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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Ângelo Dimitre Gomes Guedes  


 

WASSILY KANDINSKY: “DO ESPIRITUAL NA ARTE” E A PROPOSTA


DA SONORIDADE INTERIOR.
 

São Paulo
2011
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ÂNGELO DIMITRE GOMES GUEDES

WASSILY KANDINSKY: “DO ESPIRITUAL NA ARTE” E A PROPOSTA


DA SONORIDADE INTERIOR.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós


graduação em Educação, Arte e História da
Cultura Universidade Presbiteriana Mackenzie
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Educação, Arte e Cultura

Orientador: Prof. Dr. Wilton Luiz de Azevedo

São Paulo
2011

 
G924w Guedes, Ângelo Dimitre Gomes.
Wassily Kandinsky: “Do espiritual na arte” e a proposta
da sonoridade interior. / Ângelo Dimitre Gomes Guedes. -
88 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da


Cultura) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo,
2011.
Bibliografia: f. 87-88.

1. Kandinsky, Wassily. 2. Sonoridade interior. 3.


Sinestesia. I. Título.

CDD 750.92
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ÂNGELO DIMITRE GOMES GUEDES

WASSILY KANDINSKY: “DO ESPIRITUAL NA ARTE” E A PROPOSTA


DA SONORIDADE INTERIOR.
 

Dissertação apresentada ao Programa de Pós


graduação em Educação, Arte e História da
Cultura Universidade Presbiteriana Mackenzie
como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Educação, Arte e Cultura

Aprovado em 18/08/2011

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Wilton Luiz de Azevedo


Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profª. Drª. Lourdes Malerba Gabrielli


Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profª. Drª. Maria Sílvia Barros de Held


Universidade de São Paulo

 
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AGRADECIMENTOS

Ao meu pai Prof. Roberto Guedes dos Santos, pelo maior exemplo do que é ser um professor,
por toda a ajuda e conselhos, por todo o carinho, amor e educação investidos em seu filho.

À minha mãe Edeli Gomes Guedes, por toda a sabedoria, amor, carinho e paciência durante o
caminho percorrido.

Ao Prof. Dr. Wilton Luiz de Azevedo, meus agradecimentos especiais pela orientação do
trabalho, pelo constante acompanhamento e incentivo, pela confiança, exemplo e amizade.

À Profª. Drª. Elcie Aparecida Fortes Salzano Masini, minha gratidão, pelo exemplo de amor à
educação e pelo incentivo à minha carreira como pesquisador.

Aos amigos docentes do Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, por estimularem
a minha aprendizagem e iluminarem caminhos em busca de novos conhecimentos.

Aos amigos discentes do Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura, pela amizade
sincera, por participarem desse momento único em minha vida e contribuírem para o meu
crescimento profissional e pessoal.

A todos os colegas que contribuíram para a publicação do livro “Crisálida: O despertar da


criatividade”, organizado pela Prof.ª Dr.ª Regina Célia Faria Amaro Giora, à qual eu agradeço
em especial pelo apoio e pela confiança.

Ao meu irmão Átila Diogo, por todo apoio, carinho e confiança na realização deste trabalho.

À minha amiga e namorada Natália Aggio, pelo constante incentivo e apoio, por toda a
paciência, pelo “foco” e pelos bons momentos ao seu lado.

A todos os meus grandes amigos e primos, verdadeiros irmãos, que fazem parte da minha
história e de todas as minhas conquistas, em especial ao Guilherme Pilz, mesmo sabendo que
os outros ficarão com ciúmes.

A todos os funcionários da Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, que


sempre ajudaram a todos com muita eficiência e paciência.

 
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À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio


financeiro durante a realização do mestrado.

Ao Fundo Mackenzie de Pesquisa (MACKPESQUISA), pelo apoio financeiro durante a


realização do mestrado.

 
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“Enquanto tiveres coragem para amar e


disposição para aprender, a felicidade
rondará teu coração, a cuja porta, se
aberta, não carecerá bater.”

Roberto Guedes do Santos

 
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RESUMO

A relação entre os códigos visual, sonoro e verbal é um tema que sempre fascinou diversos
artistas e pesquisadores. Wassily Kandinsky (1866-1944) foi responsável por um dos mais
conceituados trabalhos nesse campo. Poesia, sinestesia e sensibilidade são características
marcantes desde a sua infância. No final do século XIX e início do século XX, a arte
apresentava sinais de ruptura com o modelo de representação do mundo exterior. Em meio a
esse cenário, Kandinsky buscou o conteúdo interior/espiritual de uma obra de arte: a
sonoridade interior. Por meio dela, formas exteriores distintas podem atingir a mesma
ressonância na alma do espectador. Em seu livro “Do Espiritual na Arte”, publicado em 1914,
Kandinsky expôs os principais conceitos concernentes à sonoridade interior. O autor parecia
profetizar novos rumos à Arte, nos quais os valores externos seriam reduzidos e a sonoridade
interior amplificada. Esta dissertação apresenta uma reflexão sobre todo esse cenário. Aponta
o trajeto percorrido por Kandinsky no desenvolvimento de sua linguagem, concentrando-se
em assuntos concernentes a relações intercódigos. Expõe os principais conceitos apresentados
no livro “Do Espiritual na Arte”. Apresenta a Arte Monumental, conceito criado por
Kandinsky, no qual diversos códigos são relacionados. Analisa recortes da composição cênica
“A sonoridade amarela”, exemplo de Arte Monumental. Apresenta um ensaio artístico criado
pelo autor da presente dissertação, no qual são relacionados elementos dos códigos visual,
sonoro e verbal, por meio da sonoridade interior.

Palavras-chave: Kandinsky. Sonoridade interior. Do Espiritual na Arte. Códigos visuais,


sonoros e verbais. Cores, sons e palavras. Sinestesia.

 
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ABSTRACT

The relationship between the visual, sonorous and verbal codes is a subject that has
fascinated many artists and researchers. Wassily Kandinsky (1866-1944) has been responsible
for one of the most respected works in this field. Poetry, synesthesia and sensitivity
are hallmarks since his childhood. In the late nineteenth and early twentieth centuries,
art showed signs of breaking with the representation of the outside world model. In this
scenario, Kandinsky sought the inner/spiritual content of the art work: the inner
sonority. Through inner sonority, different outward forms can achieve the same resonance in
the soul of the viewer. In his book "Concerning the Spiritual in Art", published in 1914,
Kandinsky set out the main concepts related to inner sonority. The author seemed
to predict new directions for art, in which external values would be reduced and inner sonority
amplified. This dissertation presents a reflection on this scenario. It points out the path
traveled by Kandinsky in the development of his language, focusing on
issues concerning relations between codes. It also sets out the main concepts presented in his
book , presents the Monumental Art, concept created by Kandinsky, in which several codes
are related, brings an analysis of parts of the scenic composition "The Yellow sound", that is
an example of the Monumental Art. And finally, it presents an art essay written by the
author of this dissertation, in which elements of visual, sonorous and verbal codes are related
through inner sonority.

Keywords: Kandinsky. Inner sonority. Concerning the Spiritual in Art. Visual, sonorous and
verbal codes. Color, sounds and words. Synesthesia.

 
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Small Pleasures, 19913 – W. Kandinsky..................................... 13


Figura 2. As grandes banhistas. 1905 – P. Cézanne.................................... 19

Figura 3. Flower Bed, 1913 – P. Klee......................................................... 22


Figura 4. Retrato de Gabriele Münter, 1905 – W. Kandinsky..................... 24
Figura 5. Gabriele Münter a pintar em Kallmünz, 1903 – W. Kandinsky... 25
Figura 6. Estudo para Composição II, 1910 – W. Kandinsky..................... 27
Figura 7. Yellow Cow, 1911 – F. Marc....................................................... 28

Figura 8. Impressão V, 1911 – W. Kandinsky............................................. 30

Figura 9. Improvisação XXVI, 1912 – W. Kandinsky................................ 30


Figura 10. Composição VI, 1913 – W. Kandinsky........................................ 31
Figura 11. Montanha, 1909 – W. Kandinsky................................................. 33
Figura 12. Vista sobre Murnau com Comboio e Castelo, 1909 – W.
Kandinsky............................................................................................................ 33
Figura 13. Blue Mountain (Montanha Azul), 1908/1909 – W. Kandinsky..... 34
Figura 14. Quadro com arco petro 1912 – W. Kandinsky............................... 34
Figura 15. Composição V, 1911 – W. Kandinsky........................................... 36
Figura 16. Esboço definitivo para a capa do almanaque Der Blaue Reiter,
1911..................................................................................................................... 37
Figura 17. Der Blaue Reiter, 1911/1912 (Xilogravura) – W. Kandinsky....... 38
Figura 18. L’Oiseau Bleu – Touchagues......................................................... 44
Figura 19. Les Demoiselles D’Avignon, 1907 – P. Picasso........................... 45
Figura 20. A Dança, 1909 – H. Matisse........................................................... 46

Figura 21. Esquema de categorias referentes à forma exterior........................ 51


Figura 22. Exemplo de intervalo melódico consonante................................... 56
Figura 23. Exemplo de intervalo melódico dissonante.................................... 56

Figura 24. Composição VIII, 1923 – W. Kandinsky....................................... 60


Figura 25. Características dos dois primeiros grandes contrastes..................... 65

 
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Figura 26. Comparação de cores com tons de cinza........................................ 66

Figura 27. Terceiro grande contraste - Verde e Vermelho............................... 69

Figura 28. Quarto grande contraste - Laranja e Violeta................................... 71

Figura 29. O círculo do contraste entre dois pólos........................................... 72

Figura 30. Resumo sobre a Teoria de Cores de Kandinsky (1990).................. 73

Figura 31. Frame do Ensaio Artístico composto pelo autor da presente


pesquisa............................................................................................................... 82

Figura 32. Frame do Ensaio Artístico composto pelo autor da presente


pesquisa. ............................................................................................................. 83

 
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SUMÁRIO

1 Introdução................................................................................................... 11
2 Kandinsky e a busca pela sonoridade interior............................................. 14

3 “Do Espiritual na Arte”.............................................................................. 41

3.1 Rumo ao espiritual.................................................................................... 41

3.2 Princípio da Necessidade Interior.............................................................. 46

3.3 Sonoridade Interior.................................................................................... 50


3.4 Sobre as Cores – Características, simbolismo, percepção e analogia com
a música............................................................................................................... 61
4 Arte Monumental: A sonoridade amarela................................................... 74

5 Ensaio acústico-espiritual: composição visual, sonora e verbal................. 82

6 CONCLUSÃO............................................................................................ 84

REFERÊNCIAS.......................................................................................... 87

 
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1 Introdução

Wassily Kandinsky (1866-1944) foi um artista que revolucionou o cenário artístico da


sociedade moderna, pois transitou pelo universo visual, sonoro e verbal de maneira ímpar e é
considerado um dos principais responsáveis pela ruptura da arte como a representação do
exterior por meio do figurativismo. A arte, segundo Kandinsky, é capaz de transpor o
materialismo da sociedade e aproximar o Homem do Espiritual. A expressão de um artista
deve explorar a sonoridade interior1 dos elementos artísticos, atingir a alma do espectador e
vibrá-la de maneira semelhante às cordas de um instrumento musical.

A relação entre elementos visuais, sonoros e verbais tornou-se cada vez mais evidente
no decorrer da sua vida e de sua produção artística. Ele acreditava que os sons produziam, no
espectador, um efeito livre da ligação referencial com a realidade como objeto. Não havia
uma representação figurativa e ele visualizava esse mesmo efeito a partir de elementos
provenientes de outros códigos.

A relação intercódigos presente em sua obra está evidente também em seu discurso,
sempre repleto de poesia e de riqueza de detalhes:

“O sol derrete Moscou inteira numa mancha que, como uma tuba exaltada, faz entrar
em vibração todo o ser interior, a alma inteira. Não, não é a hora do vermelho
uniforme, a mais bela de todas! Só o acorde final da sinfonia leva cada cor ao
paroxismo da vida e subjuga Moscou inteira, fazendo-a ressoar, como o fortíssimo
final de uma orquestra gigante. O rosa, o lilás, o amarelo, o branco, o azul, o verde-
pistache, o amarelo chamejante das colheitas, das igrejas – cada qual com sua
melodia própria -, a relva de um verde exaltado, as árvores de uma sonoridade mais
grave ou a neve de mil vozes canoras, ou ainda o allegretto dos galhos descarnados,
o anel vermelho, rígido e silencioso dos muros de Kremlim, e por cima, dominando
tudo como um grito de triunfo, como um aleluia esquecido de si mesmo, o longo
traço branco, graciosamente severo, alongado, estendido para o Céu em eterna
nostalgia, a cabeça de ouro da cúpula, que entre as estrelas douradas e variegadas
das outras cúpulas é o sol de Moscou. (KANDINSKY, 1991, p. 73)

Kandinsky era um profissional de característica multidisciplinar. Além das diversas


artes exploradas (música, teatro, poesia, pintura, xilogravuras e outras), o autor teve múltiplas
experiências em sua biografia, como por exemplo, atividades acadêmicas na área de direito,
trabalhos com pesquisas étnico-culturais, criação e desenvolvimento de livros, e atividades
como docente em uma das mais respeitadas escolas de Arte do Século IXX, a “Bauhaus”. A

                                                                                                               
1
O conceito de sonoridade interior será apresentado no decorrer da presente pesquisa.

 
  12  

importância que Kandinsky atribuía a seus textos era uma maneira de sua arte não se perder
no tempo, a partir da possibilidade de outros artistas aprenderem com seus escritos.

O livro “Do Espiritual na Arte”, publicado em 1914, apresenta o pensamento de


Kandinsky sobre a arte e seus novos caminhos. Nesse livro, encontram-se conceitos
desenvolvidos pelo autor como o princípio da necessidade Interior e a sonoridade interior, os
quais são fatores-chave para a relação dos universos visual, sonoro e verbal.

A presente pesquisa teve como objetivos principais analisar a relação intercódigos que
Kandinsky explorava por meio, principalmente, da sonoridade interior dos Elementos
Artísticos, assunto explorado em seu Livro “Do Espiritual na Arte” e realizar um trabalho
prático, na forma de um ensaio artístico, baseado nos conceitos analisados.

Inicialmente, o caminho percorrido pelo autor para o desenvolvimento de sua


linguagem como artista foi descrito e analisado. Essa análise pretendeu focar, principalmente,
nos assuntos relacionados ao objeto de pesquisa, ou seja, nas relações intercódigos presentes
na obra de Kandinsky, assim como nas influências que contribuíram para essa linguagem
multimidiática desenvolvida pelo autor.

Os principais conceitos explorados no livro “Do Espiritual na Arte” como, por


exemplo, a sonoridade interior, são explicados e analisados diante de uma perspectiva
multidisciplinar, aproximando-os de assuntos relacionados ao campo artístico.

“Do Espiritual na Arte” é conhecido por muitos pela relevante abordagem ao universo
cromático. Nesse livro, ele apresenta sua pesquisa sobre as cores (características, simbolismo,
percepção e analogia com a música). Esse estudo evidencia muitos dos conceitos explorados
no decorrer do livro. No final dele, Kandinsky aponta uma nova forma de expressão artística,
que é capaz de relacionar artes de diferentes meios, a partir da sonoridade interior como
elemento primordial de composição. Kandinsky a denomina como Arte Monumental. Esse é o
principal exemplo da relação intercódigos que Kandinsky explorava.

O presente trabalho foi organizado de maneira a aproximar e a analisar o


desenvolvimento da linguagem de Kandinsky no período anterior à produção do livro e os
conceitos utilizados na Arte Monumental e apresentados no livro. A partir deste estudo
teórico, realizou-se um ensaio artístico.

 
  13  

No estudo teórico da presente pesquisa são descritos, primeiramente, aspectos da vida


do autor que contribuíram para o seu desenvolvimento como artista e como estudioso da arte
(Capítulo 1: Kandinsky e a busca pela sonoridade interior); em seguida, faz-se a apresentação
e a análise dos conceitos apresentados pelo autor no livro “Do Espiritual na Arte” (Capítulo 2:
“Do Espiritual na Arte”), tais como o princípio da necessidade interior, a sonoridade interior e
as cores; a terceira parte trata do conceito da Arte Monumental, que é primeiramente descrita
e, posteriormente, exemplificada com a análise da peça “A sonoridade amarela” (Capítulo 3:
Arte Monumental: “A sonoridade amarela”); na quarta parte, apresenta-se um ensaio visual,
sonoro e verbal, desenvolvido pelo autor da presente pesquisa e apoiado pelos conceitos
pesquisados no estudo teórico (Capítulo 4: Ensaio acústico-espiritual: Composição visual,
sonora e verbal). Neste ensaio, são relacionados os códigos visual, sonoro e verbal por meio
da expressão do artista e usa-se a sonoridade interior como principal elemento de criação.

Figura 1: Small pleasures, 1913 – W. Kandinsky

Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 105)

 
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2 Kandinsky e a busca pela sonoridade interior

Wassily Kandinsky (1866-1944) foi considerado o pioneiro na arte abstrata,


entretanto, sua contribuição vai muito além. Sua obra, ainda hoje, é referência para artistas
que preferem se expressar sem o uso do figurativismo geralmente presente na arte. Além
disso, sua relação entre música e pintura é considerada uma das mais expressivas já
realizadas. Kandinsky parecia enxergar sons e ouvir cores. A faculdade sinestésica que
Kandinsky aplicava, buscava a vibração da sonoridade interior na alma do espectador de uma
obra de arte, independente do meio (música, teatro, pinturas, xilogravuras e outros). Os
primeiro indícios dessa característica do autor foram observados durante a sua infância.

Kandinsky nasceu em Moscovo, no dia 4 de dezembro de 1866, segundo o calendário


gregoriano. Seu pai, Vasili Silverstrovich, nasceu na Sibéria Oriental, pois a família
Kandinsky havia sido forçada a viver por lá, devido a uma reforma radical de Alexandre II.
Sua mãe, Lydia Tikheeva, era moscovita e conhecida por sua inteligência e beleza, que muito
encantavam o jovem Kandinsky. Por mais breve que tenha sido a relação dos dois, ambos
permaneceram presentes na vida do autor, mesmo após a separação. Kandinsky passou a ser
criado por sua tia, Elisaveta Tikheeva. O jovem parecia refugiar-se em um universo lúdico
repleto de poesia e mistérios. Sua tia foi quem mais incentivou a sensibilidade do autor
durante sua infância, por meio da música, de brincadeiras, da leitura de contos alemães e da
literatura russa:

A irmã mais velha de minha mãe, Elizaveta Ivanova Tikheeva, teve sobre todo o
meu desenvolvimento uma influência considerável, indelével. Uma criatura
iluminada, de quem jamais se hão de esquecer quantos estiveram em contato com
ela ao longo de sua vida profundamente altruísta. Devo-lhe o nascimento de meu
amor pela música, pelo conto e, mais tarde, pela literatura russa e pela natureza
profunda do povo russo. Uma das mais luminosas recordações da minha infância
ligadas a Elizaveta Ivanovna é um cavalinho de chumbo pertencente a um jogo de
cavalinhos, pigarço, com amarelo-ocre no corpo e uma crina amarelo-clara. Nos
primeiros dias de minha chegada a Munique, para onde fui aos trinta anos,
abandonando o longo trabalho dos anos anteriores para aprender pintura, encontrei
um cavalo pigaço que era a réplica exata daquele. Ele aparece invariavelmente todos
os anos na época de regar as ruas. No inverno, desaparece misteriosamente, mas na
primavera faz sua aparição tal qual era um ano antes, sem ter envelhecido ou
mudado: parece imortal. (KANDINSKY, 1991, p. 71)

As cores estão sempre presentes nas recordações de sua infância. A maneira rica como
ele as retrata é dotada de uma poesia única que, quase sempre, o autor mistura com sensações
provenientes de todos os sentidos para descrevê-las, fato que demonstra a sonoridade interior

 
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em comum nos sentidos para o autor. Em seu livro “Rückblicke” (Recordações – Olhar no
passado), o autor comenta sobre sua paixão por andar a cavalo. A riqueza de detalhes e a
sensibilidade com o elemento cor, relacionado ou acompanhado de sensações provenientes de
outros sentidos, aparecem em trechos nos quais o autor comenta sobre sua infância:

Como todas as crianças, desejava apaixonadamente “andar a cavalo”. Para me


agradar, nosso cocheiro talhava sobre finas varas galhos em forma de espiral; na
primeira faixa ele retirava as duas cascas do galho, na segunda apenas a primeira, de
modo que meus cavalos tinham habitualmente três cores: o amarelo escuro da casca
externa de que eu não gostava e que de bom grado veria substituído por outra cor, o
verde cheio de seiva da segunda camada da casca de que eu gostava muito
particularmente e que mesmo murcho conservava algo de encantador e, por fim, a cor
branco marfim da madeira da vara que tinha um perfume de umidade e que
provocava a tentação de lamber, mas que logo murchava e secava tristemente, o que
estragava de antemão a alegria que esse branco me causava. (KANDINSKY, 1991, p.
69, grifo nosso)

Nesse mesmo livro, o autor comenta sobre as primeiras cores presentes em sua
memória: verde-claro e “cheio de seiva”, o branco, o vermelho-carmim, o preto e o amarelo-
ocre. Essas lembranças de seus três anos de idade remetem-no a diferentes objetos, os quais
ele não conseguia visualizar tão bem quanto as cores.

A maneira como o autor descreve a sensação, ao ver a cor saindo do tubo de tinta a
óleo que havia comprado por volta de seus 13 anos, revela a sinestesia e a poesia presentes na
percepção e na linguagem de Kandinsky:

“Uma pressão do dedo e, jubilosos, faustosos, refletidos, sonhadores, absorvidos em


si mesmos, com uma profunda seriedade, uma crepitante malícia, com o suspiro do
parto, a profunda sonoridade do luto, uma força, uma resistência obstinadas, uma
doçura e uma abnegação na capitulação, um autodomínio tenaz, tamanha
sensibilidade em seu equilíbrio instável, esses seres estranhos a que se chama cores
vinham um depois do outro, vivos em si e para si, autônomos e dotados de qualidades
necessárias à sua futura vida autônoma [...] Parecia-me às vezes que o pincel, que
com vontade inflexível arranca fragmentos desse ser que vive das cores, fazia
nascer a cada arrancamento uma tonalidade musical. Por vezes, eu ouvia o
chiado das cores no momento em que se misturavam. (KANDINSKY, 1991, p.p.
91,92, grifo nosso)

Por volta de 1874, Kandinsky teve suas primeiras lições de música, piano e,
posteriormente, violoncelo. Seu estilo musical apresentava influências orientais e ocidentais..
O próprio violoncelo é um exemplo dessa influência. Apesar de ser tipicamente ocidental, é
um instrumento não temperado (que não possui trastes), o que torna o seu instrumentista
capaz de executar maiores nuances entre os tons. A música ocidental é formada pela escala
cromática de 12 tons2, já a oriental possui mais divisões e a diferença entre os tons são muito

                                                                                                               
2
No sistema anglo-saxão, tem-se a notação literal: C, C# (ou dB), D, D# (ou Eb), E, F, F# (ou Gb), G, G# (ou
Ab), A, A# (Bb), B. Em países latinos, tem-se a notação silábica, criada pelo monge italiano Guido d’Arezzo.
 
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sutis, dificilmente percebidas por músicos formados no sistema ocidental. O instrumentista de


violoncelo precisa ter o ouvido bem treinado para encontrar as notas exatas do sistema
ocidental. Essa experiência pode ter causado grande influência na riqueza de detalhes que
Kandinsky aplicava à sua arte.

Durante muito tempo, a estrutura escalar árabe ofereceu problemas aos musicólogos
europeus que não conseguiam descrevê-la, nem concluir sequer sobre o número de
intervalos de que ela se compunha. Diferentes pesquisas afirmavam que o sistema
comportava dezesseis, dezoito, dezenove [e] [vinte e quatro] intervalos, sem falar na
dificuldade de determinar o tamanho desses intervalos, que mostravam desnorteantes
unidades desiguais (em posição aos semitons uniformes que compõem a escala
ocidental moderna). Pesquisas posteriores, baseadas em gravações de canto e
oscilogramas (registro de freqüência), chegaram mais recentemente a tabular esse
sistema escalar (identificando vinte e quatro intervalos desiguais no interior da oitava)
[...] A variada palheta dos intervalos mínimos que permitem o desenvolvimento dessa
combinatória é constituída muitas vezes de nuances menores do que o semitom (a
menor unidade de distinção melódica no teclado de um piano), sem que sejam, no
entanto, necessariamente, quartos de tom, isto é, metades exatas de um semitom. É
que a construção da escala, em seu colorido microtonalismo, não obedece a
necessidades aritméticas de racionalização do campo sonoro, mas a necessidades
acústicas, ligadas a critérios de potência expressiva. (WISNIK, 1989, p.p. 81, 82)

A sensibilidade artística de Kandinsky sempre foi muito evidente em seu caminho,


entretanto, antes de dedicar-se integralmente à arte, o autor desenvolveu trabalhos expressivos
em outras áreas. Em 1886, ingressou na Universidade de Direito em Moscou. Sua faculdade
de escrever era extremamente significativa. Kandinsky utilizava as palavras com a mesma
perícia com que utilizava as cores. Durante esse período, o autor engajou-se em movimentos
político-estudantis, atividade que, segundo suas próprias palavras, “servia de ensejo para
novas experiências e tornava as cordas da alma sensíveis, receptivas e particularmente aptas a
vibrar”. (KANDINSKY, 1991, p. 75).

Foi atraído por diversos assuntos e temas durante essa época. O direito romano
fascinava-o, porém, sua estrutura era oposta à que ele, um típico eslavo, estava acostumado;
era austera e possuía uma lógica demasiadamente insensível. O direito criminal,

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
Nessa notação, foram retiradas as primeiras sílabas dos versos de um hino a São João Baptista. Ut quent laxis,
Resonare fibris, Mira Gestorum, Famuli tuorum, Solve polluti, Labii reatum, Saancte Iohannes. (Para quem
possam ressoar as maravilhas dos teus feitos, com largos cantos, apaga os erros dos lábios manchados, ó São
João. Posteriormente, a nota “Ut” passou a chamar-se Dó, embora “Ut” ainda hoje seja utilizada na França. A
notação silábica é utilizada em países de origem latina. Na Alemanha, Noruega, Suécia e países do leste europeu,
o B (Si) é utilizado para representar o Si (b) e a letra H é utilizada para a nota Si natural. Esses sistemas de
notação musical representam verbalmente e graficamente a altura das notas musicais determinadas no sistema
ocidental. Altura é a propriedade física do som “que nos permite distinguir sons graves, intermediários ou
agudos, dependendo do número de vibrações por segundo produzido pelo objeto sonoro”. (BIAGIONI et al.,
2005).

 
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principalmente os estudos de Lombroso3 (1835-1909) sobre a motivação interior de um


criminoso, também interessava Kandinsky. Outro tema explorado era a história dos direitos
russo e camponês que, na opinião do autor, caminhavam ao encontro do direito romano, pois,
representavam uma libertação na aplicação da lei.

A etnografia despertava a paixão de Kandinsky em revelar a alma e a essência do


povo. Em 1889, o autor visitou a região nortenha de Vologda a fim de escrever um relatório
sobre costumes relativos ao direito dos camponeses e às tradições religiosas, a pedido da
Sociedade das Ciências Naturais, Etnografia e Antropologia. Essa experiência foi riquíssima
em detalhes; sua descrição não se restringiu à organização social dos camponeses, mas
também à sua percepção das cores presentes naquele cenário.

Chegava a aldeias onde, subitamente toda a população se apresentava vestida de


roupa cinzenta das cabeças aos pés, com rostos e cabelos de um verde amarelado, ou
arvorava de repente trajes variegados que deambulavam sobre duas pernas como
vivos quadros coloridos. Nunca me esquecerei dos casarões de madeira cobertos de
esculturas. Nessas vivendas mágicas, vivi uma coisa que nunca mais se reproduziu.
Elas me ensinaram a mover-me no próprio âmago do quadro, a viver no quadro... A
mesa, as banquetas, o grande fogão, que ocupa um lugar importante na casa do
camponês russo, os armários, cada objeto era pintado como ornamentos variegados
que se desdobravam em grandes traços. Nas paredes, imagens populares: a
representação simbólica de um herói, uma batalha, a ilustração de um canto popular...
Quando, enfim entrei no aposento, senti-me cercado de todos os lados pela pintura na
qual, portanto, penetrara. (KANDINSKY, 1991, p. 86)

Após essa experiência, Kandinsky percebeu que tinha a mesma sensação ao entrar nas
Igrejas de Moscou e nas capelas de Baviera e Tirol. Nas visitas seguintes a esses lugares, tal
percepção ficou ainda mais clara.

O autor, em seu ensaio autobiográfico, afirma que, apesar dos diversos compromissos
acadêmicos, continuava aprimorando seus talentos artísticos durante esse período. Procurava
fixar o “coração das cores”, como ele mesmo denominava. Buscava expressar toda a força
que esse coração exercia sobre si mesmo, porém, não obtinha sucesso satisfatório.
(KANDINSKY, 1991). Mesmo não se dedicando ao âmbito artístico como poderia, esse
período voltado aos estudos acadêmicos em muito contribuiu para a evolução de Kandinsky
como autor (produção geral, como pinturas, livros e aulas), enriquecendo todo o seu sistema
cognitivo, aprimorando sua linguagem, desenvolvendo o pensamento abstrato e o

                                                                                                               
3
Cesare Lombroso (1835-1909) era professor de medicina legal e de psiquiatria na Universidade de Turin, Suas
teorias deslocavam o julgamento de um criminoso de um estudo do sistema das leis para os da motivação
interior, exercendo um papel oposto a criminologia clássica. Fator que chamava a atenção do Kandinsky durante
seus estudos sobre direito. (KANDINSKY, 1991, notas)

 
  18  

autoconhecimento e, talvez, estimulando o caminho rumo à dedicação integral ao âmbito


artístico, como ele mesmo cita:

Todos esses estudos me cativaram e ajudaram a desenvolver o pensamento abstrato.


Amei todas essas ciências e, ainda hoje, rememoro com reconhecimento as horas de
entusiasmo e quiçá de inspiração que elas me proporcionaram. Mas essas horas se
empanaram ao primeiro contato com a arte, porque só ela tinha o poder de
transportar-me fora do tempo e do espaço. Os trabalhos científicos nunca me haviam
propiciado tais experiências de tensões interiores e de momentos criativos.
(KANDINSKY, 1991, p. 76)

O trabalho acadêmico desenvolvido pelo autor era reconhecido por todos e começava
a trazer resultados para a sua vida profissional. Após a investigação requisitada pela
Sociedade de Ciências Naturais, Etnografia e Antropologia, ele foi convidado a integrá-la.
Obteve sucesso também nos exames jurídicos e consagrou-se assistente na Universidade de
Moscou. Em 1892, estabeleceu uma relação conjugal com sua prima, Anya Chimiakin, que
também apreciava assuntos intelectuais.

Mesmo com o sucesso na vida profissional e acadêmica, Kandinsky ainda sonhava em


dedicar-se apenas à arte; sentia que somente ela alimentaria seu espírito, como ele mesmo cita
em seu livro “Do Espiritual na Arte”. Contudo, ainda não havia desenvolvido suas faculdades
pictóricas satisfatoriamente e receava seguir esse caminho. Ainda em dúvida, Kandinsky foi
convidado a lecionar alemão na Universidade Russa de Dorpat, porém recusou e finalmente
decidiu não mais calar sua ambição artística.

Alguns acontecimentos foram primordiais para a decisão do autor. Em 1895,


Kandinsky espantou-se ao não distinguir o objeto presente em uma das obras expostas na
mostra dos impressionistas franceses. Só conseguiu visualizá-lo após informar-se pelo
catálogo que se tratava de uma Meda de Feno, desenhada pelo pintor Claude Monet (1840-
1926). Em um primeiro instante, acostumado somente com a arte realista, considerou uma
audácia descomunal. Entretanto, era exatamente isso que ele buscava no seu inconsciente.

O movimento impressionista já se configurava como uma quebra do paradigma


mimético, retrato fiel do mundo exterior. Essa ruptura, que teve a contribuição potencial do
próprio Kandinsky posteriormente, confrontava o academicismo da época e tornava a arte
visível como sua própria realidade. Um dos principais responsáveis pelo início dessa ruptura
foi o pintor Cézanne (1939-1906). Dono de um estilo muito peculiar e único, entretanto,
associado ao impressionismo e ao cubismo por muitos, era chamado de “o pai da Arte
Moderna” por Picasso e por Matisse. O artista, não se submetia a regras do academicismo,

 
  19  

como leis de perspectivas e outras. Ele visualizava a natureza segundo três formas
fundamentais: a esfera, o cilindro e o cone. No livro “Do Espiritual na Arte”, Kandinsky
comenta sobre o pintor:

Tratou os objetos como tratou o homem, pois tinha o dom de descobrir a vida interior
em tudo. Captura-os e entrega-os à cor. Recebem dela a vida – uma vida interior – e
uma nota essencialmente pictórica. Impõe-lhes uma forma redutível a fórmulas
abstratas, freqüentemente matemáticas, das quais emana uma radiante harmonia. Não
é nem um homem, nem uma maçã, nem uma árvore, que Cézanne quer representar;
ele serve-se de tudo isso para criar uma coisa pintada que proporciona um som bem
interior e se chama imagem. (KANDINSKY, 1990, p. 50)

Figura 2: As grandes Banhistas, 1898-1905 – P. Cézanne

Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/ensino-medio/cezanne-sentimento-vence-forma-530391.shtml

Acesso em :16.jun.2011

Os artistas modernos vinham gradativamente desprendendo-se da relação com a


realidade como objeto. Esse período de mudanças na arte visual foi também estimulado pelo
advento da máquina fotográfica. Esse instrumento, capaz de recortar um fragmento da
realidade em um determinado espaço e tempo, estimulou pintores a buscarem novos estilos e
a se afastarem da relação mimética que a arte costumava apresentar até então. Além disso, a
fotografia exerceu correspondência direta com o impressionismo pela maneira como os
pintores desse estilo utilizavam o elemento cor. Segundo Zanchetta (1994), as descobertas
 
  20  

provenientes da pesquisa fotográfica, sobre composição de cores e formação de imagem na


retina do observador, influenciaram a técnica dos pintores impressionistas, os quais passaram
a não misturar as tintas na tela para obter cores distintas, mas sim, a utilizar pinceladas de
cores puras que, colocadas lado a lado, eram misturadas pelos olhos do observador durante o
processo de formação da imagem.

Além do impacto causado pela não percepção do objeto no quadro de Monet, das
rupturas e inovações do cenário das artes visuais na época, outras ocorrências específicas
ajudaram a impulsionar a decisão do autor. A ópera “Lohengrin”, de Richard Wagner (1813-
1883), promoveu um efeito sinestésico em Kandinsky. A disposição dos sons dessa obra o
inspirou ainda mais a relacionar cores e sons, o que era uma das grandes chaves de todo o seu
processo de criação.

Lohengrin pareceu-me constituir uma perfeita realização dessa Moscou. Os violinos,


os baixos profundos e, mais particularmente, os instrumentos de sopro
personificavam, então, para mim toda a força das horas do crepúsculo. Via
mentalmente todas as minhas cores, elas estavam diante dos meus olhos. Linhas
selvagens, quase loucas, desenhavam-se ante mim. Não ousava dizer que Wagner
pintara em música “a minha hora”. Mas evidenciou-se-me com toda a clareza que a
arte em geral possuía uma força muito maior do que até então me parecera e que,
por outro lado, a pintura podia despender as mesmas forças que a musica. E a
impossibilidade de descobrir sozinho essas forças, ou ao menos procurá-las, tornou
minha renúncia ainda mais amarga. (KANDINSKY, 1991, p. 78)

A Teoria da Radiotividade e a desintegração do átomo também promoveram uma


espécie de ruptura das regras fixas estabelecidas desde sempre. Nesse momento, Kandinsky
sentia-se livre para experimentar, criar, ouvir sua necessidade interior por arte, expressar seus
próprios sons e iniciar a ruptura com a relação mimética que a arte apresentava. Após essa
ruptura, o que mais importava era o som natural da arte e da expressão do autor e não a sua
forma exterior. A obra de arte tinha voz própria a partir de sua criação (expressão do artista).

A pretensão artística, reprimida até então, e as experiências musicais e pictóricas, que


já havia vivido, passaram a ter novos significados e, por conseguinte, suas forças se
potencializaram. Kandinsky estava convicto de buscar novos caminhos para a pintura. Aos 30
anos, seu primeiro passo foi partir rumo a Munique. A escolha não foi despretensiosa, a
cidade era vista como um grande centro artístico cultural, liberal e inovador. O jovem
arquiteto August Endell (1871-1925) sintetizou em uma frase o conceito da propensão
revolucionária do cenário artístico de Munique: “Não existe erro maior do que reduzir a arte à
reprodução fiel da realidade (ENDELL apud DÜCHTING, 2007, p. 9).

 
  21  

A chegada a Munique despertou algumas memórias de sua infância em Moscou, como


as cores e a sua tia que tanto colaborou com sua educação artística.

Os contos alemães, que eu ouvira tantas vezes em criança, ganharam vida. Os tetos
estreitos e altos, hoje desaparecidos, da Promenadeplatz e da Maximillianplatz, o
velho Schwabing e, sobretudo, o Au, que descobri certa vez por acaso,
metamorfosearam tais contos em realidade. O bonde azul sulcava as ruas como
uma atmosfera de conto de fadas corporificado, tornando a respiração leve e
agradável. As caixas de correio amarelas lançavam das esquinas seu canto
vibrante de canário. Eu saudava a inscrição “Moinho das Artes” e sentia-me numa
cidade artística, o que era para mim como uma cidade de conto de fadas.
(KANDINSKY, 1991, p. 71, grifo nosso)

Motivado, Kandinsky optou por aprimorar suas faculdades pictóricas e matriculou-se


na Escola de Anton Azbe (1862-1905), porém sentia-se preso ao ter que retratar rostos e
corpos de modelos. Frequentemente, Kandinsky fugia das aulas para aprender à sua maneira.
Com sua caixa de pintura, desenvolvia estudos sobre o bairro de Scwabing, o jardim inglês e
as alamedas do Isar ou optava por estudar em casa e pintar quadros, tendo como referência
apenas a memória, sem influência das leis da natureza. Por esse motivo, muitos colegas
consideravam-no preguiçoso e até pouco talentoso. (KANDINSKY, 1991)

Kandinsky continuava a estudar desenho de anatomia com um certo desânimo até que
passou a perceber uma beleza subjetiva nessa tarefa:

É, efetivamente, uma inteligência infinita que se manifesta em cada detalhe: qualquer


narina, por exemplo, desperta em mim o mesmo sentimento de admiração que o vôo
de um pato selvagem, a ligação da folha ao ramo, o nado da rã, o bico do pelicano,
etc. (KANDINSKY, 1991, p. 96)

Muitos colegas de Kandinsky, após verem suas obras, chamavam-no de colorista. Não
havia como negar que Kandinsky explorava muito melhor esse elemento do que a forma e
seus traços.

Para tornar-se mais completo, Kandinsky resolveu procurar Franz Stuck (1863-1928),
um dos melhores desenhistas da época. Somente na segunda tentativa, o desenhista o admitiu
em sua escola. A relação de Franz com Kandinsky colaborou muito para o seu
desenvolvimento como artista. Segundo o próprio Kandinsky, Franz discursava “com um
amor surpreendente pela arte, pelo jogo das formas e pela fusão das formas entre si”
(KANDINSKY, 1991, p. 98), característica que cativou o autor. Sua contribuição para a
evolução de Kandinsky não foi apenas com o desenho, mas com o processo de criação e de
produção da obra também. Seu discurso pouco didático obrigava Kandinsky a refletir

 
  22  

longamente, o que o deixava muito impaciente. Contudo, quase sempre percebia as críticas do
professor como muito pertinentes e isso otimizava a significação do conteúdo dessas aulas.

Foi também na escola de Franz que conheceu o artista Paul Klee (1879-1940), cuja
amizade resultaria, anos após, em uma parceira muito significativa para a evolução da arte
não figurativa: o expressionismo abstrato.

Figura 3: Flower Bed, 1913 – P. Klee

Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 113)

Após esse período significativo para a sua evolução como artista, Kandinsky saiu da
escola e optou por continuar seu caminho de maneira autônoma. Sua produção tornava-se
maior a cada ano. Paralelo a esse desenvolvimento técnico, Kandinsky colhia observações e
experiências que o distanciavam cada vez mais da arte figurativa:

[...] quando deparei com um quadro de uma beleza indescritível, impregnado de


grande ardor íntimo. A princípio, fiquei confuso, depois abeirei-me rapidamente do
quadro misterioso no qual via apenas formas e cores e cujo o tema me era

 
  23  

incompreensível. Não tardei a encontrar a chave do enigma: era um dos meus


quadros, encostado na parede com o lado para baixo. (KANDINSKY, 1991, p. 87)

No dia seguinte a essa observação, Kandinsky procurou, em vão, encontrar a


impressão que o quadro rotacionado a 180˚ lhe havia causado, o que confirmou que o objeto
prejudicava seus quadros. O figurativismo era danoso à sonoridade de sua obra; se sua
intenção era fazê-la gritar da maneira mais pura e autêntica possível, ela deveria ser livre de
qualquer relação iconográfica, indicial e simbólica4 com a realidade como objeto. Mesmo
com essa certeza, Kandinsky receava produzir uma arte vazia. Devido a isso, estudou as
sensações provenientes das cores e das formas durante anos. Todas as práticas e observações
oriundas desse estudo fizeram com que Kandinsky trabalhasse de maneira mais ativa nesse
processo. O que deveria substituir o objeto? Essa pergunta era incansavelmente repetida e
impulsionava cada vez mais as pesquisas do autor em sua busca pela sonoridade e
necessidade interiores.

[...] não é em função do real, mas em função do irreal, que a mão do pintor escolhe,
arbitra, cria, atinge objeto material que, às vezes, é resistente... Então, o papel, a fibra,
a pedra, a madeira, a tela são provocações para a mão sonhadora se autodeterminar e
impor sua vontade ao corpo do mundo[...] O pintor toca o mundo em sua concretude,
sem reduzí-lo a um panorama de totalidade ou unidade definitivas[sic]. (RAPOSO,
1998, p. 48)

Em 1901, Kandinsky fundou o grupo artístico Phalanx e promoveu uma série de 12


exposições, as quais foram realizadas até 1904, quando o grupo encerrou as atividades. Nesse
período de intensa produção artística (1901-1904), deve-se sublinhar dois momentos – o
encontro em 1902 com Gabriele Münter (1877-1962) (Figuras 4 e 5), que se tornaria sua

                                                                                                               
4
Os conceitos de ícone, índice e símbolo, foram aqui citados, de acordo com a Teoria da Semiótica de Charles
Sanders Peirce (1839-1914). Os signos são divisíveis conforme três tricotomias e subdivididos em dez classes.
Os conceitos de ícone, índice e símbolo referem-se à denominação do signo de acordo com a segunda tricotomia,
a qual é a principal divisão dos signos (PEIRCE, 2008). “Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente
individual ou uma lei, é ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como
um seu signo” (PEIRCE, 2008, p. 52). Essa relação ícone/objeto é caracterizada por uma relação de similaridade.
Exemplo: Pintura Figurativa. Já o índice é “um signo, ou representação, que se refere a seu objeto [...] por estar
numa conexão dinâmica (espacial inclusive) tanto com o objeto individual, por um lado, quanto, por outro lado,
com os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve o signo (PEIRCE, 2008, p.74). Indica uma relação
existencial ou referencial. Por exemplo: "uma batida na porta é índice [...] um violento relâmpago indica que
algo considerável ocorreu, embora não saibamos exatamente qual foi o evento. Espera-se, no entanto, que ele se
ligue com alguma outra experiência (PEIRCE, 2008, p. 67). O símbolo se caracteriza como “um signo que se
refere ao objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente uma associação de idéias gerais que opera no
sentido de fazer com que o símbolo seja interpretado como se referindo aquele objeto” (PEIRCE, 2008, p. 52).
Sinteticamente, a relação do signo com o seu objeto pode ser: iconográfica (similaridade com as características
do objeto), indicial (conexão dinâmica existencial ou referencial) e simbólica (representação do objeto).
Kandinsky, após a experiência de ver seu quadro de “ponta-cabeça” com uma sonoridade interior muito mais
forte devido à ausência do objeto figurativo, percebeu que o objeto da arte não poderia ser a realidade. A
presença desse objeto figurativo prejudicava a amplificação da sonoridade interior e sua vibração na alma do
espectador. No decorrer do trabalho, mais detalhes sobre a sonoridade interior serão abordados.

 
  24  

companheira e muito o incentivaria em suas pesquisas, após o seu divórcio com Anya
Chymiaki e a sétima exposição da Phalanx, realizada em 1903, que contou com quadros de
Claude Monet.

Figura 4: Retrato de Gabriele Münter, 1905 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 19)

 
  25  

Figura 5: Gabriele Münter a pintar em Kallmünz, 1903 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 18)

Nesse período, Kandinsky estudou intensamente teorias sobre as cores, elementos com
os quais já apresentava muita familiaridade e perícia, porém de maneira empírica. Sua
principal referência foi a Doutrina das Cores de Johann Wolfang Von Goethe (1749-1832).
Ao contrário de Newton (1643-1727), autor que desenvolveu a mais completa teoria sobre as
cores, visualizando-as, principalmente, como fenômeno físico, Goethe estava mais
interessado na interação do espectador com o elemento cor. Nessa teoria, além do fenômeno
físico, foram também abordados a fisiologia e o fenômeno psíquico. A teoria de Goethe
apresenta alguns equívocos como, por exemplo, a oposição à afirmação de Newton de que a
luz branca era “formada pelas diferentes luzes coloridas do espectro” (PEDROSA, 2003, p.
55). Goethe dedicou-se a analisar a questão de como a cor se apresentava no ambiente e na
percepção humana. Sua postura caminhava de encontro ao pensamento dogmático de seu
tempo, o qual limitava a liberdade para que o pensamento se desenvolvesse. Esse ponto de
 
  26  

vista, que aborda os fenômenos físico, fisiológico e psíquico, voltado principalmente para o
espectador, mesmo equivocado em alguns pontos, estimulou muitas outras pesquisas, em
diversas áreas do conhecimento e, além de Kandinsky, muitos outros pintores e autores o
utilizaram.

[...]Já que ocupa um lugar tão elevado na série de fenômenos naturais originários,
preenchendo com uma diversidade bem definida o círculo simples que lhe foi
designado, não devemos nos surpreender ao percebermos que a cor, em suas
manifestações gerais e elementares na superfície de um material, sem nenhuma
relação com a qualidade ou forma dele, produz sobre o sentido que lhe é mais
adequado, a visão, e, por meio deste, sobre a alma, um efeito que, isoladamente, é
específico e, em combinação, é em parte harmônico, em parte característico, mas
também desarmônico, embora sempre definido e significativo, que se vincula
imediatamente à moralidade. É por isso que as cores, consideradas como um
elemento da arte, podem ser utilizadas para os mais altos fins estéticos. As pessoas
sentem grande prazer com a cor. O olho necessita dela tanto quanto da luz. Vale
lembrar o rejuvenescimento que se sente, num dia nublado, ao ver o sol iluminar uma
parte isolada da paisagem, tornando as cores visíveis. (GOETHE, 1993, p. 139, grifo
nosso)

No capítulo em que Goethe descreve o efeito sensível moral da cor, ele afirma que o
amarelo está mais para o claro e o azul mais para o escuro. No decorrer do trabalho, pode-se
observar que Kandinsky apresenta muitos pontos em comum com os conceitos abordados pela
teoria de Goethe.

Kandinsky desenvolveu exponencialmente seu trabalho pictórico, promoveu e


participou de diversas exposições e grupos durante essa época. Toda essa intensa experiência
contribuiu com a evolução de uma nova pintura, a que aspirava. Por volta desse período,
Kandinsky passou a recolher as impressões que ajudariam o processo de desenvolvimento do
livro “Do Espiritual na Arte”, como ele mesmo cita no prefácio do livro:

As idéias que desenvolvo aqui são o resultado de observações e de experiências


interiores acumuladas pouco a pouco ao longo dos últimos cinco ou seis anos. Eu
tinha a intenção de escrever uma obra mais completa. Mas é um assunto que exigiria
inúmeras experiências no domínio da sensibilidade. Outros trabalhos de importância
não menor me absorveram e tive, por enquanto, de renunciar a esse projeto. Talvez
nunca o execute. Outro, sem dúvida, o realizará mais completamente e melhor do
que eu. Limitar-me-ei, portanto, a esboçar as linhas gerais da questão, a mostrar
somente a importância do problema, e considerar-me-ia feliz se o eco de minhas
palavras não se perdesse no vazio. (KANDINSKY, 1990, p. 21)

Em 1909, surge a Neue Künstlervereinigung München – NKVM (Nova Associação


dos Artistas de Munique), da qual faziam parte Kandinsky, sua esposa Gabriele Münter,
alguns amigos, importantes artistas e historiadores de arte. A segunda exposição do grupo,
organizada em 1910, caminhava de encontro com os interesses da conservadora política
artística da época em Munique (DÜCHTING, 2007), transformando a cidade no centro da arte

 
  27  

vanguardista. A mostra contou com a obra “Composição II” de Kandinsky. Em seu estudo
(Figura 6), ainda se notam aspectos iconográficos e figurativos como, por exemplo,
cavaleiros, casas e paisagens, porém, a dinâmica das linhas, o desequilíbrio e as cores
gritantes parecem refletir o espírito de Kandinsky pouco antes do salto para a abstração.

Figura 6: Estudo para Composição II, 1910 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 24)

Os críticos foram agressivos e afirmaram que o autor de uma obra como essa só
poderia estar utilizando substâncias alucinógenas. Um dos poucos artistas que defenderam
Kandinsky foi Franz Marc (1880-1916), nessa época, ainda desconhecido do público
muniquense. Seu trabalho também procurava romper com o mimetismo. A partir desse
episódio, iniciou-se uma amizade entre os dois autores. Franz Marc caminhou ao lado de
Kandinsky para a abstração. Desde o início, é notório que havia tensões na NKVM, devido ao
fato de que o grupo como um todo não acompanhava a evolução da pintura de Kandinsky e a
crítica tornava-se cada vez mais intensa.

 
  28  

Figura 7: Yellow Cow, 1911 – F. Marc

Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 109)

Por volta desse período, o autor fez suas primeiras improvisações e começou a compor
a obra “A sonoridade amarela”. Nela, Kandinsky propõe signos que prejudicam a significação
do espectador por meio da relação com o seu objeto. Essa relação torna-se confusa devido à
maneira como os elementos são apresentados. Os signos propostos pelo autor na peça pouco
significam caso o espectador deseje relacioná-los entre si, com seus referentes (do signo) e
com o seu próprio sistema cognitivo. A música não é uma simples trilha sonora em função
das imagens, as quais não são lineares. Parece não haver um roteiro, não existir uma história
figurativa. O que Kandinsky propõe nessa peça são signos visuais, sonoros e verbais que se
entrelaçam, porém, nenhum está em função do outro; o que importa para o autor é a
expressão, a sonoridade interior de cada elemento (separados e juntos), a vibração dessa
sonoridade interior na alma do espectador e a percepção dessa tempestade de signos. O
significado, nesse caso, é extremamente subjetivo. A experiência vivida por meio da
percepção desse som pode significar de diferentes maneiras para cada indivíduo. Kandinsky
destaca a sonoridade de sua expressão e dos elementos presentes na composição, a qual
atingirá certa ressonância no interior no espectador. Essa obra demonstra a ruptura da relação
mimética na arte, expõe a relação sinestésica presente em sua linguagem e em seu processo de
 
  29  

criação e evidencia o princípio da necessidade interior, apontado em seu livro “Do Espiritual
na Arte”.

Esse período, que antecede a publicação do livro e no qual as observações que


serviram para sua criação estão em fase final, é também muito significativo para a criação
artística de Kandinsky, pois surgem as primeiras improvisações. A partir desse momento, no
qual Kandinsky organizou seu pensamento em busca da sonoridade interior, seu processo de
criação começa a fluir cada vez mais e a barreira entre o universo visual e sonoro também se
torna quase inexistente; o autor experimenta cada vez mais essa relação que o fascina desde a
sua infância e esse processo se torna observável em obras como essa.

Também em 1909 Kandinsky classifica suas principais obras pictóricas em


Impressões, Improvisações e Composições (Figuras 8, 9 e 10), fato que aponta essa
organização de pensamentos e atividades que Kandinsky estabeleceu, após anos de estudos,
reflexões, prática e observações.

Essa nomenclatura de classificação de suas principais obras pictóricas é um ótimo


exemplo da ligação entre o universo visual e sonoro em Kandinsky. Os termos aplicados são
muito utilizados na música: as Impressões constituem-se de modelos naturalistas, sem a
ruptura total com o figurativo; as Improvisações tratam de abstrações livres e espontâneas; as
Composições tratam da abstração em um grau mais elaborado, a partir de toda a sua
experiência.

 
  30  

Figura 8: Impressão V, 1911 – W. Kandinsky

http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-kandinsky-mono-EN/ENS-kandinsky-
monographie-EN.html

Acesso em: 17.jun.2011

Figura 9: Improvisação XXVI, 1912 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 41)

 
  31  

Figura 10: Composição VI, 1913 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 50)

Por meio das composições, Kandinsky buscava uma pintura mais semelhante à
música. O autor apresentava um enorme fascínio pelo tema:

A palavra composição deixava-me profundamente perturbado e mais tarde estabeleci


como objetivo na vida pintar uma “Composição”. Essa palavra tinha em mim o efeito
de uma prece. Enchia-me de veneração. Nos estudos que pintava, eu me deixava
levar. Pensava pouco nas casas e nas árvores, traçava na tela, com a espátula,
linhas e manchas coloridas e deixava-as cantar tão forte quanto eu podia.
(KANDINSKY, 1991, p.p. 83,84, grifo nosso)

Para ele, pintura e música tinham muitos pontos em comum, principalmente, a


sonoridade interior. Ele era capaz de estabelecer inúmeras relações entre os signos
provenientes de cada uma. A percepção de um som, apresentava muita similaridade com a
percepção de uma cor. Propriedades como ritmo, timbre, volume, altura, matiz e tonalidade se
relacionavam na mente do autor. Contudo, ele invejava a natureza abstrata da música e
buscava na pintura um resultado semelhante. Acreditava que esse era o futuro da pintura, pois
uma obra pictórica livre de objetos figurativos poderia alcançar o mesmo efeito que a música
exercia em seu espectador. Kandinsky visualizava uma vantagem para a pintura, a qual, ao
contrário da música, não apresentava duração determinada no processo de interação
espectador-obra de arte. O impacto poderia ser instantâneo e mais denso:

 
  32  

A música, por exemplo, dispõe da duração. Mas a pintura oferece ao espectador –


vantagem que a música não possui – o efeito maciço e instantâneo do conteúdo de
uma obra. Por mais totalmente emancipada da natureza que seja, a música não tem
necessidade, para exprimir-se, de recorrer às formas de sua linguagem. Quanto à
pintura, ela ainda está hoje quase totalmente reduzida a contentar-se com as formas
que toma emprestadas da natureza. Sua tarefa ainda consiste em analisar esses meios
e essas formas, aprender a conhecê-los, como a música, por sua vez, já o fez há muito
tempo, e esforçar-se por integrá-los em suas criações, utilizando-os para fins
puramente pictóricos. (KANDINSKY, 1990, p. 56)

Para o autor, cada arte possui suas próprias forças e não se pode substituir uma pela
outra, mas sim uni-las e potencializar ainda mais a sonoridade interior da obra de arte
impressa no espectador.

A produção pictórica dessa época, a exemplo da “Composição II”, já mencionada


anteriormente, ainda continha vestígios figurativos e iconográficos. Pouco a pouco,
Kandinsky desprendeu-se de qualquer referência à realidade como objeto. Até mesmo os
nomes de algumas obras produzidas nessa época ainda apresentavam esses vestígios como,
por exemplo, “Montanha”, de 1910 (Figura 11), “Vista sobre Murnau com Comboio e
Castelo”, de 1909 (Figura 12), “Montanha Azul”, de 1908/1909 (Figura 13) e Quadro com
Arco Preto, de 1912 (Figura 14). Essas obras apresentam forte sonoridade interior, perceptível
por meio de cores e formas bem aplicadas.

 
  33  

Figura 11: Montanha, 1909 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 28)

Figura 12: Vista sobre Murnau com Comboio e Castelo, 1909 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 23)

 
  34  

Figura 13: Blue Mountain (Montanha Azul), 1908/1909 – W. Kandinsky

Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 103)

Figura 14: Quadro com arco petro 1912 – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 36)

 
  35  

Em 2 de janeiro de 1911, Kandinsky assistiu ao concerto do compositor vienense


Arnold Schöenberg (1874-1951) e ficou impressionado com a sua performance. A
atonalidade de Schöenberg, seus estudos, pesquisas e produções artísticas caminhavam ao
encontro do abstracionismo de Kandinsky e vice-versa. A ruptura com regras comuns, a forte
e intensa expressão do autor e de sua arte são alguns dos pontos em comum:

O atonalismo é a quebra do sistema e a sua deriva [...] Sch[ö]enberg registra que o


novo estilo atonal, guiado sobretudo por “fortes impulsos expressivos”, não se
habilitava a produzir obras longas [...] Independente dessa inaptidão estrutural para o
discurso extenso, que Sch[ö]enberg pretendia superar, a fase atonal contém invenções
inusitadas de timbres e entoações. (WISNIK, 1989, p. 165)

A partir do primeiro encontro, iniciou-se uma amizade que muito contribuiu para o
desenvolvimento artístico de ambos e para a evolução da arte abstrata. Kandinsky afirma, em
seu livro “Do Espiritual na Arte”, que o compositor caminhava sozinho na contramão do
senso-comum, que estava a caminho do materialismo e de motivos exteriores. Para o autor, o
trabalho de Schöenberg explora, de maneira única, a necessidade interior e representa o início
da música futura:

O compositor vienense Arnold Schöenberg percorre sozinho esse caminho, apenas


reconhecido por alguns raros e entusiásticos admiradores [...] Schöenberg dá-se
claramente conta de que a liberdade sem a qual a arte sufoca nunca é absoluta. Cada
época recebe seu quinhão dela e o gênio mais poderoso não pode ir mais além. Mas
essa medida deve esgotar-se por inteiro cada vez, e o será sempre. A parelha indócil
pode escoicear quanto quiser. Também, Schöenberg se esforça para esgotar essa
liberdade, e nesse caminho da “necessidade interior” já descobriu os tesouros da
“Beleza Nova”. Sua música faz-nos penetrar num reino novo onde as emoções já não
são somente auditivas, mas, sobretudo, interiores. Aí começa a “música futura”.
(KANDINSKY, 1990, p.p. 48, 49)

Kandinsky reconhecia no trabalho de Schöenberg muitos dos conceitos explorados por


ele até então como, por exemplo, o princípio da necessidade interior. Ambos corresponderam-
se durante muito tempo, explorando ainda mais esses pontos em comum. Além da intensa
troca de conhecimentos e experiências, Schöenberg também expôs com o grupo
expressionista que Kandinsky liderava, denominado “Der Blaue Reiter” (Cavaleiro Azul), do
qual artistas como A. Jawlensky (1867-1941), A. Kubin (1877-1959), A. Macke (1887-1914),
F. Marc e Paul Klee eram membros.

O grupo surgiu logo após Kandinsky e Marc afastarem-se da NKVM. O motivo do


rompimento desses autores com a associação foi a rejeição da Composição V (Figura 15) pelo
júri da terceira exposição, apesar de eles já haverem previsto o fato. Conforme mencionado
anteriormente, o grupo não acompanhava a evolução rumo ao espiritual. Dessa forma,

 
  36  

começaram a trabalhar no primeiro almanaque do Der Blaue Reiter antes mesmo da decisão
final de retirarem-se da NKVM.

Figura 15: Composição V, 1911 – W. Kandinsky

Fonte: joanaemarta.no.sapo.pt/telas_kandinsky_set.htm, acesso em: 14.dez.2010

O expressionismo, a priori, é o processo inverso do impressionismo. O movimento


ocorre do interior do artista/sujeito para o exterior; o sujeito imprime no objeto, ao contrário
do impressionismo, onde estão em pauta a sensibilidade do artista e as impressões
provenientes da realidade (objeto). Todavia, mesmo os movimentos artísticos considerados
expressionistas são distintos entre si.

As obras do cubismo, por exemplo, caracterizam-se como a expressão do autor e toda


a sua subjetividade, por meio da decomposição da realidade/objeto em formas geométricas.
No cubismo, permanece uma ligação referencial com a realidade (objeto); os signos oriundos
desse movimento artístico podem significar de maneira denotativa (mesmo com o objeto
retratado decomposto em formas geométricas, a presença da ligação referencial com a
realidade/objeto continua presente); e conotativa (significado subjetivo de cada espectador, da
reconstrução da realidade/objeto em formas geométricas). Já o expressionismo abstrato de
Kandinsky não possui uma ligação referencial com o objeto (figurativismo); a expressão,

 
  37  

segundo o autor, apresenta o máximo da sua sonoridade interior quando está livre desse
figurativismo ou de qualquer ligação referencial com a realidade como objeto.

O grupo Der Blaue Reiter potencializava o caminho que Kandinsky vinha traçando
com a arte abstrata e o distanciamento do cerne materialista da sociedade. O nome do grupo,
apesar de despretensioso, simbolizava muitos dos conceitos explorados pelo autor:

[...] para Kandinsky, a cor azul continuava a ser, por um lado, a cor celeste por
excelência, portanto, a cor espiritual, tal como para Marc, por outro, o tema do
cavaleiro [...] estava já presente sob diversas variantes na obra de Kandinsky e definia
a transformação do príncipe-encantado no cavaleiro, combatendo por uma nova
estética. São Jorge, que aparecia frequentemente no almanaque, retoma este motivo
no sentido cristão, como provam as inúmeras pinturas sobre vidro de Kandinsky. O
combate contra o dragão é uma imagem da vitória do espírito sobre a visão
materialista do mundo, uma esperança expressa em diversas formas no almanaque.
(DÜCHTING, 2007, p. 42)

Tanto os espectadores, quanto os críticos, inclusive os que eram favoráveis a


Kandinsky, encontraram dificuldades em acompanhar o pensamento do grupo durante a
primeira exposição. As obras expostas eram bem distintas em relação a estilos (DÜCHTING,
2007). Todas eram provenientes de diferentes artistas e não havia uma relação materialista
entre elas. Nelas estavam contidas a expressão de cada artista, a sonoridade interior que
atendia única e exclusivamente ao princípio da necessidade interior.

Figura 16: Esboço definitivo para a capa do almanaque Der Blaue Reiter, 1911

W. Kandinsky | Fonte: DÜCHTING (2007, p. 26)

 
  38  

Figura 17: Der Blaue Reiter, 1911/1912 (Xilogravura) – W. Kandinsky

Fonte: DÜCHTING (2007, p. 37)

“Do Espiritual na Arte” foi lançado antes, praticamente contemporâneo à primeira


exposição do grupo e profetizava a mudança rumo ao espiritual.

[...] Meu livro Do Espiritual na arte, a exemplo de O cavaleiro Azul, tinha por
finalidade, sobretudo, despertar essa capacidade, que será absolutamente necessária
no futuro e possibilitará experiências infinitas de viver o Espiritual nas coisas
materiais e abstratas. O desejo de fazer surgir essa capacidade, fonte de tal felicidade,
entre os homens que ainda não a possuíam era o objetivo essencial das duas
publicações. (KANDINSKY, 1991, p. 104)

O livro “Do espiritual na Arte” é constantemente interpretado de maneira equivocada.


Alguns atribuem a palavra espiritual à mente do sujeito envolvido como espectador ou criador
da mensagem artística, em um sentido restrito à cognição. Na citação abaixo, Kandinsky
comenta sobre o livro “Do Espiritual na Arte” e Rückblicke” (Recordações – Olhar no
passado).

... Os dois livros foram e são freqüentemente mal compreendidos. Tomam-nos por
“manifestos” e seus autores são catalogados entre os artistas [“acidentados”] que se
extraviaram no trabalho cerebral e na teoria. Nada estava mais longe de mim do que
apelar para a razão, para o cérebro. Essa tarefa teria sido, hoje, ainda prematura, e
representará para os artistas o objetivo (=não) próximo, importante e inelutável, na
evolução ulterior da arte. Para o espírito que se fortaleceu e se enraizou solidamente,
nada pode ou poderá ser mais perigoso, portanto, nem mesmo o trabalho cerebral, tão
temido na arte. (KANDINSKY, 1991, p. 104)

 
  39  

Kandinsky se interessava muito por assuntos ligados à espiritualidade. Para o autor,


todo espírito tem fome de arte e apenas uma arte criada de maneira autêntica é capaz de suprir
a fome do espírito. Muitas obras de arte seguem apenas a tendência do mercado, do material,
do estilo de seu tempo e outros caminhos que as tornam “vazias”.

À medida que o homem se desenvolve e se completa, aumenta o círculo de


propriedades que ele aprende a reconhecer como próprio dos seres e das coisas.
Coisas e seres adquirem uma significação que se resolve, finalmente, em ressonância
interior. (KANDINSKY, 1990, p. 64)

A abordagem espiritual do tema está presente também na descrição de Kandinsky


sobre a percepção da cor. Para o autor, quanto mais o indivíduo é evoluído espiritualmente,
mais sensível aos efeitos psíquicos da cor ele será.

Quanto mais cultivado é o espírito sobre o qual ela se exerce, mais profunda é a
emoção que essa ação elementar provoca na alma. Ela é reforçada, nesse caso, por
uma segunda ação psíquica. A cor provoca, portanto, uma vibração psíquica. E seu
efeito físico superficial é apenas, em suma, o caminho que lhe serve para atingir a
alma. Se essa segunda é realmente uma ação direta, conforme é licito supor pelo que
se acaba de expor, ou se, pelo contrário, só é obtida por associação, é difícil decidir.
Estando a alma estreitamente ligada ao corpo, uma emoção qualquer sempre pode,
por associação, provocar nele outra que lhe corresponda. Por exemplo, como a chama
é vermelha, o vermelho pode desencadear uma vibração interior semelhante à da
chama. O vermelho quente tem uma ação excitante. Sem dúvida, porque se assemelha
ao sangue, a impressão que ele produz pode penosa, até dolorosa. A cor, neste caso,
desperta a lembrança de outro agente físico que exerce sobre a alma uma ação penosa.
(KANDINSKY, 1990, p. 64)

No período de 1897 a 1914, Kandinsky manteve contato direto com autores e


pesquisadores de ciências ocultas como Teosofia e Antroposofia. Não por acaso, esse período
é contemporâneo ao ínicio de sua carreira artística, contemporâneo ao caminho da abstração e
à produção do livro “Do Espiritual na Arte”. Essas ciências procuravam reaproximar o
homem do mundo espiritual. Nesse período, pode-se destacar autores como: Helena
Blavatsky (1831-1891), fundadora da Sociedade Teosófica; Annie Besant (1847-1873)
e Charles Webster Leadbeater (1847-1934), autores do livro Formas de Pensamento, que foi
uma das influências para Kandinsky e, por fim, Rudolf Steiner (1861-1925), fundador da
Sociedade Antroposófica. Steiner, um dos principais pesquisadores sobre Goethe,
desenvolveu inúmeras atividades como escritor e conferencista, abordando assuntos
cognitivos, filosóficos e literários, tornou-se membro da Sociedade Teosófica de Helena
Blavatsky e, mais tarde, fundou a Sociedade Antroposófica. O trabalho de Steiner deixou
inúmeras contribuições no campo da pedagogia, da arte, da espiritualidade, dentre outros,
sempre distanciando-se do antropocentrismo e do ceticismo, consequências dos avanços

 
  40  

científicos da época. No livro “Do Espiritual na Arte”, Kandinsky descreve o caminho a ser
percorrido pela "Nova Arte”, discursa sobre o cenário contemporâneo ao livro, a mudança
para o Rumo Espiritual, o Conceito da Pirâmide, o Príncipio da Necessidade Interior e sobre
elementos imagéticos, sonoros e verbais, como cores, formas, sons e palavras; cuja
sonoridade interior vibra a alma do espectador. “A cor [forma/som/palavra] é a tecla5. O olho
é o martelo. A alma é o piano de inúmeras cordas. Quanto ao artista é a mão que, com a ajuda
desta ou daquela tecla, obtém da alma a vibração certa”. (KANDINSKY, 1990, p. 66). No
decorrer da pesquisa, o princípio da necessidade interior será melhor abordado.

Não só a sinestesia e a múltipla vivência nos campos imagético, sonoro e verbal,


apontadas no decorrer da vida de Kandinsky, principalmente na infância, com influências de
contos e fábulas alemãs que estimularam seu sistema cognitivo, sua imaginação e criação,
mas também todas as experiências relacionadas à espiritualidade e às ciências ocultas foram
imprescindíveis para a ruptura da relação mimética que a arte materialista costumava
apresentar. Toda essa multidisciplinaridade colaborou com a compreensão da arte como seu
próprio universo e da sonoridade interior comum nos diferentes tipos de obra de arte, seja ela
visual, sonora ou verbal. A partir do momento em que a obra de arte não apresenta uma
relação figurativa, sua sonoridade interior vibra muito mais alto na alma do espectador.

Kandinsky acreditava que a sociedade, em geral, necessitava de uma arte que


proporcionasse mais contato com o espiritual e somente a arte pura, resultado da expressão do
artista e livre do figurativismo, seria capaz de fazê-lo.

                                                                                                               
5
No livro “Do Espiritual na Arte”, a primeira explicação sobre o princípio da necessidade interior define a cor
como tecla. (KANDINSKY, 1990, p. 66). Porém, essa analogia pode ser feita com todos os elementos citados
acima (cor, forma, som e palavra).

 
  41  

3 “Do Espiritual na Arte”

“Do Espiritual na Arte” apresenta os principais conceitos explorados por Kandinsky


em seu processo de criação e abstração. O autor expõe seu pensamento em relação à arte em
geral, à arte moderna e à sociedade. O livro é organizado em três partes, de maneira
progressiva: Generalidades, Pintura e Conclusões. Em Generalidades, o autor introduz o leitor
ao assunto, expõe o conceito da Pirâmide Espiritual e seu constante movimento rumo ao
cume, mesmo que, em alguns períodos, seja quase imperceptível, também faz reflexões sobre
a arte e a sociedade; argumenta que o homem deve voltar-se novamente ao lado espiritual,
afastando-se do ceticismo e do antropocentrismo provenientes dos avanços científicos e
tecnológicos. Em “Pintura”, Kandinsky expõe o princípio da necessidade interior e a
sonoridade interior, apresenta reflexões sobre a linguagem das cores e das formas
(simbolismo, características e analogia entre cores e sons), expõe o conceito de Arte
Monumental, no qual todas as artes e seus elementos característicos (palavras, cores, formas,
sons, etc.) se relacionam em uma única composição, levando em consideração a sonoridade
interior desses elementos, e encerra o livro concentrando-se na relação entre o artista e a sua
criação.

Analisar-se-á, a seguir, os principais conceitos concernentes ao objeto de pesquisa,


explorados no livro “Do Espiritual na Arte”..

3.1 Rumo ao espiritual

No período de desenvolvimento e de publicação do livro “Do Espiritual na Arte”, o


materialismo proveniente das novidades tecnológicas conquistava cada vez mais notoriedade,
contribuindo para que a sociedade se afastasse cada vez mais de assuntos relacionados à
espiritualidade.

Para Kandinsky, essa tendência apenas freava o constante movimento da pirâmide


espiritual. Kandinsky elaborou essa pirâmide como um esquema representativo da vida
espiritual, no qual ele aponta os diferentes níveis de evolução, na arte e na sociedade em
geral.
 
  42  

A Pirâmidade Espiritual é composta de partes desiguais, uma menor e mais aguda no


cume e duas partes mais largas e espaçosas próximas à base. Metaforicamente, Kandinsky
aponta que, no topo da pirâmide, muitas vezes, há lugar apenas para um indivíduo, chamado
de visionário ou profeta, o qual é questionado por todos os outros situados na parte inferior da
pirâmide, ao passo que na base, demasiadamente espaçosa, lugar onde o nível de evolução
espiritual é menor, há espaço livre para o senso comum. Kandinsky comenta sobre os poucos
que atingem o ápice da pirâmide:

Por sua vez, na ponta extrema, não há mais do que um homem sozinho. Sua visão
iguala sua infinita tristeza. E os que estão perto dele não o compreendem. Em sua
indignação, tratam-no de impostor, de semilouco. Toda a sua vida, solitário, muito
longe e acima dos outros, Beethoven também foi alvo dos ultrajes destes
(KANDINSKY, 1990, p. 36, grifo nosso)

Para Kandinsky, o movimento da pirâmide, mesmo sendo ofuscado em alguns


momentos e tornando-se quase imperceptível, está sempre ativo. A parte mais próxima da
base caminha em direção ao ápice. A arte e a vida espiritual caminham sempre para o alto e
para a frente (KANDINSKY, 1990). A arte alimenta o movimento da vida espiritual.

Segundo o autor, é possível encontrar artistas em todas as partes da pirâmide, porém


somente aqueles que visualizam além dos limites de onde se encontram, ajudam a impulsionar
esse movimento. Suas criações, como artista, motivam e direcionam aqueles que estão na base
da pirâmide:

Então sempre surge um homem, um de nós, em tudo nosso semelhante, mas que
possui uma força de “visão” misteriosamente infudida nele... Com frequência, já
nada do seu “eu” corporal subsiste na terra. Tenta-se, então, reproduzir por todos os
meios e em tamanho maior que o natural, no mármore, no bronze, na pedra, essa
forma corporal, como se ela pudesse ter importância em tais mártires, divinos
servidores dos homens, que sempre desprezaram a matéria e serviram apenas ao
espírito. Mas esse “mármore” é o testemunho visível de que homens cada vez mais
numerosos chegaram ao ponto atingido pelo primeiro deles, aquele que agora se
glorifica. (KANDINSKY, 1990, p. 31)

Kandinsky faz algumas reflexões sobre o cenário religioso, científico e moral dessa
época e demonstra que os “apoios exteriores” da sociedade tornaram-se cada vez mais frágeis,
estimulando o momento de mudança rumo ao espiritual. Os primeiros campos afetados foram
a literatura, a música e a pintura. Kandinsky cita o exemplo de Maurice Polydore Marie
Bernard Maeterlinck (1862-1949) na literatura. “Talvez Maeterlinck, esse vidente, seja um
dos primeiros profetas, um dos primeiros araustos desse desmoronamento” (KANDINSKY,
1990, p. 46). A arte de Maeterlinck, segundo Kandinsky, é extremamente simbólica e
 
  43  

caminha no campo da representação e da abstração. Detalhes materiais em suas cenas são


recursos simbólicos que procuram alcançar um som interior. Seu grande recurso é a palavra,
que, em sua obra, possui dois sentidos: um sentido imediato e um sentido interior. No sentido
imediato, tem-se a significação literal e no sentido interior, tem-se a vibração da sonoridade
da palavra.

Maurice Maeterlinck também mantinha uma forte ligação com o espiritual. Era
filósofo, escritor e poeta e escreveu obras sobre a vida social, o destino da humanidade, o
mistério da natureza, entre outras.

Nesta análise sumaríssima de seu teatro, ter-se-á reconhecido que a estética de seu
teatro, ter-se-á reconhecido que a estética de Maeterlinck não deixava de ter
prolongamentos metafísicos e morais: sua intenção não era distrair o espectador, nem
comovê-lo ou instruí-lo, mas elevá-lo àquelas alturas vertiginosas onde a alma pode
expandir-se livremente. Em seu próprio teatro – e a evolução da obra haveria sempre
de confirmá-lo – Maeterlinck era antes de tudo um moralista e, com tôda solenidade
antiga desta palavra, um Sábio. (BUISSON, 1962, vida e obra, p. 41)

Em sua obra “O pássaro azul” (L’Oiseau Bleu), por exemplo, Maurice Maeterlinck
explorou a mágica do universo infantil, contrapondo a característica de puerilidade a
reflexões sobre a vida e o homem em um cenário repleto de quimeras, filosofia e “sabedoria
nimbada de poesia” (BUISSON, 1962, p. 39). Maeterlinck explorava os dois sentidos (literal
e interior) por meio de todos os recursos simbólicos presentes em seu texto.

Ai de nós: o pássaro azul da felicidade só existe para lá dos limites dêste mundo
perecível, mas aqueles que têm coração puro, jamais hão de procurá-lo inutilmente,
pois nêles a vida sentimental e a imaginativa se enriquecerão e se purificarão na
viagem através das províncias do país dos sonhos. (WIRSÉN, 1962, p. 31)

Alguns recortes da peça que ilustram esse universo de poesia e fantasia são descritos
abaixo:

Fada: A alma do açúcar não é mais interessante do que a alma da pimenta. Aqui têm
vocês o que eu trouxe para ajudá-los na busca do Pássaro Azul. Sei perfeitamente que
o Anel-que-torna-a-gente-invisível ou o tapête-mágico seriam mais úteis. Mas perdi a
chave do armário onde estão guardados. Ah, ia-me esquecendo. (Mostra o Diamante.)
Se você pegar nêle assim, está vendo? E der outra voltinha, tornará a ver o passado.
Mais outra voltinha, e verá o Futuro. É curioso, prático, e não faz barulho.
(MAETERLINCK, 1962, p. 74)

Segundo quadro: No Palácio da Fada. Magnífico vestíbulo, no palácio da Fada


Beriluna. Colunas de mármore claro, com capitéis de ouro e prata, escadarias,
pórticos, balaustradas, etc.[...] Entram pelo fundo, à direita, suntuosamente vestidos, a
Gata, o açúcar e o Fogo. Saem de um aposento do qual brotam raios de luz: o quarto-
de-vestir da Fada. A gata recobriu uma gaze leve a mala de sêda preta: o Açúcar
envolveu-se num traje de sêda, metade branco metade azul-claro; o Fogo tem à
cabeça plumas multicores e usa longo manto carmesim, forrado de ouro. Atravessam

 
  44  

a sala ponta a ponta, e chegam ao primeiro plano, à direita, onde a Gata os reúne sob
o pórtico. (MAETERLINCK, 1962, p. 87)

Figura 18: L’Oiseau Bleu – Touchagues

Fonte: MAETERLINCK (1962, p. 55)

Além do exemplo de Maurice Maeteterlinck na literatura, Kandinsky cita


compositores musicais como: Richard Wagner (1813-1883), Claude Debussy (1862-1918) e
Arnold Schöenberg (1874-1951) como exemplos de artistas que impulsionaram essa mudança
rumo ao espiritual. Debussy, por exemplo, considerado um músico impressionista,
transformava impressões da natureza em imagens espirituais sob formas musicais e não se
limitava à nota captada pelo ouvido, mas procurava utilizar-se do valor interior dessa
impressão. (KANDINSKY, 1990)

No campo da pintura, o autor cita Cézanne, Picasso (Figura 19) e Matisse (Figura 20).
Paul Cézanne foi o primeiro desses visionários;, rompeu com a relação mimética com a
natureza. A partir dele, o objeto não era mais o protagonista, mas sim a sonoridade interior da
arte. Mesmo que o objeto estivesse representado na tela, as formas e as cores apenas serviam
 
  45  

de recurso para a vibração da sonoridade interior. Matisse utilizava-se do objeto apenas como
ponto de partida; seu principal elemento de linguagem era a cor. Picasso, por sua vez, também
rompeu com essa relação da realidade como objeto e explorou a sonoridade interior
fragmentando a forma, porém, mantendo a aparência material (KANDINSKY, 1990). Em
comum, os três artistas distanciavam-se do objeto figurativo como protagonista e, cada um, à
sua maneira, explorava a sonoridade interior e impulsionava o movimento da Pirâmide
Espiritual.

Figura 19: Les Demoiselles D’Avignon, 1907 – P. Picasso

Fonte: http://www.niteroiartes.com.br/cursos/la_e_ca/trecho2.html

Acesso em: 16.jun.2011

 
  46  

Figura 20: A Dança, 1909 – H. Matisse

Fonte: http://www.niteroiartes.com.br/cursos/la_e_ca/trecho1.html

Acesso em: 16.jun.2011

3.2 Princípio da necessidade interior

Para introduzir o princípio da necessidade interior, Kandinsky utiliza-se da cor e


promove reflexões e apontamentos sobre as características psíquicas desse “sonoro”6
elemento visual. As cores sempre inspiraram muitas pesquisas teóricas e empíricas. Esse
elemento proporciona sensações plurais nos seus espectadores, fato que evidencia a ilusão do
perceber das cores e a sua complexidade. Não são apenas os fatores idiossincráticos de cada
espectador que produzem essa discrepância entre o perceber de duas pessoas diante da mesma
cor. Essas ilusões são oriundas dos conceitos sensoriais do olho humano, das propriedades
físicas da luz, dos conhecimentos, das experiências, dos aspectos culturais, da percepção de
elementos presentes na cena proveniente de outros sentidos, das explicações verbais e de
diversos outros fatores.

                                                                                                               
6
A palavra sonoro, entre aspas, aplica-se, aqui, com o objetivo de enfatizar a importância e a complexidade
desse elemento de linguagem, evidenciar a analogia entre as cores e as propriedades inerentes ao universo
musical e destacar a questão da sonoridade interior.

 
  47  

A significação das cores, muitas vezes, é feita por associação. O vermelho nos oferece
a sensação de calor por ser a cor das chamas do fogo. Esse calor atrai e excita, mas também
alerta, pois provoca tensão, associa-se à dor, à destruição, ao vermelho do sangue e remete ao
perigo. O azul traz calma, profundidade semelhante ao mar e céu infinitos e paz, entretanto,
pode provocar um perigoso distanciamento, uma tristeza intensa. O verde é o equilíbrio das
cores e da natureza; é uma paz mais ativa do que a paz transmitida pelo azul, pois recebe
influências do amarelo proveniente do sol e também representa o calor do amarelo afastado e
neutralizado pela calma do azul (KANDINSKY, 1990). Kandinsky concorda que o
simbolismo das cores, com as experiências provenientes da natureza, é notável e estabelece
um primeiro contato com o espectador, entretanto, argumenta que não é possível significar
todas as cores por meio apenas de associações e afirma que isso não explica seu alcance à
alma do espectador, todos os seus efeitos e sensações.

Um argumento utilizado pelo autor é o fato de ser possível ver o efeito da terapia de
luzes vermelhas, por meio da tonificação, e das luzes azuis, por meio da diminuição do ritmo
vital em animais e plantas (KANDINSKY, 1990). Para o autor, isso evidencia que não é
apenas uma associação com experiências vividas, retidas no sistema cognitivo de cada
indivíduo que explicaria o significado, as diversas sensações e os efeitos das cores no ser
humano.

Sobre uma sensibilidade grosseira, a cor tem apenas efeitos superficiais que,
desaparecida a excitação, logo deixam de existir. Por mais elementares que sejam
esses efeitos, são variados [...] Quanto mais cultivado é o espírito sobre o qual ela se
exerce, mais profunda é a emoção que essa ação elementar provoca na alma. Ela é
reforçada, nesse caso, por uma segunda ação psíquica. A cor provoca, portanto, uma
vibração psíquica. E seu efeito físico superficial é apenas, em suma, o caminho que
lhe serve para atingir a alma [...] Um homem cuja sensibilidade seja tão apurada é
como esses bons violinos em que já se tocou muito e que, ao menor toque, vibram
com todas as suas fibras (KANDINSKY, 1990, p.p. 64, 65)

Para o autor, o cerne da discussão encontra-se na reação que a cor exerce na alma e
não somente nas associações com experiências naturais. Não há como definir esse elemento
capaz de “tocar” a alma do espectador apenas com tais explicações.

Goethe, em suas pesquisas sobre as cores, foi de encontro ao estudo de caráter


positivista de Newton. Apesar de alguns equívocos, já comentados anteriormente, sua
pesquisa teve como foco o perceber das cores de uma maneira pioneira, interagindo com a
natureza e levando em consideração o ser humano, a alma humana. Sua pesquisa foi
fundamentada, principalmente, pela observação do fenômeno cor, interagindo com o ser
humano e a natureza. Seu estudo, repleto de poesia e valiosas observações, inspiraram
 
  48  

Kandinsky e serviram de apoio para suas próprias reflexões, mais voltadas à vibração sonora
na alma.

Em seu livro “A Doutrina das Cores”, Goethe critica a comparação da cor e do som,
embora afirme que “ambos remetam a uma fórmula superior”:

Cor e som de maneira alguma podem ser comparados, embora ambos remetam a
uma fórmula superior, a partir da qual é possível deduzir cada um deles. Ambos são
como dois rios que nascem na mesma montanha, mas devido a circunstâncias diversas
correm sobre regiões opostas, de modo que em todo o percurso não há nenhum ponto
em que possam ser comparados (GOETHE, 1993, p. 134)

Devido à forte ligação espiritual com a arte, para Goethe, a fórmula superior a que se
refere, poderia apresentar semelhanças com o princípio da necessidade interior desenvolvido
por Kandinsky, pois ambos os elementos dos códigos pictórico e musical, a cor e o som,
entram em contato com a alma do espectador. Entretanto, Goethe aborda o tema cor de uma
maneira mais naturalista e separa completamente a percepção e a utilização das cores e dos
sons quando afirma que eles percorrem regiões opostas e não há nenhuma semelhança no viés
da percepção de ambos. O que permite uma outra leitura: que essa fórmula superior, talvez se
refira apenas à tentativa de representação desses objetos por meio da linguagem, já que
nenhum dos dois é tangível e aproximam-se apenas por experiências.

Jamais se reflete o bastante sobre o fato de que a linguagem é propriamente apenas


simbólica, figurada, e de que jamais exprime diretamente os objetos, mas somente por
reflexos. Tal é especialmente o caso quando se trata de seres que apenas se
aproximam da experiência e que podem ser chamados antes de atividades que objetos,
estando no reino da doutrina da natureza em contínuo movimento. Não podem ser
fixados, embora devam ser descritos; é por isso que se tentam todos os tipos de
fórmulas, para se aproximar deles ao menos alegoricamente. (GOETHE, 1993, p.134)

Kandinsky, apesar de admitir diferenças na música e na pintura, vai de encontro a essa


afirmação. Além de comparar elementos de ambas as artes, os compara também com formas,
palavras e texturas (elementos característicos de percepções por meio de sentidos distintos).
Durante toda a sua biografia e obra, sobram evidências dessa intersensibilidade:

... será preciso admitir que o olho está em estreita relação não só com o paladar mas
também com os outros sentidos, o que, de resto acha-se confirmado pela experiência.
Há cores que parecem rugosas e ferem a vista. Outras, pelo contrario, dão a impressão
de lisas, de aveludadas. Sente-se vontade de acariciá-las [...] Fala-se correntemente do
“perfurme das cores” ou de sua sonoridade. E não há quem possa descortinar uma
semelhança entre o amarelo-vivo e as notas baixas do piano ou entre a voz do soprano
e a laca vermelho escura, tanto essa sonoridade é evidente (KANDINSKY, 1990, p.
65)

No livro “Do Espiritual na Arte”, Kandinsky (1990) afirma que Goethe aproximou a
música e a pintura, quando escreveu que a pintura precisava buscar um “baixo contínuo”

 
  49  

(GOETHE apud KANDINSKY, 1990). Para Kandinsky, essa afirmação ilustrava bem o
futuro da pintura, onde seus próprios meios deveriam ser desenvolvidos a ponto de se tornar
uma arte no sentido abstrato, capaz de realizar composições pictóricas puras.

O princípio da necessidade interior resume-se à vibração na alma humana resultante


do toque em seu ponto mais sensível. A arte é a responsável por essa ponte com o espiritual.
Segundo Kandinsky, “A cor [podendo-se substituir por forma, som ou palavra] é a tecla. O
olho é o martelo. A alma é o piano de inúmeras cordas. Quanto ao artista é a mão que, com a
ajuda desta ou daquela tecla, obtém da alma a vibração certa”. (KANDINSKY, 1990, p. 66)

O artista se expressa por meio de um determinado elemento. O espectador recebe a


mensagem do artista (sonoridade interior e forma exterior da composição) por meio do olho
(o martelo). Nessa etapa, o espectador tenta decodificar, significar e perceber a forma
exterior. Entram em cena a subjetividade, características sensoriais, aspectos culturais e
diversos outros fatores que compõem seus valores denotativos e conotativos, todo o seu
sistema cognitivo e psicológico. Após essa primeira etapa, a sonoridade interior se espalha
pela alma do espectador, vibrando-a e alcançando diversas frequências, em melodia ou
harmonia (notas isoladas ou em bloco), dissonantes ou consonantes, estáticas ou rítmicas.
Nesse processo “acústico-espiritual”7, o artista, ao expressar-se, deve procurar amplificar a
sonoridade interior da sua expressão e da própria forma escolhida. É necessário haver sintonia
entre a sua expressão e a forma escolhida para que o princípio da necessidade interior seja
eficaz e produza vibrações intensas na alma do espectador.

O processo acústico-espiritual deve orientar-se pelo princípio do contato eficaz com a


alma humana, denominado por Kandinsky como princípio da necessidade interior.
“Compreende-se que a delimitação da forma pelo exterior só possa ser totalmente adaptada à
sua destinação quando ela manifesta da maneira mais expressiva o seu conteúdo interior.”
(KANDINSKY, 1990, p. 72)

                                                                                                               
7
Expressão criada pelo autor da presente dissertação para designar esse processo de propagação do “som” na
alma do espectador; “som” esse proveniente de elementos do código visual, sonoro e verbal.

 
  50  

3.3 Sonoridade interior

Kandinsky comenta sobre a questão da sonoridade interior, principalmente no capítulo


que disserta sobre a Linguagem das Formas e das Cores. Para o autor, independentemente do
meio, seja ele visual, sonoro ou verbal, o elemento utilizado pode possuir um sentido literal,
mais imediato e uma sonoridade interior, ainda mais potencializada quando há a ruptura com
o objeto figurativo, como especificado no decorrer do capítulo.

O autor traz um exemplo bem significativo, no qual mistura visual, sonoro e verbal.
Kandinsky comenta sobre a sonoridade interior de um elemento verbal (palavra), por meio
oral, que simboliza a cor vermelha.

[...] O vermelho que não vemos, mas que concebemos da maneira mais abstrata,
desperta, não obstante, uma representação íntima, ao mesmo tempo precisa e
imprecisa, de uma sonoridade interior. Esse vermelho que ressoa em nós quando
ouvimos a palavra vermelho mantém-se vago e com o que indeciso entre o quente e o
frio. O pensamento concebe-o como produto de imperceptíveis graduações do tom
vermelho. É por isso que essa visão totalmente interior pode ser qualificada de
imprecisa. Mas ela é, ao mesmo tempo, precisa, porque o som interior permanece
puro, despojado, sem tendências acidentais nem para o quente, nem para o frio,
tendências que culminariam na percepção de detalhes. (KANDINSKY, 1990, p. 70)

Para o autor, essa sonoridade interior é própria de cada elemento. O artista pode
potencializar ou abafar essa sonoridade, de acordo com a sua criação, composição e mistura
com outros elementos. Para Kandinsky, cada elemento de uma composição é um ser
espiritual, distinto dos outros e tem suas próprias características, as quais podem ou não ser
sublinhadas quando associadas a outros elementos. (KANDINSKY, 1990)

É importante ressaltar aqui a relação entre alguns termos utilizados na presente


pesquisa (sonoro, visual, verbal, musical, pictórico e literário). A Figura 21, a seguir, propõe
um esquema de categorização desses termos, de acordo com a forma exterior.

 
  51  

Figura 21 – Esquema de categorias referentes à forma exterior.8

Verbal: Palavras transmitidas por meio sonoro (oral) ou visual (texto). A Literatura,
por exemplo, utiliza-se do código verbal, transmitido por meio sonoro ou visual.

Sonoro: Compreende sons com frequências regulares e estáveis, de diferentes


durações rítmicas e de diferentes alturas melódico-harmônicas, sons irregulares, instáveis e
inconstantes (denominados ruídos) e o silêncio (WISNIK, 1989). A música caracteriza-se
como “uma longa conversa entre o som [...] e o ruído. Som e ruído não se opõem
absolutamente na natureza: trata-se de um continuum, uma passagem [...]” (WISNIK, 1989, p.
27). Sintetizando, a música é a ordenação dos elementos do código sonoro (som, ruído e
silêncio) por meio de uma linguagem. (WISNIK, 1989).

Visual: Elementos visuais como cores, formas geométricas e abstratas (ponto, linhas e
planos). A pintura, a exemplo da música em relação aos elementos sonoros, ordena os
elementos do código visual.

                                                                                                               
8
Esse quadro, proposto pelo autor dessa dissertação, tem por objetivo apresentar o contexto intercódigo, de
acordo com a forma exterior de seus elementos e o meio que lhe são próprios. Nessa figura, foram incluídos os
termos apresentados com maior frequência no decorrer do presente texto. Entretanto, outras formas de
linguagem podem ser incluídas como, por exemplo, a Fotografia e até mesmo linguagens multimídiaticas como
o Teatro e o Cinema.

 
  52  

No presente texto, serão utilizados, prioritariamente, os termos visual, sonoro e verbal,


pois esses abrangem os outros. Entretanto, pontualmente, serão utilizados termos mais
específicos como “musical” e “pictórico”, em situações nas quais suas aplicações sejam mais
significativas. Essa categorização somente é possível em relação à forma exterior. Ao levar
em consideração o conteúdo interior (sonoridade interior), todos esses elementos fazem parte
de um mesmo universo.

A palavra forma, em seu caráter exterior, significa “delimitação de uma superfície por
outra superfície” (KANDINSKY, 1990, p. 71). Kandinsky afirma que “toda coisa exterior
também encerra, necessariamente, um elemento interior” (KANDINSKY, 1990, p. 71). Para o
autor, “cada forma também possui um conteúdo interior. A forma é a manifestação exterior
desse conteúdo” (KANDINSKY, 1990, p.p. 71, 72), ou seja, da sonoridade interior.

O termo “sonoridade interior” sugere a analogia com o universo sonoro. Não é


despretensiosamente que Kandinsky aplica esse termo; essa é a maneira mais eficaz de
relacionar o princípio da necessidade interior com outros códigos além do sonoro (sonoridade
interior da cor, da palavra, da forma e do som de uma nota musical). Kandinsky não procurou
estabelecer relações exatas e únicas entre esses elementos, pois, cada qual possui
características próprias. Contudo, o sentido interior está bem evidente na música (código
sonoro), pois a percepção e a significação do espectador de uma obra musical percorre o
caminho da abstração o tempo inteiro.

[...] As aproximações com a música são, a esse respeito, as mais ricas de


ensinamentos. A música é, há muitos séculos, a arte por excelência para exprimir a
vida espiritual do artista... Para o artista criador que quer e que deve exprimir seu
universo interior, a imitação, mesmo bem sucedida, das coisas da natureza não pode
ser um fim em si. E ele inveja a desenvoltura, a facilidade com que a arte mais
imaterial de todas, a música, alcança esse fim. Compreende-se que ele se volte para
essa arte e que se esforce, na dele, por descobrir procedimentos similares.
(KANDINSKY, 1990, p. 55)

O autor procura relacionar esse sentido interior da música, não tangível, com outras
artes e seus meios. Por exemplo, a sonoridade de um triângulo bem agudo pode ser muito
semelhante a de um amarelo claro e intenso, do timbre de um “trompete agudo” ou até de uma
“fanfarra estridente”:

 
  53  

[...] O amarelo tormenta o homem, espicaça-o e excita-o, impõe a ele como uma
coerção, importuna-o com uma espécie de insolência insuportável. Essa propriedade
do amarelo, que tende sempre para os tons mais claros, pode alcançar uma
intensidade insustentável para os olhos e para a alma. Nesse grau de potência, soa
como um trompete agudo, que fosse tocado cada vez mais forte, ou como uma
fanfarra estridente. (KANDINSKY, 1910, p. 86)

É difícil estabelecer uma correspondência específica entre tons cromáticos e musicais.


Essa ligação é relativa, como Kandinsky explica em uma nota de rodapé:

[...] A correspondência entre os tons da cor e da música só é relativa, naturalmente.


Assim como um violino pode produzir sonoridades variadas, suscetíveis de
corresponder a cores diferentes, da mesma forma, o amarelo pode exprimir-se em
nuanças diferentes, por meio de instrumentos diferentes. Nos paralelismos de que
tratamos aqui, pensamos, sobretudo, no tom médio da cor pura e, em música, no tom
médio, sem nenhuma de suas variações por vibrato, surdina, etc. (KANDINSKY,
1990, p. 86)

Outra questão fundamental ao presente capítulo, explorada no livro “Do Espiritual da


Arte”, é a extinção ou a preservação do objeto, para a amplificação da sonoridade interior.
Para o autor, o objeto também apresenta sonoridade. Ele pode ser um dos elementos que
substitui a variável correspondente à cor, à forma, ao som ou à palavra na fórmula do
princípio da necessidade interior. “Todo objeto (quer tenha sido diretamente criado pela
natureza ou produzido pela mão do homem) é um ser dotado de vida própria que engedra uma
multiplicidade de efeitos” (KANDINSKY, 1990, p. 75). Kandinsky considera essa questão
muito importante. Para o autor, a sonoridade interior do elemento objetivo tem valor: “Cada
palavra que é pronunciada (árvore, céu, homem) provoca uma vibração interior, e o mesmo
ocorre em cada objeto reproduzido em imagem” (KANDINSKY, 1990, p. 76). Extinguir esses
elementos seria “empobrecer nossos meios de expressão” (KANDINSKY, 1990, p. 76).

Para Kandinsky, a arte não tem regras inquebráveis, ela está bem distante de qualquer
discurso imperativo (KANDINSKY, 1990). Entretanto, com a vibração causada pelo
elemento abstrato, sem o aspecto figurativo (relação iconográfica, indicial ou simbólica da
realidade como objeto), o espectador é menos influenciado por aspectos cognitivos como, por
exemplo, as associações; supostamente, o som interior do próprio elemento mantém-se mais
forte nesse caso.

Qualquer forma abstrata faz ouvir uma nota particular na estrutura do quadro, e as
relações mútuas das formas criam tensões internas que são a origem do efeito
estético. No entanto, a obra de arte abstrata não se distingue radicalmente da obra de
arte figurativa. Nesta, também, não se trata de uma imitação servil, mas de uma
transposição. E a história mostra que a transposição estética não cessou de adquirir
maior importância, de modo que devia levar à pintura abstrata. Os impressionistas
também ressaltaram, inconscientemente, os valores absolutos da pintura, e os neo-
impressionistas deram um passo a mais estudando teoricamente as relações íntimas
que as cores mantém entre si. Em seguida, os cubistas se interessaram pelas formas e
 
  54  

pelos efeitos que elas podiam produzir independentemente de qualquer figuração. Os


expressionistas, enfim, submetem as cores e as formas a leis puramente pictóricas,
sem levar em conta a estrutura do objeto. O último passo devia ser dado pela pintura
abstrata, em que o artista se emancipa inteiramente do objeto. (KANDINSKY, 1996,
p. 220)

Para Kandinsky, a arte figurativa, quando é uma transposição e não somente uma
cópia da realidade, possui uma sonoridade maior, entretanto, com a ruptura total da relação
mimética, a sonoridade pura da composição é amplificada ainda mais, pois está livre de
influências do objeto. No trecho acima, ele descreve a transposição estética que outros
movimentos artísticos fizeram, o que contribuiu para que a obra de arte se emancipasse do
objeto figurativo, por meio da arte abstrata.

Kandinsky analisa a harmonia de uma composição em que o elemento objetivo (forma


exterior) e o elemento abstrato (sonoridade interior) estão presentes; isso é o que Kandinsky
chama de “Acorde Espiritual”. Esse acorde pode ou não ser sustentado harmonicamente por
dissonância ou assonância. Para exemplificar, Kandinsky utiliza o seguinte exemplo:

Consideramos uma composição romboidal obtida com a ajuda de certo número de


corpos humanos. Nossa sensibilidade a interroga. Ela tem vagamente a impressão de
que esses corpos talvez não sejam necessários. E pergunta-se se eles não poderiam ser
substituídos por outras formas orgânicas quaisquer, com a condição de lhes conservar
uma disposição que não ameaçasse alterar o Som Fundamental Interior do Conjunto.
Se isso é, como no presente caso, o som do objeto deixa de ser auxiliar do som do
elemento abstrato... o som indiferente do objeto enfraquece o do elemento abstrato...
Num caso semelhante, deve ser suficiente mudar o objeto, substituí-lo por um outro
que harmonize melhor com o som interior do elemento abstrato (pouco importa que
se trate de uma assonância ou de uma dissonância). (KANDINSKY, 1990, p.p. 74,
75)

Os termos assonância e dissonância são provenientes da música e da poesia. Na


música, utilizam-se os conceitos de dissonância e consonância para classificar a sensações
conseguintes de intervalos musicais. Intervalos que causam sensações de movimento e de
instabilidade são dissonantes e intervalos que provocam sensações de repouso e de
estabilidade são consonantes. Um intervalo caracteriza-se pela “distância que separa dois sons
afinados no campo das alturas” (WISNIK, 1989, p. 53) ou, em outras palavras, pela diferença
de altura entre duas notas musicais. O sistema ocidental de música, constituído por 12 notas
musicais, como citado anteriormente, possui diversos intervalos pré-estabelecidos: 1ª, 2ª, 3ª,
4ª, 5ª, 6ª, 7ª e 8ª (intervalos simples) e alguns outros, denominados intervalos compostos.

Para que seja possível identificar todos os intervalos, cada um deles ainda possui
algumas variações. Por exemplo, os intervalos simples de 2ª, 3ª, 6ª e 7ª podem ser ampliados
ou reduzidos, da seguinte maneira: diminuto (1 tom abaixo do maior), menor (1/2 tom abaixo

 
  55  

do maior), maior aumentado (1/2 tom acima do maior) e mais que aumentado (1 tom acima
do maior). Já os intervalos simples de 4ª, 5ª e 8ª podem ser ampliados ou reduzidos de
maneira distinta: diminuto (1/2 tom abaixo do justo), justo aumentado (1/2 tom acima do
justo) e mais que aumentado (1 tom acima do justo) (BIAGIONI et al., 2005). Os intervalos
musicais podem ser melódicos ou harmônicos e podem receber subclassificações como:
consonância perfeita, imperfeita, dissonância absoluta e condicional, utilizando regras de
enarmonia9 e de inversão de intervalos. O assunto “intervalos musicais” possui muito
conteúdo para ser aqui detalhado e, portanto, pretende-se apenas exemplificar ao leitor as
sensações dissonante e consonante, baseadas na percepção de intervalos musicais e que
Kandinsky aplicava na arte em geral. Eis algumas considerações sobre dissonância e
assonância, feitas pelo autor José Wisnik, onde ele aponta a relatividade desses termos:

Um intervalo de terça maior (como o que há entre as notas dó e mi) é dissonante


durante séculos, no contexto da primeira polifonia medieval, e torna-se plena
consonância na música tonal. Um grito pode ser um som habitual no pátio de uma
escola e um escândalo na sala de aula ou num concerto de música clássica. Uma
balada “brega” pode ser embaladora num baile popular e chocante ou exótica numa
festa burguesa (onde pode se tornar frisson chique/brega). Tocar um piano
desafinado pode ser uma experiência interessante no caso de um ragtime e inviável
em se tratando de uma sonata de Mozart. Um cluster (acorde formado pelo
aglomerado de notas juntas, que um pianista produz batendo o pulso, a mão ou todo
o braço no teclado) pode causar espanto num recital tradicional, sem deixar de ser
tedioso e rotinizado num concerto de vanguarda acadêmica. (WISNIK, 1989, p.29)

Quando se escuta um intervalo de oitava justa – a mesma nota musical, porém uma
oitava acima (frequência mais alta) – tem-se uma relação harmônica estável, o que resulta em
um intervalo consonante. Por exemplo, esse intervalo de oitava justa pode ser encontrado nas
duas primeiras notas da música “Over the rainbow” (Figura 5), de Harold Arlen (1905-1986),
Some - where (DÓ - DÓ). Um exemplo significativo de intervalo dissonante ocorre nas
primeiras notas da música “Fly me to the moon” (Figura 6), do compositor Bart Howard
(1915-2004) – Fly – me – to – the – moon (DÓ – SI – LÁ – SOL – FÁ). As duas primeiras
notas representam um intervalo melódico de 2ª menor; provocam uma sensação de
instabilidade que carece de equilíbrio. As notas seguintes surgem em uma escala descendente,
com intervalos melódicos de 2ª maior, que encontrarão repouso momentâneo depois da
sensação de instabilidade iniciada pelo primeiro intervalo melódico de 2ª menor, quando a
nota FÁ é prolongada e a relação com a tônica do acorde desse compasso (RÉ) se torna mais
evidente, como uma 3ª menor (RÉ – FÁ).
                                                                                                               
9
“Intervalos enarmônicos são aqueles que têm o mesmo som, mas são escritos de forma diferente.” (BIAGIONI
et al., 2005, p. 61). Exemplo: Lá – Mi = Sol x (dobrado sustenido) – Ré x (dobrado sustenido). Ambos são
intervalos de 5˚ justa e possuem exatamente o mesmo som (mesma freqüência).

 
  56  

Figura 22: Exemplo de intervalo melódico consonante.

Música: Over the rainbow -Harold Arlen (1905-1986)

Figura 23: Exemplo de intervalo melódico dissonante.

Música: Fly me to the moon – Bart Howard (1915-2004)

 
  57  

A segunda menor [dó-dó sustenido] é um intervalo estratégico: baseado na


relação 15/16, está perto dos menores intervalos relevantes para a
diferenciação auditiva. Como é produto da defasagem entre dois pulsos
muito próximos, quinze e dezesseis ciclos, a arritmia dissonante que ele
produz soa como um erro que quer ser corrigido por igualamento, uma
distorção que quer ser ajustada, uma diferença que quer ser reduzida, uma
tensão que quer ser resolvida. Daí que se consagre para ele a função da
sensível, isto é, a nota tensa que desliza no espaço de um semitom, (a
segunda menor) e encontra repouso. Ou, então, desliza meio tom e cria
conflito: ele é deslocador por excelência. A segunda menor põe em cena o
glissando, a atração, a sedução. (WISNIK, 1989, p.p. 58,59)

O termo assonância é utilizado na poesia para caracterizar a relação entre as rimas. Ela
ocorre quando há correspondência apenas entre as vogais tônicas – “satírico/espírito;
olhos/demora; tarde/arde” (SACCONI, 1994, p. 493) – já quando há correspondência perfeita
entre vogais e consoantes “fino/menino; lavada/caçada” (SACCONI, 1994, p. 493) tem-se a
rima chamada de consoante ou soante.

É possível que Kandinsky se referisse à dissonância, em um sentido próximo ao


musical, como a discrepância entre a sonoridade interior e a exterior (instabilidade e
movimento). Já o termo assonância parecia referir-se ao ritmo poético, à correspondência
perfeita da tônica – nesse caso, (assonância poética). Como não é especificado se ocorre a
variação de frequência, leva-se em consideração que a mesma é inalterada, portanto, ocorre
uma correspondência perfeita entre a sonoridade interior e a forma exterior. 10

Cada arte possui os meios e os elementos que lhe são próprios. Objetos, formas, cores,
palavras e notas musicais são exemplos de elementos utilizados nas diversas artes. Em todas
elas, há a possibilidade do contato eficaz com a alma humana. Esses elementos artísticos,
segundo Kandinsky, são seres espirituais e possuem uma sonoridade interior que pode ser
amplificada ou atenuada de acordo com a maneira que são empregados no processo de
criação. O artista deve expressar o conteúdo interior do elemento utilizado e da sua própria
alma. A sonoridade interior da obra é composta por um conjunto de sonoridades. Essa
composição pode ou não conter o elemento objetivo (figurativo). Também contém a

                                                                                                               
10
A relação proposta entre os conceitos de assonância poética e dissonância musical e assonância e dissonância
em relação ao conteúdo interior e à forma exterior é uma possível hipótese de analogia, na tentativa de
proporcionar a compreensão do que significavam esses conceitos para Kandinsky. Os exemplos provenientes da
música representam, de maneira didática, a sensação dissonante e consonante que ocorre na percepção dos
intervalos musicais.

 
  58  

sonoridade da expressão do artista, a sonoridade interior e a forma exterior dos elementos


artísticos utilizados. Até mesmo o suporte pelo qual essa arte é transmitida (quadro, parede,
livro, rádio, televisão e muitos outros) influencia na sonoridade da composição. Cada
elemento artístico (seja ele visual, sonoro ou verbal) apresenta a capacidade de atingir a alma
do espectador e vibrá-la. O processo acústico-espiritual é comum a todos esses elementos.
Para Kandinsky, a ressonância proveniente dos códigos visuais, sonoros e verbais é o
fundamento da “Arte Monumental”, uma relação multimidiática presente na obra de arte que
transpõe limites por meio da expressão da sonoridade interior (contato eficaz com a alma).
“Infinitas combinações, onde dominará ora uma só arte, ora o contraste de artes diferentes, e
onde outras artes misturarão suas próprias ressonâncias silenciosas? Deixo a cada um a tarefa
de o imaginar”. (KANDINSKY, 1990, p. 94)

As possíveis relações entre elementos visuais, sonoros e verbais não proporcionariam,


ao autor, repetir a vibração exata, na alma do espectador, com dois ou mais desses códigos,
em situações diferentes, de maneira intencional e sistematizada. Mas, segundo o autor, “é
possível obter a mesma ressonância interior, no mesmo tempo, por diferentes artes”.
(KANDINSKY, 1990, p. 94)

A soma de todas as artes, uma vez realizada, constituirá a Arte Monumental. Essa
repetição tem ainda mais força porque cada individualidade reage de modo diverso às
diferentes artes. Uns são sensíveis à forma musical (à qual se pode dizer – as
exceções são desprezíveis – que todos o são), outros à pintura, outros ainda à forma
literária. Por outro lado, as forças ocultas das artes são, em sua essência, diferentes.
De tal sorte que elas provocam nos mesmos indivíduos o efeito que delas se espera,
mesmo que cada arte se sirva tão somente dos meios que lhe são próprios, com a
exclusão de todos os outros. (KANDINSKY, 1990, p. 96)

É possível relacionar conceitos de harmonia, ritmo e melodia nas obras de arte.


Intervalos dissonantes e assonantes; ritmos regulares e irregulares; andamentos rápidos e
lentos; melodias com grande ou pequeno contraste na altura das notas musicais, são diversas
possibilidades de leitura. Uma composição mistura múltiplos elementos de expressão do
artista. O universo interior do criador e a sonoridade de cada elemento aplicado são dispostos,
de maneira que uma sonoridade maior é criada. Contudo, a sonoridade de cada palavra, de
cada forma, de cada cor, ou seja, de cada elemento que forma esse acorde, ou melodia,
continua presente, porém modificada pela ação de todos os outros elementos que interagem na
composição total.

 
  59  

Na análise abaixo, Kandinsky descreve uma harmonia oriunda basicamente de um


contraste, por meio da dissonância entre uma cor pontual no personagem principal e os
demais elementos figurativos e abstratos do quadro:

Se a nota do quadro é uma nota triste, concentrada principalmente no personagem


vestido de vermelho (pela posição dele no conjunto da composição, por seu
movimento próprio, pelos traços e a cor do rosto, pela postura da cabeça, etc.), o
vermelho da indumentária sublinhará com força, pela dissonância interior que criará,
a tristeza do quadro e, sobretudo, do personagem representado. O emprego de outra
cor, que já exercesse por si mesma um efeito de tristeza, só poderia atenuar essa
impressão ao enfraquecer o elemento dramático. (KANDINSKY, 1990, p. 104)

No exemplo seguinte, Kandinsky, com a mesma cor vermelha, aponta um exemplo de


harmonia proveniente de um intervalo assonante, onde a sonoridade interior da cor não
provoca uma sensação de instabilidade com a sonoridade do objeto (dissonância); mas sim,
produz uma sonoridade que resulta em uma correspondência perfeita e uma sensação estável.

Se é empregado para uma árvore, estamos em presença de um caso muito diferente. O


tom fundamental do vermelho subsiste, tal como nos exemplos precedentes. Mas ser-
lhe-á adicionado o valor psíquico que o outono tem para a alma (pois essa palavra
“outono” é, por si só, uma unidade psíquica, tal como o é todo conceito real, abstrato,
imaterial e corporal). A cor associa-se intimamente ao dramático que pode possuir
acessoriamente, como acabamos de ver a propósito da roupa vermelha
(KANDINSKY, 1990, p. 105)

Kandinsky afirma que essas representações verbais não são tão efetivas. “As vibrações
que despertam na alma são mais tênues e mais delicadas, e as palavras são incapazes de
descrevê-las”. (KANDINSKY, 1990, p. 93)

O espectador sempre busca a significação de uma obra de arte. Procura relacioná-la


com regras de composição, assuntos ligados à história da arte e demais conceitos presentes
em seu sistema cognitivo. Essa significação, segundo Kandinsky, é apenas uma “relação
exterior entre suas diferentes partes” (KANDINSKY, 1990, p. 105) e prejudica a sonoridade
interior.

Durante o período materialista, todas as manifestações da vida e, por conseguinte,


também da arte, formaram um homem que é incapaz [...] de se colocar simplesmente
diante do quadro e que quer encontrar nele toda espécie de coisas (imitação da
natureza, a natureza através do temperamento do artista, portanto, esse temperamento,
um simples estado da alma, “pintura”, anatomia, perspectiva, um ambiente, etc.)
Jamais busca sentir a vida interior do quadro, deixar que ela atue diretamente sobre
ele. Ofuscado pelos meio exteriores, seu olhar interior não se inquieta com a vida que
se manifesta com a ajuda desses meios. (KANDINSKY, 1990, p.p. 105, 106)

 
  60  

Figura 24: Composição VIII, 1923 – W. Kandinsky

Fonte: THE GUGGENHEIM COLECTION (2006, p. 157)

Deve-se evitar que os elementos que formam a obra de arte mantenham relações
referenciais iconográficas, indiciais e simbólicas com a realidade como objeto. Para o autor,
quanto mais esse conjunto se distanciar de motivos e efeitos exteriores que possam ser
descritos em uma narração (verbalmente), “mais o efeito será puro, profundo e interior”
(KANDINSKY, 1990, p. 107).

A “Arte Monumental”, conceito de Kandinsky, já mencionado anteriormente e que


será detalhado no capítulo 3, é um dos exemplos mais significativos da sonoridade interior em
comum nos diferentes meios. Nessa forma de expressão do artista, a sonoridade de todas as
artes se misturam em apenas uma obra de arte, algo semelhante a uma peça teatral. O autor
utiliza o termo “composição cênica” para designar a composição dessa arte, que relaciona
elementos dos códigos visual, sonoro e verbal (palavras, sons, cores e formas). Os elementos
primários da composição cênica são: movimento musical; movimento pictórico e movimento
dançado convertido em arte.

[...] concordância de sons de dois ou, enfim, dos três elementos em sua total
independência (exterior é claro), etc. Foi esse último procedimento que Arnold
Schoënberg empregou em seus quartetos. Aí se vê como as sonoridades interiores

 
  61  

associadas ganham em força e em significação quando se utiliza a consonância


exterior. Imagine-se o mundo novo, radiante de alegria, o mundo desses três
poderosos elementos a serviço de uma finalidade criadora. Mas renuncio a dizer tudo
aqui sobre esse tema. Deixo ao leitor a tarefa de aplicar ele próprio o princípio que
enunciamos acerca da pintura. A visão radiosa do teatro do futuro surgirá em seu
espírito. Nos caminhos do novo reino que se cruzam sem fim através de sombrias
florestas ainda virgens, que transpõem abismos vertiginosos abertos entre os altos
cimos e que se confundem numa rede inextricável diante daquele que ousa arriscar-se
a percorrê-los, é sempre no mesmo guia infalível que se deverá confiar: o princípio
da Necessidade Interior. (KANDINSKY, 1910, p. 109, grifo nosso)

Em resumo, Kandinsky compreende que a sonoridade interior está presente nos


elementos visuais, sonoros e verbais. A sonoridade interior da expressão do artista em
conjunto com a sonoridade interior dos elementos artísticos utilizados em sua criação,
resultam em uma forma exterior que se apresenta em assonância ou dissonância em relação à
sua sonoridade interior. Quando o espectador recebe essa mensagem, ocorre o processo
acústico-espiritual, no qual a sonoridade interior da composição preenche sua alma e a faz
vibrar. Quanto mais evoluído espiritualmente e artisticamente, sua alma será mais sensível a
esse toque e vibrará com muito mais força e volume. Kandinsky chega a afirmar,
posteriormente, em seu Curso da Bauhaus, que os elementos percebidos por meio de sentidos
distintos (visão, audição, tato, olfato e paladar) atingem as mesmas cordas sensíveis da alma.
Entretanto, também diz que a percepção multisensorial pode ocorrer em alguns indivíduos,
detalhe que aponta ainda mais similaridade entre a sonoridade interior dos elementos
pictóricos, musicais e verbais:

[...] As cordas sensíveis são semelhantes, mas os condutos são diferentes = cinco
sentidos. O órgão mais sensível é o ouvido (menos, porém do que entre os asiáticos),
depois vem a vista e somente, então, menos desenvolvidos, de uma sensibilidade
quase idêntica, o tato, o paladar e o olfato. O sentido tátil na ponta dos dedos, o
paladar na língua e no palato, o olfato pelo nariz. Mas pessoas sensitivas vêem com as
pontas dos dedos, cheiram com a língua, sentem cores degustando. Pensamento
temerário: que cada órgão desperte todos os cinco sentidos e que cada sensação
separada provoque um acorde de cinco sonoridades. Pelo menos! (KANDINSKY,
1996, p. 22)

3.4 Sobre as Cores – Características, simbolismo, percepção e analogia com a música

O estudo sobre cores desenvolvido no livro “Do Espiritual na Arte” é considerado por
muitos um dos mais ricos já realizados sobre esse tema que desperta enorme interesse de
artistas visuais (pintores, escultores, fotógrafos, designers, arquitetos e etc.), educadores,
psicólogos, médicos e até profissionais que utilizam outras formas de linguagem como, por
 
  62  

exemplo, a música ou a poesia. Kandinsky abordou as cores com maestria e pioneirismo.


Entre outras contribuições, explorou uma relação intercódigos que abriu muitas possibilidades
de pesquisa para artistas que utilizam os códigos visual, sonoro e verbal ou até mesmo todos
juntos em suas criações.

Desde a sua infância, era notável a capacidade que Kandinsky possuía em relacionar
percepções multisensoriais. Elementos visuais e sonoros misturavam-se com sensações
provenientes do olfato, do paladar e do tato; Kandinsky verbalizava essa trama perceptiva de
uma maneira repleta de poesia e detalhes. As cores, sempre presentes em sua vida, foram os
primeiros elementos explorados de maneira mais intensa pelo artista. Kandinsky se sentia
muito à vontade no reino das cores e, talvez devido a isso, tenha utilizado esse elemento como
principal exemplo da sonoridade interior e do princípio da necessidade interior em seu livro
“Do Espiritual na Arte”.

A cor é um objeto de pesquisa extremamente complexo, pois proporciona distintas


maneiras de percepção e de significação. Josef Albers (1888-1976), colega de Kandinsky na
escola Bauhaus (ambos foram professores), descreve, na citação abaixo, um pouco sobre a
complexidade desse tema.

Se alguém disser “vermelho” (o nome de uma cor) e houver 50 pessoas ouvindo,


pode-se esperar que haverá 50 vermelhos em suas mentes. E podemos estar certos de
que todos esses vermelhos serão muito diferentes. Mesmo quando se especifica uma
cor que todos os ouvintes já viram inúmeras vezes – como o vermelho dos anúncios
de Coca Cola, que é o mesmo vermelho em todo o pais, eles continuarão pensando
em muitos vermelhos diferentes. Ainda que todos os ouvintes tenham centenas de
vermelhos diante de si para que dentre eles escolham o vermelho da Coca Cola, eles
voltarão a escolher cores muito diferentes. E, mesmo que mostremos o logotipo
vermelho da Coca-Cola com o nome em branco no meio, de modo que todos vejam o
mesmo vermelho e cada um receba a mesma projeção em sua retina, será impossível
saber ao certo se cada um teve a mesma percepção. (ALBERS, 2009, p. 6)

Leonardo Da Vinci (1452-1519), Isaac Newton (1643-1727), Johann Wolfgang


Goethe (1749-1832) e Shopenhauer (1749-1860) foram os pioneiros no desenvolvimento de
pesquisas relacionadas a cores. A cor sempre foi objeto de pesquisa para análises de
harmonia, como a tentativa de atribuir uma maior tangibilidade a esse elemento tão subjetivo.

Pode-se resumir alguns conceitos básicos sobre as cores, provenientes dos principais
estudos sobre o tema. “A cor não tem existência material: é apenas sensação produzida por
certas organizações nervosas sob a ação da luz”. (PEDROSA, 2003, p. 17) A existência
“física” das cores está relacionada à luz que age como estímulo e ao olho que é o canal de
recepção desse sinal. Ao resultado do estímulo da luz ao olho humano, dá-se o nome de matiz

 
  63  

(em francês “teinte” e em inglês “colour vision”). (PEDROSA, 2003) Esses estímulos estão
divididos em dois grupos - Cores-luz e Cores-pigmento. A cor-luz é “a radiação luminosa
visível que tem como síntese aditiva a luz branca” (PEDROSA, 2003, p. 17). Seus matizes
são: vermelho, verde e azul. Já a cor pigmento é “a substância material que, conforme sua
natureza, absorve, refrata e reflete os raios luminosos componentes da luz que se difunde
sobre ela”. (PEDROSA, 2003, p. 17) Nesse caso, a cor branca não é feita pela síntese aditiva,
pois trata-se da ausência de pigmentos (material).

A teoria de cores de Kandinsky é principalmente empírica, afastou-se do pensamento


positivista e foi influenciada pela pesquisa de Goethe que, como citado anteriormente, apesar
de possuir alguns equívocos, foi uma das mais relevantes sobre o assunto e inspirou a prática
e a pesquisa de muitos artistas e pesquisadores. Sua teoria abordava a interação do ser
humano com a cor e a sua percepção, em meio a diferentes situações na natureza e
distanciava-se apenas da leitura da cor como um fenômeno físico. O cerne da teoria de cores
de Kandinsky está bem próximo ao de Goethe. Kandinsky, em seu livro “Do Espiritual na
Arte”, não se preocupou com a formação das cores, mas, sim com a sua percepção. Sua
pesquisa baseou-se na cor como um elemento para a expressão do autor. Para o autor, esse
elemento apresenta uma sonoridade interior muito intensa, capaz de atingir vibrações na alma
do espectador, com similaridades a outros elementos como formas, notas musicais e palavras.
Suas observações sobre harmonia, características espirituais, simbolismo e analogia com a
música e outros meios foram muito valiosas para o estudo de cores e, principalmente, para
estudos referentes ao princípio da necessidade interior. Posteriormente, no Curso da Bauhaus,
Kandinsky sistematiza a sua gramática, inclusive a das cores, de maneira mais completa.
Nesse curso, pode-se verificar um ponto em comum com a teoria de Goethe, quando afirma
que as três cores primárias eram amarelo, azul e vermelho:

Decomposição pelo prisma, Sol – sua transposição – os pigmentos. Os pigmentos


aproximados, mas é o material de que dispomos. As cores do prisma podem se
reduzir a três: amarelo, vermelho e azul, que são, portanto, as cores originais =
primárias. (KANDINSKY, 1996, p. 43)

Kandinsky expõe o assunto “cores” de maneira progressiva e didática, com muitos


exemplos significativos. Para o autor, é imprescindível que o artista pesquise as teorias e
interaja com as cores. É por meio da experimentação e da observação, que o artista
compreende as cores para, posteriormente, utilizá-las em sua expressão, relacionando-as entre
si ou com formas, palavras e outros elementos intercódigos.

 
  64  

Para Kandinsky, as cores podem ser dividas em 4 grandes contrastes. O primeiro


grande contraste se caracteriza pela tendência de uma cor para o amarelo (cores quentes) ou
para o azul (cores frias). Se ao colocar uma linha horizontal entre o espectador e a cor, o
amarelo irá aproximar-se do espectador, enquanto o azul irá distanciar-se. O amarelo possui
uma força excêntrica (do centro para as extremidades) e essa provoca a sensação de expansão
e de aproximação; enquanto o azul possui uma força concêntrica (das extremidades para o
centro), a qual, por sua vez, provoca a sensação de redução e de distanciamento. A mistura
entre os pólos é outra característica importante do primeiro contraste. Misturar o amarelo ao
azul ou vice-versa irá anular a força e a movimentação características e, então, surgirá o
verde, cor neutra que não provoca nenhuma das sensações características do amarelo ou do
azul. Além disso, Kandinsky afirma que existe uma tendência do amarelo para o claro e uma
tendência do azul para o escuro. Quanto mais claro for o amarelo, mais forte será o seu
movimento, ao passo que, se escurecido, esse perde a força. Já com o azul ocorre o contrário,
o movimento de distanciamento se torna mais forte quando ele é escurecido, ao passo que, se
for clareado, esse movimento se enfraquece.

O segundo grande contraste refere-se a tendência para o branco (cores claras) ou para
o preto (cores escuras). O claro e o escuro, também apresentam movimentação semelhante ao
amarelo e ao azul, porém, segundo Kandinsky, de maneira mais rígida. Assim como o
amarelo e o azul, a mistura do branco e do preto altera o movimento dessas cores. Essa ação
também anula a força característica desses dois tons, o que resulta no cinza neutro. A
diferença entre o verde e o cinza é que as cores que compõem o verde (amarelo e azul)
possuem uma movimentação mais dinâmica. Portanto, o verde é uma cor que, mesmo neutra,
apresenta “uma possibilidade de vida que falta totalmente no cinzento” (KANDINSKY, 1990,
p. 85).

Existe uma forte relação entre os dois primeiros pares de contraste. A Figura 25
apresenta uma ilustração readaptada do livro do “Do Espiritual na Arte”, na qual Kandinsky
expõe essas características.

 
  65  

Figura 25 – Características dos dois primeiros grandes contrastes

Readaptação de ilustração do livro “Do espiritual na Arte”

Fonte: KANDINSKY (1990, p. 84)

Segundo Kandinsky, essas afirmações foram “resultados de impressões psíquicas


inteiramente empíricas e não se baseiam em nenhum dado científico positivo”.
(KANDINSKY, 1990, p. 83).

... Já se pode, portanto, em teoria, determinar de acordo com o caráter desses


movimentos qual será a ação espiritual das duas cores. E chega-se assim ao mesmo
resultado que ao procedermos experimentalmente e ao deixarmos as cores agirem
sobre nós. Efetivamente, o primeiro movimento do amarelo, sua tendência para ir na
direção daquele que olha, tendência que, aumentando a intensidade do amarelo, pode
chegar até a incomodar; e o segundo movimento, o salto para além de todo o limite, a
dispersão da força em torno de si mesma, são semelhantes à propriedade de se
precipitar inconscientemente sobre o objeto e de propagar em desordem para todos os
lados, que toda força material possui. Considerado diretamente (numa forma
geométrica qualquer), o amarelo atormenta o homem, espicaça-o e excita-o, impõe-se
a ele como uma coerção, o importuna-o com uma espécie de insolência insuportável.

 
  66  

Essa propriedade do amarelo, que tende sempre para os tons mais claros, pode
alcançar uma intensidade insustentável para os olhos e para a alma. Nesse grau de
potência, soa como um trompete agudo, que fosse tocado cada vez mais forte, ou
como uma fanfarra estridente. (KANDINSKY, 1910, p.p. 85, 86)

Figura 26 – Comparação de cores com tons de cinza.

A Figura 26 demonstra a proximidade das cores que formam os dois primeiros grandes
contrastes e as suas respectivas misturas (verde e cinza). O azul está mais próximo do preto; o
amarelo do branco e o verde do cinza.

Kandinsky expõe diversas associações das cores com referenciais simbólicos de


sentimentos e de estados psíquicos do ser humano, entretanto, conforme já mencionado
anteriormente, as associações por si só não são capazes de explicar os efeitos da exposição às
cores. Posteriormente, no Curso da Bauhaus, ele conclui o pensamento referente ao
simbolismo das cores: “o simbolismo não é causa primeira, mas seu efeito. A causa primária é
a aventura óptico-psíquica, sentida por todos os humanos.” (KANDINSKY, 1996, p. 37).
Nesse curso, Kandinsky classifica a sonoridade interior da cor em valor absoluto,
independente “da comunidade e do entorno natural” (KANDINSKY, 1996, p. 42) e a
distingue do valor relativo, presente na forma exterior, onde a comunidade entra em ação e é
nesse caso que o simbolismo das cores aparece. (KANDINSKY, 1996).

 
  67  

O amarelo, um dos extremos do primeiro grande contraste, é a cor mais quente de


todas, apresenta uma movimentação de expansão e de aproximação em relação ao espectador.
Sua força é completamente ativa e a sua energia é tão intensa que, pode chegar a incomodar
os olhos humanos caso a sua intensidade seja ampliada. “Atormenta o homem, espicaça-o e
excita-o, impõe-se a ele como uma coerção,importuna-o com uma espécie de insolência
insuportável” (KANDINSKY, 1990, p. 85). Para Kandinsky, “o amarelo é a cor típicamente
terrestre” (KANDINSKY, 1990, p. 86). É a cor que representa estados ativos da alma, como a
alegria. Ele compara a sonoridade de um amarelo intenso com a de “um trompete agudo, que
fosse tocado cada vez mais forte ou como uma fanfarra estridente” (KANDINSKY, 1990, p.
86). Se lhe for adicionado azul, ele se esfria e parece perder sua energia.

O doente acusa os homens, derruba tudo, joga tudo no chão e dispersa suas forças por
todos os lados, dissipa-as sem razão nem propósito, até o esgotamento total. Isso faz
pensar no extravagante desperdício das últimas forças do verão, no fascínio berrante
da folhagem do outono, privada de azul, desse azul apaziguador que então só se
encontra no céu. Tudo o que resta é um desencadear furioso de cores sem
profundidade. (KANDINSKY, 1990, p. 86)

A cor azul, fria e profunda que possui o movimento de redução e do distanciamento


em relação ao espectador é considerada “a cor tipicamente celeste” (KANDINSKY, 1990, p.
86). O efeito desse tom na alma é de relaxamento; representa o infinito, oferece calma e paz
ao espectador. Sua força também é ativa, mas em direção oposta à do amarelo. Se o amarelo é
a cor terrestre, o azul é a cor celestial, a cor que representa o espiritual. Quanto mais profundo
o azul, mais intenso ele se torna, o que amplifica ainda mais a sua sonoridade interior. “O azul
profundo atrai o homem para o infinito, desperta nele o desejo de pureza e uma sede de
sobrenatural.” (KANDINSKY, 1990, p. 86). Quando escurecido, adquire uma “tristeza que
ultrapassa o humano” (KANDINSKY, 1990, p. 87). Quando se torna mais claro, ele perde
pouco a pouco a sua sonoridade “até não ser mais do que um repouso silencioso e torna-se
branco” (KANDINSKY, 1990, p. 87). Kandinsky compara a sonoridade interior do azul-claro
à da flauta; a sonoridade interior do azul-escuro à do violoncelo e a sonoridade interior de um
azul, ainda mais escuro, à “sonoridade macia de um contrabaixo” (KANDINSKY, 1990, p.
87).

Kandinsky chega a atribuir maior compatibilidade entre o amarelo e as notas musicais


com frequências maiores (notas agudas), ao passo que, para o azul, atribui maior
compatibilidade com as notas musicais com frequências menores (notas graves).
(KANDINSKY, 1990)

 
  68  

O branco, apesar de possuir semelhança com os movimentos do amarelo e apresentar


capacidade de relacionamento com essa cor, tem o seu movimento rígido e passivo, sem o
dinamismo e a energia do amarelo. Pelo contrário, é “como um símbolo de um mundo onde
todas as cores, enquanto propriedades materiais se dissiparam. Esse mundo paira tão acima de
nós que nenhum som nos chega dele” (KANDINSKY, 1990, p. 89). A sonoridade interior é o
silêncio absoluto. Kandinsky compara essa sonoridade à pausa de uma música, que não se
encerra definitivamente. Na realidade, durante essa pausa, existe a expectativa de que a
qualquer momento haverá novamente uma sonoridade, um reinício. “É um nada repleto de
alegria juvenil ou, melhor dizendo, um nada antes do nascimento, antes de todo o começo.
[...] O branco é o adereço da alegria e da pureza sem mácula.” (KANDINSKY, 1990, p.p.
89,90).

As mesmas semelhanças que o branco apresenta com o amarelo, o preto apresenta


com o azul, apesar de não possuir sua força natural ativa e dinâmica.. O preto é a cor que
representa a morte, um silêncio definitivo. É o encerramento de um ciclo. Kandinsky compara
o preto a uma “fogueira extinta, consumida, que deixou de arder, imóvel e insensível, como
um cadáver sobre o qual tudo resvala e que mais nada afeta” (KANDINSKY, 1990, p. 90).
Todas as outras cores adquirem sonoridades mais nítidas e fortes, quando colocadas sobre o
preto.

Quando o branco é misturado ao preto, surge o cinzento, cor absolutamente “sem


ressonância e imóvel” (KANDINSKY, 1990, p. 90), diferente do verde, como descrito
detalhadamente a seguir, pois esse é resultante da mistura de duas cores ativas. O cinzento é
considerado uma cor sem esperança. Quanto mais escuro for, provoca um desespero cada vez
mais intenso. Ao contrário, se clareado, parece revelar, pouco a pouco, uma esperança
escondida.

Segundo Kandinsky, o cinza é obtido também a partir da mistura óptico mecânica


entre o verde e o vermelho. Cores que compõem o terceiro grande contraste da Teoria de
Cores de Kandinsky.

 
  69  

Figura 27: Terceiro grande contraste - Verde e Vermelho

O verde, cor situada em um dos pólos do terceiro grande contraste, é o ponto de


equilíbrio entre o primeiro grande contraste. É o repouso das movimentações características
do amarelo e do azul, não há força concêntrica, nem excêntrica, apenas equilíbrio e repouso.
É o estado da alma que representa repouso, inércia. “A passividade é a característica
dominante do verde absoluto. Mas, essa passividade perfuma-se de unção, de autossatisfação”
(KANDINSKY, 1990, p. 87). Kandinsky compara a posição do verde em relação às outras
cores à posição da burguesia para os homens, com sentimentos de realização e de satisfação.
“Esse verde é como uma vaca gorda, saudável, deitada e ruminante, capaz apenas de olhar o
mundo com seus olhos vagos e indolentes” (KANDINSKY, 1990, p. 88).

Quando se desequilibra em direção ao amarelo, ganha vitalidade, ânimo, juventude e


alegria. Quando o azul prevalece na combinação, torna-se sério, pensativo. Já no caso de ficar
mais claro ou escuro, o verde nunca perde a característica principal de repouso ou de
indiferença. Se mais claro, a indiferença prevalece; se mais escuro, a característica de repouso
torna-se mais evidente.

Kandinsky compara a sonoridade interior do verde absoluto com a dos “sons amplos e
calmos, de uma gravidade média, do violino” (KANDINSKY, 1990, p. 89). Aqui, novamente,
aparece a questão da compatibilidade com frequências sonoras. Se o amarelo é mais
compatível com notas agudas e o azul com notas graves, o verde apresenta maior similaridade
com as notas médias.

O vermelho possui uma sonoridade interior bem versátil. Essencialmente quente, mas
com capacidade de parecer frio também. Segundo Kandinsky, todas as cores apresentam essa

 
  70  

propriedade, entretanto, o vermelho é a cor que pode transitar melhor entre o quente e o frio.
Ele exerce uma força tão intensa quanto o amarelo, mas não expande e se propaga como este.
Ao contrário, resume-se nele mesmo. Essa força parece uma “efervescência, voltada
sobretudo para si mesma e para qual o exterior conta muito pouco”(KANDINSKY, 1990, p.
91).

Kandinsky aponta características de alguns vermelhos, dos mais claros aos mais
escuros. Ele compara o vermelho-saturno (vermelho-claro-quente) ao amarelo médio e atribui
“força, impetuosidade, energia, decisão, alegria, triunfo” (KANDINSKY, 1990, p. 91).
Kandinsky compara a sonoridade interior desse tom de vermelho ao de “uma fanfarra, onde
domina o som forte, obstinado, importuno da trombeta” (KANDINSKY, 1990, p. 91), ao
invés do trompete, como é o caso do amarelo.

O vermelho-cinabre (vermelho médio) “consegue atingir a permanência de certos


estados intensos da alma” (KANDINSKY, 1990, p. 91). Assemelha-se a uma paixão segura.
Esse tom de vermelho não combina com tons frios, pois estes abafam sua ressonância. Porém,
o vermelho misturado com um tom de azul ou até mesmo com o preto (marrom), apesar de
não combinarem exteriormente, apresentam uma sonoridade interior diferenciada. Tanto o
vermelho cinabre, quanto o vermelho-saturno possuem muitas semelhanças com o amarelo,
porém não tendem em direção ao homem. Kandinsky compara a sonoridade interior do
vermelho-cinabre à tuba ou ao rufar ensurdecedor de tambores (KANDINSKY, 1990).

A laca vermelha, uma tonalidade mais fria de vermelho obtida pela adição do azul
ultramarino, perde a força ativa do vermelho, toda a energia característica dessa tonalidade
cromática desaparece, porém não por completo; essa força parece apenas aguardar o momento
de reacender. Simboliza a “veemência da paixão” (KANDINSKY, 1990, p. 92). Kandinsky
compara sua sonoridade interior com a de sons médios e graves do violoncelo. Se o vermelho
frio for mais claro, “explode em acentos de jovem e pura alegria, de um virginal frescor”
(KANDINSKY, 1990, p. 92). Sua sonoridade interior, segundo Kandinsky, pode ser
comparada à de sons elevados, claros e cantantes do violino.

O quarto e último grande contraste é composto pelas cores laranja (vermelho e


amarelo) e violeta (vermelho e azul).

 
  71  

Figura 28: Quarto grande contraste - Laranja e Violeta

O laranja transforma o movimento intenso do vermelho, que estava resumido em si,


em irradiações e em expansão. Aparece, exatamente, quando o vermelho dirige-se ao homem.
Mas diferencia-se do amarelo, justamente, pela importância do vermelho nessa mistura, o
qual lhe oferece seriedade. Kandinsky compara-o a um “homem seguro de sua força e que dá
a impressão de saúde” (KANDINSKY, 1990, p. 93). A sonoridade interior do laranja é
comparada à de um sino do ângelus ou a “uma poderosa voz de contralto” (KANDINSKY,
1990, p. 93), ou ainda a “uma viola entoando um largo” (KANDINSKY, 1990, p. 93).

O violeta é a mistura do vermelho-frio com o azul. É um vermelho que se distancia do


homem. “O violeta é, portanto, um vermelho arrefecido no sentido físico e psíquico da
palavra” (KANDINSKY, 1990, p. 93). Segundo Kandinsky, há nele um sentimento triste e é a
cor que os chineses adotaram para representar o luto. Sua sonoridade interior compara-se às
vibrações surdas do corne inglês, de uma charamela e, ao aprofundar-se, compara-se aos sons
graves do fagote (KANDINSKY, 1990).

Segundo Kandinsky, “as seis cores que, aos pares, formam três grandes contrastes,
apresentam-se a nós como um imenso círculo, como uma serpente que morde sua própria
cauda (símbolo do infinito e da eternidade)”, (KANDINSKY, 1990, p. 93) (Figura 28). Este
círculo é ladeado por dois silêncios, o do nascimento e o da nascimento.

 
  72  

Figura 29: O círculo do contraste entre dois pólos.

Readaptação de ilustração do livro “Do Espiritual na Arte”

Fonte: KANDINSKY (1990, p. 94 )

As nuances cromáticas são tão ricas quanto na música. Kandinsky afirma que todas
essas características são apenas provisórias, tão elementares quanto os sentimentos a que
correspondem. Outras virão e, mesmo assim, não conseguirão traduzir especificamente o
conteúdo interior das cores. “As palavras não são e não podem ser senão alusões a cores,
sinais visíveis e inteiramente exteriores” (KANDINSKY, 1990, p. 94).

A Figura 29 apresenta um resumo da teoria das cores apresentada até aqui. Nela são
apresentadas as cores que compõem os 4 contrastes e suas temperaturas, movimentos,
características/simbolismo e analogia com a música.

 
  73  

Figura 30: Resumo sobre a Teoria de Cores de Kandinsky (1990)

 
  74  

4 Arte Monumental: A sonoridade amarela

A Arte Monumental, conceito criado por Kandinsky, transpõe os limites exteriores


entre as artes. Kandinsky afirmou que as artes possuíam os meios que lhe eram próprios,
porém isso não restringia o processo criativo, a possibilidade de relacioná-las e transformá-las
em uma só arte, de efeito sinestésico, plural e amplificado.

Todo elemento de linguagem artística possui dois sentidos – o sentido relativo e o


sentido absoluto. O sentido relativo está atrelado à forma exterior (delimitação do conteúdo
interior) (KANDINSKY, 1991). Essa forma pode possuir valores denotativos, provenientes
da comunidade em que o espectador está inserido e isso favorece a significação. Nesse caso,
podemos comparar a percepção do sentido relativo à Teoria Semiótica da Percepção, de
Charles Sanders Peirce. Segundo Santaella:

... o percepto, em si, seria aquilo que, até certo ponto, independe de nossa mente.
Corresponde ao elemento não racional, que se apresenta à apreensão de nossos
sentidos. O percipuum já seria o percepto tal como ele se apresenta no julgamento de
percepção. Seria o percepto, portanto, na sutil, mas marcante, mudança de natureza
por que passa, ao ser incorporado à nossa mente, ao nosso processamento perceptivo
(SANTAELLA, 1998, p. 59).

Santaella afirmou que o percepto é o objeto dinâmico. Já o percepuum “corresponde


ao percepto tal como ele é imediatamente interpretado no julgamento de percepção”
(SANTAELLA, 1998, p. 60), em outras palavras, “aquilo que representa o percepto, dentro
do julgamento perceptivo” (SANTAELLA, 1998, p.p. 64,65). A forma exterior do elemento
artístico é o objeto dinâmico/percepto. A representação mental da forma exterior, durante o
julgamento da percepção é o objeto imediato/percepuum. No processo de julgamento, o
percepuum (objeto imediato da forma exterior) pode apresentar-se como: 1) qualidade de
sentimento 2) interação física 3) generalização. (SANTAELLA, 1998)

Já o sentido absoluto, segundo Kandinsky, é o conteúdo espiritual do elemento


artístico, a sonoridade interior que irá vibrar a alma do espectador, de acordo com o princípio
da necessidade interior. O espectador pode “exteriorizar” a vibração que teve em sua alma,
atribuindo valores ou significação, mas o principal para Kandinsky nesse caso é a ressonância
dessa sonoridade interior na alma do espectador. “Essas formas abstratas (linhas, superfícies,
manchas, etc.) não têm importância enquanto tais, mas unicamente por sua ressonância

 
  75  

interior.” (KANDINSKY, 1991, p. 125) “Não é a forma (matéria) que é elemento essencial,
mas o conteúdo (espírito) (KANDINSKY, 1991, p. 120).

A presente pesquisa pretende abordar os conceitos chave para a relação multimídiatica


na obra de Kandinsky. Para o autor, essa relação resulta da sonoridade interior e da sua
ressonância na alma do espectador. Sendo assim, a princípio, não parece adequado relacionar
a percepção dessa sonoridade interior a um processo de significação ou a um julgamento
perceptivo. Aproximar Teorias de Percepção, como a Teoria Semiótica, não só à percepção da
forma exterior, mas também à percepção do conteúdo interior, por meio da vibração sonora na
alma talvez seja uma possibilidade de estudo para futuras pesquisas.

A explicação de Kandinsky sobre o efeito de uma letra demonstra essas duas ações
emanadas por um elemento de linguagem (ação da forma exterior e do conteúdo interior). As
duas ações podem ser distintas e, para o autor, esse é um dos recursos expressivos mais
poderosos na composição:

1. ela age enquanto signo dotado de uma finalidade; 2. Ela age primeiro enquanto
forma, depois enquanto ressonância interior dessa forma, por si mesma e de
maneira totalmente independente. Concluiremos daí que o efeito exterior pode
diferir do efeito interior, produzido pela ressonância interior, o que constitui um
dos meios de expressão mais poderosos e mais profundos de qualquer composição.
(KANDINSKY, 1991, p. 126, grifo nosso)

Kandinsky exemplifica a questão acima utilizando a linha como um sinal gráfico


presente na sintaxe verbal, na qual ela preserva uma finalidade prática (travessão). Em
seguida, ele apresenta esse símbolo em três situações. Primeiro, uma alteração em sua forma
exterior, de maneira que a sonoridade interior se modifica. Porém, o leitor, devido ao
contexto, ainda buscará significar esse elemento gráfico “deformado” da sintaxe verbal. A
segunda, se caracteriza pela tensão provocada na aplicação errônea desse elemento em meio
ao seu contexto. O leitor procura classificar esse uso como um erro, apoiado nos valores
presentes no sentido relativo da forma exterior. Nesse caso, após tentar enquadrar esse
elemento às regras de seu contexto, o mesmo será classificado de maneira negativa. Por
último, a mesma linha utilizada em um contexto em que perde a sua finalidade prática. É
nessa última situação que o leitor consegue experimentar de maneira mais intensa a vibração
provocada pela sonoridade interior:

[...] vemos um travessão. Se ele estiver corretamente colocado – como faço aqui - ,
temos um traço que possui um significado prático e uma finalidade. Se prolongarmos
esse tracinho, deixando-o no lugar correto, ele conservará o seu sentido, porém o
caráter insólito desse prolongamento lhe conferirá uma coloração indefinível: o leitor
se perguntará porque o traço é tão comprido e se esse comprimento não possui um
 
  76  

significado prático e uma finalidade. Coloquemos o mesmo travessão num lugar


errado (como – o faço aqui). Ele perderá seu significado e sua finalidade, despertará a
sensação de um erro tipográfico, assumirá um caráter negativo... Tracemos agora uma
linha num meio que escape completamente à finalidade prática, por exemplo, numa
tela. Enquanto o espectador (já não se trata de um leitor) a considerar como um meio
de delimitar um objeto, continuará submetido à impressão da finalidade prática. Mas,
no momento em que disser a si mesmo que, na pintura, o objeto prático desempenha
com freqüência um papel meramente fortuito e não puramente pictórico, sua alma
tornar-se-á capaz de experimentar a ressonância puramente interior dessa linha.
(KANDINSKY, 1991, p.p. 126, 127)

O travessão, utilizado no exemplo de Kandinsky, pode ser descrito como a “tecla”


apresentada na fórmula do princípio da necessidade interior. É uma forma que pode ser
utilizada de várias maneiras, nas quais se aproxima ou se afasta de sua sonoridade interior.
Essa tecla é o elemento artístico utilizado pelo artista para se expressar e provocar a vibração
na alma do espectador. Pode manifestar-se por meio de diferentes códigos (visuais, sonoros e
verbais), utilizados em diversas artes, e atingir as mesmas vibrações na alma do espectador.
O que realmente importa na composição é a sonoridade interior dessa forma. “A ressonância
é, pois, a alma da forma, que só por ela pode vir à luz, e age do interior para o exterior”.
(KANDINSKY, 1991, p. 118)

O conceito da sonoridade interior, desenvolvido no Livro Do Espiritual da Arte,


permite não só a comparação das artes e, com isso, o desenvolvimento da expressão em cada
arte, mas também a utilização dos códigos visuais, sonoros e verbais dentro de uma mesma
composição, denominada “Composição Cênica”.

É por isso que os meios empregados para cada arte, vistos do exterior, são
completamente diferentes: sonoridade, cor, palavra!... Em último lugar e vistos do
interior, esses meios são absolutamente semelhantes: o objetivo final suprime as
diferenças exteriores e desvenda a identidade interior. (KANDINSKY, 1991, p.p.
126, 127)

A Composição Cênica oferece infinitas maneiras de expressão ao artista. Ele pode


repetir a sonoridade interior de um código visual, com um código sonoro ou verbal. Um
código pode ter uma relação de contraste com o outro. “Toda uma série de possibilidades, que
vão da ação conjugada à ação contrária. É um material inesgotável”. (KANDINSKY, 1991, p.
138)

Na Arte Monumental, Kandinsky procura eliminar o aspecto prático do signo, ou seja,


aquele que mantém ligações com a realidade como objeto. Ele busca ampliar apenas a
sonoridade interior, o conteúdo “espiritual” de sua expressão, reduzindo ao máximo qualquer

 
  77  

significação por meio de valores denotativos. É claro que entra em cena a subjetividade do
espectador que, por sua vez, pode perceber, interpretar e significar a forma exterior que chega
a ele de alguma maneira, mas a ordem como Kandinsky dispõe esses signos dificulta a sua
significação. Nessa composição, não há regras exteriores; o autor leva em consideração a sua
expressão e a sonoridade interior de cada elemento. O artista utiliza recursos de linguagem
visual, sonora ou verbal para distanciar o espectador da busca pela significação. Ao levar em
consideração apenas o conteúdo interior, muitas vezes, a relação entre as formas exteriores
fica praticamente sem sentido relativo. “A aparência exterior de cada elemento dissipa-se de
repente, e seu valor interior ressoa plenamente” (KANDINSKY, 1991, p. 142). A sonoridade
interior como elemento principal de composição implica na redução do sentido relativo e na
amplificação do sentido absoluto.

A ruptura de um referente iconográfico, indicial ou simbólico com a realidade/objeto


contribui para a amplificação da sonoridade interior. Porém Kandinsky não quer dizer que o
objeto precisa ser eliminado do quadro para isso. Ele precisa perder a ligação com esse
referente, ou seja, ele deve ser utilizado como “meio puramente pictórico, com exclusão dos
demais aspectos que ele possa possuir” (KANDINSKY, 1991, p. 127).

Se, por conseguinte, uma linha é libertada da obrigação de designar uma coisa num
quadro... sua ressonância interior não se vê mais enfraquecida por nenhum papel
secundário e ela recebe sua plena força interior... A maior negação do objeto e sua
maior afirmação são equivalentes. E tal equivalência se justifica pela perseguição do
mesmo objetivo: a expressão da mesma ressonância interior... Vemos pois que, em
princípio, não tem importância que o artista recorra a uma forma real ou abstrata, já
que elas são interiormente equivalentes. A escolha há de ser deixada ao artista, que
deve saber melhor que ninguém por qual meio ele é capaz de materializar mais
claramente o conteúdo de sua arte. (KANDINSKY, 1991, p. 127)

Utilizando a sonoridade interior como regra de composição, os códigos e seus


elementos, enquanto forma exteriores, são libertados. A música (código sonoro) pode estar
ora em primeiro plano, ora em segundo, ou ainda em ação conjugada ou contrária em relação
à sonoridade interior da dança (código visual). “Do ponto de vista gráfico, [os elementos que
compõe a cena] podem seguir, cada um, seu próprio caminho, exteriormente independente”
(KANDINSKY, 1991, p. 143).

Códigos verbais podem ser utilizados para criar uma “certa atmosfera, que liberta a
alma e a torna receptiva. A sonoridade da voz humana em estado puro, isso é, livre do
obscurecimento produzido pela palavra ou pelo sentido das palavras”. (KANDINSKY,1991,
p. 43)

 
  78  

“A sonoridade amarela”, Arte Monumental concebida por Kandinsky, explora bem


todo esse processo acústico-espiritual que ocorre na alma do espectador. Muitos dos conceitos
apontados acima encontram-se no “Manual do Cavaleiro Azul” – Der Blaue Reiter (Figura x e
y), no qual Kandinsky os apresentou ao leitor, para a compreensão da obra “A sonoridade
amarela”.

Na cena inicial da peça, acordes confusos provenientes da música (linguagem típica do


código sonoro) ambientam o início da tempestade de signos intercódigos que serão
apresentados ao espectador. O cenário inicial apresenta um azul- escuro, cor típica da
espiritualidade. Então, surge uma luz no meio do palco que se torna mais viva com o
escurecimento do azul. Aqui, estão presentes um possível traço figurativo do anoitecer e do
luar, apesar da desorientação provocada pela relação com os elementos seguintes da
composição. Kandinsky especifica que o espectador não deve perceber de onde vem o
primeiro canto do coro, cuja melodia é irregular e predominantemente grave. Eis as primeiras
frases exclamadas:

- Sonhos com a dureza de pedra... E rochedos Falantes...

- Gleba de questões que resolvem os enigmas...

- Movimento do céu... E ferro... pedras...

- Muralha...invisível... crescendo rumo aos Céus....

(KANDINSKY, 1991, p. 145)

Nessa articulação sonora de códigos verbais, observa-se um cenário de quimeras e


mistérios, de acordo com a forma exterior. Em seguida, as vozes altas exclamam: “- Lágrimas
e risos... Preces mescladas a maldições. - Alegria de unificação e os mais negros combates”
(KANDINSKY, 1991, p. 146). Sentimentos e idéias opostas evidenciam uma dicotomia na
busca pela significação da forma exterior dos elementos utilizados. O coro completo (vozes
graves e altas) exclama as últimas palavras da introdução, seguidas de detalhes da
ambientação dados por Kandinsky: “Luz escura do... dia... mais ensolarado (Cessam
Brutalmente) - Sombras de brilho estridente na noite mais escura![!] A luz desaparece.
Escuridão súbita. Pausa bastante longa. Depois, introdução na orquestra.” (KANDINSKY,
1991, p. 146). Nesse último movimento, ocorrem situações impossíveis e enigmáticas que
também apresentam idéia de contraste, como a luz escura do dia mais ensolarado e as sombras
de brilho.

 
  79  

No primeiro quadro, as características da Arte Monumental tornam-se intensas. Cores,


movimentos corporais, música, articulação sonora e muitos detalhes dos personagens e do
cenário, sempre em virtude da sonoridade interior, contribuem para isso, contudo, há a
presença de vestígios referenciais em suas formas exteriores que não são relacionadas umas às
outras. Kandinsky descreve toda a atmosfera da composição cênica no primeiro quadro,
detalhe por detalhe. O palco demanda a maior profundidade possível. Nos últimos planos do
cenário, deve haver uma grande colina verde e, logo atrás, uma cortina azul escura. Essa
descrição remete a associações místicas, espirituais e melancólicas, devido à cor azul e ao
detalhe da profundidade. Entretanto, há um ponto de equilíbrio e de magnitude promovido
pela grande colina verde. Surgem as primeiras notas musicais, agudas, que transmitem uma
possível sensação de fragilidade, tensão e suspense. De maneira quase que instantânea, a
música percorre o caminho das notas agudas para as graves e o fundo se torna azul-escuro
com uma espécie de moldura preta ao redor. Esse movimento é coordenado pelo ritmo da
música. Percebe-se, aqui, o impacto das notas graves, após o suspense impulsionado pelas
notas agudas em relação à composição completa. A moldura reafirma o posicionamento do
espectador frente a frente com a Arte Monumental. Atrás do palco, surgem vozes cantando
em coro, sem palavras e com ressonâncias sem alma. Kandinsky as caracteriza como
mecânicas e as compara a madeiras secas. Os movimentos sonoros cerram-se e o cenário
escurece. Posteriormente, no mesmo cenário, porém iluminado, surgem cinco gigantes
amarelos-crus que são projetados em cena, em fila indiana, como se estivessem equilibrando-
se no ar.

[...] alguns de ombros erguidos, outros de ombros abaixados, com curiosos rostos
amarelos que o espectador distingue mal. Viram a cabeça muito lentamente, uns em
direção aos outros, e fazem movimentos simples com os braços. A música torna-se
precisa. Nisso, o canto muito grave e sem palavras dos gigantes torna-se perceptível
(pp) e os gigantes aproximam-se lentamente da ribalta. Da esquerda para a direita
passam voando rapidamente seres vagos, vermelhos, que lembram um pouco
passarinhos, têm cabeças grandes e uma semelhança distante com seres humanos.
Esse vôo reflete-se na música. Os gigantes continuam a cantar, e cada vez mais piano.
Ao mesmo tempo, o espectador distingue-os cada vez menos. A colina, atrás, cresce
lentamente e ilumina-se gradualmente. No fim, está branca. O céu torna-se preto.
Atrás da cena, volta-se a ouvir o mesmo coro, com sonoridade de madeira seca. Já
não se ouvem os gigantes. A frente do palco torna-se azul e cada vez mais opaca. A
orquestra luta com o coro e sobrepuja. Um denso vapor azul mascara toda a cena.
(KANDINSKY, 1991, p. p. 146, 147)

A citação acima, que encerra o primeiro quadro da peça, demonstra o amplo repertório
intersígnico que Kandinsky explora nesse tipo de manifestação artística. A forma exterior
apresenta-se como elemento de confusão devido à relação total da composição. Os valores
denotativos, presentes sempre na forma exterior, apresentam-se como efêmeros e solúveis, na
 
  80  

medida em que o espectador percebe outros signos com distintos valores denotativos e,
principalmente, com fortes ressonâncias provenientes do conteúdo interior de cada elemento.
A sonoridade interior torna-se mais amplificada devido à redução do valor relativo (forma
exterior). As mudanças de cores, os detalhes da expressão e da movimentação corporal, a
forma visual dos corpos dos personagens, os movimentos e as características da música (a
frequência das notas musicais, o andamento, os momentos de silêncio), elementos presentes
na composição, possuem o duplo efeito (sentido relativo e sentido absoluto). Todavia, a
composição dessa peça está completamente em função do sentido absoluto, emanado pela
sonoridade interior, que contribui ainda mais para o deslocamento do objeto. Kandinsky
aponta os elementos utilizados na peça e a relação interior entre eles.

a) da ópera, tomou-se o elemento principal, a música, como fonte de sonoridade


interior, que não poderia em caso algum ser subordinada à ação exterior. b) Do balé,
tomou-se a dança, tratada como movimento abstrato que age por meio da sonoridade
interior. c) A sonoridade das cores assume um significado autônomo e é tratada em pé
de igualdade com os dois outros meios. Esses três elementos representam o mesmo
papel e têm a mesma importância, permanecem exteriormente independentes e são
tratados da mesma maneira, isto é, cada um deles permanece submetido ao objetivo
interior. (KANDINSKY, 1991, p. 143)

Todos os detalhes e elementos visuais, sonoros e verbais, dos seis quadros da peça “A
Sonoridade Amarela” evidenciam a expressão da sonoridade interior. Múltiplas cores como o
azul-fosco, o amarelo-limão-cru, o vermelho-sujo, o cinza-chumbo, o violeta-claro e muitas
outras impulsionam o processo acústico-espiritual. A música oferece uma riqueza de nuances,
de detalhes e de movimentação; acordes confusos, uma trama entre notas graves e agudas,
diversos andamentos, composições rítmicas com sons e silêncio. Elementos cênicos como os
gigantes amarelos, que movimentam seus braços e cabeças e cochicham uns com os outros,
somem e desaparecem de cena diversas vezes; flores que recitam e trocam de cores; uma flor
atingida por convulsão; seres vagos e vermelhos semelhantes a pequenos pássaros; uma
criança de camisola branca e um homem gordíssimo vestido de preto; uma capela vermelho-
sujo, um campanário azul e um sino; pessoas de maiô colorido andando/correndo/pulando em
direções confusas e pessoas de roupas esvoaçantes; articulações verbo-sonoras sem conteúdo
literal: - KALASIMUNAFAKOLA (KANDINSKY, 1991). São muitos os detalhes que
Kandinsky reúne nessa composição, organizada em três meios exteriores que serviram para
expressar o interior: “1) O som musical e seu movimento. 2) A sonoridade do corpo e da alma
e seu movimento, que se exprimem através dos seres e das coisas. 3) A sonoridade das cores e
seu movimento.” (KANDINSKY, 1991, p. 143).

 
  81  

Com a Arte Monumental, o espectador experimenta o processo acústico-espiritual de


maneira plural. A visualidade, a sonoridade e a verbalidade da forma exterior servem de
delimitação da “sonoridade interior”, presente nos elementos descritos acima. Na apreciação e
na percepção da Arte Monumental e da sua composição cênica, o espectador amplia sua
percepção multissensorial.

[...] Alternando rapidamente, raios de cores cruas caem de todos os lados (o azul, o
violeta, o vermelho e o verde mudam repetidas vezes) Depois, todos esses raios
encontram-se no centro e misturam-se uns aos outros. Tudo permanece imóvel. Quase
já não se vêem os gigantes. De repente, todas as cores desaparecem. Por um
momento, fica escuro. Em seguida, uma luz amarela e fosca cai sobre a cena,
intensifica-se progressivamente até todo o palco se tornar amarelo-limão-cru.
Enquanto a luz aumenta, a música vai para os graves e torna-se cada vez mais
sombria (esse movimento lembra o de um caracol entrando na concha). Durante esses
dois movimentos, não se deve ver nada além da luz no palco – nenhum objeto. A luz
mais crua é alcançada, a música dissolveu-se para a frente. Não se vêem mais os
rochedos. Os gigantes estão sós em cena; agora mantêm-se mais afastados uns dos
outros e cresceram, do palco uma voz de tenor, gritante, cheia de angústia, que berra
com grande rapidez palavras perfeitamente distintas. (Ouve-se muitas vezes o som a,
por exemplo: kalasimunafakola!). Pausa. Fica escuro por momento. (KANDINSKY,
1991, p. 149)

O objeto figurativo na história da peça encontra-se deslocado. O que é importante na


fluidez dessa obra é a ressonância na alma do espectador (processo acústico-espiritual),
provocada pela sonoridade interior de cada elemento utilizado em sua composição. Cada
espectador significa e percebe a obra de maneira distinta, inclusive suas próprias formas
exteriores, pois não são somente os valores denotativos dessas formas que entram nesse
processo de significação; os valores idiossincráticos do espectador também o influenciam.

Observações como a característica celestial/espiritual da cor azul ou a fragilidade e o


suspense oriundos da presença de notas musicais agudas sobre um cenário azul-escuro,
indicadas nesse capítulo, são baseadas nos conceitos abordados na presente pesquisa sobre
Kandinsky, porém são relativas também a cada espectador. Não é essa significação que
Kandinsky propõe; ele afasta, desorienta e dificulta o espectador na busca por uma
significação. Dessa maneira, o processo acústico-espiritual tem sua ressonância
potencializada na alma do espectador.

“A necessidade interior torna-se, assim, a única fonte [...] O drama [A Sonoridade


Amarela] compõe-se do conjunto das experiências interiores (vibrações da alma) dos
espectadores.” (KANDINSKY, 1991, p.p. 142, 143)

 
  82  

5 Ensaio acústico-espiritual: Composição visual, sonora e verbal.

Inspirada nas investigações e nos estudos feitos sobre conceitos da sonoridade interior
e do princípio da necessidade interior (KANDINSKY, 1990), a presente pesquisa apresenta a
composição de um Ensaio Visual, Sonoro e Verbal. Essa composição buscou a expressão
desse autor por meio da sonoridade interior de elementos intercódigos.

É importante ressaltar que o ensaio não tem por objetivo reproduzir a maneira exata
como Kandinsky produzia suas obras, somente foi inspirado em suas idéias sobre a expressão
interior do artista, a sonoridade interior e o afastamento de interpretações racionais por parte
do espectador.

A obra é apresentada ao espectador sob o formato de uma Projeção Audiovisual11 e


caminha ao encontro dos conceitos explorados por Kandinsky na Arte Monumental.

Figura 31: Frame do Ensaio Artístico composto pelo autor da presente pesquisa.

O ensaio é composto por luzes, cores, sons, palavras e formas. A disposição desses
elementos não mantém uma relação fundamentada na forma exterior. É semelhante à Arte
Monumental de Kandinsky, na qual o sentido relativo (presente na forma exterior) é reduzido,
pois o sentido absoluto é o principal conceito para a criação e para a expressão do artista.
                                                                                                               
11   Ensaio artístico disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.angelodimitre.com/blog/?p=1692

 
  83  

Alguns elementos propostos oferecem uma atmosfera que confunde a busca pela
significação.

Não há um enredo figurativo. Relações indiciais, iconográficas e simbólicas são


praticamente inexistentes. Alguns elementos mantêm suaves aspectos denotativos que
desorientam o espectador, pois não estão relacionados aos demais elementos da peça. Formas
irregulares, luzes desfocadas, múltiplas cores, palavras e sons musicais, que compõem a
atmosfera desse ensaio, foram utilizados na expressão do artista e apoiados na sonoridade
interior a fim de atingir vibrações intensas na alma do espectador.

Cada espectador pode significar a experiência proveniente da fluidez dessa


composição visual, sonora e verbal de maneira diferente, de acordo com a sua subjetividade.
A exemplo da Arte Monumental de Kandinsky, o principal elemento de composição e de
criação é a sonoridade interior.

Figura 32: Frame do Ensaio Artístico composto pelo autor da presente pesquisa.

 
  84  

6 Conclusão

Para Kandinsky, a priori, toda arte possui dois sentidos - um sentido absoluto e um
sentido relativo. O âmago de uma obra de arte deve explorar, prioritariamente, o sentido
absoluto, ou seja, o sentido livre de relações indiciais, iconográficas e simbólicas com a
realidade como objeto. Esse sentido absoluto é proveniente da sonoridade interior dos
elementos empregados, de acordo com a expressão do artista. Já o sentido relativo (sentido
literal), presente na forma exterior de um elemento artístico, proporciona valores denotativos,
significativos ao espectador, de acordo com a comunidade na qual ele se encontra. A Arte
Monumental de Kandinsky, cuja composição cênica relaciona elementos de diferentes
códigos, sintetiza bem todo o processo acústico-espiritual, resultante da ressonância da
sonoridade interior na alma do espectador. Kandinsky sempre procurava expressar e
amplificar ainda mais essa sonoridade e potencializar a sua vibração. No período próximo à
publicação do livro “Do Espiritual na Arte”, Kandinsky não parecia estar tão interessado nos
aspectos sintáticos, semânticos ou pragmáticos da obra de arte. Para ele, esse processo de
fluidez não era uma questão racional, mas sim, espiritual.

Vestígios dessa sensibilidade e da relação entre os diferentes meios (visual, sonoro e


verbal) são evidentes desde a infância de Kandinsky. Durante a sua vida, Kandinsky estudou e
experimentou atividades multidisciplinares, e também vivenciou artes diversas como a
pintura, a xilogravura, a música e a poesia. Todo esse trajeto percorrido contribuiu para o
exponencial desenvolvimento de sua linguagem como artista. O âmbito artístico do final do
século XIX e do início do século XX representava o início de uma ruptura com o paradigma
da relação mimética que a arte costumava apresentar com a realidade. Esse cenário era
estimulado pelos avanços científicos e tecnológicos como, por exemplo, a fotografia e a
industrialização. Naquele momento, a arte ganhava cada vez mais notoriedade como o seu
próprio universo e isso estimulava a liberdade de expressão e a busca por novos estilos.
Kandinsky foi um dos protagonistas nessa ruptura dos liames da arte tradicional. Sua
extraordinária contribuição teve como principal ensejo a busca pela sonoridade interior da
obra de arte e da expressão do artista. Kandinsky distanciava-se do cerne materialista e do
antropocentrismo da sociedade. Para o autor, esse período configurava-se como o momento
propício para a mudança rumo ao espiritual e a arte seria a maior responsável por isso.

 
  85  

O livro "Do Espiritual na Arte" foi concebido em meio a esse contexto. Conforme
relatado anteriormente, esse livro aponta toda a opinião de Kandinsky sobre o cenário da
sociedade daquela época, expõe os principais conceitos para essa relação intercódigos de sua
produção artística, expõe a sua pesquisa e a teoria sobre as cores, descreve o conceito da Arte
Monumental, além de outros tópicos. No decorrer da obra, Kandinsky faz valiosas
observações sobre artistas específicos que contribuíram para o seu desenvolvimento, como
Schöenberg, Maeterlinck, Cézzane e outros. Kandinsky visualizava nesses artistas a
sonoridade interior das formas empregadas por eles e de suas respectivas expressões.

A presente pesquisa teve como principal objetivo descrever e analisar a relação entre
os códigos visual, sonoro e verbal, os quais Kandinsky explorava por meio da sonoridade
interior dos elementos artísticos, conceitos explorados em seu livro “Do Espiritual na Arte”.
Outros textos do autor como, por exemplo, sua autobiografia Rückblicke” (Recordações –
Olhar no passado) e livros Teóricos como “Curso da Bauhaus” foram utilizados para
complementar a pesquisa. Alguns recortes de outros autores relacionados a Artes, Música,
Teorias de Cores, Percepção, Semiótica e outros também contribuíram para a pesquisa.
Contudo, é importante sublinhar que a presente pesquisa tinha como proposta aprofundar-se
nos próprios textos de Kandinsky, a fim de compreender melhor todo esse processo de criação
e a relação intercódigos nesse período contemporâneo à publicação de “Do Espiritual na
Arte”. Nesse momento, Kandinsky, com um tom embrionário, parecia profetizar novos
caminhos e se estabelecia como pioneiro nessa nova direção, na qual a arte reduziria seus
valores externos, seu sentido relativo, a fim de amplificar sua sonoridade interior.

A peça “A sonoridade amarela”, exemplo da Arte Monumental de Kandinsky,


exemplifica os principais conceitos desenvolvidos por ele e explorados na presente pesquisa
para descrever a sua relação intercódigos. Ao dispor de elementos visuais, sonoros e verbais,
de maneira fundamentada prioritariamente em suas sonoridades interiores, o modo de
relacionar os signos entre si, com seus objetos ou com seus interpretantes tornam-se confusos.
A significação é dificultada devido à valorização do sentido absoluto por meio da
amplificação da sonoridade interior e, por conseguinte, a redução do sentido relativo. Além
disso, alguns elementos são propostos de maneira consciente, a fim de criar uma atmosfera
que dificulte a busca pela significação por meio da redução do sentido relativo e da
consequente ampliação do sentido absoluto.

 
  86  

O trabalho prático criado e desenvolvido nesta dissertação é apoiado e inspirado nos


conceitos explorados por Kandinsky. Todavia, é um trabalho autoral e expressivo, que não
tem como objetivo reproduzir a maneira como Kandinsky produzia suas obras. Por meio de
uma projeção audiovisual, signos diversos como luzes, cores, sons, palavras e formas são
dispostos, sem um enredo figurativo. Aqui, o espectador também é afastado de uma
significação; há uma ruptura das relações indiciais, iconográficas e simbólicas. O espectador
poderá atribuir significados, de maneira arbitrária, de acordo com a sua subjetividade, após
vivenciar a experiência da fluidez dessa obra de arte. Entretanto, a relação entre os signos
pouco significam e a maior parte dos signos tem o sentido relativo reduzido quase que por
completo. Em alguns elementos, singelos aspectos denotativos foram preservados para
desorientar ainda mais, de maneira que não se relacionassem com os demais elementos do
ensaio por meio da forma exterior.

Para Kandinsky, a condição sine qua non para a criação de uma obra de arte é a
sonoridade interior, o que permite a essa arte utilizar formas exteriores características de
diferentes meios.

Os apontamentos e reflexões provocadas pela presente pesquisa podem impulsionar


outros estudos e possíveis expansões. A priori, há algumas perspectivas distintas e
complementares que podem direcioná-los: a) concentrar-se na questão do espiritual, apoiado
na Teosofia e na Antroposofia; b) Aprofundar-se em cada um dos códigos explorados e
propor novas maneiras de relacioná-los, levando em consideração o contexto contemporâneo;
c) Explorar relações sintáticas, semânticas e pragmáticas, de acordo com a percepção da
forma exterior e da sonoridade interior.

Essa relação intercódigos exploradas por Kandinsky há quase uma centúria atrás é
atual e relevante no contexto contemporâneo ao presente estudo. A cultura digital nos
possibilita inúmeras maneiras de relacionar e articular códigos de diferentes meios. Ao
descrever e analisar os conceitos desenvolvidos por Kandinsky para relacionar elementos
visuais, sonoros e verbais, este trabalho pode proporcionar um valioso estudo para artistas e
pesquisadores que queiram explorar os mesmos conceitos e refletir sobre novas formas de
relacionar diferentes artes.

 
  87  

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