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Estética Musical e Xamanismo: Vassili Kandinsky e o Kalevala

Musical Aesthetics and Shamanism: Wassilly Kandinsky and Kalevala

Marcus Santos Mota*

Resumo: Um dos aspectos pouco discutidos da obra de V. Kandinky é o do relacionamento de sua estética
multissensorial com a tradição xamânica, especialmente com a obra Kalevala. Este trabalho procura expli-
citar tais vínculos, ampliando a questão da musicalidade buscada por Kandinsky em suas obras pictóricas.
Palavras-chave: Kandinsky. Xamanismo. Estética.

Abstract: The nexus between W. Kandisnky’ works and Shamanism remains unconsidered by most
scholars, especially the influence from Kaleva. This papers deals with the these shamanistic aspects as a
basis for the musicality of Kandinsky multisensorial project.
Keywords: Kandinsky. Shamanism. Musical Aesthetics. Multisensoriality.

Apresentação
O diálogo entre artes que V. Kandinsky apresenta em suas obras teóricas e pictóricas
encontra em experiências com parâmetros psicoacústicos mais que ocasionais refe-
rências. Entre as mais conhecidas, temos o encontro entre Kandinksy e Schoenberg,
a proposta de conceber a superfície da tela como uma partitura, além do impacto de
apresentações de obras dramático-musicais como Lohengrin, de R.Wagner (HAHL-
KOCH, 1984; KANDINSKY, 2011; LINDSAY; VERGO, 1994, p. 364).
Há, porém, uma outra faceta dessa relação de Kandinsky com os sons: sua aventura
etnográfica ao norte da Rússia, 1889, na qual entra em contato com um enclave cul-
tural entre tradições as russas e fino-úgricos, como as dos lapões (sami) e dos Kómi.1
Além de interagir com as canções e artefatos investigados, Kandinsky aprofunda
leituras sobre a presença determinante do xamanismo nestes povos.
Nesse ponto, destaca-se a obra Kalevala, uma recolha de canções épicas que eram
performadas por bardos que se alternavam, acompanhados por um cordofone (kan-
tele) (HONKO, 2002; SAARINEN, 2013). Os textos destas canções foram editados
no meio do século XIX por Elias Lönnrot, servindo de base para diversos artistas
diversos, como Jean Sibelius e bandas de heavy metal, entre outros (ALLISON, 2003;
NEILSON, 2015; TARASTI, 1979).
No caso específico de Kandinsky, não apenas as imagens visuais da obra e sua sim-
bologia são horizontes para a estética que ele começa a desenvolver a partir de sua
mudança para Berlin (1896) e o caminho para a abstração e multissensorialidade
(1909-1911) (NAKOV, 2015; WEISS, 1985): O livro Do espiritual na Arte, de 1912 ,

* Universidade de Brasília. E-mail: marcusmotaunb@gmail.com


1 Cf. Weiss (1995) para os detalhes desta expedição etnográfica. Cf. ainda Aronov (2006).

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lançando quase ao mesmo tempo que Harmonia, de Schoenberg, testifica o esforço,


depois presente na exposição e almanaque O Cavaleiro Azul, também de 1912 de se
buscar, a partir do universo sonoramente orientado de Kalevala, uma redefinição
do artista e de sua atividade (KANDINSKY, 1987; KANDINSKY; MARK, 2013;
SCHOENBERG, 1999).
A leitura e análise de Kalevala pode indicar quais os procedimentos de uma estética
xamã foram utilizados por Kandinsky, de forma a melhor se esclarecer como a
manipulação de parâmetros psico-físicos produziria a experiência multissensorial
defendida pele pintor e teórico russo em seus ensaios e pinturas (LÖNNROT, 1985,
2013; LORD, 1991; OINAS, 1987; SAARINEN, 2013; SIIKALA, 2002).
Desde já, é digno de nota que em Kandinsky (2009, 2011) tal esclarecimento é com-
plexo, pois, mesmo que ele proponha uma estética integral, como em Ponto, Linha,
Plano, de 1926 e nos materiais de suas aulas na Bauhaus, ainda se vale de termos
elusivos e axiomáticos, como ‘espiritual’, ‘alma’, ‘ressonância’ , para denominar o
correlato xamânico de sua abordagem composicional.
A partir disso, o intérprete deve enfrentar essa opacidade, esse limite colocado por
Kandinsky para acesso ao referente da generalizada musicalidade dos fenômenos
sonoros (VERGO, 2010).
Para um artista conhecido por romper com as barreiras entre música e pintura,
e produzir telas chamadas de ‘improvisações’ e ‘composições’, a explicitação este
correlato xamânico indica possibilita não apenas a compreensão de um projeto
estético individual, como também uma problematização de eventos multissensórios
e interartísticos, impulsos para novos empreendimentos artísticos e investigativos.

Refazendo conexões
Em janeiro de 2015, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) pude acompanhara a
etapa brasiliense da exposição “Tudo começa em um ponto”.2 Entre as sessões temá-
ticas, havia uma amostra de vestimentas xamânicas e objetos que acompanham tais
rituais. Em um primeiro momento, dominava o contraste entre a sofisticação das telas
e a simplicidade de materiais de culturas tradicionais. As questões permaneciam em
aberto. Mesmo assim o impacto da apreciação dos quadros, o contato com aquilo que
eles irradiavam, pelo menos em mim, indicam uma outra experiência que se conjugava
à visualização.3 Embora conhecesse a obra do pintor e seus textos teóricos, nunca
havia ficado frente a frente com seus quadros. O que aconteceu naquele momento

2 Disponível em: <http://culturabancodobrasil.com.br/portal/wp-content/uploads/2015/01/Kandinsky-


16-oct.pdf>. Data de acesso: 15 jan. 2017.
3 Os efeitos dos quadros sobre mim lembram a descrição de “deep listeners” proposta por Becker (2004).

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foi uma experiência única em minha vida: senti como se tudo me levasse para ali,
como se tivesse encontrado algo que sempre procurara. Todos os canais sensoriais
estavam abertos e parecia que eu e a obra nos comunicávamos, como se fosse uma
música que me envolvia e a tudo e todos em volta. Havia, pois, o contato, o contágio.
Na época estava envolvido com minha pesquisa de pós-doutorado em Lisboa sobre
composição de cenas orquestrais a partir de um texto antigo chamado Etíópicas, de
Heliodoro.4 O trabalho também era o projeto de meu mestrado em Orquestração e
arranjo na Berklee School of Music.
Explicando: venho desde 2001 trabalhando em montagens teatrais que envolvem
música. A partir de 2006 comecei meu trabalho como compositor para teatro. Mas,
como não tinha os conhecimentos necessários, eu elaborava as canções apenas, e
outra pessoa fazia os arranjos e orquestrações.5 Ou seja, eu era mais um dramaturgo
e cancionista que outra coisa. Minhas obras foram ficando cada vez mais complexas
e demandando mais conhecimentos e habilidades. Sempre trabalhei em equipe, em
parceria. Mas para mim faltava essa possibilidade de elaborar conjuntamente todo
um imaginário audiovisual.
Apenas em 2014, quando comecei meu curso na Berklee, é que pude tornar isso
possível, com a obra Sete contra Tebas, elaborada a partir da tragédia homônima
de Ésquilo.6 Minha próxima etapa foi o projeto As Etiópicas: um espetáculo total
incluindo atores, cantores, orquestra e dançarinos como interpretação de um romance
total, que relia e refazia toda a tradição desde Homero. Heliodoro queria escrever o
romance dos romances, uma narrativa enciclopédica, e eu querendo ampliar minha
recente conquista no intercampo entre teatro e música. Mas...
Mas seguiu-se a crise econômica e política no Distrito Federal e as verbas de cultura
foram, como posso dizer, suspensas. Estava eu ali no meio do nada. Sem recursos
para o grande projeto. Então decidi não interromper a pesquisa e a criação e, no lugar
de um show multiartístico, concentrei-me no que tinha em mãos: orquestração e o
romance de Heliodoro. E Kandinsky. Esse mesmo.
A experiência com os quadros de Kandinsky reverberou em mim durante a pesquisa
com As Etiópicas, que era um experimento de diálogo entre sons e narrativas. Decisivo
para mim foi essa sinestesia em que formas e cores se arranjam em uma composição
de movimentos rompendo a moldura do quadro. Durante minha pesquisa, desdo-
brava-me entre dois sujeitos complementares: aquele que continuava a desfiar a
experiência multidimensional com os quadros de Kandinsky e aquele que analisava
textos para composição orquestral de cenas.

4 Sobre o projeto audiocenas e Heliodoro, cf. <https://www.youtube.com/watch?v=noLOHxEkrx4>. Data


de acesso: 15 jan. 2017. Cf. ainda Mota (2014).
5 Cf. Mota (2015).
6 Cf. <https://www.youtube.com/watch?v=qW0G8RuoGfw>. Data de acesso: 15 jan. 2017.

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Em um dado momento estes dois sujeitos se fundiram e eu não sabia mais se compu-
nha a música para os textos de um livro ou se buscava ampliar aquele acontecimento
congenial em que participava dos quadros de Kandinsky.
Ao fim da pesquisa em agosto de julho de 2015, creio ter me utilizado de tudo: as
‘audiocenas’ que elaborei eram tanto o resultado de um empenho em discussões
filológicas com o texto de As Etiópicas e opções de minha formação e cultura musi-
cais, quanto uma aproximação cada vez maior com as ideias e obras de Kandinksy.
Assim, não havia contradição ou dificuldade alguma no fato de estar trabalhando
em um domínio específico de objetos e mídias e ao mesmo tempo estar vinculado a
outro conjunto de obras. Posso até afirmar que esse desdobramento e simultanei-
dade foram condições para a realização do material de minha pesquisa artística. É
como se compondo a partir de As Etiópicas estivesse também me comunicando com
Kandinksy, estendendo a contiguidade, a sintonia com suas obras.
Nesse sentido, mesmo durante a pesquisa de pós-doutorado, voltei a ler os textos
teóricos de Kandinsky e a analisar suas pinturas para tentar compreender as razões
de desmesurado fascínio com tais realizações.
Então veio para mim ficou claro que a minha questão, o que me atraia nesse tipo de
interface entre pesquisa e criação era a possibilidade de estudar uma organização de
materiais a partir de estímulos psicoacústicos e procedimentos composicionais da música.
Ou seja, não se trata apenas de conjuntos sinestésicos e sim de tomar como pressuposto
a experimentação entre tradições artísticas e valer-se das propriedades do som e de
formas musicais como horizonte de seleção e arranjo de materiais para obras visuais.
Foi aí que entendi o que queria fazer: se Kandinksy havia pintado como se estivesse
compondo música, por que não fazer o contrário - compor música para seus quadros?
A partir dessa iluminação, ficou mais claro para mim como eu iria a partir de agora
responder aquele momento de encontro com a obra de Kandinky: materializar os sons
que ecoavam ao ver os quadros de Kandinsky. Seria possível tornar audível aquilo
que Kandinsky queria nos fazer ver? Seria essa a música dos quadros, a música que
Kandinsky audiovisualizava em suas obras?
Assim, a proposta desse projeto era de ir de encontro a essa tensão e confluência
entre Música e Pintura de uma maneira reversa: já que Kandinsky pintou quadros
a partir de técnicas de composição musical, por que não compor músicas a partir
de seus quadros? Do quadro para os sons - ou seja, a proposição de um conjunto de
composições orquestrais a partir de quadros de Kandinsky.
Comecei a realizar este projeto em 2015. Logo a após os primeiros resultados, lembrei-
me do contraste que havia percebido na exposição supracitada: de um lado estavam
alguns dos quadros do ciclo “Composições”, analisados, decompostos, e reescritos
musicalmente; de outro aquela atratividade estranha e primitiva que emanava dos
quadros. Havia algo que escapava ao trabalho pré-composicional e aos produtos
sonoros emergentes, mesmo que ainda em esboços. Que aura era essa?

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Kalevala
O elo perdido encontrei-o na leitura da obra Kandinsky and the Old Russia. The Artist as
Ethnographer and Shaman, da Historiadora da Arte Pegg Weiss. A farta documentação
disponibilizada pela pesquisadora apresenta um rio profundo que atravessa a vida e
a produção de V. Kandinsky. Não se trata de um condicionamento biográfico ou de
um nexo eventual: a multissensorialidade experimentada nos eventos xamânicos
constituir um núcleo existencial e estético que explicita diversos procedimentos
e decisões composicionais de Kandinsky. Ou seja, o xamanismo não se delimita
à agora famosa aventura etnográfica de 1889. Sempre lembrar que Kandinsky é o
único artista de sua geração que possuía uma formação etnográfica. Antes do pintor
e do teórico das artes, veio o etnólogo. A leitura de textos, a pesquisa de campo e
a produção acadêmica demonstram que a pesquisa cultural não foram apenas um
momento fortuito da carreira de Kandinsky.
Em seus cadernos de notas de viagem, há uma referência fundamental: “Estou lendo
o Kalevala, eu o venero.”(WEISS 1995, 13). O livro se tornou o companheiro de
Kandinsky, fornecendo referência literárias para o contato in loco com xamãs reais.
E que o Kalevala poderia proporcionar sobre a experiência xamânica?
O especialista M. K. Nielsen, seguindo L. Vajada, propõe como características xamâ-
nicas do Kalevava (NIELSEN 2005):
1 - ÊXTASE: o estado alternativo de consciência, que representa a viagem da alma;
2 - ESPÍRITOS AJUDADORES ZOOMÓFICOS, que dão o conhecimento e
auxiliam o xamã no caminho para o outro mundo;
3 - ESPÍRITOS GUARDIÃES NÃO ZOOMÓRFICOS, entre outras coisas asso-
ciadas com o xamanismo como uma profissão ou chamado;
4 - INICIAÇÃO DO NOVO XAMÃ: misteriosa morte e reanimação;
5 - VIAGEM DA ALMA: O espírito do xamã pode visitar o mundo superior
ou o mundo inferior. Cosmologia caracterizada por uma visão de mundo em
muitos planos (3, 7, 9 ou mais camadas), que é uma necessidade estrutural
para a viagem de alma;
6 - DUELOS ENTRE XAMÃS;
7 - EQUIPAMENTOS OU OBJETOS INDUTORES: tambor como um agente
indutor de êxtase e uma vestimenta especial com tiras de pano, placas de
metal ou penas.
Tais características estão presentes no Kalevala, em diversos dos episódios narrati-
vos ali recolhidos. Mas sempre lembrar que antes do conteúdo narrativo, é ter em
mente que as canções e poemas foram realizados por um performer acompanhado
de seu instrumento cordofone (Kantele), havendo também nas ocasiões de êxtase
a presença de um tambor.

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Figura 1. Kantele. Quadro de A. Edelfelt (1854-1905).7

Entre os objetos recolhidos na exposição Kandinsky e referidos na obra de P. Weiss,


observamos muitos materiais relacionados tanto às xamãs quanto aos performers
do Kalevala e outras canções e textos xamanísticos, como os que se seguem:
1 - Elementos de caracterização;
Figura 2. Vestimenta xamânica. Apud PETROVA 2014:110.

7 Disponível em: <https://br.pinterest.com/ekg77/genealogy-my-fi nnish-heritage/>. Acesso em: 15 jan. 2017.

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2 - Instrumentos musicais;
Figura 2. Tambor xamânico com ongon (espírito do xamã ancestral). Apud PETROVA 2014:112.

Figura 3. Tambor xamânico. Apud PETROVA 2014:114.

Dessa forma, temos um performer caracterizado e acompanhado de instrumentos


musicais que canta histórias em torno de figuras que manifestam ações xamânicas.
Há uma correlação entre o performer e o universo narrativo performado. E o canto
e a música instrumental demarcam os limites dessa experiência.
O texto de Kalevala é uma edição de materiais tradicionais prévios. Encontra-se
dividido em 50 cantos ou rapsódias expressos em versos octassílabos. Os versos
apresentam aliterações, repetições, assonâncias, paralelismos, epítetos, todas técnicas
de composição oral.8 De fato, essas transformações da língua em função de seu con-
texto músico-performativo, ampliam o uso cotidiano da palavra, sobrecarregando a

8 Para uma comparação entre Homero e o Kalevala, cf. Lord (1991, p. 104-132).

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expressão verbal de diversas e simultâneas referências: o performer não apenas narra


os acontecimentos, como atualiza tais eventos por meio dos recursos audiovisuais
dos quais se vale em contato com sua audiência. Seu figurino redimensiona sua
presença, sua voz se multiplica em figuras e efeitos, a música instrumental marca o
ritmo e amplia a sonoridade da cena.
Desse modo, a articulação entre performer e obra acaba por aproximar a experiência
xamânica da situação performativa in situ. Um trecho do Kalevala confirma essa apreensão:

Firme velho Vainanoinen


vai o seu tempo passando
pelos bosques da Vainola
nos campos da Kalevala.
Vai os seus versos cantando
suas artes praticando.
E cantou após dia,
recitou após noite
as memórias mais antigas
as origens profundas,
que as crianças já não cantam. (III, 1)
(LÖNNROT, 2007, p. 40, tradução de O. Moreira)

O intérprete do material tradicional em volta do Kalevala é um performer itinerante


que age sobre temporalidade de duração mais larga, coletiva, como bem o sinalizou
W. Benjamin (1994, p. 197-221).
Tal horizonte de amplitude não precisa necessariamente reduzido à diacronia: o
performer do Kalevala arregimenta também uma multidimensionalidade sincrônica.
Ao cantar narrando, modifica e transforma seus ouvintes

Então velho Vainamoinen


eterno mestre dos cantos,
sentou para leda tarefa,
preparou-se pra cantar;
deu voz a canções alegres
e aos seus mágicos cantos.
Cantou velho Vainamoinen
porque podia e sabia.
Palavras não lhe faltavam
nem canções lhe escasseavam.
[...]
As mulheres todas sorrisos,
os homens de bom humor,
ouviram, maravilhavam,
do fluir da voz de Vaino,
milagre para o ouvinte,
maravilha para todos.(XXI)
(LONNRÖT, 2007, p. 177)

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Mas o encadeamento de transformações não cessa no circuito performer-audiência:


o mundo inteiro – animais, objetos, árvores, montanhas - é alcançado pelos efeitos
do canto, pelos seus sons e imagens:

Então quando o velho Vaino


nesse seu kantele tocou
com mãozinhas, dedos finos,
com polegares pra trás curvados,
vidoeiro discursou,
broto frondoso soou,
oiro do cuco cucou,
trança da moça ecoou.
Vaino tocou com seus dedos,
kantele soou com cordas,
as montanhas ecoaram,
os penedos estrondearam,
rochas nas vagas chaparam,
cascalhos na água cozeram;
pinheiros rejubilaram,
cotos pelo urzal pularam
Bonita música se ouve
a seis aldeias de longe.
E não houve um animal
que não viesse para ouvir
deleitoso instrumento, a sonância do kantele.
[...] Bonita música se ouve
a seis aldeias de longe.
E não houve animal
que não viesse ouvir
o deleitoso instrumento
a sonância do Kantele. (XLIV)
(LÖNNROT, 2007, p. 338)

Como se pode observar, seja pela atividade músico-poética do performer narrativo, seja
pelo próprio universo ficcional performado temos a onipresença do som e seus efeitos.9
Tal onipresença do som, ou audiofocalidade, integra uma dramaturgia audiovisual
às características do xamanismo no Kalevala apontadas por M. K. Nielsen. Segundo
tal dramaturgia audiofocal
a - atualiza a memória dos acontecimentos fundamentais (origem dos deuses,
do trabalho, do morar, do viver);
b - modifica ações e comportamentos das pessoas, coisas e eventos da natureza;

9 Sigo aqui as proposição de John Cage: “ There is no such thing as an empty space or an empty time,
through the network of wires. There is always something to see, something to hear. In fact, try as we
may to make a silence, we cannot.” (CAGE 1961: 8).

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c - manifesta em ressonância: não apenas o som se propaga e é repercutido


pelos corpos, como também os corpos apresentam modificações a partir da
vibração sonora que os impacta, adquirindo novas dimensões, novos estados,
novas formas;
d - daí os jogos multissensoriais nos corpos modificados pelo impacto dos
sons, como se vê nos jogos entre sons e cores.
Correlato dessa onipresença, então, é a função transformadora do som. No Kalevala,
o som articulado pelos agentes altera as dimensões das pessoas e das coisas:
a - acentua cores pré-existentes;
b - aumenta ou diminui o volume de um objeto;
c - funde objetos, criaturas ou eventos diversos;
d - destrói ou reconstrói pessoas e coisas;
e - efetiva a plasticidade da matéria.
Sendo o performer narrativo, o músico-poeta o articulado do Kalevala, ao apresentar
um cosmo audiofocal em contínuo jogo de transformações, ele acaba por demonstrar
os poderes mágicos em ação no mundo, aproximando-se assim da figura do Xamã.
O artista como xamã, o artista ocupando as funções que o xamã executa em sua
performance – eis o que atraiu Kandinsky na busca de sua identidade estética. Como
um xamã, o artista reivindica para si
a - atos cosmogônicos;
b - planos de realidade diversos (multidimensionalidade);
c - a musicalidade como eixo das transformações materiais;
d - a regeneração cósmica, o canto sem fim;
e - rapsódias, experiência cumulativas reunidas pela canção, a memória da raça;
Sendo a obra do xamã tanto a regeneração do mundo quando de si mesmo por seu
canto, para Kandinsky esse foi uma lema que viabilizou uma carreira marcada por
transformações em diálogo com sua tradição, com sua ‘velha Rússia’.

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