harvard Architecture Review para organizar
um debate particular de arquitetos para discutir com eles os últimos
progressos do pós-modernismo. A revista compareceu com Graves,
Stern, Steven Peterson e Jorge Silvetti. Sentaramse a uma mesa em
forma de U no Harvard Club em Nova York diante da equipe de
arquitetos da Skidmore, Owings & Merril — e lhes fizeram uma
preleção como se fossem estudantes de arquitetura recebendo as
primeiras críticas de seus projetos. O grupo Skidmore apresentou slides
dos trabalhos recentes, para provar que não se limitavam a construir
caixas de vidro tipo Lever House. O fato é que também estavam
projetando caixas de vidro baixas com cantos curvos e coisas que tais.
Os pós-modernos, tanto Brancos quanto Cinzentos, não quiseram saber.
Stern disse: “Os edifícios que a Skidmore constrói são monótonos —
tanto faz serem altos ou baixos, largos ou estreitos, quem viu um viu
todos.” Os Skidmores nem se deram ao trabalho de revidar.
Ó Destino... Em momento algum parece ter ocorrido aos presentes
a graça de estarem ali sentados os principais arquitetos —
comercialmente falando — no campo das grandes construções públicas
dos Estados Unidos, dispondo-se — dispondo-se? — suplicando pela
oportunidade — de sentarem calados e receberem uma boa chamada de
quatro arquitetos que somados só tinham uns poucos edifícios maiores
que uma residência. Bom, qual era a graça? Tal era o domínio da
mentalidade de reduto, da nova Escolástica, sobre a profissão de
arquiteto.

Em 1976 Vincent Scully recusou um prêmio de história da


arquitetura a ser concedido pelo American Institute of Architects
alegando que o instituto se recusara a receber Robert Venturi em seu
College of Fellows. Não era honra nenhuma, disse Scully, receber um
prêmio de uma organização tão insensível — uma vez que Venturi era
“o arquiteto mais importante da minha geração”
Agora se essa afirmação tinha algum mérito estético — bom,
degustibus non est disputandum. Mas em termos da influência exercida
por Venturi sobre os outros arquitetos, Scully mais uma vez tinha razão.
A ala de Venturi, os Cinzentos, ia lentamente ganhando a grande
batalha nas planícies celestes. Os Brancos começavam a abandonar sua
posição purista — e o jargão estruturalista. (Nas universidades, o
99
próprio Estruturalismo estava sendo questionado pelo novo conceito de
Entropia, que afirmava não haverem afinal estruturas profundas,
lógicas, definidas; o mundo era incerto, conjetural, de circo.) Graves
começou a elaborar variações extremamente sutis da teoria de Venturi.
Buscou uma síntese maior de Brancos e Cinzentos, uma que fosse digna
de Abelardo ou Duns Scotus. Continuava a empregar os “códigos de
abstração” dos Brancos — mas os códigos se referiam ao conhecido
ambiente de arquitetura da pobre classe média-média de Venturi. Por
exemplo, na ampliação de uma casa em Princeton ele criou uma
projeção de vigas verticais e horizontais que mais parecia uma escultura
de David Smith adaptada por Rietveld — e pintada de azul.
Supostamente isso deveria refletir o céu azul, familiar e média-média
sob o qual a pessoa caminhava.
Se é que alguém chegou realmente a perceber isso ou não, não era
tão importante quanto reconhecer a sofisticação da abordagem.
Posteriormente, Graves foi se aproximando pouco a pouco da ideia de
Moore de jogar com formas clássicas, notadamente colunas, sobre um
fundo de fachadas modernas tão finas que, muito intencionalmente,
tinham a aparência de papelão. Os resultados lembravam os panos de
fundo da produção típica de Aída encenada em cidadezinhas de
veraneio.
O contínuo jogo com elementos clássicos feito por Moore,
Graves, Venturi e muitos outros tendia a criar a impressão de que estava
ocorrendo um tipo de reflorescimento da tradição clássica.
Naturalmente que não era verdade, pois isso teria sido apostasia. Os
próprios arquitetos sempre punham um freio na sugestão. Por exemplo,
Jorge Silvetti e seu sócio Rodolfo Machado diziam de sua proposta para
Steps of Providence (para Providence, Rhode Island): “Não é possível
encontrar um único elemento clássico em estado de ‘pureza’. Todos são
transformações de motivos clássicos, a ponto de passarem a ser
aclássicos ou anticlássicos”. Da mesma forma, em 1978, Venturi
anunciou sua nova definição de arquitetura: “um abrigo ornamentado”
e acrescentou que sabia que tal afirmação seria “chocante”. Por essa
altura as pessoas apenas bocejavam, porque, naturalmente, a tradução
visual feita por Venturi da própria definição não poderia chocar. Como
exemplo ele. apresentou desenhos para A Country House Based on
Mount Vernon. “O detalhamento está simplificado, aplainado e
generalizado”, disse. “Reproduzi-lo [o Mount Vernon em Washington]
em forma de casa parece um pouco com a ideia de Jasper Johns de fazer
100
uma pintura da bandeira dos Estados Unidos”. Quanto a abrigos
ornamentados não é preciso dizer mais. Bob Venturi só estava
acrescentando um pouco mais de afetação ao tema, fazendo mais
algumas de suas brilhantes e divertidas referências irônicas. No cerne
da verdadeira ornamentação arquitetônica, como bem compreendiam

Maquete da futura sede da AT&T em Nova York. O projeto é de Philip Johnson, mas a
vitória é de Robert Venturi.

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os ecléticos arquitetos do século XIX, encontrava-se um impulso para
o enriquecimento e embelezamento, e não o aplainamento e a
generalização. Por volta de 1978 tornara-se aparente que nem mesmo
com uma arma apontada para a cabeça Venturi teria produzido uma
peça decorativa e enfeitada. Simplesmente não conseguia forçar a mão
a se mover sobre o com essa intenção. Não conseguia produzir tal
resposta motora. Continuou sendo, mesmo depois de tudo, o mais leal
dos súditos do Príncipe de Prata.
Explorar uma avenida que se abre para um sistema de
ornamentação novo, direto (sem ironia), exuberante (sem afetação) na
arquitetura americana em fins do século XX teria sido um progresso
revolucionário. Teria sido também herético. Nenhum arquiteto
americano ambicioso, com a cabeça no lugar, tentaria isso. E nenhum
arquieto que tentasse teria probabilidade de produzir qualquer efeito
expressivo no curso da arquitetura americana. Toda a estrutura dos
redutos e de igrejinhas, com as suas recompensas, psíquicas e
mundanas, teria que ser desmontada primeiro.
Por volta de 1978, a evidência de que Venturi estava vencendo a
batalha dos redutos era decisiva. Philip Johnson divulgou pinturas e
maquetes de sua nova sede para a AT & T, a ser construída na Avenida
Madison em Nova York. Tornou-se o edifício não construído mais
famoso da década de setenta. O sectário mais devoto de Mies projetara
um edifício cujo arremate parecia ter sido diretamente transposto de
uma papeleira Chippendale. Philip Johnson! Finalmente tirou os
joelhos do chão! Depois de quarenta anos!
Johnson aprendera bem uma lição. Finalmente percebera que
numa era de esotérica competição intramuros entre artistas, era loucura
tentar contrariar um novo estilo enfrentando-o de peito aberto e
chamando-o de “feio” ou “comum”. (Assim faziam os burgueses.) O
truque era saltar por cima do novo estilo e dizer: “Tudo bem, mas olhe
só! Firmei uma posição ainda mais vanguardista... cá na frente.”
Os partidários de Venturi ficaram furiosos... que Johnson roubara
a ideia do remate da papeleira com o frontão interrompido de Venturi,
de um artigo que escrevera para o Architectural Forum em março de
1968. Venturi mencionara um motel perto de Jefferson’s Monticello na
Virginia. “O anúncio do Motel Monticello, a silhueta de uma enorme
papeleira Chippendale, é visível na estrada antes mesmo do motel.”
Bom, ótimo, Bob. Mas Venturi nunca ousaria ir tão longe a ponto de
pôr uma coisa dessas no alto de um edifício. É como se Venturi tivesse
102
realmente colocado a madona de gesso no topo do Guild House e não
apenas falasse em fazer isso e afinal colocasse a antena de TV do
conjunto para idosos. A papeleira da AT & T beirava perigosamente,
perigosamente, perigosamente... a inconfundível, nua e crua apostasia!
E hoje há indícios de que esteja sendo interpretada como tal. Nos
redutos, começa-se a ouvir falar de Johnson do jeito que falavam de
Edward Durell Stone depois da inauguração do Taj Maria.
Mas Johnson continuou a ser um tático tão habilidoso quanto
Venturi. Em discursos e palestras ele conseguia fazer chegar aos
ouvidos dos fiéis que em áreas tais como a da atitude perante o cliente
ele continuava a ser o clássico modernista. Contava que um cliente, a
AT & T, fora “tão perspicaz que lhe dera uma pista. Dissera: ‘Por favor
não faça um telhado plano!’”.
Era muito reconfortante! Podia-se imaginar a cena: o diretor
executivo, o presidente do conselho, e toda a comissão de seleção,
representando a maior corporação da história humana, acercavam-se do
arquiteto, moldando bolas de neve imaginárias com as mãos e diziam:
“Por favor, Sr. Johnson, não queremos de maneira alguma interferir. Só
queremos pedir, por favor, meu senhor, que não nos faça um telhado
plano.”
E que foi que o cliente achou do que o senhor fez? Ah, foi
engraçadíssimo, respondeu Johnson. “O presidente do conselho disse:
Isso sim é um edifício! Em outras palavras, um edifício é um edifício;
mas um edifício não é um edifício se é uma caixa de vidro. O que
possam pensar que seja um edifício, não tenho bem certeza. É o mesmo
que alguém dizer ‘Isso sim é uma casa!’ quando finalmente vê uma
caixa de sal.”
No reduto houve um certo alívio, Johnson provavelmente
cometera apostasia, mas eles continuavam sem perceber. Só pagaram a
conta. O mundo exterior continuava de fora como sempre. As novas
massas continuavam a se debater na lama média-média. A burguesia
continuava frustrada. O brilho do Príncipe de Prata continuava a
iluminar a Cidade Radiosa. E o cliente continuava a aguentar o tranco
feito homem.

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Este livro foi composto pela Memphis Produções Gráficas Ltda.
e impresso na Editora Vozes Ltda.
em janeiro de 1990 para a Editora Rocco Ltda.

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Tom Wolfe nasceu em 1930 em
Richmond, Virginia. É doutor em
Estudos Americanos pela
Universidade de Yale. Iniciou-se no
jornalismo no The Washington
Post, mas foi quando mudou-se
para Manhattan e resolveu dar asas
ao seu talento que tornouse o papa
do New Journalism. Duas
expressões cunhadas por ele
tornaram-se definitivas: radical-
chic e Me Decade (a década do Eu),
definidoras dos anos 60-70. Seu
primeiro livro foi The Kandy-
Kolored Tangerine-Flake
Streamline Baby. O mais recente é
A fogueira das vaidades, publicado
pela Rocco.

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DA BAUHAUS
AO NOSSO CAOS

Totalitária, arrogante e repressora dos impulsos


naturais. Para o jornalista e romancista Tom
Wolfe, a arquitetura do século XX, após a
efervescência intelectual da Bauhaus, nas
primeiras décadas, passou a produzir prédios que
agradam aos críticos de arte e às escolas de
arquitetura, mas são abominados por mais da
metade das pessoas que neles moram.
O que mudou de lá para cá? Segundo Wolfe, uma
premissa básica. Antes, o arquiteto procurava
interpretar as fantasias do cliente. Depois, passou
a impor ao cliente suas próprias e requintadas
fantasias. Da Bauhaus ao nosso Caos é uma bem-
humorada incursão à história dos arranha-céus, do
concreto, do vidro, do alumínio e da teoria que os
elegeu como elementos ideais para as habitações
do nosso tempo. Tildo isso com a irreverência, a
criatividade e a elegância características do autor
de A fogueira das vaidades.

ISBN 85-325-0019-6

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