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Introdução

Entre a obra e o observador, institui-se uma


troca essencial: a obra responde tanto
quanto ela indaga. Seus recursos aumentam
quanto mais elas se fazem solicitar. Quanto
mais nós a observamos, mais aumenta a
curiosidade que ela suscita.

Paul Valéry1

A relação entre arte e arquitetura nos museus de arte moderna e


contemporânea nunca é pacífica, é sempre problemática. Este tese parte do
pressuposto de que o museu-edifício é o locus da representação das contradições
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existentes no cerne do museu de arte moderna. A arquitetura de um museu deve


ser compreendida como algo a mais do que um mero invólucro, na medida em que
ela estabelece relações diretas com o objeto exposto, constituindo-se nela própria
a operação do museu-instituição.

O ponto de partida desta tese é a análise do museu-edifício. Esta análise


concerne à relação do lugar físico com a obra de arte ali inserida, considerando-se
a correspondência de três instâncias: o objeto arquitetônico, a obra de arte e a
instituição-museu, em seus aspectos museológicos e museográficos. Nossa
hipótese parte do pressuposto de que existe analogia entre a prática arquitetônica,
a artística e a museológica.

A arquitetura do movimento moderno propôs o fim da caixa


compartimentada e opaca que havia sido utilizada nos museus até o início do
século XX. Esta caixa, que guardava tesouros e relíquias a serem preservados e
expostos, transformou-se em volume transparente (interna ou externamente) e
espaço contínuo. Arquitetos modernos, através de preceitos estéticos
universalizantes, privilegiavam a transparência, a planta livre, a funcionalidade e a

1 VALÉRY, Paul. Œuvres II. Pièces sur l’art. Paris: Gallimard, 1960.
20

precisão tecnológica, buscando anular as barreiras visuais existentes entre o


espaço da vida e o objeto exposto.

As propostas de Le Corbusier para o Museu do Crescimento Ilimitado


(1939) e de Mies Van der Rohe para o Museu para Cidade Pequena (1942)
definiram os modelos do edifício-museu para a arquitetura moderna. Mas quais
foram, de fato, as premissas que levaram esses arquitetos a empregar espaços de
planta livre para abrigar obras de arte, e por quais razões estes se tornaram
modelos para uma arquitetura que nega, ela própria, qualquer a priori? E ainda,
qual o papel da arte moderna na influência da geração desses espaços? Existe
autonomia dos espaços em relação às obras? Como esta se vincula à noção
moderna de autonomia da obra? Estas questões tornaram-se mais contundentes no
decorrer do século XX.
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Em lugar de construir um panorama histórico global e universal sobre o


assunto, optamos por abordar casos específicos. Para a análise do tema, serão
investigadas obras arquitetônicas exemplares que, no decorrer do século XX,
representaram paradigmas destas questões. Como se caracteriza a relação dos
espaços arquitetônicos com as obras de arte neles inseridas, a partir do que se
convenciona como arte moderna e movimento moderno e sua transformação ao
longo do século XX, é o tema central desta tese.

Contemplação ou Ação? Museus Valéry-Proust

Quando a problematização do museu gira em torno da relação com a obra


da arte, as questões contundentes, e ainda hoje pertinentes, envolvem a
apresentação dialética do museu, nas reflexões de Theodor Adorno. O texto
Valéry Proust Musée2 aborda o problema dos museus apoiando-se em dois
escritores: Paul Valéry e Marcel Proust, que na dialética adorniana, apresentam
posições contraditórias e similares, constituindo um jogo de alternâncias, no qual
Adorno se contradiz constantemente. A leitura adorniana feita frequentemente

2 ADORNO, Theodor. Prismes. Critique de la culture et société. Traduit de l’allemand par


Geneviève et Rainer Rochlitz. Paris: Payot, 1986, p. 152-163.
21

pelos teóricos de museus (conforme será exposto ao longo deste trabalho) assume
não a dialética adorniana, mas a contradição entre os dois autores (Valéry e
Proust) apontada no início do texto de Adorno, e resumida a seguir.

A posição de Paul Valéry é contrária ao museu. Para ele, o museu é a


“casa da incoerência”, que retira as obras do contexto da vida e da fruição,
transformando-as em criaturas mortas.

Valéry demonstrou o seu caráter objetivo [das obras do espírito], a coerência interna
da obra de arte e a contingência do sujeito em face dela, pois sua intuição é fruto de
sua experiência subjetiva, do constrangimento experimentado ao longo do trabalho
do artista.3

Para Valéry, as obras de arte são objetos únicos e raros, distintos entre si,
e não devem ser amontoadas umas ao lado das outras. Ele choca-se com o aspecto
caótico do museu. Valéry é um poeta, artista, crítico e teórico das artes. Seu ponto
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de vista é o de alguém cuja intimidade com a obra e o fazer artístico permite


precisão no olhar. Ele conhece o lugar da obra de arte, tanto no sentido espiritual
quanto no literal, e entende a obra de arte pura como objeto de uma contemplação,
que por nada deve ser perturbada. Para ele, no museu, a obra pura é ameaçada
pela indiferença.

A relação de Proust com as obras não é a de especialista, nem de criador,


tal como Valéry, mas de um admirador que tem respeito, sem a familiaridade dos
artistas. Ele cumpre o papel de espectador e de consumidor. Suas reflexões sobre
os museus estão presentes no curso da narrativa de seus romances.

Em poucas palavras, ele [Proust] compara a estação ao museu. Um e outro lugares


são distantes da unidade convencional e superficial dos objetos da ação;4

Proust ama os museus, nos quais as obras são parte da vida do


observador e elementos de sua consciência. A questão da qualidade estética é
secundária para ele. Esta distância permite-lhe perceber uma dimensão diferente
daquela que rege a lei formal das obras, à qual se atém Valéry.

3 ADORNO, Theodor. Op. cit., p. 160.


4 ADORNO, Theodor. Op. cit., p. 155.
22

A posição de Proust em favor do museu é pensada do ponto de vista do


homem, e não do objeto, como a de Valéry. Valéry é ligado ao ateliê, enquanto
Proust flana pela exposição. Ambos acreditam que a obra de arte confere prazer
ou felicidade.

Segundo Adorno, certos museus, através de suas qualidades espaciais e


de iluminação, adotam o princípio de seleção de Valéry, favorecendo a
contemplação.

A partir destas idéias expostas, retomo a questão: a relação da obra com o


museu, aqui compreendido por sua arquitetura. As posições de Valéry e de Proust
podem ser resumidas nas duas atitudes históricas e contemporâneas do museu:
uma que valoriza a autonomia formal da obra de arte, concebendo o espaço do
museu como um lugar do sagrado (Valéry), e outra que concentra no sujeito, ou
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no ato do espírito, toda a fruição do objeto artístico e de seu entorno (Proust).

Origens e transformações do museu de arte

Desde que a idéia de museu assumiu seu caráter moderno, no


Iluminismo, essa instituição tornou-se paradigmática, ao associar legitimidade
cultural a caráter nacional e universal. A grande taxionomia das coleções dos
museus ocorreu a partir do século XIX, com a criação dos museus de arqueologia,
de etnologia, de arte decorativa, etc. Ainda no século XIX, conhecido como a
Idade de Ouro dos Museus, definia-se o papel do museu como instituição e
também as variedades de suas tipologias arquitetônicas.

Na primeira metade do século XX, o funcionalismo moderno modificou


o antigo conceito de museu de depósito de tesouros para o de organismo ativo e
atuante nas artes e na sociedade. A partir da década de 1960, a predominância da
cultura de massa ampliou definitivamente o conceito e o papel institucional do
museu. Na passagem do século XX para o XXI, especialistas discutem o novo
papel do museu, em meio à existência de diversas propostas.
23

Todo museu é uma coleção: um conjunto de objetos naturais ou artificia is,


desviados de suas finalidades originais, mantidos temporária ou definitivamente
fora do circuito de atividades econômicas, submetidos a uma proteção especial e
expostos ao olhar dentro de um lugar fechado destinado a este efeito. 5

Para Krzysztof Pomian, as coleções dos museus diferenciam-se das


coleções particulares, porque a escolha dos objetos, bem como a maneira de expô-
los, deve estar fundamentada não em princípios subjetivos, mas em princípios
com validade científica6 . As coleções dos museus diferenciam-se também de
outras coleções, como as das igrejas e dos palácios, por estabelecerem outro
referencial de temporalidade. As coleções dos museus são formadas por artefatos
deslocados de seus contextos e funções originais. Em virtude do caráter
pedagógico do museu, as coleções nele expostas nos direcionam para o futuro,
enquanto as coleções das igrejas estão relacionadas com a eternidade e as coleções
comemorativas dos palácios nos remontam ao passado.
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Outro aspecto importante na definição do museu, apontado por Pomian, é


o de que se trata de um lugar programado para expor os objetos ao olhar. Suas
demais atividades (pesquisa, conservação e ensino) tornaram-se subordinadas à
função principal: exposição dos objetos.

Quando a coleção do museu é constituída de objetos de arte, é importante


distinguir o tipo de arte exposta: arte herdada do passado – e seu tempo histórico –
ou arte em vias de ser feita7 . No primeiro caso, os procedimentos limitam-se à
escolha das obras dentro de um conjunto predeterminado. No segundo caso, há
possibilidade de se exercer influência direta sobre as obras produzidas, sobre seus
temas, formatos e técnicas, através de critérios aplicados à seleção das obras.
Neste caso, ocorre, indiretamente, uma espécie de mecenato da instituição sobre a
produção artística.

Quando os museus de arte foram criados, no século XVIII, eles


acolheram arte herdada, obras que haviam sido feitas para contextos espaciais

5 POMIAN, Krzysztof. Le Musée face a l’art de son temps. Les Cahiers du MNAM. L’art
conrtemporain et le musée. Paris: Centre Georges Pompidou, Hors-série, p. 5-10, [s. d.].
6 Ibid.
7 POMIAN, Krzysztof. Op. cit., p. 6.
24

específicos como igrejas, palácios e outros tipos de edifícios, e que foram


deslocadas de seu contexto original. Ao entrarem nos museus, essas obras
adquiriram um fim em si mesmas: um fim estético. Dentro de um museu, uma
pintura litúrgica perde sua função religiosa e limita-se à definição dentro tradição
da pintura. Esse objeto é então oferecido ao olhar, à contemplação estética,
independente de sua função original.

Durante largo período (até meados do século XIX, variando de acordo


com o lugar), a instituição-museu ocupou-se somente da arte herdada. Os museus
forneciam os modelos para a arte que estava sendo feita. No período neoclássico,
o museu era o lugar da educação artística, por fornecer o contato com as obras da
antiguidade clássica. O mesmo acontecia na Academia de Belas Artes, que
promovia a prática baseada no estudo do passado antigo, como a cópia das
esculturas greco-romanas, gerando outra categoria de coleção, também apreciada
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na época.

Na França, o primeiro museu que acolheu a arte que estava sendo feita
em sua época foi o Museu dos Artistas Vivos8 . Inaugurado no Palácio de
Luxembourg em 1818, esse museu estatal guarda semelhanças com os museus de
arte herdada. As obras eram escolhidas nos Salões e permaneciam no Museu dos
Artistas Vivos até dez anos após a morte do artista – período prolongado
posteriormente para cinqüenta anos, após os quais a obra era encaminhada ao
Louvre, aos museus regionais ou aos palácios, que garantiam sua perpetuação.
Tais procedimentos geraram, em uma parte da classe artística desejosa de sentir-se
ao lado dos grandes mestres do passado, obras produzidas que atendessem ao
gosto acadêmico dos jurados das competições dos Salões.

O Museu dos Artistas Vivos determinou também uma espécie de


clivagem, a partir de meados do século XIX, entre os artistas que produziam para
o museu e aqueles que, descontentes e descrentes dos hábitos acadêmicos de
ateliês, destinaram suas obras ao mercado e aos Salões independentes. Os
primeiros eram afeitos aos grandes formatos, às regras e às temáticas do passado.

8 Sobre a história do Museu dos Artistas Vivos, ver Capítulo 3 deste trabalho.
25

Os segundos produziram obras mais adequadas à escala das residências burguesas,


com temas simples, deslocando o interesse da narrativa para a própria pintura.

O Museu dos Artistas Vivos tornou-se um depositário de valores do


passado, afastando-se cada vez mais das artes de tendências inovadoras da época:
o realismo, o impressionismo e o pós-impressionismo. No início do século XX, o
Museu dos Artistas Vivos estava completamente desvinculado da produção
moderna, sendo alvo das críticas dos artistas modernos. Estes, descontentes e
insatisfeitos com os critérios da Instituição, desenvolvem propostas expositivas
completamente distantes daquelas das práticas existentes nos museus da época9 .

Até a década de 1920, a arte moderna foi veiculada pelos marchands,


galeristas e colecionadores. Em 1929, quando o cubismo já contava com mais de
vinte anos, foi criado em Nova York o Museum of Modern Art (MoMA), que se
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constituiu, ao longo das décadas seguintes, um modelo no gênero. No início da


década de 1930, 66 museus europeus, dos quais 30 alemães10 , tinham galerias de
arte moderna, cujos acervos não eram constituídos da arte da época, mas de obras
produzidas até 50 anos antes. Tratava-se de obras de artistas vivos, mesmo de
alguns que já haviam se tornado “clássicos” da arte moderna. As obras foram
doadas por colecionadores ou adquiridas no próprio mercado. As obras de arte
moderna, salvo raras exceções, não foram produzidas para museus. Até o
surgimento do MoMA-NY, o museu era uma instituição com práticas e interesses
artísticos ainda fundamentados nos preceitos do Século XIX.

Formas da arte, formas de expor a arte

Desde a Antiguidade greco-romana até o Renascimento, a arquitetura, a


escultura e a pintura eram sincronizadas, apresentando-se integradas, sendo a
arquitetura mais do que um suporte das outras linguagens. Como exemplo desta
integração, podem ser citadas as cariátides do Erection, as pinturas ilusionistas de

9 Para maior compreensão das práticas expositivas das vanguardas, ver ALTSHULER, Bruce. The
avant-garde in exhibition – New Art in the 20th Century. Los Angeles: University of
California Press, 1998.
10 Dados fornecidos por POMIAN, Krzysztof. Op. cit., p. 9.
26

Pompéia, os relevos esculpidos dos capitéis românicos, as ábsides pintadas


bizantinas e as esculturas das catedrais góticas, integrantes plásticas dos elementos
estruturais arquitetônicos. O processo de liberação das artes iniciou-se no
Renascimento, com o desenvolvimento das técnicas da pintura a óleo, permitindo
que o objeto pictórico fosse desvinculado do suporte fixo, adquirindo novos e
menores formatos, e ainda com o retorno da escultura de vulto redondo, proibida
desde a arte sacra paleocristã do século IV. O novo estatuto requerido pelo artista
renascentista, a partir de Brunelleschi, permitiu o surgimento de um mercado,
respaldado no desejo de posse de uma obra, e o desenvolvimento das coleções
particulares. Iniciava-se uma nova questão para a arte, que se ampliaria cada vez
mais: a relação entre o objeto artístico e o espaço expositivo.

No Renascimento italiano, surgia a primeira tipologia de espaço


expositivo: a galeria longitudinal do palácio, que expunha as peças lado a lado.
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Esse esquema adquiriu variações com o incremento do colecionismo, no século


XVII. A teatralidade característica da persuasão barroca também apareceu nos
espaços expositivos, que propunham reproduzir uma ambientação da origem do
objeto11 e ainda lançavam as possibilidades de exposição iconológica, cronológica
ou por escolas. Surgiu, então, o palácio-museu, misturando o esquema da galeria
com o da sala única de exposição.

No século XVIII, iniciava-se a divulgação das coleções privadas e,


conseqüentemente, os primeiros projetos abertos ao público: nascia o museu
moderno. Objetos raros, arqueológicos, naturais, botânicos e artísticos eram
misturados em uma mesma coleção e ocupavam, por vezes, o mesmo ambiente,
como nos gabinetes de curiosidades renascentistas. Desde o fim do século XVIII
e princípio do XIX, o espírito colecionista passou a imperar também na forma
arquitetônica; galerias, salões, rotundas, salas acopladas, pátios, pórticos,
peristilos, cúpulas e escadarias eram articulados aos edifícios adornados. Ao longo
do século XIX, porém, os museus especializaram-se tematicamente (belas artes,

11 A corrente museográfica que defende a recriação do contexto original da obra através do


cenário teve sua origem no século XVII.
27

arqueologia, ciências naturais, etc.) e tecnicamente, através da preocupação, por


exemplo, com a utilização da iluminação natural (janelas, cúpulas, lanternas, etc.).

Pomian afirma que, a partir dos séculos XIV e XV, a pintura e escultura
ocidentais tinham finalidade quádrupla: podiam ser decorativas, comemorativas,
cognitivo-educativas e litúrgicas. Essas finalidades definiam a função da obra e as
condições de inserção no espaço apropriado. Essas funções tinham relação direta
com o tempo: a decorativa correspondia ao presente; a comemorativa (cenas de
batalha e outros episódios da história), ao passado; a cognitivo-educativa (grandes
pinturas históricas e míticas) orientava-se para o futuro; e a litúrgica (quadros
religiosos e retábulos destinados a participarem do culto), para a eternidade. As
obras podiam ainda acumular tais funções12 .

Este modelo foi assumido até o Iluminismo, quando houve uma ruptura
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nessa tradição artística. Segundo Argan,

a atividade do artista não é mais considerada como um meio de conhecimento


do real, de transcendência religiosa ou de exortação moral. [...] a atividade
artística torna-se uma experiência primária e não mais derivada, sem outros fins
além de seu próprio fazer-se. [...] Exatamente no momento em que se afirma a
autonomia da arte, coloca-se o problema da articulação com as outras
atividades, isto é, de seu lugar e sua função no quadro cultural e social da
época.13

As manifestações artísticas que se seguiram ao realismo de Courbet,


iniciando-se com Manet, adotariam uma orientação realista de mão dupla, no que
diz respeito à autonomia da linguagem artística e à relação da obra com a
realidade imediata. A noção de temporalidade é inerente à própria obra, e não à
sua suposta função. A partir de Manet, a pintura já não é uma janela, razão de sua
dissociação anterior com o entorno.

Mudanças na natureza da arte, no início do século XX, afetaram as


relações de exposição sujeito/objeto/sujeito. Foram os artistas das vanguardas
artísticas os primeiros a explorarem as relações entre os próprios trabalhos e sua

12 POMIAN, Krzysztof. Op. cit., p. 6


13 ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11-12.
28

inserção no espaço físico, atribuindo à funcionalidade interna da obra sua relação


com o lugar.

As vanguardas artísticas modernas renegaram a instituição-museu,


identificada como depositária de objetos do passado e legitimadora da cultura
dominante. As reações vanguardísticas aos museus foram estruturais, e a recusa ao
passado reforçou a experiência direta e sensível da obra. Iconoclastas, as
vanguardas escolheram locais incomuns para expor, como vagões de trens e
pavilhões de feiras. A vida amoldava-se à arte. Mas, segundo Andreas Huyssen,
as vanguardas foram musealizadas e absorvidas pelo museu, e seus destinos (o
dos museus e o da própria arte), desde então, permaneceram ligados14 .

Mais de acordo com o espírito das vanguardas, o MoMA-NY apresenta


uma concepção revolucionária de museu, inspirada no modelo da Bauhaus, que
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compreende as artes plásticas como design total. Na concepção original do


MoMA-NY, expõem-se simultaneamente carros, obras de grandes mestres, alta
arquitetura e posters. Abandona-se o modelo organizativo por escolas, proposto,
entre 1855 e 1857, pela National Gallery, em Londres, que até então vigorava.

A abordagem por escolas pressupõe uma organização com lógica espaço-


temporal e transforma o museu em livro de história15 . Ao curador-conservador
cabem a escolha e a classificação das obras expostas, impondo uma leitura
determinada, inclusive da história da arte. Essas obras são apresentadas em
grupamentos de artistas diversos e dispostas em um esquema balanceado de
distâncias entre si, na altura do olho.

O MoMA-NY substituiu o princípio expositivo por escolas, vigente


desde meados do século XIX, pelo princípio dos movimentos, apresentados em

14 HUYSSEN, Andreas. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996, p. 231. O
termo “museal” é um neologismo na língua portuguesa, empregado por Huyssen na obra referida.
15 SEROTA, Nicholas. Experience or interpretation - The dilemma of museums of modern
Art. New York: Thames and Hudson, 1996, p. 7.
29

seqüência cronológica. Esse novo modelo foi adotado por todos os museus de arte
moderna e prevaleceu até a década de 198016 .

Nesse período final, começa a esboçar-se uma nova forma de expor, com
ênfase no trabalho individual do artista, e os museus de arte moderna e
contemporânea adotam a prática de expor artistas em salas únicas. Diversos
fatores foram responsáveis por esta transformação nas concepções museológica e
museográfica, entre eles o início da prática de grandes exposições temporárias
individuais – pois, até 1950, as exposições coletivas eram o mais comum.

Segundo Nicholas Serota, são os fatores internos à funcionalidade da arte


que promovem essas transformações. Para Serota, tais mudanças decorrem da
associação de três desenvolvimentos estruturais da arte moderna 17 : a mudança na
relação entre a obra e o espaço no qual ela é mostrada; a transferência do lugar de
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trabalho do artista da reclusão do estúdio para o palco do museu; e o


conhecimento crítico das convenções dos museus por parte dos artistas, que
passam a escolher seu local de expor dentro do museu.

Se os artistas modernos da primeira metade do século XX alargaram os


limites do espaço da obra, expandindo-a para o seu entorno, os artistas
minimalistas e pós-minimalistas pensam a obra no engajamento direto com o
espaço. Se os artistas modernos estabeleceram novas demarcações para o espaço
plástico, propondo novas relações entre observador e objeto, os artistas pós-
minimalistas propõem novos parâmetros no papel do museu.

Museu de arte moderna

A instituição museu de arte moderna alterou a relação entre o museu e a


arte que estava sendo feita, conferindo-lhe uma dignidade comparada à da arte do
passado. A partir da Segunda Guerra Mundial, grande parte da produção moderna

16 SEROTA, Nicholas. Op. cit., p. 10.


17 Ibid., p. 20.
30

já era destinada aos museus, prática esta que triunfou nos anos 1950, sobretudo
nos EUA.

Nas décadas seguintes, multiplicaram-se pelo mundo os museus de arte


moderna. A partir de 1960, os conservadores e diretores de museus de arte
moderna procuraram participar cada vez mais da produção artística do período. A
arte realizada a partir da década de 1970 acarretou um alargamento no campo e na
definição de arte, que ultrapassou os limites da chamada arte moderna18 .

Os museus modernos continuaram adquirindo obras, gerando problemas


de superlotação em suas reservas, e alargando os limites de suas coleções para
além do recorte inicial: a produção moderna. Para Pierre Gaudibert, a
modernidade, a arte moderna e os museus de arte moderna formam três instâncias
encaixadas, constituindo três parâmetros intimamente ligados. O esfacelamento de
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uma delas implica triplo declínio, o que ocorreu a partir dos anos 198019 .

Recusando-se a assumir seu “encerramento” na história, os museus de


arte moderna, sintomaticamente, foram-se tornando, a partir do último quartel do
século XX, museus de arte moderna e contemporânea. Ocorreu uma espécie de
recuperação do seu objetivo inicial: ser um museu de artistas vivos, lugar de
atualidades, e não de artefatos mortos, reafirmando assim sua contradição inicial.

Para Hubert Damisch, a idéia de um museu de arte moderna e


contemporânea traz em sua gênese a contradição: por ser um lugar que tem como
função constituir suporte de uma memória específica, abriga algo que se
caracteriza por sua atualidade. O Museu de Arte dos Artistas Vivos surgiu na
França, da combinação das funções dos Salões, que mostravam a atualidade da
arte, com os museus, que conservam objetos deslocados de seu contexto, eleitos
portadores da memória 20 .

18 KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Gávea – Revista de História da Arte e


Arquitetura. Rio de Janeiro: Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil,
PUC-Rio, n. 1, p. 87-93, [s. d.].
19 GAUDIBERT, Pierre. Modernité, art moderne, musée d’art moderne. Les Cahiers du MNAM.
L’art contemporain et le musée. Paris: Centre Georges Pompidou, p. 10-12. Hors-série, [s. d.].
20 DAMISCH, Hubert. L’amour m’expose. [s. l.]: Yves Gevaert, 2000.
31

Para explicar as transformações ocorridas na função do museu de arte,


Damisch, compara a instituição aos processos de produção descritos por Karl
Marx. Nessa comparação, afirma que o museu surgiu simultaneamente à produção
manufatureira, e é lugar de representação desse novo processo de produção, ainda
que de maneira simbólica. Damisch analisa a atuação da instituição em dois
momentos, nomeando-os “museu-manufatura” e “museu-máquina”.

O museu imitaria a operação manufatureira de divisão do trabalho,


reunindo os metiers, associando-os e combinando-os de maneira a criar a idéia de
unidade de um conjunto cujas partes têm a mesma tarefa; ou seja, o museu reúne
as obras de arte como a produção manufatureira reúne as tarefas. Por correlação, a
arte aparece como produto coletivo de uma massa de artistas no lugar de
trabalhadores especializados. Desta maneira, a arte poderá ser percebida pelo
público como parte de um conjunto. Tal apreensão confronta-se com o sentido
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eminentemente moderno de valorizar a experiência da “solidão da obra”. A


percepção da obra de arte pelo público alterna-se entre elemento que faz parte de
um conjunto, cujo sentido lhe será impregnado, e seu isolamento intransponível.
Essa alternância de recepção está relacionada com a pretensão dupla da obra
moderna de reinar e simultaneamente ter uma singularidade não compartilhada. O
problema gerado por esta “dupla pretensão da obra”, tal como o autor aponta, e
sua relação com o espaço arquitetônico é um dos pontos investigados neste
trabalho.

O museu-máquina repete a operação retrospectiva do museu-manufatura,


pretendendo, além de acolher e apresentar a produção contemporânea ao público,
fazer parte ativa na ordem da produção. Damisch afirma: “o processo histórico
que conduz do museu-manufatura ao museu-máquina não obedece somente, nem
inicialmente à determinações de ordem técnica ou tecnológica.”21 Para ele, o
museu de arte moderna pode funcionar no modo manufatureiro do museu clássico:
cada artista e cada movimento ocupando seu lugar. As transformações e relações,
complexas e contraditórias, que se estabelecem no museu têm sua origem
sobretudo no divórcio operado entre a arte dos independentes e a arte dos Salões

21 DAMISCH, Hubert. Op. cit., p. 76-77.


32

Oficiais, mais do que na ruptura pretendida entre a arte moderna e o museu. Em


outras palavras, a complexidade atual do museu é originária do confronto de uma
arte que se pretendia, e que sempre se pretende, independente e nada mais.

Por correlação com o apresentado por Pomian, poderíamos associar as


práticas do museu-manufatura com o museu que expõe arte herdada, o qual
escolhe as obras dentro de um conjunto pré-existente e as organiza; neste caso, em
lugar de nos limitarmos ao século XVIII, ao nascimento dos museus de arte,
poderíamos referir-nos aos museus de Belas Artes em geral, e até mesmo aos
museus de arte moderna, desde que de arte herdada. Os museus-máquina
correspondem aos museus para arte em vias de ser feita, ou seja, os chamados
museus de arte moderna a partir de 1940, e os atuais museus de arte moderna e
contemporânea.
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Ambos os autores apontam os problemas gerados pela influência da


instituição sobre a prática e a produção artística. A posição de Pomian demonstra
desaprovação e desgosto com a arte moderna. Sua crítica é dirigida à arte
americana produzida nos anos 1950, especificamente aos expressionistas
abstratos, e ao meio artístico da época, que criou a idéia do cubo branco, uma
espécie de espaço sacralizado para a arte. Pomian acredita que, ao exercer
influência sobre a arte, o museu a deturpou de sua finalidade original, produzindo
para ela efeitos perversos ao se construir como destinatário direto das obras22 .

A posição de Damisch é menos fatalista. Para ele, por mais que o museu
tenha aprendido a acolher a arte moderna – por exemplo, o radicalismo dos ready-
made de Duchamp –, a força atual do museu reside em sua capacidade de
recolocar em cena uma arte que se pretendia independente da arte acadêmica e,
por perversão da máquina da instituição, finaliza por institucionalizar a própria
arte. Caberia à arte contemporânea fornecer as provas, através de seus próprios
meios, de sua capacidade de dispor dessa máquina para servir a seus fins, sem se
deixar levar por ela. Damisch conclui que é importante substituir a crítica feita à

22 POMIAN, Krzysztof. Op. cit.


33

instituição pela utilização lúdica de que sua máquina corresponderia à prática real
da arte moderna e contemporânea.

A arquitetura da arte: estudos de caso

Em razão de inaugurarem novas relações entre a obra de arte e sua


inserção espacial, ou de configurarem novos modelos museológicos, foram
escolhidos para este estudo três casos arquitetônicos:
1. o Museu Solomon R. Guggenheim de Nova York, projeto de Frank Lloyd
Wright iniciado em 1943 e inaugurado em 1959;
2. o Museu Nacional de Arte Moderna da França, no Centro Georges Pompidou,
projeto de Richard Rogers e Renzo Piano a partir do concurso de 1971,
inaugurado em 1977;
3. o Museu Guggenheim de Bilbao, projeto de Frank O. Gehry de 1991, aberto
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ao público em 1997.

Os casos escolhidos para estudo distanciam-se histórica e


geograficamente de tal forma que se torna inviável, no formato de tese, a
contextualização dessas obras sob um ponto de vista mais convencional. O objeto
estudado atua como referência fundamental para a problematização e a
contextualização. É a partir dos próprios edifícios como fenômenos que serão
levantadas as hipóteses específicas. A metodologia de investigação aplicada aos
estudos apóia-se em:
1. a noção de cultura e o conceito museológico atuantes nos casos escolhidos;
2. a análise dos projetos arquitetônicos;
3. a análise dos objetos expostos, no que diz respeito à sua relação com o lugar,
implicando a própria concepção de arte moderna e contemporânea, para as quais
se destinam esses museus;
4. o confronto entre a concepção arquitetônica e a artística.

A estrutura da tese conta ainda com um capítulo introdutório que


apresentará duas propostas do movimento moderno, de Le Corbusier e de Mies
van der Rohe – discutindo a planta livre, a flexibilidade e a relação entre
arquitetura e arte no entendimento de cada um. O capítulo aborda também os
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aspectos institucionais do MoMA-NY que se constituíram em modelos para


outros museus de arte moderna.

Como metodologia geral, serão adotadas as questões levantadas por


Adorno em Valéry Proust Musée, para analisar a relação entre a obra e o local
onde se insere. Para a análise das práticas institucionais, será adotada a leitura de
Hubert Damisch e sua distinção entre o museu-manufatura e o museu-máquina.

Além dos autores citados e dos que surgirão na configuração das


hipóteses específicas, este trabalho utilizar-se-á das leituras de Rosalind Krauss,
Yve-Alain Bois, Clement Greenberg, Brian O’Doherty, Fredric Jameson e
Anthony Vidler.

As fontes utilizadas serão os próprios edifícios e a documentação


existente sobre eles nos arquivos de instituições especializadas. A bibliografia,
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levantada em livros e periódicos, procurará se manter atualizada com o vasto


editorial sobre o assunto. Entrevistas realizadas com arquitetos e especialistas
serão adotadas como fontes.

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