Você está na página 1de 323

Tese de Doutorado

PESQUISAR COM A ARTE:


devir-pesquisa, devir-arte

Maria Cristina Ratto Diederichsen

Universidade Federal de Santa Catarina


Centro de Ciências da Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
PESQUISAR COM A ARTE:
devir-pesquisa, devir-arte

Maria Cristina Ratto Diederichsen

Tese apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação da
Universidade de Santa Catarina,
como requisito parcial para obtenção
de título de Doutora em Educação

Orientadora:
Profa. Dra. Gilka Elvira Ponzi Girardello

Florianópolis, 2018
Ficha de Identificação

Diederichsen, Maria Cristina Ratto. Pesquisar com


a arte: devir-pesquisa devir-arte/ Maria Cristina Ratto
Diederichsen; orientadora Gilka Elvira Ponzi
Girardello – Florianópolis, SC, 2018. 321 p.

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa


Catarina, Centro de Ciências da Educação. Programa
de Pós-Graduação em Educação, Florianópolis, 2017.

Inclui referências.

1. Pesquisa; 2. Arte; 3. Educação; 4. Experiência-


do-fora; 5. Estética da existência.
I. Girardello, Gilka Elvira Ponzi
II. Universidade Federal de Santa Catarina,
Programa de Pós-Graduação em Educação
III. Pesquisar com a arte: devir-pesquisa,
devir-arte
Dedicatória

Para todos aqueles que buscam se constituir da maneira como


desejam que o mundo seja, e, assim, reinventam mundos!
Agradecimentos

Ao povo brasileiro e ao CNPq, pela Bolsa de Estudos que muito


ajudou.

À Universidade Federal de Santa Catarina, ao Centro de Educação


e ao Programa de Pós-Graduação em Educação.

À Gilka Girardello, que me orientou e acompanhou com


generosidade e delicadeza, ajudando-me a aproximar minha escrita ao
outro, ao leitor, aos pares da Educação.

Aos professores, colegas e estudantes com quem compartilhei


este precioso processo. Especialmente ao Prof. Wladimir Garcia, por seu
pensamento instigante e à Profa. Lucia Hardt pelas viagens às paisagens
nietzsheanas, ao Zeca, à Fabíola e às colegas da Educação Infantil.

Às professoras que compuseram esta banca, pela leitura apurada


e questionadora.

Ao Professor Jan Jagodzinski, por toda sua gentileza e dedicação


em me apoiar.

À criança que, em todos nós, faz pulsar a alegria e a vida (mesmo


nos que não a percebem).
PESQUISAR COM A ARTE: devir-pesquisa, devir-arte

SUMÁRIO

Na porteira: a potência da arte na pesquisa 19

1- A pesquisa com a arte - concepções e vertentes 66


1.1. O que pode ser pesquisar
1.2. Pesquisa Baseada em Arte 92
1.2.1. Contribuições de Eisner e Barone 96
1.2.2. A/r/tografia 118
1.2.3. A potência do encontro e a ética da traição -
Jagodzinski e Wallin 126

No corredor: a espera 153

2- Poética das águas: sentidos outros para a pesquisa com a arte


2.1. Riacho: a vida como obra de arte 170
2.2. Nascentes: devir-criança 195
2.3. Terceira margem: criação, crise da representação e
experiência do fora 209
2.4. Pororocas: Intensidades e subjetivações - vida, como
te quero! 246
2.5. O mar vai virar sertão? Pesquisa-parangolé e
Antropofagia 265

Na praia: desvios sem fim 287

Referências 294

Índice das Figuras 313


PESQUISAR COM A ARTE: devir-pesquisa, devir-arte

Resumo
A presente tese visa a afirmar o potencial da arte enquanto uma via de
pesquisa acadêmica capaz de propiciar modos alargados de pensamento e
ação, concebendo a criação e a experiência como elementos centrais do
processo investigativo. Na perspectiva que elege, a tese entende a pesquisa
com a arte não tanto como uma elaboração epistemológica, mas como um
dispositivo de ações ontológicas: a composição de uma estética da
existência, de um devir-pesquisa, de um devir-arte. No momento
contemporâneo, em que a humanidade se confronta com a possibilidade de
estar causando sua própria extinção, a tese apresenta a força do ato poético
de perscrutar caminhos outros, desestabilizando o lugar comum do
pensamento, propiciando um “acreditar na possibilidade do mundo”
(Deleuze). A Tese sublinha a importância da arte na formação de
pesquisadores e na efetivação de uma educação enquanto educere,
permitindo uma humanidade por-vir. A pesquisa, de caráter ensaístico, é
organizada como uma “tese-parangolé” (Oiticica), propondo operações
discursivas bricoladoras e lúdicas, visando a produzir deslocamentos e
intensificações da potência de vida, articulando, na educação, tanto saberes
quanto não saberes. A tese revisita a obra de alguns autores da metodologia
conhecida como Pesquisa Baseada em Arte, enfatizando a contribuição dos
desafios colocados por Jan Jagodzinski e Jason Wallin. A tese propõe ainda
navegações teórico-poéticas por diferentes águas: pelos gestos
transgressores nietzscheanos, que situam a arte no centro da vida; pelos
processos foucaultianos de subjetivação, que desdobram liberdades e
práticas de si; pelo olhar noturno de Blanchot, que vislumbra a experiência-
do-fora; pela in-fância ética agambeniana que favorece experiências; pelo
pensamento desviante de Deleuze, que se espalha em multiplicidades
produzindo inícios. E propõe, especialmente, encontros com você, leitor. E
com quem mais chegar.

Palavras chave: pesquisa; arte; educação; experiência-do-fora; estética da


existência
RESEARCH WITH ART: become-research, become-art

Abstract
The objective of this thesis is to affirm the potential of art as a means for
academic research that is capable of propitiating broad modes of thinking
and action, conceiving creation and experience as central elements of the
investigative process. The thesis understands research with art not so much
as an epistemological elaboration, but as a dispositif for ontological actions:
the composition of an aesthetic of existence, of a become-research, of a
become-art. At the contemporary moment, when humanity faces the
possibility that it is causing its own extinction, the thesis affirms the strength
of the poetic act for scrutinizing other paths, destabilizing the commonplace
of thought, propitiating a “believe in the possibility of the world” (Deleuze).
The thesis highlights the importance of art in the education of researchers
and in the realization of an education as educere, which makes possible a
humanity to come. This essay-like research is organized as a “parangolé
thesis”(Oiticica), proposing ludic discursive operations and bricolages,
aiming to produce displacements and an intensification of the potential for
life, articulating, in education, forms of knowledge and non-knowledge. The
thesis revisits the work of some authors of the methodology known as Arts-
Based Research, emphasizing the contribution of the challenges raised by
Jan Jagodzinski and Jason Wallin. The thesis also proposes theoretical-poetic
navigations through different waters: through the transgressive Nietzchean
gestures, which locate art at the center of life; by the Foucaultian processes
of subjectivation, which unfurl liberties and practices of self; through the
nocturnal look of Blanchot, which envisions the outside-experience; through
the Agambenian ethical childhood that is propitious to experiences; and
through the deviant thinking of Deleuze, which spreads out in multiplicities
to produce beginnings. It especially proposes encounters with you, the
reader. And with those to come.

Keywords: research; art; education; experience-of-the-outside; aesthetics


of existence
RECHERCHE AVEC L’ART: de-venir-recherche, de-venir-art

Résumé

La présente thèse vise à affirmer le potentiel de l'art, en tant que voie de


recherche académique, capable de fournir des moyens éllargies de la
pensée et de l'action, en concevant la création et l'expérience comme les
éléments centrals du processus investigatif. Dans la perspective choisie, la
thèse comprend la recherche avec l'art non pas tant comme une élaboration
épistémologique, mais comme un dispositif des actions ontologiques: la
composition d'une esthétique de l'existence, d'un de-venir-recherche, d'un
de-venir-art. Au moment contemporain, que l'humanité se confronte avec
la possibilité de causer son extinction mème, la thèse présente la force de
l'acte poétique de scruter des chemins autres, en déstabilisant le lieu
commun de la pensée, en fournissant un «croire à la possibilité du monde»
(Deleuze). La thèse souligne l’importance de l'art dans la formation des
chercheurs et dans l’accomplissement d'une éducation (educere)
permettant une humanité pour-venir. La recherche, de caractère essayiste,
est organisé comme une « thèse-parangolé » (Oiticica), en proposant des
opérations discursives bricoleuses et ludiques, en visant à produire des
déplacements et des intensifications de la puissance de vie, en articulant
dans l'éducation, des savoirs et des non savoirs. La thèse revisite l’oeuvre de
quelques auteurs de la méthodologie connue sous le nom de Recherche
Basée sur l'Art, en accentuant la contribution des défis posés par Jan
Jagodzinski et Jason Wallin. Finalement la thèse propose des navigations
théorique-poétiques par des eaux différentes: par les gestes transgressifs
nietzscheans, qui placent l'art au centre de la vie; par les processus
foucaultiens de subjectivation, qui dédoublent les libertés et les pratiques
de soi; par le regard nocturne de Blanchot, qui entrevoit “l'expérience du
dehors”; par “l’en-fance éthique” agambénienne qui favorise les
expériences, et par la pensée déviante de Deleuze, qui conduisent à de
nouveaux débuts. Elle propose, surtout, des rencontres avec vous, lecteur.
Et avec ceux qui viennent à arriver.

Mots-clés: recherche; art; éducation; expérience du dehors; esthétique de


l'existence.
19

Na porteira: a potência da arte na pesquisa

O que é a realidade sem a energia


deslocadora da poesia?
René Char

Criar é dar forma ao próprio destino.


Albert Camus

Bem-vindo a esta jornada que busca sinalizar e afirmar o potencial


da arte enquanto via de pesquisa acadêmica. Convido você a entrar
porteira adentro, ou talvez porteira afora... (Êta, mundo velho sem
porteira!)

Convido-lhe a pensar formas de pesquisar que possibilitem tocar


este espaço sempre ainda intocado, este espaço que sobrevoa e
ultrapassa as fronteiras entre interior e exterior, sujeito e objeto, entre
eu e outro, entre realidade e ficção. O espaço criado pela arte e pela
pesquisa com a arte.

Um desafio: o desafio que inspira esta tese...

As aspirações que justificam e dão vida a esta tese erguem-se a


partir de demandas que despontaram nas últimas décadas, por parte de
pesquisadores nos contextos acadêmico e escolar: demandas de
produção, aprofundamento e legitimação de formas de pesquisa que,
por utilizarem linguagens artísticas, permitem tocar potencialidades que
permaneceriam invisibilizadas em outras formas de investigação.

Os procedimentos artísticos de pesquisa, por conceberem a


criação e a experiência como elementos centrais do processo
investigativo, podem oportunizar maneiras múltiplas de perspectivar,
desde sua complexidade, as ações e os campos pesquisados,
20

considerando suas sutilezas e especificidades, propiciando um


transpassamento de horizontes e um alargamento da compreensão do
que possa ser “pesquisar”.

Figura 1 – Devir-olhar. René Magritte, O falso espelho. 1928

Considero que pesquisar é construir (an)danças pelas


paisagens que nos atravessam e que atravessamos, concebendo
abordagens e sentidos outros. É também, compor linguagens que
possibilitem o compartilhamento destas experiências, criações e
conhecimentos.

Contribuir para a valorização e o aprimoramento das


metodologias artísticas de pesquisa nos diversos campos de
conhecimento é meu objetivo nesta tese. Mais do que buscar conferir
legitimidade epistemológica à pesquisa com a arte, desejo apresentá-la
como um acontecimento de imanência ontológica, que, ao produzir
21

maneiras outras de se existir no mundo, inaugura potências de vida e de


criação. Desejo constituí-la como uma aposta na criação de caminhos
investigativos que problematizem a maneira como vemos, pensamos e
vivemos, que transbordem os modos ordinários e instituídos de se
endereçar ao mundo, desencadeando olhares poéticos, estéticas da
existência1 e processos de devir-arte, de devir-pesquisa.

Há vivências que só podem ser avistadas, experienciadas,


instauradas e compartilhadas pelo ato poético. O gesto poético é de uma
outra ordem que o ordinário e o científico. O que pode diferenciar a
linguagem poética da ordinária seria o fato de “a primeira, mais do que
ser uma linguagem metafórica, poder criar metaforicamente a
linguagem.”2 “A Poesia é um dos destinos da palavra, (...) onde tocamos
o homem da palavra nova, uma palavra que não se limita a exprimir
ideias ou sensações, mas que tenta ter um futuro. A imagem poética, em
sua novidade, abre um porvir da linguagem.”3

Na experiência artística, a relação que se estabelece com a


linguagem é de outra natureza. Ela não acontece quando atravessamos
o símbolo para ir direto ao que ele se refere, como quando lemos um
texto científico.

Diferentemente do método científico, em que o priori epistemológico


exerce controle sobre o objeto e a validade da experiência, o artista joga
com o acaso e a imaginação ao apreender seus objetos. Ao nutrir-se das
ações lúdicas que a experiência sugere, as inflexões de sentido assumem
grande importância no processo criativo. Antes de visar conclusões, o
processo do artista se atém à experiência em si. 4

A criação artística pode ser uns dos “mais poderosos


instrumentos críticos de que dispomos hoje para ver além das bordas,
para pensar e transformar o modo como as sociedades contemporâneas
se constituem, se reproduzem e se mantêm”.5 Neste sentido a

1 FOUCAULT, 1995
2 COMETTI, 2000, p. 12
3 BACHELARD, 2009, p. 3
4 VINHOSA, 2011, p. 43.
5 MACHADO, 2004, p. 6
22

experimentação poética tem um caráter fortemente político:


metamorfoseia aquilo que não cabia nos lugares da cultura, abre fissuras
no campo fechado do senso comum, faz caber no mundo coisas que
antes não cabiam, facultando-nos criar trajetórias inusitadas, jogar com
os acontecimentos para transformá-los em oportunidades. “A
perspectiva artística é certamente a mais desviante de todas, uma vez
que ela se afasta com tal intensidade do projeto originalmente
imprimido (...), que equivale a uma completa reinvenção dos meios.”6

O caráter político da arte, para Michel de Certeau, se evidencia


em sua potencialidade de criar perspectivas desviacionistas, que embora
estejam dentro de um contexto de dominação, não obedecem à lei do
lugar, não se definem por este. Uma ação que, “sem sair do lugar onde
tem que viver e que lhe impõe uma lei, instaura aí pluralidade e
criatividade. Por uma arte de intermediação, tira daí imprevistos.”7 A
arte também pensa, e o pensamento artístico se realiza por paradoxos,
por saltos, não se situa entre oposições, mas fala destes vários lugares,
habita simultaneamente e de maneira singular, tanto nossa dimensão
infinita quanto nossa dimensão histórica, transpassando a percepção do
senso comum, quando este aparta o infinito do transitório.

As metodologias artísticas de investigação buscam propiciar


modos expandidos de tocar, imaginar, pensar e significar a pesquisa, nos
diversos campos do saber acadêmico. Buscam instaurar “danças” entre
os pesquisadores e seus campos, relações inventivas, movimentos
imprevisíveis, acercando e distanciando sujeitos e objetos, com eles se
fundindo e deles se apartando, oportunizando visadas diversas, versos e
reversos que poetizam o processo da pesquisa, questionando os lugares
comuns do pensamento, tingindo com muitos matizes e “Matisses” a
construção e a desconstrução do conhecimento, atualizando
possibilidades de percepção e atuação invisíveis ao olhar ordinário.
Suas práticas, tanto empíricas quanto teóricas, visitam e recriam,
através do ato artístico, as dimensões do humano, do inumano, da
incompletude e da incerteza, alargando assim a concepção do que pode
ser pesquisar.

6 MACHADO, 2004, p. 4
7 CERTEAU, 2013, p.87
23

Figura 2 – Devir-escrita. Paulo Gaiad. Receptáculo da memória de Renato Tapado.


2002.

Afinal, o que pode a arte, em uma pesquisa acadêmica?

Se configura assim a constelação de problemas que esta tese


procura visitar. No desafio de trazer para a pesquisa a potência da arte
24

de atravessar as margens que cerceiam o pensamento, a sensação e a


criação, de desacomodar as perspectivas condicionadas pelos discursos
hegemônicos, de “libertar a vida onde ela esteja prisioneira.”8

Recorrer a procedimentos artísticos como maneira de criar,


pensar, conhecer e acessar mundos não é algo novo e vem ao longo da
história, como sabemos, acompanhando, permeando e produzindo a
construção do conhecimento e da própria humanidade. A arte, no
entanto, entendida como um “instrumento” de pesquisa acadêmica
válido em diversos campos do saber, respeitado, aceito e apreciado, é
algo ainda bastante recente e questão que vem sendo, desde as últimas
décadas do século XX, debatida, refinada e fortalecida por muitos
autores.

Entre os artistas e pensadores que contribuíram e contribuem


para esta empreitada, alguns me inspiram especialmente...

Friedrich Nietzsche é um deles, quando declara que a “existência


do mundo só se justifica como fenômeno estético.”9 Nietzsche afirma a
relação da arte com a vida, entendendo a arte como uma ilusão que,
diferentemente da ciência, se sabe ilusão. É a partir de Nietzsche que a
estética passa a ser identificada como o pensamento da arte, como o
pensamento efetuado pelas obras de arte, “um pensamento daquilo que
não se pensa.”10

Na perspectiva nietzscheana é possível fazer despertar os


sentidos para a elevação da cultura através da arte. Em O Nascimento
da Tragédia, publicado em 1872, Nietzsche discorre sobre a trágica luta
entre forças dionisíacas e apolíneas, energias polares que desencadeiam
nossos conflitos, nossos desejos e nossos vazios. Apolo seria a razão, a
ordem, o equilíbrio, a luz do dia que, no entanto, não vive sem a noite
dionisíaca. A experiência dionisíaca, criadora, sensorial e transgressora,
instauraria uma intensificação da vida em condições extremas. A
inesgotabilidade do fundo dionisíaco da vida propiciaria que o fenômeno

8 DELEUZE, 1992
9 NIETZSCHE, 2007, p. 16
10 RANCIÈRE, 2009, p.13
25

da arte fosse colocado no centro e a partir dele se tornaria possível


acessar o mundo. Não se trata mais de instaurar um juízo que divide,
condena, renega, mas de proclamar um sim à vida em sua crua
integridade.

A arte, e não a ciência, para Nietzsche, afirmaria a vida em seu


conjunto. A arte seria uma prática imbuída de um sentido ético, que
permitiria efetivarmo-nos como obra de nós mesmos. Pois “queremos
ser os poetas-autores de nossas vidas, principalmente pelas coisas
mínimas e cotidianas,”11 criando sentidos para a existência:

Como fenômeno estético, a existência é sempre, para nós, suportável


ainda, e pela arte foram-nos dados olho e mão e antes de tudo a boa
consciência para podermos fazer de nós próprios, um tal fenômeno.
Temos de descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e
de cima e, de uma distância artística, (...) temos de alegrar-nos vez por
outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa
sabedoria! E precisamente porque nós somos homens pesados e sérios
e somos mais pesos que homens, nada nos faz mais bem do que a
carapuça de Pícaro (...) – precisamos usar de toda arte altiva, flutuante,
dançante, zombeteira, para não perdermos a liberdade sobre as coisas
(...). 12

Nietzsche nos conclama a nos libertarmos de nossa ânsia em


desvelar a verdade e a essência dos fenômenos, e a nos empenharmos
em ações que afirmem a potência da vida e nossa capacidade de criação.

Também a força poética do pensamento de Maurice Blanchot


vivifica meu pensamento acerca da pesquisa com a arte, quando ele se
refere às realidades outras que podem ser instauradas pelo poeta:

A mão do poeta se fecha sobre aquilo que apanhou: cada fragmento, e


a seguir cada palavra comprime num lugar único o percurso em todo o
tempo e segundo todos os modos e por toda parte; todo o possível
humano.13

11NIETZSCHE, 2012, p. 179


12NIETZSCHE, 2012, p.179
13 BLANCHOT, 2010, p. 16-17
26

Figura 3 – Devir -o fora. Anselm Kiefer. Aschenblume (Flor de cinzas,) 2004.

Ao discorrer acerca da arte poética, Blanchot coloca em xeque


concepções tradicionais da filosofia da arte, como as de autor, de
experiência e de pensamento. Não lhe parece mais cabível pensar a arte
como representação do mundo. Defende que a poesia só pode realizar-
se recusando os gêneros limitados e afirmando uma linguagem que
parta de um ponto mais recuado do pensamento, uma linguagem que
faz falar o espaço. Não apenas o espaço real, mas

um outro espaço, mais próximo dos signos e mais expressivo, mais


abstrato e mais concreto, o próprio espaço anterior a toda linguagem e
27

que a poesia atrai, faz surgir e libera por intermédio das palavras que o
dissimulam.14

Um espaço e um silêncio que subsistem entre os pensamentos,


entre as palavras, onde a poesia surge como a necessidade da palavra,
pois

a arte não diz a realidade mas sua sombra, ela é o espessamento pelo
qual algo distinto se anuncia a nós (...), é a experiência da arte como
cumprimento não pode cumprir-se, (...), daquilo que é sempre distinto
do real.15

Para Blanchot, a poesia funda sua própria realidade, seu próprio


mundo, seu próprio espaço. A linguagem poética é distinta da
linguagem comum. A linguagem comum é utilitária, um instrumento que
se refere ao mundo exterior, visando a estabelecer uma relação entre o
receptor e o objeto evocado pela palavra, ou pela imagem. A linguagem
poética constitui seu próprio universo, como ficção, não representa algo
existente, mas cria, apresenta um objeto. É justamente em seu uso
poético “que a linguagem revela sua essência: o poder de criar, de
fundar um mundo.”16 Foi para pensar a relação entre a literatura e o real
que Blanchot criou um conceito do fora.

A poesia habita o espaço do fora, esse espaço que precede as


palavras, que é puro devir, esse espaço do neutro, daquilo que não pode
ser classificado, não pode ser distribuído em um gênero e supõe uma
relação sempre obscura e ambígua. A poesia escapa à “primazia do Eu-
Sujeito”, pois, viver poeticamente “é necessariamente viver adiante de
si.”17 É estar aberto para o encontro, quando o “Outro, surgindo de
surpresa, obriga o pensamento a sair de si próprio, assim como obriga o
Eu a defrontar-se com a falta que o constitui e de que se protege.”18

O fora é este outro do mundo que é desdobrado pela arte. Este


desdobramento não se dá como cópia do real, mas aparece a partir do

14 BLANCHOT, 2010, p. 24.


15 Idem.
16 LEVY, 2011, p.20
17 BLANCHOT, 2010, p. 34
18 BLANCHOT, 2010, p. 39
28

imaginário. A imagem nos mostra a ausência do objeto real. Afirmando


as coisas em sua desaparição, a imagem torna presente a ausência que
a funda. A poesia, para Blanchot, “aparece como meio de uma
descoberta e de um esforço, não para expressar o que sabemos, mas
para sentir o que não sabemos.”19 Viver poeticamente é viver com o
desconhecido diante de si:

é entrar nessa responsabilidade da fala que fala sem exercer qualquer


forma de poder, inclusive este poder que se realiza quando olhamos, já
que, olhando , mantemos sob nosso horizonte e em nosso círculo de
visão - na dimensão do visível-invisível - aquilo e aquele que está diante
de nós.20

A arte, reitera Blanchot, é real, pois é eficaz: “A arte é real na obra. A


obra é real no mundo, porque aí se realiza, porque ela ajuda a sua
realização e só terá sentido no mundo onde o homem será por
excelência.”21 A obra é onde o ser humano está livre para um começo,
para a possibilidade de estar aberto e nu diante do abismo do mundo,
apto a fundar um outro mundo.

Também o pensamento de Michel Foucault, acredito, pode


fortalecer e ampliar o entendimento acerca da pesquisa e da arte,
quando ele leva adiante a concepção nitzscheana de vida como obra de
arte, propondo o que denomina uma estética da existência:

O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte se relacione


apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também seja
um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os artistas.
Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que
uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não? 22

A estética da existência consiste no desenvolvimento de práticas


que têm a própria vida como objeto, na criação de uma sabedoria em se
vivermos a vida da forma mais bela e ética possível, e se transformar,

19 BLANCHOT, 1997, p. 81
20 BLANCHOT, 2010, p. 35
21 BLANCHOT, 1987, p. 212- 213
22 FOUCAULT, 1995, p. 261
29

assim, o mundo. São práticas de nos constituirmos artífices de nossa


conduta: o exercício político de criação de processos de subjetivação não
assujeitados ou assujeitadores. Formas de pensar não dogmáticas, que,
jogando com as liberdades possíveis, inventam novos sentidos. Formas
de agir que, através de uma problematização constante do que somos,
possibilitam que nos tornemos outros.

Foucault leva adiante o conceito blanchotiano de fora,


concebendo-o como a possibilidade de escapar às verdades instituídas,
às formas de confinamento da vida, do saber e do pensamento.
Entendendo o saber como sempre relacionado ao tempo histórico: o
saber constitui “os limites do que pode ser visto e do que pode ser dito
em cada época.”23

Em O Pensamento do Exterior24, Foucault associa o pensamento


do fora a um processo de despersonalização do sujeito, em prol do
aparecimento do “ser da linguagem”. Defende que o discurso “eu falo”
não preexiste ao momento em que é dito, “e desaparece no próprio
momento em que me calo.”25 O vazio onde se manifesta a debilidade
do “eu falo” é:

uma abertura absoluta por onde a linguagem pode se expandir


infinitamente, enquanto o sujeito – o ‘eu’ que fala – se despedaça, se
dispersa e se espalha até desaparecer neste espaço nu. (...) a exposição
da linguagem em seu ser bruto, pura exterioridade manifesta.26

Tatiana Levy, em seu livro A Experiência do Fora27, ao comentar


este conceito foucaultiano, nos lembra que a palavra sujet, em francês
“refere-se tanto àquele que fala quanto àquilo que se fala.”28 E
consequentemente, o desaparecimento do sujet consiste na ausência,

23 LEVY, 2011, p. 74
24 FOUCAULT, 2015
25 FOUCAULT, 2015, p. 224
26 FOUCAULT, 2015, p. 224
27 LEVY, 2011
28 LEVY, 2011, p. 59
30

tanto do sujeito quanto do objeto. Foucault desmontaria assim, os dois


esteios do pensamento clássico: o homem e a representação.

Gilles Deleuze é talvez a minha mais forte referência nesta tese.


Eu diria, parafraseando suas palavras29 em relação a Espinosa: - Deleuze
é meu coração, não o esqueço. A abordagem de pesquisa com a arte que
aqui sustento se aproxima enfaticamente da conceituação deleuziana de
arte. Deleuze entende a arte como blocos de sensações compostos de
perceptos e afectos. Os perceptos não seriam mais percepções, os
afectos não seriam mais sentimentos ou afecções, mas transbordariam
a força daqueles que são atravessados por eles.30 Um artista constrói
“conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que os
sentem. O percepto é isso.”31 Deleuze discorre também acerca dos
afectos:

Não há perceptos sem afectos. Tentei definir o percepto como um


conjunto de percepções e sensações que se tornaram independentes de
quem o sente. Para mim, os afectos são os devires. São devires que
transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele
que passa por eles. O afecto é isso. Será que a música não seria a grande
criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para potências acima
de nossa compreensão? (...). Se você me mostrar um quadro que não
tem percepto nenhum, onde há apenas uma vaca representada com uma
certa semelhança, mas sem o percepto da vaca, onde a vaca não seja
elevada ao grau de percepto, não há interesse. Se me faz ouvir uma
música sem afecto, eu nem entenderia o que é.32

29 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 7


30 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.213
31 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 52
32 DELEUZE; PARNET, 2012, p.53
31

Figura 4 - Devir-pele. Tim Diederichsen, O mais profundo é a pele. Fotografia. 2010.

Para Deleuze, o olhar sensível nos coloca na pele das coisas, não
para compreendê-las, mas para animá-las, fazendo os afetos
transbordarem e devirem a energia vinculadora de nossas relações. O
mundo, espelhado pela criação artística, deixa de ser uma simples
materialidade, convertendo-se num potencial e diversificado corpo de
relações significativas.33 Nos colocamos na pele do mundo e... “o mais
profundo é a pele”34

33 MEIRA, 2003, p. 133


34 VALERY apud MACHADO, 2009, p.35
32

A pele é a casa da vida


A dobra do tempo
Abrigo dos sentidos
O lar da língua
A pele é o útero da alma.35

Na concepção deleuziana, escrever é um ato impessoal. Escrever


não é discorrer sobre a vida pessoal, escrever é se lançar, realmente, em
uma história coletiva, impessoal.36

Escrever tem a ver com a vida, mas a vida é algo mais do que pessoal.
(...). Acho que escrever é um devir alguma coisa. Mas também não se
escreve pelo simples fato de escrever, se escreve porque algo da vida
passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos
tornamos alguma coisa. Escrever é devir. É devir o que bem entender.
(...) Escrever é mostrar a vida. É testemunhar em favor da vida. (...).
Escrever é necessariamente forçar a linguagem, (...), forçar a sintaxe até
um certo limite. (...). Tanto o limite que separa a linguagem do silêncio,
quanto o que separa a linguagem da música (...) Fica-se no limite que
separa o pensamento do não pensamento.”37

Fica-se, talvez, também na pesquisa, próximo ao olho do furacão,


vive-se sua plena intensidade, sem se deixar destruir por ele, e
compartilha-se a sua feroz alegria.

Conto também com a valiosa contribuição das propostas


investigativas conhecidas como Pesquisa Baseada em Arte (PBA). Estas
metodologias artísticas de pesquisa foram criadas, sistematizadas e
desenvolvidas nas últimas décadas, a partir do trabalho de muitos
autores, entre eles: Elliot Eisner, Tom Barone, Lawrence-Lightfoot, J.H.
Davis, Graeme Sullivan, Richard Siegesmond, o grupo de pesquisadores

35 CANTON, 2009, p. 53
36 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 4.
37 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 4.
33

do A/r/tografy, Ricardo Marín Viadel, Fernando Hernández, e Jan


Jagodzinski, a quem dou especial destaque nesta tese.

Jan Jagodzinski, professor e pesquisador da Universidade de


Alberta no Canadá, autor de uma extensa obra sobre arte, educação,
pesquisa, e mídias, é minha principal referência no campo da pesquisa
com a arte. A força de suas problematizações e de suas propostas de
ação nos âmbitos da educação, do ensino da arte e da pesquisa, trazem
importantes contribuições para pensarmos, com maior acuidade, as
possibilidades da Pesquisa Baseada em Arte.

Jan Jagodzinski escreveu, em parceria com Jason Wallin, o


belíssimo livro Arts-Based Research: A Critical and a Proposal38 (Pesquisa
Baseada em Arte: uma Crítica e uma Proposta), publicado em 2013.
Encontrei-me com este livro, nas páginas virtuais da internet, no início
de 2014, quando realizava parte de minha pesquisa teórico-bibliográfica
sobre o tema. Eu já havia lido, nesta ocasião, alguns artigos de Eisner,
Hernandez, Belidson Dias, Marilda de Oliveira, Rita Irwin, Stephanie
Springgay e Marín-Viadel, acerca da PBA, e ficava me perguntando como
aproximar as propostas destes autores do pensamento de Gilles
Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault, Michel de Certeau, Maurice
Blanchot e Roland Barthes, que vinham se constituindo as principais
referências em minhas pesquisas. Eu questionava alguns pressupostos
das teorias de Eisner e de outros que escreveram a partir dele, que me
pareciam naturalizados, não postos em discussão, que me pareciam
suposições tidas como uma “verdade que não é pensada, mas que opera
como princípio de pensamento.”39 Encontrei então, na obra de
Jagodzinski e Wallin, elementos de análise, crítica e mesmo de incisão
nestas questões, que possibilitaram alargamentos em minhas reflexões,
e a criação de perspectivas desviantes para pensar as diversas
modalidades de pesquisa artística.

No Brasil as metodologias artísticas de pesquisa são ainda pouco


estudadas. As discussões e debates sobre este tema se encontram, no
meio acadêmico brasileiro, em sua fase inicial. Dos trabalhos realizados,

38 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013


39 KOHAN, 2007, p.20
34

destaco a interessante e consistente tese de doutoramento de Sonia


Tramujas Vasconcellos, intitulada Entre (dobras) lugares da pesquisa na
formação de professores de artes visuais e as contribuições da pesquisa
baseada em arte na educação40 e o livro Pesquisa Educacional Baseada
em Arte: A/r/tografia41 organizado por Belidson Dias e Rita Irwin,
publicado em 2013, com artigos de autores brasileiros e de várias outras
nacionalidades.

Há ainda poucos artigos publicados sobre as metodologias


artísticas de pesquisa, dentre eles: dois ensaios de Marilda Oliveira de
Oliveira, Contribuições da perspectiva metodológica ‘Investigação
Baseada nas Artes’ e da A/r/tografia para as pesquisas em Educação e
Como ‘produzir clarões’ nas pesquisas em educação apresentados,
respectivamente, nas ANPEDs de 2013 e 2015; o ensaio de Sonia
Tramujas Vasconcellos e Tania Maria Baibich A Pesquisa Baseada em
Artes Visuais na Educação: novos modos de investigar e conhecer; um
outro artigo de Belidson Dias Preliminares: A/r/tografia como
metodologia e pedagogia em artes (2009); um ensaio coletivo de Maria
Teresa Cauduro, Marcia Birk e Pricila Wacgs Investigación basada em las
artes: una aportación bralileña, publicado na revista do Forum
Qualitative Sozialforschung (Fórum de Pesquisa Social Qualitativa) da
Universidade Livre de Berlim (2009), e ensaios de autoria de Luciana
Gruppelli Loponte (2008, 2014) , Cristian Poletti Mossi (2015), Irene
Tourinho (2009, 2013), Sandra Rey (1995, 2010) , Raimundo Martins
(2013), Maria Cristina Pessi (2009), entre outros.

O 24º Encontro Nacional da ANPAP, Associação Nacional de


Pesquisadores em Artes Plásticas, realizado em Santa Maria, Rio Grande
do Sul, em 2015, contou com um Simpósio (o de n. 8), denominado
Pesquisa em Educação e Metodologias Artísticas: Entre fronteiras,
conexões e compartilhamentos. Este Simpósio, coordenado pelas
Professoras Miriam Celeste Martins, Sonia Tramujas Vasconcellos e
Marilda Oliveira de Oliveira, e com a participação de 16 integrantes,

40 VASCONCELLOS, 2015
41 DIAS; IRWIN, 2013
35

trouxe importantes contribuições para o aprofundamento e a discussão


acerca deste tema.42

Buscando contribuir para a ampliação do debate em torno da


pesquisa com a arte, proponho esta tese, inspirada em Hélio Oiticica,
como uma “tese-parangolé”, uma jornada lúdica, lúcida, alegre, e
transgressora. Busco construir um caráter “parangolé”, através da forma
heterogênea, tensionada e descontínua da estruturação das linguagens
e dos capítulos, operando colagens, bricolagens e rizomas. Também
através do encadeamento de um diálogo entre parangolé e pesquisa
com a arte, frisando a potência do acontecimento, da experiência, e da
criação. Proponho uma pesquisa-parangolé, como um convite a inventar
relações que permitam ir além de si mesmo e “abandonar o relato
repetido, a identidade de si como centro de gravidade e como centro do
universo.”43

Os parangolés são formas de arte, obras-ação-multisensoriais


criadas por Hélio Oiticica em 1964, ano do golpe militar no Brasil. Mais
do que objetos artísticos, os parangolés são

vivências que inventam uma poética do instante, do gesto, do precário e


do efêmero. (...) Estandartes, tendas e capas, panejamentos coloridos ou
camadas de panos de cor que se revelam no movimento, os parangolés
não são objetos, sua condição artística só se produz na medida que estes
são usados. Os parangolés salientam ações e gestos: carregar, andar,
dançar, penetrar, percorrer, vestir, atos das extensões do corpo. (...).
Ampliam e intensificam o tempo da participação, liberando o
imaginário.44

42 Estes artigos podem ser acessados nos Anais da ANPAP:


www.anpap.org.br/encontros/anais
43 SKLIAR, 2014, p. 109
44 FAVARETTO, 2015, p.105
36

Figura 5 – Devir tese- parangolé. Tim Diederichsen -Tese parangolé. 2016

As formas, as cores, os pensamentos não estão mais contidos em


um objeto, como uma tela ou uma escultura, mas flutuam soltos com o
corpo no movimento do ritmo e da dança.

Para Oiticica o parangolé é uma “proposição-vivência”, uma


“fonte total de sensorialidade”, um processo de “transmutação
expressivo-corporal”, “um corpo tornado dança.”45 Pelo fato de
vestirmos a obra, o corpo passa a fazer parte dela e não há mais
separação ou dualidade sujeito-objeto, agora instáveis e indefinidos.
“Não se trata do corpo como suporte da obra; pelo contrário, é a total

45 DUARTE; SALOMÃO, 1982, p.278


37

‘in(corpo)ração’.” 46 Na ação-parangolé, o corpo é ressignificado,


diluem-se os significados habituais do senso comum, dissolvem-se as
identidades, coletivizam-se as ações.

Da mesma forma, busco, na composição de uma tese-parangolé,


o potencial desviante da experiência estética e do encontro com o
coletivo. Trabalho, é claro, com formas de linguagem, e “a linguagem é
uma pele: fricciono minha linguagem contra o outro. Como se eu tivesse
palavras à guisa de dedos, ou dedos na ponta de minhas palavras.”47
Arrisco uma escrita-parangolé, uma escrita que se deseja poética,
polifônica, continuamente levada a multiplicar-se. Uma escrita que, em
consonância com a maneira de pesquisar aqui proposta, se abre às
diferenças que povoam o mundo e busca sua força, justamente, no
estranhamento que advém da difícil coexistência destas diferenças.

Coabitam, portanto, nas páginas desta tese, imagens, poesias,


colagens e diversas sortes de fala: algumas, de autores renomados;
outras, de momentos cotidianos; e outras ainda, eminentemente
fictícias. Algumas vezes o texto “condutor” é visitado e entrecortado
por personagens estrangeiros - por uma pluralidade de vozes que
aparecem e desaparecem em diálogos, comentários e pausas - no
sentido de efetuar uma composição aberta ao imprevisível, uma vez que
a poesia se dá em uma vivência inadvertida. Arrisco, portanto, uma
escrita interpoiética,48 que se engendra a partir do encontro com a
impessoalidade da arte, e, repito, também com você, leitor....

Busco realizar uma forma de escrita onde minhas palavras e as


dos outros se compõem em uma dança, no desejo de torná-las
impessoais, de torná-las as palavras da vida em sua vontade de se
pensar, se transformar, se criar, de devir sempre outra vida. No espaço
aberto da criação, as identidades se dissolvem, nos permitindo
escutarmos e falarmos as palavras do outro como se fossem nossas, e
escutarmos e falarmos nossas palavras, como as de um outro. Pois como
nos sugere Sandra Corazza:

46 OITICICA, in FAVARETTO, 2015, p. 107


47 BARTHES, 2007, p. 99
48 JAGODZINSKI, 2017
38

Para que as escolhas que fazemos dos conceitos (textos, livros e obras)
dos outros passem para nós, é necessário que os definamos como
escritos por nós. E que, ao mesmo tempo, os tornemos outros,
deformando-os por amor, desde que por eles fomos seduzidos. O que
buscamos, (...) é que alguma coisa ocorra: uma nova aventura, uma nova
conjunção amorosa; e, por isso, a relação que estabelecemos com
determinados conceitos do autor amado é a de que eles fiquem lá, como
dignos de nós mesmos, inspirando-nos a passar do Prazer de Ler ao
Desejo de Escrever.49

Ser pesquisador, nessa atmosfera, é ser como o artesão que


produz com as mãos a própria existência; como o artista que realiza uma
composição cuidadosa, criando realidades outras; como o literato que
com seu olhar poético dissolve os estreitamentos reinantes, ou, ao
menos, procura dizer que eles existem, tenta nomeá-los, questioná-los,
desenraizá-los e desaprendê-los.

Sendo assim, parece-me necessário sublinhar o fato de que, se


por um lado, para concebermos a possibilidade de realizar uma pesquisa
acadêmica através de processos artísticos, se faz necessário alargar
nosso entendimento do que possa ser uma pesquisa, não menos
necessário é considerarmos a ampliação que o entendimento do que
possa ser arte sofre a partir da modernidade e da contemporaneidade.

Rosalind Krauss, em 1979, no seu já clássico artigo Escultura no


campo ampliado50, ao discorrer acerca do trabalho de artistas, como Joel
Shapiro, Robert Morris, Mary Miss, deparou-se com a impossibilidade de
encaixá-los na conceituação tradicional de Escultura, “a não ser que o
conceito desta categoria pudesse se tornar infinitamente maleável.”51
Krauss constatou que tais objetos artísticos se situavam num espaço
híbrido, num entre-lugar entre a paisagem e a arquitetura, o que a levou
a conceber um campo ampliado, “gerado pelo conjunto de oposições

49 CORAZZA, 2007, p. 69-70


50 KRAUSS, 1984
51 KRAUSS, 1984, p. 129
39

entre as quais está suspensa a categoria modernista de escultura”52. A


noção de pureza dos gêneros e meios já não fazia mais sentido.

As reflexões de Krauss trouxeram elementos para uma expansão


da compreensão da arte e, posteriormente, muitos artistas com o intuito
de escapar ao controle das instituições e do mercado, ao isolamento de
suas diferentes linguagens e à especificidade dos meios, têm proposto
obras e ações que criam formas híbridas que se estendem em um campo
ampliado:

um campo complexo, de articulação e agenciamento, um sistema


dinâmico sempre aberto a novas conexões. Aberto para incorporar
diferentes mídias, diferentes vozes, diferentes estímulos, fluxos,
contrastes, acolher a impermanência, o fugidio, o precário.53

Não há apenas a contaminação entre as disciplinas artísticas, mas


também, como comenta George Maciunas54, as atividades dos artistas
afastam-se cada vez mais do mundo da abstração, para referirem-se à
vida e ao real, deixando-se afetar pelo contingente e pelo imprevisto.
Desde Marcel Duchamp, das vanguardas do século XX, dos múltiplos
agenciamentos desdobrados pelos artistas contemporâneos, abre-se
um campo de paradoxos, dentro do qual a qualidade artística de um
objeto só pode ser identificada

quando há um mergulho nas suas articulações internas, onde são


fundadas e refundadas, constantemente, as condições da arte. (...). Tudo
depende de um debruçar-se e de uma prática de disponibilidade para o
aprendizado, que por seu lado possui tantas variáveis que é
absolutamente impossível sistematizar. 55

No campo da arte, onde houver regras, haverá sempre a


possibilidades de delas escapar.

52 KRAUSS, 1984, p. 135


53 ZONNO, 2008, p. 1214
54 MACIUNAS, 2002, p. 89
55 VINHOSA, 2011, p. 8
40

Artistas contemporâneos, como Joseph Beuys, Marina Abramovic


e Hélio Oiticica, colocam a própria experiência no lugar do objeto,
experiências singulares, com o outro e coletivas. A obra de arte, na
contemporaneidade, é entendida como uma criação imanente, uma
rede de escolhas, significados, contextos e referências entrecruzadas,
que requerem, por parte de quem os experimenta, um ato de recriação.
Para Jaques Rancière,56 os objetos de arte seriam estes objetos
especiais, que, tendo a marca de um determinado fazer, diferenciam-se
dos comuns por serem objetos culturais cuja condição é o devir. Sua
condição é precisamente não ter um a priori, mas ser em transformação.
Não é entendida como objeto puro e sublime, de ordem transcendental,
mas como uma criação imanente, uma rede de escolhas, significados,
contextos e referências entrecruzadas, que requerem, por parte de
quem os experimenta, um ato de recriação.

Assim, também uma pesquisa acadêmica, se trabalhada a partir


de ações e linguagens poéticas/artísticas, tanto no processo de
investigação quanto na realização do “texto/objeto” final, pode vir a ser
considerada uma forma de arte.

Pesquisar com a arte pode construir, através nossas vivências


imersas no cotidiano, abordagens inusitadas do mundo. Afinal, não
estamos pesquisando realidades separadas de nós, estamos imersos nos
discursos e nas paisagens que atravessamos como pesquisadores. “Se
pesquisarmos o cotidiano, estabeleceremos a clássica separação entre
pesquisador e seu objeto de pesquisa. Mas se pesquisarmos no
cotidiano, seremos partícipes destas ações.”57

Para pesquisarmos e trabalharmos no cotidiano, sem sermos


determinados pelo discurso cultural hegemônico, podemos plasmar,
pela experiência artística, um lugar entre o mundo, a linguagem e o
olhar. Um entre, que não é um lugar-nenhum, nem um lugar geográfico
a meio caminho entre um ponto e outro, mas um entre-lugar, um lugar
híbrido, de mediações, capaz de tecer novas relações, um lugar em que

56 RANCIÈRE, 2009a
57 SPINK, 2014, p. 21 Grifos da autora citada.
41

nossas estratégias de reconhecimento são constantemente rompidas,


nos abrindo para o poético. Afinal, não somos imparciais,
transcendentes e autônomos como pretendiam os modernos, nem
passivos, condicionados ou autômatos, como insinuam os desanimados.
Como pesquisadores-artistas, nos movemos a partir de posturas
incertas, advindas do espaço entre “o local e o contingente,”58 um
espaço não determinado a priori, um espaço que se abre no processo
investigativo.

A pesquisa com a arte, como qualquer outra forma de pesquisa,


pode trabalhar com a produção de uma teoria, porém o seu diferencial,
acredito, é a produção de ações: a criação poética de mundos e de
formas outras de se estar no mundo, a invenção de sentidos mesmo que
provisórios, a vivificação de cada momento, a construção de processos
de subjetivação que oportunizem que constituamos nossa vida como
uma obra de arte e que possamos chegar a ser o que somos.59 E somos
cantigas vivas, devires singulares, pura potencialidade, somos história e
somos o infinito.

E isso não é pouco.... E isso não é fácil.... Não é fácil escapar aos
hábitos e modelos que estruturam nossa percepção, nosso pensamento,
nosso desejo, nossos afetos.

58 CAMOZZATTO, 2014, p. 577


59 NIETZSCHE, 2003
42

Tanto me lanço no tempo-correria de não perder tempo,


perseguindo fantasmas, sem descanso, ideais espetaculares e
ilusórios,
que em meu torpor suponho serem meus,
embaralho-me em seus fios de incontáveis reflexos
perco-me em suas paisagens repartidas
onde brilhantes luminosos repetem monólogos desconexos
convocando-me a reproduzir, entorpecida,
desejos de prestígio, reconhecimento, vaidade
a atravessar dias, anos e vidas esquecida da abundância do agora,
ignorando minha ignorância e a sabedoria sem idade
e fugindo da ausência de meu rosto e da presença libertadora do
fora.
43

Figura 6 – Devir-só. Tim Diederichsen, Volta. Gravura em metal, 2003.


44

“Eu te vejo sumir por aí


Te avisei que a cidade era um vão
(...) Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
(...)
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão, frouxa de rir
Já te vejo brincando, gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.” 60

60 Chico Buarque, Vitrines. www.letras.mus.br/chico-buarque/45109/


45

Figura 7 – Devir- poesia. Tim Diederichsen. Colheita. Gravura em metal, 2003.

O que mais, além da poesia, estaríamos entornando no chão?

Diante das infindáveis e maravilhosas possibilidades de devir, que


se oferecem a cada dia, a cada momento, a cada nascimento, (Bom dia,
46

Hannah Arendt! Bem vinda! Até já...) parece que tantas vezes
escolhemos caminhos íngremes e inóspitos, em torno da vontade de
controle, do domínio do saber.... Estaríamos assim também entornando
nossa capacidade de pensamento, experiência e ação?

Tantas vezes vestimos as máscaras de impérios, ganâncias e


glórias, empunhando aspectos bastante sombrios das possibilidades
humanas, como uma estrábica indiferença que banaliza o mal e nos
torna insensíveis ao sofrimento de incontáveis seres. Construímos
relações que nos apartam em casas grandes e senzalas, nos confinam
em estritas linhas de produção, em estreitos campos de concentração e
em enormes campos de exclusão onde muitos de nós carregam
sofregamente seus corpos de pele e osso, não se sabe para onde.
Teríamos também entornado a possibilidade de um sentido ético, a
solidariedade, a capacidade de empatia e amor?

Aprender a flutuar, a posicionar-se em meio à


deriva. Insistir uma vez mais diante da sedução
do naufrágio. Não resistir ao apequenamento das
coisas e das pessoas. Deslocar-se, desvencilhar-se
do peso do passado. Reaprender. Caminhar
diante do peso das coisas, com a leveza na
alma.61

61
LOPES. 2007, p. 77
47

Figura 8 - Devir-pó. Lia Menna Barreto - Jardim de infância, 1995.

E na Educação? Vivemos, como tão claramente já nos apontava


Hannah Arendt em 1954, em seu conhecido artigo A Crise na Educação
(2013), uma lacuna de referências, uma profunda crise cultural,
impulsionada pelo esfacelamento da tradição na modernidade e pelo
esfacelamento da própria modernidade. Os valores sociais e morais, a
hegemonia da racionalidade e as categorias políticas que compunham a
continuidade histórica da tradição ocidental se tornaram inadequados a
fornecerem parâmetros, tanto para a ação, como para a criação “de
48

perguntas relevantes no quadro de referência da perplexidade


contemporânea.”62 Parece que

o pensamento se apartou da realidade, que a realidade se tornou opaca


à luz do pensamento, e que o pensamento não mais atado à
circunstância como círculo de seu foco, se sujeita a tornar-se desprovido
de significação, seja a repisar velhas verdades que já perderam qualquer
relevância concreta. 63.

O fim da tradição, no entanto, enfatiza Arendt64, não significou

que os conceitos tradicionais tenham perdido seu poder sobre a mente


dos homens. Pelo contrário, às vezes parece que este poder (...) torna-
se mais tirânico à medida que a tradição perde sua força viva; ela pode
mesmo revelar toda sua força coerciva somente depois de vindo seu fim,
quando os homens nem mesmo se rebelam mais contra ela.

Teríamos entornando nossa capacidade de indignação e ação?

Vivemos atualmente no Antropoceno65, era geológica que,


enquanto humanidade, estamos produzindo com o impacto de nossas
interferências na esfera planetária, afetando componentes básicos do
sistema terrestre: a composição da atmosfera está sendo drasticamente
modificada, com efeitos na temperatura média do planeta, no clima e na
acidificação dos oceanos, no nível do mar; elementos químicos
inexistentes na natureza misturaram-se ao solo e à água, deixando

62 LAFER, in ARENDT, 2013, p. 11


63 ARENDT, 2013, p. 32
64 Idem, p. 53
65 “No 35º Congresso Geológico Internacional, que aconteceu de 27 de agosto a 4 de

setembro de 2016, na Cidade do Cabo, África do Sul, a comissão encarregada pela


União Internacional das Ciências Geológicas (UICG) recomendou o reconhecimento
oficial do início de uma nova época geológica, chamada Antropoceno.” COSTA, 2016,
p. 01 “Desde os anos 1980, alguns pesquisadores começaram a definir o termo
Antropoceno como uma época em que os efeitos da humanidade estariam afetando
globalmente nosso planeta.” 65 O cientista Paul Crutzen (2002) atuou na
popularização do termo nos anos 2000, publicando vários artigos, discutindo essa
nova era geológica.
49

marcas indeléveis nos sedimentos marinhos e lacustres; espécies de


animais e vegetais extinguem-se a um ritmo alucinante.

A desenfreada aceleração no uso dos recursos naturais, a partir


do século XX, está hoje sendo comparada às forças geofísicas que dão
forma a nosso planeta. Já ultrapassamos os limites de sustentabilidade
na perda de biodiversidade, na poluição química, e estamos nos
aproximando do limite nas áreas de mudanças climáticas, mudança de
uso do solo, e integridade da biosfera.66 Alguns cientistas67 consideram
esta situação irreversível, pois estaríamos nos dando conta dela tarde
demais para revertê-la; acreditam ser possível, no máximo, tentar
desacelerá-la, e isso, se conseguirmos transformar os modelos da
política e da economia. “Não é possível a produção crescer sem fim em
um mundo finito e, sem perspectiva de crescimento indefinido, não se
pode falar de acumulação de capital e concorrência, a não ser no sentido
mais primitivo, predatório e suicida.”68 Estaríamos entornando a
possibilidade de futuro nas próximas gerações?

Arrastados pelo capitalismo globalizado contemporâneo estamos


nos aproximando da possibilidade do colapso da humanidade: os modos
de vida consumistas homogeneízam as individualidades, capturando e
tornando mercadoria a proliferação de mundos possíveis, manipulando
o desejo das populações, desarticulando a cooperação entre as
subjetividades, criando uma rede de vigilância, controle e disciplina69,
espalhando um niilismo e um conformismo.

Estamos, enquanto humanidade, nos deparando com a


possibilidade de nosso fim e com a impossibilidade de continuarmos
construindo (destruindo) mundos a partir dos valores propostos pela
Modernidade. Valores como a supremacia do homem sobre a natureza
e padrões utilitaristas de relação baseados em interesses econômicos,
na acumulação de riqueza, na crença em um desenvolvimento efetivado

66 ARTAXO, 2014, p. 21
67 ROCKSTRÖM, 2009
68 COSTA, 2016, p. 3
69 FOUCAULT, 1984.
50

a partir da exploração, tanto dos recursos naturais, como dos seres


humanos.

Figura 9 – Devir-pedra. Joseph Beyus, O final do século XX. 1968. Instalação, Bienal
de Veneza.

“Não se deterá jamais a vida”70

70 ARTAUD, apud BLANCHOT, 2010, p. 23.


51

“Vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível


que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar.
Não é possível esta injustiça absoluta.”71 Não é possível a manutenção
desta absurda desigualdade social. A maior desigualdade, porém, que
vivemos na atualidade, acredito, é entre a hipertrofia da nossa
capacidade de produção econômica, científica e tecnológica e nossa
atrofia ética e política. Populações inteiras, são privadas de um
pensamento mais vivo e aprofundado acerca de si mesmas e da
realidade social, massificadas em processos de subjetivação redutores e
achatados, que desembocam, muitas vezes, na violência bárbara do
fascismo.

Quando o caminho está claro e determinado, quando um


certo conhecimento abre o caminho de antemão, a decisão já
está tomada, poder-se-ia dizer que não há nenhuma
[responsabilidade] a ser tomada; irresponsavelmente, e em
são consciência, aplica-se ou implementa-se simplesmente
um programa. (...). Isso transforma a ética e a política numa
tecnologia. Já não pertence à ordem da decisão ou razão
prática, começa a ser irresponsável.72

Nos tempos atuais de deslocamentos e êxodos, do esgarçamento


das fronteiras, do estremecimento das paisagens, da vertigem diante do
buraco negro aberto pelo fim das grandes narrativas e pela possibilidade
do nosso fim, podem os procedimentos artísticos de pesquisa propiciar
a criação de sentidos outros, outras possibilidades de mundo e um
alargamento da compreensão do que possa ser viver, educar e
pesquisar?

Diante do desencantamento e do desgosto73, que contaminam


parte das paisagens acadêmicas e escolares, descolorindo e pintando em

71 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 41.


72 DERRIDA, 1992, p. 45
73 PERNIOLA, 2010
52

tons apocalípticos muitas das perspectivas de vida das atuais e futuras


gerações, que maneiras outras de viver junto, de produzir solidariedades
e afetos, que qualidades de experiência, atenção e presença, pode a
pesquisa com a arte instigar?

Ou ainda, se “estar no mundo” nestes tempos plurais, implica


percebermos o real segundo uma singular visão de mundo, e se há, como
nos lembra Nelson Goodman,74 múltiplas e heterogêneas maneiras de
se “fazer mundos” e, portanto, múltiplos mundos, como podem a arte e
a pesquisa com a arte colaborar na criação de “superfícies porosas de
contato” entre as versões singulares e idiossincráticas de mundo, tanto
da educação como na pesquisa, possibilitando e qualificando o encontro
e o coletivo?

Diante disso tudo, considero, inspirada em Deleuze75 que, se “o


vínculo do homem com o mundo se rompeu, reestabelecer este vinculo
constitui uma questão ética por excelência”. Ainda com Deleuze,76
ressalto:

Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos


completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no
mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo
pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-
tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos.

Pesquisar com a arte pode favorecer a construção de desvios,


desterritorializações, micropolíticas, à maneira do que propõe também
Michel de Certeau77 quando nos lembra que, apesar de haver uma rede
de vigilância que visa a nos controlar e domesticar, existem brechas de
atuação, onde podemos jogar com as disciplinas impostas, em ações
minúsculas que proliferam dentre as estruturas burocráticas:

Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede da


‘vigilância’, mais urgente ainda é descobrir como é que a sociedade

74 GOODMAN, 1992, p. 15
75 DELEUZE, 1990, p. 207
76 DELEUZE, 1992, p. 222
77 CERTEAU, 2013, p. 49
53

inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também


minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não
se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que ‘maneiras de
fazer’ formam a contrapartida, do lado dos consumidores, dos processos
mudos que organizam a ordenação sociopolítica. (...) Se trata de
distinguir as operações quase microbianas que proliferam no seio das
estruturas tecnocráticas e alteram seu funcionamento por uma
multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os detalhes do cotidiano. (...)
formas sub-reptícias que são assumidas pela criatividade dispersa e
bricoladora dos grupos ou dos indivíduos (...) que compõem a rede de
uma antidisciplina.78

A imaginação artística lança um futuro, nos desprende de


pesadas fatalidades, nos reconecta com a potência criadora que anima
a confiança na vida e alarga suas possibilidades. Nos deparamos com o
apaixonante desafio: abrirmo-nos a novas formas de viver e pensar o
presente, evitando que nossas propostas resultem simplesmente em um
endosso dos modelos de produtividade, eficiência e competitividade da
sociedade neoliberal.

Penso serem oportunas e necessárias as incursões em campos


ainda inexplorados de nossas potencialidades. Com olhos atentos e
zelosos que consigam se conectar com a força poética de cada
momento; com mãos tecidas pela delicadeza, capazes de tocar o que há
de único, em cada lugar, em cada voz, em cada pele e com mentes vastas
que percebam vastas paisagens, que possamos nos lançar no imenso
campo de possibilidades que nos constitui e tornar presentes em nossas
pesquisas, jogos de criação, sensibilidade e afeto, que possibilitem um
povo por-vir.

78 CERTEAU, 2013, p. 49
54

Por favor, me chame pelos meus muitos nomes


Não diga que vou partir amanhã
porque ainda estou chegando
Olhe profundamente; chego a cada segundo
como um broto em um ramo de primavera
como um pequeno pássaro, com asas ainda frágeis
como a lagarta arrebentando seu casulo
o ritmo do meu coração é o nascimento e morte dos seres.
Me chame pelos meus muitos nomes:
sou o sapo nadando alegremente nas águas claras
e eu também sou a cobra que,
aproximando-se em silêncio, se alimenta do sapo.
sou a criança de Uganda, toda pele e osso,
minhas pernas finas como palitos de bambu,
e sou o mercador de armas vendendo armas para Uganda.
sou a menina de 12 anos, refugiada, em um pequeno barco,
se atirando no oceano após ter sido estuprada por um
pirata do mar,
e eu sou o pirata, não sou ainda capaz de ver e amar
Por favor, me chame pelos meus muitos nomes,
para que eu possa ouvir todos os meus gritos e risadas para
que eu possa ver que a alegria e dor são inseparáveis
para que eu possa acordar,
e por isso, em meu coração possa ser deixada aberta,
a porta da compaixão.79

79
Revisitando o poema de NHAT HAHN, Thich. Por favor, me chame pelos meus
verdadeiros nomes. https://www.mundomindfulness.com.br/poema-por-favor-
me-chame-pelos-meus
55

Acredito que a perspectiva poética, no âmbito da educação e da


pesquisa, pode rasgar horizontes, vislumbrar saídas e outras
possibilidades de mundo. Afinal, criar perspectivas poéticas é também
uma possibilidade de instaurar outras formas de política, como nos
sugere Walter Kohan: “em primeiro lugar no pensamento, uma política
da experiência e não da verdade, uma política de interrogação
permanente sobre a possibilidade e as formas da própria política, que a
desinstale do lugar da impossibilidade.” 80 Uma política que parta da
recusa do que somos, para que possamos vir a ser de outros modos, em
nossas formas de viver e, talvez, em nossas formas de educar.

Enfatizo também a contribuição da arte para a formação de


professores e pesquisadores, como instrumento multiplicador das
possibilidades de linguagem, como oportunidade de se lidar com os
enormes desafios que pulsam nas salas de aula, de se revisitar as
escorregadias, áridas e “inquietantes paisagens da cultura
contemporânea em suas múltiplas e multiplicadoras formas,”81
propiciando estranhamentos e encantamentos, onde diferentes práticas
investigativas, pedagógicas e de vida possam se ancorar.

Um belo trecho de Blanchot me suscita a tecer um paralelo entre


as condições em que nos encontramos enquanto educadores e
pesquisadores e as desventuras de Arthur Rimbaud na modernidade:

Rimbaud experimentou diversamente e em níveis diferentes, de acordo


com os movimentos próprios de sua vida e de sua busca, essa
contrariedade fundamental: trata-se da contradição, nele, de uma força
e de uma falta; a força é sua energia indomável, o poder da invenção, a
afirmação de todos os possíveis, a infatigável esperança (...); a falta é, em
consequência do ‘coração roubado’, o ‘espoliamento infinito’, a
indigência, o tédio, a infelicidade (o sono). Mas, novamente, a partir
desta carência inicial, a poesia, em Rimbaud, vê confiado a si o dever de
transformar a falta em recurso, a impossibilidade de falar que é a

80 KOHAN, 2007, p. 52
81 CAMOZATTO, 2014, p.574
56

infelicidade, num novo futuro da palavra, e a privação de amor em


exigência do ‘amor a reinventar’ (...).82

Figura 10 – Devir- leveza. Guto Lacaz. Auditório para questões delicadas. Instalação
flutuante. 1989. Parque do Ibirapuera, SP.

O aspecto da pesquisa com a arte que penso constituir sua maior


potência é o modo como as linguagens artísticas constituem a pesquisa,
estabelecendo ressonâncias vivificantes tanto no autor quanto no leitor.
No ato poético, a linguagem é libertada de seus automatismos,
propiciando a composição de uma forma singular de ver, escrever e

82 BLANCHOT, 2010, p. 18. Grifos do autor citado.


57

viver, um tornar-se uma obra confluente ao devir. Um ato que implica


um cuidado de si e do mundo, fomentando terrenos fecundos, onde
novas travessias, significações e aventuras possam semear outras
humanidades.

Aposto na arte como criadora de modos de se escapar da solidez


enganosa do círculo asfixiante de nossos hábitos e dos modos
estereotipados de pensar e sentir construídos cultural e
linguisticamente. Aposto na força micropolítica que a criação estética
tem de suscitar acontecimentos, desestabilizar a banalização do dia, o
entorpecimento da noite, a espetacularização do sonho, a
homogeneização do consumo, a miopia do narcisismo, o lugar comum
do pensamento, e de questionar e dissolver a estreita conformação que
o discurso capitalista deposita seguidamente em nós, em nossas
relações e nas instituições de ensino.

O olhar poético instaura diferenças, não nos indispondo contra as


condições dadas, “mas por cem maneiras de empregá-las com sentidos
estranhos à ordem dominante, fazendo-as funcionar em outro
registro.”83 Os olhos lhes dão outros nomes, a mão as conhece84, uma
alegria dinâmica as embala, as colore, as torna mais vivas.

Aposto também na potência da arte na pesquisa enquanto “uma


linguagem-infância”, pois, é a infância, como nos diz Giovanni Pascoli,
que possibilita a poesia e a arte:

Há dentro de nós, um menininho que não somente tem arrepios, (...)


mas que também tem [pensamentos,] lágrimas e alegrias próprias.
Contudo, quando nossa idade é tenra, a sua voz se confunde com a
nossa, e das duas crianças que brincam, brigam e, sempre juntas,
temem, esperam, gozam e choram, sente-se uma só palpitação, um
único gritar e granir. Então crescemos e ele permanece pequeno. (...).
Engrossamos e enferrujamos a nossa voz, enquanto a dele se mantém
sempre como a tênue vibração de um sino. (...) O menino músico [e sino]

83 CERTEAU, 2013, p. 89
84 BACHELARD, 1997, p. 2
58

existe realmente em todos? Não poderia acreditar que em uma pessoa


não exista (...) já que seriam tamanhas a miséria e a solidão. Não teria
dentro de si o seio côncavo, do qual ressoar as vozes dos outros homens,
e nenhuma nota de sua alma chagaria à alma de seus próximos. Estaria
unido `a humanidade somente pelas correntes da lei, que sacudiria
tragicamente sendo um escravo, ou (...) um indiferente, devido ao
hábito. Porque os homens não se sentem irmãos entre si, crescem e
diversamente se armam todos para a batalha da vida. Na verdade, são
os meninos que estão neles, os quais, por cada porção de ágio e trégua
a ser-lhes dada, correm um ao encontro do outro e se abraçam
brincando. (...). Há os velhos que, na velhice, creem bem protegida toda
autoridade. (...) há os jovens, que imaginam implícitas todas as forças da
juventude. São os mais chatos, porque se gabam com impertinência,
enquanto os velhos o fazem com certa tristeza. Se uns, por senil surdez,
já não escutam mais a arguta tagarelice do menino, os outros ainda não
a compreendem, pela confusão, miseravelmente orgulhosa, que fazem
e que está sempre ao redor do próprio eu jovem. (...). De toda forma,
paz. Saibam que, para a poesia, a juventude não basta. É necessária a
infância! 85

Compreendo “infância” a partir de Giorgio Agamben, não como


“um fato do qual seria possível isolar um lugar cronológico”86, mas como
o que instaura na linguagem a cisão entre língua e a fala, favorecendo
que:

passemos de uma à outra, e que todo homem falante seja o lugar desta
diferença, desta passagem. (...) O homem, na medida que tem uma
infância, em que já não é sempre falante, cinde esta língua uma e
apresenta-se como aquele que, para falar, deve constituir-se como
sujeito da linguagem.87

85 PASCOLI, (1914) 2015, p. 9- 24


86 AGAMBEN, 2005, p. 10-11
87 AGAMBEN, 2005, p. 64
59

Figura 11 – Devir-infância. Foto de Jacquelyn DuPrey Diederichsen. 2018.

Consideramos as imagens “como acontecimentos súbitos da vida.


Quando a imagem é nova, o mundo é novo.”88

88 BACHELARD, 1993, p. 63
60

A infância não é exatamente a ausência de linguagem, mas a


possibilidade de ali se inscrever, de se dizer, a cada vez, uma palavra, de
fazer existir, a cada vez, de forma diferente, a palavra que será falada e
o sujeito que a fala.

Procuro evitar concepções estereotipadas de infância


características da “pedagogia idealizada, romântica” que a percebe
como a idade da pureza, da alegria e do paraíso; ou da “pedagogia
dogmática” que busca, de maneira moralista, inserir a criança no
universo pretensamente já pronto dos valores socais; ou ainda da
“pedagogia mercantilista” que deposita nas crianças os desejos cegos do
consumismo e uma apatia surda. Esta pedagogia, regida pelos princípios
do mercado, concebe a educação como mercadoria e as crianças como
a futura mão de obra que continuará enriquecendo os ricos e
concentrando ainda mais a riqueza de nosso planeta.

Busco me aproximar da infância de maneira discreta, tateante,


miúda, procurando não colar nossas projeções, como decalques, sobre
sua pele ainda não estriada. Aproximo-me da infância empunhando suas
qualidades de abertura, de insegurança e precariedade, advindas de um
não saber. Então não sabemos. Afinal, “quem ousa antecipar o que pode
pensar uma criança? Quem ousa prever a força que pode ter o
pensamento de uma criança?”89 Ou como nos lembra Bachelard: “a
infância é certamente maior que a realidade, (...) e o sonho é mais
poderoso que os pensamentos.”90

Do mesmo modo, no âmbito da pesquisa, encontramos na


infância o espaço de cisão, de brecha, de possibilidade de ruptura com
os discursos totalizantes do projeto moderno e sua estruturação
burocrática, muitas vezes ainda preponderante nas academias e nas
escolas.

89 KOHAN, 2007, p.19


90 BACHELARD, 1993, p. 35
61

Por vezes o dia nasce tão pleno


“e com tanta flor na garganta,
que ele, dia, se incumbe daquilo que o galo esquece.
O dia canta lá fora enquanto o galo amanhece.”91

Figura 12 – Devir-novo. Paulo Gaiad- Luz e Sombra Fuga do Céu, pintura e


fotografia, 2008

A experiência da infância mobiliza a vida nos processos


investigativos ao convidar o acontecimento, a vivência poética e a
criação artística. E vice-versa: a criação e a percepção artística parecem

91 CACASO, 2012, p. 208


62

ser dispositivos aptos a criar o choque necessário ao acontecimento e à


emergência da infância, ao convidarem imagens ainda não capturadas
pela racionalidade dominante, propiciando movimentos de dobra do
sujeito sobre si mesmo e descontinuidades. Podemos, em nossas
pesquisas, deixar que a infância nos posicione diante do mistério que
somos e nos encoraje a olhar para o desconhecido que nos habita e nos
rodeia.

Também Deleuze nos fala da infância. Ele nos convoca, ao


escrevermos, a forçarmos a linguagem até um limite, aproximando-a de
um devir-criança. Um devir que não se refere à infância pessoal do
escritor, pois quando este:

se torna criança, (...) não é a infância dele, nem a de mais ninguém. É a


infância do mundo. (...). A tarefa do escritor não é vasculhar os arquivos
familiares, não é se interessar por sua própria infância. Ninguém se
interessa por isso. (...). A tarefa é outra: devir criança através do ato de
escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar esta infância. Eis
as tarefas da Literatura. 92

Terei conseguido uma escrita devir-criança? Procurei me


aproximar do gesto transgressor nietzscheano que inspira a arte no
centro da vida; da fala foucaultiana que nos convida a processos de
subjetivação, desdobrando liberdades e práticas de si; do olhar noturno
de Blanchot que supõe a mirada do poeta - percebe as coisas como
imagens e a linguagem como poesia; da in-fância ética agambeniana; do
pensamento desviante de Deleuze que se espalha em multiplicidades,
produzindo inícios. Me mantenho aberta, para quem mais chegar.
Aprendi com eles, que a escrita requer uma qualidade ética, um espaço
em branco que possibilite sua recriação pelo leitor.

Um espaço para você leitor, criar, vestir e dançar com seu


parangolé. Que possamos de alguma forma dançar juntos. Pois uma
tese só se torna uma tese-parangolé quando você a veste e dança com
ela. Quando ela abre um espaço onde ressoa a ética de não se fazer
superior, onde se suspende toda vontade de domínio, toda propriedade,

92 DELEUZE; PARNET, 2012, p. 31


63

toda arrogância. Quando ela instala uma força vinda da desapropriação


de nós mesmos, de não nos pormos no lugar das grandes epistemes que
são como a verdade e, principalmente, uma força vinda da abertura à
potência criadora da vida.93

Não posso deixar de mencionar as várias oficinas de arte,


pesquisa e educação, em torno do tema Parangolé, a vida como obra de
arte, que realizamos ao longo do processo da pesquisa. Embora não
sejam especificamente relatadas e discutidas nesta tese, estas oficinas
trouxeram nova vida, entusiasmos, ampliações de perspectivas, e
sentidos outros para a pesquisa, que, espero, transparecem no resultado
do trabalho.

Figura 13 – Devir-dança. Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC.
2016.

As oficinas consistiram de: uma breve apresentação teórica,


acerca da obra de Oiticica, do Parangolé, como também da noção de vida
como obra de arte (Nietzsche) e de “estética da existência” (Foucault);

93 BARTHES. 2004, p. 226.


64

de uma atividade de pintura - Biografema (Barthes) do meu corpo,


(guache sobre papel); de atividades corporais - dança, integração da
turma, sensibilização e entrega; da confecção de parangolés, com
panos, tintas e revistas, utilizando técnicas de pintura, costura e
colagem; de uma performance coletiva - dança com os parangolés; e,
finalmente, de uma conversa, comentando as experiências vivenciadas.

Em junho de 2016 realizamos seis encontros, com duas


diferentes turmas da graduação em Pedagogia no Centro de Ciências da
Educação (CED) da UFSC, como uma prática de Estagio Docência, na
disciplina “Educação e Infância VI: Conhecimento, Jogo, Interação e
Linguagens”, ministrada por minha orientadora, a Profa. Gilka
Girardello. Em junho de 2017, realizamos esta oficina com uma nova
turma, na mesma disciplina. Em setembro de 2017, a oficina foi efetuada
junto à disciplina “Metodologias de pesquisa”, ministrada pelo Prof.
Wladimir Garcia, no curso de pós-graduação em Literatura, no Centro de
Comunicação e Expressão (CCE) da UFSC. Realizamos ainda, em
novembro de 2017, a oficina Parangolé, a vida como obra de arte, no
evento organizado pelo Núcleo Infância, Comunicação, Cultura e Arte,
(NICA) que aconteceu na Fundação Badesc, no centro de Florianópolis,
sob a coordenação da Profa. Gilka e da Profa. Monica Fantin.

Imagens destas oficinas aparecem entrecortando o texto principal


da tese, em diversos momentos.

No primeiro capítulo busco aprofundar um estudo teórico acerca


do que possa ser uma pesquisa, assim como de algumas concepções de
Pesquisa Baseada em Arte e dos variados papéis que a arte pode exercer
como prática investigativa.

No segundo capitulo, aspiro a propiciar uma navegação por uma


poética das águas, no desejo de nos embalar num devir riacho, nascente,
cachoeira, pororoca e um mar antropofágico. A travessia pelo riacho nos
conclama a fazermos de nossas pesquisas e de nossas vidas, um devir-
arte. A visita à nascente, nos aproxima da potência aiônica do devir-
criança. As expedições rumo às terceiras margens, procuram
65

perspectivas desviantes que nos esgarcem, desterritorializem,


desnaturalizem, nos levem ao estranhamento, transpassem limites que
parecem instransponíveis, agenciem outras maneiras de pensar e de
viver junto. Os mergulhos nas pororocas provocam encontros e
intensidades poéticas, que nos afetam, nos trans-formam, nos levam,
enquanto pesquisadores, a dobrarmo-nos sobre nós mesmos, na
composição de processos de subjetivação e de um “cuidado de si, dos
outros e do mundo”. Navegamos ainda, por mares tropicalistas e
antropofágicos que nos confrontam com o estrangeiro e com
potencialidades ainda inumanas de vida.

E por fim, chegamos à dissolução das ondas do mar nas areias da


praia. Chegamos ao final que inaugura desvios sem fim. Momento de
contemplação do que foi realizado, da caminhada e de sua completa
incompletude, da preciosidade de cada momento, que pode, sempre,
ser o último. Quem sabe?

Vamos?
66

1. Pesquisa com a arte - concepções e vertentes

1.1. O que pode vir a ser pesquisar?

O tico-tico no saltitanteio, a safar-se de surpresa em


surpresa, tico-te-tico no levitar preciso. A manhã se
trança de perfumes e o orvalho é um pintalgamento
lúcido. O tempo não voa. Todo galhozinho é uma ponte.
Tudo é sério demais, como num brinquedo. Um
passarinho que faz seu ninho tem mãos a medir?
GUIMARÃES ROSA

A poesia não está para as ciências com um instrumento


para seu objetivo. Digamos que ela seja também um
cultivo, mas de outra espécie.
GIOVANNI PASCOLI

O que pode ser conhecer? Pesquisar? Experienciar? O que a arte


pode ter a ver com tudo isso?

O pensamento artístico opera manobras e realidades diferentes


das trabalhadas pelo pensamento científico. O conhecimento
construído pela arte se compõe de uma receptiva atividade. E uma
experiência diferente daquela que se rege por um pensar governado
pelo entendimento. Talvez se trate de um conhecimento agudamente
atento a sua própria abertura, a sua própria suscetibilidade de ser
afetado pelas ondulações do campo em que ele compõe suas veredas,
suas passagens, seus intervalos. O conhecimento “não é concebível fora
do devir que o sugere.”94 O conceito de cognição é expandido pela
criação95, que lhe confere dinamismo, problematiza o que se encontra
instituído, amplia, surpreende, dobra, redobra e desdobra realidades.

94 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 15


95 KASTRUP, 2007, p. 12.
67

Figura 14 – Devir-voo. Jean-Michel Folon. Mala. 1999.

O artista concede um lugar à imaginação em sua forma de


conhecer criando.
Um conhecer que não apaga a sombra e guarda um brilho
da sombra.
Sua luz é um clarão que desconhece qualquer origem.
Um cogito que não se transforma em certeza.
A existência nunca está aí bem assegurada...
Afinal, onde começa a vida e acaba o sonho?96

96 Inspirado em BACHELARD, 2009, p. 121.


68

A linguagem artística não carrega apenas aquilo que ela mostra,


mas algo que nela fica em potência, ainda por realizar. O ato artístico
não é algo que caminha da potência para o ato, para nele se esgotar. A
criação artística contém “um ato de descriação, algo que desfaz o que
está dado, o que já estava lá. (...). Este ato de descriação é a vida da
obra, aquilo que permite sua leitura, sua tradução e sua crítica.”97 É o
que permite a recriação da obra por você, leitor. A ação artística “é uma
atividade que está em permanente fuga de seu autor”98 e só se realiza
no espaço entre, no espaço da relação, no espaço que se dirige ao outro.

Criação, nesta perspectiva, não é o mesmo que criatividade. O


conceito de “criatividade”, acredito, foi estreitado pelo
empreendedorismo tecnicista, que tudo aplaina, associado à resolução
de problemas, à maximização de desempenhos originais, habilidades,
competências e outras geringonças mais. Nesta perspectiva
instrumental de “criatividade”, a margem de liberdade é restrita, pois
submetida aos interesses de um grupo, de uma empresa, de uma
burocracia escolar, confinada a um propósito estabelecido a priori.

Já a criação é imprevisível.

O uso de processos artísticos para construir e transmitir


conhecimentos, formas de existência, para realçar experiências,
perspectivas e formas, documentar informações ou provocar
transformações na sociedade e criar novas realidades, precede os
métodos científicos, em milênios. É o que podemos constatar nas obras
do Período Paleolítico, tanto nas pinturas e inscrições nas paredes das
cavernas, como na criação de múltiplos objetos. Tais manifestações
artísticas podem ser consideradas formas de pesquisa através das quais
os primeiros seres humanos compuseram a habilidade de refletir sobre
suas necessidades, suas marcas, sua realidade, sua condição diante do
universo.

É o que nos diz Barnett Newman neste seu belo texto:

97 KLEIN, 2011, p. 91
98 Idem.
69

Sem dúvida o primeiro homem era um artista. Uma ciência da


paleontologia fundamentada nesta afirmação poderia ser formulada se
partisse do postulado de que o ato estético sempre antecedeu o ato
social. A arte totêmica do pasmo frente ao ancestral-tigre ocorreu antes
do ato de assassinato. É importante lembrar que a necessidade do sonho
é mais forte do que qualquer outra necessidade utilitária. A primeira
expressão do homem, como seu primeiro sonho, foi estética. A fala foi
uma explosão poética, e não uma exigência da comunicação. O homem
original, ao gritar suas consoantes, o fez como uma manifestação de
espanto e raiva ante o estado trágico de sua autoconsciência e de sua
impotência diante do nada. Filólogos e semióticos estão começando a
aceitar o conceito de que, se definirmos a linguagem como a capacidade
de comunicar-se por meio de sinais, sons ou gestos, então a linguagem
é uma força animal.
O que há de humano na linguagem é a literatura, e não a comunicação.
O primeiro grito do homem foi uma canção. A primeira tentativa de
comunicação de um homem com seu semelhante foi um grito de força e
debilidade solene, e não o pedido de um pouco de água. Até o animal faz
uma (...) tentativa de poesia. Os ornitólogos explicam o canto do galo
como uma explosão extática de seu poder. O mergulhão que desliza
solitário pelo lago, com quem está se comunicando? O cão solitário uiva
para a lua. Poderemos dizer que o primeiro homem chamou o sol e as
estrelas de deus como um ato de comunicação? (...). O objetivo da
primeira fala do homem foi dirigir-se ao desconhecido, seu
comportamento teve origem em sua natureza artística.
Assim como a primeira fala do homem foi poética antes de se tornar
utilitária, o homem construiu primeiro um ídolo de barro antes de
imaginar o machado. A mão do homem fez correr o galho seco pelo barro
para traçar uma linha antes de aprender a jogar este galho como uma
lança. (...)
Pois os artistas são os primeiros homens.” 99

99 NEWMAN, in CHIPP, 1996, p. 559- 560


70

Figura 15 – Devir- azul. Barnett Newman. Oement IV, 1953.

Ilusões envolvem o conhecimento. Miragens do pensamento.


Explicam-se pelo peso do nosso cérebro, pela circulação estereotipada
das opiniões dominantes, e porque não conseguimos suportar os
movimentos infinitos que nos constituem. “Há, de início a ilusão de
transcendência, que talvez preceda todas as outras. Depois a ilusão dos
universais. Depois ainda, a ilusão do eterno, quando esquecemos que
estes são apenas conceitos e, que foram em algum momento
criados.”100

Mesmo nos sistemas científicos de pensamento “você não iria


conhecer nada por conceitos se você não os tivesse, de início, criado.
Isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um

100 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.67


71

plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus
germes e os personagens que os cultivam.”101

Comprometidos com o projeto epistemológico da modernidade,


os grandes sistemas de pensamento propõem a cognição como o espaço
da representação. A formulação científica de um problema é feita
através de um sistema regido por leis gerais que intermedeiam a relação
entre o sujeito cognoscente e o objeto que se dá a conhecer. Pensar,
porém, não é necessariamente interpretar nem representar, não é
buscar uma adequação a uma suposta realidade objetiva.

A ciência moderna teria estabelecido, segundo Deleuze e


Guattari,102 um modelo de conhecimento arbóreo, buscando raízes
ancestrais, situando a chave da existência em um solo de verdade, uma
origem, em uma causa, um fundamento. Este modelo destinaria o
pensamento a uma progressão linear de princípio, desenvolvimento e
fim/consequência, gerando trajetos repetitivos, uma paisagem fixa, um
universo fechado. Um beco sem saída!

Assim, tendo o conhecimento como invariante, distante de


imprevistos e surpresas, a invenção torna-se uma questão inexistente.
Um conhecimento arbóreo, sem vida... Um saber sem sabor... Mas esta
estabilidade, felizmente, como também nos lembram Deleuze e
Guattari, não passa também de uma ilusão:

Não devemos mais acreditar em árvores, em raízes ou radículas, já


sofremos muito. Ao contrário, nada é belo, nada é amoroso, nada é político
a não ser que sejam arbustos subterrâneos e as raízes aéreas, o adventício
e o rizoma. Os paradigmas arborizados dão lugar a figuras rizomáticas,
sistemas acentrados, estados caóides. Sem dúvida, este caos está
escondido pelo esforço das facilitações geradoras de opinião, sob a ação
dos hábitos ou dos modelos de recognição; mas ele se tornará tanto mais
sensível, se considerarmos, ao contrário, processos criadores e as
bifurcações que implicam. 103

101DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 15


102DELEUZE; GUATTARI, 2000
103 DELEUZE; GUATTARI, 2000, p. 25
72

Nada de ponto de origem ou de princípio primordial comandando


o pensamento, e sim, encontro imprevisível, reavaliação do conjunto a
partir de um ângulo inédito.104 Mas como agir diante destas
imprevisibilidades e possibilidades sem eira nem beira? Talvez
experimentando. Mesmo sendo todo encontro possível, nem todo é
escolhido, pois nem todo encontro é acontecimento, criação,
transformação, nem toda diferença é fecunda.

Conhecer o não conhecimento


É o bem supremo.
Não conhecer o que é o conhecimento
É um tipo de sofrimento,
Só quando se sofre deste mal
Fica-se livre dele.
Se o sábio não sofre,
É porque ele sofre deste mal;
Por isso ele não sofre.105

Também na ciência contemporânea, é verdade, encontramos um


conhecimento fecundado pela criação. A importância do papel da
criação na cognição foi pesquisada pela física de Ilya Prigogine, que,
investigando certas dimensões da realidade ignoradas pela ciência
moderna, encontrou uma natureza criadora de estruturas ativas e
proliferantes.106

104 ZOURABICHVILI, F. 2010, p. 7.


105 LAO-TSU, 1995, p.110
106 KASTRUP, V. 2007, p. 16.
73

Figura 16. Devir-infinito. Milan Kunk, Universo Incomensurável, 1986.

Há muitas ciências. Uma boa parte da ciência clássica construiu


conhecimentos sobre a base do passado, sobre o que já foi, e que ela
denomina realidade física e objetiva. A física quântica, diferentemente,
se dedica ao futuro, uma vez que de sua perspectiva, tudo é composto
de ondas de probabilidades. O pensamento científico contemporâneo,
como a mecânica quântica, trabalha com a indeterminação,
desenvolvendo a tese de que a evidencia empírica por si só não é
74

suficiente para provar a verdade de uma teoria.107 Niels Bohr afirma que
qualquer investigação implica uma interferência no curso dos
fenômenos observados e requer uma renúncia à ideia clássica de
causalidade, uma mudança radical em nossa relação ao problema da
realidade. Para ele, o propósito de delinear teorias científicas não é
desvendar a essência real dos fenômenos, mas sim, criar significações,
evidenciar relações entre os múltiplos aspectos de nossa experiência.108

A teoria quântica mostrou que as partículas subatômicas não são


grãos isolados de matéria, mas moldes de probabilidades, interconexões
numa inseparável teia cósmica que inclui o ser humano e sua
consciência. A teoria da relatividade fez com que a teia cósmica
adquirisse vida, por assim dizer, ao mostrar que sua atividade é a própria
essência de seu devir.

Nestes dois contextos, parece que o mais importante mesmo são


as relações.... Os sentidos não são entidades fixadas para a eternidade
mas requerem um arranjo, uma ação. Eles reluzem nas obras dos
pesquisadores, dos poetas e dos artistas, mas reluzem “de modos
diversos nos diversos artistas de uma mesma cultura e se exprimem
diversamente nas culturas diversas.”109 A multiplicidade de perspectivas
não é o indício de possíveis erros, mas a cintilação da inesgotável riqueza
dos bilhões de universos.

As bordas entre arte, filosofia e ciência, acreditamos, “são


maleáveis e porosas.”110 Onde elas podem diferir, é no que diz respeito
ao tipo de fenômeno que cada uma é capaz de trazer à tona desde sua
perspectiva. E também nas diferentes linguagens, métodos e caminhos
que criam e edificam. Da experiência humana, a “filosofia tira conceitos,
a ciência tira prospectos, e a arte tira perceptos e afectos. Em cada caso
a linguagem é submetida a provas e usos incomparáveis, mas não (...)
sem construir também seus cruzamentos perpétuos.”111

107 KASTRUP, V. 2007, p. 16. p. 106.


108 BOHR, N. 1963, p. 3.
109 LÈVINAS, E. 1993, p. 32.
110 BARONE; EISNER, 2012, p.7
111 DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 37. Grifos dos autores citados.
75

Na cultura ocidental, antes do Iluminismo no século XVIII, não


havia uma separação rígida entre ciência e arte. “Os pensadores
renascentistas que postularam um método científico apontavam
claramente para muitas técnicas empíricas baseadas em arte,
desenvolvidas com sucesso para a observação e documentação de nossa
experiência da luz, da sombra, da anatomia humana e do mundo do
natural.”112 A pintura, no ocidente renascentista, ocupava lugar
destacado na esfera do saber, pois reunia “observação do mundo e
cálculo matemático,”113 tornando-se parceira da ciência e da filosofia.

A partir da Era Moderna, a imaginação, antes considerada como


médium por excelência do conhecimento, foi sendo compreendida
como algo irreal. Na cultura antiga e medieval, longe de ser considerado
irreal, “o mundo imaginário tinha sua plena realidade entre o mundus
sensibilis o mundus intelligibilis, e era, aliás, a condição de sua
comunicação, ou seja, do conhecimento.”114 Para os antigos a relação
que a fantasia, a imaginação e o sonho mantinham uma com a realidade
e com o conhecimento, era considerada genuína e eficaz.115

Com Descartes e o nascimento da ciência moderna, a função da fantasia


é assumida pelo novo sujeito do conhecimento: o ego cogito. É preciso
notar que, no vocabulário da filosofia medieval, cogitare significava
antes o discurso da fantasia que o ato da inteligência. Entre o novo ego
e o mundo corpóreo, entre res cogitans e res extensa, não há
necessidade de nenhuma mediação. A expropriação da fantasia, que daí
decorre, manifesta-se na nova maneira de caracterizar sua natureza:
enquanto ela não era - no passado - algo de ‘subjetivo’, mas era,
sobretudo, a coincidência entre subjetivo e objetivo, de interno e
externo, de sensível e inteligível, agora é o seu caráter alucinatório. (...).

112 ROLLING Jr, 2013, p. 12. “Renaissance thinkers who postulated a scientific method

were drawing readily upon many arts-based empirical techniques successfully


developed for the observation and documentation of our experience of light, shadow,
the human anatomy, and the natural world.”
113 LUZ, in BASBAUM, 2007, p.8
114 AGAMBEN, 2005, p. 33
115 AGAMBEN, 2005, p. 34
76

De sujeito da experiência, o fantasma se torna o sujeito da alienação


mental, (...) de tudo aquilo que fica excluído da experiência autêntica.116

A fantasia passou a ser entendida como delírio, loucura, alucinação,


engano. E também a arte foi invalidada enquanto forma de
conhecimento.

Figura 17 – Devir-científico. Cildo Meireles. Trenas. 1992.

116 AGAMBEN, 2005, p. 34


77

Os muros da dicotomia entre arte e ciência foram sendo erguidos


principalmente pela lógica positivista, que percebia a ciência como a via
para iluminar a verdade dos fatos e retirar das “sombras” o pensamento
humano. Foi no início da era moderna, com o desenvolvimento do
empirismo e mais tarde, do positivismo, quando foram sendo
estabelecidas as bases do chamado método científico, que se
naturalizou uma relação de caráter unívoco entre pesquisa e pesquisa
cientifica. A metodologia científica passou a ser única forma de
investigação considerada legítima, especialmente na Academia.

A preocupação com a precisão dos instrumentos investigativos


e das informações amealhadas levou a uma padronização das
metodologias de pesquisa. Os instrumentos válidos em todos os tipos de
pesquisa acadêmica seriam, para os positivistas, o experimento e o uso
de estatísticas elaboradas de acordo com modelos mecanicistas de
uniformidade. Determinados passos eram considerados obrigatórios:
primeiramente deveria ser definido o problema; em seguida, ser descrita
a referência teórica na qual seria baseado o estudo; depois, delimitado
o campo a ser pesquisado, então aconteceria a investigação em si,
devidamente esclarecido o tratamento a ser aplicado a partir de
rigorosas mensurações, seguidas de relatos dos resultados obtidos e da
determinação dos níveis de probabilidade alcançados no
empreendimento.117 (ufa!)

A hegemonia da racionalidade das ciências exatas e naturais se


expandia para outros âmbitos da experiência humana, que passaram a
ser denominados “científicos”, como as Ciências da Educação, Ciências
da Linguagem, Ciências Sociais, etc. Os aspectos singulares e subjetivos
dos pesquisadores e dos indivíduos pesquisados eram colocados de lado,
não valorizados e até mesmo considerados distorções, erros,
descaminhos. Atributos artísticos, estéticos e poéticos empregados em
pesquisa acadêmica eram vistos como tendenciosos, falhos, verdadeiras
contaminações e encontravam forte resistência. Abordagens ambíguas
e não assertivas eram desqualificadas, pois buscava-se sobretudo
verdades definitivas, certezas, clareza e precisão. Predominavam,

117 EISNER; BARONE, 2012, p.x


78

mesmo no contexto acadêmico da educação, as pesquisas de cunho


quantitativo, o interesse parecia ser maior nos números do que nos
sujeitos pesquisados...

Figura 18 - Devir-exata. Sophie Calle, foto. 2009.

A partir do século XIX, a prática da arte e o discurso sobre arte


passam a influir, de maneira inédita, no modo como o próprio
pensamento se processa:

Buscam-se na arte modelos de invenção do novo, de educação do ser


humano integral, de ordenamento ético superior da liberdade individual
e coletiva, de antídoto às catástrofes sociais geradas pelo próprio
funcionamento do capitalismo. Se o racionalismo submetera a arte aos
ditames da razão e da moral, o movimento romântico amplia a tal ponto
a função da arte que esta se apresenta como alternativa para um
79

pensamento capaz de transcender os conceitos e, ao mesmo tempo,


enraizar-se na experiência concreta. 118

Os processos de industrialização e urbanização haviam trazido


consigo diversos problemas sociais, sanitários, de saúde pública e de
educação. Naquela época muitos “jornalistas de investigação” tanto dos
EUA quanto da Europa, denunciaram em seus artigos, a corrupção na
gestão das cidades, a pobreza e outras calamidades. Tais denúncias
levaram à constituição de um “movimento dos levantamentos sociais”,
um conjunto de estudos comunitários coordenados, que terminaram
por levar os pesquisadores a utilizarem linguagens artísticas para acessar
as realidades investigadas e sensibilizar a opinião pública a respeito
destas questões.119

Já em meados do século XIX surgiram alguns processos


investigativos mais abertos que contribuíram para a formação do que
mais tarde, na década de 1960, foi denominado “pesquisa qualitativa”.
O reconhecimento e o prestígio de que as pesquisas qualitativas
desfrutam atualmente no mundo acadêmico resultam desse longo
processo que se inicia no século XIX, com o surgimento das ciências que
elegem o ser humano como campo de estudo, principalmente a
sociologia, a antropologia e a psicologia. É possível que o
reconhecimento da pesquisa com a arte esteja sendo ainda erigido.

Alguns pesquisadores, desde o final do século XIX, utilizaram


produções artísticas como forma de se endereçar aos campos
investigados e ao público leitor, dilatando as fronteiras acerca da
pesquisa estabelecidas pelo pensamento positivista. Em 1851, o inglês
Henry Mayhew (1812-1887) iniciou a publicação dos quatro volumes do
“London Labour and London Poor”120, que consistiu no registro,
ilustração e descrição das condições de vida de trabalhadores e de
desempregados, construídos a partir de “histórias de vida” e entrevistas.
No final da década de 1890 surgiram algumas investigações artísticas
como a do fotógrafo dinamarquês Jacob Riis (1849-1914). Riis pesquisou

118 LUZ, in BASBAUM, 2007, p. 8.


119 BOGDAN; BIKLEN, 1994
120 “Londres trabalhadora e Londres pobre”’
80

e expôs a vida e os problemas sociais vivenciados pela população nova


iorquina no livro de sua autoria “How the other half lives”121 (1890). O
livro apresentava estatísticas sobre a pobreza de Nova York e continha
desenhos e fotos realizadas durante as intermináveis perambulações
que o fotógrafo realizava nos quarteirões mais miseráveis da cidade.122

Figura 19 - Jacob Riis, 1890, fotografia.

121 “Como a outra metade vive”


122 BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 26
81

A Escola de Chicago, formada por um grupo de pesquisadores do


departamento de sociologia da Universidade de Chicago nos anos 1920
e 1930, introduziu novos elementos na pesquisa e novas técnicas para
estudar estes elementos, utilizando cartas, diários, fotografias,
desenhos e outros objetos, penetrando os mundos sociais que queriam
estudar, realizando um transpassamento entre o contexto social e as
biografias, enfatizando a natureza social e interativa da realidade e do
conhecimento. Os investigadores não buscavam uma posição de
neutralidade, mas envolviam-se nas questões políticas que
consideravam importantes. 123

A sociologia da educação que despontou nos anos 1920, embora


de início tenha seguido as perspectivas da Escola de Chicago, a partir de
1929 passou a se inclinar a um viés empirista, utilizando atividades de
mensuração, quantificação e predição, não considerando as histórias de
vida e diários documentos devidamente científicos, pois não podiam ser
padronizados. Read Bain124 comenta em um artigo na revista Journal of
Educational Sociology de 1929, que “as histórias de vida podem ser
interessantes, mas o cinema também o é”. Desclassificava assim
também o cinema, é claro, enquanto instrumento de pesquisa.

Diferenciando-se de seus colegas da Sociologia da Educação,


Willard Waller (1889-1945) da Universidade de Chicago, em sua obra
clássica “Sociology of Teaching” (1932), utilizou “entrevistas em
profundidade, histórias de vida, observação participante, registro de
casos, diários, cartas, desenhos e outros documentos pessoais”125, para
pesquisar o mundo dos professores e dos alunos.

Muito interessante é também a obra do antropólogo Jules Henry


(1904-1969) que, entre outros feitos pioneiros, viveu com os Xoclengue
de Santa Catarina de 1931 a 1934, junto ao rio Hercílio, na região que
hoje é a reserva indígena de Ibirama, e abrange quatro municípios,
incluindo José Boiteux. Henry trabalhava com muitas fotografias e
desenhos, e foi o primeiro a realizar uma pesquisa etnográfica com esta

123 BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 28


124 BAIN, Apud BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 29
125 BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 30
82

etnia indígena. Ele chama aquele povo de Kaingang em sua monografia


"Jungle People, a Kaingang tribe of the highlands of Brazil" (1941), que
foi também, como ele próprio afirma, "a primeira monografia
antropológica escrita do ponto de vista psicanalítico". Henry escreveu,
em 1963 o polêmico e clássico (embora não traduzido ainda para o
português) livro “Culture against men” (A cultura contra o homem)
elogiando o papel das artes na educação e na pesquisa e questionando
a dominação da racionalidade nas instituições culturais, particularmente
na educação pública.126

A perspectiva positivista foi com o passar do tempo, desde o


início do século XIX, se mostrando insuficiente e inadequada para
abordar as questões sempre múltiplas e mutáveis da condição humana,
como nos lembra Bruno Latour, quando comenta que “a imitação das
ciências naturais pelas ciências sociais se tornou uma comédia de
horrores.”127

Que outros caminhos e descaminhos, desde então, temos


construído para trilhar e pesquisar o campo das humanidades e
especificamente o da educação?

No decorrer do século XX, a dicotomia arte/ciência, embora tenha


sido mantida em vários campos da cultura, foi tendo suas fronteiras
erodidas. Foram sendo criadas perspectivas que favoreciam visadas mais
amplas e diversificadas acerca da singularidade humana, sobre nossos
modos de significar a vida, de construir linguagens, símbolos, mundos
“reais” e imaginários, e também, nossas subjetividades.

Após a Segunda Grande Guerra, percorrendo os campos da teoria


da relatividade, as profundezas do inconsciente, as fronteiras das lutas
de classe, as paisagens das pesquisas quantitativas e qualitativas, a
derrocada das grandes narrativas, as esquinas da virada linguística e da
virada cultural e as redes da explosão tecnológica e midiática, alguns
pensadores e pesquisadores vêm buscando diferentes e poéticas formas
de se conceituar, pensar e realizar pesquisas em diversas áreas.

126 BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 34


127 LATOUR, 2000, p.114
83

A “virada literária” que ocorreu nos anos 1970, nas ciências


humanas, se deu a partir de pesquisas qualitativas que atribuíram valor
ao potencial de imaginação e invenção que as criações literárias e
artísticas ofereciam. Tradicionalmente a linguagem era compreendida
como uma categoria natural e universal, um “veículo neutro e
transparente de representação da ‘realidade’, o que supõe um elo
natural entre as esferas da ‘palavra’ e da ‘coisa’, (...) uma espécie de
espelho que revela o interior dos sujeitos, reproduzindo seus
pensamentos e sentimentos.”128 A realidade era concebida como
exterior à linguagem e ao sujeito, assim como o sujeito era considerado
separado da realidade.

Wittgenstein (1991) e Foucault (1966), entre outros, cada um à


sua maneira, contribuíram para transformações nesta concepção. Eles
ressaltaram que a linguagem não é apenas um instrumento de descrição
da realidade, que liga nosso pensamento à coisa pensada, um
instrumento de correspondência e representação. Mostraram-nos que a
linguagem é uma prática construtora de significados, que estes surgem,
não das coisas em si, mas a partir dos “jogos de linguagem” e dos
sistemas de classificação nos quais as coisas estão inseridas. O que nos
parecia ser um fato natural, seria também um fenômeno discursivo.
Como enfatiza Derrida:

Foi então o momento em que a linguagem invadiu o campo problemático


universal; foi então o momento em que, na ausência do centro ou de
origem, tudo se torna discurso – com a condição de nos entendermos
sobre esta palavra – isto é, sistema no qual o significado central,
originário ou transcendental, nunca está absolutamente presente fora
de um sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental
amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação. 129

Alfredo Veiga-Neto comenta, a partir de Foucault, que


“assumimos a linguagem como constitutiva de nosso pensamento e, em
consequência, do sentido que damos às coisas, à nossa experiência, ao

128 HEUSER, in SKLIAR, 2008, p. 64


129 DERRIDA, 2002, p. 232
84

mundo.”130 Aquilo que se diz está, sempre e inexoravelmente,


condicionado pelo ato de dizer, de modo que a linguagem está enraizada
não na coisa percebida, mas no sujeito ativo. “Se a linguagem exprime,
não o faz na medida em que imite e reduplique as coisas, mas na medida
em que manifesta e traduz o querer fundamental daqueles que
falam.”131

Assim, as práticas linguísticas delineiam e constituem o que


podemos ver, dizer, conhecer, pensar e fazer, e o que não pode ser dito,
nem feito. Constituem nossas culturas, constituem os sujeitos, nos
constituem. Assim, é também pela linguagem que podemos nos
reinventar, uma vez que somos criadores de linguagens, de culturas e de
mundos; somos, segundo Hall, “seres interpretativos, instituidores de
sentido.” 132
A “virada cultural” trouxe novos questionamentos acerca de
como se dá o conhecimento, de como os jogos de poder que legitimam
determinadas formas de conhecimento em detrimento de outras. A
cultura, para Hall, tem um caráter epistemológico, ou seja, ela nos
posiciona em relação ao conhecimento, a diferentes formas de
experiência e percepção, formando e transformando nossa
compreensão de nós e do mundo.
Em que medida somos construtores, produtores das culturas, e
em que medida somos construídos por elas? Quais as culturas que nos
constituem? Como sugerem Lipovestky e Serroy:

Vivemos em um tempo onde a cultura se transformou profundamente,


se tornou uma cultura-mundo, uma cultura do tecnocapitalismo
planetário, das indústrias culturais, do consumismo total, das mídias e
das redes digitais, diluindo fronteiras, reconfigurando o momento em
que vivemos e a civilização por vir... Estamos conectados com todos... O
local mais remoto está ligado ao global, há um encolhimento do espaço
e também do tempo. 133

130 VEIGA-NETO, 2011, p. 89


131 FOUCAULT, 1992, p. 306
132 HALL, 1997, p. 1
133 LIPOVESTKY; SERROY, 2011, p. 7
85

De acordo com Hall, no século XX (e mais ainda no XXI!), com a


expansão das tecnologias da informação e da comunicação,

a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, (...)


mediando tudo. A cultura está presente nas vozes e imagens incorpóreas
que nos interpelam nas telas, nos postos de gasolina. Ela é um elemento
chave no modo como o meio ambiente doméstico é atrelado, pelo
consumo, às tendências e modas mundiais.134

Muitas formas de pesquisa, a partir da descontinuidade proposta


pelo pensamento pós-moderno, se utilizam da literatura e das artes,
criando trajetórias investigativas onde os conceitos tradicionais de
pesquisa são cingidos por deslocamentos, apontando às diferenças e
não à unicidade do discurso.

Uma destas vertentes é a Pesquisa Cartográfica. O conceito de


“cartografia”, neste âmbito, foi criado por Gilles Deleuze e Felix Guattari,
em “Mil Platôs” (1995), como um dos princípios do “rizoma”135, em
oposição ao que eles denominam “decalque”. Uma cartografia, ali
associada à ideia de mapa, é uma instância aberta, ancorada na
experimentação, que acompanha os movimentos múltiplos do rizoma
contribuindo para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos
“corpos sem órgãos”136:
O Mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões,
desmontável, reversível, suscetível de receber modificações
constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a
montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um

134 HALL, 1997, p. 27


135 Rizoma - Conceito criado por Deleuze e Guattari em Mil Platôs vol. 1 (1995), para
se referir a constituição sistemas a-centrados, redes finitas, nas quais a comunicação
se faz de um vizinho a um vizinho qualquer da multiplicidade, implicando
deslocamento, evasão, ruptura, heterogeneidade, conexão, imprevisibilidade.
136 O Corpo sem Órgãos (CsO) é também um conceito criado por Deleuze e Guattari,

nos livros Anti-Édipo (2010) e Mil-Platôs vol. 3 (1997). Este conceito, inspirado em
Antonin Artaud, se refere à dimensão virtual, potencial, intensiva de nosso corpo. O
corpo organismo funciona de maneira estratificada e trabalha para a produção, para
realizar objetivos pré-determinados, ordenados pela lógica capitalista. Criar um
corpo sem órgãos supõe criar devires, experiências que escapem destes
condicionamentos e propiciem revelar e ativar nossos potenciais.
86

grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede,


concebê-lo como uma obra de arte, construí-lo como uma ação política
ou como uma meditação. (...). Um mapa tem muitas entradas
contrariamente ao decalque que volta sempre as ‘mesmo’. Um mapa
é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete
sempre a uma presumida ‘competência’. 137

Para Deleuze e Guattari, o decalque funciona a partir de um eixo


genético, uma unidade pivotante ao redor da qual se organizam estados
sucessivos, e se expressa no modelo representativo da árvore,
reprodutível, operando em uma lógica binária, dualista, hierarquizada,
unificante e totalizadora. O decalque organiza, estabiliza, neutraliza as
multiplicidades do rizoma, segundo eixos de significância que são seus,
ele não reproduz senão ele mesmo. “Ele injeta redundância e as
propaga. O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma são somente
os impasses, os bloqueios (...), ou os pontos de estruturação.”138 A
Cartografia, ao invés de representar objetos e a realidade, acompanha
processos, inventa novos olhares e novos caminhos no próprio
caminhar.

Como observa Virgínia Kastrup, a cartografia evita tanto o


objetivismo quanto o subjetivismo, pois estes são faces da mesma
moeda, o realismo cognitivo, que é uma postura epistemológica, uma
política cognitiva muitas vezes naturalizada. O cartógrafo

acessa elementos processuais provenientes do território – matérias


fluidas, forças tendenciais, linhas em movimento, (...) onde o
conhecimento que se produz não resulta da representação de uma
realidade preexistente. (...) O conhecimento surge como composição. 139

137DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.21-22


138DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22
139 KASTRUP, 2012, p. 49
87

Figura 20- Devir cartográfico. Carmela Gross. Bordado: a rede hídrica de São Paulo.
2007.

A pesquisa, portanto, envolve necessariamente a intervenção de


um pesquisador no mundo, “escavando elementos conectivos,
configurando modelos e construindo assembleias que moldam o fluxo e
o caos das percepções de cada dia em uma realidade padronizada que
podemos compreender e correlacionar".140 Há incontáveis maneiras de
se formular questões e abordar os fenômenos humanos. Algumas delas
são mais compatíveis com a vida e a constituição do conhecimento em
nossa sociedade pós-moderna, com sua pluralidade de perspectivas, de
significados e valores.

140 ROLLING, 2013, p. 4. “digging out connective elements, casting models, and
constructing assemblies that shape the flux and caos of each day`s perceptions into
a patterned reality we can comprehend and correlate.” (tradução livre de minha
autoria)
88

A concepção de que o conhecimento científico é o melhor, ou


ainda o único válido, é uma história poderosa, mas é somente uma
história dentre muitas outras que podem ser contadas acerca de como
a humanidade veio, através do tempo, criando, registrando e ampliando
seus campos de conhecimento. Ainda hoje, sublinham Elliot Eisner e
Tom Barone: “a ideia de que a pesquisa possa ser não científica parece,
para muitos acadêmicos [e para boa parte do senso comum],
paradoxal”141, contraditória.

Um longo movimento filosófico e o trabalho de muitos artistas


contribuíram para que a arte desempenhe, hoje, um papel relevante no
campo do pensamento contemporâneo. A arte é hoje reconhecida como
um campo de conhecimento, terreno de experimentação e
problematização do presente, de transformação do humano. Dentre as
outras esferas da atividade humana, a arte:

Em suas manifestações marcantes, não se fez conivente com o presente


estado de coisas, nem aceita ser mera acompanhante, supérflua e
descartável, embora divertida, dos acontecimentos decisivos da crise da
civilização urbana e industrial. Trabalhando sobre linguagens, que
perpassam todo o campo social, a arte é, na atualidade, talvez o mais
poderoso gesto de inscrição instaurador de um outro tempo e de um
outro espaço históricos no corpo das relações entre os seres humanos,
além das fronteiras nacionais e preconceitos de toda ordem.142

A pesquisa com a arte surge dentre as várias tentativas de


atualização destes outros tempos e espaços, destes outros olhares e
modos de pesquisar no campo do humano. As potencialidades da arte
podem trazer inovações às metodologias investigativas ao alargar o
sentido do que seja pesquisa, pois a linguagem simbólica da arte sugere e
não afirma. Se o pensamento científico, na concepção positivista, busca
respostas finais e definitivas, assumindo algumas vezes a pretensiosa
postura de “conhecer a verdade”, a investigação artística, por não se
orientar por uma busca da verdade, oportuniza a necessária modéstia,

141 BARONE; EISNER, 2012, p.2


142 BASBAUM, 2007, p. 9
89

necessária à abertura de outras perspectivas, que escapem ao controle e


à reprodução de um pensamento unívoco e dominante. “A arte é, pois,
conhecimento, mas conhecimento de outro tipo, muito mais antigo que o
saber que dela se aparta. Muito mais amplo também.”143

Agora que o universo entrou por seus olhos (de


que outro modo mais belo você poderia ser
visto?), agora sim os olhos veem seu próprio
tempo, seu próprio espaço. Não cotejam, veem.
Não desiludem, veem. Não conceituam, veem. 144

A pesquisa com a arte pode se encaixar no que Guba e Lincoln 145


descrevem como um modo de pesquisa que privilegia práticas híbridas,
empíricas e interpretativas, um domínio habitado por crenças, leis e
práticas diferentes das científicas, propiciando diferentes formas de
investigação que incluem potencias estéticas, “elegância, criatividade,
abertura, independência e o compromisso emocional e intelectual com
o caso investigado, coragem social e igualitarismo.”146

143 CAUQUELIN, 2012, p.37


144 SKLIAR, 2014, p. 66
145 GUBA; LINCOLN, 1985
146 GUBA, 1990, p.74
90

Figura 21 – Devir-arte. Oficina Parangolé, a vida como obra de arte, CED UFSC, junho
2016, e CCE, 2017.
91

As linguagens artísticas oportunizam ainda visitar as relevantes


dimensões do inconsciente, as paisagens da imaginação e algumas das
mais significantes questões acerca da existência humana. Para o
pesquisador-artista, a investigação é inerente ao tensionamento e à
incompletude que constitui a arte, e ele busca menos solucionar,
responder ou completar, do que impregnar da potência de vida estas
experiências poéticas e plurais, “batidas pelo vento da história e
erguidas sobre as ruínas do tempo presente.”147

147 LUZ, in BASBAUM, 2007, p. 8


92

1.2. Pesquisa Baseada em Arte

All good art is an inquiry and an experiment.


The artist is the researcher par excellence.
Lawrence Stenhouse

Figura 22- Devir-pesquisa. Paulo Gaiad. Cicatrizes, 1998.


93

A partir das últimas décadas do século XX, muitos pesquisadores,


especialmente estadunidenses, canadenses e espanhóis, no intuito de
valorizar, validar e aprofundar a compreensão da arte como instrumento
de pesquisa acadêmica, trabalharam na concepção da metodologia que
ficou conhecida como Pesquisa Baseada em Arte (PBA). Esta
metodologia propõe caminhos de pesquisa que se constituem através
de processos artísticos, desde a abordagem dos campos investigados,
até a forma de apresentação e escrita dos trabalhos finais. São propostas
que deslocam os modos estabelecidos de pesquisar, visando a
transformar o prosaico em poético, enfatizando a vivificação em
detrimento da infalibilidade e a singularidade ao invés da
universalidade.148 A PBA, segundo seus autores, poderia ser realizada
tanto nas áreas da educação, das artes e das ciências humanas, quanto
em outras áreas de conhecimento.

Vários pensadores contribuíram e contribuem para enriquecer a


discussão acerca das PBAs. Os mais conhecidos deles, talvez sejam,
como já mencionamos, Elliot Eisner, Tom Barone e os integrantes do
grupo A/r/tografia, que estudaremos adiante. Em 1997, a socióloga
estadunidense Sara Lawrence-Light-Foot e a arte-educadora Jessica
Hoffman Davis publicaram o livro “The Art and Science of Portraiture”
um estudo pioneiro que desenvolvia um método de pesquisa qualitativa
que desfocava as fronteiras entre estética e pesquisa empírica, “num
esforço de capturar a complexidade, a dinâmica e a sutileza da
experiência humana e da organização da vida.”149 As autoras chamaram
este método de “retrato científico-social”, pois buscavam uma
metodologia de investigação que integrasse o rigor sistemático e a
ressonância evocativa característica da arte, e que, de alguma forma,
ultrapassasse a separação arte/ciência, “os limites de seus meios e sua
inabilidade de capturar e apresentar a realidade plena.”150

Quando entrei em contato com as obras de alguns dos autores


que trabalharam com a Pesquisa Baseada em Arte (PBA), fiquei
entusiasmada com o projeto de valorização da arte como caminho de

148 LATHER, 2009


149 LAWRENCE-LIGHT-FOOT; DAVIS, 1997, p. XV
150 LAWRENCE-LIGHT-FOOT; DAVIS, 1997, p. 5
94

pesquisa, que elas promoviam. À medida que fui me aprofundando no


estudo da PBA, alguns questionamentos foram se configurando. Pois,
embora alguns destes autores nomeassem como suas referências
teóricas, pensadores contemporâneos, como Gilles Deleuze, Jean-Luc
Nancy e Jean-François Lyotard, suas propostas e reflexões me pareciam
operar a partir de modelos eminentemente modernos. Muitos deles
concebiam a arte e o conhecimento como formas de representar o
mundo, ou, situavam o processo de criação na centralidade de um
sujeito existente a priori, ou ainda, propunham encaminhamentos
dialéticos do pensamento...

Eu estava determinada, portanto, a elaborar nesta tese, um


cruzamento, entre o pensamento de Deleuze, Guattari, Foucault,
Blanchot e Agambem, que vinham sendo minhas principais referências
de pensamento, com as propostas dos pesquisadores baseados em arte,
problematizando as concepções destes últimos. A percepção de que a
potência da vida e da criação é algo impessoal e pré-subjetivo, vinha, há
um bom tempo, impulsionando minhas indagações. Afinal, eu
ponderava: o centramento do sujeito e seus impérios já haviam feito
tantos estragos... O pensamento representacional e o conhecimento
arbóreo que a ele corresponde, tantas vezes já nos roubaram a
percepção de nossas infinitas possibilidades... Me perguntava: como
poderia a Pesquisa Baseada em Arte, enquanto se mantivesse atrelada
às mesmas imagens de pensamento que ergueram a barbárie que ai
está, produzir conhecimentos e ações adequados aos desafios
encontrados no Antropoceno?

Foi então que, num dia feliz, encontrei um intercessor que


compartilhava de minhas inquietações, estranhamentos, referências, e
elaborava, com muita densidade, todas estas questões. Ele já havia
efetivado um confrontamento entre os pensadores da PBA e os filósofos
contemporâneos que eu admirava. Encontrei, no extremamente
povoado espaço virtual da internet, a obra de Jan Jagodzinski, professor
da University of Alberta, no Canadá.

Apesar de ser referência importante nos campos da educação e


do ensino da arte, pesquisador sênior reconhecido internacionalmente
e autor premiado de diversas obras seminais, o professor Jagodzkinski
95

tem sua obra pouco divulgada no contexto brasileiro. Há apenas dois


artigos de sua autoria publicados no Brasil: “As Negociações da
diferença: Arte-educação como desfiliação na era pós-moderna”, que
integra a coletânea Pós-modernismo, organizada por Ana Mae Barbosa
e Jacob Guinzburg em 2008; e “Entre aisthetica e ética: o impacto
potencial de Deleuze e Guattari na educação estética”, que integra o
livro Narrativas de Ensino e Pesquisa na Educação da Cultura Visual,
organizado por Irene Tourinho e Raimundo Martins (2009).

Jan Jagodzinski, em conjunto com Jason Wallin, escrevem o livro


Arts-Based Research, a critique and a proposal,151 onde levam adiante as
questões postas inicialmente pela PBA, problematizando aspectos
cruciais de suas práticas investigativas e propondo uma “ética da
traição”. Para Jagodzinski e Wallin a “ética da traição” é,
paradoxalmente, um ato de fidelidade e amor, como verificamos em
suas próprias palavras:

Assim é a traição dirigida à pesquisa baseada em arte. Nossa traição se


dá, tanto para poder verificar para onde o projeto (...) pode estar se
dirigindo, mas se detendo em um certo ponto, sem seguir adiante,
quanto como um ato de amor, por acreditar que outra direção se faz
necessária para continuar tornando possíveis suas promessas. Nesse
sentido, nosso trabalho é uma traição, pois, somente desta forma ele
pode prosseguir apoiando a pesquisa baseada em arte. De maneira
nenhuma, porém, rejeitamos as aspirações gerais de muitas das suas
intenções - especialmente as críticas. [Vemos a necessidade] de, por
razões éticas, estéticas e políticas especificas, cortar laços com algumas
de suas orientações, quando estas continuam seguindo trajetórias ao
longo de objetivos epistemológicos que se valem de uma estética
representacional autocentrada.152

151JAGODZINSKI; WALLIN, 2013.


152 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 2. So is the betrayal directed at Arts-based
Research. Our betrayal is both to see where the plan might be heading, but stoping
at a certain point, not following any further, as an act of love and in the belief that
another direction is required to continue to make its promises possible. In this sense,
our work is a betray for it can only go far in its support of arts-based research, but in
no way it rejects the general aspirations of many of its intentions – especially critical
ones. [we see the need] to cut ties with a number of its directions for specifical
96

Então, contando com a preciosa companhia dos olhares argutos


de Jagodzinski e Wallin e de suas propostas de incursão nas paisagens
investigativas da arte, é que convido você, leitor, a adentrar estes
territórios da PBA.

1.2.1. Contribuições de Eisner e Barone

Elliot Eisner, é por alguns autores considerado o pesquisador que


teria inicialmente sistematizado as metodologias de investigação através
da linguagem artística. A denominação Arts Based Research (Pesquisa
Baseada em Artes), segundo Eisner e Barone (2012), teria sido criada
pelo próprio Eisner, em 1993, quando ministrava um curso sobre formas
de educação e pesquisa alicerçadas em concepções estéticas, na
Universidade de Stanford, onde era professor. Já na década de 1970,
Eisner percebia o potencial investigativo da arte no meio acadêmico, e o
defendia em alguns livros, muitos deles inspirados em John Dewey e
Herbert Read, como The Educational Imagination,153 de 1979, e artigos
como “O que pode a educação aprender das artes sobre a prática da
educação”154, de 2002, publicado no Brasil em 2008.

Eisner, foi um importante teórico do campo da Arte e da


Educação. Durante décadas, seu pensamento contribuiu, tanto no
contexto estadunidense como em vários países do mundo, para o
aprimoramento do Ensino da Arte, para a conquista e a manutenção do
lugar da arte nos currículos escolares e para a valorização do papel da
arte no desenvolvimento do pensamento crítico e de habilidades
estéticas. Trabalhou com entusiasmo, neste sentido, até a data de seu
falecimento, em 2014.

ethical, aesthetical and political reasons when it comes to furthering that trajectory
along epistemological claims, and with a self-serving representational aesthetic.

153 EISNER, 1979


154 EISNER, 2008, p. 5-17
97

Figura 23 – Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC, junho de 2016

Este autor visitou o Brasil em 1991, a convite dos organizadores


do IV Congresso Nacional da Federação de Arte-educadores do Brasil
(FAEB), em Porto Alegre. Eisner colaborava então com o
desenvolvimento da abordagem metodológica conhecida
como Discipline-Based Art Education - DBAE (Arte-Educação Baseada em
Disciplinas), junto à Fundação Getty.155 Esta metodologia preconizava a
integração do fazer artístico, da História da Arte, do contexto histórico e
da análise das obras artísticas, no ensino da arte. As propostas de Eisner
tiveram considerável influência na concepção da arte-educação no
contexto brasileiro. Propiciaram um movimento que colaborou para a
edificação de um ensino de arte de concepção pós-moderna, atuando

155 BOJUNGA, 2014


98

em um viés paralelo ao da Proposta Triangular desenvolvida por Ana


Mae Barbosa, que renovou, transformou e reconfigurou o ensino de arte
no Brasil.

Eisner e Barone escrevem, em 2012, o livro Arts Based


Research,156 resultado de décadas de pesquisa e experimentação acerca
do que pode ser uma Pesquisa Baseada em Arte e das várias
possibilidades de se trabalhar com ela. Afirmam o potencial
epistemológico da arte, conceituando a PBA como uma pesquisa
qualitativa que, através de procedimentos artísticos - literários, visuais,
musicais e performáticos - busca possibilitar ao investigador, ao leitor e
ao colaborador, experiências e formas de interpretar estas experiências,
que desvelem aspectos que não se fariam visíveis em outros tipos de
pesquisa. Em suas próprias palavras:

O termo ‘pesquisa baseada em arte’ não é autoexplicativo. Correndo o


risco de simplificar demais o que é uma concepção complexa e
multifacetada, vamos tentar, neste livro, descrever o significado desta
frase de uma forma que a torne apreensível ou compreensível.
Podemos dizer agora que a investigação baseada em arte é um esforço
para empregar as qualidades expressivas da forma, a fim de permitir a
um leitor desta pesquisa participar na experiência do autor. Deixando
ainda mais simples: a pesquisa baseada em arte é um processo que
utiliza as qualidades expressivas da forma para transmitir um
significado.157
Eisner e Barone levantam, problematizam e discutem várias
questões pertinentes à PBA, sustentando, a partir de diferentes
referências e ângulos, como e por que a Pesquisa Baseada em Arte pode
ser de fato confiável. O propósito central que engendra todas as

156 BARONE; EISNER, 2012


157 BARONE; EISNER, 2012, p. xii. (Todas as traduções das obras em inglês que
constam nas referências desta tese são traduções livres de minha autoria)
“The term arts based research is not self-explanatory. At the risk of over simplifying
what is a complex and multifaceted conception, we will try, in this book, to describe
the meaning of that phrase in a form that makes it graspable or understandable. We
can say now that arts based research is an effort to employ the expressive qualities
of form in order to enable a reader of that research to participate in the experience
of the author. Put even more simple in this: Arts based research is a process that uses
the expressive qualities of form to convey meaning.”
99

reflexões deste livro é essencialmente o de buscar conferir legitimidade


epistemológica à Pesquisa Baseada em Arte, especialmente no meio
acadêmico, onde prevalece ainda, como mencionamos, o entendimento
do pensamento científico como único instrumento válido de pesquisa e
construção de conhecimento. Os autores não almejam a que as diversas
formas de PBA substituam os métodos convencionais de pesquisa
empírica, nem tampouco que elas sejam concebidas apenas como um
“suplemento”, algo a ser adicionado à pesquisa científica.158 O que estes
autores defendem, inspirados no pensamento de John Dewey (1949), é
que o conhecimento deriva da experiência, tomando como experiência
exemplar, a artística.

Para Eisner e Barone, a PBA é “um esforço para utilizar as formas


de pensar (...) e representar que a arte provê, como modos pelos quais
o mundo pode ser melhor compreendido e através dos quais advenha
um alargamento da mente,”159 propiciando uma maior diversidade de
perspectivas sobre os campos investigados e um pluralismo de
metodologias de pesquisa. Para estes pesquisadores, uma das
qualidades essenciais da PBA é a utilização de variadas formas de
representação para promover um aprofundamento, uma ampliação e
uma complexificação da compreensão sobre o ser humano. Algumas
representações podem ser discursivas e digitais, outras analógicas,
outras figurativas, musicais, gestuais.... Estas formas, nunca
redundantes, possibilitariam diferentes modos de compreensão de
diversos aspectos dos campos estudados. “É a pluralidade de visadas
que nós buscamos a longo prazo, ao invés de uma abordagem
‘monoteísta’ da conduta de pesquisa”.160 Em seu livro Arts Based
Research, estes autores formulam e parcialmente respondem uma série
de perguntas. Destacamos, a seguir, algumas delas.

- “Por que trabalhar com a pesquisa baseada nas artes?”

158 BARONE; EISNER, 2012, p. 4


159 BARONE; EISNER, 2012, p. xi. “an effort to utilize the forms of thinking and
representation that art provides as means through which the world can be better
understood and trough such understanding comes the enlargement of mind.”
160 BARONE; EISNER, 2012, p.10. “It is the plurality of view that we seek in a long run,

rather than a monotheistic approach to the conduct of research.”


100

Eisner e Barone afirmam a contribuição do uso poético da


linguagem, da expressão narrativa, da experiência estética, para o
alargamento e a pluralização das metodologias investigativas. Na esteira
de Maxine Greene (1995) e de Herbert Read (2001), estes autores
enfatizam que a experiência estética oportuniza um “alto nível de
consciência” sobre o que se vê e o se vivencia. É esta qualidade ampliada
de percepção e fruição, esta plenitude de atenção e de empatia, que os
educadores e pesquisadores podem “aprender” com a arte. 161 Estes
autores entendem, ainda partir das reflexões de Greene (1978, 1995),
que a percepção estética requer uma atenção refinada ao detalhe, à
forma, às tensões e harmonias, às nuances expressivas, a percepção das
mudanças, desafiando nossos costumeiros modos de percepção:

A visão estética ousa dirigir-se ao inefável. Ela transforma o fluxo do


tempo. Ela pode deter um momento para fitá-lo e apreendê-lo mais
plenamente, mais profundamente; mas a visão estética não assume que
o que se vê no momento é algo que sempre se verá. Ela percebe o
potencial de transformação dentro da fixidez – um bloco de madeira, um
pedaço de argila, uma disposição de palavras, a configuração de uma sala
de aula, ou o comportamento de um indivíduo ou de uma criança. A
perspectiva estética é sempre de um posto de vista específico, filtrado
por um tipo específico de consciência. (...). Inclui emoção, imaginação e
paradoxo. Ela abraça a complexidade.162

161 BARONE; EISNER, 2012, p. 37


162 BARONE; EISNER, 2012, p. 37. “Aesthetic vision dared to address the ineffable. It
adjusts the flow of time. It may seize a moment in order to stare at it and see more
fully, more deeply, but aesthetic vision does not assume that what one sees in the
moment is what one will always see. It perceives the potential for transformation
within any fixity – a block of wood, a piece of clay, a display of words, the
configuration of a classroom, or the behavior of an individual or a child. Aesthetic
vision is always from a specific point of view, filtered by a specific consciousness. It
includes emotion, imagination, and paradox. It embraces complexity.”
101

Figura 23 a – Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC, junho de 2016

Um dos atributos de uma PBA seria a compreensão de que,


embora o ato artístico seja concebido primordialmente como um ato
social, “um movimento para fora, voltado para uma comunhão com os
102

outros,”163 ele não invalida, como fazem algumas outras metodologias,


a possibilidade de se conceber e valorizar uma pesquisa voltada para o
próprio pesquisador. A partir da filosofia fenomenológica, Eisner e
Barone ressaltam o potencial auto emancipatório e terapêutico das
práticas com artes:

Catarse, terapia, auto despertar, auto transformação, auto


empoderamento, crescimento pessoal – estes são objetivos subjetivos
válidos para uma investigação social adotada por pesquisadores que
desejem enfrentar os epítetos da auto indulgência, da auto absorção, do
narcisismo, do fitar o próprio umbigo, que inevitavelmente são lançados
a eles.”164

Afinal, para se mudar o curso da história, é necessário que se


mude, primeiramente, a si mesmo.

“Sim... mas isto é pesquisa?”

Trabalhar com Pesquisa Baseada em Arte implica, como


mencionamos anteriormente, ampliar o entendimento do que seja
pesquisa. Para Eisner e Barone “a Pesquisa Baseada em Arte é uma
heurística, através da qual nós aprofundamos e tornamos mais
complexo nosso entendimento de alguns aspectos do mundo.”165 A obra
de arte pode proporcionar, como quando assistimos a um filme, uma
empatia com a experiência pesquisada, condição esta que estes autores
consideram “necessária para aprofundar formas de significação na vida
humana.”166 Em uma PBA é o teor artístico que estrutura e conduz toda
a pesquisa. A linguagem artística na PBA não é utilizada como
ornamento de um trabalho produzido cientificamente, mas é a forma

163 BARONE; EISNER, 2012, p. 64. ”a moving outward into communion with others”
164 BARONE; EISNER, 2012, p. 64. “Catharsis, therapy, self-awakening, self-
transformation, self-empowerment, personal growth – these are available
subjectivist aims for social inquiry espoused by methodologists who are willing to
brave the epithets of self-indulgence, self-absorption, narcissism, and navel-gazing
inevitably hurled at them.”
165BARONE; EISNER, 2012, p.3 “Art based research is an heuristic through which we

deepen and make more complex our understanding of some aspect of the world”.
166 Idem. “necessary condition for deep forms of meaning in human life”.
103

essencial de construção de um trabalho e vai determinar o que e como


ele comunica e o modo como afeta a recepção da obra. “A Pesquisa
Baseada em Arte é, em seu nível mais profundo, a realização de
abordagens artísticas e estéticas para cultivar e acessar questões
sociais.”167

O objetivo da PBA não é tomar o lugar dos métodos tradicionais


de pesquisa, mas sim, “diversificar a coleção de métodos que os
pesquisadores podem utilizar para abordar os problemas que lhes
interessam.”168 Eisner e Barone visam, com o fortalecimento das práticas
de PBA, a contribuir para a pluralidade de paradigmas para se realizar
uma pesquisa. Métodos genuinamente efetivos em PBA são
reconhecidos pelas perguntas que engendram, ou seja, não por
fornecerem uma resposta ou uma solução correta para o problema, mas
por criar questões que estimulem novas formulações e novas atitudes.

“Como pode a PBA ser tanto política quanto ética?”

Os autores questionam a premissa de neutralidade política


encontrada em algumas das correntes tradicionais de pesquisa. O
afastamento de um posicionamento político foi também uma marca de
várias escolas da estética - a busca do belo como uma instância
transcendental, não manchada pelas relações de poder existentes no
cotidiano. Eisner e Barone169 assumem outro posicionamento: “nós
sustentamos, juntamente com muitos outros teóricos, que relações de
poder são evidentes em todas as atividades e artefatos humanos,
incluindo os artísticos, embora em alguns de maneira mais óbvia que em
outros. O caráter político de uma PBA pode se plasmar, para estes
autores, de duas formas básicas: a primeira seria no desenvolvimento
de “temas que sugiram a maneira pela qual o poder e os privilégios são
distribuídos, ou mal distribuídos, em nichos culturais específicos;”170 a

167 BARONE; EISNER, 2012, p. 57


168 BARONE; EISNER, 2012, p. 61
169 BARONE; EISNER, 2012, p. 121
170 BARONE; EISNER, 2012, p. 122
104

segunda, na construção do caráter democrático da pesquisa, de modo a


permitir que diversos pontos de vista possam ser devidamente
considerados.

Figura 24 – Devir-pesquisa 2. Max Ernst, Gala Éluard, 1924


105

Uma PBA pode entretecer uma busca de justiça social,


transgredindo discursos, hábitos e práticas que foram naturalizados pelo
senso comum e pelos “sistemas de crença da cultura dominante. Estes
sistemas são sustentados através de imagens e linguagens que são
alojados na consciência do público e aceitos, desta forma, como
fundamentalmente verdadeiros e raramente sendo questionados ou
desafiados”171 A PBA, desta forma, visa a questionar as “grandes
narrativas,” entendidas a partir do pensamento de Jean-François Lyotard
(1979), como explanações que conduzem a significados finais, forjando
certa estabilidade e o conforto das certezas, abafando a insegurança
engendrada pela ambiguidade, pela indeterminação, pela desordem. As
grandes narrativas frequentemente operam uma série de pressupostos
que são tomados como verdadeiros e não como construções históricas
parciais e temporais, desenvolvendo, um discurso totalizante, excluindo
teorizações e perspectivas alternativas. Percebidas como neutras e
objetivas pelo senso comum, as grandes narrativas têm também um
cunho político, uma vez que servem para legitimar, normalizar e,
portanto, estabelecer determinados valores sociais, vantagens e
discursos, em detrimento de outros.

Eisner e Barone nos alertam para o risco de que, levados por um


entusiasmo em erradicar injustiças e crueldades, alguns pesquisadores
possam se tornar monológicos, autoritários e “detentores da verdade”.
Para evitar tal deslize, os pesquisadores podem buscar uma postura
ética de uma “humildade epistemológica” que escape às tendências
ortodoxas, deixando espaços abertos, para que outras abordagens
possam se desenrolar. Isso implica um questionamento da premissa
convencional de que toda pesquisa é feita para nos levar a um
entendimento final sobre determinada questão. Ao invés de contribuir
para a estabilidade dos conceitos, as PBAs buscam revisitar o mundo
com um olhar de frescor. Estes autores sublinham que este tipo de
olhar, este modo de pesquisar atende a uma necessidade básica do ser
humano, “a necessidade de surpresa, do tipo de recriação que advém da
abertura para as possibilidades de perspectivas alternativas sobre o

171 BARONE; EISNER, 2012, p. 123


106

mundo.”172 Um olhar que promova brechas, transpassando


estereótipos, condicionamentos e os estrabismos do senso comum,
pode contribuir como uma prática de emancipação tanto para os
pesquisadores quanto para os leitores/espectadores.

Eisner e Barone indagam:

Como se pode criar textos baseados em arte com maior potencial


catalisador para engendrar uma conversa, ou seja, textos nos quais não
esteja inscrito um ponto de vista único, monolítico, estático, privilegiado,
autoritário e dominante? Como podemos oferecer uma multiplicidade de
perspectivas, em que cada uma seja frágil, fluida, hesitante, e
epistemologicamente humilde? Como podemos criar um texto que seja
simultaneamente pertencente a todos os colaboradores, que revele as
múltiplas perspectivas do investigador e as várias perspectivas dos
personagens que habitam o texto? E como pode o texto servir para
levantar questões sobre a dominação das mentes dos leitores [e dos
pesquisadores] pelas narrativas dominantes e como eles podem imaginar
personagens e eventos fora do texto, como análogas aos retratados
nele?173

O pesquisador visa a não se posicionar como o “dono” da


pesquisa, e sim criar um texto que ofereça uma multiplicidade de
perspectivas, uma polifonia, no sentido bakhtiniano, que pertença
simultaneamente a todos.

Esta modalidade de pesquisa se aproxima, para estes autores, da


Pesquisa Participante e da Pesquisa Ação, na medida em que tem um

172 BARONE; EISNER, 2012, p.124. “a need for surprise, for the kind of re-creation that

follows from openness to the possibilities of alternative perspectives on the world.”


173 BARONE; EISNER, 2012, p.147. “How can one create arts based texts with greatest

catalytic potential for engendering a conversation, texts, that is, in which there is not
inscribed a single, monolithic, static, privileged, authoritative, dominant point of
view? How can we offer a multiplicity of perspectives, each of which is fragile, fluid,
tentative, and epistemological humble? How can we create a text that is
simultaneously owned by all collaborators, one that discloses the multiple
perspectives of the researcher and the various perspectives of the characters
inhabiting the text? And how can the text serve to raise questions about the
dominance of the master narrative in the minds of the readers as they imagine
characters and events outside of the text as analogous to those portrayed within it?”
107

caráter intervencionista, no qual tanto o perfil investigativo como o


próprio pesquisador se constroem durante o processo de pesquisar. É
como potencialidade de elaboração de processos que promovam a
autotransformação do próprio pesquisador, a problematização das
premissas institucionais e a transformação das políticas públicas que as
sistematizam, que Eisner e Barone entendem o papel político e ético da
PBA.

“Quais seriam alguns dos critérios para a PBA?”

Eisner e Barone elencam alguns critérios que poderiam colaborar


nos processos de avaliação das Pesquisas Baseadas em Arte:

-Incisividade - A “pesquisa vai ao coração do problema


pesquisado”, de modo penetrante e pertinente.174

-Concisão - A investigação faz uso da mínima linguagem


necessária para habilitar aos leitores e a audiência a enxergar o
fenômeno pesquisado de uma maneira fresca e inusitada. A concisão
requer um tipo de discriminação e de discernimento a respeito das
questões que a pesquisa quer provocar acerca do fenômeno social
pesquisado.
-Coerência – A criação de um trabalho de PBA, cujas
características e partes trabalhem em conjunto, construindo uma forma
forte.
-Generatividade – Os autores entendem generatividade como a
potência da pesquisa de gerar, ampliar e remodelar as concepções
existentes sobre a determinado tema, trazendo aspectos não ainda
percebidos. Os autores enfatizam a diferença entre generatividade e
generalização; a primeira, ligada à criação artística, e a segunda, à
pesquisa tradicional, baseada em estatísticas e processos aleatórios de
seleção de amostras.

174 BARONE; EISNER, 2012, p. 148


108

-Significância social – “O que faz um trabalho ser significativo é a


sua importância temática, seu foco sobre questões que façam uma
diferença considerável na vida das pessoas de uma sociedade.”175

-Evocação e Iluminação – É através da evocação e da iluminação


que se sente o significado de uma obra. A evocação tem a ver com o
sensível, com a experiência estética. “A evocação desta sensibilidade
pode resultar em algo que não seja apenas uma compreensão
cognitiva”176, mas um tipo de envolvimento que motive o pesquisador e
o leitor/espectador a refletir mais profundamente e a problematizar o
olhar costumeiro, vertendo luz sobre aspectos que potencializam ações
criadoras.

Estes autores sublinham a importância de os critérios


funcionarem simplesmente como sugestões, como possíveis formas de
conferir fiabilidade, e de não se tornarem padrões estáticos, receitas.
Enfatizam que tais critérios não devem inibir a inovação, a surpresa e a
imaginação, mas contribuir como norteadores para as produções e
avaliações de PBAs.

“A Pesquisa Baseada nas Artes pode ser ficcional?”

Eisner e Barone sustentam a validade do caráter ficcional


encontrado em algumas PBAs, comentando que “as virtudes a serem
encontradas na pesquisa baseada em artes não estão situadas em
alguma relação isomórfica entre uma afirmação e um fato, mas no grau
em que, como diz Clifford Geertz (1974), ela torna nossa conversa mais
interessante.”177

175 BARONE; EISNER, 2012, p. 153. “What makes a work significant is the thematic
importance, its focus on the issues that make a sizable difference in the lives of people
within a society.”
176 Idem, p. 154
177 BARONE; EISNER, 2012, p. 6 “The virtues to be found in arts based research are

not located in some isomorphic relationship between a statement and an event; it is


to be found in the degree to which, as Geertz says, it makes our conversation more
interesting.”
109

No entendimento de várias metodologias tradicionais de


investigação social, algo que seja ficcional é considerado inválido, falso,
um engano. Certos pesquisadores podem se sentir intimidados por tais
padrões tradicionais e não ousar correr o risco de, ao trabalharem com
a ficção, terem suas pesquisas desqualificadas e não valorizadas. Eisner
e Barone se posicionam contra esta intimidação, sustentando que a
criação ficcional na pesquisa social pode contribuir para a realização de
um dos propósitos básicos da PBA, que é possibilitar aos fenômenos
sociais significados que escapem às interpretações costumeiras ou
ortodoxas. Os trabalhos ficcionais podem, enquanto recriação dos
fenômenos sociais, dilatar “a potência de perturbar e interromper o
familiar, o senso comum, e de questionar o que parecia ter sido
respondido conclusivamente, redirecionando a conversação a questões
sociais importantes.”178

Estes autores questionam: o que é e o que não é ficção? Há uma


corrente que segue a etimologia grega - fictio - fazer, construir, compor,
considerando ficção todos os artefatos culturais confeccionados pelo ser
humano, ou seja, que todas as atividades humanas contêm um elemento
fictivo. Nesta vertente, Clifford Geertz179 pondera que nas obras
literárias a descrição de personagens e situações são tão ficcionais -
construídas – quanto as das pesquisas sociais.

Em uma segunda definição, predominante na cultura ocidental


acadêmica e popular, o ficcional é visto como o oposto do factual, do
verdadeiro. Esta perspectiva dicotômica desenha uma fronteira entre o
imaginário e o factual, estabelecendo uma vontade preponderante por
precisão, categorização e clareza e uma rejeição da ambiguidade, da
criação, do fantasioso. A ficção aparece nesta vertente, como um
exagero da imaginação, um mundo ilusório de formas estéticas
apartadas da realidade.

Os autores elegem uma terceira forma de entender o ficcional,


aplicável à PBA, a partir das reflexões de Wolfgang Iser, na qual a ficção
seria algo nem presente de forma difusa em todas as formas culturais,

178 BARONE; EISNER, 2012, p.101


179 GEERTZ, 1974, p.15-160
110

nem algo caracterizado como falso ou fantasioso, a face negativa em


uma ótica dicotômica. Eisner e Barone ressaltam que um texto de
pesquisa é uma “composição” elaborada pelo autor, uma criação a ser
recriada pelo leitor/espectador, um ato onde o ficcional tem a função
pragmática de encadear novos significados, elaborando o que Wolfgang
Iser (1993) denomina fictivo. O texto fictivo pode direcionar o leitor ao
“mundo empírico a partir do qual o mundo textual foi desenhado,
propiciando que este mesmo mundo seja percebido de um ponto de
vista que não havia ainda feito parte dele, tornando concebível o que de
outra maneira permaneceria encoberto.180

O dispositivo ficcional, segundo Iser, se encontra principalmente


nas lacunas que permeiam o texto, sempre composto de partes escritas
e não escritas. Essas lacunas, a porção não escrita do texto que apela à
participação do leitor, serão preenchidas de diferentes modos, por
diferentes leitores, permitindo concepções inesgotáveis dentro dos
limites interpretativos sugeridos. Iser aponta esta experiência como
possibilidade de desmoronamento da divisão sujeito-objeto, na medida
em que "o texto e o leitor não se confrontam como objeto e sujeito, mas
em vez disso a “divisão ocorre dentro do próprio leitor.”181 No ato de
leitura, o texto torna-se um sujeito vivo para o leitor.

“Quem pode realizar uma Pesquisa Baseada em Artes?” Formação

Para trabalhar com a PBA, não é necessário ser acadêmico ou


artista. Isto não significa, porém que qualquer pesquisa possa ser
denominada “baseada em arte”. Eisner e Barone deixam claro que não
são relativistas, sustentam que um pesquisador, para realizar um
trabalho em PBA, precisa dispor do potencial para alcançar o que
consideram o objetivo último da pesquisa: a capacidade de convidar os
leitores/espectadores a experienciar aspectos do mundo que passariam
despercebidos em uma perspectiva convencional, e que poderiam

180 ISER, 1993, p. 16-17. “Empirical world from which the textual world has been
drawn, allowing this very world to be perceived from a vantage point that has never
been part of it making conceivable what would otherwise remain hidden.”
181 ISER, 1993, p. 298
111

problematizar e questionar os lugares comuns, as perspectivas


ortodoxas e o comodismo do pensamento.

Figura 25 – Devir-pintura. Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC,
junho de 2016.

Embora, para se realizar uma PBA, segundo Eisner e Barone, um


pesquisador não necessite ser um profissional em artes, ele precisa ao
menos manifestar alguma habilidade na linguagem artística escolhida e
na criação de um sentido estético acerca do tema abordado. Eisner e
Barone sublinham:

Nós acreditamos que alguém que possa produzir tal trabalho –


primeiro cuidadosamente observando as facetas do mundo e então
recriando-as, convertendo-as em uma forma culturalmente
significativa – está, no momento da criação, operando como um
artista. (...). Nós acreditamos que as habilidades e talentos necessários
112

para tal podem – em grande grau – ser adquiridos através de


dedicação, prática e orientação. (...) E acreditamos que as
universidades e colégios podem criar e/ou modificar os programas de
pesquisa social que atendam ao ensino destas habilidades e talentos,
para que forneçam os recursos práticos [e teóricos] requeridos para se
tornar um bom pesquisador através das artes.182

Estes autores enfatizam que os programas de pesquisa


acadêmica, não apenas nos campos da arte e do ensino da arte, mas em
todos os campos de pesquisa social e humana, poderiam ser projetados
para viabilizar também pesquisas baseadas em arte. Poderiam oferecer
oportunidades aos futuros pesquisadores, de desenvolverem
habilidades em diversas linguagens artísticas, tanto em desenho,
pintura, escultura, música, teatro, performance, quanto em elaboração
de vídeos, filmes, fotografias, desenhos animados, arte relacional,
criação de instalações, etc. O Importante é que estes futuros
pesquisadores saibam operar diferentes linguagens simbólicas, pois
damos sentido ao mundo, de acordo com Eisner e Barone, trabalhando
com formas de representá-lo. As diferentes linguagens delineiam
diferentes modos de expressão, plasmam o mundo de diferentes
maneiras, plasmam diferentes mundos.

Para Eisner e Barone, os significados encontrados em um


romance, a sensibilidade despertada em uma sinfonia, a cadência que
movimenta um poema, são possíveis elementos compositivos de uma
PBA. Isto sugere que o conceito de letramento ou de alfabetização
precisa ser expandido, de “um processo essencialmente preocupado
com a construção de significados na linguagem [discursiva], para um
processo no qual o significado é construído através da interpretação de

182 BARONE; EISNER, 2012, p. 56-57 “We believe that someone who can produce such

a work – by first carefully observing facets of the world and then recasting them in to
a meaningful cultural form – is at the time of that creation operating as an artist. (…)
We believe that the skills and talents needed can – to a large degree – be acquired
through dedication, practice, and guidance. And we believe that universities and
colleges can create and/or modify social research programs that attend to the
teaching of those skills and talents that provide the practical resources required to
become a good arts based researcher.”
113

formas em qualquer meio em que ele possa vir a aparecer.”183 A


habilidade de se lidar com as artes visuais, por exemplo, não é a mesma
das artes cênicas, o que sugere que os pesquisadores precisam ser
preparados para trabalhar com mais de uma linguagem.

“Qual o lugar da teoria e da prática na Pesquisa Baseada em Artes?”

Eisner e Barone questionam o que tradicionalmente se entende


por teoria e a concebem como o esforço de tecer uma representação,
uma narrativa, um relato, uma explicação, uma compreensão sobre
certos aspectos do mundo, sobre fatos ou experiências. Para estes
autores, a teoria é uma ferramenta para pensar, representar e elaborar
perspectivas que garantam a possibilidade de um parecer, um
entendimento. Como a compreensão depende das formas que a
promovem, presume-se que diferentes formas de representação
constroem diferentes formas de compreensão. Eisner e Barone afirmam
que as formas de representação em uma pesquisa acadêmica não
devem ser necessariamente discursivas:

A presença de experiência não-discursiva provê uma qualidade de


consciência que quando artisticamente trabalhada nos permite
compreender alguns aspectos do significado das coisas. Uma teoria
não-discursiva não é um oximoro, desde que a nossa concepção da
teoria seja expandida para além dos limites estreitos do discurso
científico tradicional.184

Para Eisner e Barone, há incontáveis formas através das quais


pensamentos, concepções e explicações podem ser tramadas, e a PBA
possibilita esta ampla diversidade de abordagens no estudo da

183 BARONE; EISNER. 2012, p.62. ”a process concerned essentially with the making of
meaning in language to a process in which meaning is made through the
interpretation of forms in whatever media they happen to appear.”
184 BARONE; EISNER. 2012, p. 156. “The presence of nondiscursive experience

provides for an awareness that when artistically crafted enables us to grasp some
aspects of the meaning of things. Nondiscursive theory is not an oxymoron as long as
our conception of theory is expanded beyond the narrower confines of traditional
scientific discourse.”
114

dimensão humana. Afirmam que os limites da linguagem não definem


os limites de nossa compreensão e de nosso pensamento, e que as
práticas artísticas, por não estarem confinadas pelos limites das
linguagens discursivas convencionais, podem propiciar visitas a estas
regiões não percebidas pelo pensamento comum. Estes autores
ressaltam que “o propósito da PBA é mais levantar questões
significantes e engendrar conversas do que proferir entendimentos
finais.”185 Pois a PBA se baseia na noção que toda perspectiva é parcial
e, portanto, incompleta. Nunca é total. A ausência de totalidade
possibilita que se discuta a partir de diferentes perspectivas, propiciando
um alargamento do olhar.

“Acerca da validade das PBAs”

Todo o esforço de Eisner e de Barone, no livro Arts Based


Research, é o de conferir validade, legitimidade e credibilidade às
pesquisas baseadas em arte e demonstrar que elas não são um
“anything goes”, um “qualquer coisa passa”, um vale tudo.

Os autores elencam vários fatores, que acreditam serem


plenamente exequíveis em PBAs, e que lhes parecem cruciais na
legitimação de uma pesquisa acadêmica. Distinguem dois tipos de
validade: a interna, que se refere ao modo como um estudo é concebido
e desenhado, de maneira a garantir conclusões; a externa, concernente
à relevância do estudo para a sociedade ou para um grupo social, no
aprofundamento da compreensão das situações e campos aos quais ele
se dirige.186 Apontam, também, dois conceitos que julgam pertinentes
na promoção de credibilidade: o primeiro seria a “corroboração
estrutural”, a confluência de muitas “peças de evidência” favorecendo a
criação de um todo persuasivo, aprofundando o debate sobre o tema,
tornando “a conversa mais interessante” e a análise mais sensível,
produzindo perguntas que complexificam o olhar acerca do tema
pesquisado; o segundo, “adequação das referências”, no caso das
investigações artísticas, se refere à habilidade de encontrar, no cenário
pesquisado, qualidades e significados passíveis de serem trabalhados

185 BARONE; EISNER. 2012, p. 156


186 BARONE; EISNER. 2012, p. 162
115

em uma PBA, de modo que o resultado seja convincente e coerente, que


os significados sejam generalizáveis. Eisner e Barone sublinham que
estes conceitos não são leis, podendo sempre ser deliberados e
discutidos. Tais julgamentos são exercidos na ausência de leis,
pressupondo a liberdade inerente à criação poética.

A poesia e a literatura são, para os autores, nítidos exemplos de


como se trabalhar as linguagens de modo a produzir sentidos que de
outra maneira seriam inexprimíveis, promovendo poderosas
perspectivas sobre nosso mundo. A linguagem artística/poética não
pode ser medida, escrutinada, enquadrada, pois a vida não acontece
deste modo. Na realidade, “a maioria das mais profundas experiências
que temos na vida são fundamentalmente incomensuráveis.”187

Figura 26 – Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CCE UFSC, setembro de
2017.

187BARONE; EISNER. 2012, p. 162. “Most of the most profound experiences we have
is life are fundamentally unmeasurable.”
116

Levar a proposta de Eisner adiante, questionando suas noções de


sujeito, significado e representação

A contribuição de Eisner e Barone para a PBA é bastante valiosa e


cabe a nós, pesquisadores interessados no tema, levar adiante a
caminhada por eles proposta. Parece-nos, porém, que a maneira como
os autores concebem a arte e o que esta pode fazer, se ancora, em
muitos aspectos, na perspectiva moderna. Eles a concebem como uma
forma de representação, perspectiva que, a meu ver, deixa escapar
grande parte da força da PBA, que é seu potencial desviante de criação
de novos mundos.

Penso que talvez Eisner e Barone não tenham atribuído maior


importância à discussão que os filósofos europeus desenvolveram,
desde os anos 1960, sobre as questões do sujeito e da representação,
pois tratam a questão do “sujeito expressivo” a partir da noção moderna
de sujeito, à maneira kantiana, como sujeito transcendental.

As PBAs, para Eisner e Barone, como vimos, são formas de


investigação desenhadas para explorar o potencial epistemológico de
uma forma de representação. “Os seres humanos inventaram uma
variedade de formas de representação para descrever e compreender o
mundo de tantos modos quantos ele pode ser representado”.188 Os
artistas exploram o potencial expressivo dos materiais e dos meios para
dizer o que de outro modo não poderia ser dito. É preciso encontrar a
forma de representação que melhor oportuniza a pesquisa almejada.
“Cada forma de representação impõe seus próprios limites e provê seus
próprios recursos.”189

Eisner e Barone definem a PBA como uma “modalidade suave de


pesquisa qualitativa”190, enfatizando muitas vezes a forma em
detrimento do processo. Considero que aqui talvez estejam atribuindo
exagerada importância à distinção entre a “natureza não discursiva e
emocional da arte” e a lógica das proposições discursivas,

188 BARONE; EISNER, 2012, p. 164


189 BARONE; EISNER, 2012, p. 166
190 EISNER; BARONE, 2012, p.19
117

desconsiderando assim a possibilidade da arte poder ser considerada um


discurso. Acredito que, ao operar as diversas linguagens visuais,
musicais, cênicas, a arte efetiva também um discurso do pensamento e,
desta maneira “garante a abertura para a exterioridade e para a
intimidade do que não pode ainda, ou não pôde nunca, ser nomeado.”191

Jagodzinski e Wallin192 ressaltam a necessidade de


aprimoramento de determinadas concepções sustentadas por Eisner e
Barone acerca da Pesquisa Baseada em Arte. Defendem a importância
de se abandonar posturas que se mantêm atreladas às representações
epistemológicas modernas e a concepções de sujeito fundadas sobre
uma transcendência e uma interioridade já sempre separada do mundo
tido como externo. Comentam que as propostas de Eisner são
importantes e pertinentes, mas que suas bases teórico-filosóficas não
seriam desviantes e radicais o suficiente para levá-las até onde elas se
propõem ir. Sublinham que, para alcançar os objetivos traçados por
Eisner e seus alunos, para se levar adiante, de uma maneira mais efetiva,
a potência criadora que esteia esta modalidade investigativa, é preciso
desestabilizar nossas percepções e suposições habituais, em um
trabalho profundo de questionamento de nós mesmos e das “verdades”
estabelecidas, a exemplo das micropolíticas de devir, cantadas por
Deleuze.

Para Jagodzinski e Wallin, é justamente esta postura - abrir-se


para o que ainda não é, para o que ainda não sabemos, para o que ainda
não somos, potencializando a criação poética do um porvir - que
constitui a força da PBA. Caso contrário, advertem, ao invés de “libertar
a vida lá onde ela é prisioneira”, terminaremos por “repetir uma ação e
uma subjetividade que servem aos objetivos dos atuais neo-liberalismo
e capitalismo.”193

Se Eisner e Barone defendem a potencialidade epistemológica da


PBA, baseada em uma estética representacional, buscando uma

191 LUZ, In BASBAUN, 2007, p. 7


192 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013
193 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p.3. “of repeating a subjectivity that serves current

neo-liberalism and capitalist ends.”


118

legitimação acadêmica, Jagodzinski e Wallin194 apostam em sua potência


ontológica, sua potencialidade de criar, através do signo artístico, outras
formas de existir, outras humanidades, outros mundos.

1.2.2. A/r/tografia
Inspirados nas concepções de Eisner e Barone, um grupo de
pesquisadores canadenses, criaram a partir da década de 2000 outras
conceituações e práticas de investigação artística, que denominaram
A/r/tography (A/r/tografia), talvez a modalidade de PBA mais conhecida
no Brasil. São professores/pesquisadores da Faculdade de Educação da
University of British Columbia, em Vancouver, no Canadá, entre outros:
Stephany Sppringay, Rita Irwin, Carl Leggo, A. Sinner e Peter Gouzouasis.

O grupo A/r/tografia define sua prática como uma forma de


investigação que desafia as formas conservadoras de pesquisa,
trabalhando com diversas linguagens, como a textual, a imagética e a
performática, criando formas híbridas, habitando intervalos, entre-
lugares, papéis transitórios, questionando cada experiência e
instaurando aberturas e descontinuidades.195 A A/r/tografia situa a
produção artística no centro do processo de investigação, instigando os
pesquisadores a repensar suas múltiplas subjetividades: A artist (artista),
R researcher (pesquisador) e T teacher (professor), não como
identidades isoladas e sim como entidades que “se multiplicam, se
entretecem e se complicam.”196

Rita Irwin e Alex de Cosson publicaram em 2004 o livro


A/r/tography: Rendering Self Through Arts-based Living Inquiry
(A/r/tografia: Interpretando a si mesmo através da investigação viva
baseada em artes)197, no qual delineiam uma metodologia de pesquisa a
partir da subjetividade híbrida do artista, do pesquisador e do professor.
Eles definem a A/r/tografia como uma forma de representação analítica

194 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p.3


195 SPRINGGAY, 2008
196 SPRINGGAY, 2008, p. 37
197 DE COSSON; IRWIN, 2004
119

e criativa que privilegia tanto o texto quanto a imagem e explicam os


papéis do artista, do pesquisador e do professor da seguinte maneira:

A arte é a reorganização visual da experiência que torna complexo o


aparentemente simples ou simplifica o aparentemente complexo. A
pesquisa é o realce do significado revelado através de interpretações
contínuas de relações complexas que são continuamente criadas,
recriadas e transformadas. Ensinar é desempenhar saberes
construindo relacionamentos significativos com os alunos.198

Estes autores propõem formas híbridas de investigação, onde o


artista/professor/pesquisador indaga o mundo através de formas
artísticas, onde imagens e texto se interconectam, se entremeiam
criando novos e relevantes significados, onde estas funções são
questionadas “em uma troca crítica que é reflexiva, responsiva e
relacional, que está continuamente em estado de reconstrução e se
tornando completamente outra coisa.”199

A A/r/tografia é outras vezes descrita como sendo uma


investigação autobiográfica ou autoetnográfica200, um processo onde
intelecto, sentimento, intencionalidade e autodeterminação se
atravessam, propiciando uma reaprendizagem da compreensão do
mundo e das experiências e memórias do pesquisador, num espaço
hibrido, de relações metáforas e metonímias. Springgay, Irwin e Kind
ressaltam, no artigo A/r/tography as living inquiry throught art and text
(A/r/tografia como uma investigação viva, através da arte e do texto),
que entendem a A/r/tografia

198 DE COSSON; IRWIN, 2004, p. 31. “Art is the visual reorganization of experience
that renders complex the apparently simple or simplifies the apparently complex.
Research is the enhancement of meaning revealed through ongoing interpretations
of complex relationships that are continually created, recreated and transformed.
Teaching is performative knowing in meaningful relationships with learners.”
199 IRWIN; SPRINGGAY, 2008, p. 31. “In a critical exchange that is reflective,

responsive,and relational, which is continously in state of reconstruction and


becoming something else altogether.”

200 DE COSSON; IRWIN; 2004


120

como uma perspectiva de interpretação de si mesmo, através de uma


pesquisa viva entre arte e texto. É uma pesquisa que confere mais do
que um simples significado a nossa experiência; seus fundamentos estão
nas perdas, mudanças e rupturas que permitem emergir novos
significados.201

Figura 27 – Devir-eu. Kethryn Coleman, 2017.

A A/r/tografia é também compreendida por seus criadores como


uma “pesquisa viva”, como “investigações impregnadas de práticas
[que] não são apenas agregadas à vida de alguém, mas são a própria vida
deste, de modo que quem se é torna-se completamente emaranhado

201 IRWIN; SPRINGGAY, KIND. 2005, p. 899


121

naquilo que se sabe e faz.”202 Neste sentido, o sujeito e a forma de


investigação estão sempre em estado de tornar-se.203

Belidson Dias, organizador, em parceria com Rita Irwin, do Livro


Pesquisa Educacional Baseada em Arte: A/r/tografia, publicado no Brasil
em 2013, comenta que “o referencial teórico da A/r/tografia está na
Fenomenologia, no Estruturalismo e no Pós-estruturalismo”, e que suas
incursões se assentam no conceito de “visualidade, que se refere a como
nós olhamos o mundo e que é particularmente relevante para a
construção da representação do conhecimento.”204

Estas modalidades de pesquisa questionam as relações de poder


na construção do conhecimento acadêmico, mas, ao fazerem isto, não
estão propondo um vale-tudo, como nos diz Belidson Dias:

Mesmo utilizando a PBA, os alunos terão que desenvolver trabalhos


monográficos, dissertativos, ou tese, como requisitos finais de um curso
acadêmico com, geralmente, uma tarefa suplementar que é o trabalho
de arte, visualidade, música, etc., produzido durante o processo.205

Rita Irwin206 enfatiza a importância de os a/r/tógrafos estarem


familiarizados com o trabalho de artistas e educadores contemporâneos
e ponderarem como estas práticas podem influenciar suas percepções,
os meios de realizar investigações e seus modos de produzir
conhecimento. Esta autora afirma que pesquisa a/r/tográfica tem uma
natureza rizomática, por estar constantemente fazendo conexões:

Permitir a alguém obter mais informações ao longo do caminho ao desviar


a rota original e explorar outros caminhos, pode parecer uma viagem sem
foco, entretanto, ironicamente, pode ser considerada até mais focada ao
compreender as particularidades do lugar. Escolher conexões nos
proporciona uma compreensão estendida da rota original.207

202 DIAS; IRWIN, 2013


203 SPRINGGAY, 2008
204 DIAS; IRWIN, 2013, p. 22 e 24
205 DIAS, In DIAS; IRWIN, 2013, p. 25
206 DIAS; IRWIN, 2013
207 DIAS; IRWIN, 2013, p. 30
122

Figura 28 – Devir-mundo. Katheryn Coleman. 2017

Irwin assume também que para a A/r/tografia os conceitos são


locais flexíveis e intersubjetivos, e as práticas têm um caráter coletivo, a
partir da perspectiva de Estética Relacional de Bourriaud (2009),
incentivando maneiras de “devir” no mundo, como: contiguidades,
aberturas, reverberações e excessos.208

Irwin (2013), em uma fase posterior, adentra, a partir de Jean-Luc


Nancy (2000), os estudos da singularidade e da pluralidade. Nancy

208 DIAS; IRWIN, 2013, p. 33


123

sugere que ser é sempre ser com o outro, em uma perspectiva onde o
eu e o outro não ocupam posições opostas, mas diferentes: o eu não
existe sem o outro, nem é redutível a ele, mantendo-se assim a
diferença. Irwin sublinha a importância da comunidade nas práticas
a/r/tográficas, pois “nenhum pesquisador, artista ou educador, existe
somente em si mesmo nem somente dentro de uma comunidade. (...).
As comunidades a/r/tográficas podem ser definidas pelo próprio ato de
aproximação, pela condição de uma relação, de pertença.”209 Para
Nancy, a comunidade “é uma tarefa infinita ao pé da mortalidade e da
impermanência.”210 Rita Irwin propõe quatro modalidades de
compromissos comunitários a serem assumidos pelos a/r/tógrafos ao
realizarem uma investigação: o compromisso com uma maneira de
ser/estar no mundo; o compromisso com a investigação, no sentindo de
manter a curiosidade, de buscar questões e entendimentos relevantes,
de se engajar no desenvolvimento das próprias aptidões enquanto
professores e artistas; o compromisso com a negociação do
engajamento pessoal em uma comunidade de pertença; e o
compromisso com a criação de práticas que problematizem e reflitam a
diferença. 211

Questionando o movimento A/r/tografia

Jagodzinski e Wallin tecem importantes críticas, reflexões, e


mesmo “traições”, em torno das atuações dos integrantes do
A/r/tography, que são seus amigos e companheiros canadenses.
Questionam a maneira como conceito de rizoma é por vezes empregado
sem atualizar a descentralização que o caracteriza, privando-o da
“radicalidade que só emerge quando se leva em conta a obra de Deleuze
em sua totalidade.”212 Interrogam o quanto os a/r/tógrafos realizam
efetivamente o conceito de “abertura” tão central em suas proposições
teóricas, uma vez que valorizam, em suas práticas, imagens

209 IRWIN, 2013, p. 157


210 NANCY, apud IRWIN, 2013, p. 160
211 IRWIN, In IRWIN; DIAS, 2013, p. 160-165
212 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 5
124

representacionais da “vontade própria”, da “autodeterminação”, da


“autodefinição”, o que implica algum centramento do sujeito na esfera
mais fechada de uma vontade egóica.

Talvez “abertura”, suponho, se aproxime mais daquilo que


Barthes (2004) chamou de “A Morte do Autor”, quando nos lembra que
“a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é este
neutro, este oblíquo pelo qual foge nosso sujeito, o branco e preto em
que vem se perder toda identidade.”213 Penso que a abertura seja de
fato uma condição necessária à pesquisa, à curiosidade, à construção do
conhecimento, quando, como sugere Foucault, a abertura:

é a curiosidade, a única espécie de curiosidade que, em todo caso,


merece ser praticada com certa obstinação: não a que procura assimilar
isso que convenha conhecer, mas aquela que se permite se desprender
de si mesmo. Quanto valeria a tenacidade por saber se ela só
assegurasse a aquisição de conhecimentos e não, de certo modo e até
onde isso é possível, o extravio de quem conhece? Há momentos na vida
em que a questão de saber se é possível pensar outramente de como se
pensa e perceber outramente de como se vê é indispensável para
continuar considerando e reflexionando. 214

James Haywood Rolling Jr., em seu livro Arts-Based Research


(2013), comenta que percebe uma limitação na abordagem dos
a/r/tógrafos, quando, eles, apesar de proporem uma metodologia
singular e pluralista, realizam investigações que se focam
insistentemente sobre as práticas do grupo, mantendo-se num circuito
bastante fechado, “encerrados e agarrados a si mesmos, como que
impermeáveis às outras experiências e outras metodologias de Pesquisa
Baseada em Artes.”215 De fato, embora haja a concepção de identidades
múltiplas no projeto a/r/tográfico, muitas pesquisas têm um caráter
biográfico, concebendo o sujeito como epicentro da ação artística.

213 BARTHES, 2004, p. 57


214 FOUCAULT, 1984, p. 14
215 ROLLING Jr, 2013, p. 19
125

Jagodzinski e Wallin advertem sobre a necessidade de


problematizar as noções humanistas do sujeito que reterritorializam o
mundo dentro da representação de perspectivas subjetivas do
pesquisador, mantendo o sujeito enquanto princípio unificador.216 É o
que veremos em seguida.

216 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 88-89


126

1.2.3. A potência do encontro e a “ética da traição” em


Jagodzinski e Wallin

Figura 29 – Devir-potência. Tomie Ohtake. Tapeçaria em quatro cores. 1990.

Abrir-se ao possível é acolher, tal como acontece quando nos


apaixonamos por alguém, a emergência de uma
descontinuidade na nossa experiência; e construir, a partir da
nova sensibilidade que o encontro com o outro proporciona,
uma nova relação, um novo agenciamento. Apaixonamo-nos
menos por uma pessoa do que pelo mundo de possíveis que
ela carrega; relacionamo-nos no outro, menos com sua
existência atualizada que com as possibilidades que o
encontro com o outro faz surgir.
Maurizio Lazzarato
127

O livro Arts-Based Research, a critique and a proposal217 é uma


obra de grande densidade filosófica. Os autores tecem críticas acerca de
algumas das referências que sustentam a Pesquisa Baseada em Arte, e
também trazem propostas e provocações visando a contribuir para uma
ampliação das potencialidades das PBAs.

Jagodzinski e Wallin se perguntam: qual é afinal a relação entre


arte e pesquisa? Elaboram, neste sentido, um cruzamento da PBA com
as perspectivas filosóficas de Deleuze, para quem um compromisso ético
e político requer uma concepção da arte menos como objeto e mais
como acontecimento.218 Jagodzinski e Wallin propõem um
entendimento da arte como uma atuação “performativa/maquínica”
criadora de outras realidades, como um “ato transversal e
transformador, que pode escapar à lógica produtivista do poder
moderno que o ‘capitalismo designer’ coloca em jogo.”219 Seu foco
central não é o que a arte é, mas o que ela pode fazer: desviar o caminhar
do pensamento da mesmice representacional, do senso comum, do
consumismo e dos apelos midiáticos hegemônicos do neoliberalismo.

Estes professores canadenses propõem a Pesquisa Baseada em


Arte como um acontecimento de imanência ontológica, detonador de
um processo de “devir-pesquisa” que, através de práticas artísticas que
possibilitem ver e pensar de maneira singular, resistam à normalização
e à subordinação aos modos instituídos de se endereçar ao mundo. 220
Formas de PBA que não mais aspirem a refletir ou representar o mundo,
mas que, pelo contrário, subvertam os padrões estéticos ortodoxos
estabelecidos, compondo táticas de “dessedimentação” dos hábitos de
reconhecimento, que Deleuze e Guattari denominam “território”.
Jagodzinski e Wallin apostam na força desviante dos simulacros, nas
“potências do falso,”221 imanentes ao processo artístico, de criarem

217 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013


218 DELEUZE, 1998
219 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 3 “A transversal transformative act that escapes

productionist logic of modern power that designer capitalism puts into play.”
Capitalismo designer é um termo cunhado por Jagodzinski, referindo-se à sociedade
de controle, como foi descrita por Deleuze e Guattari em Mil Platôs (1995)
220 GARION, Charles, in Jagodzinski; Wallin, 2013, p. vii
221 DELEUZE, 2013
128

linhas de fuga, escapando aos discursos hegemônicos e à lógica


produtivista do poder moderno, e propiciando novas experiências e
novas formas da narração:

A narração deixa de ser verídica, de aspirar à verdade, para se fazer


essencialmente falsificante. Não é de modo algum ‘cada um com a sua
verdade’, uma viabilidade que se referia ao conteúdo. É uma potência do
falso que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a
simultaneidade de presentes incompossíveis, ou a coexistência de
passados não necessariamente verdadeiros. (...) todo modelo de
verdade desmorona, em favor de uma nova narração.222

Afinal, assim como nós e como a vida, a verdade também está


sujeita ao devir. Os autores de Arts- Based Research: a critique and a
proposal sugerem que é na medida em que quebrarmos os hábitos
perceptivos do senso comum, que poderemos trabalhar com a liberdade
e a força da arte. A importância da arte deixa de residir em sua forma e
passa a ser sua força. E sua força é a de criar a ética de um vir-a-ser que
engendre um “acreditar na possibilidade do mundo”, que desatrele,
fecunde e liberte as potencialidades da vida.223

Jagodzinski e Wallin propõem uma abordagem de Pesquisa


Baseada em Arte muitíssimo semelhante à que eu desejava elaborar
antes de os encontrar. Como uma prática de liberdade que afirma o
acreditar no mundo, na potência da vida, na possibilidade de criação de
“outros mundos”. Um encontro que me desperta um entusiasmo de
caráter foucaultiano:

Meu papel – mas este é um termo muito pomposo – é o de mostrar às


pessoas que elas são muito mais livres do que pensam ser; que elas
têm por verdadeiros, por evidentes, alguns temas que foram
fabricados num momento particular da história, e que esta suposta
evidência pode ser criticada e destruída.224

222 DELEUZE, 2013, p. 160-161


223 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 8
224 FOUCAULT, 2003, p. 77
129

Caminhando em uma direção que me parece convergente à


aspiração de Foucault citada acima, Jagodzinski e Wallin, entendem,
como já mencionamos, a PBA como dispositivo potencializador de uma
“ética da traição”225 – a criação de atuações desviantes e perturbadoras
que resistam, problematizem, desestabilizem e desloquem a
mentalidade normatizadora dos pressupostos culturais hegemônicos
contemporâneos. Ou seja, estes autores sugerem que, para conectar a
vida à sua potencialidade de liberdade, possibilitando um “povo-por-
vir”, ideia já vislumbrada por Nietzsche (2011), as imagens dogmáticas
do senso comum precisam ser “traídas”. Esta “traição” supõe
sacudirmos as convenções do pensamento, criarmos brechas,
estranhamentos, não coincidirmos perfeitamente com nosso tempo.

Um entusiasmo que entra agora em consonância com o


pensamento de Giorgio Agamben,226 quando este nos lembra que a
possibilidade de sermos contemporâneos, de estabelecer uma singular
relação com nosso próprio tempo, requer que, ora dele nos
aproximemos, ora tomemos distância, através de uma dissociação e de
um anacronismo. “Aqueles que coincidem muito plenamente com a
época, não conseguem vê-la.” E muito menos transformá-la.... Para o
filósofo italiano, “contemporâneo é quem não se deixa cegar pelas luzes
do século e consegue entrever a parte da sombra, uma experiência
anônima, impenetrável, mas que nos concerne, nos interpela, nos
desnuda.”227 A perspectiva artística traz consigo, muitas vezes, uma
força desviante, afastando-se com tal intensidade do projeto do senso
comum, que possibilita uma reinvenção da história. Nisto reside sua
potência ética.

225 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 3


226 AGAMBEN, 2011, p. 73
227 AGAMBEN, 2009, p. 64
130

Figura 30 – Devir- crença. Adriana Varejão. Andar com fé. Fotografia. 2002.
131

Jagodzinski e Wallin comentam que as perspectivas de grande


parte dos pesquisadores que trabalham com a PBA,
predominantemente fenomenológicas, pois partem da intenção e da
vontade pessoal do artista, não seriam radicais o suficiente para fazer
face à condição pós-humana em que nos encontramos. Jagodzinski e
Wallin propõem processos de subjetivação que abarquem o inumano e
o inconsciente. Propõem uma “PBA dadaísta”, que engendre uma
subjetividade “Dada-sein” (uma brincadeira com o conceito
heideggeriano “Dasein” e com a relação que se estabelece entre arte e
o desvelamento da verdade, alethéa).

Uma PBA dadaísta! Eu diria: uma PBA


parangolé!!!!!!!!!!!

A maneira como Jagodzinski e Wallin228 concebem a Pesquisa


Baseada nas Artes é eminentemente política. Eles analisam algumas das
maneiras como entendem que a PBA está sendo capturada pelos
interesses capitalistas e afirmam, como já mencionamos, a necessidade
de pensá-la e constituí-la, como uma prática desestabilizadora do senso
comum e dos discursos hegemônicos. Para eles, não é de se admirar que
a PBA e a Cultura Visual tenham tido um aumento de popularidade na
última década, já que vivemos atualmente em uma “cultura da imagem”
e na imagem também se sustenta todo o discurso padronizante do
consumo, tendo nosso olhar sido significativamente territorializado pela
estética da indústria publicitária.

228 JAGODZINSKI; WALLIN, p. 19


132

Figura 31 – Devir- o mesmo. René Magritte. O mês de vindima. 1959.

A Ética da Traição

Jagodzinski e Wallin nos convidam a criar formas de pesquisa que


trabalhem um “pensamento do fora” 229 - algo irreconhecível que abala,
viola e trai as imagens do pensamento, nos forçando a pensar. Para isso,
sugerem, podemos nos inspirar no estranhamento articulado pelos
artistas contemporâneos.

Acredito que se podemos aprender e pesquisar com a arte atual


é porque ela nos põe diante de um impasse, diante do “absolutamente

229 BLANCHOT, 2010; FOUCAULT, 2015. No capítulo 2, estudaremos mais


profundamente a experiência do fora.
133

outro”, uma aprendizagem pela “não-aprendizagem” se quisermos


comparar com tudo o que sabemos do que seja aprender. “Apreender,
no senso comum, é segurar, agarrar, mas aqui, é justamente ver
escorregar das mãos todas as possibilidades de agarrar. Estar diante do
aberto. Um desafio.”230

Estes autores criam quatro aforismos para se pensar a ética da


traição, que funcionam como uma “máquina-abstrata” que se desdobra
ao longo de seu livro.

Aforismo 1 – “A traição não é a destruição da verdade, mas a condição


pela qual a necessidade de verdade pode ser pensada de forma
nova.”231

Jagodzinski e Wallin enfatizam não apenas o problema de como o


visual é colocado em relação com os sistemas acadêmicos de
pensamento, mas também, e principalmente, a importância da criação
de signos que desafiem as “imagens do pensamento”232. Em termos
deleuzianos, a “imagem do pensamento” se refere a uma forma
dogmática de pensamento, a uma forma particular de territorialização
que efetivamente faz as pessoas pararem de pensar. A arte tem, para
Deleuze, uma “pressão secreta” que sacode o pensamento:

O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro;


mas é precisamente a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de
uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação
verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio
pensamento. Ora, esta gênese implica alguma coisa que violenta o
pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades
apenas abstratas. (...). Os signos da arte nos forçam a pensar, (...)
mobilizam, coagem uma faculdade: seja inteligência, memória ou

230 KONESKI, 2009, p. 76


231 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 6 “Betray is not the destruction of truth, but the
condition whereupon the necessity of truth might be thought anew.”
232 DELEUZE, 2006; DELEUZE, 2010
134

imaginação. (...) O signo sensível nos violenta (...) impulsiona o


pensamento, lhe transmite a pressão da sensibilidade (...).233

Figura 32- Devir-incomum. Antony Gormley, Lost Horizon. 2010

233 DELEUZE, 2010, p. 91-94


135

Uma abordagem do signo diferente da abordagem clássica: não


como um guardador de significado, “um guardador do lugar de um
proprietário momentaneamente ausente,”234 mas como algo que não
representa nada, nem ninguém. O signo é lançado pelo outro - aquilo
ainda não pensado- é sempre um signo vindo do fora.

Aforismo 2- “A Traição é inimiga do senso comum – uma vez que o que


é mais comum marca uma vontade de representação. A traição
desatrela da forma comum as forças através das quais o mundo pode
ser pensado com diferença.”235

Jagodzinski e Wallin assumem que o signo precisa ser definido em


oposição ao senso comum e à acomodação do pensamento,
desestabilizando o modelo de recognição e suas correspondências
estáveis que anestesiam a criação. Estes autores ressaltam a
necessidade de que uma pesquisa nos force a pensar, a

Assaltar uma espécie de letargia através da qual os signos estão sempre


já distribuídos em um campo semiótico. De qualquer forma, essa
fidelidade representativa não encontra ainda o pensamento, nem ao
menos uma educação (educere) formal capaz de ‘conduzir para fora’, ou
de criar um encontro pedagógico com um pensamento do fora, que
possa nos forçar a pensar. Esta talvez seja a contribuição mais singular
da arte para a educação, na medida em que demanda do ensinar e do
aprender algo radicalmente diferente do movimento voluntário da
memória (reflexão), da aplicação de matrizes representacionais
(transcendência) ou da implantação de leis conhecidas antes daquilo a

234SILVA, 2002, p. 50
235JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 10. “Betrayal is an enemy to common sense – as
what is most common marks a will to representation. Betrayal is hence what
unleaches from common form thoses forces through which the word might be
thought with difference”.
136

que se aplicam (moralidade). (...) Este é o começo de uma ética da


traição236

Uma vez que as imagens e signos do senso comum se tornaram,


na atualidade, domínio do marketing, e estão disseminados tanto nos
modelos cognitivos de grande parte da população, quanto nas práticas
educacionais, é imprescindível o questionamento da “fidelidade
representacional” que eles operam. A globalização neoliberal demanda
uma ordenação do currículo educacional que implemente a formação de
consumidores obedientes e trabalhadores “flexíveis e criativos”.

Para Jagodzinski e Wallin, as estratégias capitalistas de marketing


teriam capturado também nossos protestos e clamores por “diferença”,
adotando uma abordagem de “colonização do olhar”
superindividualizada, que apela para um narcisismo extremo, onde as
subjetivações massificadas são vistas como “apenas modos de “fazer
negócio” e de sobreviver em nosso tempo inundado pelos valores
econômicos. “O exibicionismo e o narcisismo de alguns nutrem o
voyeurismo de muitos, que satisfazem seus desejos virtuais em telas
virtuais, de variadas formas. ”237

Da mesma forma, segundo Jagodzinki e Wallin, a criatividade


estaria sendo agora teorizada como uma mistura de arte, ciência e
engenhosidade, determinando outras racionalidades para a arte-
educação, atreladas ao empreendedorismo e à formação de
trabalhadores flexíveis e criativos para as indústrias. São estas formas,
que segundo estes autores, precisam ser “traídas”.

236JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 5. “To assault a kind of lethargy by which signs


are allways-already distributed within a semiotic field. However, such
representational fidelity is not yet to encounter thinking, last a form of education
[educere] capable of ‘leading out’, or otherwise, of creating a pedagogical encounter
with an outside thought that might once again force us to think. This is perhaps the
most unique contribution of art to education insofar as it demands of teaching and
learning something radically other than the voluntary movement of memory
(reflection), the application of representational matrices (transcendence), or the
deployment of laws known prior to that which they apply (morality). (...) This is the
beginning of an ethics of betrayal.”
237 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 21
137

Figura 33 – Devir-consumo. Jenny Holzer, Proteja-me do que quero. Instalação na


Times Square, NY. 1985.

Para que a vida seja reconectada com suas potências de devir, as


imagens dogmáticas de pensamento pressupostas pelo senso comum
precisam ser duplamente atravessadas. O primeiro atravessamento
seria realizado ao se criar estranhamentos, ao se fazer gaguejar as
convenções do pensamento; e o segundo, ao fazer com que a arte
assuma sua força não representacional, sua força monumental, como
afirmam Deleuze e Guattari:

A obra de arte é um monumento, mas o monumento não é aqui o que


comemora o passado, é um bloco de sensações presentes que só devem
a si mesmas sua própria conservação, e dão ao acontecimento o
138

composto que o celebra. O ato do monumento não é memória, mas a


fabulação.238

A Pesquisa Baseada em Arte pode se tornar um espaço de


fabulação de um povo ainda por vir. A arte mobiliza um cintilar irracional
do tempo, estabelecendo relações entre o caos invisível e infinito e os
ritmos visíveis, desatando as amarras das sensações e do que não foi
ainda pensado e vivido. A arte opera assim paradoxos, se afastando da
doxa, dos clichês, instaurando novas forças para se acreditar na
possibilidade de devir do mundo.

Aforismo 3- “A traição comporta uma qualidade maquínica que expõe


a organização não essencial das relações entre objetos. Essa qualidade
de traição é marcada tanto pelo desvio quanto pela afirmação,
instalando um plano sobre o qual a criação de objetos traidores pode
ser forjada.”239

Jagodzinski e Wallin anunciam o “despertar dos profetas da


traição”. Afirmam a necessidade de a pesquisa baseada em arte
mobilizar abordagens diferentes do conceitualismo da década de 1980,
e do “semiotismo” dos anos 1990. A PBA poderia então produzir uma
estética política, mais próxima das tendências contemporâneas da arte,
propiciando novas constelações de referências e atuações. Uma arte
“maquínica” que atenda à questão: o que pode ser criado para que se
possa construir um novo tipo de realidade? Uma arte que crie
singularidades não mais determinadas pelos regimes semióticos
majoritários, que engendre uma guinada radical, uma virada-de-mesa,
atualizando microrevoluções e novas configurações de encontros
coletivos.

238DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 218


239JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 13. “Betrayal inheres a machinic quality that
exposes the non-essencial organization of object-relations. This quality of betrayal is
marked by both deviation and affirmation, instantiating a plane upon which the
creation of traitor objects might be forged”.
139

O desafio seria o de criar formas de vida ainda não capturadas


pelas formações identitárias já existentes. “Talvez o maior poder de uma
PBA política seja a criação de objetos traidores através dos quais o
pensamento possa vir a confiar no futuro. A força artística do objeto
traidor poderia mudar tudo.”240

Aforismo 4- “Uma ética da traição é uma decorrência da simbiose, na


medida em que sua ação desenhe o que é com qualidades imprevistas
de recombinação. Uma vez que o que é, já é o produto das relações
maquinadas, o potencial da traição é sempre imanente ao que pode
ser chamado de fundamental.”241

O que está sendo denominado como ética da traição pressupõe


uma relação parasitária. O ato de trair, explicam Jagodzinski e Wallin,
não nasce do nada, mas tira sua energia de um ser particular, ou seja,
criamos desvios a partir da transformação de objetos já existentes, a
partir de uma relação de simbiose que estabelecemos com eles.
Podemos, como o parasita, roubar as energias do hospedeiro para
desestruturar o isolamento de sua identidade, transformando suas
energias em algo novo. Ou podemos, simplesmente usar suas forças
para criar formas mais libertárias, poéticas, transgressoras. Não há
garantia de que a simbiose seja positiva, nos alertam estes autores,
qualquer trabalho artístico requer uma atenção ética.

Ao assaltar a certeza das identidades, a relação simbiótica pode


trair duas ferramentas que estão se tornando populares na Pesquisa
Baseada em Artes, e que, segundo Jagodzinski e Wallin, a estão
despotencializando. A primeira seria a noção de autopoiésis entendida

240JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 13. “Perhaps the highest power of a political ABR
is the creation of traitor objects through which thought might trust the future. The
art force of the traitor object might change everything.”
241 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 16. “An ethics of betrayal is a corollary of

simbiosis insofar as its action draws what is into unasticipated qualities of


rearrangement. Since what is is already the product of machined relations, the
potential of betrayal is always imanente to what might be called fundamental.”
140

como uma direção produzida por um organismo fechado, autônomo e


incontaminado. Uma vez que os pesquisadores baseados em arte estão
se dedicando a investigações autobiográficas, a simbiose pode infiltrar
perspectivas capazes de pensar uma despersonalização radical,
propondo movimentos interpoiéticos. A segunda possível traição
simbiótica seria a da noção de hibridismo. Para estes autores o conceito
de híbrido supõe uma perspectiva conservadora, a ideia de elementos
originários existentes a priori a qualquer miscigenação, uma noção que
se mantém enredada no conceito moderno, essencialista e humanista
de origem. Contra este conceito, sugerem que qualquer coisa já é um
atravessamento de relações simbióticas. O que chamamos de ‘humano’
já é composto por uma multiplicidade de fatores, uma formação sempre
já híbrida, conectada e atravessada por impensadas modalidades de
inteligência.

Ao trazer a relação simbiótica para a pesquisa, várias táticas


transformadoras podem ser postas em movimento, por exemplo: se os
conceitos são compostos, são abertos a modificações; outras
abordagens do conceito podem produzir outras maneiras de se pensar;
podem ser identificadas novas possibilidades de conexão, novos
arranjos, novas formas de se constituir, que excedam o que é, criando
um porvir. A intenção de Jagodzinski e Wallin é reorientar a pesquisa
baseada em arte em linhas pós-humanas, como as traçadas por Deleuze
e Guattari. Estes autores almejam redirecionar a pesquisa de uma
sociedade da informação para uma sociedade em-forma-ação (in-form-
action); do ser para o devir; de conhecer o mundo para estar no mundo
como um objeto dentre outros, como uma espécie entre outras.

“A imagem de pensamento contemporânea”

Vivemos numa cultura da imagem, onde a velocidade da


informação se une à velocidade da imagem, instaurando novos
hieróglifos e uma estética do relance, do instante fugidio. Com a estática
do relance, a indústria publicitária captura, “num piscar de olhos” a
atenção do consumidor. O órgão “olho” foi territorializado por esta
indústria. Tudo devém mercadoria na esfera do capitalismo designer. As
141

estratégias de marketing se aliaram às do biopoder,242 capturando a


imaginação e o desejo e atrelando-os ao status conferido pelo consumo.
É o que Jagodzinski e Wallin percebem em movimentos como o
“capitalismo verde” ou “o consumismo verde” que absorveram boa
parte dos discursos e protestos ecológicos, transformando-os em
mercadoria. A hegemonia dominante, segundo Deleuze e Guattari243, é
exercida pela sociedade de controle, onde os movimentos e o espaço
estão de antemão coreografados de maneiras específicas, voltadas para
fins capitalistas.

Figura 34 – Devir-capitalismo. Bruce Nauman, Círculo de mãos, 1996.

Para Jagodzinski e Wallin, a Pesquisa Baseada em Arte é também


um produto deste Zeitgeist (espírito do tempo) da imagem, correndo o
risco de entrar nesta onda de “formatar” a imaginação e o “cérebro
cognitivo” das populações, transformando-as nas massas trabalhadoras

242 FOUCAULT, 1988


243 DELEUZE; GUATTARI, 1995
142

que sustentam o império neoliberal. Cada vez mais as informações são


transmitidas por vídeos. Vivemos uma forma invertida de panóptico, ou
seja, um synóptico, sugerem Jagodzinski e Wallin, onde poucos são vistos
por muitos, que passam a desejar imitá-los. A pornografia é a líder deste
gênero de vídeo, instalando um voyeurismo perverso. A avalanche de
filmes melodramáticos e sobre zumbis e vampiros mesmerizam o
entretenimento espetacular, o que poderia sugerir que estamos
atravessando um tempo pós-emocional, onde as “mídias e as telas
aliviam os sujeitos de suas projeções emocionais.”244

As vídeo-tecnologias criam mensagens ambíguas, instantâneas e


imateriais e oferecem miríades de potenciais conexões, afetando o
espectador, trazendo-lhe alguma satisfação, mas deixando-o, de alguma
forma, sem capacidade de ação. É o que Espinosa245 chamaria de um
mau encontro, aquele que rouba nossa capacidade de ação. É o poder
de um suave totalitarismo, onde as tecnologias oferecem um senso de
anestesiamento e em troca, capturam nossa atenção e nosso desejo. O
capitalismo designer

conhece muito bem os jogos dos afectos... O reino pré-individuado do


inconsciente levanta todos os tipos de problemática para uma pesquisa
baseada em arte que deseje se libertar das iscas do capitalismo. Talvez
ela não consiga. A renovada ênfase no afeto que ocorre nos estudos
culturais levanta mais um fetichismo da mercadoria, o que foi chamado
de "animismo capitalista" em alguns círculos. (...). O capitalismo, neste
sentido, é maquínico, uma monstruosidade alienígena que se sustenta
indefinidamente através de ciclos contínuos de desterritorialização e
reterritorialização. Seu agenciamento animista se manifesta através de
práticas ecofágicas, que abrigam uma pulsão de morte freudiana até o
ponto em que tudo será utilizado, enquanto nossa espécie é liquidada
por seu próprio narcisismo.246

244 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 21


245 Ver adiante, acerca de Espinosa, o capítulo 2, tópico “Pororocas”
246 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 40. It knows full well the game of affect.The pre-

individuated realm of the unconscious raises all sorts of problematics for arts-based
research that wishes to free itself of the capitalist lure. Perhaps it can’t. The renewed
emphasis on affect in cultural studies raises one more commodity fetishism and what
has been termed ‘capitalist animism’ in some circles. (...). Capitalism in this sense is
143

Jagodzinski e Wallin defendem que para evitar que a arte, sua


educação e sua pesquisa, caiam neste padrão alienado de fetiche, é
necessário efetuar uma guinada. É necessário que a arte não seja
direcionada à autoexpressão e não seja entendida como um objeto, mas
como acontecimento. “Eu não acredito em objetos” diz Deleuze.

Figura 35 – Devir-isolado. Milan Knížák, Stone Ceremony, 1971.

machinic, an alien monstrosity that sustains itself indefinitly through continous cycles
of deterritorialization and reterritorialization. Its animist agency is manifested
through ecophagic practices, wich harbor a freudian death drive to the point where
everything will be used up, as our species is liquidated by its own narcissism.
144

Na pesquisa com a arte, acredito, tanto a subjetividade como o


objeto são formados no devir do acontecimento, um encontro onde o
aprender enfatiza mais o fazer do que o conhecer, um aprender que se
faz no cruzamento de forças e de relações, em um campo. Fluxos, não
objetos, nem sujeitos. A pesquisa artística é mais uma invenção do que
uma descoberta. Algo novo é trazido para o mundo, um novo
agrupamento de desejos é formado.

“Distribuindo o sensível”

Como adverte Deleuze,247 no ambiente contemporâneo existe


demasiada comunicação, grande parte dela situada no paradigma do
projeto hermenêutico de produção de significado, de “vontade-de-
representação” e interpretação, de apresentação de signos
reconhecíveis. É em oposição a este modelo da comunicação
contemporânea que Deleuze propõe uma “vontade-de-arte.”248 Este
conceito deleuziano não se refere à noção de práxis, ou a um desejo
pessoal do artista, mas implica a emergência de algo pré-pessoal e
singular, que requer que nos inventemos como outros.

A percepção é pensada como maquínica e autônoma, formando


sua própria individualidade, inaugurando formas de pensamento,
criando a base de uma teoria impessoal da subjetividade. Um encontro
maquínico implica a atuação conjunta de fluxos heterogêneos, onde, ao
invés de implementarem uma unidade harmônica, compõem um plano
de imanência que mantém a diferença e a multiplicidade.

A sensação está ligada ao acontecimento, que neste contexto


pode ser designado poético. O sentido pode assim ser pensado, nos
sugerem Jagodzinski e Wallin, com uma afirmação, como um dizer “sim”
ao acontecimento, para que um acreditar no mundo possa existir.

247 DELEUZE, 2002


248 DELEUZE, 2013
145

Tal desafio exige que comecemos a mapear as maneiras pelas quais


nossa abordagem de pesquisa possa estar limitando a força da arte. Ou
seja, onde a arte já está refletida no rosto humano, (...) e a força sempre
inumana da arte seja limitada pela organização de uma vontade de
representação. Ao trabalharem sob a questão do significado, os
pesquisadores falham em se direcionar ao que é desumano na arte,
limitando assim a compreensão da arte como uma força de composição
capaz de associar espécies não humanas, (...) ou em fabular uma vida
apta a escapar ao pensamento identitário. (...). É necessário afirmar as
forças desumanas da arte para se pesquisar um mundo que ainda não é
nosso. (...). Este é um dos problemas mais relevantes com o qual se
enfrenta hoje a pesquisa artística, exigindo formas de pensar a arte que
não recaiam sobre a praxis vital do artista. Ao invés disso, para que a
pesquisa em arte permaneça politicamente imantada, deve-se começar
a orientar o seu fazer para a criação de uma “mente de sondagem” capaz
de detectar o evento poético sem reterritorializá-lo em uma imagem de
pensamento dada a priori, capaz de extrair da pro-dução poiética forças
impensadas capazes de pensar um povo ainda por vir, um povo sem
imagem.249

Estes autores propõem que as pesquisas baseadas em arte


assumam a tarefa de desatar a arte, tanto dos hábitos de auto-
referência, quanto das matrizes semióticas pré-estabelecidas, levando-
a à força da fabulação, de modo que o acontecimento poético possa se
expandir no campo social. Através da fabulação e das potências do falso,

249JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 106. “Such a challenge requires that we begin to


survey the ways in which our approach to research might function to limit the force
of art. That is, where art is already reflected in the face of the human (...) and the
always already inhuman force of art is limited by the organization of a will to
representation. Labouring under the question of meaning, arts researchers fail to
address that which is inhuman in art, hence limiting the consideration of art as a force
of composition capable of linking up non-human species, (...)or fabulating a life
capable of escaping identitarian thought. (...)It is necessary to affirm the inhuman
forces of art in order to survey a world that is not yet ours. (...). This is one of the most
germane problems that face the task of arts-based research today, necessitating a
way of thinking art that does not fall back upon the vital praxis of the artist. Rather,
for arts research to remain politically charged, it must begin to orient its task to the
creation of a probe-head capable of detecting the poetic event without
reterritorializing it within an priori image of thought, to extract from poietic pro-
duction those unthought forces capable of thinking a people yet to come, a people
without image.”
146

a pesquisa com a arte pode desenvolver, não modos de pensar anômalos


ou mentirosos, mas formas de experimentação vigorosas que
possibilitem o fluir de novas maneiras de pensar, de existir e de devir.

A arte é bem mais do que um objeto a ser “lido”. Deleuze e


Guattari,250 como vimos, concebem a arte como uma composição de
afectos e perceptos, como uma força pré-subjetiva libertadora, que
transborda, tanto o artista quanto o espectador. Tanto o pesquisador
quanto o leitor. Poderíamos dizer que ela não representa o mundo, mas
devém-mundo, como Van Gogh faz, quando não simplesmente pinta
girassóis, mas devém-girassol, no exemplo dado pelos autores. A arte se
mantém por si, é monumental,251 transbordando o humano, produzindo
devires inumanos e conexões com o que ainda não somos, e é neste
sentido que ela é rizomática.

Provocações

Jagodzinki e Wallin nos desafiam, ainda, com sete provocações,


que sumarizo nas paráfrases abaixo.

Provocação 1: “Pergunte –O que meu rizoma faz?”

Atuar de forma rizomática, nos lembram Jagodzinski e Wallin, não


garante um movimento libertário. Conceitos como rizoma, podem
também ser utilizados para dar suporte e novas tiranias. É preciso que
as novas ferramentas empregadas pelas pesquisas artísticas
desarticulem a reatividade do pensamento representacional, para que
devenham “armas” políticas capazes de prevenir sua recuperação pela
lógica do neoliberalismo.

Provocação 2: “Mude”

Se considerarmos que é a inserção de estéticas relacionais no


pensamento artístico, que diferencia a arte moderna da

250 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 213


251 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 214
147

contemporânea, como nos sugere Alliez,252 faz-se necessário questionar


alguns dos pressupostos acerca desta modalidade estética. Alliez
detecta, atravessados nas propostas transgressoras do projeto
relacional, fragmentos de um Pós-Fordismo do capitalismo
contemporâneo, tais como flexibilidade, mobilidade e criatividade.
“Especificamente onde a estética relacional aspira a composições de
uma mentalidade comum, ela entra em ressonância com a ‘cultura
interativa’ integrada ao capitalismo global.”253

Provocação 3: “Não faça nada”

Perceber as ocorrências diretamente, sem a mediação de um pre-


texto. Esta manobra oportuniza uma linha de voo para libertar a
percepção “da distribuição de sentido mantida na manipulação
capitalista do gosto estético.”254 Como Marcel Duchamp advertia, não é
o artista que escolhe o ready-made, é o ready-made que escolhe o
artista. O ready-made, neste caso, produz um mundo que não é, nem o
mundo do artista, nem o esperado pelo senso comum. Ele é não é uma
coisa, mas um potencial de transformação. Um mundo que não aspira
representar nada, “mas dilata o campo ontológico das potencialidades
de devir. Para reiterar Duchamp, é no intervalo entre atividade e
passividade que podemos encontrar o prospecto de ‘não fazer nada.’”255
Quem cria, insinuam Jagodzinski e Wallin, é a força inumana da arte e
não o artista.

“Não fazer nada” pode ser, acredito, como o escutar, abrir um


espaço de silêncio para que o devir possa acontecer. O encontro com o
acontecimento é como bordejar o vazio, pois pressupõe a quebra dos
hábitos narrativos e interpretativos.

Provocação 4: “Roube e trapaceie”

252 ALLIEZ, apud JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 174


253 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 174
254 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 176
255 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 176
148

“A questão não é de onde você tira as coisas, mas para onde você
as leva.”256 Este tipo de roubo não ressoa, nem com o desejo de
acumulação, nem com uma recombinação de alguma produção cultural.
Este roubo promove novas maneiras de se pensar o que já existe.
Jagodzinski e Wallin trazem o exemplo de Kafka. Kafka não busca a
expressão de um significado, ou a representação de um ser, ou a
imitação da natureza; o que este escritor faz é promulgar um novo modo
de pensar a linguagem. Kafka usa palavras e situações conhecidas,
tornando-as irreconhecíveis, roubando dos valores coletivos da fala
oficial, uma semiótica mutante, que não presume sua reflexão numa
forma de vida existente a priori. A trapaça seria, portanto, no sentido
proposto por Jagodzinski e Wallin, um ludibriar as formas da linguagem
e dos estilos de vida neo-liberais, criando novos estilos artísticos capazes
de mobilizar a vida de um povo por vir. Criar formas de vida que se
evadam das garras do biopoder e de sua manipulação. Assim a força da
arte e da pesquisa baseada em arte, de acordo com estes autores, pode
ser pensada de uma maneira distinta da imagem familiar que a vê como
uma criatividade pessoal e uma expressão individual. Uma força que
parte de uma produção desejante que é sempre já social.

Provocação 5: “Torne-se inumano.”

Partindo da asserção de que a arte cria um mundo, Jagodzinski e


Wallin se perguntam: como se dá a criação de um mundo? Para tal, não
apelam à história, mas à noção deleuziana de devir-animal. Um animal
não simplesmente habita um território, mas cria seu território, um
abrigo relativamente estável para proteger-se do caos. Esta noção de
territorialização é duplamente importante. Primeiro: ela está ligada à
tarefa da arte de criar um mundo. E segundo, ela desmonta a concepção
de que a arte deve exclusivamente desconstruir, perturbar, tumultuar
ou complicar, uma concepção que ignora a importância de se compor
mundos. As práticas de territorialização e desterritorialiação não são
antagônicas, mas ao contrário, constituem conjuntamente o processo
do devir.

256 GODARD, apud JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 177


149

Figura 36 – Devir-inumano. Orlan, Auto-hibridização, 1973.

Pensar a arte enquanto a produção de territórios humanos de


significado, emoção e interpretação é apenas uma das maneiras pelas
quais um mundo pode ser produzido. O devir-animal demanda uma
outra relação com a noção de que a arte cria mundos. Um animal cria
um mundo, emitindo sinais, é verdade, bastante limitados. Ele também
é sensível a sinais. Ele percebe o perigo, tanto de uma
sobredeterminação de um território, quanto de uma overdose de
desterritorialização. Mesmo os nômades montam seus acampamentos.
O devir-animal nos coloca em contato com outras potencialidades, com
a condição de pertencimento ao ambiente natural, com zonas de
intensidade, “corpos sem órgãos” que entram em composição com a
terra, mobilizando diferenças e rompendo nosso centramento no
humano e a antropomorfização do pensamento.
150

Provocação 6: “Perca a face”

Jagodzinski e Wallin desenvolvem ao longo de seu livro, várias


traições e provocações procurando compor o que eles denominam “a
face inumana da arte”. Uma força da arte que vem sendo ofuscada na
PBA “pela crescente concepção do artista como o criativo sacerdote do
significado.”257

Figura 37 – Devir-clandestino. Julião Sarmento, 2013

A noção de face, neste entendimento, está associada aos signos


de classe social, gênero, etnia, etc. O sujeito não é anterior à face, é a
face que produz o sujeito, como uma tela de significação. Quais seriam
as faces propostas pelo neoliberalismo? Podemos observar a função da

257 JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 182


151

facialidade como uma “máquina-abstrata” organizadora e controladora


do corpo e da vida, implementada pelo movimento expansionista,
imperialista e colonizador, instituindo sutilmente, “faces delimitadas”. É
o que nos sugere Baudrillard quando comenta: “Os jovens vão achar
cada vez mais difícil se desvincular, para buscar, não suas identidades,
com vêm constantemente sido demandados a fazer, mas sua distância e
estrangeiridade.”258 Ou seja, a “delimitação da face”, enquanto
modalidade de representação, impõe modelos de aparência e
reconhecimento que constituem as subjetividades. Os autores nos
remetem ao exemplo das facializações de Michael Jackson. Constituem
também as faces da história da arte, da arte e da pesquisa com a arte.

Para mantermos a potência da arte temos que evitar que ela se


reduza à face do significado, da representação e da comunicação.
Segundo Deleuze e Guattari,259 o futuro do pensamento criador
depende do desmantelamento da face, e que seria através da arte este
processo de libertação se iniciaria. Pois a face é política, e assim,
desmantelar as faces é um ato político, envolve um devir-clandestino,
propiciando processos outros de subjetivação e de investigação.

Provocação 7: “Trair bem”

Jagodzinski e Wallin reiteram que as condições de amizade


constituem uma problemática para a PBA, pois, como diz Deleuze,260 a
boa vontade entre amigos, ou seja, a concordância acerca do significado
das coisas como condição da comunicação, não nos força a pensar.
Portanto, os pesquisadores com a arte devem estar atentos a que tipo
de encontro estão propondo, de maneira a não serem capturados pelo
clichê “e por aquilo que todos já sabem”. Efetuar bem esta traição, esta
desterritorialização necessária ao pensar, requer cuidado. Deleuze261
nos adverte que, pôr abaixo uma parede não é uma empreitada fácil, e
se fizermos isto de uma maneira muito brutal, estaremos pondo abaixo
a nós mesmos, também.

258 BAUDRILLARD, 2002, apud JAGODZINSKI; WALLIN, 2013, p. 183


259 DELEUZE; GUATTARI, 1995
260 DELEUZE, 2010
261
DELEUZE, 2006
152

Se acreditamos, portanto, na importância de libertar a PBA da


“camisa de força dos hábitos de pensamento que podem desembocar
num fascismo,” precisamos criar novas “máquinas artísticas” aptas a
produzir novos tempos e espaços. O que Jagodzinski e Wallin entendem
por ética da traição não se refere a transgressões pueris ou a
desobediências histéricas, mas a formas de desmantelar as ordenações,
tanto sócio-políticas como pessoais, de cunho fascista. O que estes
autores propõem, é a criação de um “ato de amor, um ato de fidelidade
última, (...), não a alguma pessoa, mas à força da arte de libertar o
inumano, de inventar novos estilos de vida. Este é o início do que pode
significar viver a vida como uma obra de arte.”

E la nave va....

Nossa nave segue. Deixamos neste ponto, neste porto, nossos


preciosos companheiros canadenses de viagem e as paisagens que que
seus afinados pensamentos nos propiciaram vislumbrar e atravessar.
Fico um pouco triste. Bate em mim certa saudade... Levo comigo, no
calor das minhas mãos, seus afectos, sua fidelidade às forças da arte e
da vida, seu lutar por um acreditar na possibilidade do mundo e seu
compromisso com a composição de trampolins e saltos que propiciem
às futuras gerações, serem um povo porvir.

As águas vão rolar... E la nave va...


153

No corredor: a espera

Creio que o sentido da arte é abrir as mentes e os


corações para entendermos melhor o difícil processo de
viver. Jorge Luis Borges

Figura 38 – Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CCE UFSC, setembro de
2017. Fotografia, Tim Diederichsen.
154

Naquele corredor, naquela tarde, naquele momento,


conversávamos. Era um corredor, um local de passagem, um local de
espera e de encontros. Ali sentávamos com os colegas de estudo e
pesquisa, muitas vezes, bebericando nossos cafés, antes das aulas. Ali
nos tornávamos amigos, trocávamos inquietações, questionamentos,
perplexidades, fruíamos nosso companheirismo e entusiasmo de
estudante. De alguma forma, era ali que nos sustentávamos, uns aos
outros, pela força de nosso abraço, acima do desvão que sentíamos se
abrir abaixo de nossos pés, quando nos defrontávamos com o tanto que
não sabíamos, com este devir sem fim que se apresentava. Ali, nossas
pesquisas se misturavam, nossas perspectivas se cruzavam, novos
horizontes se abriam e nos tornávamos outros. E assim seguíamos
adiante. Um pouco menos sós.

Eu também estava lá.


Foi ali que te encontrei!

CECÍLIA - Olá, Maria, finalmente cheguei...

MARIA - Oi, Cecilia! Tudo bem?

CECÍLIA - ...

MARIA - Olha, é o Pedro que está chegando.

PEDRO - Olá! Final de ano, correria, esse baita calor, salário de professor,
bolso vazio... estou exausto.

MARIA - Oi! Ainda bem que temos um tempinho antes da aula. Essa
minha barriga, não é tão fácil de carregar.

CECÍLIA - Senta aqui, então. Também tive um dia cansativo... Não tenho
nem vontade de falar.

MARIA - É mesmo? Fico bem feliz por podermos conversar.


155

CECÍLIA - Estou tão cansada, a escola, as aulas, a correria, a pesquisa.


Parece que fiquei muda. O que temos para nos contar antes de
voltarmos para “casa a noitinha, extenuados por uma mixórdia de
eventos”?262

PEDRO - Quem sabe um abraço, então... Afinal, não é de hoje que


estamos nesta “mudez”. Nossa incapacidade de fazer e narrar
experiências já havia sido apontada por Benjamin, há quase cem anos....

MARIA - Sim, lembro-me deste trecho do Benjamin falando sobre a


destruição da experiência e a volta dos campos de batalha.263

PEDRO - Nossa batalha hoje é outra... Como fazer para não sermos
contaminados pelos modelos de competição, produtividade e
homogeneização que inundam nossa sociedade? “Nós hoje sabemos
que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo
algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande
cidade é, para este fim, perfeitamente suficiente.”264 O que temos para
narrar?

MARIA - Não quero narrar, mas caminhar pelas paisagens: “a narração


faz correr o tempo, a paisagem o suspende.”265

CECÍLIA - Em suspenso estou eu, perdida em minha pesquisa. Tem hora


que me dá um branco... Tem sido difícil escrever. Que opções temos de
criar outros modos de vida, quando somos expropriados de nossa
experiência, dentro deste estreitamento do capitalismo globalizado?
Estou pensando seriamente em largar o doutorado... Ou a escola. Não
sei se vou aguentar o tranco.

PEDRO - Pois é, que tempo é este? Sem um sentido de ética. Pura


barbárie. O capitalismo devorando tudo, desarticulando nossa

262 AGAMBEN, 2005, p.22


263 BENJAMIM, 2013, p. 128
264 AGAMBEN, 2005, p. 22.
265 MERLEAU-PONTY, 2004, p. 17.
156

solidariedade e também nossas condições – incluindo as biológicas – de


existência.

CECILIA - E agora esta onda neoliberal se fortalecendo. Vivemos em um


tempo absurdo... de perspectivas apocalípticas. Estaremos mesmo perto
do fim da humanidade? Tenho me questionado muito... Como fazer
diferente? Como não reproduzir em minha pesquisa as perspectivas do
ideário capitalista que, tantas vezes nos passam despercebidas, de tão
naturalizadas. Procuro outros olhos. Com que olhos poderei, então,
olhar?

MARIA - “Olhos, vale tê-los, se, de quando em quando, somos cegos e


que vemos não o que olhamos, mas o que nosso olhar semeia no mais
denso escuro. Vida, vale a pena vivê-la se de quando em quando
morremos e o que vivemos não é o que a vida nos dá nem o que dela
colhemos, mas o que semeamos em pleno deserto.”266

CECÍLIA - Não sei bem... o deserto é tão vasto... e eu um camelo,


camelando. Parece, às vezes, que só continuamos vagando pelas ruas,
pelas linhas dos livros, pelos campos de pesquisa, pelas vitrines
espelhadas onde só enxergamos refletidas nossas imagens mesmas,
numa caminhada narcísica, sem sentido.

PEDRO - Eu estou olhando e vendo vocês duas bem aqui na minha frente.

MARIA - “Ver supõe a distância, a decisão separadora, o poder de não


estar em contato e de evitar no contato a confusão. Ver significa que
essa separação se tornou, porém, reencontro.”267

CECÍLIA - Sim. E teu projeto, Pedro, está caminhando?

PEDRO - Normal. Minha pesquisa está bem lenta. Mesmo na química


acontece a tal síndrome da folha em branco.... ou da tela em branco.
Mas normal.

266 MIA COUTO, 2006, p. 317


267 BLANCHOT, 1987, p. 22-26.
157

CECÍLIA - Normal? Isso me faz lembrar Foucault. É o sentido de norma


que regula os corpos e a população, sem permitir qualquer
exterioridade, rotulando como “anormais aqueles cuja diferença em
relação à maioria se convencionou ser excessivo, insuportável. A
diferença passa a ser considerada um desvio, isto é, algo indesejável
porque des-via, tira do rumo, leva à perdição. A norma é saturante, ou
seja, ela não admite exterior, fazendo de todos um caso seu: normal ou
anormal.”268 Uma pesquisa dentro das normas seria normal, ou
conformista?

PEDRO - A pesquisa? Não sei, mas eu sou normal. Ainda não saí
berrando por aí. Ahahaha!

MARIA - Te respondo com Caetano Veloso: “de perto ninguém é


normal”.

Figura 39- Devir-sonho. Tim Diederichsen. Despertar. 2010.

268 VEIGA-NETO, 2011, p. 73-74. (Grifos do autor)


158

CECÍLIA - Por falar nisso... Tenho, as vezes, a sensação de que estamos


meio adormecidos, passando, como que entorpecidos, pelos
acontecimentos... Como podemos pesquisar desta forma? Francamente,
será que realmente despertamos pela manhã?

MARIA - Parece-me que pesquisar tem a ver com mantermo-nos


presentes e atentos a cada experiência cotidiana: despertar, pão com
manteiga, fila no trânsito, o sol na banca de revistas, livros, pernas,
despedidas, entrevistas, velocidade, desvão, avenidas, dor nas costas,
solidão, corredores, irritação, sorrisos, perguntas, atenção, continuar,
supermercado, caminhada a beira-mar, sentar, ficar em pé, pedaços do
mundo que atravessam meu corpo, pensamentos, desejos, minutos, a
sala de aula, a sala de espera, a espera diante do corredor, do guichê,
do sonho, do sono, do despertar. Tudo devém pesquisa. Nós devimos-
pesquisa.

CECILIA - Sim, se o olhar transpassar as molduras de nossos olhos! E dos


quadros, da cultura, da ciência, das quatro paredes. Gostaria de trazer
para minha pesquisa a experiência do agora, a irreverência da arte, a
potência de um ativismo político. Gostaria de perfurar a tela que
coloniza nosso olhar. A tela-imagem da publicidade gigantesca que o
objeto faz de si mesmo, forçando nossa imaginação a apagar-se, nossas
paixões a se extravasarem.269

PEDRO - “Eu vejo tudo enquadrado, remoto controle.” 270

CECÍLIA - Escutem o que estava lendo ontem à noite acerca da


experiência. Do Agamben: “Em certo sentido, a expropriação da
experiência estava implícita no projeto fundamental da ciência
moderna. (...) [pois esta] nasce de uma desconfiança sem precedentes
em relação à experiência como era tradicionalmente entendida. (...) A
comprovação científica da experiência se efetua no experimento –
permitindo traduzir as impressões sensíveis na exatidão de
determinações quantitativas e, assim, prever impressões futuras.
Transferindo a experiência o mais completamente possível para fora do

269 BAUDRILLARD, J. 1997, p 30.


270 Adriana Calcanhoto, Esquadros, 1992.
159

homem: aos instrumentos e aos números. Mas deste modo, a


experiência tradicional perdia na realidade todo seu valor. Porque –
como o demonstra a última obra da cultura europeia ser ainda
inteiramente fundada sobre a experiência: os Essais de Montaigne - a
experiência é incompatível com a certeza.” 271

MARIA - Montaigne... Ele fazia críticas à educação de seu tempo, bem


parecidas com as que fazemos hoje. E na pesquisa e na educação, ainda
prevalecem certos encaminhamentos burocráticos. Será que chegam a
nos roubar a experiência? Controle, medo das incertezas. A arte não
busca certezas.

CECÍLIA - E hoje... estava pensando enquanto dava aula de manhã. A


escola, muitas vezes, é ainda esta instituição de sequestro da
experiência. Bom... Segundo Foucault.

MARIA - Sequestro é uma designação forte. Sequestro é crime.

CECÍLIA - Através do disciplinamento cria corpos dóceis, manipuláveis,


governamentáveis.272

PEDRO - Acho que ela sequestra, no mínimo, a vontade de aprender dos


estudantes. A criança entra na escola com a mente aberta, cheia de
curiosidade. Lá pelo 4º ano sua preocupação só é tirar nota boa.
Esqueceu o quanto gostava de aprender.

MARIA - Ahahaha! Sequestra a alegria do professor de ensinar. Minha


alegria, porém, cuido, não vou deixar sequestrarem. Sigo semeando.
Alegra-me perceber alguns alunos desabrochando, criando seus
caminhos, suas subjetividades, sua vida.

CECÍLIA - Cada vez menos pessoas querem trabalhar como professores


nas escolas, sabias?

271 AGAMBEN 2005, p. 28


272 FOUCAULT, 1999, p. 292.
160

PEDRO - Sim. Muito desgaste. Exige-se de nós professores, que sejamos


companheiros dos alunos, mas, ao mesmo tempo, exige-se que
“mantenhamos a ordem”, “tenhamos o domínio da turma”, façamos
avaliações, pesquisas, seleções, julgamentos, adotemos uma postura
contraditória à anterior.

CECÍLIA - É mesmo. Exige-se que nos ocupemos do desenvolvimento


individual de cada aluno, permitindo o nascimento e a evolução de sua
própria autonomia, mas, ao mesmo tempo, pede-se que façamos com
que cada estudante se acomode às normas. Outra vez as normas...

MARIA - Muitas vezes sinto uma profunda ruptura com a escola em que
trabalho, discordo da forma como esta atua e dos valores que promove,
mas, ao mesmo tempo, apareço aos olhos do aluno como uma
representante da instituição.273 Pode?

PEDRO - E ainda por cima, um salário de miséria. Só rindo mesmo.

CECÍLIA - Voltando a Foucault...274 Ele destacou como o poder disciplinar


foi desenvolvido, na sociedade moderna, nas escolas, universidades e
em diversas instituições, pelas instâncias de controle, como poder
microscópico calcado nas práticas de vigilância. Uma sofisticada
tecnologia cujo fim é imprimir nos sujeitos, o mais permanentemente
possível, determinadas disposições sociais. Como a permanência na
escola é diária e se estende ao longo de vários anos, os efeitos deste
processo são efetivos. Um verdadeiro sequestro. Como sair dessa?

MARIA - Nossa insistência na potência desviante da vida também é


diária.

CECÍLIA - Acho, às vezes, que os alunos (assim como eu) estão apenas
reproduzindo disposições condicionadas, trajetos preestabelecidos,
trejeitos consumistas, trajando imitações made in china e emoções de
novela. Às vezes dá vontade de sumir... ou de morrer...

273 ESTEVE, 1999, p. 31, 32.


274 FOUCAULT, 1979
161

MARIA - O mundo dos mortos é aqui, quando sucumbimos à opinião


generalizada.275

CECÍLIA - E eu não sucumbi.

PEDRO - Ainda bem. Podemos, talvez, criar outra qualidade de tempo,


outra qualidade de pesquisa... Pois não quero sequestrar ninguém.

MARIA - Estamos no presente! É o tempo que temos. E a pergunta é o


que se pode fazer agora, o que é possível?

PEDRO - Criar um outro tempo...

CECÍLIA - É o que estou procurando construir em minha pesquisa, uma


ontologia crítica de nós mesmos, investigando “como chegamos a ser o
que somos, para, a partir daí, podermos contestar aquilo que somos. É
de tal contestação que se pode abrir novos espaços de liberdade, para
que se possa escapar da dupla coerção política que a modernidade
inventou: de um lado, a individualização crescente; de outro, e
simultaneamente, a totalização e a saturação das coerções impostas
pelo poder.”276

PEDRO - É isso mesmo! Perceber as oportunidades. Este é o nosso papel!

MARIA - Meu papel? Acho que eu mesma é que fui deixando fixar-se em
mim todo tipo de papel: outdoors, filipetas, dicionários, cartilhas, papéis
de filha, mãe, aluna, professora, esposa, papéis moeda, tratados e
fórmulas sobre tudo e todos, papéis repletos de números e letras,
sempre preenchidos, sem espaços em branco, cobertos por palavras
escritas há muito tempo ou imagens descoloridas por ideais de beleza, e
verdades perfeitas; papéis que foram se acumulando sobre minha pele,
sobre meus poros, sobrepondo camadas, enrijecendo, me fazendo
sentir pequena, eu ainda pequena e criança, eu adolescente que não
sabia se sabia, diante da vastidão do mundo, eu adulta, envolta em
papéis.

275 GALLO, S. 2008, p.59.


276 VEIGA-NETO, 2011, p. 40.
162

CECÍLIA - Só se for papelão! Me sinto mais envolta em cascas. E neste


momento... Um desejo de quebrar cascas.

Figura 40 – Devir-casca. Christo, Pacote. 1961. Tecidos e cordas.

PEDRO - Penso que cada momento tem sua casca. Talvez possamos
descascá-los. E comê-los!

CECÍLIA - Boa ideia! Talvez sejam cascas-máscara, tecidas por invisíveis


fios, nos constituindo como personagens de um teatro cujas ações foram
163

desenhadas antes de nossos movimentos, e cujos textos foram escritos,


contidos e mantidos dentro das sólidas muralhas da pólis, como queria
Platão.

MARIA - Cascas que assimilamos por não nos percebermos como


criadores, do pensamento, da linguagem e de outras possibilidades de
mundo. E que cabe a nós, agora, desmanchar.

CECÍLIA - Inventar outros lances de linguagem.

MARIA - Pois a vida continua pulsando aqui, lá e acolá. “Pipoca aqui, ali,
pipoca ali, desainotece a manhã, tudo mudou.”277

PEDRO - Outra vez?

MARIA - Incessantemente. Nunca deixa de pulsar. Pulsa, apesar


daqueles que tentam nos fazer acreditar em caminhos únicos, em
olhares “válidos”. A vida e a possibilidade de experiência, pulsam a cada
instante.

CECÍLIA - Ou entre os instantes, em nossas células, em nossa linguagem.


“A linguagem é a morada do ser”, dizia Heidegger.

MARIA - “A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que ir


buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível.
O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha
linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela não
conseguiu.”278 Pois é, penso que é justamente o fazer a experiência da
palavra, a cada vez, que nos traz algum encantamento em nossas
pesquisas.

277CAETANO VELLOSO. Pipoca Moderna, 1975


278LISPECTOR, 1996, p 212-213.
164

Figura 41 – Devir-linguagem. Jenny Holzer, 2004.

PEDRO -Através da linguagem recriamos o mundo.

MARIA - E como a linguagem é sempre inacabada...

PEDRO - A multiplicidade de linguagens permite colocar sob suspeita a


homogeneidade dos significados.
165

CECÍLIA - Acho que vivemos na linguagem como aqueles personagens de


desenho animado, que podem caminhar no vazio desde que não se
deem conta e, no instante em percebem que estão sem chão,
despencam. Tudo é, em essência, vacuidade.

MARIA - Sim... o espaço entre voz e linguagem é também vazio, e vazio


é também possibilidade, potencialidade, criação.

CECÍLIA - Como fazer acontecer a criação na pesquisa, tão cheia de


formas, ABCs, ABNTs?

MARIA - “Há que se encontrar pela primeira vez uma frase para poder
ser poeta nela.”279

PEDRO - “Ser como rês desgarrada nesta multidão boiada, caminhando


a esmo.”280

MARIA - Sim, as linguagens carregam uma história, trazem marcas que


podem entravar renovações. Não basta, pois, em nossas pesquisas, usar
a linguagem com o intuito de comunicar sentidos novos, é preciso
trabalhar sua forma, libertá-la do que ela tem de estereotipado. 281 Uma
outra abordagem da beleza: fazer com que o mundo dê um salto para
além do ressentimento. Uma estética da conduta, a pesquisa definida
por uma questão ética: como intervir no mundo?282

CECÍLIA - E você, Maria querida, como está a gravidez, como vai nossa
Alice, lindinha? Sua barriga já está bem grande! Quando vai ser o parto?

MARIA - Eu que o diga! Bem pesadinha também. Acho que daqui umas
duas semanas vocês já vão poder segurá-la em seus braços! Ela está
chegando!

279 BARROS, M. 1990, p.312.


280 Gilberto Gil & Dominguinhos. Lamento Sertanejo 1975.
281 PERRONE-MOISÉS, in BARTHES, 2004, p. XVI.
282 BARTHES, 2004, p. 23.
166

PEDRO - É uma grande alegria o nascimento de um bebê! Estes pequenos


que chegam são grandes inventores de mundos.

CECÍLIA - Sim! Será muito bem vinda nossa pequena Alice! Única no
mundo! “É a singularidade que distingue cada ser humano de todos os
demais, a qualidade em virtude da qual ele não é apenas um forasteiro
no mundo, mas alguma coisa que jamais esteve aí antes.”283

MARIA - Ter um bebê dentro da gente, que vai nascer logo logo, faz a
gente pensar... Não tem como proferir uma frase pessimista... Nem
pensar ou sentir algo muito negativo... O acreditar na possibilidade do
mundo passa a ser essencial, prioritário, urgente.

PEDRO - Sabe que é isso que me motiva a ser professor? E também


pesquisador? Lembra daquela passagem super conhecida da Hannah
Arendt? Diz que o ato de educar é uma tomada de atitude frente aos que
nascem.

CECÍLIA - Para mim, é inesquecível! “A educação é o ponto em que


decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a
responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria
inevitável não fosse a renovação e vinda dos novos e dos jovens. A
educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o
bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus
próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de
empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as
em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo em
comum.”284

MARIA - Mas é inquietante.... Sabem que outro dia, na fila do Banco,


uma senhora chegou a me dizer - “Não sei o que vocês, jovens, tem na
cabeça para botar alguém neste mundo. Um mundo sem futuro.”
Naquele momento, fiquei sem resposta... Mas agora tenho o que falar.
Assumo um compromisso com os que estão chegando, com os que
chegarão. Também em minha pesquisa. Vou sair em busca de melhores

283 ARENDT, 2013, p. 239


284 ARENDT, 2013, p. 247
167

olhares sobre o mundo. Bom, deixando claro: melhores no sentido que


aumentam nossa potência de vida.

PEDRO - Isso aí! Assino embaixo. Mas tem gente que não pensa assim.

CECÍLIA - Tem gente que não pensa. Não é fácil pensar.

MARIA - O Bachelard dizia que o sonho é mais poderoso que o


pensamento. É o poder da utopia!

CECÍLIA - Penso que é com a utopia que a educação torna-se política, e


assim leva ao mais alto ponto a crítica de sua época. “A utopia não se
separa do movimento infinito: ela designa etimologicamente a
desterritorialização absoluta, mas sempre no ponto crítico em que esta
se conecta com o meio relativo presente e, sobretudo, com as forças
abafadas neste meio.”285

MARIA - Revolvo meus pensamentos e encontro em seus vestígios, uma


criança: uma palavra que revoa, um corpo que geme, um olho que se
espanta. A potência de mobilizar a vida, de vislumbrar em meio as
tensões que nos atravessam, uma poética do viver. A infância do homem
é o que nele antecede o sujeito e a linguagem.

PEDRO - Talvez seja necessário não se aceitar modelos únicos e


linguagens definitivas. Ou seremos cúmplices, ou melhor, reféns de uma
forma de manipulação que nos impede de transformar nossas vivências
quotidianas e nossas formas de construir o conhecimento.

MARIA - É o devir-infância que possibilita fazer acontecer a experiência


na sala de aula, na pesquisa, na vida. Não ficamos esperando uma
experiência especial, permanecemos extremamente sensíveis e
despertos, apreciamos o especial de cada experiência.286 Enxergarmos o
sublime no banal, no pequeno, no brilho de uma gota de chuva, ou de
uma pedra no asfalto. Não mais no absolutamente grande. À medida
que, cada vez mais, o grandioso pode ser associado à arte dos

285 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 130


286 TRUNGPA, 1996, p. 36.
168

vencedores, dos impérios, desde a arte nazista aos épicos


hollywoodianos, é justamente no cotidiano, no detalhe, no incidente, no
menor, que reside o espaço da diferença.287

CECÍLIA - E é exatamente isso, acredito, o que a experimentação poética


propicia. A arte abre fissuras no que há de fechado no campo da
pesquisa, da academia, da escola. Faz caber coisas no mundo que antes
não cabiam, fazendo-nos ver coisas que não conseguíamos perceber,
sensibilizando-nos para a existência do outro, do diferente, da mudança.
Podemos inventar linguagens, que efetivem formas de viver e não
apenas sobreviver, formas de fazermos da percepção poética e da
atitude ética e uma decisão de vida.

PEDRO - “Talvez o compromisso ético, percebido no nosso mundo como


ridiculamente anacrônico, seja mais subversivo do que qualquer outra
ação.”288

MARIA - Parece que nos deparamos hoje, na pesquisa e no ensino, com


um enorme desafio: abrirmo-nos a novas formas de viver e pensar o
presente, para tornar possível que os que nascem possam também
pensar e viver o presente deles.

CECÍLIA - Também na pesquisa, o ato criador possibilita que façamos


daquilo que ainda não somos, mas queremos ser, parte integrante de
nosso mundo. Que bom, seguimos em frente. A conversa foi boa! Parte
do meu cansaço se foi.

MARIA - Talvez, “depois de ter passado pela prova da insensibilidade


política, se curvado às duras lógicas do produtivismo, às máscaras
insanas da eficiência econômica, não estariam as sociedades
redescobrindo os encantos da distensão, da retomada do imaginário, de
formas de ação que privilegiam a intuição, o sensível, a experiência, de

287 LOPES, 2009, p. 41.


288 ZIZEK, apud LOPES, 2007, p. 56
169

reentrada da estética como possibilitadora da reinvenção da vida em


bases mais felizes?”289

PEDRO - Talvez...

MARIA -Tomara!

289 MEIRA, 2003, p. 61.


170

2. Poética das águas: sentidos outros para a pesquisa com a


arte

A vida, essa função inevitável. Minhas pupilas


endireitam-se em quarto minguante. É preciso perder-se
a todo instante o equilíbrio? Amor mínimo qualquer
preenche abismos formidáveis. Saio. Ora, deixemo-nos
do que somos. Guimarães Rosa

Figura 42- Devir-navegante. Anselm Kiefer. Batalhas no mar, por Khlebinikov. 2016.
171

2.1. O riacho: a vida como obra de arte

O regato vos ensinará a falar, (...). Ele vos ensinará


a euforia pelo eufuísmo, a energia pelo poema. Ele
vos repetirá, a cada instante, alguma palavra bela
e redonda que rola sobre as pedras.
Gaston Bachelard

Sim!!!!

Começamos com um sim.

Acolhemos a nós mesmos, nossos mundos, saberes, ignorâncias,


nossas heranças. Travamos com eles uma relação poética, atenta,
lúcida, amorosa. Visitamos suas casas, seus sonhos, suas vielas,
desfazemos suas identidades, seus binarismos, suas oposições, seus
bonitos e feios, certos e errados, próximos e distantes, seus gosto-e-não-
gosto e as negações desses segundos termos. Não olhamos através de
dualismos, mas de multiplicidades. Lembrando Derrida, podemos dizer
que desconstruímos nossa herança e a reconstruímos em uma paisagem
poética, de diferença.290

Sim.

“A desconstrução é um gesto de afirmação, um sim originário que


não é crédulo, dogmático ou de consentimento cego.”291 Criamos um
olhar-de-viajante. Nos deslocamos para que a paisagem não se fixe.
“Essa impermanência é a garantia de sua condição móvel.”292 A garantia

290 DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 9.


291 DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 66.
292 DIAS, 2010, p. 154.
172

da possibilidade da liberdade, da continuidade... e da descontinuidade


da vida.

Começamos com um gesto de alguém que diz sim e não de


alguém que nega e condena desde o lugar ressentido do deserdado.
Dizemos, apesar de tudo, sim! ao momento presente. Percebemos a vida
insistentemente pulsando a cada inalação, a cada exalação, a cada ato.
Afirmamos a possibilidade de pequenas ações que se materializam a
partir desta vontade de vida, transbordando mapas, modelos e muros,
acalentando sonhos e auroras, aconchegando a noite, acordando o
entusiasmo de se levar cada dia adiante.

Sim.

Escutamos murmúrios, vozes, linguagens e silêncios, que, como


pequenas correntes de água, sussurram seus brilhos intermitentes de
vagalume293, aparecem, se escondem, nas pequenas luzes e sombras
onde cada momento cintila. Como um pequeno riacho, seguem
cantando histórias e poesias, em cada ideia que se pensa, cada palavra
que se fala, se aprende e se ensina, em cada alegria que nos contamina,
em cada pausa, cada movimento, cada afeto, sentimento, cada canto,
cada conto, em cada ponto, cada porto que invento, cada quadro, cada
linha, cada forma, cada fundo, a cada chance, fazendo de nós, de você,
de mim, enfim, alguém que acredita na possibilidade do mundo.

Um riachinho segue fluindo... Minúsculas faíscas de vida


escoando pela terra, acariciando corpos, mentes, células, espargindo no
vento gotinhas de nascimento e danças de infância, acordando retinas e
cores, cantando as coisas belas, abraçando as muito feias, as enormes,
as pequenas, tornando poéticas as pupilas, as escrituras, as pesquisas,
os mundos. Energias, formas, pensamentos, palavras e afetos que se
inventam, se encontram, se desencontram, gerando um pequeno
regato. Arroyto.

293 DIDI-HUBERMAN, 2011


173

Figura 43- Devir-riacho. Monica Gonzales, Arroyto, Riachinho, (detalhe). 1997

O rio não tem pressa e não tem margens. 294

294 ROSA, 1984, p. 133


174

Escuta! Ele segue fluindo, vou junto com ele. Devir riacho.

“Ir para onde? Não importa, para frente é que se vai! Mas,
depois.” Agora é repousar neste riacho, e relaxar.” É gostoso! Parar para
tremer. E para pensar. Também.”295

Tomar a forma de copos, corpos, ondas, artérias, caixas, e


escapar. Transbordar qualquer barreira, qualquer barragem. Seguir com
ele, por vezes vacilante e descontínuo. Ora juntando-se às corredeiras
turbulentas das avenidas e dos carros, ora aos corredores de Alice, das
pesquisas, das escolas. Podes ouvir?

Ele fala baixinho... inventa histórias. É necessária certa atenção,


certa qualidade de presença e mesmo um certo carinho.

Sim... E também não.


Não.
Não esqueci a rudeza das ruas, das ganâncias, das guerras, das
fomes. Não esqueci as tantas vezes em que somos privados de nossas
potências, expropriados de nossas experiências, confinados ao
estreitamento deste desvario globalizado.

E segue cantando o arroyto....

Talvez... Talvez não o tenhamos escutado, fechados que estamos


em estreitos mundinhos, adestrados, anestesiados; ensurdecidos que
ficamos por tão poucos sons ou por tantos, sempre repetidos; áridos que
nos tornamos, pois apequenados e afastados de sensibilidades e
delicadezas, assustados pasmamos, de crueldades e indiferenças,
desacreditados que estamos, de não acreditarmos no mundo;
desapossados que estamos de nossas potencialidades, que pouco
agimos.
Mas segue cantando o arroyto. Em sua fé inabalável e infinita, se
compõe com todas as coisas.
Você escuta agora, este riozinho quase inaudível, quase invisível,
quase inexistente?

295 ROSA, 1984, p. 153


175

Talvez... Não havia o também antes percebido... talvez por andar


bastante desnorteada na insistente presença da minha ausência, no
desconfortável saber o tanto que desconheço, perdida na profusão das
vozes que me habitam e são sempre começo, na expansão dos silêncios
onde me encontro, me perco e me esqueço; talvez, sobretudo, por
demais apressada, de andar com estes pés calejados de ânsia, por terras
velozes e adestradas, que são sempre distância; talvez por ignorar a
vastidão das águas que também em mim correm, onde despontam,
navegam e se afogam as palavras.

Segue o riachinho... umedecendo de vida, desertos, corpos,


cimentos, mares; segue refletindo estrelas, neons, pernas, edifícios e
ruas, nada recusa. Sim. Cantarola a melodia do tempo abrindo espaço,
conta segredos ao pé do ouvido, embalando nosso cansaço.

Talvez.... Pois às vezes, o mundo todo me parece transformado


em pedra, como se ninguém pudesse escapar do olhar inexorável da
Medusa. Me retraio triste e assustada. E o riacho então me conta a
história de Perseu. Conhece?

Perseu, muito leve, voando com as asas de Mercúrio, vence a


dureza da Medusa sem se deixar petrificar. Sustenta-se sobre o que há
de mais tênue, as nuvens e o vento. Dirige o olhar para aquilo que, de
tão horrível, só pode ser visto com uma visão indireta, por uma imagem
capturada num espelho.296 A relação do artista com seu mundo...
Impossível olhar diretamente a realidade, a dureza pode nos
transformar em pedra. Criamos olhares poéticos, escudos/espelho,
recurso do artista, uma visada enviesada, que vê o que seria invisível
para um olhar comum.297

296 CALVINO, 1991, p. 16


297 MEIRA, 2009, p. 123.
176

Figura 44- Devir poético. Claude Monet. Ninféias, 1916.

Nesta humanidade inundada por desumanidades, nestes tempos


ansiosos, sempre sem tempo, nestes espaços sem espaço, corre o
pequeno arroyto, conta intermináveis histórias, acorda os adultos, faz
dormir as crianças e abre em nós os olhos da poesia.

Sim! Agora escuto (ainda que em meio ao vozerio da barbárie que


insiste em minha mente), a delicadeza de seu murmúrio e a força de sua
fala, por vezes doce, por vezes violenta e feroz, sacudindo minha
letargia...

Talvez você também escute...

Talvez seja necessária uma pausa:


177

( )
178

Pausa, pausa, muitas pausas.


Pausas de que?
Da vertigem que é um gesto do desespero por precipitarmos
à morte.
Da velocidade que é um gesto cansado de si mesmo.
Do turbilhão que é um gesto que não reconhece nem seu
passado nem seu porvir.
Do atordoamento que é um gesto inexato em um caminho
impossível.
Da pressa que é um gesto que nem vem, nem vai, que perdeu,
não o rumo, mas seus pés.
E do barulho, do tumulto, da gritaria que não são gestos, mas
sinais absurdos, irreconhecíveis. 298

298 SKLIAR, 2014, p. 64


179

Figura 45- Devir-olho. Tim Diederichsen, Um olhar emerge. Fotografia, 2010.

Escuta?

A escuta é o primeiro gesto: generosidade, abertura, atenção.

Ah! Vem comigo devir riachinho, caminhar pelas paisagens,


fecundar terras secas... trazer frescor... sussurrar melodias... escavar
sorrateiramente as pedras do caminho... alagoar...parar um pouco para
descansar. Sim! Me largar de mim... serena... contemplar a imensidão
que me envolve e que desconheço... refletir a vastidão do céu... repousar
plena no infinito vazio, no entre-lugar onde não há hábito, nem conceito,
nem começo, nem desvario. Chuaaaa, chuaaaaa... Devir riacho.
180

Cintila, por detrás dos reflexos de sua superfície, “por trás das
imagens que se mostram, (...) a própria raiz da força imaginante.”299
Arroyto. Suas águas são povoadas por sonhos. “Como a vida é um sonho
dentro de um sonho, o universo é um reflexo dentro de um reflexo.”300
Refletindo o brilho do céu, o rio cria um céu em sua pele. Neste céu
invertido, a vida ganha uma nova vida. Algum deles é real?

Quando nos banhamos em suas águas somos logo abraçados por


um tipo de intimidade e também por uma descontinuidade. Foi com o
rio que Heráclito aprendeu o devir: “Não se pode entrar duas vezes no
mesmo rio... Ele se dispersa e se reúne de novo (...) aproxima-se, afasta-
se.”301 Heráclito associa o logos ao devir: “Logos designa o projeto de
conhecer, a possibilidade de compreender um discurso, inclusive o
objeto de conhecimento. (...) o logos está sempre em situação ou ainda
em suspensão.” 302 Para Heráclito o logos se encontra no cruzamento da
transformação perpétua com a possibilidade de conhecer a realidade.

O logos é o discurso cuja ‘escuta’ permite compreender a realidade (...).


O verbo escutar, todavia, não tem apenas um sentido. Escutar pode
significar auscultar, isto é, interpretar aquilo que é dado a escutar a fim
de decifrar o sentido não imediatamente acessível, que manifesta algo
que o som abafa, ao mesmo tempo em que deixa escutar.303

Mas esta não é a única escuta possível. Há uma outra escuta, que
não interpreta, não decifra, como a escuta da música proposta por
Nietzsche, uma escuta que escuta o mundo e “incorpora para si a
experiência musical do próprio mundo. (...). Heráclito se posiciona como
aquele que conhece o ritmo ao qual pulsa o cosmos” e busca perceber o
ser do devir total.

Escuta?

299 BACHELARD, 1997, p. 2


300 Idem, p. 50.
301 HERÁCLITO, apud SANTOS, 1990, p. 8
302 LINS, 2009, p.1
303 LINS, 2009, p. 2
181

Figura 46 – Devir-ouvido. Stelarc. Orelha no braço. Prótese em seu próprio corpo.


2007.

“O mundo é Um, mas em seu devir é a totalidade fragmentária e


aberta. E, no sentido mais elevado da palavra, ele é jogo.”304 É o jogo
entre devir e pensamento que instala o mundo. A verdade seria nosso
horizonte, mas seguimos caminhos de errância. A errância é uma
verdade,

mas andarilha, que, no estilo heraclitiano, desenvolve-se como pura


travessia. Uma verdade navegante. (...) uma verdade produzida sob o
instinto do eterno brincar do corpo-alma-coração com o cérebro e seu
próprio devir-criança. Sim, há um devir criança no cérebro, sem o qual a
invenção se tornaria reprodução déspota, levando o corpo ao exílio e
não ao engendramento da alegria, axioma primordial do conhecimento.
Falaríamos de uma verdade em movimento, uma verdade órfã que
confere um sentido à existência terrestre e carnal, faz o elogio da beleza,
valoriza a corporeidade como uma espiritualidade inserida em uma

304 LINS, 2009, p. 3


182

razão nômade, em um jogo-criança, na inocência do devir ou no devir-


criança do pensamento. (...). A inocência do devir encontra no
movimento sua eternidade como possibilidade de invenções. (...) Não é
morrer que cria a eternidade, mas é a arte em todos os seus domínios
que faz perdurar a vida.305

O conhecimento, no devir heraclitiano, instaura surpresa, alegria,


liberdade, pois o movimento contínuo do rio flui junto ao descontínuo
movimento poético, sem origem, nem partida, nem chão, num devir-
artista que inventa a vida.

Devir rio é “um tipo de destino. Não apenas o vão destino das
imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um
destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do
ser.”306 Temos o destino da água que corre, nascemos e morremos a
cada instante. Alguma coisa em nós desmorona constantemente. “A
morte cotidiana é a morte da água. A água corre sempre, cai sempre,
acaba sempre em sua morte horizontal.”307

Escuta?

Sim... A escuta tem a ver com a apurada atenção, com o jogo da


sensibilidade e da percepção poética. Afinal, “Poesia é escuta”308.

Um conhecido escutador de riachos e rios é o artista brasileiro


Cildo Meireles. Cildo realizou, entre 1997 e 2011, a escultura sonora RIO
OIR, na qual compõe “imagens sonoras” do rio e do escutar (em
espanhol, oir). Meireles efetivou neste período, com a colaboração de
uma equipe, gravações do som das águas de vários rios brasileiros e
também de risadas (rir, eu rio) de diversas pessoas. Estes sons foram

305 LINS, 2009, p. 3- 6


306 BACHELARD, 1997, p.6
307 BACHELARD, 1997, p. 7
308 HEIDDEGGER, 2003, p. 126
183

depois condensados em um disco de vinil, onde de um lado estão


gravados o som dos rios, e do outro, os sons de risadas. 309

Figura 47 - Fotografia que integra o documentário “Ouvir o Rio: Uma escultura


sonora de Cildo Meireles”, de Marcela Lordy, 2011.

A obra também foi exposta ao público, em uma instalação


realizada em 2011 no Itaú Cultural São Paulo. Nesta instalação foram
concebidas duas salas, cada uma exibindo um dos lados do disco de vinil.
Uma sala de espelhos distorcidos, de onde se pode ouvir os sons de
risadas; e a outra, uma sala escura, com o barulho das águas.310

309 A cineasta Marcela Lordy, acompanhado todo o processo da realização de RIO


OIR, realiza um documentário intitulado “Ouvir o Rio: Uma escultura sonora de Cildo
Meireles” (2013). www.marcelalordy.com/OUVIR-O-RIO
310 Catálogo da exposição RIO OIR. São Paulo: Itaú Cultural, 2011.
184

O título da obra é um palíndromo, uma palavra na qual, quando


seu início e seu fim são invertidos, mantém-se o significado. É o que nos
esclarece o curador da exposição, Guilherme Wisnik:

O palíndromo espelha a própria estrutura dual de um disco de vinil, que


tem lado A e lado B. Entretanto, como numa fita de Moebius, essa
dualidade não é dicotômica. Assim o ‘oir’, que podemos ler como a
palavra ‘ouvir’ em castelhano, refere-se à própria escuta, que é a
essência do trabalho em todos os seus lados. E o ‘rio’, que pode ser lido
tanto como elemento natural – um curso fluvial – quanto como uma
risada na primeira pessoa, descreve em uma só palavra as duas metades
do disco, como uma serpente que morde o próprio rabo, isto é, um
palíndromo.311

RIO OIR é, paradoxalmente, uma obra de grande força sensorial,


marcada pelo aspecto imaterial e invisível. Questiona as noções de
espaço e de tempo, uma vez que, como estrutura sonora, só “é
percebida através da dimensão do tempo.”312 Ela acontece a partir da
disposição para ouvir, do artista, de sua equipe e do espectador/ouvinte.
Uma escuta que exerce uma sedução e um fascínio, não num sentido
manipulador que enredaria o espectador num campo fechado de
configurações, como verificamos nas ações do marketing, mas como
propiciador de experiências de afectos e perceptos que deslocam os
modos de perceber ordinários, abrindo, de forma potente, campos de
reflexão e desejos de ação.

Assim, o rio atravessa também museus, microfones, olhos e


ouvidos. Atravessa a grande massa esférica onde vivemos, percorre,
pouco a pouco, as vastas distancias de seus territórios, as ínfimas
partículas do solo. É através de contatos singulares, diminutos, que visita
e umedece as vastas paisagens da terra.

Sim! O rio também ri! Você escuta sua risada? Um ahahaha, meio
misturado a um glu glu glu... Ele não se leva demasiadamente a sério...

311 WISNIK, 2011, p. 12


312 MAIA, 2009, p. 31
185

Seu deslizar advém de seu bom humor. Ele ri de si mesmo. “O humor é


atonal, absolutamente imperceptível e faz alguma coisa fluir.”313

Segue o riachinho, rindo... Não com ironia ou indiferença, mas


com certa inocência... “A água anônima sabe todos os segredos.” 314
Sussurra palavras sábias: não se contrapor ao apequenamento das
coisas e das pessoas, mas sim deslocar-se, reaprender, “respirar
liberdade frente ao peso da orfandade.”315 No cintilar dos olhos, criar
linguagens que nos possibilitem migrar, potencializar diferenças, fazer
daquilo que não somos, mas queremos ser, parte integrante de nosso
mundo.316

Este córrego é misterioso...

Some-se solo a dentro, de repente, em fendas de calcário, viajando, ora


léguas, nos leitos subterrâneos, e apontando, muito adiante, numa
cascata de rasgão. Mas o mais enigmático, este ribeirão, que as vezes
sobe de nível, sem chuvas, sem motivo anunciado (...). Há contínuo, aqui
ou acolá, um gluglu, um chupão líquido, água rolando n’água; lá em
baixo, nas pedras, a corredeira se apressa ou amaina; mas o som nunca
é o mesmo de dois instantes atrás.317

Aqui neste regato, nos perdemos, nos encontramos. Pomo-nos


em relação, imaginamos, criamos imagens. A imagem é, ela própria, pôr
em relação.318 Nos tornamos arte. E segue o riozinho... Pensando... Cria
caminhos, cartografias do mundo, das paisagens que visita, que
atravessa. “Nos nossos olhos, é a água que sonha.”319 A cabeceira do rio
troca ideias com os vales, acolhe os lamentos e lágrimas da chuva,
responde às perguntas dos viajantes.

313 DELEUZE, PARNET, 2004, p. 87


314 BACHELARD, 1997, p. 9
315 LOPES. 2007, p.77- 78.
316 DELEUZE, GUATTARI, 1992, p.30.
317 ROSA, 1984. p. 212.
318 BAUDRILLARD 1997, p. 41.
319 BACHELARD, 1997, p 33.
186
187

Figuras 48 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte, CED UFSC, 2016.
188

Soa, riozinho, conta tuas histórias...

Assim eu ouvi:

A límpida água que percorre os regatos e os rios não é apenas


água, mas o sangue de nossos ancestrais.
Os rios são nossos irmãos, eles nos saciam a sede, levam
nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa
terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são
nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês devem dedicar
aos rios a bondade que dedicariam a um irmão. (...).
Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem
pertence à terra. Isto sabemos: há uma ligação entre tudo.
O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem
não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios.
Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo. É possível que sejamos
irmãos, apesar de tudo. Veremos.320

320
Trecho da carta escrita por um chefe da etnia Seattle, de 1854, em resposta à
proposta que o então presidente dos EUA lhe fez, de comprar as terras indígenas.
Fonte:https://opiniaosocialista.wordpress.com/textos-fundamentais/
Acesso em 04/11/2017
189

O rio, em seu devir, não vivencia a separação do antes e do


depois, do passado e do futuro. Segue avançando, se esgarçando nos
dois sentidos ao mesmo tempo. O riozinho habita o tempo do paradoxo:
“O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido
determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois.”321

As águas saltam pedras e declives. Cantam várias melodias em


seu devir, em seu fluir, cantam seu refrão, repetem seus chuá chuá,
rolando seu ritmo, o pulsar de seu coração. “A cabeça é o órgão das
trocas, mas o coração é o órgão amoroso da repetição.”322 Aprendemos
com o riacho a dar coração e ressonância às palavras?

Quando chega a noitinha, a água escurece, absorve do espaço da


noite a sua sombra, e o rio deita no seu leito, o leito macio do rio, criando
ali sua provisória casa, onde, por algumas horas, se protege da
dissolução no caos. De manhãzinha, já não é o mesmo, sua deriva não se
interrompeu. Corre fresco e claro em sua canção, recebe novamente o
céu azul do dia e segue fluindo com a volúpia da imensidão do Cosmos.

Diante da água, ampliamos nossos campos de visão. Podemos


olhar, no rio, tanto o fundo imóvel como a corrente, nossa própria
imagem, o fluxo, a margem e o infinito. A água cruza as imagens. E
contamos ainda com o “direito ambíguo de ver ou não ver. (...). Uma
poça contém um universo.”323 Nos miramos, como Narciso, na
profundeza de seu leito, em suas curvas, nas dobras de seus meandros,
em sua superfície por vezes espelhada. Somos atravessados pelo reflexo
de nossa própria imagem. Contemplamos, imaginamos, estudamos, nos
posicionamos como objetos de nossas interrogações e na medida em
que somos capazes de nos colocar como objetos de estudo é que os
outros se tornam possíveis como outros.324 Encontramos outros riachos,
nos tornamos outros.

321 DELEUZE, 2009, p. 1,


322 DELEUZE, 2006, p. 20
323 BACHELARD, 1997, p. 53
324 Idem, p. 45.
190

Figura 49- Devir-narcísico. Yayoi Kusama, Narcissus Garden, 2009, Inhotim.

E nosso arroyto segue em seu deslocamento, em seu acolhimento


do que vem, em seu sim incondicional à vida. Mas não segue só. Em
cada gota de seu fluxo, pode-se ver a nuvem que choveu ontem, o sol
que evaporou a chuva, a folha do Garapuvú que lhe ofereceu oxigênio,
o esgoto lançado na última cidade, o reflexo sutil das paisagens
atravessadas, o barro de tantas encostas, o olhar deslumbrado da
menina que nele se banhou ao entardecer, os peixinhos coloridos e os
cinzentos, os ovos de mosquito que ali germinam, e o espaço, pura
potencialidade, onde seus átomos surgem e desaparecem, cintilam.

Somos cada um de nós e somos também tudo aquilo com o que


nos relacionamos.325 Somos a potencialidade de fazermo-nos diferentes,
de criar os caminhos que percorremos, de produzir outras maneiras de
existir, de vir-a-ser. Arroyto, singularidade pré-individual, nômade, não
mais aprisionada na individualidade fixa do Ser infinito, nem nos limites
do sujeito finito. Algo nem individual, nem pessoal, mas singular,

325 CANTON, 2009, p 16.


191

intensidade que retorna a si mesma através de todas as outras


intensidades.326

O riacho mantém uma relação estreita com a fratura.... Escorre


pelas falhas das coisas, pelas brechas, pelos corpos das pessoas. (Em
tudo há uma fratura e é por ali que entra a luz.) Reflete tudo a sua volta,
mas não retém o que reflete. Não elege, nem recusa.... Durante um lapso
de tempo bastante breve, torna-se essa coisa, esse objeto ou esse
instante e, em seguida, reinstala-se na dimensão da continuidade.
Durante esse breve período, há puro devir, descontinuidade,
metamorfose.... O devir que é algo diferente da mudança e se
acompanha da perda de identidade.327 Não mais cópia, nem modelo a
reproduzir, não mais realidade a representar, não mais sombra de uma
ideia perfeita.

A fala da água é poesia. Há falas que não fluem, são como pedras.
Não são encontro, mas condenação. Há falas “que só querem te deixar
ali onde você está, preso de sua prisão, órfão de outras vidas.” 328 A
poesia quer fluir, nos carrega num devir-riacho, num devir-criança, em
seu fluxo ininterrupto “nos restitui ininterruptamente a faculdade de
nos maravilharmos. A Poesia é uma função de despertar.” 329

Aprende do rolar dos rios, dos regatos monteses, da


queda das cascatas: tagarelante, ondeia o seu caudal –
Só o oceano é silêncio.330

A água ensina os pássaros e os homens a sentir o insensível. A


sentir o instante que passa, nos leva, nos faz ir, como o que não pode

326 DELEUZE, 2009, p. 110.


327 BAUDRILLARD 1997, p. 32
328 SKLIAR, 2014, p. 63
329 Idem, p. 18
330 ROSA, 1984, p. 217.
192

começar e como o que não cessa de devir. Escuta... são muitos os


riachos! Desejos vibram, não só em mim ou em ti, mas em tantos!
Muitos, que muito antes pensaram mundos e humanidades, ergueram
as montanhas que iriam galgar, verteram os mares que iriam cruzar -
superfícies, profundezas, entre-lugares, presságios, telas, caravaggios,
caravelas, pois navegar era preciso... sem norte, sem certeza, sem
espelho, sem narciso... ondas, rajadas, abalos, calmarias, ideias e
sorrisos...

Sim! Se lançar! Pensava-se estar no porto, e de novo se é lançado


ao alto mar.331 Galopa, cavalo marinho, inventa um destino para eu
almejar, cavalga a força das imagens que crio, firma o passo apesar do
desvio. Sendo espaço, abraço, assobio, cavalgando sem escudo e sem
espora, soma tudo, noves fora, grau zero da escritura, água mole em
pedra dura, nem verde, nem madura, tanto bate até que fura,
dissolvendo a arrogância, a propriedade, a armadura.

Não sou eu quem me navego, quem me


navega é o mar.332

Segue o riozinho atravessando terras, simultaneamente perto e


longe, num local determinado e em outro tempo, outro lugar. Certos
lugares só podem ser tocados pelo que se desloca, certos tempos só
podem ser vividos pelo anacronismo.333 As palavras do rio duram,
dizendo a cada vez coisas distintas, abrindo um intervalo entre cada um
de seus sons, “para que o porvir seja lido como o que não foi ainda
escrito.”334 Sua voz é suave, generosa, reticente, não se põe no lugar das
grandes epistemes que são como a verdade, mas no tempo da

331 DELEUZE, 2012, p.122.


332 Paulinho da Viola e Hermínio Bello De Carvalho, Timoneiro
333 CHEREM, 2010, p.257.
334 LARROSA, J. 2004, p. 15.
193

delicadeza, onde não se diz dogmatismos, arrogâncias, ou Últimos


Significados.335

Em determinados relevos, suas águas se tornam violentas.


Levando as forças da vida a seu extremo, rompem o torpor do cimento
que as canaliza, invadem ruas, igrejas e casas. Devolvendo ao homem
sua fragilidade, sua modéstia, seu pertencimento, sua finitude,
restituem-lhe o infinito.

As águas não seguem caminhos retos, seu movimento é redondo,


seus ziguezagues erguem e destroem ribanceiras, dobram-se em
meandros, criam “dentros e foras”, lagoas e geleiras e assim mantêm o
ritmo límpido e repetido de seu coração. Seu pulsar ecoa no ar, nas
nuvens, nas tempestades, nas lágrimas, nos encanamentos dos edifícios.

Figura 50 – Devir- rio. Carmela Gross. Fronteira, fonte, foz. 2001. Instalação. Mosaico
português. Laguna, SC

335 BARTHES, R. 2004, p. 226.


194

Também na cidade contemporânea o riachinho se desdobra.


Permanece invisível, turvo ou transparente. Mesmo sendo parte da
paisagem, continua sendo um estrangeiro. Segue sem se atar a nada,
observa tudo, não possui o que vê. Nosso arroyto procura não suscitar
“qualquer movimento em direção à posse. Ver é um esforço por criar
presença: possuir uma coisa seria fazê-la desaparecer.” 336 Enquanto os
holofotes da cidade e do espetáculo nos cegam e nos privam de ações e
palavras, nos dando a sensação de que, asfixiados, pertencemos a um
cenário intransformável, congelado, sem saída, nossa sina; o riozinho,
com seu deslizar poético, sua linguagem sussurrada em surdina, reanima
a infância, a beleza e a vida, desatina. Sua paisagem é a ficção.

Devir-arroyto: criar o que somos. E somos - já dizia Zygmund


Bauman337- feitos de água. Um acontecer em vertigem - vertemos a
possibilidade de cada instante, existimos, não como um sujeito, mas
como uma obra de arte.338 “O regato vos ensinará a falar, (...). Ele vos
ensinará a euforia pelo eufuísmo, a energia pelo poema. Ele vos repetirá,
a cada instante, alguma palavra bela e redonda que rola sobre as
pedras.” 339

336 AUSTER, P. 1996, p. 40.


337 BAUMAN, 2001
338 DELEUZE, G. 1992, p 124, 127.
339 BACHELARD, 1977, p. 202.
195

2.2. Nascentes: devir-criança

Figura 51 – Devir-nascente. Ana Mandieta. Corpo terra. 1984 (fonte:


www.frieze.com acesso em 08.11.2012.)
196

A infância é habitada por algo ao qual jamais se


dará uma resposta. Jean-Francois Lyotard

Um menino nasceu – o mundo tornou a começar.


Guimarães Rosa

Pesquisar com a arte requer um devir-criança. Para se devir-


pesquisa, se devir-arte, há que primeiro se devir-criança. Ser nascente,
início, a primeira vez, o zero, ser o novo de cada novo momento. “Vale
mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la.
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez.”340 Devir-
pesquisa, devir-arte, é se tornar nascente de um pensamento inaugural,
inventar tramas, travessias e travessuras metodológicas que se
constituem através da linguagem poética da arte – devir-criança.

A criança vivencia o mundo com seu corpo sem órgãos.341 Ela não
é separada do que vivencia. A criança quando brinca com um avião, ela
devém-avião.

O avião adquire vida, uma anima, o avião sente, o seu movimento


modula afetos e emoções, a criança fala com ele e fá-lo responder-lhe.
(...) Qualquer coisa na criança devém avião. O ruído que produz não é
para imitar a máquina, é a transformação de seu corpo em avião. Em
termos deleuzianos, a criança está a extrair partículas, sonoras e outras,
do seu organismo, desorganizando-o como tal e como forma, não para
tomar a forma do avião, mas imprimindo a essas partículas de vibrações

340 PESSOA, 2008, p. 133


341 Deleuze e Guattari desenvolvem em Mil Platôs (1996), inspirados em Antonin
Artaud, o conceito de corpo sem órgãos. Um corpo “organizado em um organismo”
funciona, segundo estres autores, como uma máquina que realiza funções
predeterminadas socialmente. Nessa condição, nosso desejo, nossa sensibilidade,
nosso pensamento, são capturados pela lógica capitalista, que lhes impõe formas,
funções, ligações, organizações hierarquizadas, organizadas para extrair trabalho
útil, nos desconectando do que podemos, da potência da vida, da potência de
criação. Um corpo sem órgãos é um corpo do devir, um corpo em acontecimento,
aberto para novas disposições, novas intensidades, para tudo que gera um aumento
da potência de vida.
197

sonoras os ritmos da máquina voadora. (...) Criação de uma zona de


osmose ou de indiscernibilidade em que já não se sabe se é o corpo da
criança que voa no espaço ou o avião que sofre de medo ao picar
subitamente em direção ao solo.342

E ainda, o avião e a criança se transformam em muitas outras


aeronaves, o devir-criança devém multiplicidades. O que a criança está
fazendo é experimentando “sua plasticidade em transformar-se e a sua
capacidade de se dissolver e de se conectar simbioticamente com o ar,
com a terra, com o cosmos. (...) Este é seu poder de vida.“343
Intensidades se projetam de seu corpo sem interior, diretamente para o
exterior. A criança não experiencia um interior separado do exterior.

Investe e molda as coisas do mundo na mesma maneira que investe o


seu corpo. Este é sem sujeito e sem os limites orgânicos de um corpo
próprio. (...) Pelo contrário, é uma coisa do mundo, no mundo, com uma
característica que a criança possui e desconhece: a de ser uma pura
potência de vida que irradia suas intensidades por todo espaço. Por isso
o vive também como espaço de irradiação de vida. É isso que faz a
candura das crianças.344

O pensamento poético também habita, ou melhor, cria corpos


sem órgãos. Como Fernando Pessoa, que em sua Ode Marítima, devém-
navio, devém-paquete:

Sozinho, no cais deserto,


Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando. (...)
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente. (...)
É — sinto-o em mim como o meu sangue (...)
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta, (...)
Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta
E, sem que nada se altere, tudo se revela diverso. (...)
Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.

342 GIL, in LINS, 2009, p. 19


343 GIL, in LINS, 2009, p. 20
344 Idem, p. 32
198

E o paquete vem entrando, deve vir entrando sem dúvida,


E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele, (...)
Minhas sensações são um barco de quilha pró ar,
Minha imaginação uma âncora meio submersa,
Minha ânsia um remo partido,
E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!
Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim. (...)
Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.
Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.345

Nós adultos, talvez tenhamos deixado adormecer nosso corpo


sem órgãos, e seria preciso, então, despertá-lo. Assim nos sinaliza
Antonin Artaud:

Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos,


Então o terão libertado de seus automatismos
E devolvido a verdadeira liberdade.
Então poderão ensiná-lo a dançar às avessas
Como no delírio dos bailes populares
E esse avesso será
Seu verdadeiro lugar.346

Podemos engendrar um corpo sem órgãos, para devirmos-


criança. Como? Deleuze e Guattari347, mencionam “involuções
criativas”, “reversões”, a criação de zonas de dessubjetivação do adulto
e de contaminação pela potência poética do devir-criança. O ato
artístico pode criar entretempos, onde o tempo aiônico da criança
irrompe e atravessa as cascas de nossa pele estriada, nos colocando na
nascente das águas da infância do mundo. Aiôn, este “interminável
tempo intensivo e vazio, sem o qual não há criação.”348

345 PESSOA, 1992, p. 134-141


346 ARTAUD, apud WILLER, 1983
347 DELEUZE; GUATTARI, 1996
348 ORLANDI, in ZOURABICHVILI, 2016, p.21
199

Figura 52 – Desenho de um estudante do primeiro ano da Escola Desdobrada da


Costa da Lagoa, PMF, Florianópolis. (6 anos), maio 2016.

As águas, em seu corpo intensivo, em seu eterno retorno, têm


uma existência circular. Sem partida, nem chegada. Elas não nascem nas
nascentes, e ainda assim as nascentes são nascentes, e o que nasce nelas
é a infância. Serão líquidas, gasosas, ou sólidas quando geladas,
atravessarão outonos e primaveras, contornarão obstáculos, banharão
os encalorados e acariciarão os solitários, não recuarão ante o abismo,
num devir-cachoeira, serão outras. Seu eterno retorno de modo algum
é o retorno de um mesmo ou de um igual. É a sua não identidade, que
as leva a fluir, a jorrar, a se lançarem. Seu eterno retorno que não é uma
determinação giratória, um fatalismo de uma constante volta, mas um
ciclo sem início nem fim, um ciclo da imanência. “O eterno retorno é uma
200

ferramenta para se chegar a um amor sincero do devir, (...) é o retorno


da diferença, (...), é o próprio retorno que retorna e devém.”349

A nascente segue. Lenta, vaga, prenha de vida, habita o grau zero


da existência, o grau zero da escritura350, num movimento que supõe
uma desterritorialização - a força desejante de seguir adiante. Não se
nasce rio, torna-se rio por um devir, por

um desejo artístico, pela vontade de potência cuja singularidade peculiar


consiste em abrir vias aos possíveis do desejo afirmativo, deixar-se
afetar, (...). Levar o pensamento para o coração em um fluxo de
arrebatamento e gozo que (...) excita o sol e acorda o rebanho de sua
letargia niilista.351

A nascente é devir: não um futuro, mas invenção de possíveis. Ora


estrita, ora larga, jorrando água vermelha, amarela, transparente, turva,
ampla, impassível, “sem barrancas, sem rebordos, com praias luminosas
de malacacheta e águas profundas que nunca dão vau,”352 a nascente é
quase humana. É passagem, movimento que avança, inventa poemas,
metamorfoses e dilemas, se lança, se abraça com o pensamento numa
dança. Transfigura-se, como queria Nietzsche353, em camelo, leão e
criança, desdobra percursos que são sempre infância, possibilita ressoar
em cada redemoinho, uma música, uma poesia, uma esperança.

Vou me lançar nesta metamorfose! E você?

MARIA - Talvez seja mesmo necessário, para não esmorecermos na


estagnação, viver as três metamorfoses cantadas por Zaratustra.354 A
primeira, o camelo, espírito de suportação, para além de pesadíssimas
cargas, aguenta os fardos de um tipo de moral que requer o
cumprimento de deveres.

349 LINS, 2009, P. 17.


350 BARTHES, 2003
351 LINS, 2009, p. 12-13
352 ROSA, 1984, p. 164.
353 NIETZSCHE, 2011
354 NIETZSCHE, 2011, p.31
201

PEDRO - Ai! Acho que já fui assim.

MARIA - Mas a marcha no deserto, uma tal solitude, engendra o espaço


necessário à transformação. O deserto, o vazio e o desterro, podem
inspirar uma salutar confrontação consigo mesmo e com o mundo.

PEDRO - Começamos camelando... que nem eu.

MARIA - A segunda metamorfose, leão. Necessidade de lutar pela


liberdade. Uma luta que requer força selvagem. Não carrega fardos, é
livre como vontade.

CECÍLIA - A liberdade talvez seja um exercício e uma luta diária.

MARIA - O leão é o espírito rebelde que opõe um “eu quero” ao “tu


deves” inscrito em cada escama do dragão-amo; um herói negativo, sua
força ainda é reativa, figura de um espírito ressentido. É o espírito
aventureiro que toma a si próprio como experiência-limite na qual
coincidem a destruição e a criação, possibilitando a aparição de algo
novo, que só se dá ao preço do sacrifício do que já se é.

PEDRO - Mas o leão gosta de subjugar os outros animais... é o rei da


floresta...

MARIA - Sim.... Por isso a terceira metamorfose: a criança. Para que a


criança nasça, o leão deve morrer e deixar um espaço de incerteza.355 A
criança é esvanecimento, inocência, jogo, início. A criança abre um devir,
um espaço sem garantias. Não se sustenta sobre nada, inaugura um
começo, uma abertura não tocada por nosso poder, nosso saber, pelo
que somos. É a própria vida se reinventando.

PEDRO - A criança é um outro, aquilo que, sempre além de qualquer


tentativa de captura, inquieta a segurança de nossos saberes, questiona
o poder de nossas práticas e abre um vazio em que se abismam as

355LARROSA, 2004, p 230.


202

referências de nossas instituições. Uma infância não pode ser


universalizada, nem antecipada, ela só se dá na experiência.

MARIA - “A infância simboliza um rito de passagem entre o que somos


enquanto seres jogados no mundo e o que fazemos com estes seres
jogados no mundo. E trata-se de um rito especificamente humano, na
medida em que o ser humano é o único animal que aprende a falar, e de
um rito fundacional, na medida em que sem uma infância não teríamos
que passar da natureza à cultura.”356

CECÍLIA - Talvez seja justamente aí que podemos encontrar a infância do


homem. Não como um estágio que precede cronologicamente a
linguagem, ou como um paraíso que abandonamos ao falar, mas como
uma instância que produz, a cada vez, o homem como sujeito.357 A
infância “instaura na linguagem aquela cisão entre língua e discurso, que
caracteriza de modo exclusivo e fundamental a linguagem do homem.
Pois o fato de existir uma diferença entre língua e fala, e de que seja
possível passar de uma a outra – que todo homem falante seja o lugar
desta diferença e desta passagem -, não é algo natural, mas o fenômeno
central da linguagem.”358

PEDRO - Isso! Assim e é a infância que possibilita a história, pois esta se


constrói, não na linearidade do tempo, “mas a partir da descontinuidade
que irrompe incessantemente: um devir no qual emerge o
acontecimento.”359

MARIA - A infância nos fascina porque é o momento da fascinação, ela


própria está fascinada.

CECÍLIA - Ai que vontade de nascer outra vez!

MARIA – Que tal agora?

356 KOHAN, 2007, p. 113


357 AGAMBEN, 2005, p. 59.
358 Idem, p.63.
359 VILELA, In PAGNI; GELAMO, 2010, p.56
203

Figura 53- Devir criança. Jacquelyne DuPrey Diederichsen. Fotografia. 2011

No fundo de cada palavra,


assisto ao meu nascimento.360

360
BOSQUET, Apud BACHELARD, 2009, p.94
204

A nascente é a vagina da terra. Através dela nascem as águas dos


novos possíveis. Ela parteja o acaso, a surpresa, o acontecimento. E o
acontecimento é pura potência, algo “incorpóreo irredutível ao estado
de coisas nos quais se efetua.”361 Como fêmea que dá à luz, a nascente
impulsiona as águas, suas crias, para que enfrentem a vida. É ela, que
em nossas pesquisas, nos impulsiona, nos força a lançarmo-nos na
criação, nos convoca a ficarmos atentos àquilo que nos afeta no que
acontece, de modo que o pensamento possa encontrar seu fluxo.
Pensar não é saber, mas caminhar pelo desconhecido, pelo caos, e criar
imagens e palavras para poder atravessá-los. Pois acerca daquilo que
pode vir ao nosso encontro, acerca do que virá e nos fará aprender, nada
sabemos.

É preciso, em uma pesquisa, que algo force o pensamento, abale-


o, arraste-o para um avanço, para que sejam possíveis encontros, para
que sejam possíveis novas e pertinentes perguntas. O nascimento é
decerto uma forma de violência, mas nem estúpida, nem brutal. O
nascimento é uma violência afirmativa, e “afirmar é sempre traçar uma
diferença, (...) instituir um critério que permita atribuir valores, (...) uma
seleção hierárquica do importante ou do interessante.”362 É uma
violência amorosa, gera a força e a coragem para se avançar no
desconhecido e se deixar atravessar por paisagens estrangeiras e
repentinas, que abalam e transformam pontos de vista.

A nascente impulsiona as águas a percorrerem despenhadeiros e


cavernas, a se curvarem nos relevos que deslocam seus contornos, que
as fazem devir outras. A tomar a forma das passagens, de eletricidades,
poças e tempestades, de imponderáveis pontos de vista, diferenças que
esvanecem tanto a identidade das águas quanto a das paisagens.

A nascente impulsiona as águas para que elas contem novas


histórias, para que criem novas escrituras nos terrenos que atravessam.
E elas então, seguem correndo pelo mundo desconhecido. Não o
conhecem ainda. Elas correm para aprender, para continuar escrevendo:

361 ORLANDI, in ZOURABICHVILI, 2016, p. 14


362 ZOURABICHVILI, 2016, p. 60
205

Como escrever de outro jeito senão sobre aquilo que não se sabe(...)? Só
se escreve na ponta de seu próprio saber, nesta ponta extrema que
separa nosso saber e nossa ignorância e que faz passar um no outro. (...).
Suprir a ignorância é deixar a escrita para depois ou, antes, torná-la
impossível.363

Afinal, “pensar não é saber, nem ignorar, mas procurar.”364

As águas, nas nascentes, brotam da terra movidas por um devir-


criança, que não recua diante do que há de intolerável no mundo, diante
da banalidade cotidiana. O devir-criança é também um acreditar no
mundo:

Acreditar, não em outro mundo, mas no liame do homem e do mundo,


no amor ou na vida, acreditar nisso como no impossível, no impensável,
que, no entanto, só pode ser pensado: ‘algo possível, senão sufoco’. É
esta crença que faz do impensado a potência distintiva do pensamento,
(...). O fato moderno é que já não acreditamos neste mundo. Nem
mesmo nos acontecimentos que nos acontecem, o amor, a morte, como
se nos dissessem respeito apenas pela metade. (...) É o vínculo do
homem com o mundo que se rompeu. Por isso, é o vínculo que deve se
tornar objeto de crença: ele é o impossível, que só pode ser restituído
por uma fé. (...) Precisamos de razões para crer neste mundo. Substituir
o modelo do saber pela crença.365

A crença é uma conexão da nascente com o rio e com as paisagens


desconhecidas que ele atravessará, que ele criará. Uma “crença
paradoxal no mundo como reserva de relações inéditas”366 que renovam
a alegria e as possibilidades da vida.

A nascente abre os poros da terra e do homem para que eles


possam perceber, sentir e devir, o gigantesco campo de vida que somos,
que vai até o infinito e pulsa em cada célula, em cada átomo, em cada
vida. Abre olhos de pura presença, capazes de ver, ao mesmo tempo, a
exuberância da existência e seu caráter passageiro.

363 DELEUZE, 2006, p. 18


364 ZOURABICHVILI, 2016, p. 87
365 DELEUZE, 2013, p. 205-207
366 ZOURABICHVILI, 2016, p. 97
206

Figura 54- Devir-feliz. Mosquito da Mangueira, Parangolé P 10. Foto de Claudio


Oiticica, 1965.

Um fluxo provisório, se multiplicando, se expandindo e também


se contraindo, ampliando e concentrando universos, fazendo girar os
planetas, as galáxias, amamentando com suas vias lácteas os filhotes de
estrela, cintilando nas águas, no capim que cobre o frio da montanha, no
brilho do sol que dança e canta no movimento das folhas ao vento, no
som dos carros voando pela cidade, do choro do recém-nascido, no
piado do sabiá, no grito que soa de repente - será um assalto? - na
música druídica do Hermeto, nos arabesques de Debussy, na banda que
o Chico viu passar, tocando e girando sua roda viva, no choro alegre do
Pixinguinha, nos bichos da Lygia Clark, no corpo-arte da Marcela Tiboni,
da Priscilla Davanço, da Ana Mandieta, da Orlan, nos inquietos
parangolés do nosso Oiticica e nos inquietos pés da criança na aula de
matemática, nos sorrisos dos amigos quando se encontram, no tremor
207

das bocas que se beijam, nas perguntas das crianças, nas palavras ditas,
nas emudecidas e nas que escrevemos, nas pesquisas que se mantêm
abertas à sinfonia inacabada da vida, aos gestos imprecisos deste corpo
onde o tempo deixa suas marcas assinalando sua passagem, ao
murmúrio deste eu-mundo-sem-fim, ao fluxo incessante desta nascente,
que não cessa de nascer.

E assim, talvez, acreditemos no mundo... e em nós.

Escuta? Falando sério. A vida passa brincando.

Um acreditar que vem de da alegria e de um amor a tudo. Pois


em tudo pulsa a beleza da vida, onde beleza é também o feio e o feio é
bonito, onde dizemos um sim incondicional à vida, e por isso
acreditamos e novamente dizemos: sim! E cantamos com Nietzsche:

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário
nas coisas -Assim me tornarei um daqueles que fazem as belas coisas.
Amor Fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não
quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem
mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o
olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém
que diz Sim!”367

A infância está na origem das maiores paisagens.


Nossas solidões de criança deram-nos as
imensidades primitivas. Um excesso de infância é
um germe de um poema. Zombaríamos de um pai
que por amor ao filho fosse ‘apanhar a lua’. Mas o
poeta não recua diante deste gesto cósmico. Ele sabe
que este é um gesto de infância. A criança sabe que

367 NIETZSCHE, apud HENZ, 2007, p. 37


208

a lua, esse grande pássaro louro, tem seu ninho


nalguma parte da floresta. (...).368

Figura 55 - Devir-infância do mundo. Jacquelyn DuPrey Diederichsen. Fotografia,


2017.

368 BACHELARD, 2009, p. 94- 97


209

2.3. Terceira margem: crise da representação, criação e


experiência do fora

O que mais nos faz pensar, é o que ainda não pensamos.


Martin Heidegger

Será possível falar de existência poética num sentido


rigoroso, se por existência entendemos aquilo que abre
brecha na vida e a desgarra, por instantes, colocando-nos
fora de nós. Lacoue-Labarthe

Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio


— pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era
só o demoramento. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De
tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que
a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio,
para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da
cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração.
Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. A vida, nos rasos do
mundo. (...) Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem
em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa
água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio
a dentro — o rio.369

Fundar é afundar.

369
ROSA, 1994, p. 411-413.
210

Mesmo dentro da sala, continuo, de algum modo,


do lado de fora, como se ali não houvesse
suficiente espaço para me caber e deixasse
pedaços no corredor. Eu não caibo.
Clarice Lispector

Pois é, querida Clarice, eu também não caibo. Não caibo nos


espaços que me são designados a ocupar nesta sociedade, nas cidades,
nas escolas, nas salas de aula, nas pesquisas ABNT. Quando criança,
mesmo quando era ainda bem pequena, ainda assim não cabia. Sabia?
Sentia, portanto, uma necessidade de expandir os espaços. Muita
necessidade. De certa forma, eu sofria. Será que a vida era só isso? A
maneira como as pessoas se relacionavam me causava, quase, uma
claustrofobia. A vida, como eu a via sendo vivida pelas pessoas, era
estrondosamente menor do que a que eu sentia em mim, no céu com
suas nuvens, nas espumas do mar que teciam rendinhas na beira da
praia, no amor que sentia por minha mãe, no tamanho das árvores em
que eu subia, (e não caía, e tinha lá em cima uma casinha linda de
bambu), nas histórias que minha mãe contava, na amizade dos amigos.
Tudo isto era infinitamente maior do que a vida que via nos que me
rodeavam. Pelo menos, era assim que eu percebia. Era assim.... De noite,
deitada sozinha na cama, eu ficava ainda maior. Eu não era só aquela
estreita faixa da minha consciência. Eu era um universo enoooooorme,
que desconhecia - o infinito - e por isso, sentia um certo medo, certo
desconforto, certa solidão.

Os anos foram passando e eu continuava não cabendo. Não cabia


no lugar de filha, de irmã, de esposa, de professora, de pesquisadora...
Lojas, mercados, vestidos, sapatos, (eu gostava de batom!) colares,
coleiras, prestígio, status. Como diria Raul Seixas, “eu achava tudo isso
um saco!” A vida era tão maior! Anos depois, depois de muitas paredes
e caixas terem se dissolvido (eu as carregava no coração, as sentia ali
sólidas mesmo e não como metáfora, trancando meu sentimento), não
me sinto tão sufocada. Bom, depende... Depois de ter me lançado em
211

viagens pelos mundos, pelas avenues, pelas paisagens dos livros, pelos
desertos, pelas florestas de pedra e de árvores, por casinhas de pau-a-
pique, sem luz elétrica, nem água: só lampião e balde (água corrente, só
ali no riachinho, ao lado da casa, lembras do riacho? onde lavávamos a
roupa, a louça, o corpo e a alma - a alma? Sim, também a alma); depois
de ter aceitado o convite do fora, e adentrado (ou saído?) de seus
desterritórios, atravessado seus redemoinhos, seus labirintos; depois de
eu, por incontáveis vezes, ter permitido o fora me quebrar e abrir o
infinito e a poesia em mim, em meus olhos e no mundo, o vasto mundo
que agora vejo, não me sinto mais confinada. Só um pouco.

Êta mundo velho sem porteira!

O fora? Sim, podemos chamar assim, o fora, como Maurice


Blanchot o chamou. O fora abriu em mim o seu grande espaço vazio,
cheio de luz, cheio de sombra, cheio de vagalumes! Os vagalumes da
arte, que com seu brilho intermitente e delicado, visitam todas as
delicadezas e intensidades desta terra, inventam passeios por linhas,
cores, pelas palavras de Didi-Huberman, pelas noites estreladas de Van
Gogh, pelas peles e cicatrizes de Paulo Gaiad, pelas bobas de Anita
Malfatti, pelas casas tortas de Gaudí, pelo namoro nas nuvens de
Chagall, pelo oitavo dia de Eduardo Kac, pela Vênus de Bottticelli e a de
Willendorf (com sua enorme barriga de onde nasceram os homens), pelo
balanço dos móbiles de Calder; pelos mundos-moinhos de Cartola, pelos
descarrilamentos chorosos de Altamiro Carrilho e por tantos outros
lugares... Imagens que se dissolvem em pequenas luzes que acendem e
apagam, vagalumes, que inventam outras terras, onde as águas dos rios
não são confinadas em duas margens, elas correm, infinitas, nas
terceiras margens. Você já foi lá?
212

Figura 56 – Devir-vagalume. Tatsuo Miyajima, Vida Inacabada, 2016. Met Breuer,


NY. 2016

Pesquisar com a arte pressupõe o não confinamento da criação e


do pensamento entre duas margens. Entre dualismos. A arte inventa e
habita as terceiras margens. As terceiras margens são como suspensões,
desobediências, larguezas. Elas insinuam aquilo o que Deleuze chama
plano de imanência, os indús chamam shuniata, e Blanchot chama fora,
um espaço de pura potencialidade que sustenta toda criação, toda vida.

Criação, como já dissemos, não é criatividade. A criatividade,


“palavra de ordem da modernidade tardia, é o cacoete mágico do
universo virtual, (...) convive com uma forma homogênea de talentos,
cuja característica maior é (...) a massificação em detrimento da
213

singularidade.”370 A noção de criatividade é marcada por um


conhecimento preexistente, configurado pela representação. A criação
instaura um desconhecido, um devir afirmativo, que percebe o mundo
como acontecimento, nos torna outros, nos oportunizando estar à altura
daquilo que nos acontece.

Criar é inventar, e “a invenção é um ato de amor, e só se cria às


margens.”371 Nas terceiras margens, nos não-lugares, no devir-arte.
Assim como as águas do rio declinam pela encosta do vale e inventam
viagens, viajantes e paisagens, deslizamos por uma “estética da
passagem, do efêmero, da delicadeza, dos sopros e dos movimentos,
sem perder jamais a alegria, sem a qual não há nem arte, nem artista.”372

O que trava a criação e rouba a potência da vida, segundo


Deleuze, são as imagens dogmáticas de pensamento, que integram a
filosofia da representação. A lógica da representação opera um
pensamento monocentrista: subordina o múltiplo à perspectiva
homogeneizadora de um ponto de vista único, condenando o
pensamento ao exercício estéril de apenas reconhecer, não pondo em
jogo as diferenças dos múltiplos possíveis pontos de vista.

A arte cria sensações, relações de força, movimentos que


atravessam os corpos e transbordam as margens ensimesmadas, num
jorrar de vida. A arte, enquanto “exercício experimental da
liberdade,”373 busca sacudir a letargia instalada pelo pensamento
dualista. É necessário, assim, acredito, para se pensar uma pesquisa com
a arte, suspender o dualismo das margens que confinam a percepção, a
criação e a vida, efetuar rasgões na contenção de seus barrancos e
lançar-se nas águas soltas da experiência do fora.

É nas águas que banham as terceiras margens, as margens


simulacro, as margens do fora, em que mergulharemos agora. Apesar
de sermos gatos escaldados e termos medo de água fria.... Vamos?

370 LINS, 2009, p. 13.


371 LINS, 2009, p. 14.
372 LINS, 2009, p. 14.
373 PEDROSA, apud CANTON, 2009, p.11
214

Quem mais virá conosco?

MARIA - Pronto. Já que está frio, vamos de canoa.

PEDRO - Boa!

CECÍLIA - Está pronta a canoa que nos levará até lá. Nela, atravessaremos
as corredeiras aventureiras do pensamento, em direção às terceiras
margens. Afinal, é por elas que escaparemos aos dualismos e às duas
margens que estreitam nosso pensamento, e traremos alguma liberdade
às nossas pesquisas.

MARIA - Partimos então, em nossa jornada na primeira corredeira.

PEDRO - Mas como chegar à terceira margem? Não há trajetos traçados


a priori! Elas não aparecem no Google Maps, nem no Waze... Não
sabemos!

MARIA - Só nos resta perguntar ao vento.

CECÍLIA - Ou mesmo às águas. –Olá, águas que correm e preenchem os


vazios, queremos ir à terceira margem. Haverá uma trajetória, uma
direção, uma poooooooonte?

(..........)

MARIA - Talvez um devir-ponte.

PEDRO - Escuta?

CECÍLIA - Escuto!

MARIA - Sim!
215

CECÍLIA - É Zaratustra!

PEDRO - Como assim?

MARIA - Sim, é ele! Bom dia, Zaratustra! Já foste à terceira margem?

NIETZSCHE - É lá que vivo.

PEDRO - Sobe, então, por favor, em nossa canoa! Poderias nos deslocar
para-lá com o remo de tuas potentes palavras?

NIETZSCHE - “O homem é uma corda, atada entre o animal e o super-


homem – uma corda sobre um abismo.
Um perigoso para-lá, um perigoso a-caminho, um perigoso
olhar-para-trás, um perigoso estremecer e se deter.
Grande, no homem é ser ele uma ponte, e não um objetivo:
o que pode ser amado no homem, é ser ele uma passagem e um
declínio. (...)
Amo aqueles que não buscam primeiramente atrás das
estrelas uma razão para declinar e serem sacrificados: mas se
sacrificam à terra, para que um dia a terra venha a ser do super-
homem. (...)
Amo aquele que não guarda uma gota de espírito para si,
mas quer ser inteiramente o espírito de sua virtude: assim anda
ele como espírito sobre a ponte. (...).
Amo aquele cuja alma esbanja a si mesma, que não quer
gratidão e não devolve: pois ele sempre doa e não quer se
guardar.
Amo aquele que se envergonha quando o dado cai a seu
favor, e pergunta: sou um jogador desleal? – pois ele quer
perecer.
Amo aquele que lança à frente dos seus atos palavras de
ouro e sempre faz mais do que promete: pois quer o seu declínio.
(...)
216

Amo aquele cuja alma é profunda também no ferimento, e


que pode perecer de uma pequena vivência: assim passa de bom
grado sobre a ponte.
Amo aquele cuja alma transborda de cheia, de modo que
esquece a si próprio e todas as coisas estão nele: assim, todas as
coisas se tornam seu declínio.
Amo aquele de espírito livre e coração livre: assim, sua
cabeça não passa de entranhas de seu coração, mas seu coração
o impele ao declínio.
Amo aqueles que são como gotas pesadas, caindo uma a
uma da negra nuvem que paira sobre os homens: eles anunciam
a chegada do raio, e como arautos perecem.
Vede, eu sou um arauto do raio e uma pesada gota da
nuvem: mas este raio se chama super-homem.”374

Sim! O parangolé é a capa do super-homem nietzscheano!

374
NIETZSCHE, 2011, p. 16-17
217

Figura 57 – Devir-ponte. William Turner. Chuva, vapor e velocidade. 1844.

MARIA - Um devir-ponte para que nosso mundo possa ser a terra dos
que virão. Do povo por-vir. É o que busco como professora de arte.

CECÍLIA - Assim podem ser nossas pesquisas. Pesquisas-ponte.

PEDRO - Suas palavras nos levaram, realmente, para-lá, para uma


terceira margem. Me sinto a gota pesada caindo da nuvem negra.

MARIA - Devir-ponte! Isso sim, me parece algo realmente necessário. E


bonito.

CECÍLIA - E lhe perguntamos agora, como teriam sido erigidas estas duas
margens em nosso pensamento?
218

NIETZSCHE - Querem mesmo saber? Eu já as deixei para trás. Mas vamos


lá... O platonismo efetuou uma série de divisões. Uma delas, a “doutrina
dos dois mundos,” estabelecia a divisão entre o mundo inteligível e o
sensível, entre o mundo racional dos modelos e o das aparências, meras
ilusões. Ao primeiro mundo - o inteligível, povoado por ideias perfeitas,
poucos teriam acesso: os filósofos, principalmente.

CECÍLIA - Para os demais, nós, artistas, professores, pesquisadores,


trabalhadores, lavradores e outros “dores” mais, habitantes do mundo
das aparências, “estaria reservado um destino de falta, de apenas e
sempre tentar ser como o perfeito mundo das essências, tarefa em que
jamais teriam êxito, predestinados ao fracasso.”375 Nunca chegamos à
perfeição. Não é?

MARIA - Nem pensar! Não acreditamos em tais idealismos. Já sofremos


demais!

PEDRO - Dentro deste modelo, não seria aceita uma pesquisa com a arte.

CECÍLIA - Veremos.

NIETZSCHE - Não há que desanimar! Há que “guardar unida a força


própria, o entusiasmo próprio. (...). A liberdade incondicional frente a si
próprio.”376 Há que “Saber que cada homem é um mistério único.”377

MARIA - Sim! Uma pesquisa pode ainda ser única e manter um mistério.
Nunca conheceremos tudo.

CECÍLIA - Uma pesquisa com a arte poderia manter ainda um mistério?

NIETZSCHE - A arte? Certamente ela pode inventar escapatórias do


modelo platônico.

375 HENZ, 2007, p. 30


376 NIETZSCHE, 1974, p. 26
377 NIETZSCHE, 2000, p. 25
219

MARIA - Apesar deste modelo ter alicerçado boa parte do


desdobramento da cultura ocidental, fundando a perspectiva que elege
a ciência (razão) como o caminho para a verdade, e portanto, o único
instrumento de pesquisa válido, seguimos artistando.

NIETZSCHE - “Tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como
não existem verdades absolutas. - Portanto, o filosofar histórico é
doravante necessário, e com ele, a virtude da modéstia.”378

MARIA - Vejam! As palavras de Nietzsche estão abrindo pequenas


fendas, por onde começaram a ruir as duas margens de nosso riacho!

CECÍLIA - E as certezas do discurso platônico. Que força! Merece um


brinde.

PEDRO- Mas não temos taças, nem vinho.

CECÍLIA - Bem que podia aparecer por aqui Dionísio, trazendo vinho e
sua embriaguez.

NIETZSCHE - “A figura de Dionísio, seu delírio, sua loucura mística é a


irrupção da vida mesma, (...). A esta violência obscura, a este sol negro,
cruel, corresponde a figura de Apolo, a outra vertente: o sonho, que
toma com suavidade a paisagem dionisíaca. Musicaliza o que são gritos
e furor, torna audíveis as palavras proféticas e visíveis o que não se pode
mirar. (...) [Surge assim] a fusão da dupla aparição da embriaguez da vida
e da vida como sonho: a arte.”379 Uma fusão, que não se dá sem um
acirrado combate por campos intempestivos e imprevistos. A eterna
luta travada na experiência humana, um combate que implica estar
presente na atualidade, mas para suscitar um outro tempo, um tempo
imediato, o tempo próprio da arte. É por esta apreensão do mundo em
um só momento que o artista chega a conhecer.380

CECÍLIA - Me parece que as pesquisas tradicionais, de cunho


exclusivamente científico, são por demais apolíneas. A arte pode trazer

378 NIETZSCHE, 2005, p. 16.


379 CAUQUELIN, 2012, p. 35
380 NIETZSCHE, 2007, p. 44
220

o dionisíaco - seus abalos, seus gritos de vida e suas ações transgressoras


- para a pesquisa.

NIETZSCHE - A arte é a tarefa suprema de nossas vidas. 381

MARIA - Estou convencida disto.

NIETZSCHE - Sim! “A existência do mundo só se justifica como fenômeno


estético.”382 A arte é a própria vida na força de seu surgimento. É
importante se considerar o fenômeno da criação a partir de uma
perspectiva nômade, onde as tramas de permanência do mundo, dos
conceitos, das ideias, rasgam-se a partir da transitoriedade de todos os
fenômenos.

MARIA - Penso muito nisso. É a impermanência que propicia a


transformação e abre o espaço da liberdade.

NIETZSCHE - “Cada instante devora o precedente, cada nascimento é a


morte de incontáveis seres, gerar, viver e morrer são uma unidade.”383
Criação e destruição apresentam-se de forma justaposta. Para criar é
necessário, por assim dizer, também morrer, deixar morrer em nós os
hábitos, as identidades, os ressentimentos que nos roubam a
intensidade da vida.

PEDRO - Estou morto de fome.

NIETZSCHE - E como também Zaratustra é nômade, preciso partir. Já


amanheceu, é hora subir a montanha. “Zaratustra amadureceu, minha
hora chegou. Esta é a minha manhã, o meu dia raiou: sobe, então sobe,
ó grande meio-dia.”

MARIA – “Assim falou Zaratustra e deixou (...) [nossa canoa], ardente e


forte como o sol matinal que surge por trás das escuras montanhas.”384

381 NIETZSCHE, 2007, p. 23


382 NIETZSCHE, 2007, p. 16
383 NIETZSCHE, 2007, p. 45
384 NIETZSCHE, 2011, p. 311
221

CECÍLIA - Adeus, Zaratustra! Adeus Nietzsche! Conhecemos as terceiras


margens que criaste! Somos gratos! Ampliamos nosso entendimento
sobre a pesquisa. Nos incentivaste a sermos diferentes do homem que
pertence ao rebanho, que propõe métodos sempre seguros e bem
delimitados. Ele “não conhece o infinito do mar onde nenhum caminho
está traçado; (...) só sabe fazer a si perguntas às quais possa antecipar
uma resposta; não se deixa seduzir nem desviar de seu caminho; foge
dos labirintos porque lhe agradam os itinerários retos; (...) move-se
sempre nos limites do convencional e do permitido; só sabe ouvir o que
lhe já foi dito, ver o que já foi visto e pensar o que já se pensou; (...).”385

MARIA - Sim! Nos ensinaste a fazer da pesquisa uma dança: um


aprendizado que “baila com os pés, com os conceitos, com as
palavras,”386 que “faz emudecer o que é ruidoso, dá novos desejos às
almas rudes, ensina a delicadeza às mãos torpes e a dúvida às mãos
apressadas.”387

PEDRO - Até logo! Logo retornaremos! Afinal... o eterno retorno!

E assim voltamos para nossa ribanceira e ancoramos nossa canoa.


Precisávamos descansar. Na manhã seguinte, novas auroras nos
acordaram. O céu nasceu cheio de nuvens. As duas margens do rio
haviam crescido, estavam muito altas, uma barranqueira danada! Nos
sentíamos pequenos. Que barranqueira que nada. O nível das águas é
que havia baixado. Entrávamos, provavelmente, no sertão. Como
poderíamos prosseguir com nossa busca das terceiras margens?
Buscamos mais perguntas e mais respostas. Remamos. Alguém nos
acenou de longe.

385 LARROSA, 2009, p.38


386 NIETZSCHE, 1973, p. 84
387 LARROSA, 2009, p.38
222

Figura 58 – Devir-margem. Anselm Kiefer, Odi Navalis, 2004

MARIA - Quem será?

PEDRO - Talvez seja lá a outra terceira margem do rio.

CECÍLIA - Parece um fantasma, uma sombra, um simulacro...

PEDRO - Está falando tão alto! Ouço alguma coisa... Vamos chegar mais
perto para escutar.

MARIA - Escuta?

CECÍLIA - Parece o Deleuze.

PEDRO - Que improvável.

MARIA - A terceira margem é o lugar do improvável, onde tudo é


possível.
223

PEDRO - Será?

CECÍLIA - Deleuze é também um grande demolidor de dualismos.

MARIA - E o escuto falar de... dicotomias.

PEDRO - Será?

MARIA - Sim é ele! Já posso ouvir!

CECÍLIA - Não o vejo... Mas escuto! Que estranho... Ele está falando de
uma segunda divisão? .... o quê?... vamos chegar mais perto... sim, fala
de uma outra divisão lavrada pelo pensamento platônico.

DELEUZE - “Uma divisão mais profunda, mais secreta, (...). Não a


distinção do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos simulacros.”388

PEDRO - Duas outras margens a superar. Trouxemos a enxada?

CECÍLIA - Vamos cavar?

MARIA - Trouxe a poesia.

PEDRO - Sua picareta! Ahahaha!

DELEUZE - A divisão entre o puro e o impuro, o autêntico e o


inautêntico.389 Platão visava a firmar uma hierarquia, um conjunto de
graus: de um modelo ideal, em primeiro lugar; passando pelas cópias,
em segundo lugar; e indo até o infinito de uma degradação, até o
simulacro.

MARIA - Seria a pesquisa com a arte um simulacro? Degradação ou


liberdade?

388 DELEUZE, 2009, p. 2


389 DELEUZE, 2009, p. 260
224

Figura 59- Devir-simulacro. Orlan, VIsage, prótese no rosto. 2011.

PEDRO - Segundo Platão o simulacro é simplesmente um erro.

CECÍLIA - O simulacro, para a filosofia platônica, seria algo muito


perigoso em uma pesquisa! Ele se situa tão distante do modelo, que não
pode ser controlado. O simulacro deformaria, assim, os pontos de vista,
num devir ilimitado, num devir-louco, ausência de ordem e de verdade.
O pesquisador ficaria meio doido.

DELEUZE - “Podemos então definir melhor o conjunto da motivação


platônica: (...) Trata-se de assegurar o triunfo das cópias sobre os
simulacros, de recalcar os simulacros, de mantê-los encadeados no
225

fundo, de impedi-los de subir à superfície e de se ‘insinuar’ por toda


parte.”390

MARIA - E a arte então? Para Platão, mera techné, mera artesania,


maneiras de fazer. Até a poesia, na filosofia platônica, se enquadra, na
maior parte dos casos, na categoria de simulacro. Cópia, da cópia, da
cópia. Mais baixa que as aparências.

CECÍLIA - Em nome de “elevados ideais”, Platão expulsou os poetas de


sua Polis.

NIETZSCHE – Sim, que trágico.

MARIA - Ué! Onde está o Nietzsche? Não o vejo.

DELEUZE - De acordo com o modelo platônico, seríamos desviados da


verdade por forças externas ao pensamento, provenientes do corpo e
do sensível. “Para pensar bem, seria preciso, portanto, um método. Pelo
método conjuraríamos o erro, afastaríamos o efeito das forças
externas.”391

PEDRO - O método científico! Afogaríamos o simulacro!

CECÍLIA - Se o simulacro, para Platão, era o mau pretendente,


degenerado, pervertido - uma praga –, no seu enfoque, Deleuze, ele
assume qualidades favoráveis. Não é?

DELEUZE - Exatamente! “Se o modelo platônico é o Mesmo, reverter o


platonismo significa então fazer subir os simulacros.”392 “O puro devir, o
ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se furta à ação da
Ideia, na medida em que contesta ao mesmo tempo, tanto o modelo
como a cópia.”393 Por atualizar desvios no domínio do Ideal, efetivar
subversões, falsidades, maneiras de ser dessemelhantes, o simulacro é

390 DELEUZE, 2009, p. 262


391 DELEUZE, 1976, p 118.
392 DELEUZE, 2009, p. 267
393 DELEUZE, 2009, p. 2
226

também o fora. “Trata-se do falso como potência.”394 Ou seja, da


“potência do falso”, que desmonta as verdades fixas, engolindo todo
fundamento, provocando um desabamento libertador e alegre, que num
efeito dominó, derruba as várias séries de duas-margens. “Mesmo e o
Semelhante tornam-se simples ilusões.”395

CECÍLIA - O simulacro, como poder do falso, como terceira margem,


inverte o jogo, vira a mesa!

MARIA - Foi o que lemos há pouco no tópico sobre o Jagodzinski e o


Wallin, não é?

CECILÍA - Sim. A potência do falso abre brechas na realidade, nos


mostrando serem viáveis outras possibilidades de mundo.

MARIA - Afinal, o que nos leva a sentirmo-nos impotentes é o tom de


fixidez e verdade que conferimos às nossas vivências. Nós as
percebemos como reais e separadas de nós. Não nos damos conta de
que, de alguma forma, as estamos criando. Penso que a experiência da
vigília tem o mesmo tecido da dos sonhos.396 Como diz o Wu-wei taoísta,
o mundo, embora conserve os contornos nítidos e bem traçados de uma
visão, é como uma ilusão. O simulacro talvez nos leve a esta constatação,
nos reconectando com nossa potencialidade de criação.

PEDRO - Será? Percebo minhas experiências como bem concretas, nem


um pouco imaginárias... Como a minha dor nas costas, doendo neste
exato momento. Pés no chão. E é isso que torna minha ação efetiva.

CECÍLIA - Eu diria que “o sábio taoísta assume o sonho, não o deriva para
a esquizo,”397 para o engano. Percebe a fluidez da realidade.

PEDRO - Parece que o simulacro escreve um roteiro, mas um roteiro


apenas imaginado, estilhaçado, breve demais. Instala um olhar incerto

394 DELEUZE, 2009, p. 268


395 DELEUZE, 2009, p. 268
396 CHAGDUD, 2010
397 BARTHES, 2003, p. 167
227

que varre, de modo entrecortado, os fragmentos do mundo. Uma


pesquisa constituída pelo simulacro e pela arte, não se tornaria algo por
demais onírico?

CECÍLIA - O simulacro, em uma pesquisa, pode ser, talvez, um vetor de


criação, uma potência que “desprende-nos do passado e da realidade e
abre-nos para o futuro. À função do real orientada para o passado,
acrescenta a função do irreal igualmente positiva.”398

MARIA - Neste enfoque, as condições reais já não são determinantes.


Juntamente com a poesia e com a fabulação, o simulacro “coloca-se na
margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou
inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus
automatismos.”399

PEDRO - Esse fluir das águas me embala, me enrola, me nina. Ai, que
sono.

CECÍLIA - Ainda é cedo! E muitas águas rolaram entre a partida de Platão


e a chegada de Deleuze... A Era Clássica, a partir do Renascimento,
retoma, em parte, a filosofia platônica. Pois acredita no progresso como
caminho evolutivo rumo ao ideal perfeito.

PEDRO - Penso muito sobre isso. Haverá algum tipo de evolução?

CECÍLIA - Não estou certa. Talvez tudo já seja perfeito em sua


imperfeição. Talvez faça parte da perfeição viver o desafio de aprender
a lidar com o estado de coisas, o desejo de se transformar, de ser mais e
mais lúcido.

NIETZSCHE - De se superar a cada dia, de se chegar a ser o que se é.400

MARIA - Ué! Onde está o Nietzsche?

398 BACHELARD, 1993, p.18. (grifos do autor citado)


399 BACHELARD, 1993, p.18
400 NIETZSCHE, 2003
228

CECÍLIA - O pensamento clássico “tem o homem consciencioso como


mestre e dominador da natureza.”401 O homem passa a ocupar a posição
do fundamento, a medida de todas as coisas, o ponto de origem do
pensamento.

DELEUZE - É necessário reverter a concepção clássica do que seja o


pensamento. O pensamento, sob o olhar clássico, é referido a um sujeito
como unidade de faculdades orientadas em um modelo de recognição,
subentendendo um mundo pronto, de objetos pensáveis.402 Quando o
pensamento é recoberto por uma ilusão que o separa de sua própria
vitalidade e é impedido de escutar a vida, ele se torna seu opositor,
aprisiona a própria vida e, como consequência, impõe um modelo que
limita a criação. Para “liberar a vida lá onde ela é prisioneira,”403 seria
necessário atingir esta vitalidade do pensamento que possibilita a
expansão dos horizontes da cultura e dos modos de vida.

MARIA - Foi o que fizeram a arte moderna e a literatura quando


questionaram os padrões da arte acadêmica, de inspiração clássica, e
passaram a inventar mundos, a enfatizar um mundo próprio da poesia.

CECÍLIA - Não era mais possível se pensar o texto literário, a criação


artística, como espelhos do mundo, como representação, “como
referência a algo que lhe seria exterior. Era preciso criar outras
estratégias que permitissem conceber a relação entre a literatura e o
real.”404 Era preciso encontrar “o fora”.

PEDRO - Que estratégias seriam estas? Novas perguntas, novas


navegações.

MARIA - Seria o fora uma outra terceira margem?

CECÍLIA - Acredito que sim. A mais emblemática, talvez.

401 HEINZ, 2007, p. 33


402 DELEUZE, 2006, p.197
403 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.179
404 LEVY, 2011, p. 11.
229

MARIA - Podemos ir até lá.

PEDRO - Tanta gente acabou permanecendo na margem do fora. Nem


todos voltam de lá. É sempre arriscado.

MARIA - Mais arriscado do que sucumbirmos ao confinamento entre as


margens?

CECÍLIA - Acho que isso sim, seria fatal.

PEDRO - Então vamos? Em mais uma corredeira... Sem destino. Easy


Rider.

MARIA - Estou bem animada para mais esta visita, embora a margem do
fora seja, provavelmente, a mais violenta.

PEDRO - E você, encara mais esta?

CECÍLIA - Claro!

PEDRO - Mas já está escuro. Já é de noite.

CECÍLIA - Pois é nesta penumbra obscura que encontraremos o fora.

PEDRO - Que escuridão! Que horas são?

CECÍLIA - Para chegar ao escuro abrimos mão da percepção temporal.


No escuro sonhamos com os olhos abertos...

MARIA - Parece que as águas estão mais silenciosas.

PEDRO - Apesar do vento.

MARIA - Olha! Talvez seja alguém, veja! Ali deitado, talvez olhando a
noite.

CECÍLIA - Parece só um arbusto...


230

MARIA - Que lugar misterioso! Será real?

PEDRO - E o arbusto se levanta. E vem em nossa direção!

Figura 60- Devir-noite. Tim diederichsen, fotografia. 2011.

BLANCHOT - A palavra literária é fundadora de sua própria realidade.

PEDRO - Quem será agora?

CECÍLIA - Boa noite, Monsieur Blanchot! Bon soir. É bem escuro aqui,
onde vives... mas, sabes? Há também em mim uma parte que não
231

pertence ao dia. Onde soam cantos noturnos, sem fronteiras nem


arestas – serestas!

BLANCHOT - Não há eu, nem noite, apenas amplidão. Na escuridão


“somos furtados do mundo objetivo mas também de nós mesmos.”405
Tornamo-nos o vasto.

MARIA - Sinto-me incapaz de acolher essa amplidão, vasta e


desconhecida. Só com a arte a visito. Às vezes. Quando escrevo...

CECÍLIA - Escrever o desconhecido não seria conhecê-lo?

BLANCHOT - A arte se relaciona com o desconhecido mantendo-o


encoberto. A luz do dia o destruiria. Mas sentimos a presença do
desconhecido. Ele é feito presente na presença da arte, mas sempre
como desconhecido. Permanece intacto, intocado, não desvelado. “Não
é revelado, mas indicado.”406

CECÍLIA - O desconhecido não pertence à luz, mas a uma região estranha


a esta descoberta que se realiza na e pela luz.

PEDRO - Somos tão habituados à luz!

BLANCHOT - “Falar o desconhecido, acolhê-lo na fala mantendo-o


desconhecido, é precisamente não apreendê-lo, não compreendê-lo,
(...). Viver com o desconhecido diante de si (o que significa dizer
também: viver diante do desconhecido e diante de si como
desconhecido) é entrar nesta responsabilidade da fala que fala sem
exercer qualquer forma de poder, inclusive este poder que se realiza
quando olhamos, já que, olhando, mantemos sob nosso horizonte e em
nosso círculo de visão, aquilo e aquele que está diante de nós. O
desconhecido como desconhecido é este infinito, e a fala que o fala é a
fala de infinito.”407

405 CÉZANNE, P. apud DELEUZE & GUATARRI, 1992, p.220.


406 BLANCHOT, 2010, vol. 3, p.32.
407 BLANCHOT, 2010, vol. 3, p.35.
232

MARIA - Pois é, Monsieur Blanchot, mas nós somos pesquisadores


acadêmicos. Estamos buscando modos de se pesquisar com a arte...
BLANCHOT - Interessante.

CECÍLIA - Por isso viemos procurar o espaço do fora.

BLANCHOT - Bom... A linguagem poética é diferente da linguagem


comum: o objetivo da linguagem ordinária é o de remeter a algo que se
encontra no mundo, ela opera como um instrumento, subordinada aos
fins utilitários de comunicação; a linguagem poética instaura seu próprio
universo, essa é a sua essência - o poder de criar um mundo, de se
experimentar este fora, este Outro do mundo, o mundo desdobrado em
outras versões.408

Figura 61- Devir-outro-do-mundo. Paulo Gaiad. As paredes que me cercam.


Fotografia, acrílica e colagem s/ tela. 2003.

408 BLANCHOT, 1987


233

PEDRO - Alguns pensam não ser pertinente, em uma pesquisa, trabalhar


com a linguagem poética, imaginária, ficcional. Nos é requisitado
trabalharmos com o real.

BLANCHOT - O real e o imaginário não são temporalidades


completamente distintas, pois o real é sempre real e imaginário.

MARIA - Talvez, a imaginação, e seu correlativo social, o imaginário,


sejam como “um magma desestruturado e desestruturante que, ao
tornar impossíveis os recortes definidos e as identidades precisas,
permite que uma cultura olhe para si mesma com estranheza, (...).”409
O jogo permanente entre o imaginário e a ficção pode nos levar a
perceber as brechas de possibilidades existentes na realidade.

BLANCHOT - Podemos perceber o fora nas brechas da realidade, e mais,


o real está sempre permeado pelo espaço do fora. E mais ainda... A
linguagem ficcional, ao se referir a objetos, está justamente criando
estes objetos. A linguagem cria uma realidade, não representa algo já
dado. Ela é um desdobramento do espaço real, cria uma segunda
realidade, não como uma cópia, mas “como duplo que não se remete a
um real precedente.” 410

MARIA - Acho que não entendi.

BLANCHOT - Vou te dar um exemplo: “a palavra gato, quando evocada


pela literatura, não é apenas a não existência do gato, mas a não
existência que se tornou palavra.”411

MARIA - Sim, mas a linguagem poética...

BLANCHOT - A linguagem poética é essencialmente errante. “Ser errante


é não pertencer a lugar nenhum e pertencer a todos os lugares, é nos

409 GIRARDELLO, 1998, p. 30


410 BLANCHOT, 1987
411 LEVY, 2011, p. 21.
234

colocarmos fora de nós mesmos e nos tornarmos o que não somos e


sentirmos o que não sabemos.”412

PEDRO - Mas é sempre alguém que fala... Um autor. As palavras não


pairam no ar, solitárias...

BLANCHOT - “A fala poética não se opõe somente à linguagem ordinária,


mas também à linguagem do pensamento. (...). A fala poética deixa de
ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém,
mas parece que somente a fala ‘se fala’.”413

MARIA - O fora seria então uma terceira margem, um espaço de


liberdade e potencialidade puras?

BLANCHOT - Ele nos remete a uma outra qualidade de tempo, inaugura


uma experiência onde as coisas não são ainda, um momento que
precede o sujeito, o objeto, precede as palavras, habita seus intervalos -
“o vazio inicial de onde tudo começa.”414 “Onde cada coisa, absorvida
no vazio de seu reflexo, aproxima-se da consciência que se deixou
encher por uma plenitude anônima.”415

MARIA - Que beleza!

PEDRO - Mas este vazio anônimo em uma pesquisa não seria por demais
vago, fugidio, por demais solipsista, não habitando nenhuma terra em
comum com o leitor, com o outro, com o mundo?

CECÍLIA - Não creio que a arte, enquanto linguagem do fora, seja


solipsista, mas sim, singular. Embora não seja fugidia, constrói linhas de
fuga.

BLANCHOT - “A arte quer edificar, mas segundo ela própria. (...). Ela tem
certamente por objetivo algo de real, (...). Real: eficaz. Não um instante

412 BLANCHOT, 1987, p. 31


413 BLANCHOT, 1987, p. 34-35
414 LEVY, 2011. p.32-33
415 BLANCHOT, 1987, p. 264
235

de sonho, um puro sorriso interior, mas uma ação realizada que é ela
mesma atuante, que informa ou desinforma os outros, os atrai, os agita,
os comove, os impele a outras ações que, na maioria das vezes não
retornam à arte, mas pertencem ao curso do mundo, ajudam à história
e, assim, perdem-se talvez na história mas nela se reencontram,
finalmente, na liberdade convertida em obra concreta.”416

CECÍLIA - Parece que o fora é um estratagema, através do qual o senhor


questiona as formas tradicionalmente implicadas no conhecimento: o
sujeito, o objeto, a unidade, a identidade, a representação. O
desconhecido se mantém desconhecido, enquanto outro. Há um desejo
do outro, um outro que permanece sempre outro, nunca se converte ao
mesmo. Ao fazer ruir os fundamentos do pensamento clássico - o
homem e a representação - ao nos levar e este salto no espaço do fora,
o senhor está nos trazendo grandes aberturas!

BLANCHOT - Não apenas eu... Outros virão.

416 BLANCHOT, 1987, p. 212


236

Figura 62- Devir-manhã. Carmela Gross. Aurora Instalação luminosa, 2003.

MARIA - Olhem, o dia amanheceu! E trouxe essa luz neutra, preciosa,


rara, breve, “espécie de alegria clara, lugar sensível, tempo sustenido,
em dó maior.”417

PEDRO - O dia nasce para todos.

MARIA - O dia nasceu e senti como se a prisão que me confinava há


milhares de vidas tivesse se rompido. A divisão era meu carcereiro.
Enevoada por inúmeras passagens e paredes, minha mente havia se
dividido entre eu e os demais, gosto e não gosto, nascimento e
morte. “A única coisa a fazer era olhar para o carcereiro, ver seu
rosto. O carcereiro era a divisão. Quando ele se foi, o cárcere se
dissolveu.”418 Sou o mundo e o mundo é em mim.

417 BARTHES, 2003, p. 83.


418 NHAT HANH, apud SOGYAL, 1999, p. 85-86.
237

PEDRO - Não há dois, pois não há um.

MARIA - O dia nasceu em um olhar descentrado que instaura e anula, ao


mesmo tempo, oposições conceituais herdadas, como diferença e
identidade, passado e presente, interior e exterior, masculino e
feminino, cancelando suas fronteiras. “Forma é vazio, vazio é forma.
Forma não é outra coisa senão vazio, vazio não é outra coisa senão
forma. Todos os fenômenos são vacuidade; não têm características
definidas; não nascem, não cessam; não são puros, não são impuros, não
são incompletos e não são completos.”419

CECÍLIA - O dia vem e, dia adentro, continuo a possuir o segredo grande


da noite.

MARIA - Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar!420

PEDRO - Agora sou cavaleiro, laço firme, braço forte, no reino que não
tem rei.421

CECÍLIA - Reino que não tem rei... Me sinto ainda tão vulnerável! Como
podemos passar ao longo da corredeira dos poderes sem nos deixarmos
arrastar? Como realizar uma pesquisa que não reproduza mecanismos
do poder? O poder não tem forma, é difuso, habita corpos, instituições,
discursos, se ramifica, se espalha na tal “Microfísica do Poder.”422

FOUCAULT - O poder e o saber estão interligados: “Não há relação de


poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que
não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.”423

CECÍLIA - Até você habita a terceira margem! Que alegria poder lhe
escutar. Tantos anos lendo seus textos!

419 GYATSO, 2006. p. 61


420 Edu Lobo. Ponteio, 1967.
421 Geraldo Vandré e Theo de Barros. Disparada, 1966
422 FOUCAULT, 1979
423 FOUCAULT, 1987, p. 32
238

FOUCAULT - O que fazem por aqui?

CECÍLIA - Somos pesquisadores. Buscamos escapar do dualismo das


margens.

PEDRO - Sim, por isso continuamos perguntando.

MARIA - E procurando por terceiras margens...

FOUCAULT - Penso que é também o fora que insufla a possibilidade de


esquivar-se das clausuras do poder e do saber. A força desestruturante
do fora põe em questão os poderes e os saberes estabelecidos.424

DELEUZE- “Não seria a vida esta capacidade de resistir?”425 A força do


fora é a vida em sua potência máxima.

FOUCAULT - O conceito de autor, a que vocês se referiam há pouco, está


vinculado ao entendimento humanista da arte. Desestabilizá-lo seria
provocar um desmoronamento do homem enquanto centro: ao invés da
figura unificadora do sujeito, desponta a potência plural da palavra.426

CECÍLIA - Lembro do Barthes, quando ele fala da morte do autor.

FOUCAULT - “Quando se fala da morte do autor, fala-se da morte de um


sujeito dono da verdade, mas fala-se também da morte da ideia da (...)
[arte], como expressão de um eu interior.”427 O fora faz desmoronar a
unidade de eu, provocando uma conversão ao ele. Alcançar o ele é
instaurar a possibilidade do outro recriar a obra artística.

MARIA - Sim, e quando me encontro com ele, o outro, ele me demanda


uma posição ética. Como com meus alunos na escola. Sou professora de
arte. Pois veja... É uma alegria propiciar que os alunos desenvolvam seu
potencial de autoria, que se libertem das produções homogeneizadas,

424 FOUCAULT, 2015, p. 234


425 DELEUZE, 2005, p. 99.
426 FOUCAULT, 2015, p. 272
427 LEVY, 2011, p.39.
239

que produzam a sua voz! Essa é minha luta de muitos anos! Morte do
autor? Eu realmente me sinto desmoronar...

PEDRO - Talvez seja a hora de voltarmos para nossas margens!

CECÍLIA - Vamos continuar escutando?

MARIA - O que você me diz, Sr. Foucault? E depois do desmoronamento,


o que acontece?

FOUCAULT - Depois? Talvez percebamos que somos muito mais livres do


que pensávamos ser.428

MARIA - Sim! Mas como fazer o fora estar dentro de nossas pesquisas?
Ops! Falei besteira, ou um paradoxo?

Figura 63- Devir-exterior. Logon Zillmer. Looking for the sun. 2016. Foto-montagem.

428 FOUCAULT, 1987, p.77


240

FOUCAULT - Talvez a autoria possa ser entendida mais como um


processo de subjetivação do que como uma ação efetuada por uma
identidade fixa. Afinal, a criação acontece no encontro com o fora, não
é algo pessoal. Talvez, em uma pesquisa, o fora nos desate das forças
sedentárias que limitam a potência do pensamento, cavando intervalos,
desmembrando interiores, instaurando a possibilidade de um
pensamento nômade, sem prévias determinações.

MARIA - Afinal, os limites dependem, em parte, como eu dizia há pouco,


do teor de realidade que conferimos a eles.

CECÍLIA - Concordo. “O ‘teatro’ ordenado pelas forças sedentárias


depende diretamente da crença que temos nele. Para um nômade, este
é um mundo ao qual ele não se incorpora: suas leis, seus códigos, toda a
parafernália de uma cultura que o nômade não reconhece como sua - ou
pelo menos, não reconhece como algo natural e indiscutível. (...). Daí
porque um sedentário jamais pode entender o sentimento de ‘asco’ que
um nômade nutre pelas chamadas lutas pelo poder e pelo prestígio –
prêmios máximos do mundo sedentário, e motivo maior da prisão do
pensamento.”429

MARIA - Não estou buscando prestigio. Nem prêmios. Talvez, ser


escutada.

PEDRO - Mas como pesquisar sem códigos, sem regras, sem


representações?

MARIA - E a arte contemporânea é puro estranhamento, puro


nomadismo, nada sedentária. Será que ao pensarmos e pesquisarmos
com ela conseguiremos algum reconhecimento?

PEDRO - E eu não sei se percebo como funciona uma pesquisa sem uma
razão representativa. A ciência tem suas regras. Suas seguranças.

429 SHÖPKE, 2012, p. 174


241

DELEUZE - Talvez possamos nos debruçar sobre os conceitos de


singularidade e de generalidade. A singularidade se refere à qualidade
de ser único e insubstituível, diferença pura, e neste sentido, somos
todos singulares. A ciência, em geral, trabalha com a noção da
generalidade e de particular: objetos particulares podem ser trocados
ou substituídos, uma vez que se equivalem a outros do mesmo
gênero.430 Por exemplo, ao estudar as folhas do abacateiro, uma folha
pode ser substituída por outra, sem grande perda para quem a investiga.
“O caráter diferencial que distingue uma folha da outra não interessa à
ciência, mas apenas aquilo que uma folha tem de similar com todas as
outras.”431 A generalidade trabalha com semelhanças e equivalências,
com a ordem da representação.

MARIA - Entendi. Ficou bem clara a diferença. Na linguagem


poética, cada termo é insubstituível, único.

DELEUZE - A arte é a potência criadora máxima! A arte talvez seja


quem melhor lida com as singularidades. Um ato artístico não pode ser
substituído, pode apenas ser repetido, e o que a repetição repete é a
potência da vida. Ela se opõe a todas as formas de generalidade, pois
implica algo novo, uma tarefa de liberdade, um pensamento do futuro.
A repetição, como um refrão cantarolado, produz na obra poética, “um
movimento capaz de comover o espírito fora de toda representação.”432

CECÍLIA - Talvez uma pesquisa com a arte possa nos aproximar do


fora, criar essa comoção, se constituir como um sair de si, agenciando
encontros e mudanças. Isso realmente nos traz um entusiasmo para
pesquisar!

FOUCAULT - “Aproximar-se do fora significa sair do eu e de seus


abismos, libertar-se do eu e de seu medo da morte. A vida do indivíduo
dá lugar a uma vida impessoal.”433

430 DELEUZE, 2006, p. 21


431 SHÖPKE, 2012, p. 34-35
432 DELEUZE, 2006, p. 29
433 LEVY, 2011, p. 48
242

DELEUZE - “Não se escreve com as próprias lembranças, ao menos que


delas se faça a origem ou a destinação coletiva.”434 Ao tirar o foco do
sujeito e avançar à impessoalidade, a linguagem poética encontra a
coletividade e se lança na criação de um povo.

Figura 64- Devir-comoção. Guto Lacaz. Buenos Livros – Oxigênio. 2010, Parque em
Buenos Aires.

MARIA - Sinto-me agora, bem mais confiante em criar minha


pesquisa com um caráter poético, sou imensamente grata a vocês!

PEDRO - Vejam! Alguém nos chama lá da primeira margem!

CECÍLIA - Nosso povo! Vamos compartilhar com eles o que vimos!


Quem sabe, na próxima oportunidade, eles navegarão conosco, ou
melhor, quem sabe, inventarão suas navegações!

PEDRO - Sim, grato! Até a próxima!

434 DELEUZE, 1997 p. 14


243

E assim nos despedimos temporariamente destas terceiras


margens. Talvez não tenhamos de fato nos despedido, pois elas seguem
existindo em nós. Talvez tenhamos saído mais fortalecidos destas visitas,
talvez não. De qualquer forma elas que nos incentivaram a realizar
pesquisas que busquem libertar o pensamento da dualidade. Pesquisas-
arte que privilegiem a mobilidade, a modéstia, a paciência e a coragem
de se lançar no desconhecido. A coragem de não estruturar caminhos,
a priori, mas de ir dando consistência a eles, à medida que os criamos,
através de deslocamentos e experimentações.435 Pesquisas que
inventem terceiras margens, incitem desmoronamentos, desaparições e
aparições outras. Pesquisas que trabalhem a compreensão de que:

ao escrever e ao pensar, nos separamos de nós mesmos, de nossas


origens, de nossas heranças, morremos um pouco; nesse mesmo
instante, aparecemos, damos a ver, colocamos fugidia luz sobre algo que
nos preocupa, sobre algo que dói em nossa época, sobre algo que é belo
nestes tempos e paragens e talvez não esteja sendo suficientemente
dito. Aparecimento e desaparecimento, junto, ao mesmo tempo, dos
autores que escolhemos e de nós mesmos, (...).”436

Pesquisar nas terceiras margens pode ser cultivar vagalumes437,


provocar cintilações: movimentos de aparecer e desaparecer, de criar e
descriar, de desterritorializar e reterritorializar, movimentos onde as
diferentes falas das águas se constroem e se descontroem
incessantemente. Esse cultivar vagalumes, pode também ser o que
permite entrever outras possibilidades de mundo, pois como nos lembra
Didi-Huberman:

A cultura (...) tornou-se um instrumento da barbárie totalitária,


confinada no reino mercantil, (...). E o apocalipse continua sua marcha.
(...). Mas uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe
atribuir tão rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. (...).
Postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer
crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. É
agir como vencidos. (...). É não ver mais nada. É portanto não ver o
espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no

435 CORAZZA, 2007, p. 20


436 FISCHER, In VORRABER; EDELWEISS. 2005, p. 9
437 DIDI-HUBERMAN, 2011
244

improvável – das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de


tudo.438

Figura 65- Devir-vagalume. Yayoi Kusama. Sala de espelhos do infinito, cheia com o
brilho da vida. 2011.

Então, pesquisar nas terceiras margens pode ser ainda, um


fabular espaços em construção e em colapso, “que desbloqueiem as
contingências em favor de linhas de voo, transpassando dualismos, que

438 DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 42


245

são o inimigo do pensamento, em favor (...) de uma força de


excentricidade capaz de levar à descoberta da própria potência.”439

Tendo aprendido com o projeto blanchotiano, a substituir a


intimidade do sujeito pelo fora da linguagem; com o projeto
foucaultiano a mergulhar no espaço ficcional do exterior, resistindo à
dinastia do poder e do saber; e com o projeto deleuziano a abraçar o
fora como potência de vida; podemos, em nossas pesquisas, lançar
projéteis que deflagrem poeticamente o aparecimento de outras
margens e de um povo por vir. Pois, como dizia Nietzsche:

Deveis ser expulsos de todas as terras pátrias e avoengas! A terra de


vossos filhos é a que deveis amar: seja esse amor vossa nova nobreza –
a terra ainda não descoberta, no mais longínquo mar! É essa que
conclamo a vossas velas que busquem!440

Pesquisar nas terceiras margens pode ser, afinal, aprender a


brincar com as múltiplas relações e acontecimentos que tecem os
devires, já que nada é fixo ou fixável e que os sentidos são sempre mais
fluidos que os significados. Talvez, assim, a potência do fora visite nossas
paisagens e nossas palavras, tome voz e avance, nos levando a escutar e
acolher sua dimensão infinita, e talvez, assim, a vida desponte: simples,
intensa, plena e exuberante, na singularidade única de cada momento,
para brincar conosco.

A terceira margem é, pois, um desfundamento.


E fundar é também afundar...

Mas... Até que ponto um pesquisador é “capaz de suportar o


‘desfundamento’ de seu próprio pensamento?”441

439 GARCIA, 2002, p. 69


440 NIETZSCHE, 2011, p. 194
441 ZOURABICHVILI, 2016, p. 92
246

2.4. Pororocas: intensidades e subjetivação – vida, como te quero!

O outro irrompe, e nessa irrupção nossa mesmidade se vê


desamparada, destituída de sua corporalidade homogênea, de seu
egoísmo; e, ainda que busque desesperadamente as máscaras com as
que inventou a si mesma e com as que inventou o outro, o
acontecimento da irrupção deixa esse corpo em carne viva, o faz
humano, arremessa os fragmentos de sua identidade. (...)
Assim como se pudéssemos aumentar a magnitude da vida. Trata-se
de olhar-nos nos olhos, não de conhecer-nos. Trata-se de dar-nos
palavras, não de negociar o espanto, trata-se de cruzar os olhos.
Carlos Skliar

Figura 66- Devir-onda. Katsushika Hakusai, Choshi na província da Soshu. Xilo


gravura, 1833.
247

Pororoca. (Do tupi = estrondar) Macaréu de alguns metros de altura, de


grande efeito destruidor e forte estrondo, que ocorre próximo à foz do
Amazonas. (Dicionário Aurélio)

Lua cheia apontou, pororoca roncou


Vem que vem vindo como uma onda inchada
rolando e embolando
com a água aos tombos
Vagalhões avançam pelas margens espantadas
Um pedaço de mar mudou de lugar
Somem-se ilhas menores
debaixo da onda bojuda
arrasando a vegetação
Fica para trás o mangue
aparando o céu com braços levantados
Florestinhas se somem
A água comovida abraça-se com o mato
Estalam árvores quebradas de tripa de fora
Pororoca traz de volta a terra emigrante
Levada pela correnteza.442

442
BOPP, 2009
248

Se já aproximamos as nascentes ao devir-criança, quem sabe


passamos aproximar as pororocas a um devir-adolescente... Um devir
composto pelas forças de eros, pelo encontro entre corpos,
intensidades, processos de subjetivações. Que achas? Me acompanhas?

Não sabemos com que mundo os atuais bebês, crianças e


adolescentes irão se encontrar. O futuro deles é estrondosamente
incerto, inseguro, temerário. (não resisto... fora Temer!). O nosso
também... Que educação e que pesquisa podemos construir para
minimamente viabilizar-lhes alguma oportunidade de lidar com estas
dubiedades? Que encontros podemos promover? Em que pororocas os
estamos lançando, em que outras os podemos lançar? Pororocas mais
inteligentes e solidárias? Que processos de subjetivação estamos
desencadeando como possível trampolim para suas futuras vidas, que
minimamente permitam a sobrevivência da vida humana neste nosso
ainda maravilhoso planeta? Estas questões, é claro, nos interpelam.
Nós, adultos, ou quase adultos, ou talvez nunca maduros, repetindo uma
adolescência sem fim. Vivemos tempos de pororocas um tanto
estúpidas... Mas, adiante! Assim fluem as águas.

As pororocas são intensidades que se chocam. É nas pororocas


que as águas se encontram e dançam com seus parangolés de espuma.
Esse encontro faz gingar o corpo de água das ondas, faz estremecer sua
voz, sua fala explode então em estrondos e admite “agora estas águas
não são minhas nem suas!” São puro movimento, fluxos que se chocam
e se espalham. E... já não somos os mesmos. É só neste despejo que é
possível criar.

Para Deleuze, a criação se dá a partir de um encontro, criando


uma zona de indiscernibilidade:

Os seres aproximados por encontros não se imitam, não se assemelham,


não se identificam, apenas ingressam em blocos de devir nos quais
perdem sua identidade e sua realidade em favor da realidade do devir,
que traça uma linha de fuga do homem como padrão majoritário. Todo
devir é uma linha de fuga de um enquadramento antropológico, toda
249

criação é uma fuga dos humanos do homem e dos sistemas de poder que
este padrão pressupõe.443

Um devir-pororoca.... Um encontro, o acaso de uma incitação


fortuita, contingente, que inicialmente sacode o pensamento,
ameaçando a estabilidade e a coerência na qual ele até então se
mantinha. O encontro se dá, pois, no acontecimento e implica a
surpresa dos devires. O acontecimento é algo incorpóreo que atravessa
a experiência, uma força liberta da tutela de um sujeito. É só no
encontro que um corpo se define e ganha sua potência. Isoladamente
um corpo tem pouco a dizer. “É na intersecção das linhas dos
movimentos e dos afectos que ficamos sabendo daquilo que um corpo é
capaz. Sua capacidade e não sua essência é o que importa.”444 Um devir-
adolescente: afetos, encontros, intensidades - pura experimentação!

Os corpos estão constantemente em relação uns com os outros,


se afetando, se tocando mutuamente, numa série de composições e
decomposições. Para Baruch Espinosa445, um corpo se compõe com
outro corpo, quando aumenta sua potência de agir, e se decompõe com
outro, quando a diminui. Os tipos de encontro determinam a qualidade
de existência e a potência - seu poder de ação – que é a própria essência
dos seres. Os bons encontros aumentam nossa potência, e a liberdade
seria a aptidão de provocar tais encontros. Este filósofo propõe uma
ética da alegria, a produção de encontros alegres, fortalecendo nossa
potência de agir, abandonando as paixões tristes: o rancor, o
ressentimento, a inveja, que envenenam nossa alma, roubam nosso
poder de ação.

Então, como chegar a ser ativo?

A alegria pode ser um ponto de partida, funcionando como uma


mola propulsora na direção de noções comuns entre o corpo que nos
afeta e o nosso. O caminho seria, então, selecionar e organizar os bons
encontros, que possibilitam paixões alegres, que convém com ideias

443 ABREU, 2010 p. 298


444 SILVA, 2002, p. 54
445 ESPINOSA, 1983
250

adequadas. É o encontro que compõe um agenciamento. O


agenciamento é justamente isso, o que acontece aos corpos quando eles
se encontram, sob o aspecto dos movimentos e dos afectos gerados
mutuamente.

Como propiciar bons e alegres encontros em uma pesquisa?


Como pode a pesquisa ser efetuada como encontro, composição,
agenciamento? Que perguntas, que problemas podem ser levantados,
que trajetórias podem ser elaboradas, para aumentar a potência de vida,
a capacidade de agir, a vontade de amar?

Não se trata mais de determinar o que um sujeito pesquisador


pode realizar em um campo considerado como objeto, nem quais os
saberes que ele pode construir:

O que interessa agora é saber quais composições são feitas e quais


composições podem ser feitas e se elas são boas ou más do ponto de
vista da potência de agir. Passar da formação para a composição, do
desenvolvimento para a combinação, da organização para o
agenciamento. (...). Mas, atenção, não se trata meramente de uma
operação do pensamento para fins de análise. Não se pode confundir o
traçado de um plano de imanência com uma pesquisa de análise social.
No traçado de um plano de imanência, o pensamento não se separa da
vida. Aqui, pensar e ser são uma coisa só.446

Uma metodologia de pesquisa (e de vida): estar à altura do


próprio pensamento, da própria palavra, “estar à altura do que nos
acontece”. A pesquisa pode ser um campo de encontro. Ela anseia e
busca pelo outro. Ela é a tessitura de uma rede porosa, onde se dão
pororocas, contaminações e trocas. Encontros entre multiplicidades
transformacionais, entre movimentos fragmentários que possibilitam
uma ação política. A política, neste sentido “postula uma
heterogeneidade e admite um pensamento estranho à sua própria
coerência, por isto é infinita, caso contrário não seria política.”447 Um
encontro não é uma fusão, ele requer uma arte das distâncias: nem

446 SILVA, 2002, p. 54-56


447 GARCIA, 2002, p. 75
251

perto, nem longe demais, é, ao mesmo tempo, intenso e polido... Guarda


uma atenção, um respeito, um cuidado...

A pesquisa é também “porto de passagem, ponto de


convergência, bólido de cruzamento,”448 pororoca.

O seu devir é um lugar sempre vazio a ser saturado, mas nunca


preenchido por nenhuma totalidade, é margem adiada. (...) Aberta às
interferências possíveis: as interferências de método de cada disciplina,
bem como as interferências não localizáveis, quando o campo confronta-
se com o caos. [Como a pororoca,] sua mais precisa possibilidade
relaciona-se com esta força difusa, distributiva, disseminante.449

A pororoca instala uma espécie de caos... Para atravessar este


caos, a pesquisa cria linhas, traça um plano, configura um certo local de
pouso, onde se possa viver, onde se possa respirar, pensar e criar.
Configura fluxos que exprimem o curso das águas, um saber que não
chega ainda a ser um conhecimento, pois envolve uma ação num campo
de forças ainda desconhecidas. “O que caracteriza uma ação não é o
acúmulo de saber, mas aquilo que se aprende junto ao funcionamento
de um território. (...) O que vale, são as potências que ela traz para a
criação.”450

Pesquisar com a arte, como já nos sugeriram Jagodzinski e Wallin,


é erigir um novo evento, um encontro poético entre as experiências,
entre as pessoas, entre novos possíveis. É erguer um sobrevoo em torno
do vivenciado, do plano de imanência,451 cortando-o e recortando-o de
uma maneira singular e estética, de modo a convocar um movimento
infinito ou um movimento do infinito:

O movimento do infinito não remete a coordenadas espaço-temporais,


que definiriam as posições sucessivas de um móvel, e os pontos fixos de
referência, com relação aos quais estas variam. (...). O movimento tomou
tudo e (...) o que está em movimento é o próprio horizonte: o horizonte

448 GARCIA, 2002, p. 75


449 GARCIA, 2002, p. 75
450 ZORDAN, 2007, p. 40
451 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 59
252

relativo que se distancia quando o sujeito avança, mas o horizonte


absoluto, nós estamos nele sempre e já, no plano de imanência.452

Figura 67 - Devir-infinito. Piero Manzoni, Linha de comprimento infinito, 1960.

452DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 53-54. O que Deleuze e Guattari denominam plano


de imanência é um campo pré-conceitual e implica uma experimentação tateante,
pouco racional ou razoável, próxima à ordem do sonho. “É quando a imanência não
é mais imanente a outra coisa é que se pode falar em imanência.” A imanência é
uma não-transcendência, um empirismo radical. O plano de imanência não é
imanente ao sujeito, mas ao acontecimento.
253

“O plano de imanência é como um corte no caos, e age como um


crivo.” O caos não é um estado inerte, uma confusão manifestando-se
ao acaso. O caos simplesmente “desfaz no infinito toda consistência”453.
Criamos linhas de consistência para enfrentar o caos. E o que uma
pesquisa artística pode fazer é criar uma linha de consistência, sem
perder o infinito. E o que ela produz não seria, exatamente, um
conhecimento. O conhecimento, nesta concepção, está ligado a um
exercício de poder. Poder sobre um território. “De certo modo, conhecer
é codificar, traduzir a sensação vivida pelo corpo no embate com as
forças exteriores que dão a pensar. (...) Mas não há código que
represente a diferença. É preciso produzir outras imagens, diferentes
formas de ação para lidar com estas forças. (...).”454

Também a arte conflagra lutas: a luta com o caos e a luta contra


a apatia e seus clichês. Para se escapar dos clichês há que se ter alguma
relação com o caos. Há que se entrar na pororoca e enfrentar o seu
tumulto. É necessário perfurar os pensamentos, as percepções e as
sensações para respirar um pouco de ar, um pouco do caos. É isso que
faz a fabulação criadora. O pesquisador artista, em sua fabulação
estética, transborda as passagens do vivido. Pois ele encontrou na vida
algo muito grande, e também algo por demais intolerável. E esta luta da
vida com o que a ameaça, faz estourar as percepções vividas.455 Sua obra
investigativa “se furta às determinações do vivido, aos enquadramentos
da memória, aos fantasmas pessoais, às percepções, aos sentimentos
padronizados e às determinações psicossociais.”456 No seu processo de
fabulação o pesquisador atravessa diferentes devires e sensações, que o
levam a efetuar uma composição. E sua obra, a pesquisa, quando
“pronta”, poderá capturar o seu eventual leitor, arrastando-o em sua
pororoca, contaminando-o com sua intensidade estética de vida e
movimento. Não tanto “como pessoa, mas como (...) germinação de um
povo em devir. 457

453 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 54


454 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 60
455 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 222
456 ABREU, in HADDOCK-LOBO, 2010, p. 311
457 ABREU, in HADDOCK-LOBO, 2010, p. 311
254

A pororoca promove um encontro intensivo e se efetua entre os


elementos, não mais entendidos como entidades separadas numa
relação dialógica, mas como a criação de um campo de afectos, do qual
o imprevisível emerge. A pororoca é esse estado de ebulição e desloca
qualquer posição subjetiva.

A pesquisa passa por momentos pororoca, onde tomamos um


“caldo” do movimento que nos atravessa, perdemos o ar, o norte e todo
ponto de vista. As perguntas se cruzam, as palavras de embaralham, os
desejos se confundem, já não sabemos como prosseguir. Nos
abandonamos, então, a essas forças da vida (que outro jeito?) e ela
então, a vida, cheia de inteligência e perspicácia, com suas sábias mãos
de água, nos leva de volta à superfície. Nossos olhos, se abertos e
atentos, deparam-se então, lúcidos, com a paisagem, agora mais vívida
e generosa, e o rio da pesquisa, prossegue. Segue fluindo.

Na perspectiva deleuziana não existe criação sem uma ativação


do pensamento que emerge da permeabilidade daquele que cria com a
própria vida. Ter uma ideia é mergulhar nas rachaduras do eu e
encontrar a vida com toda sorte de movimentos irreconciliáveis com os
sujeitos formados. A criação não é, portanto, um ato individual, não tem
como ponto de partida o sujeito, mas, repetimos, o acontecimento. 458

O sujeito surge de saída dividido, ele é um vai e vem, um


sobrevoo459, um ponto de vista diferenciando-se de um outro, um
contágio dos heterogêneos. Existimos entre diferentes tempos, sempre
no meio: “nascemos, consistimos ou devimos sensíveis tão somente no
meio. (...). O hábito constituinte é passagem, transição.”460

458 DELEUZE, 2009


459 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 269
460 ZOURABICHVILI, 2016, p. 130
255

Figura 68 – Devir-sujeito. Giuseppe Arcinboldo, Outono. 1573

O sujeito é, para Deleuze e Guattari, um “habitus, um hábito,


apenas um hábito, o hábito de dizer Eu...”461 “Quem é Eu? é sempre uma
terceira pessoa.”462 Eu sou um hábito contemplativo e também a
multiplicidade de hábitos que contraio dos meios e lugares que habito.
“Minhas ações e reações supõem a prévia contração de um meio, que
portanto sou.”463

461 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 66


462 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 87
463 ZOURABICHVILI, 2016, p.101
256

Para que eu conceba uma própria imagem, preciso me dobrar


sobre mim mesmo, e mirar estes mil hábitos que me compõem, as
múltiplas repetições, ações e contemplações das quais procedo. “Só
experimentando ao que sou sensível, pelo que sou afetado é que
aprendo minhas próprias singularidades.”464

Não há um sujeito prévio, mas processos de subjetivação,


produções de modos de existência singulares. A subjetivação é um
“modo intensivo” e não um sujeito pessoal. É um fazer-se diferente,
definir condições para que se possa problematizar o que se é, e o mundo
em que se vive. Produzir um modo de existência. A subjetivação é uma
relação de força consigo, uma “dobra” sobre si. Trata-se de inventar
modos de existência capazes de resistir aos poderes instituídos,465 e de
fazer disto uma ética - a de se constituir como sujeito ético. Não há um
sujeito prévio, e justamente por isso se faz imprescindível a dobra, a
produção de uma subjetividade. A subjetivação não é uma função do
poder ou do saber, mas “uma operação artista”.

Foi Gottfried Wilhelm Leibniz, que, no século XVII, criou o


conceito de dobra. Para Leibniz “A divisão do contínuo deve ser
considerada não como a da areia em grãos, mas como a de uma folha de
papel ou uma túnica em dobras, de tal modo que pode haver nela uma
infinidade de dobras.”466 Uma matéria elástica que se expande e se
comprime, como uma mola. Eu diria, que pulsa.

Nesta concepção há uma afinidade da matéria com a vida. O


mundo e o sujeito também são dobras, onde o externo e o interno, o
aberto o fechado, se desdobram. “É preciso colocar o mundo no sujeito,
a fim de que o sujeito seja para o mundo.”467 Mundo e sujeito se dobram
ao infinito.

Quando as forças ficam endurecidas numa só dobra que jamais se


desfaz (quando não acontecem pororocas), elas permanecem isoladas,

464 ZOURABICHVILI, 2016, p. 127


465 DELEUZE, 1992, p. 120.
466 ESPINOSA, Apud DELEUZE, 2002, p. 18
467 DELEUZE, 2012, p. 51
257

privadas de distâncias e perspectivas. Quando a singularidade é


apartada de seus prolongamentos e “a força está separada do que ela
pode, ela perde sua mobilidade, sua faculdade de passar pelos outros
pontos de vista e de ser por eles afetada, em suma, perde sua aptidão
para o devir.”468 Ela pode então, em sua rigidez, criar um “fascismo de
dentro, um fascismo que faz o corpo desejar o mesmo poder que o
subjuga e submete.”469

Como ficam, então, nossas pesquisas, quando endurecidas e


fixadas em uma única dobra, a estabelecida? Em uma única perspectiva,
a verdadeira? Em um único olhar, o meu? Em um único caminho, a
ciência? Quando elas se deixam capturar pelos discursos homogêneos e
suas relações de força e poder?

A subjetivação só se dá, num devir-adolescente, que se desdobra


em novas individuações, na desestabilização provocada pela disjunção
de diferentes pontos de vista, passando de um ponto de vista a outro.
Um ponto de vista isolado não é sensível, podendo, assim, ser
contaminado pelos desígnios do poder.

Foucault busca, em seus últimos escritos,470 maneiras de


ultrapassar as relações de poder e força. Ele aposta na possibilidade de
se criar uma prática de si, uma dobra, uma relação de força consigo, que
permita se escapar ao poder. São procedimentos lúdicos, éticos e
estéticos que produzem um cuidado de si e do mundo e a existência
como obra de arte. Pois uma existência que responda “à dimensão ética
das coisas precisa também ser poética, capaz de inventar e de brincar,
(...), precisa, por fim, inventar um projeto social alternativo.”471 Para
ultrapassarmos os limites do que somos, os limites do nosso tempo,
seria preciso dobrar e desdobrar, poeticamente, a realidade, para assim:

468 ZOURABICHVILI, 2016, p. 128


469 KOHAN, 2007, p. 50
470 FOUCAULT, A Hermenêutica do Sujeito (2014), História da Sexualidade (2014), A

Coragem da Verdade (2011) e O Governo de si e dos outros (2013)


471 GIRARDELLO, 1998, p. 28, a partir de Richard Kearney
258

Concebermos o que ainda não é, inventarmos histórias alternativas às


que vemos e vivemos, ao mesmo tempo em que esfumaçamos miragens
– como a capacidade de vermos através do presente mais do que nos é
dado à percepção – recombinando o que existe na liberdade da arte,
(...).472

Figura 69 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC, junho de 2016.

Para fazermos da existência uma obra de arte, interpelamos o


destino que nos é dado, instaurando uma “ontologia do presente”473,
uma arte de viver, de onde possa emergir algo novo. O cuidado de si,
para Foucault, “implica uma certa maneira de estar atento ao que se
pensa e ao que se passa no pensamento, ao mesmo tempo, exercício e
meditação.”474 É, sobretudo, uma questão de um projeto, a capacidade

472 GIRARDELLO, 1998, p. 31


473 FOUCAULT, 2010
474 FOUCAULT, 2010, p. 11-12
259

de receber sentido, produzir sentido, dar sentido, fazer com que seja,
cada vez, um sentido novo.475

E se a formação acadêmica se afastasse um pouco de posturas


normatizadoras, reprodutoras dos procedimentos da sociedade de
controle; se afastasse de posturas produtivistas, reprodutoras dos
propósitos do capitalismo, e, objetivasse e efetivasse cuidados de si e do
mundo, trans-formações dos pesquisadores? Isso incentivaria que
nossas pesquisas instaurassem encontros, movimentos de cuidado de si
e do mundo, poéticas da existência, de dignificação da vida e “de
resistência política a tudo que a destitui do mundo”?476

PEDRO - Pelo que percebo, há muitas ações na Academia que efetuam


uma trans-formação. Nem todas, é claro.

CECÍLIA - Me parece uma tarefa urgente e indispensável para chegarmos


a ser o que somos.

PEDRO - Isso, não implicaria em um individualismo, algo contraditório


com tudo que falamos até agora?

CECÍLIA - Muito pelo contrário. Esta famosa frase de Nietzsche “Chega a


ser o que és,”477 não pertence “à lógica indentitária do
autodescobrimento, do autoconhecimento ou da auto-realização, mas à
lógica desidentificadora da invenção. Uma invenção que não se pensa a
partir da perspectiva da liberdade criadora do gênio, da soberania do
sujeito capaz de criar-se a si próprio, mas a partir da perspectiva da
experiência, ou melhor, da experimentação.”478

MARIA - Muitas pesquisas têm priorizado questões relativas a um saber


instrumental validado pela ciência, por vezes voltado para o mercado de

475 CASTORIADIS, in PENA-VEGA & NASCIMENTO.1999. p. 35.


476 PAGNI, 2014, p. 174
477 NIETZSCHE, 2003
478 LARROSA, 2009, p. 57
260

trabalho. Parece que estão sendo desmerecidas, nos processos


investigativos, as potencialidades de cuidado e as estético-expressivas,
geradoras de processos de subjetivação. As práticas de cuidado de si,
voltadas para aprimoramento e invenção de si mesmo, estão,
infelizmente, bastante esquecidas na contemporaneidade.

PEDRO - Concordo! Lembrei agora que o próprio Sócrates dizia que sua
atividade consistia em incitar os outros a ocuparem-se de si mesmos.
Para ele, o cuidado de si constitui um princípio de agitação, movimento
e liberdade, de permanente inquietude no curso da existência.

CECÍLIA - Sim. Em Nietzsche também encontramos a imagem de uma


trans-formação libertária, a qual poderíamos arriscar nomear de uma
formação dionisíaca.479

PEDRO - Algo tão óbvio e tão difícil de implantar no contexto


institucional, tanto escolar quanto acadêmico!

MARIA - Será possível, na academia, esta trans-formação dionisíaca?

CECÍLIA - Possível e necessária... Era o que Nietzsche defendia. O termo


educador [ou pesquisador], em sua concepção, se refere a alguém que
questiona seu tempo, um transgressor. “Longe, certamente, da figura do
professor instalado, missioneiro da repetição, papagaio de mestres,
identificado institucionalmente, domesticador, pedagogo, agente do
mercado do conhecimento e alpinista da carreira. (...) O educador
[pesquisador] aqui possui um sentido trágico e festivo do criador, que
ensina, a exemplo do último Zaratustra, que a educação é, sobretudo,
um processo de educar a si mesmo.”480

MARIA - Uma experimentação realizada por um sujeito em contínua


“transformação de si, como o que está sempre por vir.”481 Um processo
que possibilitaria ao pesquisador percorrer linhas de fuga e alegrias
ainda desconhecidas.

479 GARCIA, 2012, p. 38


480 GARCIA, 2012, p. 38
481 LARROSA, 2009, p. 58
261

Figura 70 – Devir–alegre. Tim Diederichsen, Linha de fuga ou fuga da linha? 2011

PEDRO - Precisemos de mudanças mais drásticas! Vivemos em um


mundo sob risco de desaparecimento, em uma crise ambiental aguda,
somos uma humanidade beirando sua autodestruição, lançando-se
numa espécie de abismo, num espaço desconhecido.

CECÍLIA - Mas é esse espaço desconhecido, não contaminado com os


poderes e suas hostilidades, que pode vir a ser o terreno da
hospitalidade e do compartilhamento, como supunha Derrida.482

482 DERRIDA, 2004.


262

MARIA - Afinal, se queremos um mundo novo, a pesquisa não pode ser


um processo antecipável, que se desenvolve em uma continuidade com
o que já somos, mas a possibilidade de uma descontinuidade, de que
algo que não sabemos e que não somos, inaugure um novo início.

CECÍLIA - Pesquisar “tem a ver com o talvez de uma vida que nunca
poderemos possuir, com o talvez de um tempo no qual nunca
poderemos permanecer, com o talvez de uma palavra que não
compreenderemos, com o talvez de um pensamento que nunca
poderemos pensar, com o talvez de um homem que não será um de nós.
Mas que, ao mesmo tempo, para que sua possibilidade surja, talvez, do
interior do impossível, precisam de nossa vida, de nosso tempo, de
nossas palavras, de nossos pensamentos e de nossa humanidade.”483

PEDRO - Olha! Nem vimos o tempo passar, nossa aula já começou!


Estamos atrasados!

Talvez possamos, em nossas pesquisas, criar pororocas


alvissareiras: estremecimentos que desloquem nossas águas
estagnadas; alvoroços que acolham este devir-adolescente, sua ânsia de
outros mundos e sua abertura para o que vem. Talvez uma pesquisa
possa ser mesmo um constante devir e siga sempre devindo outra,
questionando as imagens que construímos, as palavras que escrevemos,
as ações que delineamos. Talvez nós sintamos, em certos momentos,
este devir, esta pororoca, como um extravio, um engano, uma derrota.
Sim, a força deslocadora da pororoca eventualmente nos amedronta,
nos ameaça, nos deixa inseguros. E então, talvez, nós a evitemos.

Corajosos, porém, entramos na pororoca. Deixamo-nos afetar.


Pois como nos sugere Derrida: “Saber deixar (...) é uma das coisas mais
belas, mais arriscadas, mais necessárias que conheço.”484 Deixamos...
Entramos na pororoca e por alguns segundos perdemos o chão em meio

483 LARROSA, 2010, p. 289

484 DERRIDA, 2004, p. 13


263

ao seu reboliço de forças. Parece que nada vai sobrar... que estamos
perdidos em seu movimento caótico. Mas... em seguida, logo em
seguida, emergimos em novas possibilidades de fluência, novos
sentidos, novos cenários.

Figura 71 – Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC, 2016.

E, se a imagem do eu, que contemplávamos nas superfícies


tranquilas dos lagos, se desmancha nas águas agitadas da pororoca, é
que ela não era mais que uma miragem. “A imagem de um ‘eu’ está no
passado, quando nos identificamos com o que já não somos. Mais do
que ‘eu sou’ diríamos ‘eu era’ ou ‘o eu é um outro’.”485 Pois o fato de
sermos um “sujeito, é efeito e não causa, resíduo e não origem, e a ilusão

485 DELEUZE, 2009, p. 317


264

começa quando ele é tido justamente como origem.”486 E afinal, é


justamente este rasgo na imagem do eu, que nos torna capazes de
devirmos outros, nos torna capazes de cuidado e amor:

O amor está no fundo dos corpos, mas também nesta superfície


incorporal que o faz surgir. (...) Como traçar este estreito caminho (...),
que consiste em ser digno no que acontece, em retirar algo de alegre e
amoroso do que acontece (...)? Substituirei o meu desejo abjeto de ser
amado por uma potência de amar: (...) uma libertação do puro
acontecimento que me une àqueles que amo, e que não me esperam tal
como eu não os espero, uma vez que só o acontecimento nos espera.
Fazer de um acontecimento, por pequeno que seja, a coisa mais delicada
do mundo.487

Figura 72 – Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC, 2016.

486 ZOURABICHVILI, 2016, p. 135


487 DELEUZE; PARNET, 2004, p. 84-85
265

2.5. O mar vai virar sertão? Pesquisa-parangolé e antropofagia

É o seu aspecto eminentemente humano o que torna a


arte tão estimulante para o pensamento.
Luciano Vinhosa

A arte mantém-se fiel aos homens, unicamente pela sua


inumanidade para com eles. Theodor Adorno

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos


verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos. (...). A
poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas da
saudade universitária. Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os
homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas.
(...). Alegria dos que não sabem e descobrem. Ágil o teatro, filho do
saltimbanco. Ágil e ilógico. Ágil o romance, nascido da invenção. Ágil
a poesia. A poesia Pau-Brasil, ágil e cândida. Como uma criança.
Uma única luta - a luta pelo caminho. (...).” (Oswald de Andrade,
Correio da Manhã, 18 de março de 1924.)488

488
ANDRADE, Manifesto Pau-Brasil, in TELES, 1976
266

Figura 73 - Devir-selvagem. Tarsila do Amaral. O batizado de Macunaíma, 1956.

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.


Filosoficamente. (...). Tupi, or not tupi that is the question. (...). Só
me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
(...). O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre
o mundo interior e o mundo exterior. (...). Filhos do sol, encontrados
e amados ferozmente, (...), pelos imigrados, pelos traficados e pelos
touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos
gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. (...). Contra todos os
importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida.
(...). Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas
nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. (...). Tínhamos
a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia.
Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. (...).
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi o Carnaval. O índio vestido
de senador do Império. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio
de bons sentimentos portugueses. Já tínhamos o comunismo. Já
267

tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. A magia e a vida.


Tínhamos a relação e a distribuição dos bens (...). E sabíamos
transpor o mistério e a morte (...). Tínhamos Política que é a ciência
da distribuição. (...). Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o
Brasil tinha descoberto a felicidade. (...). A alegria é a prova dos
nove. No matriarcado de Pindorama.”489

A possibilidade de uma pesquisa-parangolé e antropofágica.


Oswald de Andrade talvez dissesse: devoração, investigação e arte ao
modo tupiniquim, sentir fome pelo que não é seu, devorar outrem e seus
possíveis, transmutando-o. Apetite, ímpeto, rebeldia. De maneira similar
Oiticica nos diz: “No Brasil, hoje, para se ter uma posição cultural
atuante, que conte, tem-se que ser contra, visceralmente contra tudo
que seria em suma o conformismo cultural, político, ético, social. (...).
Da adversidade vivemos!”490 E da diversidade! Ou melhor, da diferença.
A diferença tem a ver com a multiplicidade, enquanto a diversidade se
refere a um suposto estado natural ou cultural e reafirma uma
identidade.491

Podemos partir do local de onde falamos, que é sempre já hibrido,


plural: encontro. De acordo com Silviano Santiago,492 uma das possíveis
contribuições do Brasil e da América Latina para a atual cultura ocidental
seria justamente o questionamento da ideia de pureza cultural. Não há
uma essência primeira, uma raiz única de uma cultura, e por seremos
desde sempre, múltiplos, plurais e híbridos, convém repensar os
conceitos de identidade e hibridez cultural. Podemos ainda repensar a
noção de América “Latina”, uma vez que ela é também é indígena,

489 ANDRADE, In: TELES, 1976.


490 OITICICA, 1986, p. 98.
491 SILVA, In SILVA; HALL; WOODWARD, 2000, p. 101
492 SANTIAGO, 2006
268

africana e asiática, como, da mesma maneira a América supostamente


"anglo-saxã" é também latina, indígena, africana e asiática.493

Figura 74 – Devir-híbrido. Orlan, Auto-hibridização pré-colombiana, 1998,


desfiguração do rosto.

493 SANTOS; SHOR, 2013, p. 702.


269

De qualquer forma, suponho que para pensar a pesquisa no


contexto brasileiro e latino americano convém questionar:

a divisão internacional do trabalho intelectual, o sistema que exalta os


pensadores do Norte Global em detrimento dos pensadores do Sul
Global, que considera Henry James ‘naturalmente’ mais importante que
Machado de Assis, Fredric Jameson mais importante que Roberto
Schwarz, Jacques Rancière mais importante que Marilena Chaui ou
Ismail Xavier, e Sinatra mais importante que Jobim. Outro exemplo dessa
hierarquia é que conceitos como ‘hibridez’ são atribuídos ao professor
Homi Bhabha, de Harvard, quando os intelectuais latino-americanos já
falavam sobre a hibridez há no mínimo meio século, sobre o que era a
‘antropofagia’? (...). A Tropicália virou de cabeça para baixo a hostilidade
em relação ao Trópico como "primitivo". A Antropofagia valorizou o
canibal rebelde. O Realismo Mágico exaltou a mágica sobre a ciência
ocidental. Nós achamos que se poderia aprender com esse tipo de
audácia e esse profundo repensar dos valores culturais.494

Mas não apenas isso.

Quando me proponho a pensar uma pesquisa antropofágica e


uma pesquisa-parangolé, quando me refiro a estes movimentos
artísticos brasileiros do século XX, como possíveis sinalizadores de
maneiras de pesquisar, não o faço com vistas à defesa de uma
identidade nacional, uma volta à suposta pureza das origens ou na
crença em um essencialismo ingênuo. O que desejo provocar com o
gesto de trazer para a pesquisa esta “devoração do estrangeiro” é a
potência do deslocamento que a diferença engendra; o acolhimento do
outro, “em sua irredutível diferença;”495 a oportunidade de
“experimentar as delícias - e as inseguranças - da instabilidade e da
precariedade da identidade;”496 e a possibilidade de esboçar
performatividades inexploradas, que desestabilizem as identidades
hegemônicas.

494 SHOHAT; STAM, in SANTOS; SHOR, 2013, p. 703-706


495 BLANCHOT, 1969, p. 115
496 SILVA, IN SILVA; HALL; WOODWARD, 2000, p. 88
270

Figura 75- Devir-global. Cildo Meireles. Babel, 2001-2006. Instalação.

Penso uma pesquisa-antropofágica que possa, de forma poética,


devorar nosso torpor frente ao intolerável, ao estreitamento que a
perspectiva capitalista deposita em nós quando, distraída e
inadvertidamente, nós a absorvemos e reproduzimos. Uma pesquisa
que, através da criação artística, possa devorar as limitações de um
pensamento subordinado à racionalidade instrumental utilitarista de
tendências totalizantes. Que possa esvaziar as ações motivadas pela
ganância e suas torpes espertezas, e criar espaço para ativismos,
solidariedades e caminhos arteiros.
271

Proponho uma pesquisa antropofágica que devore em nós, o


homem, mas não no sentido de nos aniquilar, e sim, de nos defrontar
com nossas ideias estereotipadas acerca do humano, com o
antropocentrismo, com a concepção de homem como proprietário e
dominador do mundo, uma ideia que nos acompanha desde o Gênesis
Bíblico.497 Que devore o que, em nós, nos impede de vivermos lado a
lado, como uma espécie entre outras, entre as incontáveis diferentes
formas de vida existentes em nosso planeta, este grande corpo pulsante
que compartilhamos em nossa travessia pelos bilhões de universos. Uma
pesquisa que engendre uma devoração do humano, não de maneira a
nos tornar desumanos, mas, ao contrário, como uma forma de
investigação artística, que inaugure dimensões ainda inumanas da vida,
como as potencialidades de beleza, inteligência e sensibilidade que
encontramos no movimento das estrelas e das células; na consonância
entre frutas, sabores e paladares; entre peles, sensações e texturas; e na
ininteligível teia de vida onde estamos devindo, (não sem conflitos, é
claro) sempre outros.

Proponho uma pesquisa-arteira-parangolé-antropofágica, que


nos propicie maneiras de pensar, à altura dos desafios postos pelo
Antropoceno, a era geológica que, enquanto humanos, em nossa
cegueira, estamos criando. Que possam provocar uma inversão das
prioridades que norteiam os Impérios econômicos, e estabeleçam
compromissos com o cuidado da vida em sua multiplicidade.

Serão propostas possíveis? Veremos... Mas voltemos ao


Movimento Antropofágico.

497Bíblia, Genesis, 26 “E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme


a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre
os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre
a terra. 27 Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou;
homem e mulher os criou. 28 Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e
multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.
http://www.culturabrasil.org/zip/biblia.pdf
272

Figura 76- Devir-devoração. Bruce Nauman, Nose-to-nose, 1990.

O movimento artístico que ganhou o nome de “Antropofágico”,


surgiu em São Paulo, vinculado à Semana de Arte Moderna de 1922.
Esta, como sabemos, foi um marco de questionamento dos modelos
culturais então impostos pelo domínio europeu e reproduzidos pelas
elites locais.498 Começava ali, uma busca e uma problematização
incessante da noção de identidade do povo brasileiro. Questões
associadas ao nacionalismo, à industrialização, e às comemorações do
Centenário da Independência do Brasil incentivaram, em alguns artistas,
o anseio de romper com os cânones da arte acadêmica e propor novas
formas culturais. Acentuava-se o desejo de renovar o estagnado
ambiente artístico e cultural do país, o propósito de “descobrir” ou

498Situação que ainda se reproduz até hoje, e mais enfaticamente nos últimos anos,
quando vemos a elite econômica e política brasileira, se curvar aos interesses no
capitalismo internacional, instaurando sua “cleptocracia,” na ânsia de mordiscar um
pedaço do bolo.
273

“redescobrir” o Brasil, repensando-o de modo a desvinculá-lo, cultural e


esteticamente, das amarras que ainda o prendiam à Europa.499

Elegendo o “canibalismo” como ato de deglutir a cultura de


outros países, sem cair numa relação modelo/cópia, o Movimento
Antropofágico buscava destacar, expor e trabalhar o encontro violento,
entre as etnias ameríndia, africana e latina europeia, que constituiu a
cultura brasileira.500 A Antropofagia desejava também, invadir o
pensamento domesticado, selvagizando-o.

As peripécias antropofágicas criaram ações performativas que


agenciaram desvios nas concepções de identidade nacional, abrindo
outras possibilidades de ativismo cultural, social e político. Estas ações e
provocações desembocaram, décadas depois, em outras diferentes
tentativas de aliar o erudito ao popular, a tradição à ruptura, o nativo ao
múltiplo, recusando assim um projeto de uma identidade nacional
monolítica. É o que verificamos nos anos 1960, em várias manifestações
culturais, como a criação do Parangolé por Hélio Oiticica e como o
surgimento do Movimento Tropicalista. O conceito de antropofagia é
retomado, novamente, em 1998, quando a 24ª Bienal Internacional de
São Paulo, elege o tema "Antropofagia e Histórias de Canibalismo",
propondo uma concepção outra da história mundial da arte, não-
eurocêntrica, internacionalizando, de certa forma, a antropofagia
oswaldiana. É o que nos diz Oiticica:

A ascensão que leva hoje a arte brasileira a uma expressão nova, vem da
consciência de um processo antropofágico iniciado desde Osvaldo
Andrade, (...) e daí pra cá eclodindo nas mais diversas experiências a que
se denominam vanguardas (...) e a consequente evolução do que veio a
se chamar tropicalismo. 501

499 AMARAL, 1979.


500 ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural,<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo339/manifesto-
antropofago>. Acesso em: 05 de Dez. 2017.
501 OITICICA, 2011, p. 123
274

Figura 77- Devir-parangolé. Helio Oiticica na exposição Whitechapel experience.


Londres, 1969.
275

Oiticica visa, em muitas das suas obras, à “derrubada de todo


condicionamento, (...) e, através de proposições cada vez mais abertas,
fazer com que cada um encontre em si mesmo, (...), a pista para o estado
criador.”502 Este artista intenciona, através do que ele denomina
exercício Suprassensorial, levar o espectador à descoberta de seu centro
criativo e de suas potências de viver. O Suprassensorial, uma dilatação
da sensorialidade é, para Oiticica, revolucionário, no sentido de criar
uma poética do instante e do gesto, onde infinitas possibilidades da
imaginação são postas em ação.503 Estas obras transbordam
experimentalismo, anarquismo, marginalidade, criação coletiva e,
sobretudo, posturas éticas.504 Oiticica considera também o Parangolé
um Suprassensorial, uma vez que ele engendra uma experiência de
inconformismo social, demolidora de preconceitos e estereótipos.

A criação do Parangolé505 foi um gesto de enfrentamento ao golpe


militar de 1964, que instalou a ditadura no Brasil. Foi essa “linha de
fuga” que Oiticica buscou quando, neste mesmo ano, decidiu “subir o
morro”, morar na favela e tornar-se passista da escola de samba Estação
Primeira de Mangueira. Esta imersão na cultura popular provocou no
artista uma mudança violenta, uma “conversão”.506 No samba, no
cotidiano do morro, ele buscou a força dionisíaca que nasce do ritmo
coletivo.

502 OITICICA, 1986, p. 102


503 OITICICA, 1986, p. 98
504 FAVARETTO, 2015, p.180.
505 A palavra Parangolé foi descoberta ao acaso, nos conta Oiticica: “Isso eu descobri

na rua, essa palavra mágica. (...). Eu estava indo de ônibus e na Praça da Bandeira
havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma
espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes,
estacas de madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vértices
de retângulos no chão. Era um terreno baldio, com um matinho, e tinha esta clareira
que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de barbante de cima a baixo. Bem
feitíssimo. E havia um pedaço de aninhagem pregado num destes barbantes, que
dizia: ‘aqui é....’ e a única coisa que eu entendi, que estava escrito, era a palavra
‘Parangolé’. Aí eu disse: É essa a palavra!” OITICICA – Entrevista a Jorge Guinle Filho,
in FAVARETTO, 2015, p. 117.
506 FAVARETTO, 2015, p. 173
276

Esse ato, a imersão no ritmo, é um puro ato criador. (...) A dança não
propõe uma fuga desse mundo imanente, mas o revela em toda sua
plenitude – o que seria para Nietzsche a embriaguez dionisíaca é na
verdade uma lucidez expressiva da imanência do ato.507

Um acontecimento que demanda uma participação inventiva do


espectador, agora “participador”, que trará sua contribuição singular. “É
a retomada de confiança do indivíduo nas suas intuições e anseios mais
caros.”508 Nos encontramos aqui, novamente, com a ideia da crença -
do acreditar no mundo, do empoderamento advindo do ato de criação -
que pode vir a ser uma das mais relevantes potencialidades da pesquisa
com a arte, da pesquisa-parangolé. Mas vamos conviver um pouco mais
com Oiticica...

Figura 78- Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CCE UFSC, setembro de 2017

507 OITICICA, 1986, p. 73.


508 Idem
277

.
Figura 79 – Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CED UFSC, 2017

Ao inconformismo social juntaram-se o inconformismo estético e


a experiência da marginalidade, tão cara a Oiticica. A favela, com suas
casas bricoladas, produz uma organização espacial aberta, adaptada às
mutações do ritmo de vida, à relação social do povo da Mangueira, em
que esse artista surpreende uma ética comunitária. Oiticica formula uma
posição crítica indissociável da experimentação:

A descoberta do que chamo Parangolé marca o ponto crucial e (...) uma


nova definição de que seja a obra [de arte]. Seria o Parangolé um buscar
estrutural básico na constituição do mundo e dos objetos. (...). Esse
interesse, pois, pela primitividade construtiva popular, (...). Em todos
estes recantos e construções populares, geralmente improvisados, que
vemos todos os dias, também feiras todas estas relações que poder-se-
iam chamar ‘imaginativo-estruturais’ ultra-elásticas nas suas
278

possibilidades e na relação pluridimensional que delas decorre entre


‘percepção’ e ‘imaginação’.509

O Parangolé é muito mais do que uma capa, um estandarte ou


uma tenda: a vivência–parangolé é puro acontecimento. Uma
intensidade que toca a questão da experiência e sua relação com o
espaço e o tempo, “não mais como se ela fosse ‘situada’ em relação a
estes elementos, mas como uma ‘vivência mágica’ dos mesmos.”510
Poderíamos dizer que seu tempo é Aion, a eternidade em cada
momento, o tempo das ações desregradas, ora previsíveis, ora
surpreendentes, sempre criadoras.

Os parangolés são também dispositivos que desencadeiam


experiências coletivas, “com o objetivo de ‘violar’ o ‘estar’ dos
participantes como indivíduos no mundo, transformando-lhe os
comportamentos em coletivos”.511 Uma ação ética, estética e política,
impulsionada por uma posição anárquica, que se realiza através da
palavra, da dança, da vivência inventiva.

É com a criação do Parangolé que Oiticica formula a sua antiarte,


sua “arte ambiental” precursora do que mais tarde seria chamado
instalação, performance ou ainda arte relacional. Em suas palavras: “A
antiarte é, pois, uma nova etapa (...); é o otimismo, é a criação de uma
nova vitalidade na experiência humana criativa; o principal objetivo é o
de dar ao público a chance de deixar de ser espectador, para ser
participante na atividade criadora.”512

O que uma pesquisa pode aprender com a arte irreverente de


Oiticica? O Parangolé, enquanto possibilidade de uma maneira de se
constituir um plano de pesquisa, acredito, pode ser relacionado ao
conceito deleuziano de plano de imanência, conectando vida, dança e
pensamento. José Gil, em seu livro O Movimento Total – O Corpo e a
Dança513, comenta como o mergulhar na imanência é algo imediato para

509 OITICICA, 1986, p. 65-68


510 OITICICA, 1986, p.70
511 FAVARETTO, 2015, p. 107.
512 OITICICA, 1986, p. 82.
513 GIL, 2001.
279

quem dança. “Esse instante da imanência é o instante da dança,”514


como se não houvéssemos nunca dançado antes, como se não
houvéssemos antes preparado o processo.

Figura 80 – Devir- coletivo. Sambistas da Escola de Samba Vai Vai, SP, usando
Parangolés. 1979.

A elaboração de uma pesquisa pode ser uma dança, e neste


sentido, dançar é também pensar, trabalhar com afinco, inventar
territórios, semear desterritorializações, abandonar os entraves que nos
condicionam e deixar os movimentos-pensamentos fluírem pelo corpo-
mente, ao mesmo tempo corpóreo e incorpóreo. Algo que acontece,
para além de um sujeito, embora não prescindindo de toda uma
preparação efetivada pelo sujeito. Assim como uma música que, após
anos de estudo, flui livremente através dos dedos do violonista, o

514 GIL, 2002, p. 219


280

processo investigativo pode fluir poeticamente, atravessando


pesquisadores, pensamentos, ações e os campos pesquisados.

A ênfase no potencial da criação em uma pesquisa-parangolé não


significa que se justifique um vale-tudo. Ela “requer processos rigorosos
de composição: a elaboração de linguagens que propiciem
acontecimentos, a escolha de encaminhamentos com poder de
transgressão e a concepção de propostas adequadas a uma realização
estética da vida.

Figura 81- Oficina Parangolé, a vida como obra de arte, CED UFSC, 2017

Parece-me interessante e proveitoso aproximar também a noção


de Antropofagia ao conceito de ética da traição proposto por Deleuze e
também por Jagodzinski e Wallin. Deixamo-nos afetar, sem deixarmo-
281

nos capturar. Devoramos e traímos, o que, em nós mesmos, compactua


com o desejo dos impérios, com seus podres poderes, seus estreitos
horizontes que não ultrapassam a ponta de seus narizes, de suas
ordenações e modelos sediados na ganância econômica. Devoramos e
traímos as forças que diminuem a potencialidade da vida, da criação, da
solidariedade, e, alegremente, as transmutamos em arte.

Uma pesquisa-parangolé e antropofágica pode ser ainda, aquela


que busca perspectivas menores, devorando os discursos hegemônicos
e transformando-os em modos outros de pensamento e experiência.
Entendo menor a partir do conceito de literatura menor, desenvolvido
por Deleuze e Guattari quando estes comentam a literatura de Kafka:
“Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas antes à
língua que uma minoria constrói em uma língua maior.”515 Escrever com
uma língua menor é instaurar atuações revolucionárias no interior das
línguas grandes, hegemônicas, é:

Escrever como um cão que faz um buraco, um rato que faz a toca. E, por
isso, encontrar o seu próprio ponto de subdesenvolvimento, o seu
próprio terceiro mundo, o seu próprio deserto. Houve muitos debates
sobre o que é uma literatura marginal. (...). Só deste modo é que a
literatura se torna realmente máquina coletiva de expressão, apta a
tratar e exercitar conteúdos. (...). Como é que se extrai da sua própria
língua uma literatura menor, capaz de pensar a linguagem e fazê-la tecer
conforme uma linha revolucionária sóbria?516

Como devir o menor, o marginal, o antropófago da própria língua?


Da própria pesquisa? Kafka diz: “roubando a criança do berço.”517 A
antropofagia diz: devorando o discurso maior.

A literatura menor comporta, para Deleuze e Guattari, três


características: a desterritorialização da linguagem, o caráter político e o
valor coletivo. Podemos tecer um paralelo entre estas três
características e as qualidades de uma pesquisa antropofágica,
concebendo uma “pesquisa menor”: primeira – desterritorialização : a

515 DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 38


516 DELEUZE; GUATTARI 2003, p. 42-43
517 KAFKA, apud DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 43
282

antropofagia a partir de uma “língua menor” e estrangeira, subverte e


desintegra a realidade, nos devora, arranca-nos de nosso território, de
nossa cultura, abrindo-nos novas possibilidades de vida; segunda - tudo
em uma pesquisa antropofágica é político, conquanto questione e
desafie os discursos majoritários e os poderes estabelecidos; terceira -
nenhuma enunciação é separada do coletivo, ou seja, o que o
pesquisador “diz sozinho, já constitui uma ação comum,”518 ele fala por
uma coletividade. Uma pesquisa menor devora os discursos maiores,
assumindo uma postura militante e libertária. Afinal a pesquisa, assim
como a literatura:

Diz respeito ao povo, a não a indivíduos excepcionais, a grandes


indivíduos; o escritor é alguém que preserva os direitos de um povo por
vir, um povo menor e por isso inventa um uso menor da língua maior,
pondo-a em desequilíbrio, fazendo-a bifurcar e variar em seus termos.519

Estes são alguns dos vigores e impulsões que podemos aprender


com tais artistas, para que nossas pesquisas possam suscitar
movimentos e trans-formações.

Nosso tempo é outro. Ao pensar, hoje, no estrangeiro, não


consigo deixar de lembrar dos êxodos populacionais, das tragédias
bélicas, sociais, políticas e ambientais, que provocam estes colossais
fluxos de refugiados que atravessam terras e mares, em busca da
possibilidade de vida. Não consigo deixar de desejar que nossa
antropofagia seja o acolhimento do outro, seja a devoração de qualquer
gesto que possa querer transformar o outro “num espectro do mesmo
e/ou numa fabricação para a própria satisfação [do eu,] do nós, e/ou
numa invenção que o mata. O descuido do outro é a perda do outro, o
massacre do outro, o desparecimento do outro.”520 Um descuido que,
além de tudo, nos aliena de nós mesmos, uma vez desprovidos de
alteridade. Uma vez desprovidos da responsabilidade ética sem

518 DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 41


519 MACHADO, 2009, p. 216
520 SKLIAR, 2014, p. 194
283

“fronteiras em sua capacidade de receber,”521 em sua capacidade de


verter, em sua capacidade de dar, que nos coloca à altura do que somos.

Figura 82- Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. CCE UFSC, setembro de 2017.

Não consigo deixar de pensar em uma pesquisa-antropofágica,


onde o que devoramos é o nosso auto-centramento, nossa fixação em
nosso ponto de vista, em nosso bem estar. Uma pesquisa-abertura que
seja um exercício de generosidade e devore qualquer mesquinhez, pois:

Qualquer mão é capaz de dar, sem sequer mostrar o movimento de dar,


sem sequer pronunciar seu nome, (...). Qualquer mão, que sequer
colocou seu olhar no que deu, (...) e fez com que isso que foi dado não
necessite de sua autoria, não seja de sua propriedade, não tenha
autoridade. (...). Para que dar, dar como substantivo, não como verbo,
seja desmesurado e ínfimo, de uma só vez.” 522

521 SKLIAR, 2014, p. 194


522 SKLIAR, 2014, p. 59
284

Porque a mão deve partir assim que deixada a palavra, e se


permanece ali, já se transforma em domínio. “A mão que fica ao deixar,
não deixa, torna-se mesquinhez. (...). E deixar de dar (...) é ser incapaz
de qualquer gesto.”523

Desta forma, talvez, uma pesquisa antropofágica possa receber o


outro, possa perceber cada um e qualquer um, em sua unicidade, em
sua singularidade. Possa devir uma resposta ética à existência do outro,
onde nossa pergunta não seja tanto o que podemos saber, conhecer,
aprender, ou mostrar ao outro. Que nossa pergunta seja,
principalmente, como seremos responsáveis, como responderemos por
nossas vidas, por nossas investigações, pelos mundos que criamos?
Uma pesquisa que se faz também na escuta: “Escutar. E assim, calar-se.
E assim, não julgar.”524 “Escutar: todo pensamento nasce em outro lugar,
em outra solidão, em outra pessoa.”525

Uma pesquisa-arteira-parangolé e antropofágica pode


oportunizar a abertura necessária para encontrar perguntas, questões e
trajetórias que permitam trabalhar as necessidades e inquietações de
nosso tempo. Assim como Oiticica, criando o Parangolé, transbordou as
molduras dos quadros que aprisionavam em seus retângulos a
efervescência de seu tempo, nós podemos, em nossas pesquisas,
confeccionar “Parangolés metodológicos,”526 construindo linguagens-
proposição, lugares-fazer, ações-poesia, que engendrem movimentos
coletivos, montagens desviantes, produzindo possibilidades de outros
mundos e intensificações do viver. “É preciso abrir a linguagem para que
seja quebrada a quiscência esclerosante, gerar argumentação.”527
Devorar as noções já dadas de humanidade e de mundo e engendrar um
povo que ainda falta, novas terras, novos continentes, novos conteúdos.

523 SKLIAR, 2014, p. 60


524 SKLIAR, 2014, p. 122
525 SKLIAR, 2014, p. 126
526 BARCELLOS, 2013, p.116
527 OITICICA, apud FAVARETTO, 2015, p.214
285

Figura 83- Devir-desterritorialização. Helio Oiticica. Parangolé Xoxoba (1964)

Podemos realizar pesquisas com a arte que coloquem em


movimento programas-parangolé e ações antropofágicas:
“sensibilidades e desejos, que, principalmente, nos desestabilizem,
provoquem desterritorializões identitárias, que aceitem a instabilidade
286

e a mobilidade que constituem os entrelugares da relação.”528 Afinal, “o


experimental cresce por incorporação, vencendo o isolamento cultural,
a limitação suicida ‘ao que é nosso.’”529 O pesquisador parangolé, com
suas danças, desencadearia devires, tornando “o pensamento possível
outra vez, retirando o pensar de sua imobilidade e de sua separação da
vida.”530 Pois pensar não é fácil.

A dificuldade de pensar é algo de direito do pensamento, já que pensar


não tem nada de inato, nem de recognição, nem se trata de responder
perguntas para as quais já existem respostas, nem de pensar a partir de
postulados previamente definidos; mas pensar é criar e, portanto, trata-
se de engendrar o pensar no próprio pensamento. 531

Que nossas pesquisas com a arte possam ser criações dançarinas


e irreverentes: invenções. “O artista só pode ser inventor, do contrário
não existe!”532 Que assim possamos inventar problematizações outras
que efetuem outros recortes, outras escolhas, outras paisagens. Afinal o
que desejamos, quando pesquisamos com a arte, senão propiciar
olhares e vivencias poéticas que ampliem as perspectivas e os campos
de experiência, que devorem as inércias e os clichês, incentivando
ativismos investigativos, educacionais, culturais, sociais e políticos,
aumentando as potências de vida, de transformação, de criação?

528 BARCELOS, 2013, p. 113.


529 FAVARETTO, 2015, p.215
530 CORAZZA, 2007, p. 25
531 CORAZZA, 2007, p. 21
532 OITICICA, apud FAVARETTO, 2015, p.214
287

Na praia: desvios sem fim

O sol nascia e recobrava a vista. E como era bom ver! Na baixada,


mato e campo eram concolores. No alto da colina, onde a luz
andava à roda, debaixo do angelim verde, de vagens verdes, um
boi branco, de cauda branca. Ele não sabe que é boi. E ao longe,
nas prateleiras dos morros cavalgam-se três qualidades de azul.
Guimarães Rosa

Figura 84 – Devir-Arte. Paulo Gaiad. As paredes do Campeche. 2003.


288

Chamam por mim as águas,


Chamam por mim os mares.
Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes, (...)
Meus olhos conscientes dilatam-se.
O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança (...)
Ir para Longe, ir para Fora, (...)
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas (...)
Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar
A imensidade imensa do mar imenso! (...)
O que quero é levar prà Morte
Uma alma a transbordar de Mar (...)
Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.
Senti demais para poder continuar a sentir.
Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim. (...).533

533 PESSOA, 1992, p. 141- 158


289

“O tempo é a persistente ilusão.”


Albert Einstein

Estamos chegando ao fim destas navegações teóricas por


diferentes corredeiras. Já podemos avistar a praia onde a onda, que se
levantou na procura de perspectivas poéticas de investigação e que vem
nos impulsionando nessa jornada, irá se esvaziar, se dissolver, chegar ao
seu final. Voltará a ser apenas água e oceano.

Dizem que no final da vida, nos instantes que antecedem o


momento da morte, vemos, como num filme aceleradíssimo, e de trás
para frente, os flashes de nossa vida inteira. Talvez por isso, e de maneira
similar, vejo agora espelhados, nos movimentos últimos desta onda, as
paisagens que percorremos nesta tese. Quantas águas rolaram para que
esta onda se formasse. Quantas terras foram visitadas, quantas palavras
foram escritas, quantas paisagens atravessadas.

Acompanhamos riachos onde a pesquisa com a arte buscava


falas-poesia que interrompessem o que já sabíamos, que nos dessem
palavras a ler como se ainda não soubéssemos lê-las. Viajamos por falas
nascentes, devires-criança, que desejavam devolver às palavras a
ilegibilidade que lhes é própria e que haviam perdido ao se inserirem
comodamente em sentidos preestabelecidos. Almejamos terceiras
margens que problematizassem o evidente, criassem estranhamentos,
devolvessem certa obscuridade ao que nos parecia claro, e “abrissem
uma distância entre o saber e o pensar.”534 Abrimos vertentes através
dos vozerios desencontrados da pororoca, onde águas e ideias se
chocaram, se misturaram e se espalharam para além da tirania de uma
estabelecida, coerente e longa voz, antes tida como a única válida e
verdadeira.

Seguimos o fluir das águas, escutamos seus murmúrios plurais,


fragmentários, sempre diferentes. Escoamos pelas corredeiras de suas
cantigas que inventavam, a cada curva, um rumo; a cada rumo, um dia;
a cada dia, uma vida, e vivos aqui estamos, ainda criadores. Cruzamos

534 LARROSA, 2004, p. 16.


290

desterritórios, onde devimos-pesquisa, onde a arte nos forçou a pensar,


a potencializar nossa vontade de vida e nossa insistente crença na
possibilidade do mundo e da humanidade.

Procuramos ampliar a presença, na cena da língua portuguesa,


das concepções de Elliot Eisner e Tom Barone acerca da Pesquisa
Baseada em Arte e seus embates pelo reconhecimento da arte enquanto
caminho epistemológico válido; de algumas das propostas a/r/tográficas
e de suas etnografias artísticas; e das críticas desafiantes de Jagodzinski
e Wallin. Mergulhamos no pensamento destes últimos, em suas
provocações e convites a se pensar formas de pesquisa com a arte que
desencadeiem ações micropolíticas desviantes e “éticas da traição”, no
sentido de desmantelar as estratégias de dominação arquitetadas pelo
capitalismo designer e a apatia instalada pelo senso comum.

Agora, então, no final desta longa travessia, quando revisito cada


palavra que escrevi, me pergunto:

Será que aprendemos que a questão vital da pesquisa não é


desenvolver metodicamente um pensamento preexistente, mas fazer
com que nasça aquilo que ainda não existe? Que “não há outra obra,
que todo o resto é arbitrário e enfeite”?535

Será que apresentamos devidamente algumas das


potencialidades investigativas que a arte provê, contribuindo para o
alargamento, pequeno que seja, da perspectiva de como a pesquisa e o
conhecimento podem ser entendidos?

Será que nos desvencilhamos, minimamente, das “imagens do


pensamento” que, em sua paralisia normativa, limitam nossa
capacidade de pensar e de produzir as ferramentas epistemológicas e
procedimentais necessárias aos desafios postos pelo Antropoceno?

Em quais critérios posso me fiar para considerar estas questões?

Volto a subir, então, sobre os ombros de Deleuze. E a partir dali


pondero: não há critérios senão imanentes, e a qualidade de uma

535 DELEUZE, 2006, p. 213


291

pesquisa “se avalia nela mesma, pelos movimentos que traça e pelas
intensidades que ela cria (...). Não há nunca outro critério senão o teor
da existência, a intensificação da vida.”536

Penso que alguns passos foram dados neste sentido. Penso que
de alguma forma, esta tese nos animou a correr riscos e a considerar a
possibilidade de empreender trajetórias outras de pesquisa. Nos animou
a convidar a arte como guia e companheira nesta empreitada. Nos
animou a ponderar que, se uma pesquisa tradicional pode nos induzir a
realizar algo da ordem de um recenseamento de terras conhecíveis,
dimensionado por um cogito territorializado e ordenador,537 uma
pesquisa com a arte pode nos incitar a criar um pensamento que ainda
não sabe a si próprio e por isso se pensa. Por isso pode inventar formas
de percepção, sensibilidade e atuação, capazes de inaugurar mundos e
humanidades.

No final desta longa travessia, contemplo também minha


incompletude e a incompletude deste trabalho. As possibilidades
inexploradas. Contemplo as limitações do que realizei. As limitações
deste corte eminentemente teórico e filosófico que escolhi. Sinto a falta
de exemplos de pesquisas com a arte já realizadas no Brasil e pelo
mundo afora, de exemplos de obras de artistas que trabalhem
experiências nas bordas do humano e do inumano, que instaurem
estranhamentos e transbordem as linguagens instituídas.

Sinto a falta de terras mais palpáveis e do calor do corpo de


companheiros de viagem. Sinto a falta das lutas empíricas do dia-a-dia,
dos embates que acontecem nas salas de aula, sinto falta dos pincéis,
das tintas, das cantorias e das gritarias (até das gritarias!), dos empurra-
empurras, da minha perplexidade frente ao novo que cada criança é, e
ao novo que ela me propõe.

536 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 98-99


537 DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 135
292

Figura 85 – Devir-mar. Tim Diederichsen. Praia do Campeche. Fotografia. 2015.

Diante do final desta história, diante desta praia onde a onda


desta pesquisa se desmancha, percebo a singularidade de cada
momento vivido, único e irrepetível. Nesse último movimento desta
onda, percebo a brevidade de nossa existência e a preciosidade de cada
momento, que pode, sempre, ser o último.

Este longo processo de procuras, invenções, extravios, desajustes,


desafios, disciplinas, partilhas e retornos, me deixou vazia.

Me esvaziou de mim, me levou.

Me deixou leve.

Deparo-me, agora, com outra pessoa.


293

Alguém que desconheço e que me surpreende. Uma pessoa


alegre, mais lúcida e presente. Uma pessoa que se sente próxima dos
outros, que sabe estar junto, escutar, dar rizada, que vive uma alegria
desconhecida. Imensamente grata.

Este longo processo deixou um vazio povoado por inúmeras


possibilidades de caminho. Não sei em quais deles me lançarei. Talvez,
ainda à maneira do Oiticica, nestes tempos estreitos, eu suba o morro
na busca de outros parangolés, outras micro-políticas, outras (po)éticas.

O tempo dirá.
294

REFERÊNCIAS

ABREU, Ovídeo de. In HADDOCK-LOBO, Rafael (Org.) Os filósofos e a arte.


Editora Rocco, 2010.

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad.


Vinicius Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

Infância e História. Destruição da experiência e origem da


história. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2005

ALLIEZ, Eric. Apud JAGODZINSKI, Jan; WALLIN, Jason. Arts Based Research, a
Critique and a Proposal. Rotterdam: Sense Publishers, 2013.

AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva,


1979.

ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto


Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro:
apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª
ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São


Paulo: Perspectiva, 2013.

ARTAUD, Antonin. Apud BLANCHOT, A Conversa Infinita, a ausência do livro.


v.3. Trad. João Moura Jr São Paulo: Escuta, 2010.

ARTAUD, Antonin. Apud WILLER, 1983, p. 161 Porto Alegre: Editora


L&PM, 1983.

ARTAXO, Paulo. Uma nova era geológica em nosso planeta: o Antropoceno?


São Paulo: Revista USP, n. 103, p. 13-24, 2014.

AUSTER, Paul. A arte da fome. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. Antônio de Pádua Danesi.


São Paulo: Martins Fontes, 1993.
295

A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Trad.


Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997

A Poética do Devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo:


Martins Fontes, 2009.

BAIBICH, Tania Maria; VASCONCELLOS, Sonia Tramujas. A pesquisa baseada


em artes visuais na educação: novos modos de investigar e
conhecer. Publicado nos anais da ANPED 2015.
www.anped.org.br/.../pesquisa-baseada-em-artes-visuais-na-
educacao-novos-modos

BAIN, Read. An Attitude on Attitude Research. Journal of Educational


Sociology, 1929.

BARBOSA, Ana Mae; GUINZBURG, Jacob. O Pós Modernismo. São Paulo:


Perspectiva, 2008.

BARCELOS, Valdo. Uma educação nos trópicos: contribuições da


Antropofagia Cultural Brasileira. Petrópolis: Vozes, 2013.

BARONE, Tom; EISNER, Elliot. Arts Based Research. Los Angeles: SAGE
Publications, 2012.

BARROS, Manuel de. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1990.

BARTHES, Roland. O Neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo:


Martins Fontes, 2003.

Como viver junto. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins


Fontes, 2003a.

O rumor da Língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins


Fontes, 2004.

Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Maria Valéria M. de


Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
296

BASBAUM, Ricardo. Além da pureza visual. Porto Alegre: Editora Zouk, 2007.

BAUDRILLARD, Jean. A Arte da Desaparição. Rio de Janeiro: Editora da UERJ,


1997.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de


Janeiro: Zahar, 2001.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São


Paulo: Brasiliense, 2013.

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad.


Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986.

BIESTA, Gert. Para além da aprendizagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

BIRK, Márcia; CAUDURO, Maria Teresa; WACHS, Priscila. Investigación


basada en las artes: una aportación brasileña. Forum Qualitative
Sozialforschung (Fórum de Pesquisa Social Qualitativa) da
Universidade Livre de Berlim, Vol. 10, N. 2, Art. 33, 2009

BOGDAN, R.; BIKLEN, S. - Características da investigação qualitativa. In:


Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e
aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994.

BOHR, Niels. Essays on Atomic Physis and Human Knowledge. New York:
Wiley, 1963.

BOSQUET, Alain. Apud BACHELARD, A Poética do Devaneio. Trad. Antônio


de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BLANCHOT, Maurice. O espaço Literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:


Rocco: 1987.

A Conversa Infinita, a ausência do livro. v.3. Trad. João Moura Jr


São Paulo: Escuta, 2010.

A Parte do Fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro: Editora


Rocco, 1997.
297

BOJUNGA, Sylvia. Da memória para a história. Boletim Arte na Escola,


Edição #72, Março / Abril / Maio, 2014.

BOPP, Raul. Noite Pontual. 2009 .


http://www.teoriaedebate.org.br/?q=estantes/poesia/noite-
pontual. Acesso em 12/11/ 2016.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad. Denise Botman. São Paulo:


Martins, 2009.

CACASO, Antônio Carlos de Brito. Lero Lero. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo:


Companhia das Letras, 1991.

CAMOZZATO, Viviane Castro. Pedagogias do Presente. In Educação e


Realidade, 2014

CANTON, Katia. Temas da arte contemporânea. São Paulo: Editora Martins


Fontes, 2009.

CASTORIADIS, In PENA-VEGA & NASCIMENTO. (Orgs.) O Pensar Complexo.


Rio de Janeiro: Garamond, 1999.

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. Trad. Rejane


Janowitzer. São Paulo: Martins, 2005

Frequentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte


contemporânea. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins,
2009

Las teorias del arte. Trad. Michèle Guillemont. Buenos Aires:


Adriana Hidalgo Editora, 2012.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes do Fazer. Trad. Ephraim


Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2013.
CESARIANO; COHN. Apud SZTUTMAN, Rio de Janeiro : Beco do Azougue,
2007.

CHAGDUD, Rinpoche. Portões da Prática Budista. Três Coras: Makara, 2010.


298

CHEREM, Rosângela. Um intelectual de extimidades. Revista Palíndromo.


No. 3. Florianópolis: UDESC, CEART, 2010.

COMETTI, Jean-Pierre. Art, modes démploi: esquises dúne philosofie de


lúsagr. Bruxelle: La Lettre Volée, 2000.

CORAZZA, Sandra. Para pensar, pesquisar e artistar a educação: sem ensaio


não há inspiração. Revista Educação. Deleuze pensa a Educação:
A Docência e a Filosofia da Diferença. São Paulo: Editora
Segmento, 2007.

COSTA, Antônio Luiz M. Nós, humanos, criamos uma nova época geológica. Revista
Carta Capital, 09/09/2016,

COUTO, Mia. O outro pé da Sereia. Lisboa: Editorial Caminho, 2006.

Vagas e Lumes. Lisboa: Editorial Caminho, 2014

CRUTZEN, P. J. “Geology of Mankind”, in Nature, 415, 23, 2002. (REVISTA


USP. São Paulo. n. 103. p. 13-24, 2014)

DE COSSON, A; IRWIN, R. (Org.) A/r/tography: rendering self thought arts-


based living inquiry. Vancouver: Pacific Educational Press, 2004

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia, Trad. Ruth J. Dias; Edmundo F. Dias.


Rio de Janeiro: 1976.

Conversações. Trad. Peter Paul Pelbart. São Paulo: Ed 34, 1992.

Crítica e Clínica. Trad. Peter Paul Pelbart. São Paulo: Editora 34,
1997.

Espinosa, filosofia prática. Trad. Daniel Lins; Fabien P. Lins. São


Paulo: Escuta, 2002

Diferença e Repetição. Trad. Luis Orlandi; Roberto Machado. São


Paulo: Graal, 2006.
299

Francis Bacon: a lógica da sensação. Trad. (Coord.) Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007

A Lógica do Sentido. Trad. L. R. Salinas Fortes. São Paulo:


Perspectiva, 2009.

Proust e os Signos. Trad Antonio Piquet; Roberto Machado. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2010.

A Dobra: Leibniz e o Barroco. Trad. Luis B. L. Orlandi. Campinas:


Papirus, 2012.

A Imagem Tempo. Trad. Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Brasiliense,


2013.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O que é Filosofia. Trad. Bento Prado Jr;
Alberto Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Trad. Aurélio


Guerra Neto; Celia Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

Mil platôs - capitalismo c esquizofrenia. Vol. 3. Trad. Aurélio


Guerra Neto. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

Kafka, para uma literatura menor. Trad., Rafael Godinho. Lisboa:


Assírio & Alvim, 2003.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. O abecedário de Deleuze. 1988-1989.


www.oestrangeiro.net?esquizoanalisa/67-o-abecedario-de-
gilles-deleuze. Acesso em 12/2012

Diálogos. Trad. José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógio D’Agua


Editores, 2004

DEMO, P. A metodologia científica das ciências sociais. 3 ed. São Paulo:


Atlas, 1981.
300

DENZIN, N. K.; LINCOLN, I. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias


e abordagens. Porto Alegre: Artmed, 2006.

DERRIDA, Jaques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências


humanas. São Paulo: Perspectiva, 2002.

In Limiares do contemporâneo. COSTA, Rogério (Org). São Paulo:


Editora Escuta, 1992.

DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

DIAS, Belidson. Preliminares: A/r/tografia como metodologia de Pesquisa


em Artes. Universidade de Brasília. Sem data.
http://aaesc.udesc.br/confaeb/Anais/belidson.pdf

DIAS, Belidson; IRWIN, Rita. A/r/tografia como metodologia e pedagogia em


artes: uma introdução. Santa Maria: Edufsm, 2013.

DIAS, Karina. Entre visão e invisão: paisagem. Brasília: Programa de Pós-


Graduação em arte. UNB, 2010.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Trad. Vera Casa


Nova; Marcia Arbex. Belo Horizonte: 2011.

DUARTE, Mario; SALOMÃO, Wally. Os últimos dias de Paupéria, São Paulo:


Max limonad, 1982.

ECO, Umberto. A definição de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

EISNER, Elliot. The Educatinal imagination: On the design and evaluation of


school programs. New York: Macmillan, 1979.

O que pode a educação aprender das artes sobre a prática da


educação? Currículo sem Fronteiras, v.8, n.2, pp.5-17, Jul/Dez
2008.

EISNER, Elliot; BARONE, Tom. Arts based research. Los Angeles: Sage, 2012.
301

ERICKSON, F. Qualitative Research on Teaching. In: M. C., Winttrok.


Handbook of Research on Teaching. New York: Macmillan. 1986.

ESPINOSA, Baruch de. Pensamentos metafísicos, Ética, Tratado Político.


Seleção de textos e tradução Marilena Chauí. São Paulo: Abril
Cultural, 1983.

ESPINOSA, Apud DELEUZE, Espinosa, filosofia prática. Trad. Daniel Lins;


Fabien P. Lins. São Paulo: Escuta, 2002

ESTEVE, J. M. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos


professores. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1999.

FAVARETTO, Celso F. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Editora da USP,


2015.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Escrita acadêmica: a arte de assinar o que se lê.
In COSTA, Marisa Vorraber; BUJES, Maria Isabel Edelweiss (orgs).
Caminhos Investigativos III: Riscos e possibiidades de pesquisar
nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre:


Artmed/Bookmann, 2009.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de


Janeiro: Graal, 1979.

Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete.


Petrópolis, Vozes, 1987.

A Vontade de Saber. História da sexualidade 1. Trad. M. T.


Albuquerque; A. G. Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Graal,
1988

Sobre a Genealogia da ética: uma revisão do trabalho. In


DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma
trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da
hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995
302

Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise.


Ditos e escritos 1. Trad. Vera Lucia Ribeiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2006.

Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Ditos e Escritos


III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.

Ética, estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Trad. de Vera


Lúcia A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

A Hermenêutica do Sujeito. Trad. M. Fonseca; S. Muchail. São


Paulo: Martins Fontes, 2010.

GARCIA, Wladimir Antônio. A. Territórios virtuais e educação. Dossier Gilles


Deleuze. Educação & Realidade. Porto Alegre: v.27, n. 2
jul/dez. 2002.

GARCIA, Wladimir Antonio; SOUZA, Ana Claudia. A produção de Sentidos e


o Leitor: os caminhos da memória. Florianópolis: NUP/ CED/
UFSC, 2012.

GARION, Charles, in JAGODZINSKI, Jan; WALLIN, Jason. Arts Based Research,


a Critique and a Proposal. Rotterdam: Sense Publishers, 2013.

GALLO, Silvio. Deleuze e a educação. Belo Horizonte, Autentica: 2008.

GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara.


1974.
GERALDO, Sheila Cabo. In VINHOSA, Luciano. Obra de arte e experiência
estética. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011

GIL, José. O Movimento Total – O Corpo e a Dança, Lisboa: Relógio D’agua,


2001

GIL, José. A Reversão. In LINS, Daniel. (Coord.) O devir-criança do


pensamento Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
303

GIL, José. Ele foi capaz de introduzir no movimento dos conceitos o


movimento da vida. Dossier Gilles Deleuze. Educação &
Realidade. Porto Alegre: v.27, n. 2 jul/dez. 2002.

GOODMAN, Nelson. Languages of Art, Indianapolis, IN: Books-Merril, 1992.

GREENE, Maxine. Releasing the Imagination. San Francisco: Jossey-Bass


Publischers, 1995.

GIRARDELLO, Gilka. Televisão e Imaginação Infantil: Histórias da Costa da


Lagoa. Tese de doutoramento ECA USP, 1998.

GUBA, E.G. The paradigm dialog. Newbury Park, CA: Sage Publications,
1990.

GUBA, E.G.; LINCOLN, Y.S. Naturalistic Inquiry, Newbury Park, CA: Sage
Publications, 1985.

GYATSO, Tenzin. A essência do Sutra do Coração. São Paulo: Gaia, 2006.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais


do nosso tempo. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 22, nº2,
p. 15-46, jul./dez. 1997

HEIDDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. Trad. de Marcia Sá.


Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2003.

HENRY, James. La cultura contra el hombre In Crítica a la escuela. Olac


Fuentes Molinar (Org). SEP-Ediciones El Caballito, México, 1985,
pp. 141-145.

HENZ, Alexandre de Oliveira. Ocasos e travessias de Nietzsche em Deleuze.


Revista Educação. Deleuze pensa a Educação: A Docência E A
Filosofia da Diferença. São Paulo: Editora Segmento, 2007.

HERÁCLITO, Apud SANTOS, Maria Carolina Alves dos. A Lição de Heráclito.


Trans/Form/Ação, São Paulo, 13: 1-9, 1990.
304

HERNANDEZ, Fernando. La investigación basada em las artes. Propuestas


para repensar La investigación em educación. Barcelona:
Educatio Siglo XXI, no 26. 2008.

HEUSER, Esther Maria Dreher, in SKLIAR, Carlos. Derrida e a Educação. Belo


Horizonte, Autêntica, 2008.

IRWIN, Rita; SPRINGGAY, Susan. In A/r/togrDEaphy as practice based


research. In CAHMANN, M; SIEGESMUND, R. (0rg.) Arts-based
inquiry in diverse learning communities: foundations for practice.
Mahwah: Lawrence Erlbaum, 2008.

IRWIN, Rita; SPRINGGAY, Susan; KIND, W. A/r/tography as living inquiry


though art and text. Qualitative Inquiry, v. 11, n. 6, 2005.

ISER, Wolfgang. The Fictive and the Imaginary. Charting Literary


Anthropology. Baltimore/London: The Johns Hopkins University
Press, 1993.

JAGODZINSKI, Jan. Art and Education in an Era of Designer Capitalism:


Deconstruting the Oral Eye. New York: Palgrave McMillan, 2010.

What is art education after Deleuze and Guattari. New York:


Palgrave Macmillan, 2017.

The terror of Creativity. Art Education after Postmodernism. The


Journal of Social Theory in Art Education (32) 14-29, 2012.

JAGODZINSKI, Jan; WALLIN, Jason. Arts Based Research, a Critique and a


Proposal. Rotterdam: Sense Publishers, 2013.

KASTRUP, Virgínia. A invenção de si e do mundo. Belo Horizonte: Autêntica,


2007.

KASTRUP, Virgínia. In KASTRUP, V.; PASSOS, E.; ESCÓSSIA, L. Pistas do


método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de
subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012.
305

KLEIN, Kelvin Falcão. Conversas Apócrifas com Enrique Vila-Matas. Porto


Alegre: Modelo de Nuvem, 2011.

KOHAN, Walter O. Infância, estrangeiridade e ignorância. Belo Horizonte:


Autêntica, 2007.

KONESKI, Anita. A estranha fala da arte contemporânea e o ensino da arte.


Revista Palindromo, n.1, Florianópolis: UDESC, junho 2009.

KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Trad. E. C. Baez. Revista


do Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no
Brasil, Rio de Janeiro: PUC-RJ, n. 1, 1984 (Artigo de 1979).

LAO-TSU, Tao-te-king. O livro do sentido da vida. Tradução Margit Martin.


São Paulo: Editora Pensamento, 1995.

LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte:


Autêntica, 2004.

Nietzsche & a Educação. Trad. Semíramis G. da Veiga. Belo


Horizonte: Autêntica, 2009.

Pedagogia Profana. Trad. Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte:


Autêntica, 2010.

LATHER, Patty. Method meets art: Arts based research practice. New York:
The Guilford Press, 2009

LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros


sociedade afora. São Paulo: UNESP, 2000.

LAZZARATO, Maurizio. As Revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2006.

LAWRENCE-LIGHT-FOOT, S; DAVIS, J. H. The Art and Science of portraiture.


San Francisco: Jossey-Bass, 1997.

LEVI, Tatiana Salem. A experiência do Fora. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2011.
306

LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes: 1993.

LINS, Daniel. O devir-criança do pensamento(Coord.) Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2009.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A cultura- mundo. São Paulo: Cia das
Letras, 2011.

LOPES, Denílson. A delicadeza. Brasília: EUB, 2007.

LOPONTE, Luciana Gruppelli. Arte e metáforas contemporâneas para


pensar infância e educação. Revista Brasileira de Educação, vol.
13, no. 37. Rio de Janeiro: Jan./Apr. 2008.

Arte contemporânea, inquietudes e formação estética para a


docência. Educação e Filosofia Uberlândia: v. 28, no. 56, p. 643-
658, jul./dez. 2014.

LUZ, Rogério. In BASBAUM, Ricardo. Além da pureza visual. Porto Alegre:


Editora Zouk, 2007.

MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia: Aproximações e Distinções. 2004.


http://www.compos.org.br/e-compos. acesso em 04.08.2014.

MACHADO, Roberto. Deleuze, arte e filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

MACIUNAS, George. Neo-Dada na Música, Teatro, Poesia, Arte (1962). In:


O que é Fluxus? O que não é! O porquê. (Cat.) Brasília: C. C.
Banco do Brasil, 2002

MAIA, Carmem. Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 2009

MARTINS, Raimundo. Metodologias visuais: com imagens e sobre imagens.


In DIAS, Belidson; IRWIN, Rita. A/r/tografia como metodologia e
pedagogia em artes: uma introdução. Santa Maria: Edufsm,
2013.

MEIRA, Marly. Filosofia da Criação. Porto Alegre: Mediação, 2003.


307

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. Reginaldo


di Piero. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004.

MOSSI, Cristian Poletti. Uma pesquisa-sem-órgãos: imagens, escritas,


sobrejustaposições... Publicada nos Anais da ANPAP 2015.
anpap.org.br/anais/2016/simposios/s8/cristian_poletti_mossi.p
df

NHAT HANH, Thich. Apud SOGYAL, Rinpoche. O livro tibetano do viver e do


morrer. São Paulo: Talento, 1999.

NEWMAN, Barnett. In CHIPP, Herschel B. Teorias da arte moderna. São


Paulo: Martins Fontes, 1996.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo de los ídolos. Madrid: Alianza,


1973.

Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Cia
das Letras, 2011

Ecce Homo. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2003.

Além do bem e do mal. SP, Companhia das letras, 2005.

O Nascimento da Tragédia. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Cia


das Letras, 2007 1988

A Gaia Ciência, Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das
Letras, 2012

Obras Incompletas. Seleção de textos de Gerárd Lebrun; Trad.


Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova cultural, 1974.

Shopenhauer como educador. Trad. Jacobo Muñoz. Madrid:


Biblioteca Nueva, 2000

NIETZSCHE, apud HENZ, Alexandre de Oliveira. Ocasos e travessias de


Nietzsche em Deleuze. Revista Educação. Deleuze pensa a
308

Educação: A Docência E A Filosofia da Diferença. São Paulo:


Editora Segmento, 2007.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

O Museu é o Mundo. Org. Cesar Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco


do Azougue, 2011.

OLIVEIRA, Marilda. Contribuições da perspectiva metodológica Investigação


Baseada nas Artes e da A/t/tografia para as pesquisas em
educação. 36ª reunião da ANPED, Goiânia: 2013.

Como ‘produzir clarões’ nas pesquisas em educação. 36ª reunião


da ANPED, Florianópolis, 2015.

ORLANDI, Luiz B. L. Elogio do Pensamento Necessário, in ZOURABICHVILI,


Deleuze: uma filosofia do acontecimento. Trad. L. B. Orlandi. São
Paulo: Editora 34, 2016

PAGNI, Pedro Angelo. Experiência Estética, formação humana e arte de


viver: desafios filosóficos à educação escolar. São Paulo: Edições
Loyola, 2014.
PAREYSON, Luigi. Estética, teoria da formatividade. Rio de Janeiro: Vozes,
1997.

PASCOLI, Giovanni. O menininho: pensamentos sobre a arte. Trad. Patrícia


Peterle. São Paulo: Rafael Copetti Editor, (1914) 2015.

PEDROSA, Mario. Apud CANTON, Katia. Temas da arte contemporânea. São


Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.

PENA-VEGA & NASCIMENTO. (Orgs.) O Pensar Complexo. Rio de Janeiro:


Garamond, 1999.

PERNIOLA, Mario. Desgostos, novas tendências estéticas. Trad. Davi Pessoa


Carneiro. Florianópolis: Editora da UFSC, 2010.

PERISSÉ, Gabriel. Estética e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.


309

PESSI, Maria Cristina. Ilustro imago: professoras de arte e seus universos de


imagens. Tese de doutoramento. ECA, USP.2009.
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-
10112010-114709/en.php

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. São Paulo: FTD, 1992.

Poemas completos de Alberto Caieiro. São Paulo: Nobel, 2008.

PLATÃO. A República. Belém: editora da UFPA, 2000.


Teeteto. Belém: editora da UFPA, 2001

PRESTES, Nadja H. A propósito das relações entre ética e educação.


Perspectiva,

RANCIÈRE, Jaques. O inconsciente estético. Trad. Monica Costa Neto. São


Paulo: Editora 34, 2009.

A Partilha do Sensível: Estética e Política. Trad. . Monica Costa


Neto São Paulo: Ed 34, 2009.

READ, Herbert. A Educação pela Arte. Trad. Valter Siqueira. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.

REY, Sandra. Da prática e da teoria: três instâncias metodológicas sobre


pesquisa em Poéticas Visuais. Revista Porto Arte (UFRGS), Porto
Alegre: Porto Arte, v.7, n. 13, 1990.

Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes.


adcon.rn.gov.br/ACERVO/CENA/DOC/DOC00000000046610.PDF

A Produção Plástica e a instauração de um Campo de


Conhecimento. Revista Porto Arte (UFRGS), Porto Alegre, n.9,
1995.

Caminhar: experiência estética, desdobramento virtual. Revista


Porto Arte (UFRGS), Porto Alegre. v. 29, 2010.
310

ROCKSTRÖM, J. et al. “Planetary Boundaries: Exploring the Safe Operating


Space for Humanity”, in Ecol. Soc., 14, 32, 2009.

ROLLING, James Haywood. Arts-Based Research. New York: Peter Lang


Publishing, 2013.

ROSA, João Guimarães. Sagarana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984

A terceira margem do rio. In: Ficção completa: volume II. Rio de


Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

SANTAELLA, Lucia. Porque as comunicações e as artes estão convergindo?


São Paulo: Paulus, 2005.

SANTOS; SHOR, 2013, Brasil, estudos pós-coloniais Brasil, estudos pós-


coloniais e contracorrentes e contracorrentes análogas:
entrevista com Ella Shohat e Robert Stam. Estudos Feministas,
Florianópolis, 21(2): 336, maio-agosto/2013
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2013000200020/25809

SANTIAGO, Silviano. As Raízes e o Labirinto da América Latina. Rio de


Janeiro: Editora Rocco, 2006.

SHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador


nômade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012

SKLIAR, Carlos. Desobedecer a Linguagem: educar. Belo Horizonte:


Autêntica, 2014

SILVA, Tomaz Tadeu da. A arte do encontro e da composição: Spinoza +


Currículo + Deleuze. Dossier Gilles Deleuze. Educação &
Realidade. Porto Alegre: v.27, n. 2 jul/dez. 2002.

SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn;


Petrópolis: Vozes, 2000

SPINK, in SPINK; BRIGADÃO; NASCIMENTO; CORDEIRO. A produção de


Informação na Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Edelstein, 2014.
Disponível em www.centroedelstein.org.br
311

SPRINGGAY, S. In SPRINGGAY, S; LEGGO, C; GOUZOUASIS, P. Being with


A/r/tography. Rotterdam: Sense Publishers2008

STILES, Kristine & SELZ, Peter. Contemporary Art. Los Angeles: University of
California Press, 1996.

TOURINHO, Irene. Pegando ondas nas questões de investigação em


educação em artes visuais, in Linhas Cruzadas: artes visuais em
debate. SILVA; MAKOWIECKI, Florianópolis: UDESC, 2009.

Metodologia(s) de pesquisa em Arte/Educação: o que está (como


vejo) em jogo? In DIAS, Belidson; IRWIN, Rita. A/r/tografia como
metodologia e pedagogia em artes: uma introdução. Santa Maria:
Edufsm, 2013.

TRUNGPA, Chogyam. Dharma Art. Boston: Shambala, 1996.

VASCONCELLOS, Sonia Tramujas. Entre (dobras) lugares da pesquisa na


formação de professores de artes visuais e as contribuições da
pesquisa baseada em arte na educação. Tese (Doutorado em
Educação) Curitiba, 2015.
http://www.ppge.ufpr.br/teses%20d2015/d2015_Sonia%20Tra
mujas%20Vasconcellos.pdf

VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica,


2011.

VILELA, Eugénia. A Infância entre ruínas. In PAGNI, Pedro Angelo; GELAMO,


Rodrigo Pelloso (Org.) Experiência, educação e
contemporaneidade. Marília: Poiesis Editora, 2010.

VINHOSA, Luciano. Obra de arte e experiência estética: arte contemporânea


em questões, R Janeiro: Apicuri, 2011.

WISNIK, Guilherme. in Catálogo da exposição RIO OIR. São Paulo: Itaú


Cultural, 2011.
312

ZONNO, Fabiola. Campo ampliado - desafios à reflexão contemporânea. IV


Encontro de História da Arte – IFCH / UNICAMP. 2008, p. 1214.

ZORDAN, Paola. Criação de Planos. 2007, Revista Educação. Deleuze pensa


a Educação: A Docência E A Filosofia da Diferença. São Paulo:
Editora Segmento, 2007.

ZOURABICHVILI, Francois. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: 2004.


Ifch-unicamp.Cientifi.ifch@gmail.com. Acesso em 07.10.2011

Deleuze: uma filosofia do acontecimento. Trad. L. B. Orlandi. São


Paulo: Editora 34, 2016.
313

ÍNDICE DAS FIGURAS

Figura da capa- Tim Diederichsen, Pesquisa vida. Acrílica s/tela.


2002-2018.

Figura 1 - Devir-olhar. René Magritte, O falso espelho. 1928.................... 20


Óleo s/tela. 54 x 81 cm. Acervo do MoMA NY.
Foto de Tim Diderichsen, acervo pessoal.

Figura 2 - Devir-escrita. Paulo Gaiad. .........................................................23


Receptáculo da memória de Renato Tapado. 2002.
Caderno, macarrão, e vidro, em caixa de ferro. 23 x 34 x 4 cm.
(Fonte: Paulo Gaiad, Fifo Lima. Florianópolis: Tempo Ed., 2010)

Figura 3- Devir-o fora. Anselm Kiefer. Aschenblume (Flor de cinzas) ..........26


2004. Óleo, acrílica e emulsão s/ tela. 241 x 254 cm. (Fonte:
https://paintersonpaintings.com/virginia-wagner-on-anselm-
kiefer/. Acesso em 13.11.2017)

Figura 4 - Devir-pele. Tim Diederichsen, O mais profundo é a pele..............31


2010. Fotografia. Acervo pessoal.

Figura 5 - Devir tese- parangolé. Tim Diederichsen -Tese parangolé...........36


2016, Desenho s/ papel.

Figura 6 - Devir-só. Tim Diederichsen, Volta. Grav. em metal, 2003.........43


Acervo pessoal.

Figura 7 - Devir-poesia. T. Diederichsen. Colheita. Grav. em metal, 2003...45


Acervo pessoal.

Figura 8 - Devir-pó. Lia Menna Barreto - Jardim de infância, 1995.............47


Instalação, Cadeiras infantis de madeira, queimadas. (Fonte:
Catálogo Da 1a Bienal do Mercosul. Porto Alegre: FBAVM, 1977)

Figura 9 - Devir-pedra. Joseph Beyus, O final do século XX. 1968.................50


Instalação, Bienal de Veneza. (Fonte: www.artthrob.co.za.
314

Acesso em 06.11.2012)
Figura 10 - Devir- leveza. Guto Lacaz. Aud. para questões delicadas.........56
Instalação flutuante. 1989. Parque do Ibirapuera, SP. (Fonte: A
Metrópole e a arte. SP, Ed Prêmio, 1992)

Figura 11 - Devir-infância. Foto de Jacquelyn DuPrey ................................59


Diederichsen. 2018. Acervo pessoal.

Figura 12 - Devir-novo. Paulo Gaiad, Luz e Sombra Fuga do Céu...............61


Pintura e fotografia, 2008. (Fonte: Paulo Gaiad, Fifo Lima.
Florianópolis: Tempo Editorial, 2010)

Figura 13 - Devir-dança. Oficina Parangolé, a vida como obra ..................63


de arte. CED UFSC. 2016. Tim Diederichsen. Fotografia.

Figura 14 - Devir-voo. Jean-Michel Folon. Mala. 1999. Instalação..........67


640x478cm. (Fonte: www.maboiteaimages@skynet.be.
Acesso em 04.09.2011.)

Figura 15 - Devir- azul. Barnett Newman. Oement IV, 1953.......................70


Óleo sobre tela, 259 x 304 cm.
(Fonte: https://www.moma.org/artists/4285.
Acesso em 17.06.2016)

Figura 16 - Devir-infinito. Milan Kunk, Universo Incomensurável, ..............73


1986. (fonte: Diederichsen, M.C. Sou do Tamanho do que vejo.
TCC, CEART, UDESC, 2003.)

Figura 17 - Devir-científico. Cildo Meireles. Trenas. 1992..........................76


(Fonte: A Metrópole e a arte. São Paulo: Prêmio, 1992.)

Figura 18 - Devir-exata. Sophie Calle, foto. 2009........................................78


(Fonte: www. fotoclubef508.wordpress.com. Acesso em
08.11.2012)

Figura 19 - Jacob Riis, 1890, fotografia........................................................80


(Fonte: xroads.virginia.edu/~ma01/davis/photography/riis/riis.
Acesso em 12.12.2016
315

Figura 20 - Devir cartográfico. Carmela Gross, ..........................................87


Bordado: a rede hídrica de São Paulo. 2007.
(Fonte: catálogo da exposição Carmela Gross, um corpo de ideias.
São Paulo: Estação Pinacoteca,2010.

Figura 21 - Devir-arte. Oficina Parangolé, a vida como obra de arte, .........90


CED UFSC, junho 2016. Fotografia Tim Diederichsen.
Acervo Pessoal

Figura 22 - Devir-pesquisa. Paulo Gaiad. Cicatrizes, 1998, ..........................92


Papel filtro, marcas de arame oxidado e chumbo. 30x30x 10 cm.
(Fonte –LIMA, Fifo. Paulo Gaiad. Florianópolis: Tempo Editorial,
2010.)

Figura 23 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte, ............................97


CED UFSC, junho de 2016. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 23a - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte...........................101


CED UFSC, junho de 2016. Tim Diederichsen

Figura 24 - Devir-pesquisa 2. Max Ernst, Gala Éluard, 1924, .....................104


óleo s/ tela, Metropolitan Museum NY. Fotografia
Tim Diederichsen, 2015. Acervo pessoal

Figura 25 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. ..........................111


CED UFSC, junho de 2016. Fotografia,
Tim Diederichsen. Acervo pessoal.

Figura 26 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte ...........................115


CCE UFSC, setembro de 2017. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 27 - Devir-eu. Kethryn Coleman, 2017, ..........................................120


Desenho dobre papel. Tese de doutorado,
An A/r/tist in wonderland. University of
Melbourne. https://www.artographicexplorations.com/

Figura 28 - Devir-mundo. Katheryn Coleman. 2017..................................122


Idem. Acesso em 10.01.2018
316

Figura 29 - Devir-potência. Tomie Ohtake. ..............................................126


Tapeçaria em quatro cores. 1990. Memorial da Am. Latina, SP.
(Fonte: A metrópole e a arte. São Paulo: Prêmio, 1992.)

Figura 30 - Devir- crença. Adriana Varejão. Andar com fé......................130


Fotografia. 2002. (Fonte: www.itaucultural.com.br
Acesso em 04.09.2011)

Figura 31 - Devir- o mesmo. René Magritte. O mês de vindima...............132


1959. (Fonte René Magritte. RJ, Civilização Brasileira, 1985)

Figura 32 - Devir-incomum. Antony Gormley, Lost Horizon. 2010............134


(Fonte https://www.boumbang.com/antony-gormley/,
Acesso em 05.01.2018.

Figura 33 - Devir-consumo. Jenny Holzer, Proteja-me do que quero........137


Instalação na Times Square, NY. 1985. (Fonte: www.e-
flux.com/.../jenny-holzer-at-printed-matt. Acesso em 05.03.12)

Figura 34 - Devir-capitalismo. Bruce Nauman, Círculo de mãos, ..............141


1996. Met Breuer Museam, Fotografia
Tim Diederichsen, 2016. Acervo pessoal.

Figura 35 - Devir-isolado. Milan Knížák, Stone Ceremony, 1971……..……..143


(Fonte: Artificial Hells, Claire Bishop, New York: Verso, 2012.

Figura 36 - Devir-inumano. Orlan, Auto-hibridização, 1973.....................149


(Fonte: www.orlan.eu. Acesso em 21.12.2017)

Figura 37 - Devir-clandestino. Julião Sarmento, 2013..............................150


Exposição Index, no Museu de Arte Contemporânea de Elvas,
Portugal. (Fonte: ttps://makingarthappen.com/2013/09/20/juliao-
sarmento-index/

Figura 38 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte..........................153


CCE UFSC, setembro de 2017. Fotografia, Tim Diederichsen.
317

Figura 39- Devir-sonho. Tim Diederichsen. Despertar. Desenho.............157


Grafite s/papel. 2010. Acervo pessoal.

Figura 40 - Devir-casca. Christo, Pacote. 1961.........................................162


Tecidos e cordas. Metropolitan Museum, NY.
Foto Tim Diederichsen, 2015. Acervo pessoal.

Figura 41 - Devir-linguagem. Jenny Holzer, 2004………………………….……….164


(Fonte: www.e- flux.com/.../jenny-holzer-at-printed-matt.
Acesso em 05.03.14)

Figura 42- Devir-navegante. Anselm Kiefer. Batalhas no mar, .................170


por Khlebinikov. 2016. Oléo, acrílica e emulsão s/tela.
(http://www.touchofclass.com.br/index.php/2017/06/01/anselm-
kiefer-em-sua-primeira-individual-na-russia/.
Acesso em 09.01.2018)

Figura 43- Devir-riacho. Monica Gonzales, Arroyto, Riachinho, (det)........173


Instalação (Fonte: Catálogo
da 1ª Bienal das Artes Visuais do Mercosul. Porto Alegre, 1997.)

Figura 44- Devir poético. Claude Monet. Ninfeias, 1916...........................176


(Fonte: http://www.fotolog.com/lg_arte/40851011/.
Acesso em 15.01.2018)

Figura 45- Devir-olho. Tim Diederichsen Um olhar emerge.......................179


Fotografia, 2010. Acervo pessoal.

Figura 46 - Devir-ouvido. Stelarc. Orelha no braço, 2007..........................181


Prótese em seu próprio corpo. (Fonte:
http://stelarc.org/projects.php Acesso em 19/01/2018.)

Figura 47 - Fotografia que integra o documentário ...................................183


“Ouvir o Rio: Uma escultura sonora de Cildo Meireles”,
de Marcela Lordy, 2011.
(http://outraspalavras.net/cultura-2/rio-oir-da-percepcao-ao-
pensamento/. Acesso em 11/2017)

Figuras 48 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte....................... 186


318

CED UFSC, junho de 2016. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 49 - Devir-narcísico. Yayoi Kusama............................................... 190


Narcissus Garden, 2009, Inhotim. (Fonte:
www.inhotim.org.br/inhotim/arte-
contemporanea/obras/narcissus-garden)

Figura 50 - Devir- rio. Carmela Gross. Fronteira, fonte, foz. 2001.............193


Instalação. Mosaico português. Laguna SC.
(Fonte: catálogo da exposição Carmela Gross, um corpo
de ideias. São Paulo: Estação Pinacoteca, 2010)

Figura 51 - Devir-nascente. Ana Mandieta. Corpo terra. 1984.................195


(fonte: www.frieze.com acesso em 08.11.2012.)

Figura 52 - Desenho estudante do primeiro ano ......................................199


da Escola Desdobrada da Costa da Lagoa, PMF, Florianópolis.
(6 anos), maio 2016. Fotografia, Tim Diederichsen.Acervo pessoal.

Figura 53- Devir criança. Jacquelyne DuPrey Diederichsen.....................203


Fotografia. 2011. Acervo pessoal..

Figura 54- Devir-feliz. Mosquito da Mangueira, Parangolé P 10. .............206


Foto de Claudio Oiticica, 1965. (Fonte: Museu é o mundo,
Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.)

Figura 55 - Devir-infância do mundo. Jacquelyn DuPrey Diederichsen....208


Fotografia, 2017. Acervo pessoal.

Figura 56 - Devir-vagalume. Tatsuo Miyajima, Vida Inacabada, ..............212


2016. Met Breuer. N Y. Fotografia Tim Diederichsen, 2016. Acervo
pessoal.

Figura 57 - Devir-ponte. William Turner. Chuva, vapor e velocidade.......217


1844. (Fonte:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/historia/26092/hoje+na+h
istoria+1851. Acesso em 15.01.2018)

Figura 58 - Devir-margem. Anselm Kiefer, Odi Navalis, 2004 ..................222


319

Oléo e acrílica s/tela. 190,5 x 330 cm. Exposição no


Massachussets Museum of Contemporary Art (2017) (Fonte:
http://massmoca.org/event/anselm-kiefer/)

Figura 59- Devir-simulacro. Orlan, VIsage, prótese no rosto. 2011...........224


(Fonte: http://www.orlan.eu/category/miscelleanous/page/2/
Acesso em 21.12.2017)

Figura 60- Devir-noite. Tim diederichsen, fotografia. 2011.....................230

Figura 61- Devir-outro-do-mundo. Paulo Gaiad.......................................232


As paredes que me cercam, 2003. 120 x 150cm. Fotografia,
acrílica e colagem sobre tela. (Fonte: Paulo Gaiad, Fifo Lima.
Florianópolis: Tempo Editorial, 2010)

Figura 62- Devir-manhã. Carmela Gross. Aurora, 2003............................236


Instalação luminosa. (Fonte: catálogo da exposição
Carmela Gross, um corpo de ideias. São Paulo:
Estação Pinacoteca, 2010)

Figura 63- Devir-exterior. Logon Zillmer. Looking for the sun. ................239
2016. Foto-montagem. (Fonte: http://loganzillmer-
photography.tumblr.com/. Acesso em 15.01.2018)

Figura 64- Devir-comoção. Guto Lacaz. Buenos-Livros–Oxigênio.............242


2010, Parque em Buenos Aires.

Figura 65- Devir-vagalume. Sala de espelhos do infinito, ......................244


cheia com o brilho da vida. 2011. (Fonte: Catálogo da
Exposição da artista no Instiuto Tomie Ohtake, São Paulo.)

Figura 66- Devir-onda. Katsushika Hakusai, .............................................246


Choshi na província da Soshu. Xilo gravura, 1833.
(Fonte: https://www.katsushikahokusai.org.

Figura 67 - Devir-infinito. Piero Manzoni, ...............................................253


Linha de comprimento infinito, 1960, Metropolitan Museum.
Foto tim diederichsen, 2015, acervo pessoal.
320

Figura 68 - Devir-sujeito. Giuseppe Arcinboldo, Outono. 1573................255


Óleo s/ tela, 77x63 cm. Museu Louvre, Paris (fonte: o Livro
da arte para crianças, Artmed, 2006)

Figura 69 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. ......................... 258


CED UFSC, junho de 2016. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 70 - Devir–alegre. Tim Diederichsen, ............................................261


Linha de fuga ou fuga da linha? 2011, papel e barbante.

Figura 71 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. ......................... 263


CED UFSC, junho de 2016. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 72 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. ......................... 264


CED UFSC, junho de 2016. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 73 - Devir-selvagem. Tarsila do Amaral..........................................266


O batizado de Macunaíma, 1956. Óleo s/ tela.
132,5 x 250 cm. (Fonte:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra2489/

Figura 74 - Devir-híbrido. Orlan, Auto-hibridização pré-colombiana, ......268


1998, desfiguração do rosto. (Fonte:
http://www.stuxgallery.com/exhibitions/orlan.
Acesso15.01.2018)

Figura 75 - Devir-global. Cildo Meireles. Babel, 2001-2006......................270


Instalação (Fonte: www.ufrgs.br/alcar/encontros-
nacionais.../babel...cildo-meireles-o.../file. Acesso 19.01.2018)

Figura 76 - Devir-devoração. Bruce Nauman, Nose-to-nose, 1990...........272


Met Breuer. N Y. Fotografia Tim Diederichsen, 2016.

Figura 77- Devir-parangolé. Helio Oiticica na exposição..................274


Whitechapel experience. Londres, 1969. Foto de John
Goldbart. (Fonte: Museu é o mundo, Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2011.

Figura 78 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte...........................256


321

CCE UFSC, setembro de 2017. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 79 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. ......................... .277


CED UFSC, junho de 2017. Fotografia,

Figura 80 - Devir- coletivo..........................................................................279


Sambistas da Escola de Samba Vai Vai, SP, usando Parangolés.
1979. (Fonte:
http://lounge.obviousmag.org/haraquiri_sertanejo/2012/08/Os-
Parangoles-de-Oiticica-.html)

Figura 81 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte. .......................... 280


CED UFSC, junho de 2017. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 82 - Oficina Parangolé, a vida como obra de arte..........................283


CCE UFSC, setembro de 2017. Fotografia, Tim Diederichsen.

Figura 83- Devir-desterritorialização. Helio Oiticica..................................285


Parangolé Xoxoba (1964) (Fonte: Catálogo da exposição Museu é o
Mundo, Museu Nacional da República (2011). Foto de César Oiticica.
Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.)

Figura 84 - Devir-Arte Paulo Gaiad. As paredes do Campeche. 2003........287


Cimento, tinta, grafitte e foto s/ tela. (Fonte: Evangelista, João: Arte
no Museu. Caderno do MASC. s/ data.)

Figura 85 - Devir-mar. Tim Diederichsen. Praia do Campeche..................293


Fotografia. 2015. Acervo pessoal.

Você também pode gostar