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Marta Bogéa
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.081/272
Um barco suspenso, visto apenas pelo contorno de seu casco transforma o teto numa linha
d’água.
No aparente vazio do interior da galeria delicadamente surpreendem tons de luz, sombras
coloridas, que revelam outro espaço saturado de delicadas projeções a partir do existente.
Duas obras, dois artistas em espaços diversos ocupam o pretenso cubo branco com uma
delicadeza e, ao mesmo tempo, uma transgressão surpreendente.
Salva-Vidas de Edilaine Cunha refaz o forro do espaço expositivo dentro do Programa
Sítio/Base 7 “embutindo” o casco de um barco. Todo o espaço é ocupado “apenas” por esse
elemento no teto [além das duas fontes de luz que iluminam o fundo do barco]. Forro e casco,
brancos, configuram um único cubo junto às paredes mantidas na mesma cor.
Essas obras apontam para um espaço não mais desmobilizado, ao contrário, um espaço
potencializado naquilo que melhor lhe cabe. Espaço indissociável em relação às obras, não
mais suporte, mas parte integrante das mesmas. Obra constituída pela matéria que a abriga.
Aqui o específico corresponde ao que peculiariza o espaço expositivo moderno – paredes e
teto branco , piso em cores neutras preferencialmente em concreto polido, aberturas
indiretas, de tal modo que a luz eventual ocorra sem interferir na continuidade do espaço, um
espaço sereno.
Ler o específico no específico hoje se tornou lugar comum, revelar o específico no que se
pretende genérico traz uma nova questão. Por mais genérico ou padronizado que seja um
espaço, sua natureza sempre será particular. E dessa particularidade nascem essas obras.
Remetem a uma insistente e silenciada questão: por que o cubo branco frente às obras é
considerado neutro? Pode-se pensar que para uma pintura barroca talvez a parede branca se
apresente mais turbulenta, pois mais contrastante com seu estado, do que um espaço
saturado de cor, mais próximo de sua poética!
O que parece garantir neutralidade ao cubo branco na verdade é sua convenção.
Brian O´Doherty em No interior do cubo branco: a ideologia do Espaço da Arte já situou essa
convenção:
“A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é
‘arte’. A obra isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao
recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas
pela repetição de um sistema fechado de valores” (5).
Coloque-se um espaço dessa natureza frente a espaços como um antigo gabinete de arte e
pode-se verificar sua singularidade.
O autor constrói o contraponto com quadro de Morse Galeria de Exposição no Louvre [1832-
33]:
“Pode-se vislumbrar o publico do século XIX caminhando, espichando-se, enfiando o rosto em
quadros e agrupando-se a boa distância com rostos interrogativos, apontando com uma
bengala, perambulando de novo, indo embora da exposição de quadro em quadro. As pinturas
maiores vão para o topo [mais fáceis de ver à distância] e são às vezes distanciadas da parede
para manter o plano do observador; os “melhores” quadros ficam na zona central; quadros
pequenos caem bem embaixo. O trabalho perfeito de pendurar quadros resulta num mosaico
engenhoso de molduras sem que se veja uma nesga de parede desperdiçada.
Que norma de apreciação justificaria [para nossos olhos] uma barbaridade dessas? Uma e
apenas uma: cada quadro era encarado como uma entidade independente, totalmente isolado
de seu reles vizinho por uma moldura pesada ao seu redor e todo um sistema de perspectiva
em seu interior” (6).
O´Doherty provoca:
“Sem dúvida, precisamos saber mais sobre o ato de pendurar. De Coubet em diante, as
convenções do ato de pendurar quadros foram esquecidas. O modo de pendurar quadros
encerra suposições sobre o que se quer apresentar....Deve ser possível correlacionar a historia
das pinturas em si com a historia externa de como elas eram penduradas” (7).
A atribuída neutralidade moderna, assemelhada ao discurso da objetividade científica, revela a
evidência de um partido em que a serenidade é sua premissa e que a regularidade configura
sua poética.
E nesse sentido, como alerta de modo pertinente Martin Grossmann na apresentação de “No
interior do cubo branco”,
“O´Doherty desnuda os artifícios desse espaço introspectivo e auto-referente da arte
modernista [a galeria de arte], demonstrando que boa parte da arte produzida no século
passado foi idealizada de antemão para ser exposta nesse ambiente sacralizado e distanciado
da realidade do mundo” (8).
Será que os museus, de certo modo ao adotarem um padrão, o cubo branco, não se
enquadram nessa natureza de espaços, que por apresentarem reincidências são o mesmo
ainda que em endereços distintos? E ainda, de certo modo, informam os artistas de que
espaço receberá as obras? As salas regulares internas ao Guggenheim de Bilbao, projetado por
Frank Gehry não procuram asseguram algum espaço dentro da convenção, num edifício de
arquitetura absolutamente singularizada? Ou ainda, as salas anexas do Guggenheim de Nova
York de Frank lloyd Wright, frente à especificidade que corresponde estar no salão circular e
em declive proposto por Wright?
Quando a montagem reconhece a convenção, de certo modo, pode operar o código sem a
ilusão de neutralidade de espaço sugerida.
A montagem da Paralela (12) procura operar dentro dessa convenção. Não para constituir um
cubo branco, mas para permitir que as obras estejam instaladas numa natureza de espaço que
reconheçam. Sem, entretanto, destituir o espaço de sua forte caracterização. O espaço original
é um espaço ordinário, no sentido de simples e cotidiano, de uso industrial sem nenhuma
arquitetura eloqüente, mas uma identidade muito própria de um galpão de serviços,
confirmado na desatenção de seus materiais e acabamentos. O ruído gerado por esse espaço
tem a ver com essa displicência, muito afastada da serenidade esperada e controlada peculiar
aos espaços destinados a exposições.
Sem o fechamento das paredes as sombras de Carioba se perderiam, assim como a construção
do vazio, estourado pelas bordas que interferem nessa constituição. Edilaine além do cubo,
precisa do forro, sua “linha d”. Além disso, exigem solidão para que o vazio seja preenchido. O
lugar de destino delas, naturalmente levaria a recorrer às salas menores, em que o cubo
poderia ser configurado.
Se específico é aquilo que é peculiar a um determinado lugar, não necessariamente implica em
ser único e irrepetível. O inquietante nas obras de Carioba e Edilaine é que justamente a
peculiaridade do espaço convencionado se faz revelar. E, sobretudo, exige sua integral
repetição.
Revelam o que de único há em todos esses espaços e por outro lado só há neles! Obras
impossíveis em outras naturezas de espaço. Como obter a delicada sombra de Carioba se as
paredes tiverem cor ou textura? Como submergir na “água” de Edilaine se o espaço não for um
bloco em que o vazio se faz mais presente que sua materialidade?
Em tempos de grandes escalas e ruidosas ações, poder preencher o espaço, potencializando-o
de um “vazio” subliminar que lentamente revela sua densidade é tão desconcertante que será
difícil voltar a um cubo branco sem ser novamente tomado pela lembrança forte das luzes de
Carioba e da linha d’água construída a partir do casco do barco de Edilaine. E, a compreensão
de que para além do código essas obras exigem a totalidade do espaço.
notas
1Artigo apresentado originalmente em Sessão Temática no Seminário Internacional “Museografia e
Arquitetura de Museus” organizado por Cêça Guimarães, Nara Iwata, Vânia Polly e Carlos Kessel,
ocorrido no Rio de Janeiro em 2005.
2DUARTE, Luisa. Um outro lugar. Texto da exposição Salva-Vidas, de Edilaine Cunha. Programa Sítio,
Base 7. São Paulo, out./dez. 2004.
3CYPRIANO, Fabio. White Box. Texto da exposição White Box de Ricardo Carioba. Galeria Vermelho, São
Paulo, out. 2004.
4CYPRIANO, ibid.
5O´DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do Espaço da Arte. São Paulo, Martins
Fontes, 2002, p. 3.
6O’DOHERTY. op cit., p. 6.
7O’DOHERTY. op cit., p. 16.
8Em: O’DOHERTY, ibid., p. xiv.
9MONTANER, Josep Maria. Museos para el nuevo siglo. Barcelona, Gustavo Gili, 1995, p. 13.
10MONTANER. op cit.,p. 7.
11MONTANER. ibid.,p. 9.
12Exposição Paralela 2004. Curadoria Moacir dos Anjos, Coordenação Base 7, museografia Marta Bogéa.
São Paulo, out. 2004.
sobre o autor
Marta Bogéa, arquiteta pela UFES,1987. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, 1993.
Doutora pela FAU-USP, 2006. Professora pesquisadora da Universidade São Judas Tadeu. Arquiteta
autora, entre outras exposições, do “Projeto de adequação de espaços para Arte/Cidade III”, com
George Ribeiro Neto , 1997; da exposição “Paralalela 2004” e da “27ª Bienal de Arte de São Paulo: Como
Viver Junto”, 2006.