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DA BAUHAUS

AO NOSSO CAOS
Título original
FROM BAUHAUS TO OUR HOUSE

Copyright © 1981 by Tom Wolfe


Proibida a venda em· Portugal

Direitos para a língua portuguesa reservados,


com exclusividade para o Brasil, à
EDITOR A ROCCO LT DA.
Rua da Assembléia, IO Gr. 2313
CEP 20011 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 224-S!V -
Telex: 38462 EL

Printed in Brazi/llmpresso no Brasil

capa
ANA MARIA DUARTE

revisão
W ENDELL SE T Ú BAL
SANDRA PÁ SSARO

o-na-fonte
'es de Livros, RJ

Wolfe, Tom, 1931-


W837d Da Bauhaus ao nosso caos / Tom Wolfe; tradução de Lia Wyler. -
Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

Tradução de: From Bauhaus to our house.

1. Bauhaus. 2. Arquitetura moderna - Século


XX - Estados Unidos. 3. Arte moderna - Século
XX - Estados Unidos. 1. Título.

CDD - 709.04057
724.91
CDU - 7.036.7
89-0974 72.036.7
TOM WOLFE

DA BAUHAUS
AO NOSSO CAOS

Tradução de
LIA WYLER

�r.ú_,
Rio de Janeiro - 1990
Crédito das fotos:

Brent C. Brolin (pp.8,50,58,72); de Bauhaus u nd Bauhaus Peop/e"de Eckhard Neu­


mann, copyright © 1970 by Van Nostrand Reinhold Company (p.13); Granger Col­
lection (pp.15,20,23,24,25,38); UPI (pp.32,63); foto de Don Wallace, cortesia de Ed­
© ES10 (pp.58,69,88); Edward
gar Tafel (p.44); Hedrich-Blessing (p.43); Ezra Stoller
Durell Stone Assocía1es (p. 67), © Norrnan McGrath (p. 88), cortesia de Max Protetch
Gallery (p. 93); (e) Laurin McGracken (p. 97).
A Michael McDonough
que sabe onde se escondem todos os ângulos
agudos na malha estrutural.
ó Bela, dos céus infinitos, dos louros trigais ondulantes, existirá ou­
tro lugar na terra em que tanta gente rica e poderosa tenha pago e
tolerado tanta arquitet ura que detesta do que dentro de suas frontei­
ras?
Duvido seriamente. Toda criança vai à escola em um prédio que
parece a cópia xérox de um armazém atacadista de peças de reposi­
ção. Nem o comissário escolar, que encomendou e aprovou o proje­
to, é capaz de entender como foi que isso aconteceu. O problema
é tentar fugir à obrigação de explicar aos pais dos alunos.
Toda casa de verão de 900 mil dólares construída nas matas de
Michigan ou nas praias de Long Island tem tantos gradis tubulares,
rampas, escadas circulares em metal fresado, painéis industriais de
vidro plano, baterias de lâmpadas de tungstênio-halógeno e cilindros
brancos, que mais parece uma refinaria de inseticida. Uma vez vi
os donos de uma casa dessas chegarem à beira da privação de senti­
dos com a brancura & leveza & enxuteza & limpeza & nudez & des­
pojamento daquilo tudo. Procuraram desesperados um antídoto, do
tipo cor & aconchego. Tentaram esconder os sofás obrigatoriamente
brancos sob almofadas de seda tailandesa em todos os tons irides­
centes e sedicioStJs de magenta, rosa e verde tropical imagináveis. Mas
o arquiteto voltou, como sempre, mais parecendo a consciência de
um calvinista, e lhes pregou um sermão, e os intimidou, e arrancou
fnra os mimos cintilantes.
Toda grande firma de advocacia em Nova York se muda sem
um ai sequer de protesto para um edifício de escritórios tipo · ��aixa
d e vidro" com laje d e concreto por piso e laj e d e concreto por teto
de 2,38m de altura e paredes de gesso e corredores mínimos - e de­
pois contratam um decorador e lhe entregam um orçamento de cen­
tenas de milhares de dólares para t ransformar esses quadrados e cu-

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bos mesquinhos numa fantasia horizontal de palacete inglês da Res­
tauração. Vi carpinteiros e marceneiros e compradoras carregando
mais cornijas, abobadilhas, pilastras, molduras talhadas, nichos, mais
painéis com dobras de linho, mais lareiras (sem fogo) enfeitadas com
festões de frutas em mogno, mais lÚstres, apliques, candelab ros, so­
fás de couro e relógios de carrilhão do que Wren, lnigo Jones, os
irmãos Adam, Lord Burlington e os Dilettanti, trabalhando juntos,
poderiam ter imaginado.

Rue de Regrei: A Avenida das Américas em Nova York. Ruas e Mies van der ruas
de "caixas de vidro''. Habitações operárias com cinqüenta andares de altura.

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de vi­
E se m udam sem dar um pio! - mesmo que as "caixas
dro " os apa vor e.
Essas im pressões não são apenas minhas, posso garantir. Se al­
guém quise r provas detalhadas é só freqüentar as conferências, sim­
pós io s e deb ates em que os arquitetos hoje se reúnem para discutir
a situação da arte. Confessam-se apavorados. Com a cara mais lim­
pa d irão que a arquitetura moderna está exaurida, acabada. Até eles
mesm os caçoam das "caixas de vidro". Usam esse termo com uma
risadi nha. Philip Johnson, que construiu para si uma casa de vidro
e m Connecticut em 1949, diz a frase com o deleite de um antiquá­
rio, do j eito que alguém falaria de uma velha armação de cama de
bronze descoberta no sótão.
Em todo o caso, o problema está em vias de ser resolvido,
t ranqüilizam-nos. Há agora novas abordagens, novos movimentos,
novos ismos: Pós-modernismo, Modernismo Tardio, Racionalismo,
Arquitetura Participativa, Neocorbusianismo, e os Los Angeles Sil­
vers . Que se resumem em quê? Em coisas tais como construir mais
"caixas de vidro" e revesti-las de vidro espelhado para que reflitam
as "caixas de vidro" vizinhas e disto rçam as tediosas linhas retas
transformando-as em curvas.
Acho o relacionamento atual do arquiteto com o cliente nos Es­
tados Unidos maravilhosamente excênt rico, beirando a perversida­
de. No passado, aqueles que eram cont ratados e pagos para projetar
palácios, catedrais, teatros, bibliotecas, universidades, museus, mi­
nistérios, terraços sobre colunas e casas de campo cheias de alas não
hesitavam em transformá-las em visões da própria glória. Napoleão
queria transformar Paris na Roma dos Césares, só que com música
mais ressonante e mais mármore. E assim foi feito. Seus arq uitetos
lhe deram o Arco do Tri unfo e a Madeleine. Seu sobrinho, Napo­
leão III, queria t ransformar Paris em Roma com Versailles de que­
bra e assim foi feito. Seus arquitetos lhe deram a Ópera de Paris,
um anexo ao Lou v re e quilômetros de novas avenidas. Palmerst@n
certa vez j ogou fora os resultados de um concu rso de projetos para
o novo Ministério do Exterior britânico e disse ao mais importante
arquiteto do renascimento gótico da época, Gilbert Scot t , gue o cons­
truísse no est ilo clássico. E Scott assim fez, porque foi o que Pal­
merston o mandou fazer.
Em Nova York, Alice Gwynne Vanderbilt mandou George Brow­
ne Post projetar um castelo francês na esq uina da Quinta Avenida
com a Rua Cinqüenta e Sete, e ele copiou o Castelo de Blois até no

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detalhe do cinzelado nas t ravas de bronze das janelas de batentes .
Para não ficar atrás, Alva Vanderbilt contratou o arquiteto america�
no mais famoso da época, Richard Morris Hunt, para projetar uma
casa de verão em Newport , réplica do Petit Trianon , e ele assim fez,
com prazer. Estava pronto a satisfazer essa ou qualquer outra fanta­
sia dos Vanderbilts. " Se quiserem uma casa com uma chaminé em­
baixo", dizia ele, " farei uma". Mas a partir de 1945 os nossos pluto­
cratas, burocratas, presidentes de conselhos, diretores executivos, co­
missários e presidentes de faculdades so frem uma mudança inexpli­
cável . Tornam-se insegutos e reticentes. De repente estão prontos a
aceitar aquele copo de água gelada na cara, aquele tapa revigorante
na b ó ca, aquela reprimenda pelo excesso de gordura em sua alma
burguesa, conhecida como arquitetura moderna.
E por que? Não sabem dizer. Erguem os olhos para ·as fachadas
nuas dos edifícios que compraram, aquelas estruturas gigantescas que
odeiam tão radicalmente, e eles próprios não conseguem entender.
Suas cabeças chegam a doer.

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O PRÍNCIPE DE PRATA

A nossa história começa na Alemanha.logo após a Primeira Guerra


Mundial . Jovens arquitetos americanos,- bem como artistas, escrito­
res e intelectuais diversos, perambulam pela Europa. Essa grande i::ven­
tura boêmia é chamada de''a Geração Perdida' '. Significando o quê?
Em The Liberation of American Literature, V.F. Calverton diz que
durante os séculos XVI I I e XIX os artistas e escritores americanos
sofreram de um "complexo colonialista" e timidamente copiaram
modelos europeus - mas que após a Primeira Guerra Mundial fi­
nalmente encontraram a confiança e o senso de identidade para se
libertar da autoridade européia nas artes. Na realidade não poderia
ter-se enganado mais redondamente.
A máxima da Geração Perdida foi, nas palavras de Malcolm
Cowley, " Na Europa se faz tudo melhor". O que estava em curso
era uma excursão promocional pós-guerra em que praticamente qual­
quer americano - não somente, como nos velhos tempos, um Henry
James, um John Singer Sargent , ou um Richard Morris Hunt - po­
dia viaj ar ao exterior e aprender como se tornar um artista europeu.
O "complexo colonialista" agora paralisava mais que um golpe de
luta livre.
O artista europeu ! Que figura deslumbrante! André Breton,
Louis Aragon, Jean Cocteau , Tristan Tzara, Picasso, Matisse, Az- -

nold Schoenberg, Paul Valéry - tais criaturas sobressaíam com<> as.


estatuetas de bronze e ouro de Gustave Miklos contra os dest roçõs ·

fumegantes da Europa após a Primeira Guerra Mundial . Os destro­


ços, as ruínas da civilização européia, eram parte essencial do qua­
'
dro. O monte de ossos calcinados ao fundo era precisamente o que
fazia um vanguardista como Breton ou Picasso se destacar com tan-:,
to brilho.
Para os j ovens arquitetos americanos que fizeram aquela pere-

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grinação, a figura mais deslumbrante de todas era Walter Gropius,
fundador da Escola Bauhaus. Gropius abriu a Bauhaus em Weimar,
a capital alemã, em 1919. Era mais que uma escola; era uma comu­
na, um movimento espiritual, uma abordagem radical da arte sob
todas as formas, um centro de filosofia comparável ao Jardim de
Epicuro. Gropius, o Epicuro dessa peça, tinha trinta e seis anos, os
cabelos negros e bastos penteados para trás, era magro, vestia-se com
apuro e simplicidade, era irresistivelmente atraente para as mulhe­
res, correto e educado à maneira clássica alemã, fora tenente da ca­
valaria na guerra, condecorado por bravura, um.a figura que trans­
pirava calma, certeza e convicção no centro do turbilhão.
A rigor, não era aristocrata, uma vez que o pai, emb�ra ,abasta­
do, não pertencia à nobreza, mas as pessoas não podiam deixar
de pensar nele como se o fosse. O pintor Paul Klee, que ensinava
na Bauhaus, chamava Gropius de o "Príncipe de Prata". Prata era
perfeito. Ouro seria demasiado vistoso para um homem tão fino e
preciso. Gropius parecia um aristocrata que por um milagre de sen­
sibilidade tivesse conservado todas as virtudes da linhagem e se des­
pojado de todos os esnobismos e pesos mortos do passado.
Os j ovens arquitetos que acorreram à Bauhaus para viver, estu­
dar e aprender com o Príncipe de Prata falavam em "começar do
zero". Gropius emprestava apoio a qualquer experiência que qui­
sessem fazer, desde que as fizessem .em nome de um futuro limpo
e puro. Até novas religiões como a Mazdaznan. Até mesmo regimes
alimentares naturais. Durante um certo período em Weimar a dieta
na Bauhaus consistia unicamente de uma papa de legumes frescos.
Era tão insossa e fibrosa que precisavam temperá-la repetidamente
com alho para que tomasse um gosto qualquer. A esposa de Gro­
pius à época era Alma Mahler, ex-Sra. Gustav Mahler, a primeira
e mais importante representante daquela espécie maravilhosa do sé­
culo XX, a Viúva da Arte. Os historiadores nos informam ter ela
comentado anos mais tarde que os marcos do estilo Bauhaus eram
os cantos de vidro, os telhados planos, os materiais honestos e a es­
trutura explícita. Mas ela, Alma Mahler Gropius Werfel - desde en­
tão acrescentara o poeta Franz Werfel ao enredo - garantia que a
característica mais inesquecível do estilo Bauhaus era ''o bafo de
alho". Contudo! - que puro, que limpo, que glorioso era . come­
. .

çar do zero!
Marcel Breuer, Ludwig Mies van der Robe, Lázló Moholy-Nagy,
Herbert Bayer, Henry van de Velde - todos foram professores na

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Bauháus em algum momento, ao lado de pintores como Klee e Jo­
sef Albers. Albers ensinava o famoso Bauhaus J!'orkurs, ou curso in­
trodutório. Albers entrava na sala, depositava uma pilha de jornais
na mesa, e informava aos alunos que voltaria dali a uma hora. Nes­
se ínterim, deviam transformar as folhas de jornal em obras de arte.
Quando retornava, encontrava castelos góticos feitos de jornal, ia­
tes feitos de jornal, aviões, bustos, pássaros, estações de trem, coi­
sas surpreendentes. Mas sempre havia algum aluno, um fotógrafo

Walter Gropius, o Príncipe de Prata. O Deus Branco n.01. Jovens arquitetos iam
estudar a seus pés. Alguns, como Philip Johnson, só conseguiram se levantar muitas
..
décadas depois.

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ou um vidreiro, que simplesmenJe pegava uma folha de jornal e a
dobrava uma vez armando-a como uma tenda e deixava por isso mes­
mo. Albers apanhava a catedral e o avião e dizia:
" Esses objetos foram projetados para serem executados em pe­
dra ou metal e não em j ornal ." Então apanhava a tenda feita dis­
traidamente pelo fotógrafo e exclamava: " Mas isso! - isso utiliza
a alma do jornal. O papel pode ser dobrado sem partir. O papel tem
força tensiva, e uma vasta área pode se sustentar em duas arestas
finas. Isso! - é uma obra de arte em jornal ." E todos os córtices
cerebrais na sala trocavam isso em miúdos. Tão simples! Tão belo . . .
Era como s e a luz penetrasse n o cérebro obtuso d a pessoa pela pri­
meira vez. Puxa vida! - começar do zero!
E por que não . . . O país do j ovem bauhiiusler, a Alemanha, fo­
ra esmagado na guerra e humilhado em Versailles; a economia en­
.
trara em colapso num delírio de inflação; o kaiser se fora; os social­
democratas tinham assumido o poder em nome do socialismo; ban­
dos de jovens ricocheteavam pelas cidades bebendo cervej a à espera
de uma revolução ao estilo soviético vinda do leste ou, no mínimo,
de algumas brigas violentas. Destroços, ruínas fumegantes - come­
çar do zero! Se a pessoa fosse jovem era uma maravilha. Começar
do zero significava nada mais que recriar o mundo.
É bem instrutivo - face ao espantoso efeito que teria na vida
dos Estados Unidos - recordar algumas das exortações daquele cu­
rioso momento vivido na Europa Central há sessenta anos:
"Pintores, arquitetos, escultores, a quem a burguesia paga alta
recompensa pelas obras - por vaidade, esnobismo e tédio - Ou­
çam ! Esse dinheiro está manchado com o suor, o sangue e a energia
nervosa de milhares de pobres seres humanos acossados. Ouçam! É
um lucro suj o. . . Precisamos ser verdadeiros socialistas - precisamos
fazer brilhar a maior virtude socialista: a fraternidade dos homens."
Assim rezava o manifesto do Novembergruppe, que incluía
Moholy-Nagy e outros projetistas, que mais tarde se r�uniriam a Gro­
pius na Bauhaus. Gropius era presidente do Arbeitsrat für Kunst
·

(Conselho de Desenvolvimento das Artes) do Novembergruppe, que


procurava reunir todas as artes ' 'sob a proteção de uma arquitetura
maior", que " interessaria a todo o povo". Segundo se compreendia
em 1919, todo o povo era sinônimo de operariado. "O intelectual
burguês. . . se provou indigno de conduzir a cultura alemã", dizia Gro­
pius. "Novos níveis intelectualmente não desenvolvidos do nosso po­
vo estão se erguendo das profundezas. São a nossa maior esperança."

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O interesse de Gropius pelo "proletariado" ou "socialismo" afi­
nal não passou de algo estético, de um modismo, um pouco como
0 interesse dos presidentes Truj illo da República Dominicana ou Mao
da República Popular da China no republicanismo. Todavia, con­
forme disse Dostoievski, as idéias têm conseqüências;p-estilo Bau­
haus tinha origem em determinados pressupostos sólidos. Primeiro,
a.nova arquitetura estava sendo criada para os operários. O mais sa­
grado dos obj etivos: aperfeiçoar a habitação do trabalhador. Segun­
do, a nova arquitetura devia rej eitar tudo que fosse burguês. Uma
vez que quase todos os envolvidos, tanto arquitetos quanto burocra­
tas social-democratas, eram eles mesmos burgueses no sentido lite­
ral e social da palavra, "burguês " tornou-se um epíteto que signifi­
cava qualquer coisa que se quisesse. Referia-se a qualquer coisa que
não se gostasse nas vidas das pessoas acima do nível de um servente
de pedreiro. O importante era não ser apanhado desenhando alguma

1 1
A Bauhaus. O reduto de Gropius, construido depois que a Bauhaus se mudou
de Weimar para Dessau em 1925.

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coisa para a qual alguém apontasse e comentasse, com devastador
desdém: "Que coisa mais burguesa".
Os sociais-democratas tanto da Alemanha quanto da Holanda
estavam financiando conj untos habitàcionais operários e, por razões
políticas próprias, éontràtando j ovens arquitetos antiburgueses co­
mo Gropius, Mies van der Robe, Biuno Tuut e J. J.P. Oud, que aos
vinte e oito anos fora nomeado arquiteto-chefe da cidade de Rotter­
dam . Oud era membro de um grupo holandês conhecido como de
Stijl (o Estilo). A Bauhaus e o de Stijl, a exemplo do Novembergruppe
à prova de burguesia, não eram academias nem firmas; na verdade
não se pareciam com nenhuma organização na história da arquite­
tura anterior a 1 897. Em 1 897, em Viena, um grupo de artistas e ar­
quitetos, que incluía Otto Wagner e Josef Olbrich, form aram um gru­
po chamado de Dissidência Vienense e formalmente "romperam"
com a organização cultural austríaca oficialmente reconhecida, a
Künstlerhaus. Nem mesmo os impressionistas franceses tinham ten­
tado tal coisa; o Salon des Refusés que organizaram não passara de
um grito estridente dirigido ao Instituto Nacional: Queremos entrar!
A Dissidência de Viena (e as de Munique e Berlim) deram origem
a uma forma inteiramente singular de associação, o reduto de arte.
Um reduto de arte anunciava-se, de uma forma ou de outra, em
geral através de um manifesto: "Acabamos de retirar a divindade
da arte e da arquitetura das mãos da estrutura oficial de arte J (a
Academia, o I nstituto Nacional, o Künst/ergenossenschaft, ou sej a
o que fo r ) , e ela agora habita conosco, n o nosso reduto. Deixamos
de depender do patrocínio da nobreza, dos empresários, do Estado,
ou de quaisquer outras entidades externas, para a nossa divina emi­
nência. Doravante, qualquer um que queira se banhar na luz divina
da arte deve ir a nós, ao nosso reduto, e aceitar as formas que cria­
mos. Não permitimos alterações, encomendas especiajs, ôu imposi­
ções de clientes. Sabemos o que é melhor. Somos os donos exclusi­
vos da verdadeira visão do futuro da arquitetura.' ' Os componentes
de um reduto formavam uma comunidade artística, reuniam-se re­
gularmente, concordavam com certos princípios morais e estéticos
e os anunciavam ao mundo. A Dissidência Vienense - a exemplo
da Bauhaus de vinte anos depois - construiu realmente um reduto
concreto sob a forma de um edifício modelar, a Casa da Dissidên­
cia, a que denominaram "um templo de arte".·
A criação desse novo tipo de comunidade provou-se absoluta­
mente estimulante para artistas e compositores, bem como para ar-

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quitetos, em toda a Europa, nos primeiros anos deste século. Somos
independentes da sociedade burguesa que nos cerca! (Apaixonaram-se
pelo termo burguês.) E superiores a ela ! Foram os redutos que pro­
duziram o gênero de vanguardismo que constitui uma boa parte da
história da arte do século XX. Os redutos - fossem cubistas, fau­
vistas, futuristas ou dissidentes - apresentavam uma tendência na­
tural ao esoterismo, à geração de teorias e formas que frustravam
a burguesia. Não tardaram a descobrir que o recurso mais perfeito
era pintar, compor, desenhar em código. A genialidade peculiar dos
primeiros cubistas, tais como Braque e Picasso, não foi criar " novas
maneiras de ver " mas criar códigos visuais para as teorias esotéricas
de seu reduto. Por exemplo, a técnica cubista de pintar um rosto em
perfil cartunesco, com os dois lados do mesmo lado do nariz, ilus­
trava duas teorias: (1) a teoria da ausência de relevo, advinda da idéia
de Braque de que uma pintura não era mais que uma determinada
composição de cores e forma sobre uma superfície plana; e (2) a teo­
ria da simultaneidade, derivada das descobertas feitas no novo cam­
po da estereótica indicando que uma pessoa vê um obj eto simulta­
neamente de dois ângulos. Na composição musical, Arnold Schoen­
berg começou a pesquisar música matematicamente codificada que
se a maioria dos compositores achou confusa� que dirá a burguesia
- donde tanto mais irresistível a atração que exerceu na nova era
do reduto de arte.

Compositores, artistas, ou arquitetos de um reduto começaram


a desenvolver os instintos do clero medieval, que dedicavam a maior
parte de suas atividades exclusivamente a se distanciar do povão. No
lugar de povão leia-se burguesia - e se terá o espírito de vanguar­
dismo do século XX. Uma vez no reduto, um artista passava a per­
tencer à igr�j inha para usarmos um velho termo aplicado à intelli­
gentsia com pretensões clericais.
Mas qual era supostamente a fonte da autoridade de um redu·
to? Ora, a mesma de todos os movimentos religiosos: acesso direto
à divindade, que no caso era a Criatividade. Donde, uma nova for­
ma de documento: o manifesto artístico. Nunca houve manifestos
no mundo da arte antes do século XX e da criação dos redutos. Os
futuristas italianos divulgaram seu primeiro manifesto em 1910. De­
pois disso não houve como deter os vários movimentos e ismos. Co­
meçaram a divulgar manifestos dia e noite. Um manifesto não era
nada mais que os Dez Mandamentos de um reduto: " Subimos ao

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alto da montanha e trouxemos de volta a Palavra, e agora declara­
mos que... "

Naturalmente, uma coisa eram os artistas - os futuristas, vor­


ticistas, orfistas, puristas, dadaístas, surrealistas - descerem do al­
to. da montanha com os seus mandamentos e declarações de inde­
pendência e a sua prometéica indiferença à burguesia. E outra bem
diferente os arquitetos, dependentes como são dos favores dos indi­
víduos normalmente conservadores - e, caso prefiram, dos burgue­
ses - que tinham o dinheiro necessário para construir. Por mais sur­
preendente que seja, porém, a estratégia funcionou logo da primeira
vez que foi experimentada, pela própria Dissidência Vienense. GJCJ­
ças a um acidente na história austríaca, o governo interviu concreta­
mente (entrou no reduto) e honrou as reivindicações absurdas da Dis­
sidência. Houve um período de uns cinco anos em que Otto Wagner
e os outros receberam importantes encomendas.• Foi o bastante.
A idéia·do arquiteto inçonciliável tomou-se extremamente contagio­
sa. Antes da Primeira Guerra Mundial, o Deutsche Werkbund fi­
nanciado pelo capital privado desandara a criar formas perfeitas de
arquitetura e artes aplicadas para toda a Alemanha. (O cliente devia
naturalmente pedir em altos brados para entrar e receber a sua par­
te.) Gropius fora uma das principais figuras do Werkbund.
Após a guerra, vários redutos - Bauhaus, de Stijl, Construti­
vista, Neoplasticista, Elementarista, Futurista começaram a com­

petir entre si para estabelecer quem tinha a visão mais pura. E o que
determinava a pureza? Ora, aquela velha estória do que era burguês
(sórdido) e do que era não-burguês (puro).
A luta para ser o menos burguês de todos tomou-se um tanto
desvairada. Por exemplo, no início da jogada, em 1919, Gropius foi
a favor de trazerem simples artesãos para a Bauhaus, peões, traba­
lhadores honestos, gente de testa enrugada e unhas largas que fizes­
se peças a mão para os interiores arquitetônicos, móveis simples de
madeira, objetos simples de cerâmica e vidro, uma coisa simples aqui,
outra coisa simples ali. Isso parecia muito operário, muito não­
burguês. E se interessou também pelos desenhos curvilíneos de ar­
Quitetos expressionistas como Erich Mendelsohn. As teatrais formas
curvas de Mendelsohn rompiam todas as concepções burguesas de

• O governo julgou (erroneamente) que uma arquitetura nova e co�mopolita poderia


contribuir para transcender as virulentas hostilidades étnicas e raciais que existiam
na Áustria.

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ordem, equilíbrio, simetria e as rígidas construções de alvenaria. Tu­
do bem - mas mesmo assim você foi um pouco ingênuo, Walter!
Em 1922 realizou-se o 1 Congresso Internacional de Arte Progressi­
va em Dusseldorf. Foi o primeiro encontro de arquitetos dos diver­
sos redutos de toda a Europa. Logo de saída puseram em discussão
essa estória de não-burguês. Theo van Doesburg, um dos mais ar­
dentes autores de manifestos, deu uma única olhada nos trabalha­
dores honestos e nas curvas expressionistas de Gropius, soltou uma
risadinha desdenhosa e exclamou: Que coisa tão burguesa! Só os ri­
cos podiam comprar objetos bonitos, conforme demonstrara a ex­
periência do movimento Artes e Ofícios na Inglaterra. Para ser não­
burguesa, a arte tinha que ser produzida à máquina. Quanto ao Ex­
pressionismo, suas formas curvilíneas eram um desafio à máquina e
não à burgue � Não eram apenas de fabricação cara, eram "vo­
luptuosos" e ' s1,mtuosos". Van Doesburg, com seu monóculo, na­
riz comprido e surpreendente desdém, podia fazer essas qualidades
parecerem burguesas a ponto de provocarem mal-estar. Gropius era
uma força espiritual sincera, mas era também suficientemente pers­
picaz e competitivo para perceber que van Doesburg o estava encur­
ralando em um canto incômodo.
Da noite para o dia, Gropius imaginou uma nova máxima, um
novo componente heráldico para o reduto Bauhaus: "Arte e Tecno­
logia - uma Nova Unidade! " Completo com ponto de exclamação
e tudo! E agora? Isso devia segurar van Doesburg e todas as coma­
dres holandesas. Trabalhadores honestos, unhas largas e curvas de­
sapareceram da Bauhaus para sempre.
Mas isso foi apenas o começo. As definições, argumentos e acu­
sações e as contra-acusações, contra-argumentos e contradefinições
do que era e não era burguês tornaram-se tão requintados, tão rare­
feitos, tão arcanos, tão dialéticos, tão escolásticos . . . que finalmente
o desenho arquitetônico em si passou a visar apenas uma coisa: ilus­
trar a Teoria do Século deste mês a respeito do que era finalmente,.
infinitamente e absolutamente não-burguês. Os edifícios se torna­
ram teorias construídas em concreto, aço, madêira, vidro e estuque.
(Materiais honestos, não-burgueses, teoria de.) Por dentro e por fo­
ra, eram brancos ou beges com um ocasional detalhe contrastante
em preto e cinza. Bruno Tuut, membro do novo grupo de Mies van
der Robe, o Círculo, desenhara sua parte do conjunto habitacional
operário de Hufeisen, em Berlim, com fachadas vermelhas. " Frente
Vermelha!" bradava, caso houvesse alguém demasiado obtuso para

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entender. Bruno era um sujeito simpático. E Deus sabe que era pro­
fundamente não-burguês... emocional e intelectualmente... Afinal de
contas, era marxista até nas veias saltadas da testa. Era o tipo de
homem a Quem naturalmente encarregaram de projetar um conjun­
to habitacional operário chamado Cabana do Pru Tomás (Onkel Toms
Hütte) em Berlim. Mas uma fachada vermelha? De cor? Bem, que-

O observatório Eimtein Tower projetado por Erich Mendelsohn, exemplo máxi­


mo de arquitetura expressionista.

20
.
ro dizer, puxa - que coisa burguesa! Por que não fo i até o fim e
pintou capuchinhas na fachada como fez Otto Wagner com a sua
Casa Majólica em Viena em 1910! Ah, como caçoaram do pobre Bru­
no por causa de sua querida fachada vermelha. A partir de então,
branco, bege, cinza e preto tornaram-se as cores patrióticas, a ban­
deira geométrica, de todos os arquitetos dos redutos.
Com isso adeus cor. Brandiu-se esse tufão sagrado, a Teoria,
até que os edifícios projetados pelos artistas dos. redutos passaram
a não visar muito mais que isso. Tornaram-se supremamente, ·divi­
namente não-funcionais, einbora tudo fosse feito em nome da " fun­
cionalidade", a palavra funcional sendo um dos vários eufemismos
para não-burguês.
Por exemplo, existia agora a teoria inviolável do telhado plano
e da fachada lisa. Decidira-se, na batalha das teorias, que os teTha­
dos de águas e cornijas representavam as "coroas" da antiga nobre­
za, à qual a burguesia passava a maior parte do tempo imitando.
Portanto, dali em diante só haveria telhados planos; telhados planos
formando impecáveis ângulos retos com as fachadas dos edifícios.
Nada de cornijas. Nada de beirais. Esses jovens arquitetos trabalha­
vam e construíam em cidades como Berlim, Weimar, Roterdã, Ams­
terdã, aí pela altura do paralelo 52, que também passa pelo Canadá,
ilhas Aleutas, Moscou e Sibéria. Nessa faixa do globo, com neve e
chuva suficientes para deter um exército, como a história demons­
trara mais de uma vez, não havia isso de telhado plano funcional
e de fachada funcional sem beirais.• Na verdade é difícil imaginar on­
de tal construção poderia ser considerada funcional, a não ser no De­
serto Pintado. Todavia, não houve recuo do telhado plano e da fa­
chada lisa. Tomara-se o próprio símbolo da arquitetura não-burguesa.
Nada de beirais; e com isso, muito depressa, um dos marcos do tra­
balho dos redutos, que nunca se fazia referência nos manifestos, pas­
sou a ser a parede exterior de reboco bege ou branco permanente­
mente manchada e riscada pela água.
E havia ainda o princípio da "estrutura explícita". A burguesia
sempre fora perita em fachadas falsas (nem é preciso dizer), grossas

• Ocasionalmente permitia-se a construção de um telhado de "águà única", um teto


com um plano inclinado ao invés de dois; e essa exceção à regra encontrada nos con­
juntos habitacionais operários da década de vinte recebe hoje devota homenagem,
em escala gigantesca, nas torres comerciais como a Citicorp em Nova York e a Penn­
zoil Place em Houston.

21
paredes de alvenaria e outros materiais nobres, cobertos de todo o
tipo de quina e aresta e dintel e arcos revestidos de pedra, elementos
antropomórficos aconchegantes como entablamentos e capitéis, pi­
lastras e colunas, plintos e bases rusticadas, para criar a impressão
de cabeça, tronco e pés; e todo o tipo de despropósito - agulhas,
telhas vitrificadas, sacadas envidraçadas, consoles - com o intuito
de criar uma impressão desonesta do que ocorria dentro da casa ar­
quit�tural ou. socialmente. Tudo isso teve que ser dispensado. Toda
a alvenaria, todo aquele granito, mármore, arenito e tij olos cerâmi­
cos maciços e "luxuosos" eram suspeitos, a não ser quando obvia­
mente usados de maneira a não sobrecarregar. Dali em diante as pa­
redes seriam finas películas de vidro ou estuque. (Pequenos tijolos
vitrificados de cerâmica bege também eram válidos quando necessá­
rios.) Uma vez que as paredes já não eram usadas para sustentar a
construção - isso agora era tarefa das estruturas de aço, concreto
. ou madeira - era desonesto fazer as paredes parecerem atarracadas
como as de um castelo. A estrutura interior, os elementos fabrica­
dos por máquinas, os retângulos mecânicos, a alma moderna de um
edifício devia estar expressa no seu exterior, completamente livre de
adornos sobrepostos. A expressão máxima desse princípio era a Ca­
sa Schroeder do arquiteto Gernt Rietveld do movimento de Stijl. Riet­
veld vestiu o exterior de projeções cuja única função era indicar o
reticulado, o diagrama, o paradigma, a progressão geométrica em
que os planos se baseavam. Assombroso! Que virtuosidade! Que coisa
tão não-burguesa!

Assim sendo, no mundo dos redutos de arquitetura, a competi­


·
ção agora transcorria em dois níveis. Não havia meramente a com­
petição imemorial para receber encomendas e ter uma oportunida­
de de mostrar ao mundo o que se podia fazer construindo edifícios
e vendo-os subir. Havia também a competição puramente intelectual
das teorias. Uma vez que a divindade da arte agora habitava os re­
dutos e nenhum outro lugar, não havia nada que impedisse um ho­
mem inspirado e genial, um sacerdote, um hierofante, um Duns Sco­
tus, de fazer seu nome sozinho sem sequer abandonar o recinto sacer­
dotal. Com isso nasceu mais um fenômeno único: o arquiteto famo­
so que construía pouco ou nada.
O primeiro do gênero foi o futurista Sant'Elia, com as suas cons­
truções visionárias destinadas à Milão do futuro, que ele projetou

22
em grande detalhe nos anos que antecederam a guerra. Mas Sant'Elia,
que morreu na guerra, não foi nada comparado à estrela do mundo
artístico parisiense, o suíço Le Corbusier. Le Corbusier era o tipo
do intelectual incansavelmente racionalista que somente a França é
capaz de amar de todo o coração, o lógico que voa cada vez mais
alto em círculos concêntricos sempre decrescentes até que, .numa úl­
tima indução absolutamente inevitável, ele desaparece pela própria
abertura fundamental e sai na quarta dimensão sob a forma de um
longilíneo passarinho fusco.
Os instintos de Corbusier com relação à era do reduto foram
impecáveis. Anos antes, ele parecia ter compreendido o que veio a
se tornar um axioma na competição artística do século XX. Ou se­
ja, de que o jovem artista ambicioso tinha que aderir a um "movi­
mento", uma "escola", um ismo - o que equivale dizer, a um redu­
to. Ou ele se dispunha a aderir a uma igrejinha e subscrever seus códi­
gos e teorias ou desistia de qualquer esperança de prestígio. Esmiuça-

A Vil/a Savoye projetada por Le Corbusier. Telhado plano. Fachada lisa. Estuque
branco. E "estacas" (pilotis). "Coluna" era uma palavra burguesa.

23
se em vão a história da arte e da arquitetura a partir de 1900 em bus­
ca de uma figura de grande prestígio que, à maneira de Thoreau,
marche ao ritmo de um tambor diferente, o gênio solitário cuja obra
só possa ser descrita como sui generis. (Com a possível exceção de
Frank Lloyd Wright, cujo destino examinaremos daqui a pouco.) Ao
invés, a muito aclamada figura solitária que encontramos é q artista
ou arquiteto que, a exemplo de Kasimir Malevich, é suficientemente
inteligente para se ocultar sob a exterioridade de um movimento, de
um ismo, e fundar o reduto de um homem só. Ou, se consegue en­
contrar um companheiro, um reduto de dois homens. E então pro­
clama: "Sou um suprematista! (ou um purista! ou um orfista!) Não
pensem que estou aqui sozinho! O resto da rapaziada vai chegar a
qualquer momento!" Le Corbusier deu o braço ao colega Amédée
Ozenfant - e passou a ser o Purismo.
Le Corbusier era um homem magro, pálido, míope que andava
numa bicicleta branca, metido em um terno preto e justo, camisa

A Casa Schroeder de autoria de Gerrit Rietveld. Os holandeses sabiam realmente


fazer uma casa à prova de burguesia.

24
branca, gravata preta, óculos redondos de aros pretos como os de
uma coruja e um chapéu-coco preto. Aos espantados circunstantes,
ele explicava que se vestia assim para parecer o mais arrumado, pre­
ciso e anônimo possível, para ser o perfeito manequim produzível
em série na Era da Máquina. Chamava as casas que projetava de
"máquinas de morar". Le Corbusier ia a Alemanha e a Holanda e
era muito conhecido em todos os redutos e em todos os congressos,
conferências, simpósios e debates, em todos os lugares em que se
fizesse ouvir a batida insistente do manifesto, a música dos redu-

Le Corbusier, O Sr. Purismo. Mostrou a todo o mundo como se tornar um arqui­


teto famoso sem construir nada. Construiu a Cidade Radiosa no crânio.

25
tos: Declaramos ...! Declaramos ...! Declaramos ...! Ele era
veemente, incisivo, brilhante, era Tomás de Aquino, os jesuítas, Dou­
tor Sutil e os escolásticos, Marx, Hegel, Engels, e o Princípe Kro­
potkin num homem só. Seu Vers une architecture era um evangelho.
Por volta de 1 924 era considerado um dos gênios reinantes da nova
arquitetura. No seu mundo ele era . . . Cor bu! do mesmo jeito que Ore­
ta Garbo era Gar bo! Tudo por força do seu manifesto, do seu fana­
tismo, e de um punhado de casinhas: construídas para o irmão, para
Ozenfant, para os parentes e boêmios. Em seguida construiu uma
para Mamãe e Papai . O asilo para idosos da Mamãe, que ela cus­
teou e teve que agüentar, tornou-se o próprio símbolo da arquitetu­
ra de reduto.
Foi a sina particularmente triste de Le Corbusier morar e traba­
lhar na França. Quem na França ia aceitar os termos de um reduto
de arquitetura? Que seriam: " Doravante, quem quer que deseje se
banhar naquela luz divina deve vir a nós, ao nosso reduto, e aceitar
as formas que criamos. Não permitimos alterações, nem encomen­
das especiais nem imposições de clientes.' ' Quem se aventuraria! Pra­
ticamente ninguém, a não ser que estivesse possuído de um amor
semelhante ao da mãe de Corbu ou fascinado pelo Le Moderne, co­
mo o urbanizador Frugés, que encarregou Le Corbusier de projetar
apartamentos econômicos na cidade de Pessac, Bordeaux, em 1925 .
A maioria dos mortais em posição de encomendar edifícios prefe­
riam o estilo Belas-Artes, a síntese dos últimos dias dos refloresci­
mentos que começaram na Renascença. Os redutos nem possuíam
pú blico, nem clientela no sentido comum. A realidade brutal é que
era difícil os arquitetos de redutos arranjarem trabalho a não Ger que
houvesse um governo - normalmente socialista - que tivesse real­
mente decidido: precisamos imprimir um novo estilo por aqui, e pa­
rece que vocês têm um. Tomem aqui o orçàmento; façam o que qui­
serem .
Afinal, foi o governo social-democrata alemão de Stuttgart que
entregou a Le Corbusier uma das principais incumbências de sua car­
reira. lsso aconteceu em 1927, e graças a Mies van der Rohe. O gover­
no de Stuttgart encarregou Mies de uma exposição de conjuntos ha­
bitacionais operários, o projeto Weissenhof Werk bund. Apesar do
orçamento extremamente exíguo, Mies conseguiu transformar o pro­
jeto em uma feira mundial de conjuntos habitacionais. Chamou Le
Corbusier da França, Oud e Mart Stam da Holanda, e Victor Bour­
geois da Bélgica e outros onze alemães, inclusive Gropius, Bruno Taut,

26
0 irmão de Bruno, Max, e Peter Behrens. Os não-participantes se sur­
preenderam com a harmonia ou mesmice (dependendo se gostavam ou
não do estilo) da obra desses arquitetos de quatro países diferentes .
Era como se um novo estilo internacional estivesse no ar. A verdade
é que o mecanismo interno de competição nos redutos, o perene re­
ducionismo - não-burguês! - os colocara todos no mesmo cubí­
culo minúsculo, que não cessava de encolher, como o quarto num
conto de Poe. A não ser que desistissem inteiramente do divino j o­
go, não lhes seria possível distinguir um do outro de forma visível
a qualquer mortal exceto outro arquiteto de reduto equipado, como
um criptógrafo, com as lentes da Teoria.
E que aparência tinham esses conj untos operários? Não­
burguesa, mas por pouco: os telhados planos, sem cornij as, as pare­
des lisas, as janelas, sem arquitraves, dintéis, capitéis ou frontões,
nas cores únicas dos redutos, branco, bege, cinza e preto. Os interio­
res não tinham coroas nem diademas. Tinham cômodos imaculada­
mente brancos, despoj ados, purgados, liberados, livres de quaisquer
revestimentos, cornij as, abobadilhas, molduras (para não falar no res­
to), pilastras, e até frisos ogivados nos tampos das mesas e perola­
dos nas gavetas. Apresentavam grandes vãos livres, acabando com
a velha obsessão burguesa, individualista, de intimidade. Nada de
papéis de paredes, nada de reposteiros, nada de tapetes grossos e flo­
ridos, nada de abajures com copas e bases franj adas que pareciam
vasos ou colunas gregas, nada de paninhos rendados, bricabraques,
consoles de lareira, cabeceiras de cama ou disfarces para radiadores.
Deixavam as serpentinas dos radiadores nuas, honestas, abst ratas,
objetos esculturais que eram . E nada de móveis estofados com teci­
dos "bonitinhos". A mobília era feita de materiais honestos em tons
_ n aturais: couro, tubos e aço, verga, cana-da-índia, lona; quanto mais
leves - e mais duros - melhor. E nada de tapetes e carpetes " lu­
xuosos". Linóleo cinza ou preto era o quente.
E que achavam os operários da casa operária? Ah, eles se quei­
xavam , como era de sua natureza nessa etapa da história. Em Pessac
os pobres _coitados frenéticos viravam os cubos nus de Corbu pelo
avesso tentando fazê-los aconchegantes e coloridos. Mas era compreen­
sível. Conforme dizia o próprio Corbu, precisavam ser "reeducados"
para compreender a beleza da "Cidade Radiosa" do futuro. Em ques­
tões de gosto, os arquitetos agiam como benfeitores culturais dos ope­
rários. Não adiantava consultá-los diretamente, já que, conforme Gro­
pius observava, ainda se encontravam "intelectualmente subdesen-

27
volvidos". De fato nisso residia a grande atração do socialismo para
os arquitetos na década de vinte. O socialismo era a resposta políti­
ca, o grande sim-senhor às reivindicações aparentemente impossí­
veis e absurdas dos arquitetos dos redutos, que insistiam que o clien­
te ficasse de boca calada. No socialismo, o cliente era o trabalhador.
Ai dele, o desgraçado só agora estava começando a tirar o pé da la­
ma. Entrementes, o arqtJiteto, o artista e o intelectual resolveriam
a vida dele. Usando a frase de Stalin, seriam os engenheiros de sua
alma. Nos blocos de apartamentos que construiu em Berlim para
os empregados da Siemens, o "engenheiro da alma" Gropius deci­
diu também poupar os operários dos tetos altos e dos corredores lar­
gos, além de outros objetos e decorações fora de moda. Tetos altos
e corredores largos e "amplidão" sob qualquer forma eram gran­
diosidade burguesa, expressa em espaços ocos ao invés de sólidos.
Tetos de 2,IOm de altura e corredores de 90cm eram a medida certa
para ... recriar o mundo.

Começando de zero! Bem, puxa vida! Os peregrinos america­


nos, os jovens arquitetos americanos que estavam excursionando pela
Europa a preços promocionais - Louis Kahn, Edward Durell Sto­
ne, Louis SkidmQre, e muitos outros - só precisavam comparar a
posição daqueles rapazes com a deles. Qual era a melhor coisa que
um jovem arquiteto poderia esperar nos Estados Unidos? Se fosse
uma pessoa de sorte excepcional, talvez recebesse a incumbência de
projetar uma casa de fim de semana no litoral norte de Long Island
para algum fominha de Wall Street. George Howe, amigo de Louis
Kahn, gostava de dizer: "Costumávamos construir para eles solares
normandos completos à exceção do monte de estrume no pátio." O
máximo. O auge da excitação nos círculos de arquitetura america­
nos eram aqueles admiráveis estilos novos, Normando Litoral Norte
e Tudor Westchester, também conhecidos como Meio-vigamento de
Corretor. Que aspiração... comparada a recriar o mundo!
•..

Até ehtão o arquiteto americano fora um homem cujo trabalho


era emprestar coerência e detalhe às fantasias românticas dos capi­
talistas. Mas agora, na Europa, viam-se grupos de arquitetos traba­
lhando com a divina autonomia dos grandes artistas.
Não, a atitude dos redutos europeus, de Gropius e da Bauhaus,
de Mies, Corbu, e de Stijl, era absolutamente irresistível. Havia di­
versos problemas a superar, porém. Para começar, a idéia de come-

28
çar do zero não fazia sentido algum nos Estados Unidos. A triste
verdade é que os Estados Unidos não tinham sido reduzidos a es­
combros fumegantes pela Primeira Guerra Mundial. Saíram da guerra
por cima.
O único combatente não demolido, dizimado, exaurido, ou ati­
rado numa revolução. Era agora uma das Grandes Potências, j ovem,
em ascensão, explodindo de vigor e de uma saúde sobre-humana. E
não era só isso, não possuía monarquia nem nobreza a derrubar, de­
sacreditar, culpar, vilanizar ou atacar de alguma forma. Nem mes­
mo possuía burguesia. Na ausência de uma nobreza ou tradição de
nobreza, o conceito europeu de burguesia não podia ser aplicado.
(Escritores americanos, fascinados pelo exemplo europeu ,
importaram-no mesmo assim, como se importa um par de sapatos
Lobb ou um vidro de caviar Beluga, e começaram a falar de " bu­
j oasi ", " Babbitt ", " u fanismo� e todo o resto.) Havia muito pouco
interesse pelo socialismo. E menos ainda por conj untos operários.
Nem ·se falava nisso.
Contudo . . . tinha que ser! Como é que alguém podia retroceder
depois de ter visto a Cidade Radiosa? A grande visão da nova arqui­
tetura européia de conj untos operários tinha que ser levada aos Es­
tados Unidos pelos meios que fossem necessários, da forma que fosse
possível . De qualquer forma.
ó j ovem príncipe de prata destacando-se dos destroços ao fundo!

29
li

UTOPIA LIMITADA

Assim foi gue se escreveu um dos documentos mais influentes e ex­


cêntricos de toda a história do complexo colonialista. Era uma obra
intitulada The International Style, da autoria de Henry Russell Hitch­
cock e Philip Johnson, o filho de vinte e seis anos de um rico advo­
gado de Cleveland. O rapaz doara ao Museu de Arte Moderna o di­
nheiro para fundar uma divisão de arquitetura, que então ºpassou
a chefiar. Hitchcock e Johnson escreveram The International Style
para o catálogo da.mostra de fotografias e maquetes organizada pelo
museu em 1932 com o objetivo de apresentar a Nova York o traba­
lho de Gropius et alii. O termo "lnternational Style" foi tirado do
título de um livro que Gropius publicara sete anos antes, Internatio­
nal Architecture.
O catálogo de museu, que é uma espécie de erudição resultante
de trabalho forçado ou de revólver apontado para a cabeça, é um
texto famoso pela sofistaria se não pelo patente ridículo. Mas The
International Style era literatura de categoria superior. Refulgia... com
a clareza alucinatória de um folheto da Igreja de Galilee Walker. Os
dois homens uivavam enamorados de uma lua prateada e principesca.
Com absoluta seriedade estabeleciam uma distinção entre ar­
quitetura e construção, a exemplo de Vitruvius há uns dois mil anos
atrás. O grifo, presumivelmente, visava -indicar que esses termos eram
categorias científicas objetivas. Na Europa, Gropius, Mies van der
Robe, Le Corbusier e Oud - os quatro grandes "funcionalistas eu­
ropeus", como Hitchcock e Johnson os chamavam - estavam crian­
do arquitetura. Nos Estados Unidos, até os arquitetos que pensavam
serem modernos e funcionais estavam apenas fazendo construções.
Ah, sempre havia Frank Lloyd Wright, naturalmente... e algo ente­
diados, Hitchcock e Johnson prestavam homenagem à sua obra ...

31
no passado distante . . . e em seguida concluíam que ele era apenas
"meio-moderno". O que equivalia a dizer que já era e podia ser es­
quecido.
Quanto ao orgulho da arquitetura americana do século XX, o
arranha-céu, eles mal conseguiam conter o riso. Os arranha-céus eram
composições vâzias decoradas com "festões" e Deus sabe o que mais.
Os arquitetos americanos, e muito particularmente os arquitetos de
arranha-céus, estavam sempre dispostos a "desfigurar" seus edifí­
cios com um mau traço, se o cliente exigisse. Os europeus, insinua­
vam, dariam as costas a um contrato antes de se submeter a uma
idiotice dessas.
Em seu p refácio ao The lnternational Style em forma de livro,
o diretor do M useu de Arte Moderna, Alfred Barr, deu uma olhada
nos remates, nas coroas, dos arranha-céus mais famosos de Nova

O Empire State Building (esquerda) e o Chrysler Building (direita). Ah, como ca­
çoaram dos enfeites de árvore de Natal no topo!

32
Yor k . Ficou estarrecido. "As gárgulas de aço inoxidável do Chrysler
Building' ', "o fantástico mastro de amarração no alto do Empire Sta­
te" - como é que se materializavam tais vulgaridades! Muito sim­
ples: os arquitetos americanos paravam e escutavam o que o cliente
tinha a dizer. Já ouvira até arquitetos argumentarem, talvez cinica­
mente, que os pavorosos enfeitezinhos e ocas grandiosidades eram
" ful'lcionais". uma vez que uma das funções de um edifício era agra­
dar ao cliente. " Exigem", dizia Barr, "que levemos a sério o gosto
arquitetônico dos especuladores imobiliários, administradores imo­
biliários e corretores hipotecários! ' '
Hitchcock e Johnson gastaram muitas páginas analisando os
projetos dos grandes ' ' funcionalistas' ' - e nenhuma analisando ques­
tões inconvenientes tais como operários, habitações operárias e socia­
lismo, e menos ainda as batalhas desvairadas entre redutos. Havia
apenas o comentário obscuro e ocasional de que os arquitetos ame­
ricanos não podiam " reivindicar para seus arranha-céus e edifícios
de apartamentos a ampla j ustificativa sociológica que existe para os
conj untos habitacionais operários, as escolas e os hospitais da Eu­
ropa".
De fato, não davam qualquer indicação de que o Estilo I nter­
nacional - e e sse rótulo pegou imediatamente - tivesse se origina­
do em um contexto social, uma terra firme, de qualquer tipo.
Apresentavam-no como uma tendência inexorável , de natureza meteo­
rológica, como uma mudança de tempo ou uma maré. O Estilo I nter­
nacional era nada menos que o primeiro grande estilo universal desde
os reflorescimentos medieval e clássico, e o primeiro estilo verdadei­
ramente moderno desde o Renascimento. E se os arquitetos ameri­
canos quisessem pegar essa onda, ao invés de serem engolfados por
ela, primeiro teriam que compreender uma coisa: o cliente só era le­
vado em conta na hora de custear a obra. Se cooperasse, e não fosse
muito chato, admitia-se que participasse da nova visão. De que ma­
neira isso funcionaria na prática, ninguém dizia. Uma maré precisa­
va dar explicações?
A mostra e o catálogo criaram uma fantástica agitação na co­
munidade americana de arquitetura, principalmente devido à impor­
tância do museu em si. O Museu de Arte Moderna era o complexo
colonialista inflado a dimensões prodigiosas. Na Europa, os movi­
mentos de vanguarda, quer fossem fauvistas, cubistas, neoplasticis­
tas ou a Bauhaus, eram iniciados e desenvolvidos por artistas e ar­
quitetos. Na Europa, é claro, nem se precisava repetir. Numa etapa

33
posterior, como acontecera em Viena após a virada do século e em
Paris e Londres no início da década de vinte, os empresários mais
aventureiros e outros membros da burguesia talvez os apoiassem, por
razões políticas ou por piedade cultural ou simplesmente para pare­
cerem-chiques, " modernos' ', e nada burgueses. Só nos Estados Uni­
dos acontecia exatamente o oposto. Só nos Estados U nidos os em­
presários e suas esposas apresentavam a arte e a arquitetura de van­
guarda e abriam caminho com a bandeira desfraldada incitando os
profissionais a segui-los, se tivessem agilidade mental para tanto.
O Museu de Arte Moderna, afinal de contas, não era bem filho
intelectual de socialistas e boêmios visionários. Fora fundado na sa­
la de estar de John D. Rockefeller, Jr. , para sermos mais precisos,
em companhia de A. Conger Goodyear, e a Sra. Cornelius Newton
Bliss e a Sra. Cornelius J. Sullivan. Tinham visto seus congêneres
em Londres regalando-se com o chique e a excitação de Picasso, Ma­
tisse, Dérain, e o resto de Le Moderne e estavam decididos a importá­
lo para Nova York e para si. Em 1929 inauguraram o museu e con­
solidaram o modernismo europeu na pintura e na escultura,
institucionalizaram-no da noite para o dia, de maneira avassalado­
ra, como o novo padrão para as artes americanas. A exposição In­
ternational Style estava destinada a fazer o mesmo pelo modernis­
mo europeu em arquitetura.
Os nossos vanguardistas visionários! Rockefellers, Goodyears,
Sullivans e Blisses! ó petroleiros, madeireiros, comerciantes de se­
cos e suas mulheres!
Foi maravilhoso. Parecia o enredo da opereta de Gilbert e Sulli­
van, Utopia Limited. O Rei Paramount, governante de um paraíso
tropical, ouvindo contar que os ingleses eram a última palavra em
matéria de roupas, fala, modos e cultura, converte sua corte ao esti­
lo inglês. Ele e seus servidores despem imediatamente os saiotes, fo­
lhas de palmeiras e orquídeas e enfiam calções, sobrecasacas, peru­
cas, espartilhos, saias rodadas e sapatos de bico fino. E ordenam aos
súditos que façam o mesmo. Perplexos, mas impressionados, eles obe­
decem.
Na opereta, como se poderia prever, o rei e seus conterrâneos
descobrem, com o passar do tempo, que os costumes nativos afinal
eram melhores; e o alvo da última risada são os europeus. Nesse ponto
Gilbert e Sullivan e o mundo artístico de Nova York se distanciam.
Nem por um instante os petroleiros e os madeireiros ou seus súditos
- os artistas - t iveram a menor dúvida de que as idéias européias

34
eram melhores. Durante toda a década de trinta, os artistas locais,
n otadamente Arshile Gorky, murmuraram e protestaram que o mu­
seu dedicava' todos os · seus recursos às obras européias e nunca lhes
dava uma chance. Mas eles não estavam realmente interessados. O
complexo colonialista se tornara tão intenso que a reação-padrão à
reputação dos europeus não era competir com eles mas imitá-los,
muitas vezes com total descaramento.
O modelo de Gorky era Picasso, e pouco lhe importava se al­
guém sabia disso. Um amigo disse a Gorky que, em sua opinião, .as
obras mais recentes de Picasso pareciam feitãs com preguiça e des­
leixo. Em muitas telas as bordas estavam borradas. Havia até pingos
de tinta escorridos .
• " Se Picasso borra" - disse Gorky - "então eu borro. Se ele .
pinga, eu pingo."
No momento seguinte, porém, sua posição parecia insustentá­
vel . Caía em depress ão. Certo dia convocou todos os artistas que co­
nhecia para uma reunião em seu estúdio.
" Vamos enfrentar" - disse-lhes. " Estamos falidos."
Tal era a atmosfera mental em que Hitchcock e Johnson intro­
duziram o Estilo Internacional . Mal sabiam que eram apenas o men­
sageiro Elias, os Mahaviras, os arautos batistas de um evento mais
milagroso do que qualquer deles teria ousado suplicar: a vinda.

35
111

OS D E U S ES B RA N COS

Repentinamente, em 1937, o próprio Príncipe de Prata estava nos


Estados Unidos. Walter Gropius; em pessoa; em carne e osso, e vie-
' ra para ficar. Na esteira da ascensão nazista ao poder, Gropius fugi- ·
ra da Alemanha, indo primeiro para a Inglaterra e agora para os Es­
tados Unidos. Outras estrelas da fabulosa Bauhaus chegaram mais .
ou menos na mesma época: Breuer, Albers, Moholy-Nagy, Bayer e
Mies van der Robe, que se tornara diretor da Bauhaus em 1 930, dois
anos depois que Gropius, já então sob pressão devido à aura esquer­
dista do reduto, pedira demissão. Ali vinham eles, desenraizados,
exaustos, sem vintém, homens sem pátria, golpeados pelo destino.
Gropius possuía o saudável amor-próprio de qualquer homem
ambicioso, mas era acima de tudo um cavalheiro, um cavalheiro da
velha guarda, um homem que sempre se preocupava com o senso
de proporção, tanto na vida quanto na arte. Na qualidade de refu­
giado de uma terra assolada, teria se contentado com uma recepção
amistosa, um lugar para descansar a cabeça, duas ou três refeições
por dia até que conseguisse se pôr outra vez de pé, um sorriso de
vez em quando e urna oportunidade de trabalhar, se alguém preci-
·

sasse dele. Ao invés. . .


A recepção a Gropius e seus confrades foi corno urna certa ce­
na-padrão nos filmes de selva daquele período. Bruce Cabot e Myrna
Loy fazem uma aterrissagem acidentada na selva e se arrastam para
fora dos destroços metidos em calças de montaria de gabardine bege
e blusas safári brancas da Abercrornbie & Fitch e cambaleam até uma
clareira. São cercados por selvagens com pedaços de ossos atraves­
sados no nariz - que imediatamente se curvam e se prostram e ini­
ciam um canto estranho e gemido.

Os Deuses Brancos!
Vieram finalmente do c éu !

37
Gropius foi nomeado diretor da Escola de Arquitetura de Har­
vard , e Breuer se reuniu a ele. Moholy-Nagy abriu a Nova Bauhaus,
que 'acabou se transformando no Chicago Institut e of Design. Al­
bers abriu uma Bauhaus rural nas montanhas da Carolina do Norte,
no Black Mountain College. Mies instalou-se como decano de ar­
quitetura no Armours I nstitute de Chicago. E não só como decano;

Ludwig Mies van der Rohe. O Deus Branco n.02. Ele enfiou metade dos Estados
Unidos nos cubos criados para os operários alemães.

38
mestre- cons trut or também . Deram-lhe um campus universitário pa­
ra criar, v inte e um prédios ao todo, quando o Armour Institute se
fundiu ao Lewis Institute para formar o Illinois Institute of Techno­
logy. Vinte e um grandes prédios, em plena Depressão, num momento
em que as construções tinham quase parado nos Estados Unidos -
para um arquiteto que só terminara dezessete obras em sua carreira
ó Deuses Brancos !
Tuntas prostrações ! Tantas homenagens! O Museu de Arte Mo­
derna homenageou Gropius com uma mostra denominada " Bauhaus:
1919-1928", anos em que Gropius a dirigiu. Philip Johnson, agora
com trinta e quatro anos, não conseguiu mais resistir a presença físi­
ca d os deuses. levantou acampamento rumo a Harvard para estu­
·
dar arquitetura aos pés de Gropius. Começando do zero! (Se a ver-
dade fosse dita ele teria preferido estudar ao pés de Mies, mas para
um rapaz supremamente urbano como era Johnson, podemos estar
certos de que a idéia de se mudar para Chicago, Illinois, durante três
anos, era um pouco mais zero do que tinha em mente.)
Foi embaraçoso, talvez . . . mas era o tipo de coisa com que se
aprende a conviver. . . Em três anos o curso de arquitetura americana
mudara, por completo. Não era tanto pelos edifícios que os alemães
projetaram nos Estados Unidos, embora Mies viesse a se tornar in­
fluentíssimo uma década depois. Era mais pelo sistema de ensino
que introduziam. E não só isso, era a presença deles em si. As criatu­
ras mais fabulosas de toda a mitologia da arte americana do século
XX - ou seja, aqueles fascinantes artistas europeus posando de for­
ma tão exótica com os destroços ao fundo - estavam . . . ali!... en ­
tão!... na terra do complexo colonialista . . . para governar, em pessoa,
a grande Nigeriazinha das Artes.
Essa curiosa fase da história colonial tardia de maneira alguma
se restringia à arquitetura, porque o complexo colonialista permea­
va tudo. Estrelas dos dois grandes movimentos rivais da pintura eu­
ropéia, os cubistas e os surrealistas, começaram a chegar como refu­
giados em fins da década de trinta e início da de quarenta. Léger,
Mondrian, Modigliani, Chagai!, Max Ernst, André Qreton, Yves Tun­
guy - Ó deuses brancos! A Cena Americana e a pintura Social Rea­
lista dos anos 30 desapareceram para nunca mais reaparecer. Com
os europeus, os artistas de Nova York aprenderam a criar a própria
igrej inha.
O primeiro reduto de arte americano, a chamada Escola de Ex­
pressionismo Abstrato, de Nova York formou-se na década de qua-

39
renta, com reuniões regulares, manifestos, novas teorias, novos có­
digos visuais, o pacote completo. Arnold Schoenberg, o deus bran­
co de todos os deuses brancos da música européia, chegou refugia­
do em 1 936. Nos quarenta anos seguintes, a música séria nos Esta­
dos Unidos tornou-se uma nota de rodapé na teoria da composição
séria de Shoenberg. Havia uma considerável ironia nisso. Muitos com­
positores consideravam o jazz americano e os compositores ameri­
canos da qualidade de George Gershwin, Aaron Copland e Ferde Gro­
fé forças libertadoras, saídas para a hiper-racionalização da música
de vanguarda européia tipificada por Schoenberg. Mas os composi­
tores americanos sérios, de um modo geral, não queriam saber dis­
so. Agiam como sauditas a quem se dissesse que suas tendas são ma­
ravilhosas porque são tão. naturais e indígenas e ecológicas. Queriam
o artigo genuíno - o artigo europeu - e o agarraram com todas
as forças. Dali em diante falava-se de Gershwin, Copland e Grofé
com condescendência ou então flagrante desdém.*
Na arquitetura, naturalmente, o Príncipe de Prata tornou-se o
principal dirigente, o governador da colônia, por assim dizer. O en­
sino de arquitetura em Harvard se transformou da noite para o dia.
Tudos começavam do zero. Todos agora aprendiam os fundamentos
do Estilo Internacional - o que equivale a dizer, o estilo do reduto.
Toda a arquitetura tornou-se uma arquitetura não-burguesa, embo­
ra deixassem o conceito em si discretamente inexplícito, por assim
dizer. As velhas tradições das Belas-Artes tornaram-se heresia, bem
como o legado de Frank Lloyd Wright, que para começar mal che­
gara às escolas de arquitetura. Em três anos, tudo que se poderia
chamar de importante contribuição americana à arquitetura contem­
porânea - de autoria de Wright. H. H. Richardson, criador do
românico-rústico americano, ou Louis Sullivan, líder da "escola de
Chicago" de arranha-céus - tinha caído ao nível das notas de ro­
dapé, dos matagais do ibid.
O próprio Wright ficou furioso e, uma das raras vezes na vida,
perplexo. Era difícil dizer o que o incomodava mais: o fato de sua
obra ter sido desdenhada pelos europeus ou o fato de passar a ser

• Ocorreú o mesmo no campo da psicologia. làntos psicanalistas freudianos de reno­


me aportaram aos Estados Unidos (por exemplo, Heinz Hartmann e Ernst K ris), que
o país se transformou no único centro importante de psicologia freudiana do mundo.
As contribuições americanas à psicologia, mesmo as bem-vistas na Europa, tais co­
mo as de William James foram consideradas atrasadas nos quarenta anos seguintes.

40
tratado como uma espécie de cadáver ambulante. Não o privaram
de honrarias e reverências, mas quando as prestavam, na maioria das
vezes pareciam homenagens póstumas. O Museu de Arte Moderna,
por exemplo, realizou uma exposição da obra de Wright em 1 940 -
mas acoplada a uma mostra da obra do diretor de cinema D. W. Grif­
fith, que se aposentara em 1 93 1 . Mies fez uma declaração muito ele­
gante falando da genialidade de Wright e da maneira como abrira os
olhos dos arquitetos europeus... antes da Primeira Guerra Mundial...
Mas quanto à gratidão que poderia ter sentido diante dos oitenta
e tantos edifícios que Wright projetara desde então, ele nada disse.
O final da d �cada de 20 e o início da década de 30 tinham sido
desastrosos para Wright. Já completara cinqüenta e oito anos quan­
do, em 1 925, um incêndio destruiu seu estúdio em Taliesin, Wiscon­
sin. Problemas com a amante, Miriam Noel, pareciam paralisar o
seu trabalho. Os negócios tinham sofrido uma séria queda mesmo
antes da Depressão: Wright finalmente se entocara, como um russo
branco em penúria, no refúgio reconstruído em Taliesin, com uns
doze aprendizes, conhecidos como os Companheiros de Thliesin, e
seus chapéus de feltro de copa chata e aba revirada, boinas, colari­
nhos altos e gravatas esvoaçantes, e suas pelerines de Stev�nson, o
alfaiate de Chicago. O próprio Wright fora aprendiz de Sullivan e
rompera com o mestre ou fora despedido - cada qual tinha a sua
versão - mas Wright levara consigo a visão de Sullivan de lima ar­
quitetura totalmente nova e totalmente americana, nascida do solo
e do espírito americano do Meio-Oeste. Bom, agora, finalmente, em
fins da década de trinta havia uma arquitetura totalmente nova nos
Estados Unidos, e viera diretamente da Alemanha, Holanda e Fran­
ça, o componente francês sendo Le Corbusier.
Todas as vezes que Wright lia que Le Corbusier terminara um
edifício, -dizia aos companheiros: "Bom, agora que terminou um edi­
fído, vai escrever quatro livros sobre ele." Le Corbusier fez uma vi­
sita aos Estados Unidos - e criou uma fobia a esse país - e Wright
criou uma fobia a Le Corbusier. Recusou a única oportunidade de
conhecê-lo. Não quis ser obrigado a lhe apertar a mão. Quanto a
Gropius, Wright sempre se referia a ele como "Herr Gropius ". Não
queria lhe apertar a mão, tampouco. Certo dia Wright fez uma visi­
ta surpresa a um canteiro de obras em Racine, Wisconsin, onde a
primeira de suas casas "Usonianas", versões de custo médio dos so­
lares projetados na Prairie School, estava em construção. O Lincoln
Zephyr verm elho de Wright parou na entrada. Um de seus aprendi-

41
zes, Edgar Tufei, ia ao volante, servindo de motorista. Naquele ins­
tante, vinha saind.o do prédio um gr upo de homens. Entre eles nin­
guém menos que o próprio Gropius, que viera à Universidade de W is­
consin fazer uma palestra e se mostrara ansioso por ver alguma coi­
sa do trabalho de Wright. Gropius aproximou-se, pôs a cabeça na
janela e falou:
- Sr. Wright, é um prazer conhecê-lo. Sempre admirei o seu
trabalho.
Wright nem mesmo sorriu ou ergueu a mão. Meramente virou
a cabeça um tantinho à toa na direção do rosto à janela e disse pelo
canto da boca:
- Herr Gropius, o senhor é convidado da universidade local.
Só queria dizer que são tão esnobes aqui quanto em Harvard, só
que não falam com o sotaque da Nova Inglaterra. - E dizendo isso
voltou-se para Tufei: - Bom, temos que ir andando, Edgar! -
Recostou-se, e o Zephyr vermelho partiu veloz, deixando Gropius
e seu séquito na calçada sem saberem o que fazer com seus sófrisos
radiosos de orelha a orelha.*
Ponto para Papai Frank! - era como os Companheiros cha­
mavam Wright quando não se achava por perto. Mas foi um ponto
sem ressonância. Papai Frank acabara de ver o rosto do alemão que
o substituíra no papel de Futuro da Arquitetura Americana.
Tufei e seus Companheiros eram os únicos seguidores de Wright
a essa altura. Entre os estudantes de arquitetura nas universidades
só se ouvia falar do Estilo Internacional. O entusiasmo vinha cres­
cendo desde que os peregrinos regressaram da Europa e o Museu de
Arte Moderna começou a fazer publicidade dos arquitetos dos re­
dutos. Quando os deuses brancos repentinamente desembarcaram,
o entusiasmo se transformou em conversão, num sentido religioso.
Havia um zelo por esse estilo que ultrapassava as paixões comuns
no gosto estético. Foi o fervor esotérico, hierofântico do reduto que
se apossou de todos. " Doravante, a divindade da arte e a autorida­
de do gosto habitam conosco. ." Os departamentos de arquitetura das
.

universidades tomaram-se versões americanas dos redutos. Ali esta­


va uma abordagem da arquitetura que transformava o arquiteto ame­
ricano de provisor em vendedor de contratos e finalmente em enge­
nheiro da alma. Com a Depressão em curso, os vendedores de con-

• Edgar làfel, Apprentice to Genius: Yars with Frank Llloyd Wright (Nova York:
McGraw-Hill Book Company, 1979).

42
tratos não estavam mesmo contribuindo muito para a prosperidade
da arquitetura. As novas construções tinham quase que cessado. Is­
so fazia com que fosse ainda mais fácil para a comunidade de arqui­
tetu ra aderir às teorias dos deuses brancos e começar do zero.
O estudo da arquitetura deixava de ser uma questão de apren­
der um-conj unto de técnicas e alternativas estéticas. Antes que desse
por si, o estudante se via atraído por um movimento que lhe confia­
va um conj unto de p rincípios invioláveis de estética e moral. O cam­
pus universitário em si se transformava em um reduto físico, como
ocorrera com a Bauhaus. Qu'ando os estudantes falavam de arquite­
tura, era com um sentido de missão. Os redutos universitários ame­
ricanos diferiam entre si - num grau íntimo, da mesma forma que
de Stijl diferia da Bauhaus. Harvard era Bauhaus pura . Em Yale fa- ·

ziam experiências com variantes. Num determinado momento o prin­


cípio da "estrutura de madeira com junções integrais" parecia eufo­
ricamente sediciosa - mas exigiria a mente super-requintada do pró­
prio Doctor Subtilis para explicar por quê. Isso era, também, uma
imitação dos redutos europeus.
Os professores da faculdade resistiam à paixão do reduto por
sua conta e risco. Os estudantes se tornavam indisciplinados. Faziam
requerimentos - m anifestos em embrião. Acabaram-se as trabalho­
sas aguadas de nanquim ao velho estilo das Belas-Artes ! Acabaram-

A Casa Robie projetada por Frank Lloyd Wright, Chicago, 1906. Exemplar do
seu Estilo Pradaria e do seu sonho de uma arquitetura inteiramente americana.
Continue sonhando, continue sonhando...

43
se as tediosas pinturas renascentistas! Afinal de contas, vej am os de­
senhos de Mies. Ele não usava sombreado algum, apenas linhas rá­
pidas, secas e retas, despoj adas e incisivas. E vejam os de Corbu !
Sua técnica de desenho - um verdadeiro rabisco! Um j orro desor­
denado de idéias ! Suas pinturas eram aquarelas em tons lilases e cas­
tanhos, ligeiras e terríveis como uma tempestade! Gênio! - a pes­
soa 1 precis ava deixar que a coisa esguichasse! Declaramos:
"Acabaram-sé os penosos detalhes do renascimento clássico! " - e
as faculdades cederam. Por volta de 1 940, os esboços do palpitante
passarinho fusco de Corbu tinham se transformado no padrão mo­
derno de desenho. Com a euforia um tanto medonha de Savanarola
queimando as perucas e as fantasias das ricaças florentinas, os de­
canos de arquitetura saíram instruindo os zeladores para j ogarem fora
todos os gessos de detalhes clássicos, recursos pedagógicos que ti­
nham se acumulado durante mais de meio século. Quero dizer, puxa

Frank Lloyd Wright por volta de 1935. Ele espiou o futuro da arquitetura ameri­
cana ... e viu a cara de Walter Gropius. Não ficou nada satisfeito.

44
vida, todas aquelas fontes esquilinas e capitéis do templo de Vesta ...
Que coisa tão burguesa!
Em Yale, no concurso anual de desenho, um júri sempre esco­
lhia um estudante que era com efeito o melhor da mostra. Mas ago­
ra os estudantes se rebelavam. E por quê? Porque das escrituras fa­
zia parte a frase do próprio Gropius: ' 'o erro pedagógico fundamental
das academias nasce da sua preocupação com a idéia da genialidade
individual." A ex.pressão favorita de Gropius e Mies era trabalho "de
equipe". A própria firma de Grbpius em Cambridge não se chama­
va Walter Gropius & Associados, Inc. , hem nada parecido com isso.
Chamava-se T he Architects Collaborative. Em Yale os estudantes in­
sistiam em um trabalho de grupo, um projeto em colaboração, para
substituir a corrida obscena pela glória individual.

Agora, no fim da década de quarenta e início da década de cin­


qüenta, Buckminster Fuller recebia o merecido reconhecimento. Fuller
era um projetista americano com um infindável estoque de idéias en­
genhosas, uma das quais era o domo geodésico, um domo construí­
do de milhares de montantes curtos de metal fino dispostos em te­
traedro. O domo de Fuller encaixava-se lindamente no princípio mo­
derno de criar grandes estruturas com superfícies leves feitas de ma­
teriais produzidos à máquina e usando tensões e esforços para fazer
o trabalho que os apoios maciços fizeram pela velha ordem (burgue­
sa). Mas Gropius e os outros nunca se sentiram muito à vontade com
Fuller. Era difícil dizer se ele era arquiteto, engenheiro, guru ou sim­
plesmente aquela espécie de biruta conhecido em todo o mundo: o
inventor. Mas para os estudantes universitários americanos ele era
no mínimo um guru. Proferia surpreendentes palestras de doze ho­
ras de duração, grandes e inconsúteis domos geodésicos çle palavras
que os jovens de colunas flexíveis e bons rins achavam inspiradoras,
e até mesmo inebriantes. Em Yale, após uma das surpreendentes ai:ire­
sentações de Fuller, os estudantes de arquitetura foram arrebatados
por um êxtase de atividade subversiva e cooperativa. Construíram
um enorme domo geodésico de montantes de papelão e colocaram­
ºº no topo do Weir Hall, o edifício da escola de arquitetura de Yale
construído em pedra cinzenta no estilo do Reflorescimento Gótico
e praticamente desafiaram o decano de arquitetura a tentar reagir.
Ele não reagiu e o domo gradualmente apodreceu com toda a sua
eminência.
Em 1950, Yale ganhou um bauhausler próprio quando Joseph
Albers veio a Carolina do Norte para chefiar o ensino das Belas-Ar­
tes. Albers imediatamente instituiu o fabuloso Bauhaus Vorkurs, só
que agora não estava interessado em empilhar folhas de j ornal na
mesa. Agora depositava quadrados de papel Color-aid na mesa e
mandava os alunos criarem obras de arte. Como pintor, o próprio
Albers passara os quatorze anos anteriores procurando resolver o pro­
blema (se é que havia) de superpor quadrados de cor, uns aos ou­
tros. Agora contava com os estudantes de Yale para fazer isso . . . e
os meses foram passando. Yale, simplesmente porque era Yale, atraia
artistas notáveis das escolas de segundo grau dos Estados Unidos.
Um rapaz que fosse capaz de pegar um pedaço de mármore e escul­
pir um travesseiro que parecesse tão cheio de volumes voluptuosos
e macios que a pessoa teria de boa vontade enfiado a cabeça nele
- essa reincarnação do próprio Bernini sentava-se ali com os im­
placáveis quadrados de Color-aid de Albers nas mãos . . . começando
do zero. . e observava Albers apontar para as camadinhas bonitinhas
.

de quadrados coloridos montadas por algum fotógrafo de cérebro


cartilaginoso e dizer: "Mas isso! - é forma esculpida pela luz ! " E
as paredes do reduto se fechavam um pouco mais.
Quanto aos tabus dos redutos a respeito do que era burguês e
não-burguês, não tardaram a se transformar no próprio sistema nc;:r­
voso dos estudantes de arquitetura nas universidades, como se isso
estivesse gravado em seu código genético. A época corria na impren­
sa a estória bizarra de um bêbado que apontara um revólver para
a cabeça de um batista das montanhas do Tennessee e ordenara que
praguej asse contra Jesus Cristo. A vítima não tinha a menor inten­
ção de se tornar mártir; na realidade, desejava desesperadamente s al ­
var a própria pele. Mas era um verdadeiro crente, e não conseguia
fazer com que as palavras safssem de seus ldbio� por mais que ten­
tasse, e seus miolos foram estourados. Deu-se o mesmo com a nova
geração de arq uitetos aí pelo fim da década de quarenta. Não ha­
via circunstância em que um cliente pudesse convencê-lo a incorpo­
rar telhados de três águas ou cornij as italianizadas ou frontões in­
terrompidos ou colunas caneladas ou dintéis ou qualquer outra pe­
ça da bagagem burguesa em seus proj etos. Por mais que tentassem,
não conseguiam fazer o lápis desenhar tais formas.
ó deuses brancos!
Uma fraqueza intelectual - e a salvação - do estudante ame­
ricano é ter sido sempre incapaz de ficar quieto ouvindo falar de ideo-

46
logia e de suas lógicas e dialéticas rigorosamente construí�as. Não
a aceitam e não a compreendem. Qualquer possível ligação que os
conjuntos operários ou os ideais antiburgueses tivessem com um pro­
grama político, na Alemanha, Holanda ou qualquer outro lugar, fugia
à sua compreensão. Só percebiam o lado sentimental da coisa.
Lembro-me dos planos ousados que os jovens arquitetos de Yale e
Harvard faziam para o homem do povo no início da década de cin­
qüenta. Esse era o termo que usavam, homem do povo. Tinham a
vaga noção de que o homem do povo era µm trabalhador, e não um
executivo de publicidade, mas tirante isso era tudo Trilby e Dickens.
Projetavam coisas para o homem do povo até 'os detalhes verdadei­
ramente íntimos, tais como interruptores de lâmpadas. O novo ho­
mem do povo liberado viveria como um Asceta Instruído. Seria mo­
delado à imagem do bacharel boêmio de Greenwich Village dos fins
da década de quarenta - camisas de lã escura de Hudson Bay, pale­
tós de tweed, calças de flanela, cachimbos de urze branca, sandálias
& simplicidade - exceto que iria viver num.a enorme colméia de vi­
dro e aço, isto é, em um conjunto habitacional de Estilo Internacio­
nal com elevadores, ao invés de um prédio de quatro andares em are­
nito pardo sem elevador. Quanto à ideologia, não é preciso dizer mais.
Mas compreenderam em toda a precisão de implante de agulha este­
reotáxica o lado criativo dos redutos. Em Yale os estudantes come­
çaram a reparar que tudo que projetavam, tudo que o corpo docen­
te projetava, tudo que os críticos-visitantes (que faziam a crítica dos
trabalhos estudantis) projetavam . . . parecia igual. Todos desejavam
a mesma . . . "Caixa" . . . de vidro e aço e concreto, substituindo-os oca­
sionalmente por tijolinhos bege. Isso se tornou conhecido como ' 'A
Caixa de Yale' '. Desenhos irônicos da caixa de Yale começaram a apa­
recer nos quadros. "A Caixa de Yale no Deserto Mojave" - e lá
estava o desenho de ' 'A Caixa de Yale' ' em meio às moitinhas de
artemísia e as iúcas a nordeste de Palmdale, Califórnia. "A Caixa
de Yale visita o ursinho Puff ' ' - e lá estava o desenho do cubo de
vidro e aço no alto de uma árvore, a casa de brinquedo da crian a Ç
do futuro. "A Caixa de Yale em Busca do Capitão Nemo" - e lá
estava o desenho da Caixa de Yale a vinte mil léguas submarinas com
um periscópio no alto e uma hélice atrás. Havia alguma coisa glo­
riosamente deswirada nessa estória de A Caixa de Yale! - mas na­
da se alterou. Mesmo nos momentos a sério ninguém conseguia de­
senhar outra coisa exceto caixas de Yale. A verdade é que a essa altu­
ra os estudantes de arquitetura de todos os Estados Unidos estavam

47
encerrados nessa caixa, a mesma caixa que os arquitetos dos redutos
tinham construído em volta deles na Europa, vinte anos antes.
O apartamento de todo j ovem arquiteto, o quarto de todo estu­
dante de arquitetura, era aquela caixa e aquele santuário. E no san­
tuário havia sempre o mesmo ícone. Ainda o vejo. A sala de estar
era um espaçozinho mesquinho nos fundos de um prédio sem eleva­
dor. O sofá era um colchão sobre uma porta lisa sustentada por tijo­
los e coberto com burel de frade. Havia mais burel de frade à guisa
de çortina e no assoalho um tapete de sisal que deixava marcas cor­
diformes nas solas dos pés da pessoa pela manhã. O lugar era ilumi­
nado por lâmpadas térmicas com refletores de alumínio em concha
em que se substituíam as lâmpadas térmicas i>or lâmpadas comuns.
A uma ponta do tapete havia. . . a cadeira de Barcelona. Mies a dese­
nhara para o pavilhão alemão na Feira de Barcelona de 1929. O ideal
platônico de cadeira, puro aço inoxidável e couro de habitação ope­
rária. a peca mais perfeita em matéria de desenho de móveis do sé­
culo XX. A cadeira de Barcelona alcançava o preço atordoante de
550 dólares, e isso no atacado. Quando se contemplava aquele obje­
to sagrado no tapete de sisal, sabia-se que se estava em uma casa
onde um arquiteto novato e a jovem esposa tinham sacrificado tudo
para trazer para casa o símbQlo da missão divina. Quinhentos e cin­
qüenta dólares! Ela chegara a abrir mão do serviço de fraldas e esta­
va lavando as fraldas no tanque. A coisa ganhou tais proporções que
se eu visse uma cadeira Barcelona, onde quer que fosse, imediata­
mente - no clássico estímulo-resposta - sentia cheiro de fraldas
desfraldadas ao vento.
Mas se já tinham a cadeira, por que a mulher ainda estava la­
vando as fraldas a mão? Porque uma cadeira era apenas metade do
caminho para Meca. Mies sempre as usava aos pares. O estado de
graça, a Cidade Radiosa, eram duas cadeiras Barcelona, uma de ca­
da lado do tapete de sisal, diante do sofá de porta, sob a luz dos
refletores térmicos.
Se um rapaz sofresse e se sacrificas&e dessa forma, cortasse as
gorduras de sua vida mental e revelasse o brilho Mazda no ápice
de sua alma - quem no mundo terreno exterior, poderia detê-lo?
Foi por volta dessa época, fins da década de quarenta e início
da de cinqüenta, que O Cliente nos Estados Unidos começou a per­
ceber que algo muito estranho ocorrera com os arquitetos. Em Yale
o primeiro brusco sobressalto - muitos se seguiriam - ocorreu em
1953 com uma ampliação da Yale Art Gallery. Escassos dez anos an-

48
tes, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Yale completara um pro­
grama de obras de vastas proporções que transformara o campus uni­
versitário em algo tão próximo a Oxford e Cambridge quanto seria
possível à mente humana conceber de uma hora para outra no sul
de Connecticut. Edward Harkness, sócio de John D. Rockfeller, e
John Sterling, que fizera fortuna com estradas de ferro, doaram a
maior parte do dinheiro. Dezoito fortalezas medievais se ergueram,
torre após torre, em estilo Gótico Universitário, para abrigar dez co­
légios residenciais (o Yale Mid-Atlantic para dormitórios), quatro es­
colas de graduação, uma biblioteca, uma usina de força, cuja cha­
miné de contrafortes lembrava a Catedral de Rhéims, um ginásio de
dez andares conhecido como a Catedral do Suor, e a Harkness Tu­
wer de vinte e um andares, com um carrilhão no alto. Todas essas
estruturas altaneiras tinham fachadas rusticadas. O Reflorescimen­
to Gótico foi levado a extremos não só de usarem armações de chum­
bo nos caixilhos das vidraças como também de mandar artesãos so­
prarem, gravarem e pintarem as vidraças com desenhos medievais,
muitos deles minuciosas representações de figuras religiosas e ani­
mais míticos, e instalá-las a intervalos aparentemente fortuitos. O
resultado foi um campus universitário quase unificado, arquitetu­
ralmente, a exemplo da Jefferson University na Virgínia. Fossem quais
fossem as conseqüências, Yale tornou-se para os barões empresariais
a imagem do colégio luxuoso para os filhos da elite que iriam dirigir
o novo império americano.
O anexo da galeria de arte, na esquina das ruas York e Chapei
em New Haven, foi o principal projeto de Yale após a Segunda Guerra
Mundial. Nomearam arquiteto um homenzinho grisalho chamado
Louis Khan. Sua maior recomendação era aparentemente ser amigo do
diretor do departamento de arquitetura, George Howe. A galeria exis­
tente, construída vinte e cinco anos antes, era um palauo italiano
de estilo românico projetado por Egerton Swartwout, um arquiteto
de Yale, e fora custeada por Har kness. T inha maciças cornijas e un\
pesado telhado de ardósia. Do lado da Rua Chapei, abriam-se gran­
des janelas emolduradas por arcos duplos de pedra.
O anexo de Kahn foi... uma "caixa" ... de vidro, aço e concreto
e minúsculos tijolinhos be�e. Suas maquetes e desenhos deixavam
claro que do lado da Rua Chapei não haveria arcos, cornijas, pedras
talhadas, telhado inclinado - apenas uma parede absolutamente cega
de pequenos tijolos bege vitrificados. Os únicos detalhes discerní­
veis nessa superfície lustrosa e lisa seriam quatro cintas estreitas de

49
concreto (cornijas lineares), a intervalos aproximados de 3m. Aos
olhos de um marciano ou do aluno padrão de Yale, mal se poderia
distinguir tal edifício de uma loj a de departamentos Woolco em um
shopping center. No principal salão da galeria destinado ao público
o teto era um tetraedro de concreto cinza, inteiramente visível . Isso
dava ao interior a aparência de uma garagem subterrânea.
Os administradores de Yale tiveram um choque. Kahn era ar­
quiteto há vinte anos mas fizera pouco mais que trabalhar como
arquiteto-assistente, sob a supervisão de Howe, entre outros; em al­
guns proj etos habjtacionais. Sua aparência também não impressio­
nava muito. Era baixo. Tinha cabelos ralos, branco-avermelhados,
que apontavam em todas as direções. O rosto era todo retalhado em
conseqüência de um acidente na infância. Usava camisas amassadas
e ternos pretos. As costas de suas mangas eram lustrosas. Sempre
carregava um charutinho de uma cor infeliz na boca. A gravata per­
manentemente frouxa. Era míope, e nas classes em que trabalhava
como crítico-visitante, via-se Kahn segurando a planta baixa de um
aluno medindo quase um metro, a menos de dez centímetros do ros­
to, e girando a cabeça sobre o papel como um radar.

A Yale University A rt Gal/ery. O edifício origin(ll (direita) construído por Eger­


ton Swart wout em 1928. O A nexo (esquerda) criado por Louis Kahn vinte e cinco
anos depois.

50
Mas isso era apenas exteriormente. Lá no íntimo dessa ruína pa­
recia haver um cerne forj ado de confiança . . . e destino arquitetôni­
co... Kahn entrava na sala de aula, encarava os alunos meio cego,
abria a boca . . . e de suas entranhas saía uma voz notável:
- Todo edifício precisa ter. . . alma própria.
Certo dia entrou na sala e começou uma aula com as seguintes
palavras:
- A luz . . . é. - Seguiu-se uma pausa que pareceu durar sete
dias, apenas suficientemente longa para recriar o mundo.
Sua aparência física insólita só tornava esses momentos mais
impressionantes. A paixão visionária do homem era irresistível . To­
dos se sentiam esmagados.
Kahn encarou os administradores desse mesmo j eito, e a voz fa­
lou:
- Que querem dizer com " Não tem nenhuma relação com o
edifício existente" ? Não compreendem? Não v�em? Não vêem as cor­
nij as lineares? Elas expressam as linhas do piso do edifício existente.
Elas revelam a estrutura. Durante um quarto de século, esses pisos
estiveram escondidos pela alvenaria, completamente escondidos. Ago­
ra ficarão à mostra. Agora toda a estrutura ficará à mostra. A for­
ma honesta - a beleza, como preferem chamá-la - só pode resul­
tar de uma estrutura visfvel!
Estrutura visível? Ele disse estrutura visfvel! Perplexos mas um
tanto intimidados, como se Cagliostro ou Jacmel Hoongan lhes fa­
lassem, os administradores de Yale cederam ao destino da arquitetu­
ra e agüentaram o tranco como gente grande.
Administradores, diretores, conselheiros, comissões municipais
e diretores executivos vêm agüentando como gente grande desde
então.

51
IV

FUGA PARA IS LIP

Nesse ponto nos deparamos com uma das ironias da vida americana
no século XX. Afinal, este foi o século americano, no mesmo espíri­
to em que se poderia considerar o século XVI I I o século britânico. Es­
te é o século em que os Estados Unidos, o j ovem gigante, tornou-se
a nação mais poderosa da Terra, inventando os meios de arrasar o
planeta ao acionar um simples botão, mas também os meios de fu­
gir para · as estrelas e explorar o resto do universo. Este é o século
em que os Estados Unidos se tornou a nação mais rica da história
do mundo, com uma riqueza que alcançou todos os níveis da popu­
lação. As energias e os apetites carnais e os prazeres até mesmo das
classes operárias - o próprio termo agora parece antiquado -
tornaram-se enormes, fantásticos, excitantes, absurdos. O carro da
família americana foi um Buick Electra de 6, 70m e 425 cavalos com
rabo-de-peixe e dois seios de borrachas preta no pára-choque dian­
teiro. As férias do entregador de bebidas americano ou de estivador
de carga passaram a ser duas semanas em Barbad ó s com a terceira
esposa ou a nova gata. A convenção da indústria americana passou
a ser uma orgia regada a gim em um coliseu municipal do tamanho
da cidade de Roma, e oferecia no estacionamento carretas estocadas
com prostitutas deitadas em fofos tapetes para uso exclusivo dos ·
membros daquela associação. O estilo de vida do americano fez o
resto da humanidade contemplá-lo com inveja ou nojo mas sempre
com a8 sombro. Em suma, foi o período americano de vigorosa tur­
bulência j uvenil do tipo que-se-danem eu quero é me liberar - e
qual é a arquitetura que o país tem para mostrar? Uma arquitetura
cujo credo proíbe toda manifestação de exuberância, poder, impé­
rio, grandiosidade, e até mesmo animação e leveza de espírito por
serem todos como o máximo do mau gosto.

53
A gente se prepara para dar um salto incrível por cima dos te­
lhados do mundo - e ouve um pigarro de concerto.
Em suma, o estilo arquitetônico reinante, nessa verdadeira Ba­
bilônia do capitalismo, foi o dos conj untos habitacionais. Conjun­
tos habitacionais, concebidos por um punhado de arquitetos de re­
dutos em meio aos destroços da Europa no início da década de vin­
te, erguiam-se agora por toda parte, sob a forma de anexos de gale­
rias de arte tradicionais, museus para mecenas, apartamentos para
ricos, sedes de empresas, prefeituras, casas de campo. Usaram-no para
toda e qualquer finalidade, na verdade, exceto para habitação ope­
rária.
Não que habitações operárias nunca tenham sido construídas
para trabalhadores. Na década de cinqüenta e início da de sessenta
o governo federal ajudou a financiar a versão americana do Siedlun­
gen alemão e holandês da década de vinte. Aqui receberam o nome
de conj untos habitacionais públicos. Mas de alguma maneira os tra­
balhadores, mesmo sendo intelectualmente subdesenvolvidoi., con­
seguiram evitar tais conjuntos públicos. Chamaram-nos simplesmente
de "conj untos ' ', e os evitaram como se tivessem mau-cheiro. Os tra­
balhadores - se por esse nome nos referimos às pessoas que têm
emprego - rumaram ao invés para os subúrbios. Acabaram em lu­
gares como Islip, Long Island e o San Fernando Valley em Los An­
geles, compraram casas com tetos tradicionais de ardósia e revesti­
mento de tábuas sobrepostas, e nada de estruturas aparentes se pu­
dessem evitar, com cópias de lampiões a gás nas entradas e caixas
de correio equilibradas em pedaços de correntes enrijecidas que pa­
reciam zombar da lei da gravidade - quanto mais engraçadinhos
e velhuscos os detalhes, tanto melhor - e encheram essas casas de
"cortinas " que desafiavam qualquer descrição e carpetes de parede
a parede onde se podia perder um sapato, e no quintal construíram
chUFrasqueiras e tanques com peixes em que urinavam querubins de
concreto, e estacionaram os Buick Electras à porta enquanto as
lanchas-cruzeiro Evinrude descansavam em reboques no telheiro
além . .
Quanto aos honestos obj etos esculturais projetados para os in­
teriores das habitações operárias, tais como as cadeiras de Mies e
Breuer, os proletários ou não tomaram conhecimento delas ou as tra­
taram com desprezo porque eram visivelmente desconfortáveis. Es­
ses móveis são hoje símbolos de riqueza e privilégio, adaptados prin­
cipalmente aos gostos das mulheres de empresários que passam dia-

54
riamente no D & D Building, o principal bazar de decoração de No­
va York. O móvel mais famoso de Mies, a cadeira Barcelona, é atual­
mente vendida no varejo a 3 .465 dólares e somente através de deco­
radores. O preço exorbitante deve-se em grande parte aos materiais
não-burgueses e honestos da habitação operária: aço inoxidável e cou­
ro. Hoje em dia pode-se encomendar o couro apenas no tom negro
ou em tons castanhos. No início da década de setenta, parece, certos
elementos burgueses andaram mandando fazê-la nas variações mais
chocantes . . . couro de zebra, peles Holstein., jaguatirica e tecidos bo­
nitinhos.•
As únicas pessoas que continuam presas em conjuntos públicos
hoje nos Estad011 Unidos são as que não trabalham em lugar algum e
vivem encostadas na previdência social - esses são os únicos habi­
tantes dos "conjuntos" - e, naturalmente, os ricos urbanos que mo­
ram em edifícios como o Olympic Tower na Quinta Avenida em No­
q
va York. Desde a década de cin üenta o termo "edifício �e alto lu­
xo" passou a denotar um determinado tipo de prédio de apartamentos
que na realidade não é nada mais que os Siedlungen de Frankfurt
e Berlim, unidades sobrepostas, trinta, quarenta, cinqüenta andares
de altura, que sãQ alugadas ou vendidas à burguesia. O que é o mes­
mo que dizer, habitação puramente não-burguesa exclusiva da bur­
guesia. Por ve7.es as torres são feitas de aço, concreto e vidro; ou­
tras, de vidro, aço e tijolinhos vitrificados brancos ou beges. Mas
os tetos são sempre baixos, com menos de 2,40m, os corredores, exí­
guos, as salas, estreitas, mesmo quando são compridas, os quartos,
pequenos (l..e Corbusier sempre foi a favor disso), as paredes finas,
as portas e janelas não têm esquadrias, as juntas não têm molduras,
as paredes não têm rodapés, e as janelas não abrem, embora por ve­
zes haja pequenas saidas de ar ou venezianas. A construção é inva­
riavelmente ordinária tanto no sentido pejorativo quanto no literal.
Que os construtores pudessem apresentar essas ' 'caixas' ' na década
de cinqüenta, descaradamente, como um luxo e que homens e mu­
lheres bem-educados as aceitassem como luxo - é um testemunho
objetivo dos que são obtusos demais para ironias sobre o domínio
estético da estética de reduto, do Príncipe de Prata e suas legiões co­
loniais nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
Todos os instrumentos respeitados de opinião sobre arquitetura

• Robert Venturi, o arquiteto, também encomendou uma em tecido bonitinho no in­


teresse da "referência irônica" (ver mais adiante).

ss
e refinamento, da Domus à House & Garden, afirmaram aos habi­
tantes da urbe americana que isso é que era viver. Isso era o bom
gosto atual; isso era moderno e não tardou que o Estilo Internacio­
nal passasse a ser conhecido simplesmente como arquitetura moder­
na. Todos os domingos, o The New York Times publicava na seção
de design a foto do mesmo tipo de apartamento. Comecei a pensar
nele como aquele apartamento. As paredes eram sempre imaculada­
mente brancas e sem molduras, esquadrias, rodapés e todo o resto.
Na sala de estar havia uns 17 .000 watts de spots R-40 encaixados em
latas brancas e suspensas do teto, compondo o que se conhece como
traék lighting. Havia sempre um conjunto de cadeiras moldadas,
abençoadas por Le Corbusier, em que ninguém nunca sentava por­
que acertava o incauto na altura dos rins como um golpe de caratê.
A mesa de j antar era uma prancha acetinada de madeira clara (nada
de ornatos nas bordas ou nos pés), cercada por um conjunto de ca­
deiras de tubos de aço em forma de S e assento de palha, projetadas
por Mies van der Robe - a segunda cadeira mais famosa do século
XX, sendo a primeira, a cadeira Barcelona de sua própria autoria,
mas também uma das cinco mais desastrosamente desenhadas, de
tal modo que na altura em que chegava o prato principal, pelo me­
nos um convidado já caíra de cara no bisque de lagosta. Perto havia
uma palmeira ou uma dracena ou qualquer outra enorme planta tro­
pical, porque a mobília era tão enxuta e lisa e nua e despojada que
se não houvesse algum exemplar prodigioso e copado de planta vi­
toriana cultivada em viveiro a sala parecia absolutamente vazia. O fo­
tógrafo sempre conseguia colocar a planta no primeiro plano, de mo­
do que a cena nua além era algo que se espiava através de um arabesco
de vegetação equatorial. (E aquele apartamento continua conosco, to­
dp domingo.)
E daí se a pessoa vivia num edifício que parecia uma fábrica
e tinha o aconchego de uma fábrica, e pagava uma nota preta por
ele? Todo edifício moderno de qualidade parecia uma fábrica. Essa
era a moda atual. Era só pensar no campus universitário que Mies
construíra para o Illinois Institute of Technology, a maior parte na
década de quarenta. O edifício principal com as salas de aula pare­
cia uma fábrica de sapatos. A capela parecia uma usina de força.
A usina de força em si, também projetada por Mies, parecia bem
mais espiritual (conforme observaria Charles Jencks), graças à cha­
miné, que pelo menos se projetava em direção ao céu. O edifício da
escola de arquitetura tinha armações de aço negro atravessando o

56
telhado de cada lado da entrada principal, à moda das lavadoras de
carros de Los Angeles. Todos os quatro eram "caixas" de vid ro e
aco. A verdade era que isso era inevitável. O estilo do reduto, com
os seus tabus não-burgueses, reduzira de tal modo as opções do ver­
dadeiro crente que todo edifício, e a casa de praia não menos que
o arranha-céu, acabava tendo a mesma aparência geral.
E daí? Os termos caixa de vidro e repetitivo, primeiramente usa­
dos como termos humilhantes, transformaram-se em insígnias de
honra. Mies teve muitos imitadores americanos, Philip Johnson, 1 .
M . Pei, e Gordon Bunshaft sendo o s mais famosos e mais espalha­
fatoso� B os mais descarados. Os maledicentes diriam que cada um
dos edifícios de Philip Johnson era uma imitação de Mies van der
Robe. E Johnson arregalaria os olhos e daria aquele seu maravilho­
so sorriso de falsa inocência e responderia: " Sempre adorei ser cha­
mado de Mies van der Johnson." Bunshaft projetara o Lever Uou­
se, sede empresarial da companhia de sabões e detergentes l.ever Bro­
thers, na Park Avenue. O edifício fez tal sucesso que se tornou o pro­
tótipo da "caixa de vidro" americana, e Bunshaft e sua firma, Skid­
more, Owings & Merril fizeram muitas variações do mesmo projeto.
À acusação de que só projetava "caixa de vidro", Bunshaft gostava
de retrucar: " É verdade, e vou continuar a projetá-las até fazer uma
que eu goste."
Para um hierofante do reduto, era fácil demonstrar confiança !
Que lhe importava dizerem que estava imitando Mies ou Gropius ou
Corbu ou qualquer um deles ? Era o mesmo que acusar um cristão
de imitar Jesus Cristo.
A estrela de Mies subira sem parar desde a sua chegada aos Es­
tados Unidos em 1938, devido em grande parte à influência de Phi­
lip Johnson. Johnson escolhera Mies como um dos quatro grandes
modernistas na sua mostra do Estilo Internacional em 1932. Em se­
guida ajudou-o a emigrar para os Estados Unidos e a conseguir o
extraordinário emprego no Armour Institute. Em 1947, quando a.
maioria dos edifícios projetados por Mies para o campus universitá­
rio estavam em andamento, Johnson publicou o primeiro livro so­
bre sua obra. Mies estava beirando os sessenta, mas graças a John­
son embarcou em uma nova e gloriosa carreira nos Estados Unidos.
Todavia, com ou sem Johnson, Mies sabia se arranjar sozinho nu­
ma era de redutos de arte. Fora diretor de arquitetura do November­
gruppe nos idos de 1919; fundara a revista do grupo, G (de Gestal­
tung, "força criativa"); tornara-se um exímio propagandista com um

57
À esquerda: O Lever House projetado por Gordon Bunshaft, a mãe de todas as
caixas de vidro, fértil como uma coelha. À direita embaixo: O Seagram Building.
Mies levanta uma casa de operário de trinta e oito andares e as capitalistas a usam
como sede de corporação. Notem-se as cortinas e persianas: só são permitidas três
posições - baixadas, erguidas, e meia altura. À direita, no alto: canto do Sea­
gram Building. Vigas de abas largas em bronze sob medida aplicadas ao exterior
para "expressar" as verdadeiras escondidas sob o concreto.

58
talento para aforismos. O mais famoso era " Menos é mais", ao qual
acrescentou: " Minha arquitetura é quase nada." Sua idéia era com­
binar os elementos usuais dos conj untos operários de maneira que
fossem austeros e elegantes ao mesmo tempo, na mesma linha do
que hoje se conhece por " minimalismo". Pessoalmente M ies estava
longe de ser austero. Era um indivíduo grande, gordo mas bonitão,
que fumava charutos caros. Nada menos que coronas. Parecia mais
um industrial do Ruhr. Era também uma criatura afável , a tal pento
que até'Frank Lloyd Wright gostava dele. Era o único deus branco
que Wright conseguia tolerar.
Em 1 95 8 , o único e maior monumento à arquitetura dos redu­
tos holandeses e alemães foi erguido na Park Avenue, defronte ao
Lever House. Foi o Seagram Building, projetado pelo próprio Mies,
com a colaboração de Philip Johnson como assistente. O Seagram
Building era habitação operária, absolutamente não-burguesa, trin­
ta e oito andares plantados na Park Avenue para a firma que produ­
zia o uísque de centeio chamado Four Roses . Combinando com a
cor da garrafa de uísque americana, as vidraças dessa caixa de vidro
e aço, a maior de todas, eram âmbar-escuro. Quanto ao aço expos­
to, bom, uma vez que aço âmbar não existia, exceto quando enfer­
ruj ava, escolheram o bronze. Não estariam com isso acrescentando
cor, como fizera o pobre Bruno Taut? Não, bronze era bronze; era
essa a cor que tinha quando saía da fundição. Quanto ao vidro, to­
do vidro acabava adquirindo uma corzinha, em geral esverdeada.
Colori-lo de âmbar era apenas um controle de coloração feito pela
máquina. Certo? (Além do mais, era uma obra de Mies.) A exposi­
ção do material apresentara um problema. A visão de Mies da má­
xima pureza não-burguesa era um edifício composto apenas de vi­
gas de aço e vidro, com laj es de concreto formando os pisos e tetos.
Mas agora que se encontrava nos Estados Unidos, deparou-se com
os códigos de obras e de prevenção de incêndios. O aço era fantásti­
co para edifícios altos porque podia suportar grandes tensões late­
rais bem como sustentar grandes cargas. Sua fraqueza era que o ca­
lor de um incêndio poderia provocar o empenamento do aço. Os có­
digos americanos exigiam que os elementos estruturais de aço fos­
sem revestidos de concreto ou outro material à prova de fogo. Isso
só retardou Mies um pouquinho. Já resolvera o problema em Chica­
go, nos edifícios de apartamentos que construíra em Lake Shore. O
que fez foi revestir os elementos de aço de concreto conforme exi­
giam, e revelá-los a seguir, expressá-los, colocando vigas de abas largas

59
na parte externa do concreto, como se dissesse: "olhe! É isso que
há por dentro." Mas colocar coisas no exterior dos edifícios . . . Não
era isso exatamente que se conhecia em outras eras, por ornatos so­
brepostos? Havia algum j eito de se chamar uma coisa dessas de fun­
cionan Nenhum problema. No cerne do funcional, como todos sa­
biam, não residia a função mas a qualidade espiritual conhecida por
não-burguês. E o que poderia ser mais não-burguês do que vigas de
abas largas sem adornos, saídas diretamente das manoplas de um
operário de construção.

O único problema que restava era a proteção das j anelas: esto­


res, persianas, cortinas, o que fosse. Mies teria preferido que os gran­
des painéis. de vidro plano não tivessem proteção alguma. A não s�r
que se pudesse induzir todos os edifícios a usá-las da mesma cor
(branco ou bege, naturalmente) e a erguê-las e descê-las ou abri-las
e fechá-las ao mesmo tempo e na mesma altura, porque sempre des­
truíam a pureza do desenho exterior. No Seagram Building, Mies che­
gou o mais próximo que um homem chegaria de concretizar esse
ideal . O inquilino só podia ter estores ou persianas, e só havia três
posições em que poderiam ficar: baixadas, erguidas, ou à meia altu"
ra. Em qualquer outra posição não paravam de escorregar.
Nada de impulsos intelectualmente subdesenvolvidos, por fa­
vor. A essa altura tal atitude se tornara padrão entre os arquitetos
de reduto nos Estados Unidos. Policiavam igualmente os impulsos
dos clientes e inquilinos. Mesmo depois do edifício terminado e do
contrato cumprido, eles voltavam . Os imitadores de Le Corbusier -
e havia muitos - construíam casas de campo caras em áreas flo­
restadas nos moldes da Villa Savoye de Corbu, com instruções rigo­
rosas de que os quartos, sendo no primeiro andar e visíveis apenas
aos pássaros, não tivessem cortinas de tipo algum. Cansados de acor­
dar às cinco da manhã todo dia à luz do sol de verão, os proprietá­
rios penduravam cortinas brancas. Mas o engenheiro da alma inevi­
tavelmente voltava e arrancava aqueles trapos ofensivos . . . e já que
estava com a mão na massa aproveitava para jogar fora aquelas al­
mofadas lindinhas de seda tailandesa.

Nas grandes torres empresariais, os empregados de escritórios


encostavam arquivos, escrivaninhas, cestas de papel , plantas enva­
sadas, nos painéis de vidro que iam do chão ao teto, qualquer coisa
que servisse de barreira à sensação de pânico de estarem prestes a
despencar de cabeça nas ruas embaixo. No alto dessas paredes sem

60
solidez penduravam simulacros de cortinas que pareciam os varais
dos cortiços de Nápoles, qualquer coisa que afastasse aquele sol de
ferver os miolos e escaldar os olhos que incendiavam as vidraças todas
as tardes . . . E durante a noite os zeladores, a polícia sectária de Mies
cumprindo ordens rigorosas, invadia e arrancava essas patéticas bar­
ricadas erguidas à visão pura dos deuses brancos e do Príncipe de
Prata. Com o tempo, todos desistiram e aprenderam como fizera a
haute bourgeoisie, a agüentar a coisa como homens.
Até aprenderam a aceitar os dois grandes argumentos circulares
dos sectários de Mies. Para os filisteus que ainda eram tão gauches
a ponto de dizer que faltava à nova arquitetura a riqueza de detalhes
da velha arquitetura das Belas-Artes, os elementos de gesso, de me­
tal, a alvenaria e assim por adiante, os sectários de Mies diriam com
considerável condescendência: ' ' Ó timo. Arranj em-nos artesãos que
façam esse tipo de trabalho e então conversaremos. Eles não existem
mais." Verdade. Mas por quê? Henry Hope Reed conta que uma vez
ia de carro pela Rua Cinqüenta e Três Oeste em Nova York, na dé­
cada de quarenta, com alguns empregados da E . F. Caldwell & Co. ,
uma firma especializada em obras em bronze e luminárias. Quando
o carro passou pelo Museu de Arte Moderna, os homens começa­
ram a brandir os punhos para o museu e a gritar: ' ' Esse maldito mu­
seu está nos destruindo! Esses filhos da mãe estão nos matando! ' '
Nos tempos prósperos d a arquitetura de Belas-Artes, a Caldwell em­
pregava mil serralheiros, marmoristas, maquetistas e projetistas. Ago­
ra a companhia estava resvalando para a insolvência, juntamente com
muitas outras firmas do ramo. Não é que o artesanato estivesse mor­
rendo. Muito ao contrário, o Estilo Internacional é que estava aca­
bando com a demanda desses produtos, principalmente na constru­
ção comercial . Usando o mesmo argumento, aos que se queixavam
que os edifícios do Estilo Internacional eram acanhados, tinham pa­
redes demasiado finas interna e externamente e, de um modo geral,
um aspecto ordinário, a resposta astuta era: ' 'Atualmente é dema­
siado caro construir em qualquer outro estilo." Mas não era dema­
siado caro, apenas mais caro. O ponto crítico era aquilo- que as pes­
soas tolerariam ou não esteticamente. Era possível construir em es­
tilos ainda mais baratos do que o Estilo Internacional . Por exemplo,
a Inglaterra começou a fazer experiências com escolas e conj untos
habitacionais construídos à semelhança de hangares de aviões, com
metal corrugado preso com cabos de retenção. Os arquitetos de lá
também diziam: "Atualmente é muito caro construir em qualquer

61
outro estilo". Tulvez um dia desses todo o mundo (tout /e monde )
aprendesse a agüentar isso também como homem .
A Comissão de Seleção esteve de prontidão o tempo todo, para
auxiliar no processo. Acabara-se a época de monarcas da importân­
cia de um Ludwig II da Bavária, ou de autocratas do mundo dos
negócios como um Herbert F. Johnson da Johnson Wax, que sele­
cionava pessoalmente os arquitetos para os grandes edifícios públi­
cos. Os governos e as empresas agora entregavam a tarefa à Comis­
são de Seleção. E a Comissão de Seleção tipicamente incluía no mí­
nimo um arquiteto de prestígio, que, por ter prestígio, era natural­
mente um produto dos redutos. E à medida que chegavam os des­
conc�rtantes e proibitivos proj etos dos outros arquitetos de redutos,
os vários diretores e executivos que participavam da comissão se di­
rigiam confusos ao arquiteto que os tranqüilizava: ' 'Atualmente é
caro demais construir em qualquer outro estilo". E: " Ótimo.
Arranj em-nos os artesãos que façam esse tipo de trabalho . e então
conversaremos." E o círculo se fechou para sempre. E os mais pode­
rosos entre os poderosos aprenderam a agüentar a coisa como
homens.

Nem mesmo o pessoal que está na pior, os que vivem do seguro


desemprego, presos nas arapucas que são os conjuntos habitacionais,
agüentaram a coisa tão passivamente. O lúmpen-proletariado entrou
em guerra com as legiões do Príncipe Brilhante, e ganhou umas duas
batalhas. Em 1 955 inauguraram em St. Louis um imenso conj unto
habitacional chamado Pruitt-lgoe. O projeto, de Minoru Yamasaki,
arquiteto do World Trade Center, ganhou um prêmio do American
Institute of Architects. Yamasaki desenhou-o nas linhas clássicas de
Corbu, concretizando a visão do mestre de altas colméias de aço,
vidro e concreto, separadas por áreas gramadas. Os operários de St .
Louis, natur.almente, não corriam nenhum perigo de se deixarem apa­
nhar em Pruitt-Igoe. Já tinham levantado acampamento para os su­
búrbios tipo Spanish Lake e Cretwood . Pruitt-Igoe foi ocupado prin­
cipalmente por migrantes recentes vindos do sul rural . Mudaram-se
para os blocos de quatorze andares de Pruitt-lgoe vindos de áreas
dos Estados Unidos onde a densidade demográfica era de quinze a
vinte habitantes por 2,5km, onde a pessoa raramente chegava a mais
de três metros do chão a não ser que trepasse numa árvore.
Em cada andar havia passagens cobertas, em harmonia com a

62
idéia de Corbu de " ruas suspensas ". Uma vez que não havia no con­
j unto nenhum outro lugar onde pecar em público, tudo que talvez
acontecesse normalmente em bares, bordéis, clubes, bilhares, gale­
rias de j ogos, armazéns, paióis de milho, horta de nabos, montes de
feno, cocheiras, agora se desenrolava nas ruas suspensas. Os buleva­
res de Corbu faziam o Gin Lane de Hogarth parecer uma rua de so­
nho à beira-mar, em Southampton , Nova York. As pessoas decentes
bateram em retirada, mesmo que isso significasse viver em buracos
nas calçadas. Milhões de dólares e incontáveis reuniões da comissão
e projetos especiais foram gastos numa tentativa desesperada de tor­
nar o Pruitt-lgoe habitável. Em 1 97 1 , a força-tarefa final convocou
uma reunião geral de todos que ainda habitavam o conj unto. Pedi­
ram sugestões aos residentes. Foi um momento histórico por duas
razões. A primeira porque pela primeira vez nos cinqüenta anos de
história de conj u ntos operários, alguém finalmente pedira dois tos­
tões de opinião ao cliente. A segunda, o coro. O coro começou ime­
diatamente: "Explodam . . . o conj unto! Explodam . . . o conj unto! Ex­
plodam . . . o conj unto! Explodam . . . o conj unto! Explodam . . . o con­
j unto ! " No dia seguinte a força-tarefa refletiu sobre a sugestão. Os

O Conjunto Habitacional de Pruitt-/goe em St. Louis. 15 de julho de 1972. A hu­


manidade finalmente chega a uma solução prática para resolver o problema da
habitação popular.

63
pobres coitados estavam certos. Era a única solução. Em j ulho de
1 972, a cidade dinamitou os três blocos centrais do Pruitt-lgoe.
Essa parte da saga dos conjuntos operários ainda não termi­
nou. Mal começou . Quase ao mesmo tempo que o Pruitt-lgoe era
demolido, o conjunto Oriental Gardens era erguido em New Haven,
a cidade modelo da renovação urbana nos Estados Unidos. O arqui­
teto, um dos membros de reduto do maior prestígio, era Paul Ru­
dolph, decano da Yale School of Architecture. O departamento
de habilitação e desenvolvimento urbano do governo federal, que cus­
teava o projeto, saudou o traço audacioso de Rudolph como a visão
dos projetos habitacionais do futuro. O Oriental Gardens era for­
mado de conj untos de módulos pré-fabricados. Nunca se acabava
com um número maior de desprivilegiados do que de apartamentos.
Podia-se continuar a acrescentar módulos e a agrupar os coitados
dos migrantes até Bridgeport . O problema era que os módulos não
se encaixavam muito bem . Pelas frestas entravam o frio e a chuva.
Portas afora, as que ainda se abriam, saíram as pessoas respeitáveis
que de início tinham entrado. Por volta de setembro de 1 980 só res­
tavam dezessete inquilinos. No início de 198 1 , o próprio departamento
que o financiara, o HUD, começou a demoli-lo.
Outros monumentos americanos em homenagem aos conjun­
tos operários da Europa Central da década de vinte começaram a
se desmoronar por contra própria. Havia gigantescos ginásios espor­
tivos e centros de convenções, tais como o Hartford Civic Center,
com telhados planos. A neve foi demais para eles - mas sofreram
um colapso piedoso, prestando ao caírem homenagem ao dito de que
os telhados inclinados eram burgueses.

64
V
OS APÓSTATAS

Segundo a sua versão da história, Edward Durell Stone, um dos pri­


meiros arquitetos do Estilo Internacional nos Estados Unidos, em­
barco u em um avião em Nova York com destino a Paris, certa noite
de 1 9 5 3 , e viu-se sentado ao lado de uma mulher chamada Maria
Elena Torchio. O pai da moça era um arquiteto italiano; a mã�- nas­
cera em Barcelona; e Maria, Stone gostava de dizer, era "explosiva­
mente i atina". Apaixonou-se por ela durante a travessia do Atlânti­
co e pediu-a em casamento quando sobrevoava o Canal da Mancha.
Mas ela não cedeu assim tão depressa. Para começar, achou que as
roupas dele pareciam as de um professor universitário. E não mor­
ria de amores pelos edifícios que construía, tampouco: Eram edifí­
cios muito cautelosos, muito contidos, um tanto frios, um tanto sem
vida, e verdade seja dita . . . não eram lá muito explosivamente
latfo.os . . .
E m 1 954 Stone se casou com Maria Elena Torchio e mudou por
inteiro o seu estilo e criou as formas luxuosas e ornamentais da em­
baixada americana en Nova Déli, com suas gracles de concreto e
mármore, suas colunas de aço revestidas de folha de ouro, seus j ar­
dins aquáticos cortados por ilhas, ilhotas e ilhéus curvilíneos. Ima­
ginava a embaixada como o seu "Tuj Maria". O que aconteceu a Sto­
ne no mundo da arquitetura após desvelar o Taj - folha de ouro?
- nos deu uma visão do reverso da paixão dos redutos. Mostrou­
nos o destino do apóstata.
Stone era o homem que desenhara a primeira casa em Estilo
Internacional da Costa Leste, a Casa Mandei em Mount Kisco, No­
va York, em 1 93 3 . (Um emigré austríaco, Richard Neutra, construí­
ra uma em Los Angeles, a Casa Lovell, em 1 928 .) Em 1 934 Stone
ergueu a segunda casa em Estilo Internacional em Mount Kisco, a
Casa Kowalski, e a comunidade se rebelou e mudou o código de

65
obras local para pôr um fim à frustrante infestação. Até aí, tudo bem;
uma rej eiçãozinha de parte dos filisteus prestava bons serviços a um
arquiteto no reduto. As credenciais de Stone eram tão impecáveis,
de fato, que o Museu de Arte Moderna o escolheu como arquiteto,
juntamente com Philip L. Goodwin , para construir o seu prédio da
Rua Cinqüenta e Três Oeste, quase na esquina da Quinta Avenida,
no local onde antes se erguiam os palacetes de John D. Rockefeller,
Jr. e do próprio John D. Ali se ergueria o edifício-modelo do museu
para mostrar a toda Nova York o Estilo Internacional . Stone · fora
escolhido para conceber a aula-objeto, a nave-capitânea da Utopia,
Ltda. No momento em que a embaixada de Nova Déli foi inaugu­
rada, o /e monde da arquitetura elegante, o que equivale dizer, o mun­
do dos redutos europeus que tinham suas bases nas universidades,
largou Stone como se ele fosse um vigarista. Ouro aqui e Luxuoso
lá e mármore acolá e curvas por toda a parte. . . Que coisa tão bur. . .
Não, era burguesa n e plus ultra. Não havia hipótese nem d o próprio
Mies, mestre da viga de abas largas em bronze, arranjar argumentos
para escapar ileso de uma produção dessas. E o que era mais morti­
ficante é que Stone nem mesmo tentou argumentar. Deu adeuzinho
ao Estilo Internacional. Aos críticos do seu Kennedy Center em Was­
hington, uma versão grandemente ampliada do Taj Maria, Stone re­
torquiu que o edifício representava "2.500 anos de cultura ocidental
e não 25 anos de arquitetura moderna". O homem nem chegava a
ser relapso. Era pura e simplesmente um apóstata. Renunciara aos
princípios fundamentais.
Classicamente, a sina do apóstata é aquela maldição conhecida
por anátema. No mundo da arquitetura, entre aqueles que estavam
em posição de construir ou destruir reputações, todo edifício que
Stone projetou a partir de então foi sepultado em excomunhão. Quan­
do o Museu de Arte Moderna decidiu erguer um anexo da Rua Cin­
qüenta e Três Oeste, não havia uma chance em mil de Stone ser es­
colhido para ampliar o próprio projeto. A tarefa coube ao arquiteto
de reduto mais em voga, Philip Johnson, agora formado pela escola
de arquitetura de Harvard, quiçá ainda aos pés do Príncipe de Pra­
ta. Em uma das reviravoltas mais simpáticas da história da arte ame­
ricana, ao invés, Stone foi escolhido por Huntington Hartford para
projetar sua Gallery of Modem Art, a nove quarteirões de distância
do Columbus Circle. Hartford era um independente na cena artísti­
ca, colecionàdor de pré-rafaelitas e de Salvador Dali , para mencio­
nar apenas dois de seus gostos fora de moda. Estava construindo

66
um museu especificamente para desafiar a Utopia, Ltda. e todas as
suas obras. Lembro-me vividamente dos risinhos maquinais, do re­
virar de olhos que a menção do edifício de Stone para Hartford pro­
vocava à época. As críticas dos colunistas de arquitet1,1ra foram bas­
tante más. Mas nem mesmo termos como " kitsch para os ricos " e
" pirulitos de mármore" transmitem a maligna atmosfera psicológi­
ca em que Stone se viu. Por fim , ficou reduzido a retrucar coisas
do gênero " Qualquer chofer de táxi de Nova York lhe dirá que é o
edifício favorito dele". Depois de tud9 que fez ! De uma vida inteira !

Os dois Stones. 1939: Edward Durell Stone, o verdadeiro crente, projeta o edifício
do Museu de A rte Moderna (esquerda). 1964: Edward Durell Stone, o apóstata,
faz a Ga/lery of Modem A rt pdra Huntington Hartford. "Pirulitos de Mármo­
re! " bradaram os verdadeiros crentes.

67
- ser acuado, finalmente, ao último refúgio populista de um Mic­
key Spillane ou de uma Jacqueline Susan . . . ó Senhor! Anátema!
É de se notar .Que os negócios de Stone n�10 entraram em colap­
so a partir da apostasia, apenas seu prestígio foi afetado. O Taj Ma­
ria operou milagres na sua clientela em termos comerciais. Afinal,
o Estilo Internacional era bem odiado até por aqueles que o enco­
mendavam . Havia ainda outros que de saída se dispunham a chegar
a extremos para não ter qualquer relação com ele. Ficavam bastante
satisfeitos de encontrar um arquiteto com credenciais modernistas,
mesmo que tivesse cometido deslizes, que quisesse lhes oferecer ou­
tra coi�a. Mas em termos de reputação na fraternidade, Stone era
veneno. Colocara-se aquém de qualquer cogitação séria. Abando­
nara a corte. Estava fora do j ogo.
A experiência de Eero Saarinen foi semelhante, embora as hos­
tilidades não tenham sido tão virulentas. Saarinen pertencia a uma
aristocrática linhagem de arquitetura modernista. O pai , Eliel , era
um arquiteto finlandês muitas vezes comparado aos Dissidentes de Vie­
na. Saarinen fora arquiteto do Estilo Internacional convencional até
1956, quando projetou o terminal da Trans World Airlines no Aero­
porto Idlewild (hoje Kennedy) em Nova York. O edifício foi cons­
truído com materiais convencionais, vidro, aço e concreto, mas pa­
recia inequivocamente. . . uma águia. Seu terminal para o Aeroporto
Dulles em Washington era a escultura ainda mais escandalosa de um
pássaro em vôo com sugestões de pagode. . . O ringue I ngalls para
hóquei no gelo em Yale lembrava uma baleia ou uma tartaruga. (Não
são os primeiros animais que o hóquei no gelo traz à lembrança, mas
vá lá.) No caso de Saarinen, as formas curvilíneas eram o menor dos
males. O homem degenerara para uma espécie de zoomorfismo hin­
du . Saarinen decidira trilhar um caminho próprio, numa franca di­
ligência para se tornar o gênio singular da arquitetura do século XX.
Declarou que gostaria de conquistar "um lugar na história da ar­
quitetura". Escolhem a era errada. Havia gênios na arquitetura, mas
não podiam ser singulares. Tinham que fazer parte de um reduto,
de um "consenso", para usarmos um termo de Mies. O mundo dos
redutos simplesmente observou-o desaparecer nas pantanosas bru­
mas zoomórficas. Raras vezes o atacaram diretamente, como acon­
teceu com Stone. Foi banido de cogitação, e ponto final . Lembro­
me de ter escrito um artigo para a revista Architectu re Canada em
que mencionei Saarinen em termos que indicavam que era digno de
estudo. Encontrei um dos articulistas de arquitetura mais conheci-

68
dos de Nova York em uma festa, e ele me puxou de parte para me
dar uns conselhos paternais.
- Gostei do seu artigo - falou - e concordo com o seu ponto
de vista, em princípio. Mas preciso lhe dizer que só irá prej udicar
a sua causa se usar Saarinen como exemplo. As pessoas simplesmente
não vão levá-lo a sério. Quero dizer, Saarinen...
Gostaria de poder de alguma forma descrever a expressão de
seu rosto. Era um misto de desdém e sacudir de ombros em que

O teto alado de E:ero Saarinen para o Dulles Internacional A irport (no alto) e o
seu terminal em forma de águia para a TWA enfureceram os modernistas. A ori­
ginalidade do traço se tornara um pecado capital.

69
os franceses são tão bons, a expressão que indica que o assunto é
tão outré, tão infradesprezível, tão de la boue, que não se pode nem
perder tempo analisando-o sem se contaminar.
O princípio ilustrado pelo caso Saarinen foi o seguinte: nenhum
arquiteto poderia conquistar uma grande reputação fo ra dos redu­
tos, que agora se encontravam sediados nas universidades. O ar­
quiteto que insistisse em seguir um caminho próprio não tinha a me­
nor chance de ser saudado como pioneiro de uma nova e importante
corrente. Na melhor das hipóteses, poderia esperar que o conside­
rassem excêntrico, tais como Saarinen ou os arquitetos de Oklahoma,
Bruce Goff e Herbert Greene. (Já de saída Oklahoma não era um
ponto de observação tão fantástico assim .) Na pior das hipóteses se­
ria um apóstata, anatematizado, como Stone.

Stone e Saarinen, a exempfo de Frank Lloyd Wright , Goff e


Greene, eram americanos demais, o que significava ao mesmo tem­
po provincianos demais (não faziam parte do Estilo Internacional)
e burgueses demais. De alguma maneira eles realmente contribuíam
para a exuberância barroca da civilização americana. Quando Stone
projetou o Kennedy Center em Washington com um saguão da altu­
ra de seis andares e 192m de comprimento - tão grande, comentou
um j ornalista, que teria feito o arremesso mais poderoso de Mickey
Mantle parecer apenas uma bolinha longa - consideraram-no uma
obscenidade. Stone na realidade estava lisonj eando a megalomania
americana.
Estimulando a basbaquice bárbara . Enaltecendo os sentimen­
tos de grandiosidade d'O Cliente.
Naturalmente era difícil pôr tudo isso em palavras. Donde o
sacudir de ombros e aquela expressão, que ainda vigo(am hoj e em
dia. De que outra rr.aneira tratar as basbaquices bárbaras dos prin­
cipais arquitetos de hotéis, tais como Morris Lapidus e John Port­
man? Provavelmente nenhum arquiteto j amais se empenhou tanto
para captar o espírito da riqueza e do encanto americano do pós­
guerra do que esses dois homens: Lapidus, com os seus hotéis Ame­
ricana e Eden Roe em Miami Beach; Portman, com os seus Hyatts
espalhados por todo o país. A obra deles era tão impressionante e
em escala tão vasta que era impossível aos colegas arquitetos ignorá­
la. Então assumiam aquela expressão. Portman ganhou um sacudir

70
de ombros e aquela expressão. Lapidus, aquela expressão e uma
risota.
Lapidus começara a carreira no teatro e daí fora para Colum­
bia estudar arquitetura, com a idéia de ser cenógrafo. Terminou ar­
quiteto. Não se deteve nem um momento com debates sobre mate­
riais honestos e estrutura aparente. Sua visão permaneceu teatral do
princípio ao fim. Tinha uma abordagem americana à Rimsky Kor­
sakov que era, a seu modo, tão completa e monolítica, quanto a de
Gropius ao modo dele. Quando Lapidus projetava um hotel de fé­
rias, desenhava tudo, até o galão nas j aquetas dos garçons, embora
os incorporadores raramente fossem meticulosos na execução de tais
detalhes. Seu saguão para o Americana Hotel em Miami Beach, com
uma floresta tropical enfiada em um cone de vidro, ombro a ombro
com uma versão. Duas Semanas na Flórida da grande escadaria da
Ó pera de Paris - bom, ali estava a opulenta vida americana do pós­
guerra, numa única e espalhafatosa e grandiosa imagem.
Em 1 970 a obra de Lapidus foi escolhida para tema de uma mos­
tra e debate da Architectural League of New York intitulada: " Mor­
ris Lapidus: a arquitetura do prazer.' ' Habitualmente isso era uma
honra. No caso de Lapidus ficou difícil dizer o que era. Convidaram­
me para participar da mesa - provavelmente, quando me lembro
agora, na esperança de que apresentasse uma perspectiva "pop". (Es­
sa tal de " pop" já passara a ser uma das maldições da minha vida.)
A atmosfera do debate foi um tanto artificial e constrangedora -
Lapidus em pessoa apareceu na platéia. Seu trabalho estava sendo
encarado mais como um fenômeno pop do que como arquitetura,
a exemplo do que acontecia com Dick Tracy ou com os filmes de
Busby Berkeley. Passei o tempo todo tentando meter meus dois tos­
tões sobre o problema geral da representação do poder, da riqueza
e da exuberância americanos na arquitetura. Foi o mesmo que falar
de numerologia no Yucatán . O mal-estar inicial passara e os arquite­
tos reunidos começaram previsivelmente a desancar o trabalho de
Lapidus. Ao final , o próprio Lapidus se levantou e disse que os so­
viéticos certa vez o convidaram a ir à Rússia projetar casas popula­
res e tinham ficado satisfeitos com os resultados. Em seguida sentou­
se. Ninguém entendeu nada, a não ser que aquilo fosse uma reivin­
dicação desesperada de algum redentor significado social . .. que o
tornasse menos radiativo em um mundo arquitetônico que sucum­
bira aos hotéis, edifícios de luxo, escolas e sedes empresariais estilo
conj unto habitacional operário.

71
De lá para cá, John Portman ocupou o lugar de Lapidus. Seus
gigantescos hotéis, verdadeiras zigurates babilônicas, com saguões
de trinta andares, j ardins suspensos e elevadores de cristal , tiveram
maior sucesso que qualquer outro gênero de arquitetura para firmar
o estilo do centro de cidade, do glamour urbano nas décadas de se­
tenta e oitenta. Mas nos redutos universitários - não é Qtle ele sej a
atacado . . . ele s implesmente não existe. É invisível. Assume o s con-

O saguão do Hyatt Regency O 'Hare Hotel próximo ao O 'Hare A irport em Chi­


cago de autoria de John Portman. A exuberância americana de Portman foi mais
do que os filhos do Prfncipe de Prata conseguiram engolir.

72
tornos indefinidos do arquiteto folclórico. Torna-se uma versão ex­
tremamente comercial (e portanto irredimível) de Simon Rodia, que
construiu o Watts Towers. Afinal o que era um saguão-zigurate Hyatt
senão uma produção Watts Tower com a ajuda de corretores hipote­
cários e elevadores automáticos?
Nos redutos universitários não havia hipótese de um arquiteto
conquistar prestígio com uma arquitetura que fosse totalmente sin­
gular ou especificamente americana em espírito. Nem mesmo Wright
conseguiu tal feito - nem mesmo Wright com a mais fantástica pro­
dução de obras da história da arquitetura americana. De 1928 a 1935,
apenas dois projetos de Wright foram construídos. Mas em 1 9 3 5 ele
edificou Fallirtgwater, uma residência para Edgar J. Kaufmann, Sr. ,
pai de um de seus aprendizes. Essa estrutura de laj es de concreto,
ancoradas na rocha e que se projetam sobre uma cascata nas monta­
nhas da Pennsylvania, foi o começo da última fase da carreira de
Wright . Tinha sessenta anos de idade, então. Nos vinte e três anos
seguintes, até morrer, em 1959, c_om a idade de noventa e um anos,
ele produziu mais da metade da obra de sua vida, mais de 1 80 edifí­
cios, inclusive a sede das Ceras Johnson em Racine, Wisconsin, a man­
são de Herbert F. Johnson, Wingspread, em Tuliesin West, o cam­
pus µniversitário Florida Southern, as casas usonianas, o Price Com­
pany Tower e o Museu Guggenheim . Nos redutos universitários isso
granjeou para Wright uma reputação semelhante à de Andrew Wyeth
no mundo da pintura: tudo bem em termos de velharia.
De certa forma, a própria produtividade de um homem como
Wright, Portman ou Stone era um ponto contra, dada a nova atmos­
fera intelectual nas universidades. Ah, não era nada difícil, supunha­
se, sair em campo e lisonjear, seduzir e dançar para os clientes e ga­
nhar contratos para construir edifícios. Mas o indivíduo corajoso
era aquele que permanecia no reduto, mantinha-se na órbita univer­
sitária e arriscava os primeiros dez, vinte anos de sua carreira na com­
petição intelectual, fazendo um edificiozinho ocasional, quando apa­
recesse uma boa oportunidade à moda de Corbu: uma casa de verão
para um amigo, uma ampliação para a casa de algum membro do
corpo docente e - se tudo mais falhasse - aquela velha possibili­
dade sempre à mão, do asilo para mamãe, que ela custearia. Já não
bastava construir prédios extraordinários para o mundo ver. O mun­
do podia esperar. Agora era necessário ganhar a competição que se
realizava unicamente no âmbito da arquitetura acadêmica.
lànto assim que nas artes maiores americanas o prestígio era

73
agora determinado pelas igrejinhas ao estilo europeu. Por volta de
meados da década de sessenta, o caso da pintura era realmente gra­
ve. O reduto dos expressionistas abstratos conseguira se manter no
poder uns dez anos, mas depois disso novas teorias, novos redutos,
novos códigos co.neçaram a se suceder uns aos outros numa corrida
alucinada. Arte Pop, Arte ótico-cinética, Minimalis}Ilo, Abstração
Linear, Cores Puras, Arte Ecológica, Arte Conceituai - a parciali­
dade natural dos redutos com relação ao que era arcano e frustrante
ultrapassou todos os limites conhecidos. O espetáculo era uma coisa
de doidos, mas os jovens artistas tendiam a acreditar - e correta­
mente - que era possível chegar � uma posição proeminente sem
entrar no jogo. No campo da música séria, o caso era ainda mais
desesperador; de fato, era praticamente terminal. Nos redutos uni­
versitários, os compositores tinham se tornado tão ultra-Schoenber­
guianos, tão exoticamente abstratos que mais ninguém do mun­
do exterior demonstrava o menor interesse, e muito menos com­
preensão, no que ocorria. Nas cidades, nem mesmo o exército de Gi­
deão que se conhece . por " público freqüentador de concertos" se
sentia atraido por um só programa de música contemporânea. E eles
só aconteciam nas salas de concerto universitárias. Aqui no campus
universitário o programa começa com "Maple Leaf Rag" de Scott
Joplin, seguido de uma das primeiras composições de Stoc ic hausen
" Punkte", e depois dos "Ensembles for Synthesizer" de Babbitt,
um toque de Easley Blackwood e Jean Barraqué para variar um pou­
co, e a apresentação obrigatória de algo diferente ou, como dizem,
de uma peça "conjectural" para piano, metais, sintetizador Moog
e computador, de Iannis Xenakis. O programa termina com " You
Gotta Be Modernistic" de James P. Johnson. Joplin e Johnson, na­
turalmente, são aconchegantes e familiares como um acalanto, mas
são essenciais ao programa. As mesmas trinta e cinco ou quarenta
alminhas, todas pertencentes ao corpo docente e discente da univei:-­
sidade, constituem a ;'.'latéia de todo evento de música contemporâ­
nea. O medo indizível é que nem elas compareçam a não ser que
lhes prometam um docinho no início e um docinho no fim . Os nú­
meros de Joplin e Johnson são bem aceitos porque os dois eram pre­
tos e pouco apreciados como compositores sérios em sua época.
Os coreógrafos mostraram-se lentos em compreender a idéia do
reduto, talvez porque a dança sempre parecera, por sua própria na­
tureza, uma representação. Mas por volta da década de sessenta já
tinham recuperado o tempo perdido. George · Balanchine, o coreó-

74
gra.fo russo que emigrara para os Estados Unidos, via Paris, em 1934,
por volta de 1 962 já estava encenando balés neoclássicos abstratos
no Lincoln Center. Coreógrafos tais como Merce Cunningham e Yvo­
nne Rainer puseram-se a eliminar todos os traços de sexualidade da
dança, mesmo na simples classificação de papéis masculinos e femi­
ninos, todos os traços de narrativa, cenário e figurinos, até mesmo
todos os traços de música como fonte de marcação de dança. Na
realidade, indivíduos de todas as artes pareciam obcecados com a
criação de igrejinhas, com a proposta de frustrar a burguesia, por
menos prováveis que parecessem as possibilidades. Por exemplo, a
fotografia sempre parecera uma forma de expressão dotada de uma
implacável obviedade. Mas os fotógrafos e seus teóricos, a eXemplo
de John Szarkowski, curador de fotografia da Utopia, Ltda., come­
çou a descobrir uma maneira de contornar esse obstáculo. Braque
não exigira o reconhecimento de que a pintura não passava de uma
disposição de formas e cores numa superfície plana? Ou sej a, não
transformara em virtude o Que sempre parecera um defeito? Claro
que sim. Portanto agora Szarkowski & Co. transformavam em virtude
o que sempre fora considerado defeito em fotografia: falta de niti­
dez, perspectivas grotescas, cores irreais, imagens cortadas pela mol­
dura do filme, e. assim por diante. Realizaram seu objetivo: conse­
guiram tprnar a fotografia absolutamente frustrante para os que não
estivessem dispostos a entrar no reduto e aprender as teorias e os
códigos.
Igrejinhas! Redutos! Códigos! Novos arcanos! A moda européia
provou ser irresistível. Até os romancistas. O carro-chefe da ficção
americana no século XX fora o romance e o conto realista. O ro­
mance realista americano da década de trinta alcançara considerá­
vel prestígio na Europa, precisamente devido ao seu rústico vigor ani­
mal . Os realistas americanos pareciam tão livres e dionisíacos Quan­
to os músicos de j azz . Mas no fim da década de sessenta os jovens
escritores americanos mais talentosos da universidade - e poucos
escritores novos vinham de QualQuer outra parte - agora tendiam
a encarar o romance realista como uma forma irremediavelmente an­
tiquada e primitiva. Saíram expurgando de sua obra todos os diálo­
gos realistas, cor local, questões sociais, ou outras facetas da vida
real. Procuraram escrever fábulas modernas ao estilo dos mestres con­
temporâneos europeus, tais como Kafka, Zamyatin e os dramatistas
Pinter e Beckett
O século XX, o século americano, já transcorrera agora dois ter-

75
ços - e o complexo colonialista estava mais forte que nunca. Os jo­
vens filósofos nas universidades andavam completamente embasba­
cados com a moda francesa das pseudo-abordagens analíticas da fi­
losofia, tais como o Estruturalismo e o Desconstrutivismo, A idéia
era que as velhas preocupações "idealistas" da filosofia do século
XIX - Deus, Liberdade, Imotlalidade, o destino do homem - eram
incorrigivelmente ingênuas e burguesas. A preocupação certa da fi­
losofia era a natureza do significado. Ou seja, a preocupação certa
da filosofia eram os arcanos da própria. igrejinha filosófica. Numa
era em que as guerras tinham se tornado tão abrangentes que eram
conhecidas como guerras mundiais - em que as pessoas se concen­
travam em metrópoles de escala e complexidade nunca antes imagi­
nadas pelo homem - em que os conflitos raciais começa� a sa­
cudir a estabilidade do globo � em que o homem usurpou o poder
divino de mergulhar o mundo na destruição - numa era dessas, qual
era a preocupação dominante dos filósofos americanos? Ora, era a
mesma dos filósofos franceses a quem eles idolatravam. De dia, os
estruturalistas construíam a estrutura do significado e ponderavam
sobre o significado da estrutura. De noite, os desconstrutivistas de­
moliam o edifício intelectual. E no dia seguinte os estruturálistas re­
começavam tudo de novo. . .
ó fiéis colonos!
Não era necessário nem à pessoa mais culta preocupar-se mui­
to tempo com a filosofia, a pintura ou a música contemporâneas. No
caso da música, era óbvio que não era necessário nem mesmo se preo­
cupai:. Mas o caso da arquitetura era bem diferente. Não havia a me­
nor hipótese de evitar os modismos dos redutos de arquitetura, por
mais esotéricos que se tornassem . Na arquitetura, a moda intelec­
tual era exibida de cinqüenta a cem andares de altura nas cidades
e.em infindáveis perspectivas pintadas por de Chirico nos shopping
malls dos novos subúrbios americanos.
· O conjunto habitacional .

76
VI
OS ESCO LÁSTl. C OS

E que arquiteto, . aqui n a colônia, cinqüenta anos depois iria mudar


as coisas? Que arquiteto, enq u anto a Águia proclamava sua supre­
macia no século XX, ousaria projetar para os Estados Unidos algo
além de homenagens à habitação operária da Europa Central da dé­
cada de vinte!? Para sermos justos, não era simplesmente uma ques­
tão de ousadia, conforme demonstrara a expetiência de Stone e Saa­
rinen. Não, a única maneira de provar a própria originalidade e ser
º
respeitado, eia agir com infinita sutileza e consumado respeito pelas
conveniências. E deixar para lá a construção de edifícios. A nova es­
tratégia foi demonstrada pela primeira vez em 1 966 por um arquite­
�o de quarenta e um anos de idade, Robert Venturi, que não chega­
ra a construir meia dúzia de edifícios na vida.
_ Venturi publicou um livro intitulado Complexity and Contra­
diction in A rchitecture que fazia parte de uma série do Museu de
Arte Moderna sobre "os alicerces teóricos da arquitetura moderna".
O ensaio de Venturi parecia, num exame superficial, pura apostasia.
Ele pegou o famoso ditado de Mies " Menos é mais", e o virou de
pernas para o ar. " Menos é chato", disse. Exigia uma "vitalidade
desordenada" para substituir a " unidade óbvia' ' do modernismo,
elementos "híbridos" para substnuir os elementos "puros" do mo­
dernismo; preferia o torto ao direito, o ambíguo ao explícito, o m­
consistente e equívoco ao direto e claro, "ambos e" ao "ou um . . .
o u outro", "preto e branco e às vezes cinza" ao "preto o u branco", "ri­
queza de expressão" à "clareza de expressão". Em A Significance
for A & P Parking Lots ou Learning from Las Vegas e " Learni ng
from Levittown' ' ele e seus colaboradores, Denise Scott Brown e Ste­
ven Izenour, diziam onde se poderia encontrar a necessária "vitali­
dade desordenada". As deixas vinham da arquitetura "vernácula"
dos Estados Unidos na segunda metade do século XX. "A Rua Cen-

77
trai é quase aceitável' ', segundo um dos seus ditados. E também o
eram os projetos habitacionais (Levittown) e as faixas comerciais (Las
Vegas).
Venturi parecia estar dizendo que j á era hora de afastar a arqui­
tetura do mundo elitista das universidades - dos redutos - e torná-la
de novo conhecida, confortável, aconchegante, e atraente para as pes­
soas comuns; e tirá-la do nível da teoria devolvendo-a ao terreno com­
prometedor e inconsistente e todavia fértil da vida real.
Era por essa razão que as pessoas se sentiam tão frustradas com
os edifícios de Venturi em si. Havia pouquíssimos edifícios de Ven­
turi, compreensivelmente, uma vez que era jovem e rebelde. (Um era
da Mamãe.) Na época em que Complexity and Contradiction in A r­
chitecture foi publicado, seu único edifício de porte era o Guild Hou­
se, um conjunto quaker de apartamentos para idosos em Filadélfia.
Para um jovem tão direto (entre os arquitetos, qualquer pessoa c o m
menos de cinqüenta anos era jovem), Venturi trabalhava de uma ma­
'neira um tanto. . . experimental. Se estava se- afastando do moder­
nismo, recuava meio sem jeito, com passii:i hos miúdos e pisadas le­
ves. De fato, o Guild House apresentava uma semelhança curiosa­
mente intensa com a Frente Vermelha de Bruno Tuut ! - o conjunto
operário construído em Berlim trinta e sete anos antes. E Bruno, ape­
sar do ocasional lapso no bom gosto, como por exemplo usar cores,
dedicara a vida a fazer tudo certinho dentro do figurino ortodoxo.
À primeira vista, as palavras de Venturi pareciam rebeldes. Mas seus
projetos nunca passaram de obras tímidas.
Uma pista para esse enigma era o fato de Complexity and Con­
tradiction ter sido publicado numa série do Museu de Arte Moder­
na. Em Utopia, Ltda. , não se publicavam livros sobre "os alicerces
teóricos da arquitetura moderna' ' escrito por apóstatas.
As credenciais a-;adêmicas de Venturi eram excelentes. Estuda­
ra arquitetura em Princeton e integrava o corpo docente de Yale. A
exemplo do amigo Louis Kahn, também estudara um ano em Roma
como bolsista da American Academy. Na realidade, Venturi era o
clássico intel ectual-arquiteto da nova era: jovem, esguio, fala macia,
calmo, irônico, urbano, educadíssimo, charmoso com a dose certa
de reticência, sofisticado nos usos e estratégias da arquitetura mo­
derna, capaz de misturar palavras simples a eruditas, referências his­
tó ricas d o tipo mais esotérico - Lutyens, Soane, Vanbrugh, Borro­
mini - a referências mais banais - quadros de avisos. sinais elétri­
·cos, shopping-centers, caixas de correio de portão. Complexity and

78
Contradictions apareceu com endossos comoventes e até ligeiramente
pomposos sob a forma de uma apresentação assinada pelo eminen­
te historiador da arquitetura, Vincent Scully, e de um prefácio de Ar­
thur Drexler, curador de arquitetura do Museu de Arte Moderna.
Scully disse que a obra de Venturi ' 'parece adquirir um status trági­
co na tradição de (Frank) Furness, Louis Sullivan, Wright e Kahn".
(O elo trágico entre os quatro, pelo que se pode concluir do texto

O Hufeisen Siedlung em Berlim, 1926, projetado por Bruno Taut (no alto) e o
Guild House em Philadelphia, 1963, de Venturi. Foram precisos trinta e sete anos
para chegarmos a esse ponto.

79
de Scully, é que em alguma época todos tiveram que trabalhar na
Filadélfia.
Examinado com maior atenção, o tratado de Venturi afinal não
é nenhuma apostasia mas, ao invés, saltos agéis e brilhantes do alto
do muro que cerca o reduto. Para começar, ele o chama de um "sua­
ve' ' manifesto. Mas manifestos n ão são suaves. São mandamentos,
trazidos do alto da montanha, ao ribombar do trovão. Na realidade,
Complexity and Contradiction não é manifesto algum; Venturi não
tenta retirar a divindade da arte e a autoridade do gosto da sede so­
cial . Ele assinala isso desde o início:
"Gosto de complexidade e contradição em arquitetura. Não gos­
to da incoerência ou arbitrariedade da arquitetura incompetente nem
das preciosas filigranas do pitoresco ou do ·expressionismo." Jtadu­
ção: eu, tanto quanto vocês, sou contra o que é burguês (pitoresco,
precioso, intrincado, arbitrário, incoerente, e incompetente). Além
disso, tanto quanto vocês, não tenho interesse no que é meramente
excêntrico (ao estilo de Saarinen ou de Mendelsohn). Venturi conti­
nua: "Ao invés, falo de uma arquitetura complexa e contraditória
baseada na riqueza e ambigüidade da experiência moderna, inclusi­
ve naquela experiência que é inerente à arte." Essa é por sinal a frase
mais importante do livro. Inclusive naquela experiência que é ine­
rente à arte. Tradução: tanto quanto vocês, estou trabalhando aqui
entre essas quatro paredes. Ainda sou membro do reduto. Não se
preocupem, as complexidades e contradições que vou lhes mostrar
com sua "vitalidade desordenada", não serão recolhidas das tolices
do mundo exterior (exceto, ocasionalmente, para obter efeitos espi­
rituosos) mas da nossa própria experiência enquanto filhos do Prín­
cipe de Prata, daquela experiência que é inerente à arte; ou seja; das
lições esotéricas de Mies, Corbu e Gropius sobre a arquitetura mo­
derna em si. Vou lhe!i mostrar como fazer arquitetura que divirta,
encante, cative outros arquitetos.
Essa foi, então, a genialidade de Venturi. Conduziu o modernis­
mo à sua era escolástica. A Escolástica na Idade Média era a teolo­
gia que testava a sutileza dos outros teólogos. A Escolástica do Sé­
culo XX era a arquitetura para testar a sutileza dos outros arquite­
tos. Venturi tornou-se o Roscellinus da arquitetura moderna. Ros­
cellinus, um dos escolásticos mais brilhantes, andou beirando a he­
resia e a excomunhão, sugerindo que a lógica absoluta talvez exigis­
se que sendo Jesus Cristo, Deus e o Espírito Santo triunos (a doutri­
na da Trindade), então Deus e o Espírito Santo também possuíam

80
corpo, orelhas, dedos dos pés, tudo enfim. Mas não foi excomunga­
do, e não foi considerado herege. Estava apenas levando a lógica ao
seu limite e fazendo-a dar uns saltos ornamentais e, é de se presu­
mir, procurando fazer seu nome. Nem por um instante questionou
a divindade de Deus ou a existência da Trindade. E aqui temos Ven­
turi e, pelo que nos diz respeito, a arquitetura Pós-Moderna, como
é em geral conhecida.
Nem por um instante Venturi questionou as preJll i ssas funda­
mentais da arquitetura moderna; ou sej a , que se destinava ao po vo ;
que deveria ser não -b urguesa e despojada de ornato s, que havia uma
inexorabilidade histórica nas formas a serem usadas; e que o arqui­
teto, de seu posto de observação no interior do reduto, decidira o
que era melhor para o povo e o que ele inevitavelmente deveria receber.
De maneira mu�to espirituosa Venturi redefiniu esses dois tópi­
cos mitológ\cos da agenda do reduto - o po vo e o n ão -burguês -

e em seguida apresentou os elementos do desenho ortodoxo moder­


r;io em forma de piada, com tabuletas de " Me chute" pregadas às
costas. Essas apresentações se tornaram conhecidas entre os arqui­
tetos como " referências irônicas" ou "espirituosas".
Na cosmologia de Venturi, j á não se podia pensar o po vo em
termos de proletariado industrial, trabalhadores com os punhos er­
guidos, artérias branquiais congestionadas e pescoços mais grossos
que as cabeças, as massas espezinhadas do marxismo vivendo em
guetos urbanos. O po vo agora era "a classe média-média", como Ven­
turi a chamava. Vivia em loteamentos suburbanos como Levittown ,
fazia compras n a A & P d o shopping-center, e passava a s férias em
Las Vegas da mesma maneira que antes costumava ir a Coney Is­
land . A classe média-média não era a burguesia. Era a massa "em
expansão", em oposição à massa "compacta". Agir de forma esno­
be com relação a ela era ser elitista. E o que poderia ser mais elitista
nessa nova era, Venturi queria saber, do que a tradição miesiana do
Estilo Internacional , com a sua ênfase eni formas "heróicas e origi­
nais " ? ° O modernismo de Mies em si . . tor nara -se b urguês! Os ar­
.

quitetos modernos tinham se deixado obcecar pela forma pura. Com­


parava a "caixa" de Mies a uma venda de beira de estrada em Long
I sland construída em forma de pato. A estrutura inteira visava ex­
pressar um único pensamento: "Aqui patos ". Da mesma maneira,
a "caixa" de Mies. Era nada mais nada menos que uma única ex­
pressão: "Aqui arquitetura moderna". O que a transformava em e x-

81
pressionismo, certo? Heróica, original, elitista, expressionista - que
coisa tão burguesa!
Com isso Venturi fez aos sectários de Mies exatamente o que
tinham feito a Otto Wagner, Josef Hoffmann, e aos arquitetos da
Dissidência Vienense meio século antes. Consignou-os à barcaça de li­
xo do desviacionismo burguês.
Quanto ao povo, a classe média-média, Venturi a encarou exa­
tamente da mesma maneira que o Príncipe de Prata encarara o pro­
letariado de cinqüenta anos antes. Era culturalmente subdesenvolvi­
da, embora Venturi nunca tivesse sido gauche a ponto de usar tais
expressões. Não se devia perder tempo perguntando-lhe do que gos­
tava. Como era hábito nos redutos, o arquiteto fazia as decisões nes­
sa área.
As decisões de Venturi lembravam as de Gr'opius, que resolvera
que os operários deviam viver em habitações de tetos baixos, quar­
tos pequenos e corredores estreitos. Venturi explicava que as pessoas
tinham todo o direito de ter em casa os símbolos explícitos e fami­
liares que a ornamentação podia oferecer. Assim sendo no alto de
seu Guild House colocou uma gigantesca antena de televisão de alu­
mínio anodizado dourado. Não estava porém ligada a nenhum tele­
visor. Era um "símbolo para os idosos".
Símbolo para os idosos? Scully ofereceu uma explicação mais
ampla. A antena de televisão de Venturi era surpreendéntemente di­
reta, revigorantemente cândida. ' 'Afinal, uma antena de televisão na
escala correta coroa (o edifício), da mesma forma que preenche -
e é apenas um fato, nem bom nem mau - a vida dos n.ossos velhos.
Sej a qual for a dignidade que haja nisso, Venturi a incorpora, mas
não nos mente nem uma vez a respeito dos fatos.' ' A frase ' 'seja qual
for a dignidade' ' referia-se, presumivelmente, à dignidade dos men­
tecaptos da classe méd•a-média esperando os anos dourados termina­
rem narcotizados pela luz azulad a e tísica do aparelho de TV. Exata­
mente qual a extensão do prazer, se é que houve algum, que os resi­
dentes de Guild House encontraram nesse slmbolo explícito e fami­
liar, ele não nos contou.
Mas e daí ! A antena de televisão do Guild House era acima de
tudo uma amostra do talento de Venturi para a piada modernista.
A televisão era uma peça de ornato e, sobretudo, uma coroa, um re­
mate, tanto quanto o " fantástico mastro de amarração" no alto do
Empire State Building - isto é, uma óbvia violação do Estilo I nter­
nacional . Mas na realidade era apenas uma antena de televisão, que

82
é um objeto comum produzido em série (ótimo) cuj a função exige
(ótimo) que seja colocado no alto de um edifício. Assim sendo so­
mente aqueles em quem o arquiteto desse um toque teriam possibili­
dade de percebê-la como um ornamento, para começar. Temos aqui
um exemplo do que na era de Venturi se tornou conhecido como " re­
ferência irônica' '. E o mesmo se aplica ao acabamento dourado da
antena. O ouro, como no caso da folha de ouro de Stone, era o epí­
tome de tudo que havia de irremediavelmente burguês na arquitetu­
ra. Mas alumínio anodizado dourado já era diferente, não é mes­
mo? Era um material convencionalmente usado para produzir em
massa o brilho cotidiano da classe média-média, como por exemplo
nas barras ajustáveis de um carrinho de TV.
Venturi insinuou que se o Guild House não fosse dirigido por
quakers, que são contra as imagens, ele teria coroado o edíficio "com
um à madona de braços abertos feita de gesso policromático' '. Teria
coroado . . . mas não o fez. As sediciosas exaltações que Venturi fazia
"do vernáculo" levavam as pessoas a procurar não só madonas
de gesso mas muito mais em seus edifícios. Mas por alguma razão
nunca as encontravam. A estratégia de Venturi era violar o tabu -
sem o violar. Usou tij olos aparentes (burguês) na parte superior da
fachada do Guild House - afinal era apenas um tijolo escuro espe­
cialmente escolhido para combinar com os tijolos "enfarruscados
de smog" das decadentes habitações operárias à volta (não-burguês).
Colocou uma enorme coluna (burguês) na entrada - mas afinal não
possuía ornatos (não-burguês), nem capitel (não-burguês) nem fron­
tão (não-burguês). Não a assentou de lado, mas bem no meio da en­
trada, fazendo-a perder a imponência (burguês) e parecer mais es­
premida (não-burguês). As sacadas receberam gradis decorativos (bur­
guês à E. D. Stone), mas pareciam ter sido estampados pelo proces­
so industrial mais barato possível, como se ugassem uma prensa per­
furadora (definitivamente não-burguês).
ó complexidade! ó contradição! Violar o tabu - sem violá-lo!
Que virtuosidade! Venturi teve seus detratores, mas ninguém nos re­
dutos conseguia deixar de se impressionar. Ali estava um homem que
pulava, gritava, dava saltos mortais na beirinha do muro do mostei­
ro - sem escorregar nem cair uma única vez.
É claro, um marciano - ou, podemos presumir com relativa
segurança, um velho de Philadelphia instalado no Guild House até
o fim dos seus dias televisivos - olhou para o edifício e viu apenas
uma anônima estrutura institucional moderna, descorada (vermelho-

83
enfarruscada) típica. Mesmo nos redutos, havia os que cometiam o
erro de descrever a obra de Venturi nesses termos. Philip Johnson
e Gordon Bunshaft chamavam o trabalho de Venturi de " feio" e "co­
mum' '. Ambos viveram para se arrepender. Venturi era brilhante nes­
sas situações. Era um mestre do j iu-j itsu . A exemplo dos fauvistas
e cubistas de antanho, adotava cada epíteto como uma máxima glo­
riosa. "Feio e comum ! " - exclamou. Então transformou-o em "F &
C" e brincou um pouco com a sigla. É melhor F & C do que " H
& O " - heróico e original, que era a postura dos sectários de Mies
tais como Johnson e Bunshaft . H & O, J & B. . . que coisa tão bur­
guesa.
Venturi muitas vezes elogiou os artistas pop da década de ses­
senta, como se estivessem restabelecendo uma espécie de ligação en­
tre as artes superiores e a cultura popular. A estratégia de Venturi
era, na verdade, exatamente a mesma dos artistas pop - e nenhum
deles tinha o menor interesse na cultura popular além da ludicidade
e afetação. A arte pop não era uma revolução. Os artistas pop, não
menos que os expressionistas abstratos a quem eclipsaram, continua­
vam a observar religiosamente os princípios fundamentais do mo­
dernismo no tocante ao plano ("a integridade do plano da pintu­
ra" ) e ao não-ilusionismo. Tinham o cuidado de só fazer pinturas
de outras pinturas - rótulos, cartuns, bandeiras, páginas de núme­
ros - de tal modo que os colegas hierofantes percebessem que não
estavam realmente voltando ao realismo. Os proponentes de Jasper
John diziam que suas pinturas de bandeiras e números, por exem­
plo, eram as pinturas mais planas e mais não-ilusionistas já expos­
tas, porque retratavam coisas que eram pela própria naturez a bidi­
mensionais e abstratas. A pop era uma brincadeira, uma piscadela
travessa, mas no fundo respeitosa, à ortodoxia da época.
A muitos arquitet�s mais jovens, a Grande Piscadela de Ventu­
r.i era irresistível. O homem era um gênio. Imaginara a estratégia per­
feita para desbaratar a turma antiga, os adeptos da caixa de Mies,
sem procurar desmantelar o sistema do reduto em si. Venturi desco­
brirà seus pontos vulneráveis: primeiro, a pavorosa solenidade e. exa­
gerada seriedade; segundo, a idade e distanciamento da vida moder­
na. As idéias de formas produzidas à máquina e em massa vinham
do período anterior à Primeira Guerra Mundial. A abordagem à Mies
para atingir o ideal não-burguês resumira-se em se tirar o ' 'vernáculo
industrial" do "outro lado da sociedade", nas palavras de Venturi, e
introduzi-lo nas "áreas nobres da cidade". Venturi estava fazendo

84
o mesmo, só que atualizando o processo. Usava o "vernáculo co­
mercial" (comercial de Las Vegas) e o "vernáculo do empresário da
construção" (os loteamentos suburbanos). Morram as vigas de abas
largas. Vivam uma antena de TV aqui e um gradil de ferro perfura­
do ali . Isso é que era o bom da coisa. Afinal Venturi estava apoian­
do um princípio fundamental dos redutos. Mantinha-se fiel ao ou­
tro lado da sociedade. Guardava a fé não-burguesa.

Havia quem, como Venturi , achasse que a fonte de "referência"


arcanà' (a terminologia da lingüística estrutural era agora usada co­
mo um monóculo) devia ser a massa média-média em expansão que
vivia fora dos muros. Charles Moore, antigo decano de arquitetura
de Yale, hoj e na UCLA, tornou-se o mestre da referência histórica
da afetação. Moore era capaz de colocar uma talha vitoriana hiper­
rebuscada (burguesa e meia) sobre uma porta de uma residência -
mas com os seguintes toques que a salvariam no último instante das
garras da apostasia: l . Colocava a talha apenas no alto deixando o
resto do portal com a moldura mesquinha de estuque de uso normal
na habitação operária. 2. Não usava nem esquadria nem os alizares
que em geral se vê à volta de uma porta (se é que se precisa olhar
par uma imagem retrógrada dessas), mas moldura para quadro, pe­
la qual se pendura uma pintura, com arame ou fita decorativa. Caso
houvesse alguém que continuasse sem entender, ele colava uma tira
de espelho verticalmente de um dos lados do alizar, a fim de enfatizá­
la pela repetição. Mas enfatizar o quê? Ora, o fato de que isso era
apenas uma " referência histórica irônica". Intelectualmente, o ali­
zar continuava tão alheio e remoto como se estivesse por trás de uma
vitrine em um museu de arte folclórica.
Gradualmente começou a se formar um movimento Venturi ou
de "arquitetura pop". Dele participavam Moore, Hugh Hardy, o ami- .
go de Moore, William Turnbull e Robert Stern . Na qualidade de edi­
tor da revista Perspecta, quando era aluno de arquitetura em Yale,
Stern publicara parte de Complexity and Contradiction um ano an­
tes do lançamento do livro, e aj udara a chamar a atenção de Vi­
cent Scully para Venturi . A essa altura, Scully serviu à ala Venturi
da arquitetura americana da mesma forma que Guillaume Apolli­
nai re servira aos cubistas, ou seja, como estudioso, conselheiro e in­
tercessor especial .
Sem a menor dúvida, Scully firmara suas credenciais de profe-

85
ta. Na apresentação de Complexity and Contradiction in A rchitectu­
re descrevera o livro como a obra mais importante de arquitetura des­
de Vers une architecture de Corbusier. Os anos seguintes provariam
que tinha razão. Venturi foi o primeiro arquiteto a realizar uma mu­
dança importante no reduto do Príncipe de Prata. E à semelhança
de Roscellinus, Venturi tinha seus inimigos, e alguns bem rancoro­
sos. Mas um a um foram envolvidos no j ogo absolutamente sério
que ele iniciara: arquitetura de infinita sutileza para deleite e espan­
to dos outros arquitetos. Desvendavam-se os novos arcanos! de um
monge para outro.
A recessão do i nício da década de setenta intensificou o proces­
so. Ela destruiu a estrutura comercial da arquitetura americana quase
tão inteiramente quanto a Grande Depressão quarenta anos antes.
H ouve na década de sessenta uma fantástica expansão na constru­
ção civil; praticamente todos os principais centros urbanos no Leste
americano foram reconstruídos em pouco tempo. Fundaram-se mui­
tas firmas novas de arquitetura, e outras tantas mais antigas cresce­
ram a ponto de empregar mais de cem pessoas. A expansão chegou
a um fim natural no momento em que se iniciava a derrocada finan­
ceira. Da noite para o dia, ou assim parecia, de trinta a quarenta
por cento dos arquitetos estavam desempregados. Firmas com du­
zentos empregados ficaram repentinamente reduzidas a dez. Sócios
principais passaram a atender telefones. E desenhistas fo ram pro­
movidos a vice-presidentes. Dessa forma, ao invés de receberem sa­
lários, ganhavam participação nos lucros, que j á não existiam. En­
tão sobreveio o êxodo. Metade dos arquitetos dos Estados Unidos
parecia estar trabalhando, quando estavam, para o Xá do Irã . Qua­
renta por cento pareciam estar trabalhando para o Rei Saud , o Bom.
O restante continuou no país batalhando pela fama no âmbito da
competição intelectual Jas academias.
Em 1 972, um novo reduto, conhecido como o dos . Brancos, ou
os Cinco de Nova Yor k , fez o seu lançamento com um livro intitu­
lado Five A rchitects. Os cinco sendo Peter Eisenman, Michael Gra­
ves, John Hejduk, Richard Meier, e Charles Gwathmey. Representa­
vam o papel de Anselmo ou Abelardo frente ao Roscellinus de Ven­
t uri. Na tentativa de parecerem originais sem violar os pressupostos
fundamentais do modernismo, assumiram a posição de que o verda­
deiro caminho se encontraria não na terra da massa média-média
em expansão mas no retorno aos princípios iniciais. Sua idéia era
retornar ao mais puro dos puristas, ao Dr. Purismo em pessoa, Le

86
Corbusier, e explorar as sendas que ele indicara. O Apolinário do
grupo era Colin Rowe, pro fessor de arquitetura em Cornell, que es­
crevera uma influente exegese da obra de Le Corbusier. Receberam
o nome de Brancos porque praticamente todos os seus edifícios eram
branco s, por dentro e por fora, con:io os do mestre.
Sua posição era que Corbu abrira um universo de formas cor­
retas e inevitáveis porque procediam do próprio cerne - "da estru­
tura profu n da" para usar uma expressão de Eisenman - do signi fi­
cado da arquitetura. O significado da arquitetura? Para a maioria
que se aproximava dos Brancos desprevenida, isso era uma noção
desconcertante. Mas . . . ah ! - os Brancos estavam preparados para
os olhares intrigados.
A essa época a filosofia - e o jargão - da lingüística estrutu­
ral francesa estava na crista da onda nas universidades americanas.
Até Venturini, com toda aquela conversa de " vernáculos ", "códi­
gos", " referências", e "ambigüidades", fora afetado pelo modismo.
O Estruturalismo nascera na França no que se poderia chamar de
brumas do Marxismo Maneirista ou Tardio. Os estruturalistas pre­
tendiam que a linguagem (e portanto o significado) tem uma estru­
tura profunda imutável, que brota da própria natureza do sistema
nervoso. Instintivamente, as classes dominantes, os capitalistas, a bur­
guesia, tinham se apropriado dessa estrutura para seus desígnios pes­
soais e a saturaram com uma espantosa propaganda interna.
Se essa idéia parecesse um tanto incompreensível , não impor­
tava. O que importava é que os estruturalistas eram pessoas dedica­
das a destrinchar toda essa confusão burguesa até os ossos. Os estru­
turalistas beneficiavam o povo pela própria natureza de seu traba­
lho. Portanto não havia necessidade de andar se metendo em políti­
ca. A mesma aura de beneficência envolvia os Brancos. A verdade
pura e simples é que seria quase impossível se importarem menos
com política. Em todo o caso, não precisaram fazê-lo. Presumia-se
que as experiências experimentalistas eram boas para o povo.
A obra dos Brancos era identificável à pr i meira vista. Seus edi­
fícios eram brancos . . . e frustrantes. Mal permitiam a introdução do
ocasional toque preto ou cinzento, como por exemplo a faixa preta
pintada na base da parede para desempenhar a função dos antigos
(e burgueses) rodapés. Estavam convencidos de que o caminho para
o não-burguês, na nova era, era se manterem escrupulosamente pu­
ros, como Corbu se mantivera escrupulosamente puro, e serem frus­
trantes. Frustrantes era a contribuição deles.

87
88
Corbu era transparentç comparado a, digamos, Peter Eisenman,
um arquiteto que dirigia o Institute for Architecture and Urban Stu­
dies em Nova York, e que lançou os dois principais órgãos dos Bran­
cos, Oppositions e Skyline. Eisenman seria Corbu, se Corbu tivesse
ido algum dia à' Holanda e sido hipnotizado por Gerrit Rietveld. Ei­
senman projetava edi fícios brancos que eram o Paraíso da Estrutura
Expressa. Eram como uma peça de música serial de Milton Babbitt.
O leigo achava-os absolutamente incompreensíveis. O entendido -
o colega arquiteto de reduto - conseguia distinguir que havia uma
espécie de padrão, uma espécie de paradigma complexo, subj acente
a todós os estranhos ângulos e proj eções, mas droga, não conseguia
imaginar qual era. A própria alma esotérica humana clamava por
uma explicação.
Mas as explicações de Eisenman não aj udavam muito, mesmo
ao iniciado. Eisenman adotara sem reservas a tal lingüística . . . Ou­
tros andavam falando de nuanças sintáticas e semiologia da infra­
estrutura e semântica da superestrutura e morfemas do espaço ne­
gativo e dos polifemas da pós-imagem arquitetônica. Falavam de coi­
sas como a "articulação do perímetro da estrutura percebida e seu
diálogo com a paisagem circundante". (Isso levou um lógico de Har­
vard a perguntar: "E o que foi que a paisagem disso? " O arquiteto
não teve nada literal a relatar.) Mas eles eram todos redatores da Uni­
ted Press lnternational , não podiam ser mais simples, comparados
a Eisenman. A grande genialidade de Eisenman era usar expressões
relativamente claras do jargão lingüístico e fazer a pessoa engolir em
seco levando o cérebro de roldão. " O signi ficado sintático aqui de­
finido", dizia, " não está ligado ao significado que se soma aos ele­
mentos -0u às verdadeiras relações entre os elementos mas à relação
entre as relações".
Eisenman era uma graça. Levava qualquer homem vivo a engo­
lir em seco com uma única frase. Eisenman era um purista de tal
ordem que nas poucas vezes em que se construíram as casas que
proj etou, não se referia a elas pelos nomes dos donos, como faziam
outros arquitetos (por exemplo, a casa Robie de Wright , a casa Sebo-

Os Brancos. A meia-volta da vanguarda de arquitetura, retrocedendo resolutamente


à década de vinte e à fase inicial de Corbu, com uma pausa para descanso e re­
creio na de Gerrit Rietveld. A lto: Casa li de Peter Einsenman. Meio: A Douglas
House desenhada por Richard Meier. Embaixo: residência de Bridgehampton "pro­
jetada por Charles Gwathmey.

89
roeder de Rietveld). Referia-se às casas por números: Casa 1, Casa
I I , e assim por diante. Era como se não pertencessem a ninguém,
embora alguém tivesse pago por elas. Pertenciam à estrutura pro­
funda da arquitetura; ou se preferirem, à história. Seu confrade Hej ­
d u k referia-se às casas que projetava p o r números p o r u m a razão
diversa. Nenhuma delas j amais fora construída. Eram tratados de
teoria corbusiana em duas dimensões, tais como a " Hemicasa", que
consistia em plantas baixas e projeções axonométricas baseadas no
semicírculo, semilosango e semiquadrado. A única obra que Hejduk
tinha a seu crédito era a reforma do interior do pr incipal edifício
da Cooper Union em Nova Yor k , cidade onde era decano da escola
de arquitetura. Era bastante singular: um barco corbusiano enfiado,
contra todas as expectativas, numa garrafa de estilo Belas-Artes. Vi­
o pela primeira vez quando compareci à reabertura dos trabalhos da
Cooper Union em 1 980. Mal consegui me concentrar no evento em
pauta. O Cooper U nion fora declarado tombado, de modo que Hej ­
d u k não pudera mexer n o exterior. O exterior continuava praticamente
igual ao que era quando Fred A. Petersen o projetara cento e vinte
e cinco anos antes. Era uma grande valsa de arenito pardo com j a­
nelas em arco, cesuras, cornij as e loggias, ao estilo palazzo italiano,
ocupando um quarteirão inteiro. E no interior? No interior da velha
casca de alvenaria, a um enorme custo, Hej d u k ampliara a pequena
Villa Savoye de Corbu como se fosse um balão. As paredes brancas,
as rampas, os gradis tubulares, os cilindros . . . Era tudo muito bizar­
ro. E por que fizera isso? Porque sendo um verdadeiro arquiteto de
reduto, um verdadeiro Branco, um verdadeiro Neopurista, não po­
deria fazer outra coisa. Petersen projetara grandes j anelas ao longo
das escadas. A idéia era captar o máximo possível de luz natural pa­
ra iluminá-las. Mas isso signi ficava que qualquer um que descesse
as escadas poderia oií.ar para fora e ver grandes seções da maldita
alvenaria parda e burguesa de Petersen. Assim sendo, Hejduk en­
cerrou meticulosamente as escadas em cilindros corbusianos bran­
cos, convertendo-as em caixas. No alto, na escuridão de cada pata­
mar, havia um único tubo circular fluorescente de 22 watts, sem qual­
quer adorno, do tipo que se conhece em Nova York pelo nome de
Au réola de Senhorio.

90
VI I

B RA N C O - P RAT EA DO,
C I N ZA- P RAT EA D O

Em 1973 os VENTU RI, o u arquitetos pop, lançaram um ataque aos


B RANCOS que, na fase de planejamento, pareceu uma grande brin­
cadeira. Foi num artigo intitulado " Five on Five" publicado na A r­
chitectural Forum . A idéia era que cinco arquitetos da ala Venturi
- Moore, Stern, Jaquelin Robertson, Allan Greenberg e Romaldo
Giurgola - fariam uma crítica de Five A rchitects. St�rn foi o pri­
meiro com um artigo intitulado " Stompin' .at the Savoye". A maio­
ria dos colegas d.e equipe de Stern começaram as investidas com al­
guns cumprimentos e simulações de cortesia profissional , mas Stern
entrou no espírito da luta desde o início. Descreveu Colin Rowe co­
mo o "guru intelectual " dos Cinco, um homem preso à "estética
de estufa da década de vinte", fiel "aos aspectos mais questionáveis
da filosofia de l.e Corbusier" - e despeitado com a afirmação muito
exata de Vincent Scully de que Venturi coexistia no mesmo plano de
Corbusier como uma "criador de formas ". Disse que Hejduk estava
fazendo a única coisa para que serviam seus desenhos: · ' 'arquitçtw:a
de papel ". Quanto a Eisenman, suas teorias lhe davam "dor de ca-
- beça", e suas casas eram um "despropósito de paredes, vigas e colu­
nas " que não contriDuíam para a "estrutura profunda" e sim para
a claustrofobia. Chamou Graves e Meier de ' 'compulsivamente mo­
dernos " e mais, considerou Meier capaz de fazer projetos de "car­
regação". Robertson tentou ser generoso e equilibrado ao abordar
a obra de Meier e Gwathmey, mas quando chegou a Graves não pô­
de mais se conter. Em Graves, dizia, a pessoa se deparava com tudo
que era " fraco" e " incorrigível " no Neocorbu. Suas casas estavam
" inçadas por dentro e por fora de uma espécie de hera moderna e
ruim que assumia a forma de corrimões, grades metálicas, canos inex­
plicados, vigas aparentes, tubos obtusos e inj ustificados - a maio­
ria sem nenhuma aparente finalidade arquitetônica ou real ".

91
Os Brancos protestaram aos gritos. Gritaram com tanta viru­
lência que nunca mais os arquitetos americanos se atracaram direta­
mente pela imprensa. Gritaram, mas na realidade os Venturi lhes pres­
taram um grande favor. Fizeram os Brancos parecerem uma das duas
grandes legiões que se enfrentavam nas planícies celestes pela alma
do movimento moderno. O próprio futuro da arquitetura america­
na parecia estar dependendo do resultado do combate entre os Bran­
cos e os arquitetos pop, ou Venturianos ou do Eixo Yale-Filadélfia . . .
o u que nome tenham. Alguém sugeriu "Cinzentos", que era o mais
simples. Então passou a ser os Brancos contra os Cinzentos. Era só
o que se ouvia nas universidades, os Brancos contra os Cinzentos;
os jovens arquitetos começaram a tomar partido. O fato de que os
dois lados continuassem a obedecer aos pressupostos do modernis­
mo parecia ficar esquecido na agitação.
Os jovens arquitetos europeus não conseguiam crer no que es­
tava acontecendo. Aqueles eternos colonizadores, aqueles nativos
obedientíssimos, os americanos, tinham usurpado a vanguarda, ima­
ginem só, da teoria da arquitetura. Estavam se divertindo a valer,
mesmo em meio à depressão comercial que afetava a profissão. A
mesma depressão atingira a arquitetura européia. Em alguns aspec­
tos, fora até mais grave. Encomendas particulares quase já não exis­
tiam . Os arquitetos sentavam-se por ali mordiscando estudos gover­
namentais de viabilidade, qualquer coisa que aparecesse. Por que não
fazer como os americanos? Um teórico de arquitetu ra poderia cons­
truir uma reputação sem encomendas. Poderia no mínimo obter con­
vites para palestras e seus desenhos poderiam valer dinheiro.
Sej a como for, os racionalistas nasceram nesse momento. Os
principais racionalistas eram um italiano, Aldo Rossi, um espanhol,
Ricardo Bofill, e dois irmãos de Luxemburgo, Leon e Robert Krier.
Os racionalistas se assemelhavam aos Brancos na medida em que
acreditavam que o ca1ninho inevitável e verdadeiro do modernismo
era voltar aos princípios iniciais. Mas achavam que os Brancos não
tinham retrocedido o suficiente. Os racionalistas gostariam de retro­
ceder no mínimo ao século XVIII; melhor ainda ao início do Renas­
cimento. Os racionalistas queriam construir edifícios pré-século XIX
- despojados de toda a ornamentação burguesa. A idéia era retro­
cederem à época anterior à revolução industrial, anterior ao capita­
lismo; ou seja, anterior ao capitalismo ter poluído a arquitetura com
a sua corrupção.
As brumas marxistas que envolviam o racionalismo eram ain-

92
da mais densas, mais sufocantes e mais sentimentais do que as que
envolviam os estruturalistas. Os racionalistas tinham a noção român­
tica e prolecultista de que os mestres artesãos do Renascimento cons­
truíam a partir de impulsos naturais e inevitáveis do povo, como se
isso decorresse de alguma espécie de estruturalismo dos reflexos mo­
tores . O fato de que os edifícios fossem em geral encomendados e
pagos por reis, déspotas, duques, pontífices e outros autocratas não
importava. Pelo menos não eram capitalistas .
Não tardou muito e os racionalistas estavam acrescentando um
certo sabor primitivo ao debate americano sobre arquitetura. Nas
conferências de arquitetura nos Estados Unidos, saíam gritando
" I moral ! " para qualquer um com quem discordassem . Eram cons­
trangedores, mas fascinantes. Venturi os enfurecia. " Imoral ! " Ven­
turi exaltava a sordidez do capitalismo na sua fase moderna, ou se­
ja, a faixa comercial. " I moral ! Corrupto! Americano! "
Quanto ao trabalho que faziam, parecia . . . bem , estranhamente

Apartamentos em Milão, projetados por A/do Rossi, orgulho dos Ratos. A rquite­
tura à prova de burguesia para a escola européia dos marxistas primitivos, ultra­
ortodoxos.

93
fascista. Tunto na Itália quanto na Alemanha, a arquitetura tinha
apresentado traços clássicos despoj ados dos ornatos ou esti i izados.
Quando lembravam isso a racionalistas como Leon Krier, eles per­
diam as estribeiras. Fascista ou não, o trabalho de Aldo Rossi era
fantasmagórico. Com as arquitraves, dintéis, arcos compostos e to­
do o resto removido, suas janelas renascentistas acabavam com o as­
pecto de lúgubres espaços vazios mergulhados em so m bras. Os ra­
cionalistas não tardaram a ficar conhecidos como Ratos.
Os arquitetos britânicos mostravam-se céticos a respeito dessa
teorizaç�o, mas nem por isso menos intrigados. Um j ovem arquite­
to americano, Charles Jencks, cujo trabalho lembrava o de um adepto
de Venturi-Moore, foi à Inglaterra e publicou um livro intitulado The
Language of Post-Modern A rchitecture, em que catalogava e anali­
sava todas as novas correntes. Qualquer que fosse seu status como
arquiteto ele imediatamente se firmou como o autor de arquitetura
mais instruído e espirituoso em atividade. O termo pós-modernismo
foi adotado para todas as manifestações posteriores à exaustão do
modernismo em si. Conforme o próprio Jencks comentou com rara
felicidade, o pós-modernismo talvez fosse um termo muito confor­
tável. Informava o que a pessoa estava abandonando sem contudo
comprometê-la com nenhum destino em particular. E estava certo.
O novo termo por si só tendia a criar a impressão de que o Moder­
nismo terminara porque fora substituído por algo novo. De fato, os
pós-modernistas, fossem Brancos, Cinzentos ou Ratos, nunca saí­
ram da caixinha sobressalente que Gropius, Corbu e os holandeses
criaram em 1920. Na maioria contentaram-se simplesmente em pro­
mover mudanças nos mesmos conceitozinhos estanques, agora com
sessenta anos, em · benefício próprio.

Em maio de 1 980 um dos Brancos, Michael Graves, professor


de arquitetura em Princeton , foi o único arquiteto entre os trinta e
sete artistas, compositores e escritores que receberam prêmios da
American Academy e do Institute of Arts and Letters nas cerimô­
nias anuais realizadas no auditório da academia em Nova York. Gra­
ves ergueu-se da cadeira que ocupava no palco e recebeu o Arnold
W. Brunner Memorial Prize for Architecture. Dezessete premiações
mais tarde, Gordon Bunshaft, já com setenta e um anos e professor
antigo do Instituto, foi chamado para ler as menções a cinco pinto­
res e lhes entregar os envelopes com os cheques correspondentes. Após
entregar o último, Bunshaft voltou-se para a platéia e disse:

94
- Suponho que isso sej a uma cena que não se vê todo o dia,
um arquiteto entregando dinheiro a artistas.
A platéia riu educadamente, indicando ter percebido a tentati­
va de gracej o, sem contudo entender muito bem qual fosse.
- Mas, por outro lado, muitas coisas mudaram - continuou
Bunshaft . - Costumávamos premiar arquitetos por fazerem edi fí­
cios. Agora premiamos arquitetos por fazerem desenhos.
Em seguida sentou-se. Nem um pio da platéia. Apenas uns pou­
cos - todos arquitetos de reduto - tinham uma leve idéia do que
queria dizer. Bunshaft não mencionara Graves, que se encontrava
sentado atrás dele no palco, nem olhou em sua direção. Mas Graves
era o ú nico arquiteto que recebera um prêmio, e era verdade: fora
premiado por desenhos. Ou melhor, por seus desenhos, teorias, sua
posição de Branco r�idente de Princeton, ou Neopurista. Não por
construir, iss o é certo. Podia-se contar as construções de Graves nos
dedos de uma mão. " Construções " - uma ampliação aqui, uma
reforma ali , e umas casinhas. Todas pareciam obrn de Gerrit Riet-

O tipo de desenho à Corbusier que tornou Gravesfamoso: proposta de uma ponte­


centro cultural sobre o Rio Red, entre Fargo, Dakota do Norte e Moorehead, Min­
nesota.

95
veld de porre, graças à mexplicável " b rotação de hera" sob a forma
de corrimãos, tubos e vigas de que Robertson se queixara.
E daí! Na nova atmosfera intelectual, na fase escolástica da ar­
quitetura moderna, a carreira de Graves brilhava com uma incon­
fundível radiância. Havia algo sórdido em se construir muito. Mes­
mo entre os Brancos, os New Yor k Five, falava-se de Gwathmey e
Meier solto voce, como pesos leves, principalmente porque tinham
uma boa clientela e ganhavam realmente dinheiro com a arquitetu­
ra. Meier era superior a Gwathmey porque, além de construir edifí­
cios, ensinava em Harvard e enunciava teorias devidamente obscu­
ras. Não eram, no entanto, tão profundamente obscuras quanto as
de Graves.
Quando Graves falava " leituras múltiplas inerentes a um códi­
go de abstração" e "um nível de participação que envolve a intera­
ção da pessoa com o edifício", quase alcançava as alturas estrutura­
listas de Eisenman. (Quas�. faltava pouco; Eisenman conseguira se
tornar absolutamente obscuro;) As teorias de Graves eram conheci­
das e discutidas nos departamentos de arquitetura de todas as uni­
versidades importantes do país. Suas aquarelas de edifícios não­
construídos eram lilases, azuis, breves, e terrivelmente belas, como
uma tempestade. Corbu! Bastava se falar em " Michael ", como os
amigos o chamavam, e todo arquiteto aspirante no circuito sabia que
se tratava de Michael Graves.
Não se podia dizer o mesmo de Gordon Bunshaft - apesar das
dezenas de gigantescos edifícios de vidro que projetara ou inspirara.
Nos redutos universitários podia-se dizer "Gordon" ou até " Gor- .
don Bunshaft ", e só o que se recebia era um olhar tão vidrado quanto
a fachada do l.ever Ho'use.
Ao diabo com os edifícios gigantescos! Todo arquiteto esperto
1 sabia que antes de mais nada era preciso se sobressair na competi­
ção intelectual dos redutos. Houvera uma inegável pureza em Cor­
bu, em sua carreira bem como em seus desenhos. Corbu triunfara
unicamente pela inteligência e genialidade, pelos manifestos, trata­
dos, discursos, debates, desenhos, planos visionários e a pura força
moral de sua missão. Tornara-se um dos maiores arquitetos do mun­
do, respeitado e admi rado por todo arquiteto de vanguarda; criara
aquela Cidade Radiosa que era ele próprio - sem o benefício de
encomendas, clientes, orçamentos, construções. Todas essas coisas
tinham lhe chegado às mãos mais tarde. Com o tempo receberia en­
comendas de projetos como a do complexo de Chandigarh na pro-

96
víncia indiana de Punjab. Os clientes, os governos, os construtores,
os povos do mundo, tinham-no procurado porque ele era a Cidade
Radiosa, que fora uma criação de sua mente e nada mais que sua
mente. Tinham lutado, finalmente, para entrar no seu reduto, que
fora chamado, muito acertadamente, · de " Purismo".
Esse mesmo processo apenas se iniciava para Graves. Portland ,
Oregon, acabara de contratá-lo para construir o novo Public Servi­
ces Building. Provocaram furor em Portland tanto o proj eto proposto
quanto o modo pelo qual Graves fora escolhido - falou-se muito
na influência de Philip Johnson - mas não se pode mudar o fato
de que foram as vitórias intelectuais de Graves nos redutos universi­
tários que o levaram a isso, ao primeiro grande edifício, ou pelo me­
nos o primeiro que tinha probabilidade de ver construírem. Havia
ainda dividendos incidentais, mas lucrativos. Os fabricantes de mó-

A nrxo d a Casa Benacerraf projetadé pd r Michael GrRves. Sob a hera metálica


de Gerrit Rietveld há uma sala de refeições matinais e uma sala de brinquedos.

97
veis começaram a procurar as estrelas do pós-moder nismo para de­
senhar salões de exposição. Graves foi contratado para projetar sa­
lões para a Sunar Company em Nova York, Chicago, Los Angeles
e Houston. Venturi foi contratado para desenhar um novo salão de
exposição em Nova York para a Knoll I nternational, a firma espe­
cializada em móveis modernos mais conhecida do país.
Em fins da década de 70, os arquitetos mais sintonizados pro·
curavam criar uma nova abordagem para a empresa de arquitetura.
Criavam firmas que combinavam as duas vertentes da competição
moderna - a construção de edifícios e a teorização da arquitetura
- numa única entidade. Ou sej a, transformaram as firmas em re­
dutos. Ofereciam uma determinada ab �dagem do desenho, um con­
j unto de formas, uma filosofia - e um filósofo, um porta-voz, aca­
dêmico, profundo, e até abstruso, se o protocolo assim o exigisse.
A Arquitectonica, a SITE e a Friday Architects foram as gue mais
se destacaram . A vida no reduto empresarial chegava a ter um quê
da existência comunal na Bauhaus ou no de Stij l . James Wines da
SITE tornou-se um convidado assíduo em conferências de arquite­
tura nos Estados U nidos e na Europa. Suas fachadas à Magritte pa­
ra a cadeia de loj as Best eram ao mesmo tempo escultura ou "arte
ambiental ", para usar um termo de época, e arquitetura. De qual­
quer modo, o desperdício de . tanto talento e inteligência c om uma
cadeia de loj as perpetrado pela SITE enfureceu os Ratos. Eles pen­
saram, pensaram, e finalmente acharam Qmas palavrinhas para Wi­
nes e a SITE: " Imoral ! Corrupto! Americano! "
Para o arquiteto ambicioso, ter uma teoria tomou-se tão vital
e natural quanto· ter um telefone. Finalmente, a pressão atingiu até
John Portman. Ele resolveu que já estava na hora de elaborar uma
filosofia. Escreveu um ensaio para a Architectural Recoro. Bom, Port­
man podia ter mudado a aparência do centro das cidades america­
nas, mas nesse j ogo ele era novato. Sua mensagem foi demasiado
clara e compreensível por inteiro. Tinha a profundidade e a capaci­
dade de emudecer de um pingo de chuva. As pessoas gostam de ár­
vores e de água e de edifícios p úblicos numa escala humana, e é isso
que devemos lhes dar. . . teorias ao nível daquilo que as pessoas que­
rem. Bom, como se pode imaginar. . . o que riram do pobre John Port­
man por causa disso!
Contudo, pareceu vital , até para os gigantes comerciais, ao me­
nos entrar na nova jogada. Dezembro passado, a firma de Gordon
Bunshaft, Skidmore, Owings & Merrill, os gigantes comerciais da

98
moda das velhas caixas de vidro de Mies, deram um passo um tanto
desesperado. Convidaram os editores da Harvard Architecture Re­
view para organizar um debate particular de arquitetos para discutir
com eles os últimos progressos do pós-modernismo: A revista com­
pareceu com Graves, Stern, Steven Peterson e Jorge Silvetti. Sentaram­
se a uma mesa em forma de U no H arvard Club em Nova York dian­
te da 1equipe de arquitetos da Skidmore, Owings & Merril - e lhes
fizeram uma preleção como se fossem estudantes de arquitetura re­
cebendo as primeiras críticas de seus projetos. O grupo Skidmore
apresentou slides dos trabalhos recentes, para provar que não se li­
mitavam a construir caixas de vidro tipo Lever House. O fato é que
também estavam projetando caixas de vidro baixas com cantos cur­
vos e coisas que tais. Os pós-modernos, tanto Brancos quanto Cin­
zentos, não quiseram saber. Stern disse: "Os edifícios que a Skid­
more constróí são monótonos - tanto faz serem altos ou baixos,
largos ou estreitos, quem viu um viu todos." Os Skidmores nem se
deram ao trabalho de revidar.
ó Destino . . . Em momento algum parece ter ocorrido aos pre­
sentes a graça de estarem ali sentados os principais arquitetos - co­
mercialmente falando - no campo das grandes construções públi­
cas dos Estados Unidos, dispondo-se - dispondo-se? - suplican­
do pela oportunidade - de sentarem calados e receberem uma boa
chamada de quatro arquitetos que somados só tinham uns poucos
edifícios maiores que uma residência. Bom, qual era a graça? Tal era
o domínio da mentalidade de reduto, da nova Escolástica, sobre a
profissão de arquiteto.

Em 1 976 Vincent Scully recusou um prêmio de história da ar­


quitetura a ser concedido pelo American Institute of Architects ale­
gando que o instituto se recusara a receber Robert Venturi em seu
College o f Fellows. Não era honra nenhuma, disse Scully, receber
um prêmio de uma organização tão insensível - uma vez que Ven­
turi era "o arquiteto mais importante da minha geração".
Agora se essa afirmação tinha algum mérito estético - bom,
degustibus non est disputandum. Mas em termos da influência exer­
cida por Venturi sobre os outros arquitetos, Scully mais uma vez ti­
nha razão. A ala de Venturi, os Cinzentos, ia lentamente ganhando
a grande batalha nas planícies celestes. Os B rancos começavam a

99
abandonar sua posição purista - e o j argão estruturalista. (Nas uni­
versidades, o próprio Estruturalismo estava sendo questionado pelo
novo conceito de E ntropia, que afirmava não haverem afinal estru­
turas profundas. lógicas, definidas; o mundo era incerto, conjetural,
de circo.) Graves começou a elaborar variações extremamente sutis
da teoria de Venturi. Buscou uma síntese maior de B rancos e Cin­
zentos, uma que fosse digna de Abelardo ou Duns Scotus. Conti­
nuava a empregar os "códigos de abstração" dos Brancos - mas
os códigos se referiam ao conhecido ambiente de arquitetura da po­
bre classe média-média de Venturi. Por exemplo, na ampliação de
uma casa em Princeton ele criou uma projeção de vigas verticais e
horizontais que mais parecia uma escultura de David Smith adapta­
da por Rietveld - e pintada de azul. Supostamente isso deveria re­
fleti r o céu azul, familiar e média-média sob o qual a pessoa cami­
nhava.
Se é que alguém chegou realmente a perceber isso ou não não
era tão importante quanto reconhecer a sofisticação da abordagem .
Posteriormente, Graves foi se aproximando pouco a pouco da idéia
de Moore de j ogar com formas clássicas, notadamente colunas, so- ·

bre um fundo de fachadas modernas tão finas que, muito intencio­


nalmente, tinham a aparência de papelão. Os resultado s lembravam
os panos de fundo da produção típica de A ída encenada em cidade­
zinhas de veraneio.
O contínuo j ogo com elementos clássicos feito por Moore, Gra­
ves, Venturi e muitos outros tendia a -criar a impressão de que estava
ocorrendo um tipo de reflorescimento da tradição clássica. Natural­
mente que não era verdade, pois isso teria sido apostasia. Os pró­
prios arquitetos sempre punham um freio na sugestão. Por exemplo,
J o rge Silvetti e seu sócio Rodolfo Machado diziam de sua proposta
para Steps of P rovidence (para Providence, Rhode Island): " Não é
possível encontrar um único elemento clássico em estado de ' pure­
za'. Todos são transformações de motivos clássicos, a ponto de pas­
sarem a ser aclássicos ou anticlássicos ". Da mesma forma, em 1978,
Venturi anunciou sua nova definição de arquitetura: " u m abrigo or­
namentado" é ácrescentou que sabia que tal afirmação seria "cho­
cante". Por essa altura as pessoas apenas bocejavam, porque, natu­
ralmente, a tradução visual feita por Venturi da própria definição
não poderia chocar. Como exemplo ele. apresentou desenhos para
A Country House Based on Mount Vernon. "O detalhamento está
simpl i ficado, aplainado e generalizado", disse. " Reproduzi-lo [o

1 00
Mount Vernon em Washington] em forma de casa parece um pouco
com a idéia de Jasper Johns de fazer uma pintura da bandeira dos
Estados Unidos". Quanto a abrigos ornamentados não é preciso di­
zer mais. Bob Venturi só estava acrescentando um pouco 'mais de
afetação ao tema, fazendo mais algumas de suas brilhantes e diver­
tidas referências irônicas. No cerne da verdadeira ornamentação ar-

Maquete da futura sede da At & T em Nova York. O projeto é de Philip Johnson,


mas a vii6ria é de Robert Venturi.

101
quitetônica, como bem compreendiam os ecléticos arquitetos do sé­
culo XIX, encontrava-se um impulso para o enriquecimento e em­
belezamento, e não o aplainamento e a generalização. Por volta de
1978 tornara-se aparente que nem mesmo com uma arma apontada
para a cabeça Venturi teria produzido uma peça decorativa e enfei­
tada. Simplesmente não conseguia forçar a mão a se mover sobre
o pairei com essa intenção. Não conseguia produzir tal resposta mo­
tora. Continuou sendo, mesmo depois de tudo, O' mais leal dos súdi­
tos do Príncipe de Prata.
Explorar um � aveníqa que se abre para um sistema de ornamen­
tação novo, direto (sem ironia), exuberante (sem afetação) na arqui­
tetura americana em fins do século XX teria sido um progresso re­
volucionário. Teria sido também herético. Nenhum arquiteto ameri­
cano ambicioso, com a cabeça no lugar, tentaria isso. E nenhum ar­
quieto que tentasse teria probabilidade de produzir qualquer efeito
expressivo no curso da arquitetura americana. Toda a estrutura dos
redutos e de igrej inhas, com as suas recompensas, psíquicas e mun­
danas, teria que ser desmontada primeiro. ·

Por volta de 1978, a evidência de que Venturi estava vencendo


a batalha dos redutos era decisiva. Philip Johnson divulgou pintu­
ras e maquetes de sua nova sede para a AT & T, a ser construída
na Avenida Madison em Nova York. Tornou-se o edifício não cons­
truído mais famoso da década de setenta. O sectário mais devoto
de Mies projetara um edifício cuj o arremate parecia ter sido direta­
mente transposto de uma papeleira Chippendale. Philip Johnson !
Finalmente tirou os j oelhos do chão ! Depois de quarenta anos!
Johnson aprendera bem uma lição. Finalmente percebera que
numa era de esotérica competição intramuros entre artistas, era lou­
cura tentar contrariar um novo estilo enfrentando-o de peito aberto
e chamando-o de " fdo" ou "comum". (Assim faziam os burgue­
ses.) O truque era saltar por cima do novo estilo e dizer: "Tudo bem,
mas olhe só! Firmei uma posição ainda mais vanguardista . . . cá na
frente.' '
Os partidários de Venturi ficaram furiosos . . . Disseram que John­
son roubara a idéia do remate da papeleira com o frontão interrom­
pido de Venturi , de um artigo �ue escrevera para o Architectural Fo­
rum em março de 1 968 . Venturi mencionara um motel perto de Jef­
ferson's Monticello na Virgínia. "O anúncio do Motel Monticello,
a silhueta de uma enorme papeleira Chippendale, é visível na estra­
da antes mesmo do motel." Bom, ótimo, Bob. Mas Venturi nunca

1 02
ousaria ir tão longe a ponto de pôr uma coisa dessas no alto de um
edi fício. É como se Venturi tivesse realmente colocado a madona de
gesso no topo do Guild House e não apenas falasse em fazer isso
e afinal colocasse a antena de TV do conj unto para idosos. A pape­
leira da AT & T beirava perigosamente, perigosamente, perigosamen­
te. , . a inconfundível, nua e crua apostasia!
E hoje há indícios de que estej a sendo interpretada como tal.
Nos red utos, começa-se a ouvir falar de Johnson do jeito que fala­
vam de Edward Durell Stone depois da i nauguração do Taj Maria.
Mas Johnson cont inuou a ser um tático tão habilidoso quanto
Vent uri. Em discursos e palest ras ele conseguia fazer chegar aos ou­
vidos dos fiéis que em áreas tais como a da atitude perante o cliente
ele �ontinuava a ser o clássico modernista. Contava que um cliente,
a AT & T, fora "tão perspicaz que lhe dera uma pista. Dissera: ' Por
favor não faça um telhado plano! ' ' '.
Era muito reco n fortante! Podia-se imaginar a cena: o diretor­
execut ivo, o presidente do conselho, e toda a comissão de seleção,
representando a maior corporação da história humana, acercavam­
se do arquiteto, mold á ndo bolas de neve i m aginárias com as mãos
e diziam: " Por favor, Sr. Johnso n , não queremos de maneira algu­
ma interferir. Só queremos pedir, por favor, meu senhor, que não
nos faça um telhado plano.' '
E que foi que o cl iente achou do que o senhor fez? Ah, foi en­
graçadíssimo, respondeu Johnson. "O presidente do conselho disse:
Isso sim é um edi fíciO! Em outras palavras, um edifício é um edi fí­
cio; mas um edi fício não é um edi fício se é uma caixa de vidro. O
que possam pensar que sej a um edi fício, não tenho bem certeza. É
o mesmo que alguém dizer ' Isso sim é uma casa ! ' quando finalmen­
te vê uma caixa de sal."
No reduto houve um certo alívio, Johnson provavelmente co­
metera apostasia, mas eles continuavam sem perceber. Só pagaram
a conta. O mundo exterior continuava de fora como sempre. As no­
vas massas continuavam a se debater na lama média-médi a . A bur­
guesia continuava frustrada. O brilho do Príncipe de Prata conti­
nuava a i luminar a Cidade Radiosa. E o cliente continuava a agüen­
tar o tranco feito homem .

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Este livro foi composto pela Memphis Produções Gráficas Ltda .
e impresso na Editora Vozes Ltda.
em fevereiro de 1990 para a Editora Rocco Ltda .

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