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O Grau Zero: projetos modernos paradigmáticos.

Os museus do início do século XX enfrentaram a dificuldade técnica de


proporcionarem espaços mais amplos e flexibilidade das salas, para possibilitarem
montagens diversas e crescimento contínuo das coleções. As questões que cercam
o projeto e a construção de museus estavam ainda centradas na relação dos
espaços expositivos com as obras, na relação do público com estes espaços e na
circulação e iluminação – embora acrescidos da problemática da extensibilidade e
flexibidade.
Le Corbusier e Mies van der Rohe propuseram soluções arquitetônicas
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que, associadas às museológicas do MoMA, permaneceram até a década de 1970.


As propostas para museus de Le Corbusier e de Mies van der Rohe fundamentam-
se na liberdade e na flexibilidade da planta. O museu de planta livre é a
representação máxima da relação moderna entre arte e arquitetura, pois discute a
especificidade das linguagens artísticas, correlaciona a gênese do espaço na
arquitetura e na arte e propõe uma leitura fluida e uma fruição aberta. A
inexistência de barreiras visuais entre o objeto exposto e o espaço que o expõe
exemplifica esta fluidez. Esta concepção moderna de arte está centrada na
problematização da autonomia da obra de arte e na sua autolegitimação.

Discutir as origens e as diferenças da planta livre desses arquitetos é ponto


fundamental para a compreensão de suas concepções espaciais. Rever a noção de
autonomia das esferas artísticas operada na obra de cada um, e ainda na
concepção museológica do MoMA-NY, é fundamental para esta reflexão.
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1.1
Le Corbusier

1.1.1

Outros ícones: os museus

Os museus acabam de nascer e não existiam outrora. Na incoerência tendenciosa


dos museus, não existe o modelo; apenas podem existir os elementos de um juízo.
O verdadeiro museu é o que contém tudo, o que poderá informar sobre tudo quando
os séculos tiverem passado. Este é que seria o museu leal e honesto; seria bom, pois
permitiria escolher, aprovar ou negar; permitiria apreender a razão das coisas e
incentivaria o aperfeiçoamento. Tal museu ainda não existe.1

"Outros ícones: os museus" é título de um artigo de Le Corbusier no qual


ele critica a concepção de museu surgida no século XIX, propondo uma revisão
dessa. Em sua proposta, três pontos merecem destaque: os critérios de seleção dos
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objetos do passado, que conseqüentemente influenciam a leitura do observador; o


valor moral desses critérios; e a relação entre o passado e o presente, com a
inclusão de objetos atuais no museu.

O museu tratado por Le Corbusier não é especificamente o museu de


arte. Para ele, o modelo historicista do século XIX não pode ser considerado como
representação da humanidade, em seu sentido universal. O museu concebido no
passado é um juízo que conserva as manifestações sobreviventes, "que escapam
sempre aos desastres"2 , e não pode ser encarado como exemplar. "O museu é mau,
pois não faz conhecer tudo. Ele engana, dissimula, ilude. É um mentiroso"3 ,
porque desconsidera as manifestações de uma sociedade como um todo,
privilegiando as das classes abastadas em detrimento das outras.

A proposta corbusiana estabelece um juízo moral que antecede a simples


apreciação estética: a falta de crítica do homem contemporâneo em relação aos

1 “Outros ícones: os museus”, de Le Corbusier, foi publicado originalmente na revista L’Esprit


Nouveau e compilado posteriormente pelo autor, juntamente com outros artigos, no livro L’art
décoratif d’aujourd´hui, de 1925 (LE CORBUSIER. A arte decorativa de hoje. São Paulo:
Martins Fontes, 1996, p. 15-24).
2 Ibid., p. 17.
3 Ibid., p. 18.
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objetos do passado permite que esses objetos sejam admirados,


independentemente de seus proprietários terem sido bom modelo moral. Dentro
deste mesmo raciocínio, Le Corbusier critica os educadores, por incitarem a
valorização dos objetos de exceção e não os de uso comum, que deveriam ser os
modelos para a vida moderna.

Le Corbusier não questiona a função do museu como fornecedor de


modelos, mas preocupa-se com os critérios de eleição dos objetos expostos nos
museus. Para ele, o museu é um local de conhecimento e aprendizado, e
desempenha um papel didático. Logo, o próprio museu deve ser exemplar, tanto
em sua arquitetura quanto na escolha dos objetos expostos. Le Corbusier não
questiona a noção de modelo; para ele, a transformação da cultura clássica assume
os limites da troca do modelo.
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Le Corbusier define o museu leal e honesto como aquele que proporciona


"escolher, aprovar ou negar"4 – como o que permite o julgamento de valores
através da observação de um acervo completo, ilimitado, e não apenas de uma
coleção de objetos especiais. O arquiteto parte do princípio de que o museu deve
conter todo tipo de manifestação, para que a eleição seja feita pelo próprio
visitante. Entretanto, especificando o tipo de objeto que o museu deve expor, o
arquiteto faz sua própria seleção e estabelece uma hierarquia. Para ele, a lógica de
sua proposição está acima de qualquer julgamento; constitui uma espécie de
verdade, pelo seu caráter universal.

Para Le Corbusier, o verdadeiro museu é o da vida, aquele que apresenta


os vestígios cotidianos, não aquele que elege o fato ou objeto excepcional
produzido pelas classes abastadas e detentoras do poder. O arquiteto conclama:
"[...] constituamos o museu de hoje com objetos de hoje"5 : copos de vidro, paletós
lisos, fichários Roneo, cadeiras Thonet e outros de uso diário, os quais define
como dotados de função e uso. Ele propõe abrigar no museu não os objetos do
passado, o morto, mas o novo, o moderno, a vida. Não importa a que classe social
esses objetos pertençam, pois a diferença está na qualidade, no acabamento e na

4 LE CORBUSIER. Op. cit., p. 17.


5 Ibid., p. 17.
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execução. O museu antigo, ao contrário, consagrava o modelo do passado,


proveniente das situações especiais como palácios, igrejas e castelos, e não do
cotidiano do homem comum.

O museu do passado faz uma escolha arbitrária, "[...] parcial, menos


probatória, das épocas passadas"6 , e o museu moderno tem por objetivo expor
todas as manifestações do cotidiano, a própria vida. Tal concepção formaliza-se
na proposta de um espaço com "crescimento ilimitado" e tamanha flexibilidade,
tal como a vida, em suas inúmeras possibilidades.

A mesma formulação conceitual aflora nas colagens que Le Corbusier


faz para os painéis de pavilhões expositivos. Essas colagens propõem a construção
de uma definição, pela associação de imagens diversas do cotidiano das pessoas.
A idéia do "crescimento ilimitado" traz uma percepção de construtividade,
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inerente ao edifício, que prevê sua ampliação; é a exemplificação do espaço


moderno, dinâmico, em contínua transformação aderente à vida funcional.

Para Le Corbusier, o museu e o mundo são uma coisa só; o museu é o


representante do mundo: "O verdadeiro museu é o que contém tudo."7 A diferença
entre o processo de acumulação do museu nos séculos anteriores e no século XX
está no porquê se acumula. O museu de Le Corbusier tudo acumula. Os
Wunderkamer acumulavam toda sorte de objetos, mais por seu exotismo. Tanto os
museus do Iluminismo quanto os museus especializados do século XIX
selecionavam também seus objetos a partir da sua excepcionalidade. A inserção
de objetos comuns em contextos expositivos era realizada pelas tendências
modernistas do final daquele século, e depois pelas vanguardas, influenciadas
sobretudo pela expografia das exposições industriais.

Podemos encontrar uma revisão do conceito de museu semelhante à feita


por Le Corbusier nos escritos de André Malraux8 . Em Le musée Imaginaire9 ,

6 LE CORBUSIER. Op. cit., p. 23.


7 Ibid., p. 1.
8 André Malraux (1901-1976), escritor, interessado nas grandes crises do século XX, foi ministro
da cultura na França (des Affaires Culturelles) de 1958 a 1969.
39

Malraux propõe uma nova abordagem do museu de arte, das obras e da própria
História da Arte, considerando a importância do museu para a nossa relação com a
arte. Malraux inicia seu livro, tal como Le Corbusier, estupefato com a idéia de
que a existência do museu é um fato recente, embora sua aparência nos faça crer o
contrário. O museu imaginário de Malraux é uma revisão da leitura moderna, que
consubstancia a própria arte moderna como arte autônoma – cujos valores se
encontram nela própria (auto-explicativa) – e se tornou uma das principais leituras
museológicas de meados do século XX.

No museu tradicional, as obras são agrupadas por comparação, seja por


aproximação ou por distinção. A compreensão da arte é proposta segundo o
modelo da ilnguagem, clássico versus barroco, sul versus norte, linha versus cor,
etc. Algumas obras constituem epicentros em torno dos quais se reúnem seus
similares. A coleção de obras pertencente ao museu é classificada por seu parceiro
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e assistente, o historiador da arte. As classificações são designadas estilos ou


escolas. A beleza clássica é o fator aglutinador das obras.

Além da preponderância do belo clássico como fator organizador das


obras nos museus, Malraux argumenta que nenhum grande museu é completo,
pois nenhum deles possui uma coleção que englobe todos os tipos de
manifestação artística. Até mesmo no Louvre, um grande museu de arte clássica,
há ausências como Goya, Michelangelo, Piero della Francesca e Grünewald, entre
outros nomes importantes. Para Malraux, a confrontação das obras é fundamental
para a apreensão de seu significado – por exemplo, depois que Piero della
Francesca foi reconhecido como um dos grandes pintores do mundo, nossa
compreensão da pintura de Rafael mudou10 .

Por isto, Malraux propõe a criação do museu imaginário, no qual a


reunião de obras variadas abre um campo vasto de comparação, que transcende a
idéia de estilo, englobando uma produção diversa e variada chamada Arte, cuja
organização da linguagem é feita pelo observador. A proposta de Malraux não se

9 MALRAUX, André. Le musée imaginaire (1947). Paris: Gallimard, 2000 (primeira tiragem
desta edição, 1965).
10 Ibid., p. 245.
40

configura em um modelo museológico concreto, mas através dos livros de arte,


nos quais é possível reunir, por exemplo, obras do Museu do Louvre às da Capela
Sistina, demonstrando a importância e as possibilidades da conexão entre esses
dois meios de divulgação da arte: o museu e a impressão de arte. Para ele, o
museu imaginário cumpre um papel deixado em aberto pelos museus verdadeiros,
e o sentimento de metamorfose provocado por ele pode influenciá-los.

O museu imaginário permite múltiplos testemunhos, oferecendo à


imaginação a possibilidade de produções ilimitadas, das quais o visitante do
museu pode participar. O museu imaginário de Malraux encontra dois pontos
diretos de contato com a proposta moderna de Le Corbusier: a possibilidade de
leituras ilimitadas pelos observadores e o agrupamento sem fim de objetos – no
caso de Malraux, de todos os tipos de arte; no caso do arquiteto, de todos os
objetos do mundo.
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O museu imaginário de Malraux não tem modelo nem museográfico,


nem arquitetônico. No entanto, Rosalind Krauss ressaltou que, quando Malraux
desenvolveu seu modelo museológico, já haviam sido elaboradas duas propostas
arquitetônicas que se aproximam desta reconstrução moderna: o espaço universal
de Mies van der Rohe, e as rampas de espiral de Le Corbusier e de Frank Lloyd
Wright11 .

No entendimento de Rosalind Krauss, o espaço universal de Mies van der


Rohe pode ser comparado à noção de coleção de Malraux, a interpretação da
coleção pelos visitantes e o estabelecimento dos nexos de uma construção
individual (observador) sobre uma produção coletiva (arte). A mesma comparação
pode ser encontrada nas rampas em espiral. A de Frank Lloyd Wright sugere uma
trajetória que é em si própria a experiência, e depende do movimento e do olhar
do circulante para que ela aconteça. Pressupõe um ato consciente, voluntário,
associado pela própria física (o ato de descer a rampa, com a ajuda da gravidade,
pressupõe uma concepção da física como assistente desta experiência) ao olhar (é
a seleção do olhar que vai constituir a narrativa e o entendimento).

11 KRAUSS, Rosalind. Le musée sans mur du postmodernisme. Les Cahiers du MNAM. Paris:
Centre Georges Pompidou, n. 17-18, L’œuvre et son accrochage, p. 152-158, 1986.
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Na espiral de Le Corbusier, o desejo cognitivo do espectador de percorrer


o espaço antecede o movimento. A rampa horizontal é “expressão material da
intenção”12 e também “lugar de projeção da imaginação”13 , na qual o espectador
constrói a sua história da arte. O que Rosalind Krauss chama de “o desejo
cognitivo do espectador”14 está descrito no citado texto de Le Corbusier. Para ele,
a vontade de conhecer é fruto da racionalidade cartesiana, ou seja, segundo ele,
intrínseca ao homem. A vontade de conhecer o porquê das coisas reside na
maneira do homem realizar suas tarefas do cotidiano, e não no desejo de
colecionar. A fim de tornar as tarefas cotidianas menos árduas, a finalidade
pragmática sobrepõe-se ao espírito historicista. Tal raciocínio nos conduz à
conclusão de que, para Le Corbusier, o homem moderno vai ao museu em busca
não dos modelos do passado, mas dos modelos da vida contemporânea; é o museu
de atualidades.
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No edifício-museu tradicional – como o Museu do Louvre, o Museu


Britânico, o Museu do Prado, etc. (construídos ou não para este fim) –, as salas
são enfileiradas. Trata-se de ambientes de proporções clássicas que abrigam
conjuntos de obras de um mesmo estilo. O percurso arquitetônico imposto sugere
a idéia de uma cadeia interligada, inseparável e com um sentido direcionado, que
corresponde a uma trajetória narrativa, com percurso cronológico, entendido como
História da Arte.

No museu imaginário, Malraux propõe a substituição do agrupamento


das obras como estilo pela livre interpretação do visitante. O observador tem a
possibilidade de experimentar a arte a partir de sua própria escolha. Essa
possibilidade também está presente nas propostas espaciais dos três arquitetos
acima citados, ainda que com diferentes circunscrições, retomadas adiante. As
novas espacialidades estão consubstanciadas com novas leituras da arte, conforme
veremos neste trabalho.

12 KRAUSS, Rosalind. Op. cit., p. 156.


13 Ibid.
14 Ibid.
42

A relação entre André Malraux e Le Corbusier é mais articulada do que


com os dois outros arquitetos. Em primeiro lugar, porque, ao contrário dos outros
dois, Le Corbusier foi o único a ter refletido sobre o conceito de museu. Em
segundo lugar, porque houve trocas entre o arquiteto e o escritor, que levaram este
último, quando Ministro da Cultura, a convidar o primeiro para desenvolver o
projeto do Museu do Século XX.

1.1.2

O museu do crescimento ilimitado

A primeira proposta arquitetônica de Le Corbusier é o Museu Mundial de


Genebra (1928), desenvolvido para o projeto global Mundaneum15 . O programa
tem um conteúdo complexo, abrangendo a história da humanidade e as riquezas
naturais. Le Corbusier propõe um museu tripartido em forma piramidal
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escalonada. O visitante ingressa pelo topo e segue por três naves contínuas, em
forma espiral, que se desenvolvem paralelamente, sem separações. As três galerias
destinam-se a conteúdos diferentes. A primeira contém a obra humana (objeto), a
segunda trata de lugares em suas diversas condições naturais ou artificiais (lugar)
e a terceira contém os documentos que fixaram o tempo (tempo).

A circulação é contínua, por galerias, mas a planta livre permite uma


compartimentação flexível. Em croqui, Le Corbusier propõe uma museografia de
fluxo livre, não-retilíneo, embora direcionado pela própria forma contínua da
galeria. Ele evita o trajeto monótono das galerias enfileiradas. Embora o projeto
não indique o esquema de iluminação, o autor propõe a distribuição de luz de
maneira igual em todas as naves.

Le Corbusier relaciona a função do museu com a forma da pirâmide:

A pirâmide é a expressão da hierarquia. A hierarquia é a lei do mundo organizado,


tanto para o natural, como para o humano. [...] Portanto, acatando o princípio dos

15 O Mundaneum é o projeto de um centro mundial científico, documental e educativo da


Sociedade das Nações, em Genebra, para comemorar os esforços pela paz, em 1930. O programa
inclui um edifício para as Associações Internacionais, uma biblioteca, um centro de estudos
universitários, pavilhões destinados às diferentes sociedades e um museu mundial (BOESIGER,
W.; GIRSBERGER, H. Le Corbusier 1910-65. 5. ed. Barcelona: Gustavo Gili, 1995, p. 234).
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patamares escalonados, é útil pensar seriamente no bem ou no mal que os museus


fazem. 16

No conjunto da obra de Le Corbusier, a proposta mais significativa para


museus é a do Museu do Crescimento Ilimitado (MCI), que tem uma série de
desdobramentos, sem, no entanto, ter sido construída no seu sentido original.

O MCI foi projetado inicialmente como Museu de Arte Contemporânea


de Crescimento Ilimitado, para a cidade de Paris. Em carta a Christian Zervos, do
Les Cahiers d’Art, datada de 19 de fevereiro de 1930, Le Corbusier anexava
quinze fotos das duas maquetes do projeto, explicando detalhadamente o
programa e os métodos construtivos. Em 1931, o primeiro número de Les Cahiers
d’Art publicava o artigo "La Création à Paris d’un musée des artistes vivantes", de
Le Corbusier e Pierre Jeanneret17 . No mesmo ano, os autores propuseram o
mesmo projeto para o Musée des Artistes Vivantes, em Nesle-la-Vallée, Val-
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d’Oise; as origens e as circunstâncias da encomenda do projeto permanecem até


hoje desconhecidas.

O MCI, rascunhado em 1930, retomava a forma em espiral do Museu


Mundial de Genebra, embora abandonasse a idéia piramidal. O "crescimento
ilimitado" dava-se agora no plano horizontal. A proposta conservava ainda os
pontos de ruptura que permitem ao visitante transitar do centro do museu ao
exterior, definindo seu próprio percurso e entrelaçando os diversos campos
(objeto, lugar e história).

O visitante entra no museu por uma passagem, cuja abertura se localiza


em um muro, atravessa o vestíbulo e uma longa passagem coberta, em meio a uma
esplanada de esculturas, para somente então alcançar uma porta que se abre em
largo corredor que conduz à sala central. Esta sala mede 14 m x 14 m18 , com pé-

16 LE CORBUSIER. Op. cit., p. 16.


17 Nas Œuvres Completes de Le Corbusier, há trechos de outra carta sua a Christian Zervos, na
qual ele intitula a mesma proposta de "museu de arte moderna". (BOESIGER, W.; GIRSBERGER,
H. Op. cit., p. 236). No entanto, na carta de 19 de fevereiro de 1930, Le Corbusier esclarece a
Zervos que o MCI não se destina exclusivamente a museu de arte, mas, por suas qualidades
intrínsecas, destina-se a qualquer tipo de museu, mais especificamente ao Musée de la
Connaissance.
18 No projeto enviado para Christian Zervos em 1930, a sala central mede 14 m x 21 m.
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direito duplo, e liga-se às outras salas por uma rampa. O museu é constituído de
células-bases de 7 m x 7 m de largura e 8 m de altura, organizadas em forma de
espiral e elevadas por pilotis a 3 m do solo. Nos pilotis, localizam-se os serviços
de base do museu, de acordo com as necessidades administrativas, de segurança,
etc., que acompanham o crescimento das galerias.

O museu de fachada contínua, em constante transformação, é visto a


partir do interior. Os painéis de fechamento não-portantes são desmontáveis,
podendo ser convertidos em expositores. A iluminação é feita por uma
combinação de luz natural zenital e luz artificial, em sistema desenvolvido pelo
arquiteto. No percurso livre, o visitante é guiado pela espiral da iluminação
zenital.

Uma circulação rápida pode ser feita pelo museu, permitindo ao visitante
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mobilidade e sentido de localização19 . Quatro grandes braços, formando suástica,


locais de pé-direito mais baixo (2,20 m), encontram-se na sala central. Sobre cada
um destes braços, podem ser instalados nichos ou vitrines destinados à
contemplação de pequenos objetos. O visitante, estando em uma dessas alas,
poderá ter, de um dos lados, saída para um jardim, ou, na outra ponta, acesso ao
hall central.

No MCI, o acervo também é ilimitado. Há três linhas de exposição, a dos


objetos feitos pelo homem, a do espaço (geografia) e a do tempo (história). As três
narrativas misturam-se dentro do museu, cujas divisórias móveis não bloqueiam o
percurso, mas, antes, oferecem possibilidades variadas, cabendo ao visitante a
escolha de seu percurso.

No entanto, ainda de acordo com o arquiteto, o crescimento do MCI era


limitado por alguns pontos, como as disposições no jardim, as de entrada e de
saída, a situação da biblioteca e do bar, sendo portanto conveniente que o museu
não ultrapassasse 3 mil metros lineares exteriores.

19 Esta possibilidade foi descrita por Le Corbusier a Zervos na carta de 1930.


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Le Corbusier associou neste projeto diversas preocupações formais,


funcionais e construtivas. Preocupou-se com a viabilidade econômica de um
museu que nasce modesto e cresce sua coleção e suas atividades, como na maior
parte dessas instituições. Refletiu até sobre a relação doador/museu, propondo que
o doador de uma obra de arte fornecesse também os meios para expô-la. Quanto
ao sistema construtivo, previu o custo de cada célula-base, inclusive os
dispositivos do canteiro que permitem a continuidade da construção: a amarração
das vigas, os pilares, as lajes de fechamento e as paredes externas.

É curioso observar como a conformação espacial do MCI já estava


presente na obra de Le Corbusier em 1910. A idéia de uma planta concebida por
estruturas modulares que relacionam o espaço interno com o externo, agrupadas
em torno de uma área central distributiva de pé-direito duplo, estava presente no
projeto de um ateliê para artistas concebido para sua cidade natal, Chaux-de-
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Fonds. Trata-se de projeto destinado a uma Escola de Artes e Ofícios, com o


espaço para aulas na área central e ateliês de ofícios à sua volta, bem no espírito
Arts & Crafts.

O projeto original do MCI foi retomado em 1939 para a cidade de


Philippeville, na África do Norte. Seguia o modelo anterior: acesso no nível do
solo, pela sala central de pé-direito duplo, galerias modulares dispostas em espiral,
mas sem configurar um labirinto; apoio das galerias sobre pilotis, pavimento
térreo livre. A iluminação zenital era o mais uniforme possível, através da
regularidade da modulação, esta última derivada da padronização de todos os
elementos da construção.

Derivações do MCI foram propostas, segundo Ragot,20 em várias outras


circunstâncias: para Hollywood (1939); Saint-Dié (1945); Bruxelas (1958);
Berlim (1961); e Erlenbach (1963). Nos planos urbanísticos de Barcelona (1932) e
Anvers (1933), Le Corbusier não propôs o MCI, mas o museu piramidal. Depois
de Nesles-la-Vallée, o MCI só reapareceu para a Expo 37, no Centre d’Esthétique
Contemporaine, e depois na Cidade Universitária do Rio de Janeiro (1936). Os

20
RAGOT, Gilles; DION, Mathilde. Le Corbusier en France – Projets et réalisations. Paris:
Moniteur, 1997.
46

museus construídos contêm alguns aspectos desta proposta, mas não a encampam
completamente.

Das várias propostas realizadas por Le Corbusier, destaco duas


construídas: o Museu de Ahmedabad, na Índia (1954) e o Museu de Tóquio
(1956-57).

O Museu de Ahmedabad, na Índia, guarda poucos aspectos do MCI: as


galerias são construídas sobre pilotis, obrigando o visitante a ingressar através de
rampa. Um pátio interno descoberto funciona como chegada.

O projeto do Museu de Tóquio (1956-57) deriva dos estudos realizados


em 1950 para o Pavilhão em Porte Maillot e da espiral quadrada. Além do edifício
destinado à pintura ocidental, o conjunto abriga um pavilhão de exposições
temporárias e um teatro. A estrutura independente, apoiada sobre pilotis, e uma
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grande sala central iluminada por sheds guardam lembrança do MCI.

Por fim, o Museu do Século XX foi encomendado a Le Corbusier por


André Malraux, a partir de contatos realizados em 1963, mas nunca se
concretizou. O museu faria parte de um conjunto de equipamentos culturais, a ser
implementado pelo Ministério da Cultura, e contava ainda com um conservatório
de música, uma escola de cinema e televisão e uma escola de arquitetura e artes
decorativas. A Le Corbusier coube o estudo de implantação dos diversos
equipamentos no terreno escolhido, em Nanterre.

Descontente com a escolha do local, o arquiteto recebeu autorização do


Ministro para realizar dois estudos: o do conjunto cultural, em Nanterre, e o do
Museu do Século XX, em Paris. O arquiteto idealizou um terreno, onde se
localizam o Grand e o Petit Palais, prevendo suas demolições. O museu era uma
adaptação do MCI. Os poucos croquis, realizados em 1965, não apresentam muito
mais do que a implantação do projeto, que não foi levado adiante por causa do
falecimento do arquiteto21 . A proposta de um grande centro, reunindo diversas

21 Croquis de implantação do conjunto em Nanterre, FLC 30022 e em RAGOT, Gilles; DION,


Mathilde. Le Corbusier en France – Projets et réalisations. Paris: Moniteur, 1997. p. 399.
47

instituições culturais na França, foi realizada no Centro Georges Pompidou, tema


de um dos próximos capítulos.

Nos grandes conjuntos culturais que Le Corbusier propôs a partir da


década de 1950, é comum a presença de um MCI, um pavilhão para exposições
provisórias com telhado guarda-chuva e a Boîte de Miracles, um cubo mágico
destinado a espetáculos, que acolhe as conferências audiovisuais, a música, a
dança, o théâtre spontané – proposta de Le Corbusier que consiste em uma
mistura de commedia dell’arte e carnaval brasileiro – e os jogos eletrônicos,
nascidos da experiência Poème électronique, realizada no Pavilhão da Philips
(1958), experiência mais completa do conceito corbusiano de síntese das artes22 .

1.1.3

Os Pavilhões de Exposição
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Os pavilhões são aqui tratados por serem verdadeiros manifestos da


relação entre arte e arquitetura. Sua escala inferior à do museu, bem como seu
dinamismo, seu programa simplificado e sua curta duração, cristalizam de
maneira eficaz as transformações dessa relação.

O primeiro pavilhão projetado por Le Corbusier, em 1925, representante


23
de sua revista L´Esprit Nouveau , não se configura como um modelo em relação
às suas outras propostas para exposições. Dois anos depois, Le Corbusier e Pierre
Jeanneret realizaram projeto para a Sociedade Nestlé, um pavilhão para feiras,
cuja maior necessidade da comanda era a facilidade de montagem, transporte e
desmontagem. O pavilhão, encomendado em 1927, foi utilizado nas feiras de
Paris (1928), Bordeaux (1929) e Marselha (1930). Constitui-se de ossatura
metálica de quatorze montantes em treliça, sustentados no eixo longitudinal por
sete tubos, dois deles para águas pluviais. As fachadas e as divisões internas são
de vidro ou madeira.

22 Estas experiências são descritas em SMET, Catherine de. D’un phénomène éditorial introduit
au domaine des formes. La synthèse des arts chez Le Corbusier après 1945. Les Cahiers du
MNAM. Paris: Centre Georges Pompidou, n. 74, p. 76-97, hiver 2000-2001.
48

O grande marco em propostas expositivas surgiu durante o processo da


Exposição Internacional das Artes Modernas, de 1937 (Expo 37). Le Corbusier e
Pierre Jeanneret participam da Expo 37 em quatro etapas, posteriormente reunidas
nas Obras Completas24 , chamadas projetos A, B, C e D. A primeira fase, o Projeto
A, é o concurso de idéias para a implantação da Exposição, realizado em 1932.
Escolhidos os terrenos, os candidatos propuseram soluções. O arquiteto franco-
suíço escolheu um terreno vizinho ao Bosque de Vincennes, no oeste da cidade, e
propôs renomear a exposição como Exposição Internacional da Habitação. Em
meio ao período de recessão européia, Le Corbusier considerava que as
autoridades não atribuíam ao problema do urbanismo e da habitação a devida
importância. Propôs instalações que, após o fim da Exposição, seriam convertidas
em habitações. A proposta não fez muito sucesso e não foi premiada.

Dois anos mais tarde, em abril de 1934, Le Corbusier participou da seção


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de habitação da Exposição, representando o Congresso Internacional de


Arquitetos Modernos (CIAM). O objetivo deste era demonstrar como a indústria
participa do processo de construção civil, retomando o tema do edifício
permanente para uso habitacional proposto em 1932. Desta vez, o Projeto B de Le
Corbusier foi vencedor, mas impedido de ser construído, em face de problemas
políticos e financeiros.

O Projeto C, terceiro projeto realizado para a Expo 37, partia de uma


cessão do terreno e da verba do CIAM; no entanto, também não foi realizado.
Após os episódios do Projeto B e do Concurso do Musée d’Art Moderne, os
organizadores da Exposição de 37 destinaram a Le Corbusier, em nome do CIAM,
outro terreno, em Porte d’Italie. O arquiteto demonstrou a intenção de projetar um
museu no modelo teórico do MCI: uma sala central em torno da qual se
desenvolve o museu em espiral, elevado por pilotis com estrutura de pilares
metálicos. A iluminação é zenital, feita através de sheds, com fechamento móvel.

23 A Revista L’Esprit Nouveau foi fundada em 1920 por Le Corbusier, juntamente com Amédée
Ozenfant e Paul Dermée.
24 Œuvres Complètes, organizadas pelo próprio Le Corbusier, V. III.
49

Por razões políticas, o Projeto C foi renomeado várias vezes: Pavillon


des Temps Nouveaux, Musée d’Éducation Populaire, e finalmente Centre
d’Esthétique Contemporaine. Mais uma vez, o pedido orçamentário foi recusado e
a concessão do terreno foi retirada.

O único projeto de Le Corbusier para a Expo 37 construído foi o Projeto


D, o Pavillon des Temps Nouveaux, em Porte Maillot em julho de 1937. O tema
era o mesmo do projeto inicial: urbanismo, habitação e grandes equipamentos
modernos; no entanto, sofreu uma redução em todos os termos. Sob o ponto de
vista do conteúdo da exposição, Le Corbusier já não podia contar com a
demonstração de um grande canteiro de obras, e contentou-se com uma exposição
comum, com plantas, fotomontagens e maquetes. Os estandes do pavilhão ficaram
a encargo de diferentes profissionais. Foram abordados quinze temas, entre eles a
carta de urbanismo (Carta de Atenas), o projeto de reforma agrária e o histórico
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dos CIAMs, cabendo a Le Corbusier o Plan de Paris.

O pavilhão foi pensado para ser remontado em outras cidades francesas,


de acordo com seu subtítulo: Exposition Ambulante d’Éducation Populaire.
Inspirado nas propostas bolcheviques de expor em vagões de trens (1919), Le
Corbusier pensou em prolongar a exposição em um vagão, enviando-a para as
áreas rurais.

Do ponto de vista formal e construtivo, também ocorreu a redução dos


meios. O pavilhão resumiu-se a uma tenda de estrutura metálica. São dezesseis
pilares laterais inclinados dez graus da vertical; espaçados cinco metros e
estirados em três pontos, ficam face a face, ligados por cabo de aço. Sobre os
cabos, repousam tubos de aço que sustentam a tenda amarela, que forma paredes e
teto do pavilhão. No interior, há percursos no solo e em rampas. A policromia é
característica fundamental do pavilhão, identificando os temas expostos através
das cores.

Outro projeto não construído para a Expo 37 foi o Pavilhão Bat’a, da


Indústria de Calçados Bat’a, de Hellocourt. Devido à exigüidade do terreno
recebido, 130 m2 , Le Corbusier optou por uma exposição em painéis com
fotomontagens, inseridos em um cubo de estrutura metálica com teto envidraçado.
50

Além da Exposição de 1937, Le Corbusier foi chamado em 1937 pelo


comitê da Exposição de Liège, Saison de L’Eau, para conceber a implantação
geral da Exposição, bem como a própria estrutura dos pavilhões. Propôs retomar a
tradição das grandes exposições universais do século XIX, com pavilhões de ferro
e vidro, favoráveis à visibilidade e à circulação, ao contrário da maior parte das
propostas de seus contemporâneos, que buscavam imitar a realidade dos interiores
das residências.

O concurso para o Musée d’Art Moderne25 constituiu um capítulo à parte


no processo da Expo 37. O programa prevê dois museus, um para a cidade de
Paris e outro para a França, em um terreno pequeno, em encosta e inundável,
situado no XVIème arrondissement. No edital, o programa exige metragem precisa
de cimalha, revelando a concepção de museu: o cubo fechado contenedor de
tesouros.
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Dadas as condições pouco favoráveis do programa, tratava-se, para Le


Corbusier, de resumir o estudo ao problema da iluminação e da circulação,
promovendo o máximo de iluminação zenital através da multiplicação de
superfícies de telhado; era uma "busca da luz solar"26 . O projeto de Le Corbusier
tem a forma de H, perpendicular ao Sena. A barra central contém os serviços e a
circulação, sem escadas, através de rampas, em um jogo ininterrupto que conduz
ao topo do edifício. Cada um dos dois museus tem proposta museográfica distinta.
O percurso determina a visita. O trajeto ocorre através do deslocamento pela série
de desníveis do escalonamento da forma arquitetônica. Cada nível corresponde a
uma seção museográfica, que se desdobra e triplica em galeria lateral de estudos,
onde ficam as obras menos representativas e também a galeria de armazenamento
daquela seção, oferecendo condições de conservação mais adequadas.

25 Segundo Œuvres Complètes, 1934-1938, o concurso organizado pela Exposição de 1937


chamava-se Musée d’État et Musée de la Ville de Paris, e previa a construção de ambos no mesmo
terreno: Avenue Wilson e Quai de Tokio. O projeto de Le Corbusier foi publicado e comentado
pela revista Mouseion, do Institut de Coopération Intelectuelle, como o único projeto
museográfico de todo o concurso (BILL, Max (org). Le Corbusier & Pierre Jeanneret. Œuvres
Complètes 1934-1938. 4ème édition. Zurich: Girsberger, 1951, p. 83).
26 Le Corbusier in: BILL, Max. Op. cit., p. 83.
51

A estrutura em concreto armado eleva o edifício sobre pilotis. Um


sistema de ar condicionado assegura a limpeza, a temperatura e a umidade
adequadas. Dos 128 projetos apresentados, o de Le Corbusier foi logo descartado
por um júri multidisciplinar. O arquiteto escreveu ao diretor geral da Escola de
Belas Artes uma carta indignada, apontando a falta de coerência e de competência
do júri para dar personalidade a um concurso da exposição cujo lema era ARTE e
TÉCNICA. Sustentava ainda que, para julgar um museu de arte moderna era
necessário juízes que o apreciem passionalmente, e que compreendam o que
representa o aprendizado dos visitantes através das salas e ainda, a importância do
ambiente para sustentar a intensidade deste aprendizado, porque um museu antes
de ser um lugar de honra é uma função.27

Para Le Corbusier, a relação entre arquitetura e outras artes não está


condicionada ao museu de arte moderna, mas a partir de um conceito individual,
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chamado síntese das artes.

1.1.4

A síntese das artes

A primeira experiência de Le Corbusier com espaços expositivos ocorreu


com a Maison La Roche (1923). Constava a encomenda de uma pequena galeria
para abrigar uma coleção particular. Nessa pequena galeria, Le Corbusier
demonstra conhecimento e interesse sobre a problemática da exposição e,
sobretudo, da exposição de obras de arte. A iluminação é bastante estudada:
através de janelas corridas altas, dispostas ao longo das duas paredes maiores. Há
alguns pontos de luz artificial focada direta, iluminação ambiental e de apoio. A
curvatura em uma das paredes longitudinais desdobra-se em maior amplitude e
iluminação.

Em 1935, Louis Carré organizou, com Le Corbusier, uma exposição


intitulada Art Primitif, na qual a preocupação do arquiteto com a disposição das
obras expostas aparece sob a idéia de unidade:

27 Le Corbusier, em carta de 12 de janeiro de 1935, apud RAGOT, Gilles; DION, Mathilde. Op.
52

A técnica de agrupamento é, de alguma maneira, uma manifestação da


sensibilidade moderna na consideração do passado, do exotismo ou do presente.
Reconhecer as «séries», criar «unidades», através do tempo e do espaço, tornar
palpitante a observação das coisas, nas quais o homem inscreveu a sua presença.28

Sob esse raciocínio, o museu de arte deveria ser o local da unidade por
excelência; no entanto, não aparece na obra corbusiana como tal. Para Le
Corbusier, qualquer programa arquitetônico, a princípio, pode ser capaz de ativar
as potencialidades da obra de arte.

A idéia da síntese das artes estava presente nos textos de Le Corbusier já


na década de 1930, mas somente a partir da exposição de Porte Maillot (1950) o
termo apareceu, designando o conjunto de sua obra29 . A proposta corbusiana traz
uma série de paradoxos, e o mais latente é que esta síntese, fruto de um processo
individual derivado da forte personalidade artística do autor, introduz a idéia de
síntese como uma interação entre o urbanismo, a arquitetura, a escultura e a
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pintura, sem que no entanto ocorra a perda da especificidade de cada linguagem


artística. Para ele, isto se dá porque não há unidade total de integração entre as
obras, mas somente a unidade de cada obra.

Catherine de Smet aponta que, a partir de 1945, Le Corbusier procurou


construir uma espécie de legenda sobre seu trabalho plástico através de laços que
unissem sua atividade como artista, arquiteto e urbanista. A noção corbusiana de
síntese das artes deve ser considerada em duplo registro: como uma tentativa
teórica construída sobre sua experiência plástica e legitimada por ela, e como
ferramenta retórica que resgata uma “auto-heroização” do artista, desprezado pela
crítica, pelos historiadores e pelos outros artistas. Desde 1936, a síntese das artes
para Le Corbusier era a auto-síntese. Tal afirmação é exemplificada através de sua
postura em relação ao Pavilhão Suíço, no qual a síntese é sugerida não como
contribuição de meios diversos a um mesmo objeto (as formas do pavilhão são

cit., p. 197-200.
28 BILL, Max. Op. cit., p. 157.
29 RIVKIN, Arnold. Un double paradoxe. In: LUCAN, Jacques (dir.). Le Corbusier. Une
encyclopédie. Paris: Centre Georges Pompidou/CCI, 1987, p. 386.
53

tema de diversas pinturas), mas como estado de espírito comum às diferentes


artes30 .

Na década de 1930, a principal questão da plástica corbusiana passou a


ser a relação interior/exterior, visando não a espacialidade abstrata, mas a
"substância que faz a singularidade do corpo"31 . A formação de uma
direcionalidade advinda da relação interior/exterior potencializa as coisas,
contribuindo para a síntese. O espaço físico é um campo magnético de relações de
espacialidade, no qual as obras, localizadas em seus "lugares porta-vozes32 ", são
ativadas em seu grau máximo, e sua potencialidade torna-se real. A síntese das
artes deriva da ação da obra, mais a reação do meio.

Arnold Rivkin resume a síntese das artes corbusiana como a introdução


da obra de arte em um meio apropriado. A arquitetura acolhe a obra, reforçando
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sua presença e recepção. A introdução de uma obra em um espaço arquitetônico


desperta as potencialidades adormecidas da arquitetura, de acolher o objeto
artístico. Existem pontos arquitetônicos capazes de espalhar os efeitos das obras;
são os lugares precisos ou lugares matemáticos que integram o conjunto, são os
lugares porta-vozes, aqueles que amplificam as qualidades das obras de arte. O
diálogo entre o lugar arquitetônico e o objeto artístico dá-se pela busca da
proporcionalidade clássica. A interação entre estas espacialidades não pressupõe o
espaço abstrato, mas a relação entre os corpos, sua presença e seu agir local. A
policromia arquitetônica é utilizada para a dinamização dessas diferentes
espacialidades.

O espaço indizível é que permite a Le Corbusier cristalizar sua noção de


síntese das artes, a ação da obra, a reação do meio:

Eu sou o inventor da expressão: «espaço indizível», que é uma realidade que eu


descobri ao longo do caminho. Quando uma obra está no seu máximo de

30 SMET, Catherine de. Op. cit.


31 RIVKIN, Arnold. Op. cit., p. 386.
32 Le Corbusier, apud RIVKIN, Arnold. Op. cit., p. 388.
54

instensidade, de proporção, de qualidade de execução e de perfeição, produz-se um


fenômeno de espaço indizível. Os lugares passam a radiar fisicamente.33

A questão é: como prover uma arquitetura de lugares que ativem as obras


de arte? Como o conceito teórico transforma-se em conceito arquitetônico? Estas
perguntas materializam-se no projeto do Pavilhão da Synthèse des Arts Majeurs,
em Porte Maillot (1950).

A proposta de uma síntese das artes é recorrente no pensamento de Le


Corbusier e no contexto artístico europeu da primeira metade do século XX34 . Le
Corbusier e André Bloc, diretor de L’Architecture d’Aujourd’hui, fundaram, em
14 de outubro de 1949, a Association pour une Synthèse des Arts Plastiques, com
o objetivo de buscar "as condições de uma colaboração eficaz entre os arquitetos,
os escultores e os pintores através de todos os meios apropriados tais como:
exposições, manifestações, publicações, conferências e etc.". 35
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O primeiro empreendimento da Associação foi uma exposição prevista


em quatro edições: a primeira em 1950, e as três seguintes com periodicidade
anual até 1953. A Associação, então com poucos recursos, recebeu do Ministère
de la Reconstruction et de l’Urbanisme um terreno em Porte Maillot e verba para
a execução da exposição36 . Le Corbusier propôs seis pavilhões cobertos e dois
pátios abertos, sob as árvores; no entanto, só chegou a seu anteprojeto. Houve um
segundo projeto; em ambos, os edifícios são abertos, com frágeis coberturas que
não oferecem segurança às obras expostas.

O projeto do Pavilhão Synthèse des Arts Majeurs (1950) tem acentuada


curvatura dos telhados, provocando a sensação de um movimento de rotação,

33 Le Corbusier apud SMET, Catherine de. Op. cit., p. 80.


34 Havia uma seção de Síntese das Artes na ASCORAL (Assemblée des Constructeurs pour une
Rénovation Architecturale). Em 1944, Le Corbusier fez um apelo a favor da síntese no jornal
Volonté. No VI Congresso do CIAM de Bridgewater (Inglaterra), em 1947, o tema reapareceu; e
no VIII Congresso do CIAM, criou-se uma comissão permanente para a Síntese das Artes Maiores
(RAGOT, Gilles; DION, Mathilde. Op. cit., p. 325).
35Artigo 1º dos estatutos da Associação, apud RAGOT, Gilles; DION, Mathilde. Op. cit., p. 323.
O presidente era Henri Matisse; o Primeiro Vice-Presidente, Le Corbusier; o Segundo Vice-
Presidente, André Bloc.
36 Por razões diversas, os benefícios foram retirados e o projeto não foi executado.
55

obtido pelo telhado guarda-chuva. São propostas variações no percurso, e


articulação do interior/exterior através da ultrapassagem das fronteiras, gradações
de alturas e de luminosidades.

Arnold Rivkin analisa como o esquema de rotação dos telhados induz o


deslocamento do observador e dirige seu olhar para uma dinâmica dos campos
visuais entrelaçados. Assim como a obra exposta, a arquitetura também tem
tensões internas. A condição dessa dinâmica interativa, comum para Le Corbusier,
é a ponderação das massas. As formas não resultam de um espaço imaginário
autônomo; são produzidas pelo espírito, mas não são separadas da física do
mundo. Le Corbusier busca uma geometria concreta do físico, fixando-se nas
relações de peso37 . A Síntese é a relação entre unidades autônomas, entidades que
estabelecem um diálogo obra a obra.
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A concepção corbusiana de síntese das artes englobou também a música,


cuja paixão, para o arquiteto, é de origem familiar38 . A relação com o som tem
uma vertente técnica, que utiliza formas orgânicas para a obtenção de melhores
efeitos acústicos (como é o caso da cobertura da capela de Notre-Dame-du-Haut
em Ronchamp), mas também poética, como na integração musical do Poème
Électronique no Pavilhão da Philips na Exposição Internacional de Bruxelas, em
195839 .

O espetáculo Poème Électronique contava com dupla projeção de


imagens e de luzes coloridas sobre as paredes do pavilhão, em cenário projetado
por Le Corbusier e com música de Edgar Varèse. As imagens exibidas – várias
delas, movimentadas através de recursos cinematográficos, eram de arte primitiva,
de animais, de arte clássica, de pintura, de escultura, de objetos, de homens
trabalhando, de sua própria obra, de campos de concentração, de explosões
nucleares, etc. – guardavam semelhança com a proposta do museu imaginário de
André Malraux, em que o observador constrói sua própria leitura. Cada espetáculo
recebia quinhentos espectadores durante oito minutos, em ambiente criado para

37 RIVKIN, Arnold. Op. cit., p. 391.


38 Sua mãe era professora de piano e seu irmão, compositor.
39 SMET, Catherine de. Op. cit.
56

“imprimir sensações psico-fisiológicas”40 . A proposta de tratamento cenográfico


do espaço, com recursos de som, imagem e luz, é um aperfeiçoamento da proposta
da síntese das artes, pensada para o pavilhão de Temps Nouveaux (1937) e já
esboçada no de Porte Maillot (1950).

A proposição corbusiana sobre a síntese das artes é simplista e


tradicional, para não dizer clássica, e parece reduzida em face de outras, como a
das vanguardas do século XX, como as construtivistas, ou mesmo ao debate
francês tardio, do qual o arquiteto participou. Catherine de Smet demonstra como
Le Corbusier constrói e reforça sua idéia de síntese das artes a partir de
publicações, aproveitando-se das características da página impressa. As
fotografias de suas obras – sejam pinturas, gravuras, edifícios ou maquetes – são
diagramadas, tirando partido das características da fotografia em preto e branco: a
perda da cor, da matéria, do volume e dos objetos permite que eles sejam tratados
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como imagens e penetrem uns nos outros, sugerindo uma idéia de síntese, sem
hierarquia entre as obras41 .

A teoria corbusiana de síntese não tem nenhuma relação com a


proposição romântica alemã da obra de arte total, que influenciou a Bauhaus, nem
tampouco com as experiências de integração espacial realizadas pelo
neoplasticismo. Conforme dito anteriormente, trata-se de uma concepção muito
personalizada, assim como a que será apresentada a seguir.

40 Le Corbusier apud SMET, Catherine de. Op. cit., p. 80.


41 SMET, Catherine de. Op. cit.
57

1.2

Mies van der Rohe

1.2.1

Arquitetura e espaço

A primeira proposta de Mies van der Rohe para expor arte, o Museu Para
Cidade Pequena, idealizada em 1942, é a antítese de tudo o que era praticado nos
museus. Trata-se de um espaço completamente livre, neutro, visual e fisicamente
aberto para o exterior, que influenciou muitas outras propostas modernas42 .

Do conjunto da obra de Mies van der Rohe, são três os projetos


arquitetônicos remarcáveis destinados à exposição: o pavilhão alemão em
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Barcelona (1929), o Museu para Cidade Pequena (1942) e a Neue National


Galerie, em Berlim (1962-8).

Mies van der Rohe propôs a planta completamente livre para muitos
programas, de residências a museus; é uma arquitetura dita universal. A planta
livre foi adotada por ele como uma espécie de modelo para os locais expositivos
de arte moderna, contraindo, para as relações espaciais entre obra e arquitetura, o
antagonismo inerente a esse espaço.

Considerado pela maioria dos museólogos e críticos de arte como


inadequado, o espaço aberto e flexível é valorizado por alguns, como Richard
Serra e Alan Colquhoun43 . Richard Serra defende o espaço flexível para expor arte
de qualquer tempo, seja clássica, moderna ou histórica. Para ele, é impossível
explicar arte a partir de um fluxo contínuo, tal como ela é apresentada na maioria
dos museus, nos quais prepondera uma preocupação pedagógica. É muito mais
interessante poder mostrar determinado aspecto mais profundamente, ou reunir

42 Entre elas o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Affonso E. Reidy, o Museu de Arte
de São Paulo, de Lina Bo Bardi, e o Centro Georges Pompidou, de Renzo Piano e Richard Rogers.
43 SERRA, Richard. In conversation with Alan Colquhoun, Lynne Cooke and Mark Francis. In:
KUNSTHAUS BREGENZ. Museum architecture. Texts and projects by artists. Cologne:
Verlag, 2000, p. 85-97.
58

obras de uma mesma qualidade. No entanto, ele admite que o excesso de


flexibilidade pode causar a perda da orientação. Serra elogia especialmente a
proposta expositiva de Mies, com as pinturas flutuantes.

Alan Colquhoun concorda que o melhor modelo de museu é o não-


direcional, no qual o visitante escolhe seu próprio percurso, mas considera que o
museu aberto é adequado somente para arte moderna, não para clássica. Ao
contrário de Serra, ele não acredita que Mies van der Rohe tivesse uma proposta
específica para a exibição de arte, mas que seu ponto de vista era exclusivamente
arquitetônico e seus propósitos, universais.

De fato, o cerne da concepção arquitetônica de Mies van der Rohe era a


própria arquitetura, embora sua aproximação com a arte tenha contribuído para
sua formação. Ao contrário de Le Corbusier, Mies van der Rohe não pregava a
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síntese das artes, mesmo tendo forte relação com o expressionismo. As relações
que Mies criou entre sua arquitetura e a arte de seus contemporâneos não passa
tampouco por uma analogia exclusivamente formal, mas sim estética.

Mies van der Rohe era um admirador da arte moderna. Sua história
pessoal e profissional é entrelaçada com a das vanguardas européias após a
Primeira Guerra Mundial44 . Ele cultivou amizades no círculo dadaísta de Berlim
(especialmente com Hannah Höch, Raoul Hausmann e Kurt Schwitters). Em
1919, juntou-se ao expressionista Novembergruppe, do qual se tornou diretor do
departamento de arquitetura para exposições. Em 1922-23, participou com artigos
da Revista G., editada por Hans Ritcher, Werner Gräff e El Lissitzky, em Berlim.
Manteve relações ambivalentes com Walter Gropius, com quem trocava amáveis
correspondências, mas cuja doutrina criticava – fato que também ocorria com
Theo van Doesburg. Sua concepção arquitetônica, absolutamente singular, foi se
configurando a partir das relações que estabeleceu com a arte de seu tempo.

Historiadores da arquitetura atribuem dupla referência para a concepção


arquitetônica miesiana. Kenneth Frampton afirma que a obra de Mies van der

44 Uma das biografias mais consistentes de Mies van der Rohe foi escrita por SCHULZE, Franz.
Mies van der Rohe. A critical biography. Chicago/London: The University of Chicago Press/
Mies van der Rohe Archive of the Museum of Modern Art, 1985.
59

Rohe articula dois aspectos antagônicos que a permeiam: um impulso clássico,


herança do classicismo romântico, sobretudo de Karl Friedrich Schinkel; e um
impulso anticlássico, inspirado pelo elementarismo suprematista russo. Nesse
espírito anticlássico, ao qual se vincula a concepção miesiana de planta livre, a
arquitetura de Mies van der Rohe foi influenciada, a partir de 1923, por três
propostas diferenciadas: a tradição da alvenaria de Berlage; a obra de Frank Lloyd
Wright, anterior a 1910, filtrada pelo De Stijl; e o Suprematismo de Malevich,
interpretado por El Lissitzky45 .

Na análise de Frampton, essas referências já estão presentes no projeto


para casa de campo em alvenaria (1923), cuja planta apresenta uma disposição
das paredes em forma de catavento, lembrando a articulação formal da pintura
Ritmos de uma Dança Russa (1917), de Theo van Doesburg. A composição deste
estiliza o movimento de um personagem que eleva braços e pernas, através de
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elementos ortogonais, isolados e de comprimentos e cores diferenciados (preto,


amarelo, azul e cores complementares), sobre um fundo branco que agrega
centrifugamente as formas. Frampton afirma que o formato retangular da pintura é
adotado em planta por Mies. As paredes estruturais são análogas às barras de cor
de Doesburg e a área interna da casa corresponde à superfície branca do quadro.

A fonte desta leitura, base de tantas outras, é a análise de Alfred Barr46 .


No entanto, tal análise limita a arquitetura a uma projeção bidimensional, e não
tridimensional, característica desta linguagem. Trata-se, portanto, de uma leitura
limitada a um formalismo vazio. Ao contrário de Alfred Barr e de Kenneth
Frampton, Peter Eisenman afirma que as duas (a casa e a pintura) apresentam
diferentes concepções espaciais.

Para Peter Eisenman, na casa de campo em alvenaria, Mies começa a


explorar os limites da independência do objeto em relação ao sujeito, ao destacar
os elementos da arquitetura. O primeiro é o muro, que não mais define o espaço
(como a parede), mas é elemento portante e divisor. A ausência de paredes

45 Segundo FRAMPTON, Kenneth. História crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo:


Martins Fontes, 1997, p. 195.
46 Conforme SCHULZE, Franz. Op. cit.
60

implica a ausência de espaço, porque os muros não o definem. Na pintura


comentada, não há ausência de espaço; este funciona como um fundo. Mies
reconhece em Van Doesburg um instrumento a partir do qual pode elaborar a idéia
da ausência de espaço, através do desaparecimento de um elemento clássico
essencial: o fundo47 .

Peter Eisenman apresenta uma leitura diferenciada, na qual os projetos de


Mies van der Rohe, entre 1923 e 1935, constituem uma espécie de narrativa
interna, sem referências externas. Esse período é dividido em três fases: as
primeiras obras, as casas de campo em alvenaria (1923-24) e em concreto (1923);
as obras intermediárias, o pavilhão de Barcelona (1929) e a casa Tugendhat
(1928-30); e a parte tardia, resumida nas casas Hubbe (1935) e Urich Lange
(1935)48 .
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Eisenman esclarece que essa narrativa apresenta dois aspectos. No


primeiro, pode-se perceber que Mies partiu de uma arquitetura formalista,
embasada na estética clássica, em direção a uma arquitetura moderna, com base
na dissolução entre sujeito e objeto, imbricada no objeto formal, utilizável e
protetor. Em segundo lugar, essa narrativa não aparece como uma seqüência de
signos que remetem a outros objetos, mas como diferença entre os objetos – como
presença, ausência, sucessão, etc.

Segundo a análise de Eisenman, na casa de alvenaria, Mies começava a


explorar os limites de independência entre sujeito e objeto e a pensar como estes
limites podiam ser articulados. Os objetos simbólicos eram privados da narrativa
tradicional, reduzidos a simples objetos – ou seja, a parede vira muro.

Tradicionalmente, as paredes constituem o perímetro do espaço; elas


contêm, encerram ou excluem o espaço. Os muros da casa de alvenaria não são
paredes, são objetos, são superfícies, que não dividem o espaço porque ele foi

47 EISENMAN, Peter. Lire la MimESis: cela ne veut rien DIRE. In: CENTRE GEORGES
POMPIDOU. Mies van der Rohe, sa carrière, son héritage et ses disciples. Paris/Chicago:
Centre Georges Pompidou/The Art Institute of Chicago, 1986. Catalogue de l’exposition, p. 92-
104.
48 Ibid.
61

retirado. A ausência de espaço, para Mies, implicava algo fundamental para a


questão aqui tratada, porque faz desaparecer um elemento clássico, o fundo. Os
muros permanecem como figuras em suspensão, como objetos deslocados.

Os panos de vidro reforçam a idéia de um contenedor de nada, são uma


presença vazia. A arquitetura de Mies abandonava a idéia tradicional da
arquitetura como contenedor, como envelope, e também a antiga distinção entre
exterior e interior. A arquitetura de Mies já não constitui nem abrigo, nem
envelope (embora ainda abrigue e envelope), “permanecendo um objeto no
sentido metafísico, ainda que seja operado um deslocamento em relação à
mimesis clássica”49 .

Eisenman remarca ainda que o deslocamento acontecia inicialmente na


casa de alvenaria e avança na casa de campo em concreto: a passagem do objeto
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como representação da condição do homem para o objeto como signo, como


condição de si próprio. Essa passagem começou com a negação do plano do
homem. O pódio clássico que eleva a casa é utilizado para retirá-la do chão, plano
simbólico do homem.

No pavilhão de Barcelona, Mies manteve o confronto entre a noção


clássica de envelope e o muro, introduzindo dois outros elementos: o pilar e a
cobertura. O tema é o da casa com pátio; embora este não seja envelopado, o
plano de vidro o integra. Os muros e o pódio funcionam da mesma maneira que
nas casas de campo, mas a cobertura é dissociada de sua função tradicional, de
abrigar e fechar o espaço. Nele, ela flutua, instável, reforçando a sensação de
continuidade espacial e negando o espaço interior.

O pilar ganhou destaque na obra de Mies a partir do pavilhão. Eisenman


pontua que sua forma cruciforme parece definir ângulos de um alinhamento de
medidas quadradas, mas, ao contrário, eles significam ausência de ângulos,
através dos reflexos infinitos possíveis pelo material, o aço inoxidável.

49 EISENMAN, Peter. Op. cit., p. 95.


62

O período final (1933-35) examinado por Peter Eisenman distingue-se


pelo retorno de elementos clássicos em um quadro moderno, do qual são
exemplos as casas Ulrich Lange e Hubbe50 .

A casa Hubbe é um objeto moderno e recebe uma simulação que lhe é


estranha, através da sobreposição. Na concepção de Mies, a sobreposição não
implica a impressão de uma figura sobre o fundo, como é o caso das colagens de
Le Corbusier. No caso miesiano, não há fundo, mas uma relação entre figuras que
reafirma a condição da arquitetura não como abrigo nem como envelope, mas
como “um conjunto de totalidades intercambiáveis e flutuantes”51 , que reapareceu
na sua proposta para o museu.

1.2.2

Os Museus: Arquitetura e Arte


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1.2.2.1

O Pavilhão de Barcelona

O Pavilhão de Barcelona é consagrado como a obra mais importante do


período na Alemanha. O edifício contém características que marcam toda a sua
obra: materiais nobres, estrutura de aço, muros divisórios e teto plano. A
organização destes simples elementos produz um resultado complexo. O volume é
desmaterializado em planos verticais (muros) ou horizontais (coberturas). A
estrutura do Pavilhão de Barcelona é extremamente simples: oito colunas
cruciformes sustentam a cobertura horizontal. Os aspectos construtivos são
renovados no uso dos materiais (ônix polido, vidro verde, mármore verde polido).

O Pavilhão de Barcelona não se destinava à arte. Nele, nada se expunha.


A escultura Le Soir, de Georg Kolbe não é suficiente para transformá-lo em
expositor de arte. O pavilhão expõe a si próprio. Mies van der Rohe não o estudou
em planta, nem em perspectiva, mas em maquete. A ausência de simetria e de

50 EISENMAN, Peter. Op. cit., p. 100.


51Ibid., p. 102.
63

perspectiva, além do espaço não-direcional, permite pontos de visão variados. O


pavilhão se apresenta como um objeto fotogênico, sempre pronto a ser
fotografado por qualquer ângulo. Não importa em que parte dele se esteja, todas
são diferentes; mas, ao mesmo tempo, todas se assemelham. A diferença entre as
partes, separadas pelos muros divisórios, é pontuada por elementos não-
arquitetônicos, a escultura e as cadeiras.

Para o Pavilhão de Barcelona, Mies trabalhou o design de objetos,


desenhando a Cadeira Barcelona e a localizando no espaço. Philip Johnson afirma
que nenhum outro arquiteto moderno se preocupou tanto quanto van der Rohe
com a disposição da mobília no ambiente52 . Se observarmos cuidadosamente as
ambientações de Mies, comparando-as com as de Le Corbusier, perceberemos que
há, nas obras do mestre suíço, um certo sentido de acaso e liberdade na arrumação
do ambiente, seja ele uma sala de visitas ou um estande, enquanto Mies parece
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determinar a posição de uma cadeira da mesma forma como localiza um pilar.

Segundo Philip Johnson, Mies aplicava seus princípios arquitetônicos às


instalações de exposições que realizou, conferindo nova importância a esse campo
e transformando o display de objetos53 . Ele partia do princípio da valorização de
cada objeto, destacando-o. Utilizava o mínimo de objetos: vitrines, estandes e
divisórias e, com estudada exatidão, apontava a posição de cada um no espaço.
Seu objetivo era atingir o máximo efeito com um mínimo de recursos. Procurava
sempre projetar o suporte do objeto exposto no mesmo material que o primeiro;
assim, utilizava seda para expor seda e suportes de vidro para peças de vidro54 .

A importância da utilização do mobiliário também é notada por Peter


Eisenman. Esse autor observa que, na maioria de seus projetos, Mies colocava
duas poltronas Barcelona lado a lado e uma terceira separada do par, da mesma
maneira que os paisagistas agrupam as árvores para dar a ilusão de um conjunto
natural e criar uma continuidade do espaço. O mobiliário é localizado como um

52 JOHNSON, Philip. Mies van der Rohe. New York: MoMA-NY, 1978, p. 60.
53 Ibid., p. 49.
54 Mies van der Rohe realizou o design de vários estandes expositivos na Alemanha. Entre os
mais significativos: Exposição da Werkbund, indústria de vidro (Stuttgart, 1927); Exposição da
Moda (Berlim, 1927, em colaboração com Lily Reich) e Exposição da Casa (Berlim, 1931).
64

objeto arquitetônico, contribuindo para ressaltar as relações de presença/ausência


e simetria/assimetria55 .

No pavilhão de Barcelona, estão presentes os elementos e as questões


que configuram a concepção de museu de Mies van der Rohe.

1.2.2.2

O Museu para Cidade Pequena

A proposta não executada do Museu para Cidade Pequena (1942) nasceu


da intenção de oferecer um local para a pintura Guernica, de Picasso, e do pedido
da revista Architectural Forum de produzir um projeto apropriado para a cidade
do futuro56 .

A essência do projeto está relacionada com a obra anterior de Mies van


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der Rohe na Alemanha, mas também aponta soluções vindouras. Há uma mistura
das casas com pátio com o Pavilhão de Barcelona. Trata-se de um pavilhão com
um único pavimento, flanqueado por terraços, tudo em plano elevado. O
fechamento externo é de vidro, com transparência absoluta. Pilares dispostos em
uma malha ortogonal sustentam a cobertura plana, que contém duas aberturas,
sobre os dois pátios internos. O museu é flanqueado em uma ponta por um pátio
interno – encerrado por paredes de pedra, como no Pavilhão de Barcelona – e, na
outra ponta, por um espelho d’água. A grande novidade é um auditório coberto
por uma cobertura inclinada, utilizada posteriormente no Concert Hall (1942).

Philip Johnson afirma que o Museu Para Cidade Pequena foi a expressão
mais elaborada de Mies no que concerne ao emprego da pintura e da escultura
com a arquitetura. As obras foram encaradas como parte do design, mas sem
perder sua independência 57 .

55 EISENMAN, Peter. Op. cit., p. 100.


56 O projeto foi publicado na Architectural Forum em maio de 1943.
57 JOHNSON, Phillip. Op. cit., p. 154.
65

O espaço universal recebe bem as obras modernas de maiores formatos,


tal como Guernica. Obras de escala reduzida, ao serem dispostas no espaço
abstrato de Mies, pareceriam ainda menores. Na colagem de Mies, Guernica
flutua no espaço, contra um fundo infinito.

Sabiamente, Mies propôs seu museu para uma cidade pequena, ao


contrário dos grandes museus das grandes cidades. No texto de apresentação do
projeto, assumiu a idéia de que o museu de uma cidade não deve rivalizar com as
partes urbanas. De fato, com a idéia de figura e fundo banida de sua arquitetura, as
esculturas e pinturas são observadas tendo como pano de fundo a natureza, seja o
pátio e o terraço que flanqueiam o edifício, seja as montanhas à sua volta. O
terraço que cerca o edifício intermedeia sua relação com a cidade. A arte é exposta
em fundo mutante: a vida e a natureza.
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Tal como no pavilhão de Barcelona, os espaços se assemelham,


confundindo o visitante. As obras cumprem então a função que o mobiliário
cumprira outrora, marcando a arquitetura muda de Mies van der Rohe. Elas se
misturam visualmente com o entorno circundante, com as outras obras, com os
visitantes, com as montanhas, com o jardim, com os muros de pedra. Não é uma
concepção que valoriza a contemplação da obra. A obra não faz parte do
ambiente, porque a noção de ambientação também não vigora. O museu se
estabelece como lugar de prazer; é o museu de Proust.

1.2.2.3

A Neue National Galerie

A proposta para a Neue National Galerie de Berlim distancia-se da do


Museu para Cidade Pequena e relaciona-se mais com a caixa de vidro da fase
americana de Mies van der Rohe.58 Duas concepções expositivas são conjugadas:
a planta livre e a subdivisão espacial.

O declive do terreno influenciou a decisão da construção em dois níveis.


No pavimento superior, o de acesso, uma planta completamente livre, com

58 Mies van der Rohe mudou-se para os Estados Unidos em 1938.


66

fechamento em vidro, destinava-se às exposições temporárias. Um grande terraço


circunda a caixa de vidro. Pilares externos à caixa sustentam a imensa cobertura
plana, todos em estrutura metálica.

Escadas discretas conduzem ao piso inferior, destinado à administração e


à coleção permanente. A estrutura independente permite a utilização de divisórias
reajustáveis brancas. A iluminação é parcialmente artificial e natural, vinda do
pátio de esculturas, que pode ser admirado do terraço superior.

A possibilidade de dois tipos de espaços expositivos proveu a arquitetura


flexível de Mies de condições mais favoráveis a um museu. O pavimento inferior,
embora sem nenhum aspecto mais especial, apresenta-se adequadamente
planejado para a contemplação, com iluminação variada, percurso sugerido, mas
não obrigatório, ambiente neutro, escala intermediária entre o doméstico e o
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monumental. O pátio é especialmente aprazível e consiste no ponto alto, além de


constituir a ligação com a parte superior.

O pavimento superior, apesar de seus extraordinários aspectos


construtivos e espaciais, é muito problemático como local expositivo. Para prover
as obras expostas de condições mais favoráveis de contemplação e de
conservação, é necessária a instalação de cortinas e de painéis, que acabam
suprimindo a transparência proposta pelo arquiteto, centro desta concepção.
67

1.3

O Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA-NY

1.3.1

A Instituição e sua arquitetura

As propostas dos arquitetos modernos trazem uma nova concepção


espacial para a arquitetura dos museus, mas é o Museum of Modern Art of New
York (MoMA-NY) que desenvolve uma nova concepção museológica. Fundado
em 1929, o MoMA é o modelo institucional e museológico deste tipo de museu, o
mais influente do século XX. A arquitetura do MoMA tornou-se uma referência
arquitetônica não em termos de qualidade, mas em termos museográficos.
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As duas primeiras sedes do MoMA foram implantadas em edifícios já


existentes59 . Em 1930, iniciaram-se as primeiras tentativas de construir uma sede
própria. Curadores reuniram-se com os arquitetos George Howe e William
Lescaze, a fim de proporem esquemas para o novo edifício.

Entre as inúmeras propostas apresentadas, uma era particularmente


adequada; compunha-se de nove galerias-caixa empilhadas, desencontradas, sendo
cinco galerias longitudinais no eixo leste–oeste e quatro galerias no eixo norte–
sul, com gabinetes envidraçados que se valiam de iluminação natural e artificial.
A caixa galeria semi-envidraçada, apoiada mais na estrutura do que no bloco
inferior, era altamente ousada para a época. No entanto, essa ousadia não foi
realizada, e abandonou-se temporariamente o ideal da sede própria.

Em 1935, reacendeu-se o interesse em construir um novo edifício. Foi


eleito um membro da própria instituição, o arquiteto Philip Goodwin, que
escolheu como colaborador Edward Stone, considerado mais adepto do "estilo
moderno" do que da ideologia moderna propriamente dita. Na ocasião, foi

59 A primeira sede foi no estabelecida no Heckscher Building na 730, 5th Avenue; depois, o
museu mudou-se para uma casa na cidade na 11, West 53rd Street, arrendada por John Rockefeller
Jr.
68

ignorada a orientação de Alfred Barr, diretor do museu, para uma arquitetura


moderna européia como a de J. J. Oud, Mies van der Rohe ou Walter Gropius.

Desta associação nasceu o prédio do MoMA de 1939, considerado por


Victoria Newhouse uma mistura de Belas Artes, Art Déco e Modernismo.
Newhouse rememora a descrição do edifício feita por Philip Johnson: "uma
versão decadente do estilo internacional"60 . O edifício conta com seis pavimentos,
cobertura plana, espaços entre as colunas e pavimentos de galerias com painéis
removíveis, em vez de paredes fixas, além da fachada em Thermolux e da
marquise curva da entrada. Os três primeiros pavimentos são destinados a
exposições, o quarto à biblioteca e à gráfica, o quinto aos escritórios e o sexto a
locais de encontro, restaurante e um terraço-jardim. Um auditório/sala de cinema
localiza-se no subsolo do edifício. O jardim das esculturas, projetado por John
McAndrew, tornou-se um dos locais preferidos dos freqüentadores.
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Contrário às propostas de Le Corbusier e de Mies van der Rohe, o


modelo arquitetônico do MoMA é verticalizado; não se assemelha a um
monumento, e sim a mais um edifício de apartamentos da cidade de Nova York.
Oito anos depois do projeto, Goodwin foi procurado para fazer um anexo, a
primeira tentativa frustrada de tornar o edifício mais interessante.

Philip Johnson projetou o primeiro anexo em 195161 . O adicional tem


fachada em aço e vidro, sob a influência sobretudo de Mies van der Rohe. A
fachada é uma inovação na arquitetura americana na época; no entanto, prejudica
o contexto original do edifício, muito importante para sua caracterização. O
edifício de Goodwin era ladeado por duas casas ecléticas, e, para maior
efetividade como uma superfície planar moderna, necessitava da moldura das duas
casas acadêmicas, cuja coloração escura confronta com a superfície branca,
reafirmando sua planaridade. O anexo de Johnson privou-o desta possibilidade.

60 NEWHOUSE, Victoria. Towards a new museum. New York: Monacelli, 1998, p. 151.
61 Phillip Johnson foi diretor do Departamento de Arquitetura, de 1932 a 1934 e de 1946 a 1954
(Design passou a fazer parte do Departamento somente em 1949). Johnson projetou com Landes
Gores o Grace Rainey Rogers Memorial Annex, no lado oeste da fachada original.
69

Em 1964, a Philip Johnson Associates projetou a East and Garden


Wings. Para o anexo leste, foi empregada a estrutura miesiana em aço e vidro,
com a novidade do arredondamento dos cantos internos da estrutura. O lobby
intimista de Goodwin e Stone transformou-se em grandioso, em mármore,
alterando completamente a escala do museu de residencial para impessoal. A ala
leste conta com três pavimentos de galerias, e o jardim-galeria. O pé-direito da
nova galeria, pensada para a arte da época, é mais alto que o das antigas (de 3,5 a
4,5 metros) e ela recebe, em suas grandes dimensões, luz de dois lados. Newhouse
aponta a generosa galeria iluminada por luz natural como "uma entre poucas com
senso de identidade"62 . Comparando as galerias da ala leste de Johnson com as de
Goodwin, tem-se mais uma vez o rompimento da escala intimista que ocorrera no
hall. O grande formato interno privilegia uma certa horizontalidade, que sugere ao
espectador um sentido de experiência da obra, sem que, no entanto, ocorra perda
de identidade arquitetônica.
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Quando a coleção e a visitação ao museu crescem, começam as


demandas de remanejamento do espaço, sem que haja, contudo, transformações
arquitetônicas. Quando tal ocorre, é necessário diminuir a importância ou o peso
da interferência arquitetônica no espaço físico, criando uma arquitetura totalmente
transformável, que continue flexível e subordinada às demandas internas do
museu e, sobretudo, da arte.

Como realizar arquitetonicamente previsões de manifestações ainda


desconhecidas constitui uma das questões recorrentes nos museus de arte a partir
das vanguardas artísticas. Neste sentido, a flexibilidade da planta livre moderna é
exemplar, pelas possibilidades funcionais e pela democracia visual, que permite
incorporar ou excluir o entorno aos objetos expostos.

A transposição das deliberações teóricas de concepções museológicas e


artísticas para a arquitetura foi para o MoMA inicial, e continua sendo até hoje,
um ponto nevrálgico no debate entre museólogos e arquitetos.

62 NEWHOUSE, Victoria. Op. cit., p. 153.


70

1.3.2

Concepção Museológica

Em 1930, o MoMA foi o responsável por uma verdadeira revolução no


papel da instituição museu, apresentando ao público uma nova arte, a partir de
uma leitura interdisciplinar. O responsável pela proposta é Alfred Barr, que
assumiu a diretoria do museu aos 27 anos. A concepção museológica de Alfred
Barr foi parametrizada tanto por sua formação universitária como por seu
interesse pelo modelo da Bauhaus. Da primeira, ele foi marcado pelo medievalista
Charles Rufus Morey, de Princeton, e pelo Professor Paul J. Sachs, cuja disciplina
foi crucial para a formação de uma geração de jovens conservadores de museus.
Ele próprio foi responsável pela indicação de Alfred Barr para a direção do
MoMA e pelas linhas gerais da política dessa instituição. Para ele, o museu
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deveria ser um estabelecimento de ensino situado dentro de um tesouro, dirigido a


uma comunidade de trabalhadores intelectuais que se encarregariam, com extremo
rigor, de educar a elite e evitar a banalização.

O contato com as vanguardas européias, e sobretudo com a Bauhaus,


completou a formação americana de Alfred Barr. Ele visitou a Rússia e os
construtivistas; na Holanda, conheceu Mondrian e o grupo da revista De Stijl; em
Dessau, visitou a Bauhaus. Barr foi o responsável pela passagem do espírito
experimental e artístico das vanguardas ao mundo dos museus, criando uma nova
concepção museológica e lançando um novo conceito de museu.

Após seu retorno da Europa, Alfred Barr criou seu próprio curso de arte
moderna, baseado nos moldes do curso de Morey e na Bauhaus, sem excluir
nenhuma arte, nem as aplicadas, e tratando-as com igual estatuto. A orientação
departamental do MoMA seguiu a de seu curso, compreendendo as artes
aplicadas, as comerciais, as populares e as Belas Artes. A concepção museológica
de Alfred Barr, e conseqüentemente do MoMA-NY, foi fundamentalmente
marcada pelo rigor da pesquisa e pelo paradigma universitário.

A concepção museográfica do MoMA-NY foi influenciada pela da


Bauhaus. O que mais chamou a atenção de Alfred Barr na escola alemã foram as
71

exposições que reuniam obras de arte, maquetes e utensílios domésticos, e o fato


de uma mesma instituição ocupar-se de arquitetura, mobiliário, tipografia, teatro,
cinema, fotografia e design industrial para a produção de massa, tudo isto reunido
em um mesmo edifício.

Barr propôs para o Museu um programa multidepartamental. Segundo


ele, o programa era radical porque propunha que as artes populares e comerciais
fossem tratadas de maneira séria, tal como as chamadas grandes artes63 . Além da
estrutura multidepartamental e da pretendida coleção multidisciplinar, o programa
do MoMA tem como objetivos educar e formar o público, além de divulgar a arte
moderna.

Em seus dez primeiros anos de existência, quando o museu ainda não


tinha uma sede própria, sua política voltava-se para a educação e formação do
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público leigo, através de exposições temporárias. Exposições como Cézanne,


Gauguin, Seurat, Van Gogh, Paintings by Ninetten Living Americans, Painting in
Paris, alternavam-se com as de mestres do século XIX, contrastando presente e
passado.

No entanto, Barr era cauteloso quanto à novas investidas na arte, e


somente começou a ousar maiores vôos em termos de curadoria quando se tornou
um especialista em arte moderna européia, e quando já havia certa distância
temporal entre as manifestações de vanguarda. Em 1936, ao realizar duas
exposições que se tornam marcos, Cubism and Abstract Art e Fantastic Art,
Dada, Surrealism, o cubismo já contava com quase trinta anos, o dadaísmo, mais
de vinte e o surrealismo, mais de dez.

A definição de uma política de aquisição demorou a acontecer, porque o


MoMA estava voltado para uma política de exibição. Em 1932, Barr começava a
reivindicar uma diretriz para esta política, a fim de que o museu não fosse
associado a uma simples galeria de exposições.

63 NEWHOUSE, Victoria. Op. cit., p. 153.


72

Alfred Barr propunha descartar trabalhos antigos quando trabalhos novos


fossem adquiridos, o que chamava de torpedo concept, para que o acervo
permanecesse "de vanguarda", sempre novo, um procedimento de atrito que o
diretor comparava a um "torpedo movendo-se através do tempo, seu nariz
antecipando o presente e sua cauda sempre antecedendo ao passado de 50 a 100
anos atrás"64 . Esta ênfase em uma coleção dinâmica foi abandonada no início da
década de 1950, porque Barr e os mantenedores perceberam que essa prática
dificultava futuras doações.

Desde então, o MoMA direciona sua coleção para a arte moderna – a


partir dos impressionistas. O aumento e a importância da coleção mudam a
natureza do museu, concentrado em engrandecer seu acervo e em expô-lo.

Dentro de seu plano multidepartamental, o MoMA estabelece divisões


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independentes para arquitetura e cinema e departamentos não-curatoriais, que dão


suporte ao objetivo pedagógico: biblioteca, publicações, circulação de exposições
e departamento educacional; este último compreende uma escola de arte para
adultos e crianças.

A sede nova foi inaugurada em 10 de maio de 1939, com a exposição Art


in Our Time, cuja concepção era ancorada na proposta multidepartamental do
museu, reunindo objetos artísticos e de arte aplicada.

A concepção expositiva de Alfred Barr, presente no edifício de 1939,


referia-se ao espaço individual, não coletivo. A escala pessoal emergiu da fusão
do apartamento residencial com o ateliê do artista; a escala é a da relação
individual entre artista e colecionador, fusão do ateliê com a galeria íntima; é
doméstica, intimista, com salas pequenas, nas proporções dos apartamentos de
Nova York. Divisórias móveis trazem flexibilidade e adequação a cada exposição.
A aspereza é aparente, suavizada por algumas paredes coloridas e cortinas
delicadas; e os pequenos praticáveis lembram a escala da mobília doméstica.

64 NEWHOUSE, Victoria. Op. cit., p. 13.


73

Alfred Barr não acreditava no isolamento absoluto entre as referências


visuais internas e externas; translúcidas paredes de vidro e amplas janelas
propiciam vistas para o exterior. Várias galerias têm luz natural. A utilização de
trilhos de luz, incomum para a época, é mais um diferencial do MoMA em relação
a outros locais de arte. As galerias do museu são familiares para obras em
pequenos formatos, como as de Cézanne, Matisse e Picasso.

Na comunidade artística internacional, Barr tornou-se um símbolo do


MoMA, e este é reconhecido através de sua figura. Após a Segunda Guerra, a
política interna do MoMA passou por uma série de transformações. René
D’Harnoncourt, vice-presidente do museu, com funções administrativas, nomeou
Barr responsável pela curadoria geral da Coleção, função na qual ele permaneceu
até sua aposentadoria, em 1967. Em 1949, d’Harnoncourt foi nomeado diretor do
museu, permanecendo no cargo até 1968.
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As transformações internas refletiram-se nas atividades externas do


MoMA. Dorothy Miller promoveu, entre 1942 e 1969, uma série de exposições
sobre arte americana que se encarregaram de divulgar o Expressionismo Abstrato.
A nova espacialidade da arte americana exigiu uma nova escala para a exposição.

Em 1969, William Rubin, diretor do departamento de pintura e escultura,


realizou a exposição The New American Painting and Sculpture: The First
Generation, parte de uma série que realçava diferenciadas questões na coleção.

Após a aposentadoria de Barr e de d´Harnoncourt, o museu ingressou


definitivamente em outra fase museológica. O modelo de William Rubin
começava a substituir paulatinamente o de Barr. O novo modelo baseia-se na
especificidade da linguagem e no privilégio do departamento de pintura e
escultura sobre os outros, calcado na formulação da pintura como a linguagem
mais responsável pelo curso do modernismo. Este modelo estabelece uma forte
hierarquia entre as linguagens.

O modelo de Barr, expressão da cultura moderna vanguardista da


primeira metade do século XX, intencionava estabelecer uma democracia entre os
pesos de cada departamento, ou entre os objetos expostos, fossem eles pinturas ou
74

posters. Isto formou certa integração das artes, apresentando diferentes qualidades
de objetos com o mesmo valor, legando ao público a decisão de escolha, tal como
no MCI de Le Corbusier.

Em debate de final da década de 1990, Rosalind Kauss referiu-se ao


modelo de Rubin como caixa branca, que se contrapõe à transparência do de Barr.
Já Terence Riley argumentou que o modelo de Rubin partiu de uma teorização
sobre o modelo de Barr desenvolvida ao longo das décadas de 1940 a 1960, que
questiona o caráter utópico da crença moderna 65 .

A concepção de Barr não inclui a da caixa branca; ela permeia e integra


os diversos campos. Em termos de programa, ela permite narrativas complexas,
como expor em conjunto a Bauhaus e o art déco; Brancusi e objetos
manufaturados, etc.
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O modelo de Rubin é sustentado pela especificidade da linguagem e pela


autonomia estética. É desenvolvido a partir da própria concepção americana de
arte moderna, da dissolução das esferas, da especialização e da sacralização da
arte, tema a ser desenvolvido no próximo capítulo deste trabalho.

No debate citado, Terence Riley critica o isolamento das referências


visuais externas, proposto pela caixa branca, afirmando não ser ele obrigatório
para o experienciar da obra66 . Também não é obrigatório que a obra de arte esteja
circundada e emoldurada por outras obras.

Até a década de 1960, o MoMA foi depositário de uma coleção de obras-


primas apresentadas com autoridade didática. A partir dos anos 1960, o Museu
passou a ser invocado como detentor de uma imagem quase religiosa, enquanto,
paradoxalmente, vinte anos antes, as instalações haviam sido descritas como
caracterizando "ausência de fé".

65 Debate promovido pela revista October com Terence Riley, curador do setor de Arquitetura e
Design do MoMA, sobre o recente concurso para o anexo (FOSTER, Hal et al. The MoMA
expansion: A conversation with Terence Riley. October. Cambridge: October Magazine
/Massachussets Institute of Technology, n. 84, p. 3-30, 1998).
66 FOSTER, Hal et al. Op. cit., p. 17.
75

O aspecto revolucionário baseado na experiência integrada e moderna na


década de 1930 tornou-se conformado. O espaço da vida tornou-se o do culto.
Programar e apresentar arte mostrou-se um investimento muito rentável para a
ação experimental. No fim da década de 1960, o MoMA já não era um pioneiro na
apresentação de arte moderna e contemporânea, o que passava a ser atribuição das
feiras e galerias de arte européias e norte-americanas. No final do século XX, uma
nova geração de curadores surgiu mais interessada no desafio da arte
contemporânea.

A expansão de 1984 foi percebida como um grande fracasso


museológico, sobretudo pela tentativa da instituição de reinventar a si própria,
posicionando a arquitetura como força propulsora. A reforma arquitetônica da
década de 1980 reitera a cisão entre as galerias de pintura e escultura e as de
outras linguagens; reforça o aspecto de espaço sagrado, com a seqüência de
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galerias enfileiradas e a circulação vertical67 .

O conceito da especificidade de linguagens artísticas proposto no MoMA


e a ênfase nas questões pictóricas como parte essencial do desenvolvimento do
modernismo são leituras da arte advindas do crítico norte-americano Clement
Greenberg. Tal concepção crítica influencia uma geração mundial de teóricos,
sobretudo americanos. As relações que se estabelecem entre a crítica e o museu
configuram o âmago do circuito de arte moderna e do processo de
institucionalização da arte. A museologia, a museografia e a arquitetura do museu
devem atuar em uníssono com as leituras de arte e constituir um conjunto
expositivo íntegro de propostas, sem o qual são reforçados os paradoxos do museu
de arte moderna.

Relacionar as esferas das concepções museológica, arquitetônica e


artística americanas no segundo pós-guerra é o assunto do próximo capítulo.

67 Em 1984, foram inaugurados a nova torre de vidro, as novas circulações e galerias e o novo
jardim de esculturas, com projeto de Cesar Pelli.

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