Você está na página 1de 14

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/320550416

Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas

Article · June 2014

CITATIONS READS
0 38

2 authors, including:

Igor Fracalossi
Pontificia Universidad Católica de Valparaíso
165 PUBLICATIONS   33 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Theory of the Architectural Model View project

Volver a la cercanía. Casa en Jean Mermoz (Fabio Cruz, 1956-1961) View project

All content following this page was uploaded by Igor Fracalossi on 21 October 2017.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

ArchDaily  Notícias  Perda da síntese: o Pa

Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas


20:00 - 12 Junho, 2014 
por Igor Fracalossi

«Pavilhão alemão oficial


O arquiteto van der Rohe fez algo modernista muito acentuado, somente com linhas retas
horizontais e verticais, e com materiais ricos, como blocos de mármores, do país e italianos, e
paredes duplas de vidro misterioso.
Resulta distinguido seu conjunto: raro por sua estrutura, com dois espelhos d’água, sala oficial e
amplos corredores. Foi dito que os cristais são misteriosos porque uma pessoa colocada em frente a
um desses muros se vê refletida como num espelho, e se se traslada para trás daquele, então vê
perfeitamente o exterior. Nem todos os visitantes se fixam em tão curiosa particularidade, cuja
causa se ignora.» —Eliseo Sanz Balza, Notas de um visitante, Barcelona, 1930

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 1/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

Para um explorador é importante prestar a máxima atenção a quanto digam os indígenas, porque
aí irá encontrar pronunciadas –sem tradução nem reserva alguma– as ingênuas emoções que
desperta no imaculado selvagem cada impressão recebida. Remontando então o curso em
direção às fontes –partindo da palavra pronunciada, passando pelo sentimento expressado,
deixando para trás a impressão recebida– o explorador poderá chegar assim ao objeto que
produziu tudo: o Pavilhão da Alemanha, em nosso caso, de outra forma desconhecido para
qualquer investigador moderno.

Porém, para conseguir esse reencontro com o objeto primitivo, não serve qualquer indígena: só os
ingênuos. Nunca os ressabiados, que acrescentam surpresas por sua conta, que traçam pistas
falsas que não conduzem a lugar algum, que descrevem emoções produzidas só pelo afã de
interessar ao estrangeiro.

Um exemplo de maus indígenas: os havaianos, que sempre levam roupas íntimas debaixo de seus
colares de flores e suas cinturas de palha de coco.

Outro exemplo: como cita Nicolás Rubió em seu emotivo artigo sobre o Pavilhão, publicado
durante o mesmo 1929: “De turistas a indígenas de extrema vanguarda, todos haviam reprovado:
‘Esse pavilhão não é nada inovador’. Estavam contra o arquiteto, disseram que ele não deveria trazer
essas sub-novidades a Exposições Internacionais”. Não sabemos, ou não nos atrevemos a imaginar,
quem poderiam ser esses irredutíveis nativos, que, na Barcelona de 1929, achavam pouco
“moderno” o Pavilhão de Mies: Rubió, discreto, esquece de mencionar seus nomes.

Mais exemplos, porque esses indígenas perversos formam uma raça resistente e prolífica: quem
escreve, no nº 57 da revista CAU, que talvez já vá sendo hora de opor “novas interpretações” às
“velhas interpretações” que sempre outorgaram o monopólio da qualidade e do interesse ao
Pavilhão da Alemanha. É muito possível que haja mais de um que chegue a encontrar interesse
nos pavilhões da Iugoslávia, dos Armazéns Casa Jorba, da Confederação Hidrográfica do Ebro ou
em qualquer outro dos rançosos exercícios que combinam grosseiramente piadas futuristas,
efeitos expressionistas mal recordados e decomposições neoplasticistas rapidamente congeladas.
E talvez alguém chegue a desfrutar com isso. Afastado desses matizes, a mim só ensinaram que o
Pavilhão de Mies se basta por si só para explicar o trânsito da arquitetura moderna desde os
confiáveis anos heróicos das vanguardas até a lânguida contemplação mais resignada do

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 2/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

International Style, e que o Pavilhão é ademais, ou talvez sobre tudo, um objeto belo e emotivo,
indiferente a competições de maior ou menor modernidade com quem passe por seu lado.

Pelo prazer que sempre me deu olhar suas fotografias ou seguir os desenhos que o representam,
sou grato, como recordo desse prazer e como agradecimento ao seu autor –que tanto se parece,
ademais, com Gregorio López Raimundo–, por escrever sobre o Pavilhão.

É uma casa sem portas. Aberta ou fechada?

A pergunta não é irrelevante. Durante muitos anos, os críticos de arquitetura outorgaram,


ninguém sabe muito bem por que, que um espaço aberto, fluído em seu desenvolvimento interior
e derramado ao seu exterior, deve ser julgado de maior qualidade que um espaço
compartimentado, encaixado.

Talvez tenha sido pela emoção do descobrimento do espaço tardorromano que, da mão de
Wickhoff e Riegl, chegava aos arquitetos naturalmente com várias décadas de atraso com respeito
ao público culto, ou talvez tenha sido pelo recordo, ainda mais distante, de que aquele mítico
nascimento de uma arquitetura autóctone nas pradarias norte-americanas, na casa do pioneiro
que se identificava a si mesmo com a Natureza com a que competia, construindo seu domicílio
como mais uma prolongação dela, como a expressão e o resultado do pacto entre ambos, e não
como uma oposição defensiva: o certo é que o mito “dos espaços abertos” foi alimentando todo
gênero de valorizações, mais que descrições, da arquitetura de nosso século.

Ao Pavilhão de Mies o correspondia, posto que era uma obra de qualidade, vir explicado como
espaço aberto e fluído, máxime quando tão manifesta era a ausência de clausuras entre exterior e
interior. Um exemplo caricaturesco: no gracioso artigo já mencionado da revista “CAU”, em
apenas dezesseis linhas de coluna estreita, pode ser lido, referido ao Pavilhão: “Os temas da
fluidez e continuidade espacial (...), a fluidez e a transparência espacial (...), um espaço em que a
fluidez, a continuidade...”

O Pavilhão de Mies é um espaço fechado.

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 3/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

Como pode ser isso, numa casa sem portas, sem tetos, quase sem paredes e com paredes de
vidro? Nicolas Rubió, no mesmo artigo do ano 29, foi o primeiro a adverti-lo e explicá-lo: “Alguns
desses quartos não têm teto: eles são verdadeiros meio-pátios, onde o espaço é limitado apenas por
três paredes e a superfície horizontal da água da piscina, mas onde ele está ‘retido’ pela geometria."

O espaço do Pavilhão fica “retido pela geometria”, segundo um procedimento constante em toda a
arquitetura de Mies. Trata-se da disposição de um ou de vários planos horizontais, destacados do
solo, onde o plano inferior sempre designa uma superfície estrita. Pense numa bandeja de garçom
de cafeteria ou na superfície de uma mesa: não há “limites” ao espaço virtual que constroem, mas
esse espaço fica exatamente detido, cilíndrico num caso e prismático no outro, apesar da
ausência de clausuras materiais que se oponham ao seu desenvolvimento. Estar nesse espaço
significa estar sobre o plano recortado; enquanto que na arquitetura norte-americana, por
exemplo –para citar um caso de verdadeira continuidade espacial–, estar em um espaço nunca
significa estar sobre o solo, senão estar a uma ou umas direções, precisas ou ambíguas.

No Pavilhão, no plano que separa do solo e retém o espaço é o formado pela plataforma
retangular de travertino, alta mais de um metro. Uma base que esconde, a quem se aproxima
frontalmente do Pavilhão, o meio de encarar-se a ela: os oito degraus foram ocultados atrás da
peça que serve de rodapé, ao rés da plataforma.

Essa segregação da plataforma fica ainda reforçada pela própria situação do Pavilhão no espaço
da Exposição: do outro lado da gigantesca colunata que acabava a avenida transversal. A primeira
imagem do Pavilhão sempre era a de um objeto solitário colocado detrás desse fragmento de
peristilo virtual, de jaula formada pelas colunas e o interminável plano cego do Palácio de Victoria
Eugenia. O visitante devia deixar atrás o lugar da Exposição e cruzar o limite para aproximar- se do
Pavilhão.

Se basta a plataforma para definir como distinto o espaço do Pavilhão, para segregá-lo como um
cenário à parte do solo que pisa o público da Exposição, o plano definido pelas dois cobertas,
reduzidas à lâmina, servirá para converter esse espaço, não só em distinto, senão em encerrado,
em interior.

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 4/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

Trata-se de um tema presente em toda a arquitetura de Mies, desde seus primeiros projetos até
sua morte. Num artigo escrito há alguns anos, Architettura per i musei, Aldo Rossi afirmava: “Creio
que o primeiro princípio de toda teoria é a obstinação sobre alguns temas, e que é próprio dos
artistas, dos arquitetos especialmente, o fato de centrar-se sobre um tema a desenvolver, efetuar
uma opção no interior da arquitetura e de querer resolver sempre um mesmo problema”. Isso é
certo para os mestres do nosso século, para Wright, Le Corbusier e Gropius, para Mies. Em Mies
encontraríamos sempre repetida essa obcessiva vontade de construir um espaço segregado e
fechado, do que todo habitante vai ficar excluído.

Em seus primeiros projetos dos anos Dez –na casa Kröller ou no monumento a Bismarck, por
exemplo–, a arquitetura não se definia depositada sobre o solo, senão elevada, distanciada desde
uma plataforma construída previamente, claramente estranha ao terreno natural. Essa mesma
elevação, mas repetida indefinidamente, é a que dará lugar, nos anos Vinte, a seus projetos de
arranha-céus de vidro, que não são um traço vertical, senão a trabalhosa ascensão piso a piso de
uma série ilimitada de plataformas horizontais que se originam todas num solo distinto ao da
cidade, mais profundo, e que crescem por entre os edifícios vizinhos sem aceitar colóquio com
eles.

Já não será indiferença, senão obstinada clausura o que demonstram os projetos de casas com
pátio de seus últimos anos alemães, fechando herméticamente o espaço interior com um recinto
infranqueável, como se a arte ou o cenário amistoso –o domicílio– só pudesse surgir alí onde
foram cortadas todas as dependências com a vida. Suas casas norte-americanas –a Resor, a
Farnsworth, a “Fi y-by-fi y” – apresentam um exagero mais amargo e radical dessa censura. A
incomunicação entre interior e exterior, entre arte e vida, está tão assegurada, desde antes já da
arquitetura, que não parecem necessárias as clausuras. É mais: apresentar a desnecessidade de
barreiras demonstrará o infranqueável das diferenças. Nesses projetos o espaço fica
definitivamente retido como uma fresta entre as plataformas, extendido por capilaridade e
levitando à margem do solo natural.

Em toda a arquitetura de Mies o primeiro traço sobre o papel é horizontal. A definição formal do
espaço se produz sempre e somente por planos horizontais. Os planos verticais aparecem mais
tarde, uma vez que o cenário tenha ficado disposto. Por isso exibem então sua mobilidade, sua
capacidade de deslizar-se ou deter-se arbitrariamente sobre qualquer ponto do plano

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 5/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

fundacional, que não podem alterar. Aparecem então os biombos, as divisórias de ébano, ônix, ou
sedas, as placas de mármores ou os recortes de uma paisagem através do vidro. Ou aparecem
também esses objetos sobressaturados de forma, involuídos, ansiosos somente de si mesmos: as
poltronas, as esculturas, todos os sujeitos queixosos que povoam em solitário o cenário miesiano.
Pode-se chama-los móveis? O que não é “móvel” sobre a plataforma de uma arquitetura de Mies?,
poderia ser respondido. O próprio procedimento técnico da representação do projeto –o collage,
colando sobre uma lâmina já desenhada, na que aparecem os planos horizontais e, portanto, o
cenário, recortes que representam os objetos verticais, errantes, irremediavelmente alheios ao
espaço, depositados fragilmente sobre ele –indica bem às claras o distinto instante de geração de
uns e outros, sua condena a serem heterogêneos e a estarem constituídos de materiais e em
tempos distintos.

Os objetos nunca formarão parte do cenário. O cenário está disposto para permanecer vazio. “Ele
não contém senão o espaço”, escrevia Rubió sobre o Pavilhão. Poderia exagerar seu comentário,
aumentando ainda mais sua exatidão: ele não contém senão o espaço contido.

Advirtamos por outro lado essa coincidência, não só funcional, senão inclusive visual, que se
produz nas fotografias de interiores das casas de Mies –na casa Tugendhat, especialmente, da
qual todas as fotografias costumam ser velhas–, entre os veios da borrosa jardinagem do exterior
e os veios das placas de mármore do interior. O exterior ficou negado como paisagem mais ou
menos longiquo e se converteu numa placa aderida à janela, numa representação de si mesmo:
até o ponto de que um projeto como o da casa Resor pode ser explicado simplesmente pelas
intersecções da pirâmide visual de quem está olhando para fora, com o plano do vidro. O exterior
nunca conseguirá estar presente, fazer-se advertir como realidade material, nem sequer quando
seja mais imponente, nas montanhas de Wyoming: só se aceitará sua representação.

A referência às pirâmides visuais –a Alberti, portanto, e, correlativamente, a umas matrizes


conceituais thomistas ou platônicas– não é arbitrária. A de Mies é uma arquitetura antisensorial,
formada mais por representações que por valores plásticos. Tanto como a fachada de
Sant’Andrea em Mantua, de Alberti, que representa num plano a estrutura tridimensional das
naves de San Lorenzo de Florência, de Brunelleschi, o que forma as fachadas interiores da casa
Resor é uma paisagem mentalizada, representada em duas dimensões, reduzindo a imagem de si
mesma.

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 6/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

É possível que mais de um já esteja pensando, desde muito tempo, num projeto de Mies que
assinalaria uma exceção ou inclusive um desmentido à interpretação ensaiada até agora. Estou
me referindo ao projeto da casa de campo em tijolos, de 1922: um evidente exercício wrightiano,
colocado no início da atividade madura de Mies, fechando seus anos de experimentação. A partir
daí poderia ser interpretado em outro sentido o resto de seu trabalho. Mas tentemos, antes de
mais nada, entender esse projeto, o mais predisposto, aparentemente, a vir explicado em termos
de interpretação espacial.

A influência de Wright chega a Mies numa onda dupla. A primeira, em seus anos de trabalho com
Peter Behrens, procederá sem dúvida do portfolio Wasmuth, diretamente conhecido ou
assinalado talvez por Gropius, que também trabalha no escritório de Behrens durante esse tempo
e que, em 1914, em sua fábrica modelo da Exposição de Deutscher Werkbund, demonstraria com
sobras seu interesse pelo arquiteto norte-americano chegando até a citação textual de alguns
fragmentos. A segunda onda, mais referida ao projeto de casa de campo em tijolos, chegaria dos
Países Baixos, com Van’t Hoff, Oud, e o grupo gravitando em torno da revista “Wendingen”.

A influência consciente de Wright não pode, pois, ser negada. Mas tampouco pode ser que nada
tenham a ver entre si o protagonismo do espaço em Mies ou em Wright. O que é que cresce, se
desenvolve, flui, e se derrama ao exterior no projeto de Mies? O espaço? De nenhum modo, o que
cresce são os muros: exatamente o contrário do espaço. No projeto de Mies, os espaços ficam
perfeitamente definidos, estáticos uma vez que tenham alcançado sua forma, em contato mas
sem contagio entre si. Só o que não é espaço, ou o espaço no que nunca conseguimos penetrar,
que nos é negado –ou seja, o maciço da parede– demonstra sua capacidade de desdobrar-se, de
fundir-se organicamente com as linhas de força do mundo exterior.

Trata-se da situação inversa à de Wright, para quem, a partir de uma etapa que a casa Husser
fecharia –na qual o espaço, embora já em continuidade, ainda está definido desde seu perímetro,
desde os valores distintos que adota a parede, sendo um resultado do muro, como já ocorria nas
bibliotecas de Richardson, antecedente primitivo ao sentido espacial wrightiano–, o espaço
possui entidade própria, desenvolvendo-se para as paredes como o vento sobre os juncos:
inclinados, assinalam e parecem canalizar as rajadas.

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 7/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

O aparentemente wrightiano projeto de Mies é o exato negativo fotográfico de qualquer prairie


house. Poderíamos interpretá-lo supondo que o monumento a Karl Liebknicht e Rosa Luxemburg
fosse um detalhe agrandado da casa de campo em tijolos, um fragmento agigantado de qualquer
de seus muros, que exibe, provocativamente, nossa exclusão, como fazem também os espelhos
do Pavilhão, rebatendo nossa mirada sem lhe permitir penetrar nele, devolvendo-nos nossa
imagem colocada sempre fora do Pavilhão.

Olhar no Pavilhão é advertir-se excluído.

O “tema” de Mies não é o de Wright, nem sequer nesse projeto de 1922, embora possa estar
comprovando nele os materiais de Wright. Vale a pena advertir que idênticas relações se
estabelecem também entre Mies e os neoplasticistas. Mies não é van Doesburg, embora esteja
experimentando os instrumentos próprios da composição neoplasticista. Zevi valorou,
corretamente, que “talvez não haja somente um arquiteto culto (...) que não tenha recorrido, em
alguma fase de seu desenvolvimento pessoal, às investigações de descomposição derivadas do
grupo holandês”; mas também há que medir exatamente quanto neoplasticismo há no Pavilhão
de 1929.

Recordemos um canto importante, aquele onde está situada a escultura de Kolbe. O que é, aí, um
diedro? Não há dúvida: é a intersecção de dois planos. Veja, ao fundo, a parede escura: vem desde
algum lugar da esquerda, por esse corredor do que se descobre a desembocadura, e vai crescendo
para a direita, até encontrar-se com outro muro de seu mesmo material e dimensões, que foi
crescendo em sentido inverso, desde algum lugar à nossa direita, constantemente para o fundo.
Onde ambos se encontram, produz-se a reta, resultado final de ambos, conclusão de seu
movimento. O que é um diedro num projeto de Rietveld, de van Eesteren ou van Doesburg? O
contrário que no Pavilhão de Mies: é o eixo inicial da composição ou da análise, não seu resultado
final; é o apoio e o impulso do movimento tridirecional ao que irão se referindo todos os planos
do espaço. Também por isso, nos desenhos neoplasticistas, a reta que assinalaria um diedro
ocupa um lugar que está vazio ou que é central: os planos, ou que já escaparam, deslizados mais
além da sua guia, ou se repartem ultrapassando sua reta intersecção, formando então quatro
diedros. Isso nunca ocorre no Pavilhão de Mies, onde não se conhecem rebarbas, sobreposições
ou prolongações na intersecção de dois planos. Voltando ao canto do espelho d’água pequeno:
advirta a exata equivalência entre os dois planos horizontais de cor clara, que se detêm

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 8/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

exatamente sobre uma mesma reta, ou a repetição entre os dois planos, de valores visuais
inversos e, portanto, simétricos e equivalentes, da capa profunda e clara do céu e a capa profunda
e escura da água, ou a tela escura de vidro, à esquerda, e a tela virtual transparente que une o
final da coberta com a borda do espelho d’água, no centro. Esses múltiplos pares de planos
paralelos vão definindo e envolvendo uma série de espaços prismáticos perfeitamente
recortados, de valores plásticos ou conceituais inversos. O conjunto do Pavilhão poderia ser
descompo, assim, em distintos prismas unidos só pela tangência, sem oferecer nenhuma dúvida
na hora de atribuir, a uma ou outra caixa, qualquer dos lugares do Pavilhão.

Uma casa sem portas, fechada, da que todo visitante fica excluído, e formada por espaços
impermeáveis uns a outros: esses são os materiais do Pavilhão. Com que objeto pode havê-los
reunido Mies aqui?

“Nada arde na Casa de Cristal, nela não é necessário guardar o fogo”; “O inseto daninho não é
amável, nunca entrará na Casa de Cristal”: são dois dos quatorze versos que Paul Scheerbart
escreve para serem incorporados à Casa de Cristal que Bruno Taut constrói em Colônia, em 1914,
como pavilhão das indústrias do vidro na exposição da Deutscher Werkbund. Quinze anos mais
tarde, em Barcelona, Mies quererá construir esse pavilhão.

Restaram para nós poucas fotografias e somente alguns desenhos gerais do pavilhão de Taut;
inclusive a maquete, como recorda Scheerbart em sua correspondência, se perdeu ao mesmo
tempo que o pavilhão, e nada já restitui o efeito que produziu àqueles que penetraram em seu
interior. No exterior, a forma pode ser interpretada, simultaneamente, como a de uma gema
vegetal e a de um cristal talhado. Imagem da síntese, pois: representação da harmonia
reconquistada entre a Natureza e o Pensamento, entre o impulso orgânico do crescimento e a
estrutura conceitual do Universo. O pavilhão se levantava, precisamente, sobre essa mesma
contradição exposta sem resolver: a base era um bulbo inconsciente, brando e maleável de
concreto, sobre o qual se havia depositado, milagrosamente sem rolar para baixo, quatorze
duríssimas esferas de vidro, brilhantes. Penetrar no pavilhão significava, para o visitante, uma
inequívoca cerimônia de iniciação. Primeiro, se garantia a purificação das condições do mundo
exterior superando a não pacificada plataforma: um neófito sobe por uma escada de planta curva,
com superfícies de vidro à sua direita, à sua esquerda, abaixo de seus pés e sobre sua cabeça.
Avança sem direção, entre impressões translúcidas, iluminadas e imateriais. Toda referência a

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 9/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

uma orientação estabilizada foi eliminada. “Estamos suspensos no espaço e ainda não conhecemos
a nova ordem”: quando Gropius responde em 1919 à pesquisa do Arbeitsrat für Kunst, está
descrevendo exatamente esse instante da purificação, no ingresso à Casa de Cristal. O neófito
purificado adentra-se num espaço desconhecido. Quando esteja debaixo da cúpula de vidro e se
desloque, compreenderá que não é o ambiente o desconhecido, senão ele mesmo, seu próprio
corpo, que passa a ser o ponto de interesse do pavilhão: a cúpula dupla, de vidro branco
romboidal, por fora, e de centenas de vidros talhados, coloridos, por dentro, tinge qualquer objeto
–e pessoa– que esteja em seu interior com dezenas de cores e manchas de luz.

Mover-se, sob essa cúpula, significa ir-se advertindo mudando a si mesmo de cor, a cada passo. A
força do vidro revelou a enorme energia que estava no interior do visitante: dormida,
desconhecida antes para ele. A Glasarchitektur, advertia Adolf Behene, não anuncia mundos
novos, não os imagina: os constrói. O visitante se aproximou à Casa de Vidro como o espectador
que acode frente a um cenário, porém uma vez ali advertiu que era ele mesmo quem estava
representando a ação: como teatro total, a Casa de Cristal cobrirá qualquer distância entre olhar e
fazer, entre espectador e ator, entre Arte e Vida.

Explicar essa reconquistada ressonância entre o universo revelado e o Sujeito, advertir no Sujeito
o desdobramento escavador da energia do vidro: esse é o exultante aviso do pavilhão de Taut. Na
gruta do pavilhão – realmente, na planta terreno, à que só se chegava descendo desde o interior
da cúpula– o novo homem reconhece nos outros objetos do mundo de vidro qualidades idênticas
às recém-descobertas em si mesmo: a cascata sobre uma escalinata de vidro pela que saltava
água tingida pela luz de cores cambiantes, as projeções de diapositivos abstratos e de figuras de
caleidoscópio, o recobrimento de todas as superfícies com mosaicos de vidro, a mesma presença
da cúpula entrevista pelo vazio central do piso superior, o som ritmado da água...: uma
inequívoca Gesamtkunstwerk em harmonia –e isso é o importante– com as qualidades que o
visitante reconheceu em si mesmo.

No Pavilhão de Barcelonahaverá desaparecido, precisamente, essa harmonia revelada. O visitante


se advertirá estranho nesse espaço que nunca conseguirá atravessar, que foi construído
precisamente para se demonstrar vazio, e que a presença de multidões não conseguirá preencher.

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 10/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

“Uma casa não deve ser outra coisa mais que bela. Não deve ter outra finalidade, deve estar –
seguindo a máxima de Meister Eckhart– vazia: ‘Eu nunca rezarei a Deus para que se aproxime de
mim; rezarei para que me esvazie. Porque quando eu esteja vazio e puro, Deus, por sua própria
natureza, se dirigirá a mim e se cumprirá em mim’.” Assim inicia Bruno Taut o seu Haus des
Himmels, apresentando o projeto de mesmo nome.

O Pavilhão de Mies é, outra vez, a Casa de Cristal, mas agora não só a luz não nos tingirá,
outorgando-nos sua confiança, senão que nunca alcançaremos para tocá-la. A única fonte de luz
no interior do Pavilhão está encerrada entre quatro telas de ônix rosado, translúcidas, no interior
dum espaço pelo que nunca circularemos. Sabemos de sua presença, do outro lado da parede:
proibida. Resta, ainda, uma luz mais, que só pode advertir quem está no corredor ao fundo do
Pavilhão. Desde aí, a escultura de Kolbe é percebida inundada por uma avalanche de luz terrível,
mais brilhante e clara pelo contraste com a penumbra do corredor onde está o observador. Mas a
dançarina não a irradia, senão que, esmagada por seu peso, trata de recusá-la com os braços. A
seus pés vai crescendo o escuro espelho d’agua onde se recolhe o vidro fundido, inerte, sem
capacidade já para convocar a Deus na casa vazia e pura.

Se, ainda, pode ser propostar uma Gesamtkunstwerk, o Pavilhão de Mies a constrói, ou como
cenário vazio, ou como teatro do que o Sujeito deve estar ausente, olhando desde o outro lado da
parede. Manfredo Tafuri, em “Il teatro come ’cittá virtuale’. Dal Cabaret Voltaire al Totaltheater”,
explicou o Pavilhão de Mies precisamente como presença cênica: “Em 1929, Mies van der Rohe,
no Pavilhão de Barcelona, constrói um espaço cênico cuja neutralidade tem profundas afinidades
com aquela, de rítmicas geometrias, das cenas de Appia ou Craig. Nesse espaço, lugar da ‘ausência’,
vazio, consciente da impossibilidade de restaurar ‘síntese’ uma vez que se compreendeu o ‘negativo’
da metrópole, o homem, o espectador dum espetáculo realmente ‘total’ por inexistente, fica
obrigado a seguir uma pantomima que reproduz o vagar no labirinto urbano de seres-signos, entre
signos privados de sentido; experiência cotidianamente repetida por ele. No absoluto do silêncio, o
público do Pavilhão de Barcelona pode, assim, ‘reintegrar-se’ com aquela ‘ausência’.
Já não mais tentativas de síntese entre ‘a máscara e a alma’. Num lugar que recusa oferecer-se como
espaço e que está destinado a desvanecer-se como o toldo de um circo, Mies dá vida a uma
linguagem feita de significantes vazios e solos, nos que qualquer ‘familiaridade’ é exibida como
mentira. Os sortilégios do teatro de vanguarda se apagam nas voltas sem fim do espectador no
Pavilhão miesiano, no interior da ‘selva’ dos ‘dados’ puros. O riso libertador fica congelado ao

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 11/13
10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

advertir o novo ‘dever’: a utopia já não reside na cidade nem em sua metáfora espetacular, senão
somente como jogo ou como estrutura produtiva vestida de imaginário.”

A pergunta pode reaparecer, constantemente: Por que essa amarga distância entre o pavilhão de
Taut e o de Mies? Não só por quanto separa às pessoas de ambos –embora o conceito de espaço
de Mies possa ser facilmente explicado desde as características de seu pensamento católico, tão
distante do comunismo cósmico de Taut. Entre 1914 e 1929, em apenas uma geração, haverão
sucedido a Magdeburgo colorida, os Arbeitsrat für Kunst, a participação nos ajuntamentos sócio-
democratas, mas também a Grande Guerra, o esmagamento da revolução, o corpo de Rosa
Luxemburg flutuando num canal, com o crânio esmagado a culatradas também sócio-
democratas, a crise de 24...

1929: não vale a pena insistir nesse ano emblemático. Não por casualidade, dois anos mais tarde
a proposta das vanguardas já será, somente, Estilo Internacional.

Esse trânsito é o que quer explicar o misterioso vidro quando devolve o olhar do visitante, sem lhe
permitir entrar nele, sem lhe animar a entressonhos, esperando em vão a chegada de Deus nesse
cenário vazio e puro.

“Só estava feito para ser belo”, costuma-se dizer do Pavilhão que construiu Mies van der Rohe em
Barcelona. E isso é bem certo se, como disseram os anjos a Rilke, o belo não é mais que esse grau
do terrível que ainda conseguimos suportar.

Referência:
Josep Quetglas, Pérdida de la síntesis: Pabellón de Mies, Carrer de la ciutat n. 11, Barcelona, 1980.

Primeira edição em português. © Tradução: Igor Fracalossi. Colaboração: Audrey Migliani.

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 12/13
View publication stats

10/6/2017 Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas | ArchDaily Brasil

Veja mais:

Notícias Artigos

Mies van der Rohe

arquitetura moderna

Pavilhão de Barcelona

Josep Quetglas

ArchDaily Academy

Cita: Igor Fracalossi. "Perda da síntese: o Pavilhão de Mies / Josep Quetglas" 12 Jun 2014. ArchDaily Brasil. Acessado 6
Out 2017. <http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas>

http://www.archdaily.com.br/br/620547/perda-da-sintese-o-pavilhao-de-mies-josep-quetglas 13/13

Você também pode gostar